o embate entre a velhar ordem gentÍlica e a nova … · 5 deuses e suas leis, ou ainda eram...

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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03060 O EMBATE ENTRE A VELHAR ORDEM GENTÍLICA E A NOVA SOCIEDADE DA PÓLIS NA PEÇA ÉDIPO EM COLONO SOUZA, Paulo Rogério de (CAPES/PPE/UEM-GTSEAM) PEREIRA MELO, José Joaquim (CAPES/DFE/PPE/UEM-GTSEAM) Considerações iniciais A história da Grécia na antiguidade foi marcada por momentos de transformações sociais que geraram vários conflitos. Um destaque pode ser dado às mudanças que ocorreram na Grécia no período de transição que antecedeu o chamado período Clássico, e que provocaram alterações não só na forma estrutural da sociedade grega, mas também na maneira do homem conduzir a sua vida e a vida de toda a comunidade. O homem grego deixou de gestar sua existência a partir de princípios religiosos e privados, o que fundamentavam a comunidade familiar gentílica, basicamente agrária, para assumir a responsabilidade de administrar e conduzir a cidade numa nova forma de organização pautada na vida pública e citadina. As alterações na maneira de produzir a vida nos moldes gentílicos, baseada na família e na religião, para a forma política da cidade-Estado, foram geradoras de conflitos para o homem grego. Esses conflitos tornaram-se assunto para os tragediógrafos que levaram para o palco dos teatros a narrativa desses embates entre a antiga ordem patriarcal que representava a sociedade gentílica e a nova ordem política da pólis democrática. Sófocles foi um desses autores do gênero trágico que buscou representar esse conflito. Por isso, o embate entre o velho e o novo a sua peça Édipo em Clono será o tema de discussão nesse trabalho para buscar compreender como se deu esse processo de transição do génos familiar para a pólis clássica.

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03060

O EMBATE ENTRE A VELHAR ORDEM GENTÍLICA E A NOVA

SOCIEDADE DA PÓLIS NA PEÇA ÉDIPO EM COLONO

SOUZA, Paulo Rogério de (CAPES/PPE/UEM-GTSEAM)

PEREIRA MELO, José Joaquim (CAPES/DFE/PPE/UEM-GTSEAM)

Considerações iniciais

A história da Grécia na antiguidade foi marcada por momentos de transformações

sociais que geraram vários conflitos. Um destaque pode ser dado às mudanças que

ocorreram na Grécia no período de transição que antecedeu o chamado período Clássico, e

que provocaram alterações não só na forma estrutural da sociedade grega, mas também na

maneira do homem conduzir a sua vida e a vida de toda a comunidade.

O homem grego deixou de gestar sua existência a partir de princípios religiosos e

privados, o que fundamentavam a comunidade familiar gentílica, basicamente agrária, para

assumir a responsabilidade de administrar e conduzir a cidade numa nova forma de

organização pautada na vida pública e citadina.

As alterações na maneira de produzir a vida nos moldes gentílicos, baseada na

família e na religião, para a forma política da cidade-Estado, foram geradoras de conflitos

para o homem grego. Esses conflitos tornaram-se assunto para os tragediógrafos que

levaram para o palco dos teatros a narrativa desses embates entre a antiga ordem patriarcal

que representava a sociedade gentílica e a nova ordem política da pólis democrática.

Sófocles foi um desses autores do gênero trágico que buscou representar esse

conflito. Por isso, o embate entre o velho e o novo a sua peça Édipo em Clono será o tema

de discussão nesse trabalho para buscar compreender como se deu esse processo de

transição do génos familiar para a pólis clássica.

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O poder patriarcal no processo de transição

Como já foi mencionado, todo o processo histórico de transição é gerador de

conflitos. E esses conflitos ficam mais evidentes quando se pretende discutir ou fazer uma

análise de como esse processo ocorreu em uma “civilização” que tem suas bases de

produção da vida erguidas sobre a tradição do espírito guerreiro e combativo como o povo

grego.

