o elogio da escola: de mulher para mulher, uma escola
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
O ELOGIO DA ESCOLA:
DE MULHER PARA MULHER,
UMA ESCOLA IMAGINADA.
Tese de Doutorado em Educação,
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor.
Cristina Maria Rosa Orientadora: Drª Malvina do Amaral Dorneles
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Porto Alegre, 10 de março de 2004.
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O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Todo ser humano, tal como o ponto de um holograma,
traz em si o cosmo. Todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas,
constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplicidades interiores,
personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário,
no sono e na vigília, na obediência e na transgressão,
no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários
de suas cavidades e profundezas insondáveis. Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas,
impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças,
imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo,
acessos de ódio, desregramentos,
lampejos de lucidez, tormentas dementes...” (Morin, 2000a:57-58).
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SUMÁRIO Agradecimentos....................................................................................................... 005 Dedicatória............................................................................................................... 006 Dedicatória especial............................................................................................... 007 Índice de siglas........................................................................................................ 008 Resumo........................................................................................................................ 010 Resumen...................................................................................................................... 011
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 012
1. APRESENTAÇÃO. . . ........................................................................................... 017 1. . . . Da Pesquisadora............................................................................................ 018 2. . . . Da Tese.......................................................................................................... 032 3. . . . Das Mulheres Interlocutoras................................................................... 036
2. SENTIDOS BUSCADOS: O ELOGIO DO SENTIDO................................ 052 1. Os sentidos da pesquisa................................................................................... 053 2. Sentido, Significados e Imaginário............................................................... 061 2.1 Sentidos de Escola...................................................................................... 067 2.2 Mulheres e Sentidos de Escola................................................................ 072 3. Trajetos e Trajetórias..................................................................................... 082 3. SENTIDOS ATRIBUÍDOS: O ELOGIO DA ESCOLA............................... 092 1. Escola é acesso a uma profissão.................................................................... 097 2. Escola é espaço social....................................................................................... 122 3. Escola é projeto de vida................................................................................... 138 4. Escola é sonho..................................................................................................... 148 5. Escola é disciplinamento................................................................................... 156 6. Escola é espaço de saberes............................................................................. 164 7. Escola é realização............................................................................................. 177
4. SENTIDOS CONTRARIADOS: O ELOGIO DA PESQUISA................... 186
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1. Das verdades contrariadas................................................................................ 188 2. Sentidos atribuídos à escola............................................................................. 195 3. O elogio da pesquisa........................................................................................... 205
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... 209 a. Livros e artigos.................................................................................................... 210 b. Documentos oficiais e Legislação.................................................................... 219 c. Jornais e sites da Internet.............................................................................. 220 d. Teses, Dissertações, Monografias, Palestras e Reprografados.............. 221
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AGRADECIMENTOS
Agradecer é registrar os entrelaçamentos ocorridos nos trajetos
percorridos pela história que fazemos com os outros. Não é uma formalidade, é um
reconhecimento à qualidade dos laços. Obrigado Malvina, muito obrigado! Pelo
acolhimento, pela confiança, pela qualidade do trabalho que desempenhas na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela originalidade que insistes em ser.
Obrigado por ser séria, doce, verdadeira. Obrigado por sorrir e por abraçar.
Obrigado por permitir as lágrimas. Por defendê-las. Obrigado por ter marcado,
profundamente, meu novo jeito de ser professora. Obrigado por me tornar
pesquisadora.
Obrigado ao Alceu Ferraro, primeiro orientador, pela oportunidade de
cursar o Doutorado na UFRGS. À Jaqueline Moll, segunda orientadora, pela
possibilidade de ampliar a convivência na UFRGS e na área da Educação de Jovens
a Adultos, e pelo respeito ao meu trabalho. Obrigado às professoras doutoras Ana
Ruth Moresco Miranda e Carmem Maria Craydi, pela seriedade, pertinência e
transparência de sua leitura para a qualificação.
Aos professores doutores Marcos Vilela Pereira e Valeska Fortes de
Oliveira pelo olhar acadêmico e cúmplice em minha trajetória e pela presença na
banca de defesa de tese. À professora doutora Nalú Farenzena pela leitura séria,
organizada e repleta de revelações e presença na banca de defesa de tese.
Agradecimentos especiais à Editora e Gráfica da Universidade Federal de
Pelotas nas pessoas do Manoel Luiz Brenner de Moraes, Cândida, Flavinha, Valder,
Gil, Rodrigo, Marilú, João, João Bordun, Carlos Giberto e Beatriz, pela acolhida,
respeito e cumplicidade. Ao Reinor Sanes de Ávila pela contribuição e afeto e à
Patrícia Feijó, pela poesia que é poder conviver.