Ao se analisar o processo de transformação social caracterizado pela transição do

génos arcaico – guiado pela consciência mítica e pela coletividade familiar –, para a pólis –

regida pela racionalidade e pela individualidade – esse conflito fica bem evidente. A nova

forma de organização, que se deu com o surgimento das cidades-Estado, alterou a forma de

ser, de agir e de pensar desse povo:

O aparecimento da pólis constitui na história do pensamento grego, um acontecimento decisivo. Certamente, no plano intelectual como no domínio das instituições, só no fim alcançará as suas conseqüências; a pólis conhecerá etapas múltiplas e formas variadas. Entretanto, desde seu advento, que se pode situar entre os séculos VIII e VII, marca um começo, uma verdadeira invenção; pois a vida social e as relações entre os homens tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos (VERNANT, 2002, p. 53).

Foi com a estruturação da pólis que se iniciou a desarticulação das relações

estabelecidas pelos laços consangüíneos do génos. O laço de sangue e a união parental que

fora até o momento fora a amálgama que mantivera unida a sociedade deixou então de ser

fundamental para os membros da nova organização.

Isso porque no génos o homem era destituído de liberdade plena e de autonomia

para tomar as decisões pessoais. A sociedade gentílica tinha a vida norteada pela crença na

religião doméstica e pelo poder paterno que a representava, e pela necessidade de

manutenção da coletividade imposta pela tradição familiar, para a sobrevivência da

comunidade. Era essa existência coletiva socialmente determinada no interior da família

gentílica que gerava uma consciência baseada na dependência do homem para com todos

os seus pares com vista a manter a sobrevivência de todo o clã.

A religião era o que mantinha a família unida para poder assegurar as relações

sociais e as atividades que eram executadas no seio desta comunidade, para sua

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manutenção; por isso, a família era considerada mais uma associação religiosa do que uma

associação agregadora.

A comunidade gentílica, em todas as suas relações, era conduzida pelo poder

patriarcal de administração, em que o pai era o primeiro junto ao fogo considerado

sagrado. Era este que acendia e o conservava o fogo do altar no interior da casa; era o seu

sacerdote, seu guardião. Era o pai que tomava a frente nas homenagens e libações aos

mortos da sua família. Era ele o primeiro a prestar culto ao deus. Cabia ao pai a função de

único sacerdote da religião doméstica e dos preceitos a ela creditados: “[...] o pai não é

somente o homem forte protegendo os seus e tendo também a autoridade para fazer-se por

eles obedecer: o pai é, além disso, o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos

antepassados [...]” (COULANGES, 1975, p. 70).

Como único sacerdote, o pai não conhecia na hierarquia familiar nenhum outro

posto que lhe fosse superior dentro do génos. O chefe da família estava sujeito apenas às

leis da religião familiar: visto que ele não podia alterá-las nem revogá-las, tinha a

obrigação de fazê-las cumprir: “[...] o arconte de Atenas, podia certificar-se se o pai de

família cumpria todos os seus ritos religiosos, mas não tinha o direito de lhe ordenar a mais

ligeira alteração nas suas leis domésticas de religião” (COULANGES, 1975, p. 30).

A autoridade do pai ia além da relação marital com sua mulher, a quem ele podia

vender, repudiar, ou até mesmo matar, sem ter de justificar-se com nenhum outro membro

da sua comunidade, nem mesmo com seus filhos, que lhe deviam obediência e submissão

durante toda a vida, e culto depois que estivesse morto. Como o pai exercia ilimitada

autoridade sobre todos os membros do seu grupo, o seu poder como chefe do génos era

inquestionável.

O poder concentrado nas mãos do chefe do génos tinha como princípio a crença de

que ele era descendente direto do ancestral ou heroi que dera origem àquela família

gentílica: “A tradição grega considera essas famílias governantes como descendentes de

heróis que se dirigiam a Grécia, vindas do Norte e do Leste, e que estavam intimamente

relacionadas como os mitos mais antigos sobre os deuses e heróis” (ROSTOVTZEFF,

1983, p. 60).

De acordo com a crença grega, o pai estava mais próximo e diretamente ligado ao

antepassado divino do clã, por ser o componente mais velho da família. Por essa

“condição” divina, o pai trazia dentro si o sangue mais puro, o que o incumbia da

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obrigação de manter a ordem e a paz dentro do génos por ele governado, proclamando,

interpretando e fazendo cumprir o que acreditava ser a vontade divina, pelas interpretações

dos seus sinais: “Ao receber o cetro, o chefe do génos recebeu também o conhecimento das

Thémistes, sentenças infalíveis que uma sabedoria mais que humana lhe revela por meio de

sonhos, ou oráculos ou lhe sugere no fundo da consciência” (GLOTZ, 1988, p. 06).

Com essa autoridade, o pai fazia vigorar as leis elaboradas por ele mesmo, leis as

quais, segundo a tradição, só a ele cabia fazer cumprir. Estas leis não faziam parte de

nenhum código escrito, e sim, conforme José Ribeiro Ferreira (1992), faziam parte de “[...]

um conjunto de costumes transmitidos pelas grandes famílias de pais para filhos” (p. 48).

Nesta esteira, Auguste Jardé aponta como a justiça patriarcal era exercida sobre os

membros da família gentílica: “Nos primeiros tempos, só existia a justiça patriarcal,

exercida no interior da família. O chefe da família julgava todos os seus dependentes de

maneira soberana e determinava a execução da sentença, que ele próprio havia

pronunciado” (JARDÉ, 1977, p. 188). Cabia também a este mesmo chefe executar as leis,

sem encontrar empecilhos para sua aplicação e sem que nenhum membro da família se

opusesse a sua autoridade. Para o homem do génos, a vida social não era administrada por

princípios humanos, nem por seus pares, mas pelo “[...] autêntico legislador, que entre os

antigos nunca foi o homem, mas a crença religiosa de que era seguidor” (COULANGES,

1975, p. 152).

Com a organização das cidades, a aristocracia gentílica patriarcal passou a perder o

seu espaço no comando da sociedade e começou a sofrer perseguições por parte dos

integrantes dessa nova sociedade que surgiu com a pólis, ou seja, pelos pequenos

proprietários de terra, pelos comerciantes, que até então tinham sido oprimidos e

explorados por esta aristocracia.

Também foram sendo deixados de lado alguns dos costumes, normas e tradições

que até então haviam sustentado a comunidade. Com a estruturação da cidade-Estado esses

costumes, normas e tradições foram rejeitados pela nova ordem social pois exaltavam

traços da velha ordem que não mais detinha o poder: “Chega um momento em que a cidade

rejeita as atitudes tradicionais da aristocracia tendentes a exaltar o prestigio, a reforçar o

poder dos indivíduos e dos gene, a elevá-los acima do comum” (VERNANT, 2002, p. 68).

Antigas estruturas que eram tidas pelos membros dos gene como insubstituíveis

como o poder do pai e a comunidade familiar, ou tinham um caráter divino como seus

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deuses e suas leis, ou ainda eram consideradas inalienáveis como a propriedade gentílica

deixaram de ter, com o surgimento da pólis, o caráter de sagrado, e foram substituídas por

novas formas de conduzir a sociedade em transformação.

A cidade grega estava associada, nesse momento de transição, a expressão de um

espaço social novo, e com isso exigia uma nova forma de administração para conduzi-la. A

sua estrutura não era mais a de um pequeno grupo de indivíduos de uma mesma família

reunida em torno do fogo sagrado e diante do trono do pai. Mas a de várias famílias que

faziam parte de um grande grupo, as quais passaram a se reunir em praça pública para

tomar decisões e discutir o direcionamento da sociedade.

A praça pública era o local onde os cidadãos gregos se reuniam para discutir e

expressar suas idéias. Este era um espaço para o debate e para a discussão dos problemas

de interesse comum a todos. Com a pólis, o que era secreto no interior da família passou a

fazer parte de toda a cidade:

Essa transformação de um saber secreto de tipo esotérico, num corpo de verdades divulgadas no público, tem seu paralelo num outro setor da vida social. Os antigos sacerdotes pertenciam como propriedade particular a certos gene e marcavam seu parentesco especial com um poder divino; – a polis, quando é constituída, confisca-o em seu proveito e os transforma em cultos oficiais da cidade (VERNANT, 2002, p. 58).