Às mulheres que abriram seus segredos para mim, obrigado pela confiança.
À natureza, pelos dias de chuva e seus silêncios, possibilidades de amplas
horas de estudo.
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DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todas as mulheres que fazem parte de minha
vida e que a tornam melhor: Adenir, Adriana, Anna Cristina, Ana Cristina,
Ana Baiana, Ana Clara, Ana Ruth, Anne Moor, Angelica, Áurea, Babeth, Beth,
Bibiane, Canela, Carmen Craydi, Carmen Scholl, Carolina Monteiro, Cátia,
Cecília Rosa, Claudia, Cristiane, Denise Bussoleti, Denise Comerlato, Debora
Feitosa, Dirce, Eloá, Ester, Eunice, Eva, Fernanda Montenegro, Gabriela,
Gabriela Da Ros, Gladis, Glorita, Gecira di Fiori, Graça Brito, Geneci, Gil,
Gisela, Gisele, Helenira, Iracema, Ivana, Ivana Kirst, Izolda, Jaqueline,
Janaína, Jane Felipe, Jane, Janete, Jesuína, Lisiane, Leila, Loiva, Lourdes,
Lia, Lica, Líbia, Lídia, Lúcia Helena, Lúcia Tajes, Lúcia Peres, Luciana,
Luciane, Luzia, Magda Soares, Malvina do Amaral Dornelles, Márcia Lucas,
Maria Beatriz Rotta Pereira, Maria Cristina Madeira, Maria, Maria Manuela,
Maria Pia, Marilene Amorin, Maristela, Marta Miranda, Martha Medeiros,
Marta Suplicy, Martha Tavares Dias, Marta, Mirta, Nádia, Nalú Farenzena,
Neila, Nina, Olivia Da Ros, Raquel, Rejane Jouglard, Regina, Rita, Rosa,
Rosana, Rosangela Mamédio, Roselete, Sandra Grassi, Sandra, Sara Cristina,
Sebastianina, Sibila, Silvia, Silvia Ribeiro da Silva, Sylvia Schlee, Sonia,
Sueli Anacleto, Tania, Tânia Porto, Tati, Teca, Terezinha, Valéria Buriti,
Veridiana, Verônica, Yasmine e Zeila.
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Para o Guillermo Stefano
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ÍNDICE DE SIGLAS
CEES – Centro de Ensino Supletivo
CONFITEA – Conferência Internacional sobre Educação de Adultos
CPC – Centro Popular de Cultura
CRE – Coordenadoria Regional de Ensino
CRUB – Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras
DE – Dedicação Exclusiva
EF – Ensino Fundamental
EFI – Ensino Fundamental Incompleto
EI – Escola Infantil
EIM – Escola Infantil Municipal
EM – Ensino Médio
EIP – Escola Infantil Privada
EJA – Educação de Jovens e Adultos
EP – Escola Privada
EPE – Escola Pública Estadual
EPM – Escola Pública Municipal
ET – Escola Técnica
FHC – Fernando Henrique Cardoso
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFES – Instituição Federal de Ensino Superior
INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos
INCRA – Instituto Nacional da Reforma Agrária
MPE – Magistério Público Estadual
MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização
MST – Movimento dos Sem Terra
NOES – Núcleo de Orientação ao Ensino Supletivo
ONG – Organização não governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PAS - Programa Alfabetização Solidária
PLANFOR – Plano Nacional de Formação do Trabalhador
PAES – Planos Anuais do Ensino Supletivo
PEJA – Programa de Educação de Jovens e Adultos
PNAC – Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania
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PEAC – Projeto de Extensão Alfabetização e Cidadania
PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
PNUD – Programa das Nações Unidas para a Infância
PV – Pré-Vestibular
RS – Rio Grande do Sul
TA – Técnico em Administração
U – Universidade
UCPel – Universidade Católica de Pelotas
UFPel – Universidade Federal de Pelotas
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
UH – Universidade Holística
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RESUMO
Esta tese trata das significações atribuídas à instituição escolar, seus
saberes e as relações destes com a vida mesma por trinta mulheres em
processos de Letramento. A pesquisa que epistemologicamente se funda na
teoria do Imaginário Social e na teoria da Complexidade colocou em pauta
exatamente este ponto: quais os sentidos atribuídos à escola para um grupo de
mulheres migrantes que apresentaram o desejo de estudar e escolarizar os
filhos.