A religião e os deuses, que até então eram particulares do génos, tornaram-se de

toda cidade. O que era restrito a um pequeno grupo tornara-se direito da coletividade.

Todos os que compunham esta nova forma de sociedade passaram a ter direitos de cultuar

os deuses independentemente da família da qual faziam parte. É o que Jean-Pierre Vernant

(2002) vai chama de “culto da cidade” ou “culto público”.

É desta forma que a religião deixou de ser estritamente doméstica. O culto às

divindades não era mais celebrado secretamente no interior das casas, mas nas ruas, nas

festividades populares. Nas cidades eram construídos altares e templos onde eram erguidas

estátuas para indicar a que deus pertencia. Com isso surgiu uma “religião da cidade”.

Nesta nova realidade da cidade o homem grego começou a abandonar velhos

preceitos da religião gentílica. Os ensinamentos e os preceitos que, segundo a tradição,

eram observados pela religião doméstica, deixaram de ser aplicados pelo homem da cidade

e perderam a função de guia da comunidade em contínuo crescimento.

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Estas alterações na estrutura da sociedade acabaram por mostrar ao homem que as

“leis divinas”, outrora instituídas pelos chefes da religião doméstica e aplicadas por estes

mesmos líderes religiosos, já não eram suficientes para manter a comunidade organizada.

Com essa mudança de mentalidade, as novas relações políticas, econômicas e religiosas

necessitavam de outros dispositivos para manter a sociedade organizada.

A “nova” forma de organização social da cidade-Estado teve que deixar de lado

muitas das antigas tradições características da sociedade gentílica para poder se estruturar.

Isso porque a sociedade democrática não poderia subsistir sob um poder único, como o

poder paterno que havia no génos. Não era aceito pelo cidadão que os cargos legislativos

fossem ocupados por uma norma de sucessão familiar do primogênito, nem que suas leis

tivessem um caráter imutável e sagrado, pois cabia a esse cidadão fazer e mudar as leis de

acordo com a necessidade da comunidade.

No século V a.C., as cidades gregas estavam organizadas, tanto nas suas estruturas

políticas como nas econômicas, com base na democracia e no comércio. Assim, os gregos

conseguiram um status intelectual e também nas artes pela influência da filosofia na

formação do homem da pólis e ao patrocínio do Estado na produção artística, tanto do

teatro e da literatura, como da arquitetura e da escultura.

Não obstante, a sociedade grega do período clássico continuou mantendo vestígios

da antiga ordem social. Ainda havia influências da antiga tradição nesta sociedade, as quais

estavam presentes na religião, na política e na cultura. Isso acabou por provocar no homem

um estado de constante conflito.

Tais conflitos eram vividos não só em relação a seu mundo exterior, ou seja, com

as transformações ocorridas na estrutura da cidade e na organização da sua comunidade.

Mas também surgiram conflitos quando o homem dessa comunidade se deparou com

mudanças na forma de entender qual deveria ser o seu papel nesta nova sociedade.

Édipo em Colono e o conflito social na pólis

Foi no estado de conflito do homem grego diante das transformações na sua

sociedade que Sófocles vai buscar o assunto para criar suas obras. Isso pode ser encontrado

numa peça em especial: Édipo em Colono. Nesta peça o poeta procurou mostrar os

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conflitos vividos pelos e/ou entre os homens gregos nesse período de transição e de

mudanças.

Ao representar o heroi trágico na sua peça, Sófocles estava personificando o

homem da pólis grega. A luta do heroi diante do seu destino era a representação da luta do

homem-cidadão diante das mudanças na estrutura social. Este conflito estava sendo gerado

porque a nova ordem democrática da cidade-Estado já não aceitava as antigas formas de

organização da sociedade, baseadas no patriarcalismo.

Na peça Édipo em Colono o poeta procurou mostrar esse conflito do “velho” contra

o “novo”, do “pai” contra o filho. O pai representava a antiga tradição que entra em atrito

com o filho, personificação da nova ordem social. Era este conflito que acabava por gerar o

efeito trágico nas tragédias sofoclianas,

O enredo da peça parte do momento da chegada do velho Édipo ao bosque de

Colono, após vagar como um mendigo errante e cego conduzido pela filha: a jovem

Antígona. O contraste entre a velhice de Édipo e a juventude de Antígona foi ressaltado em

alguns versos logo no inicio da peça sofocliana: “Filha do velho cego, a que lugar

chegamos,/ Antígona [...]” (Édipo em colono, vv. 1-2) e “Meu pai, desventurado Édipo, já

vejo,/ [...] teu caminho/ foi muito longo para o ancião que és” (Édipo em colono, vv. 15/22-

23).

O que na sociedade gentílica era sinal de poder e de sabedoria do chefe patriarcal:

os muitos anos de vida do velho pai, o longo tempo de experiência adquirida daquele que

era o condutor da família; daquele que tinha o dever de exercer a vontade divina para com

os membros da comunidade, já não tinha mais tanta serventia dentro da nova ordem social.

Édipo era o exemplo do velho chefe gentílico que, de acordo com a antiga religião,

deveria ser capaz de enxergar através dos oráculos e assim recebia a incumbência de

administrar a sociedade de acordo com a vontade dos deuses. E cabia a ele também o papel

de guia e a função de mentor que deveria ensinar os filhos como conduzir suas vidas, mas

que no contexto da nova sociedade na qual fora inserido passou a ser guiado pela filha

mais jovem:

ÉDIPO [...] Se não fosse assim não me veríeis caminhando por aqui como os olhos de outrem, e eu, que sou um homem feito, não usaria uma menina como guia (Édipo em Colono, vv. 161-164).

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Pela cegueira física do velho rei tebano pode-se entender a dificuldade dos

membros da antiga ordem social de vislumbrar as mudanças que estavam ocorrendo na

sociedade. Ao serem guiados pelos mais novos, pelos membros dos setores sociais que

emergiam diante das mudanças na sociedade, os membros da antiga aristocracia que não

mais vigorava de maneira hegemônica nas escalas administrativas da pólis e que ainda

mantinham uma crença na religião aos moldes da comunidade gentílica acabavam

revelando a sua incapacidade de sustentar-se por si mesma diante da nova realidade social:

“Vem pai, comigo, vem andando assim.../ [...] / ...vem marchando como um cego” (Édipo

em colono, vv. 194/196).

Desta maneira, como a velha aristocracia, ainda com vestígios remanescente na

cidade-Estado, já não era mais a mesma que administrara a comunidade gentílica, Édipo

também se reconhece como alguém fora do seu contexto: “Tende piedade dos vestígios

infelizes/ de Édipo, que já não é o homem de antes!” (Édipo em colono, vv. 129-128), e

recorrera aos conselhos da filha Antígona para tomar suas decisões: “Que decisão devo

tomar agora, filha” (Édipo em colono, v. 182).

Apesar da sua juventude, o que na sociedade gentílica significava inexperiência e

submissão, Antígona fora incisiva nas suas palavras em exortar ao pai a necessidade de que

todos os cidadãos tinham de se adaptarem aos novos tempos e às exigências da nova forma

de condução social na qual estavam inseridos: “Devemos adaptar-nos, pai, às tradições/

dos habitantes desta terra, obedecendo-lhes/ sempre que seja necessário e os ouvindo

(Édipo em colono, vv. 183-185). E o velho Édipo demonstrara sua submissão ao acatar

prontamente o conselho da filha, sem questionar: “Concordo; pega minha mão!” (Édipo em

colono, v. 186)

A jovem Antígona também apresentara ter influência social quando tomara a

palavra do pai que tivera negado o pedido de permanecer no bosque de Colono pelos

habitantes que tentavam expulsá-lo pela sua impiedade cometida aos deuses, por seus

crimes: ANTÍGONA Estrangeiros de alma benevolente, não quisestes ouvir meu velho pai depois de conhecer os seus pecados involuntários; tende piedade, então, de mim, que sou tão inditosa,

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quando venho fazer-vos um apelo por este meu pai, um desvalido. Meus olhos não são cegos e com eles postos nos vossos quero suplicar-vos por ele como se corresse em mim o vosso sangue [...] (Édipo em Colono, vv. 241-251)

O encontro de Édipo com a outra filha, Ismena, continuara a retratar as mudanças

no contexto entre o velho e o novo na sociedade grega.