O grupo de interlocutoras da investigação é composto por mulheres com
pouca escolaridade, que estão cursando programas de Alfabetização, mulheres
que voltaram a estudar depois de uma pausa para escolarizarem os filhos e
mulheres que nunca se afastaram da escola e hoje trabalham nela como
educadoras. Critério organizador da amostra a posteriori, a migração – de
espaço e/ou de sentido - une essas mulheres.
A escolha da Etnometodologia orientou o percurso investigativo e, dentre
os procedimentos metodológicos adotados, devem ser destacados os roteiros
de pesquisa respondidos por escrito, entrevistas individuais gravadas em
áudio, elaboração do diário de campo e categorização dos sentidos atribuídos
que compuseram o imaginário instituído e instituinte. O objeto da investigação
permitiu compreender quais os sentidos que este grupo de mulheres atribui à
escola – sentidos já instituídos socialmente, restritos à funcionalidade
instrumental de escola –, e a produção de outros ainda não instituídos –
inscritos no campo da arte, da paixão, do sonho, da superação, da auto-estima,
dos relacionamentos interpessoais e do movimento.
A partir dessa polissemia foi possível contrariar hipóteses afirmadas pelo
olhar moderno e acadêmico; foi possível também uma aproximação aos
sentidos ainda não instituídos, desejos de escola que a tornam maior do que é:
o elogio da escola.
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RESUMEN
Esta tesis trata de los significados atribuidos a la institución escolar, sus
conocimientos y las relaciones de éstos con la vida misma por treinta mujeres
en procesos de Letramento. La investigación que epistemologicamente se
funda en la teoría del Imaginario Social y en la teoría de la Complejidad colocó
en agenda exactamente este punto: cuales son los sentidos atribuidos a la
escuela para un grupo de mujeres emigrantes que presentaron el deseo de
estudiar y escolarizar a sus hijos.
El grupo de interlocutoras de la investigación es compuesto por mujeres
con poca escolaridad, que están cursando programas de Alfabetización,
mujeres que volvieron a estudiar después de una pausa para escolarizaren sus
hijos y mujeres que nunca se alejaron de la escuela y hoy trabajan en ella
como educadoras. Criterio organizador de la muestra a posteriori, la emigración
de espacio y/o de sentido – une esas mujeres.
La opción por la Etnometodologia orientó la trayectoria de la
investigación y, entre los procedimientos metodológicos adoptados, deben ser
destacados las guías de investigación respondidas por escrito, entrevistas
individuales grabadas en audio, elaboración del diario de campo y
categorización de los sentidos atribuidos que constituyeron el imaginario
instituido e instituyente. El objeto de la investigación permitió comprender
cuales son los sentidos que este grupo de mujeres atribuye a la escuela –
sentidos ya instituidos socialmente, restrictos a la funcionalidad instrumental de
la escuela -, y la producción de otros aún no instituidos – insertos en el campo
de las artes, de la pasión, del sueño, de la superación, de la autoestima, de las
relaciones interpersonales y del movimiento.
A partir de la polisemia fue posible contrariar hipótesis afirmadas por la
visión moderna y académica; también fue posible una aproximación a los
sentidos aún no instituidos, deseos por la escuela que la vuelven mayor de lo
que es: el elogio de la escuela.
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O inesperado surpreende-nos. É que nos instalamos de maneira segura em nossas teorias e idéias,
e estas não têm estrutura para acolher o novo. Entretanto, o novo brota sem parar.
Não podemos jamais prever como se apresentará, mas deve-se esperar sua chegada,
ou seja, esperar o inesperado.
E quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias,
em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo.
(Morin, 2000a:30)
Introdução
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A presente tese é resultado da pesquisa realizada com trinta mulheres
em diferentes processos de letramento, na cidade de Pelotas, RS. O fio
condutor desta investigação é o imaginário social e os sentidos por ele
produzidos nos processos de escolarização de mulheres e de seus filhos. A
aproximação ao imaginário social foi realizada na perspectiva político-filosófica
desenvolvida por Cornelius Castoriadis (1982) para quem o Imaginário Social é
a instância responsável pelo processo instituidor da sociedade. Dotado de um
poder de criação radical, a humanidade cria a sociedade, produz sentido para
sua práxis, investindo de singularidade as construções sociais. Através da
imaginação, a compreensão da realidade não se esgota em explicações
fundadas na determinação (natural, material ou histórica), cabendo sempre a
indeterminação própria da incompletude humana.