Anteriormente, como narrado na peça Édipo Rei também de Sófocles, Édipo fora

conhecido e descrito pelo próprio povo tebano como “...o melhor dos homens”, o

decifrador de enigmas, que vencerá pela sua inteligência a terrível Esfinge que assolava a

cidade de Tebas com suas terríveis charadas indecifráveis, e pondo a prova de morte aos

pobres humanos: “Pois eu cheguei, sem nada conhecer, eu, Édipo,/ e impus silêncio à

Esfinge; veio a solução/ de minha mente e não das aves agoureiras” (Édipo Rei, vv. 477-

479).

Já na peça Édipo em Colono, o velho Édipo fora apresentado como um ancião cego

que não enxergava as mudanças ao seu redor e era incapaz de guiar seus próprios passos

sem ajuda. E a jovem filha Ismene apresentara-se como detentora do conhecimento que

outrora fora do pai e que então era mais capaz de vislumbrar os segredos oraculares:

ÉDIPO E tu, Ismene, vieste em dias passados, sem que os cadmeus soubessem, trazer ao teu pai todas as manifestações oraculares pertinentes a mim [...] [...] Ismene, que notícias tens par me dar nesta missão que te afastou do lar? (Édipo em Clono, vv. 374-376/380-381)

Ismene revelara ao pai fatos que esse desconhecera. A sabedoria que antes

acompanhava o velho chefe patriarcal, inspirado pelos deuses de acordo com a crença

religiosa, na pólis não servia mais. Agora o conhecimento que faltava ao velho estava com

a jovem que assumira o papel de transmitir o que se passava na nova forma de organização

social:

ISMENE Estou aqui para informar-te das desditas

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que afligem teus desventurados filhos. [...] Agora, pai, por causa de algum deus e de desígnios criminosos teus dois filhos três vezes arrogantes estão separados por uma desavença súbita e funesta: cada um deles tenta obter de qualquer modo o cetro e o poder real para si mesmo (Édipo em Colono, vv. 387-388/394-399).

Em Édipo em Colono o poeta procurou apresentar o desfecho do conflito entre a

“velha” organização patriarcal gentílica e a “nova” estrutura social da cidade-Estado. Isso

pode ser constatado no lamento do próprio Édipo na peça ao descrever o descaso dos seus

dois filhos, Polinices e Etéocles, diante do seu sofrimento e do seu exílio forçado: “[...]

nenhum deles no momento em que seu pai/ era banido vilmente de sua terra/ apareceu para

apoiá-lo e defendê-lo” (Édipo em Colono, vv. 465-467).

Ao descrever a forma violenta como fora banido de sua cidade, Édipo acabara por

revelar que o poder patriarcal já não vigorava mais na sociedade. A submissão dos filhos

ao pai já não mais existia. O que passara a existir foi o conflito dos “filhos” contra o “pai”

para tomar o poder, ou o trono de Tebas que outrora o segundo ocupara:

ÉDIPO Tebas baniu-me dessa vez com violência – muito mais forte – e meus dois filhos, que podiam ter me ajudado – filhos ajudando pai – nada fizeram; então, por nada terem dito uma simples palavra, passei a viver errante por terras estranhas, exilado, como um mendigo [...] (Édipo em Colono, vv. 481-487).

Outro argumento do poeta nesta peça, também, que pode ser constatado ao mostrar

que as leis condicionadas à religião e a vontade divina que anteriormente vigoravam na

antiga ordem gentílica já não tinham mais influência na condução da pólis.

Mesmo sendo o primeiro na linha de sucessão Polinices não herdara o trono de seu

pai, Édipo; Etéocles, aliando-se ao seu tio Creonte, assumiu o trono da cidade de Tebas,

rompendo com a lei gentílica da tradição, onde o filho primogênito era por direito divino o

primeiro na sucessão do trono: “O mais novo, menos dotado de direito/ pela idade, privou

do trono o primogênito/ Polinices, e o expulsou de sua pátria” (Édipo em Colono, vv. 400-

402).

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A atitude violenta de Polinices, o legítimo herdeiro do trono, na tentativa de fazer

vigorar o seu direito de retomar o poder e assumir o trono do pai e que fora usurpado pelo

irmão mostrara também a decadência da aristocracia originária do génos onde o bem

comum deveria vigorar, independente do interesse particular:

ISMENE Este, se acreditarmos em fortes rumores, foi para Argos rodeado de Colinas, e lá, como exilado, conseguiu formar uma aliança nova graças aos amigos, que lhe proporcionará muitos soldados; ele imagina que dentro de pouco tempo Argos conquistará gloriosamente Tebas ou esta será lembrada até nós céus (Édipo em Colono, vv. 403-410).

Ao apresentar a embate entre os irmãos Polinices e Etéocles pelo trono da cidade

de Tebas, o poeta colocara na ordem do dia a discussão de uma questão que no período

Arcaico era inalienável: a questão do direito do filho primogênito em assumir o poder e a

administração da sociedade como herança do pai, tornando-se assim o único herdeiro no

comando da família.

Esse direito era considerado sagrado pela comunidade do génos, desta maneira

Polinices tinha esse direito, segundo a tradição, por ser o filho mais velho. Mas esse direito

lhe fora negado pelo irmão mais novo, Etéocles.

Polinices, como personificação da resistência da antiga ordem que não aceitara as

transformações pela qual sua sociedade estava passando, ainda procurou buscar

argumentos que pudessem fazer valer seus direitos:

POLINICES Fui banido da minha terra e me exilei por ter querido como filho primogênito subir ao trono e reinar soberanamente. Por isso, Etéocles, apesar de mais jovem, expulsou-me de minha pátria sem tentar persuadir-me graças a bons argumentos e sem mostrar-se mais valente e poderoso, somente por haver seduzido a cidade (Édipo em Colono, vv. 1516-1523).

Não obstante, o direito das antigas tradições gentílicas já não vigorava na

comunidade. O fim do direito de primogenitura mostrara que a antiga ordem patriarcal já

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não tinha poder na cidade-Estado e isso decretara o fim do génos e dos traços da sociedade

patriarcal na administração da cidade.

Ao decretar o fim do direito do filho primogênito, Sófocles revelou também que

uma nova forma de organização não podia ser guiada pelos velhos preceitos da tradição.

Por isso, ao mencionar o exílio sofrido por Édipo, a peça levantou outro ponto que mostra

o fim da antiga ordem patriarcal: a aplicação do direito da cidade, das leis elaboradas pelos

cidadãos para serem aplicadas aos cidadãos, fossem eles quem fossem, mesmo sendo

ocupantes de cargos na legislação da cidade.

Foram os cidadãos da pólis, e não o chefe patriarcal, que expulsaram Édipo para o

exílio, pois seus crimes causaram a desordem social, ou seja, a peste que assolava a cidade

de Tebas, provocada pela ira dos deuses contra as transgressões do seu rei. Este ato de

banir Édipo da cidade é um exemplo da aplicação de uma das primeiras leis criadas para a

administração da cidade-Estado que foi a lei ao Ostracismo, instituída pelo povo de Atenas

para expulsar do convívio social por um período de dez anos o cidadão que representasse

algum perigo à democracia. Isso mostrava como o poder para aplicação da justiça na pólis

não estava mais centrado nas mãos de um único legislador ou de um rei. Sófocles mostrou

isso ao narrar a chegada de Édipo ao bosque da cidade de Colono.

Ao ser abordado pelos primeiros habitantes de Colono, Édipo quis saber quem

tinha o poder para tomar as decisões na cidade: “Quem é o dono das palavras e do poder?”

(Édipo em Colono, v. 77) e questionara se esta cidade era governada por um único homem,

ou o poder estava com o povo: “Alguém os rege, ou a palavra está com o povo?” (Édipo

em Colono, v. 75).

A resposta a estas questões pode ser encontrada na fala da personagem do

“Estrangeiro” que esclareceu ao rei destronado que nenhuma decisão poderia ser tomada

individualmente por nenhum cidadão, mas deveria antes passar por um processo público de

avaliação de todos que compunham a “cidade”. E após passar pelo julgamento público,

toda “cidade” deveria dar o veredicto sobre a questão em julgamento: “Por mim não tenho

a pretensão de remover-te/ sem ordem da cidade; antes perguntarei,/ à luz dos fatos, o que

deverei fazer” (Édipo em Colono, vv. 53-55).

Desta forma, ao buscar a representação do conflito entre o pai Édipo e seus filhos

na sua peça Édipo em Colono, Sófocles demonstrou a força que a nova organização social

da pólis passou a ter em toda a Grécia no período Clássico, em substituição ao antigo poder

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patriarcal. E como esta nova forma organização se articulou para sedimentar e fortalecer

seus alicerces, criando instrumentos como, a lei do ostracismo, a eleição dos seus

legisladores, a discussão nas assembléias, para manter a ordem e substituir formas de

organização da sociedade baseadas na tradição antiga e no velho sistema gentílico.

Considerações Finais

O caráter político e educativo estava presente nas peças trágicas, principalmente nas

tragédias de Sófocles. A tragédia sofocliana, ao representar os eventos “históricos míticos”

dos gregos no palco, manter uma ligação com o universo religioso na qual o gênero se

originária, bem como também aproximar-se do cidadão da pólis pela religião que, apesar

de constituir um caráter mais cívico do que propriamente místico, ainda mantinha sua vida

ligada a ela.

Sófocles utilizou-se desse caráter político e educativo da tragédia principalmente ao

“apresentar”1 sua peça Édipo em Colono, na qual o poeta buscou enfatizar o conflito entre

o pai Édipo e seus filhos. Num primeiro momento enfatizou uma relação de dependência

do velho tebano para com suas filhas Antígona e Ismene que assumiram papéis de guias e

de conselheiras do “incapacitado” Édipo. E num segundo momento destacou um conflito

direto na tentativa de superação dos filhos ao poder paterno, no caso de Polinices e

Etéocles que queriam ocupar o trono que antes pertencera ao pai.

Esses conflitos caracterizavam o embate entre a antiga ordem gentílica e a nova

forma de organização do pólis democrática. O velho Édipo era símbolo da velha ordem

patriarcal que perdera seu espaço na sociedade no período Clássico e que, muitas vezes,

fechava seus olhos para as mudanças que estavam ocorrendo na tentativa de negar essas

mudanças e manter seu poder. Já os filhos de Édipo são representantes da nova ordem da

cidade-Estado que tomam o lugar do pai no poder, na condução da sociedade, no processo

de formação dos cidadãos.

Desta maneira, conclui-se que a proposta de Sófocles ao fazer a narrativa do mito

da família dos Labidácidas nos últimos momentos de seu representante maior, foi o de

1 Essa peça de Sófocles escrita pelo tragediógrafo no mesmo ano de seu falecimento (405 a.C) somente foi encena no ano de 401 a.C.

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mostrar ao cidadão que a antiga ordem aristocrática ainda mantinha vestígios na sociedade

da polis. No entanto, sua participação era relegada a um plano secundário que não

interferia, ou não devia interferir, diretamente no processo de organização e condução da

sociedade como fora no período Arcaico.

REFERÊNCIAS

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da Grécia e de Roma. Trad: Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: HUMES,

1975.

FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga – sociedade e política. Lisboa-Portugal:

Edições 70, 1992.

GLOTZ, Gustave. A cidade grega. 2ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.

JARDÉ, Auguste. A Grécia antiga e a vida grega. São Paulo: EDUSP, 1977.

ROSTOVTZEFF, Michael. História da Grécia. 3ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1983.

SÓFOCLES. Édipo em Colono Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro; Jorge Zahar,

1990.

_______. Édipo Rei. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Edusp, 2002.