Atribuo à presença do imaginário a polissêmica produção de sentidos ao
universo escolar que, através do registro de trajetórias de vida, pude evidenciar
nessa pesquisa, embora a sociedade credite à instituição escolar, à
racionalidade portanto, a responsabilidade de organizar, datar e amalgamar um
mesmo projeto de realização do humano.
Fundada epistemologicamente na teoria do Imaginário Social – um
“sistema de significações que toda sociedade possui, cujos sentidos traduzem
uma rede de sentidos que possibilitam a coesão em torno de uma
ordem/desordem vigente e que refere-se às manifestações da dimensão
simbólica, pois o imaginário para se manifestar, utiliza-se do simbólico, reflete
práticas sociais que materializam crenças, ritos e mitos” (Oliveira, 1997) –; e na
teoria da complexidade – que trata a realidade social na perspectiva do
movimento, da temporalidade e da parcialidade, como princípio de
aproximação do real, sem a preocupação de explicá-lo ou apreendê-lo em
categorias, em conceituações –, busquei superar um determinado paradigma
da racionalidade científica.
Os procedimentos metodológicos adotados se organizaram a partir do
desejo de traduzir, com a mais profunda densidade, os sentidos atribuídos à
escola e a escolha da Etnometodologia – que exorta os pesquisadores “a
serem mais sensíveis à necessidade de pôr entre parênteses ou suspender os
seus pressupostos de senso comum, as suas visões do mundo ao invés de
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operarem sem eles” (Bogdan e Bliken, 1994:60) – orientou o percurso
investigativo. Essa abordagem proporcionou-me "a pesquisa empírica dos
métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo
realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões,
raciocinar" (Coulon, 1995). Nesse movimento, ousei instituir uma produção de
verdade através de uma pesquisa com interlocutoras não reconhecidas como
detentoras de saberes e, na relação entre elas, traduzir a capacidade criadora
de suas interlocuções.
Os instrumentos de interlocução que oportunizaram a escrita das
trajetórias de vida foram roteiros de pesquisa respondidos por escrito,
entrevistas dialogadas individuais gravadas em áudio, elaboração do diário de
campo, transformação das trajetórias em relatos de vida e categorização dos
sentidos atribuídos que compuseram o imaginário instituído e instituinte. A
investigação foi realizada só com mulheres, mas não houve uma preocupação
em caracterizá-lo como um trabalho no campo dos estudos de gênero. A
escolha ocorreu, principalmente pela admiração que essas mulheres
despertaram em mim, pela existência de projetos de vida que dão sentido a
minha própria, pela afetividade nas relações que temos e por acreditarmos no
poder transformador da escola.
Ao escrever a história de trinta mulheres, ousei escrever a minha
própria, repleta de imagens de escola com música, conhecimento, amigos,
brincadeiras, cheiros apetitosos e literatura. Com elas percorri os caminhos da
história de minhas tias professoras, desejosas de abandonar a vida dura na
roça e conquistar os valores sociais atribuídos às professoras nos anos
sessenta. Em algumas delas, encontrei semelhanças com a história de minha
mãe, apaixonada por geografia e impedida de estudar pela necessidade do
trabalho ainda na infância. Esse estudo, então, é perpassado por memórias de
professoras, de escolas, de saudades: aspectos subjetivos que me constituem
e, na interlocução com outras mulheres que também desejam a escola, tiveram
a oportunidade de aparecer.
O objeto de estudo foi sendo redimensionado a cada investida de
minhas hipóteses na realidade, considerada movimento. De um universo
restrito – a relação de mulheres analfabetas com a escola –, a investigação se
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ampliou para o universo de mulheres de variados graus de letramento e
ingressou na possibilidade de compreender quais os sentidos que esses
grupos de mulheres atribuem à escola. Pude perceber que em suas trajetórias
de vida há, preponderadamente, um imaginário restrito aos sentidos já
instituídos socialmente, que diz respeito à funcionalidade instrumental da
escola, ou seja, a conhecimentos básicos – ler, escrever, contar –, que,
dominados, acessam os conhecimentos profissionais na continuidade dos
estudos.
Há, porém, na história dessas mulheres e de suas trajetórias na escola,
a produção de outros sentidos ainda não instituídos – inscritos no campo da
criação histórica –, o imaginário instituinte. Nas argumentações de Castoriadis,
nos declaramos incapazes para a criação se nos satisfazemos com o
determinismo, enquanto delineador da prática humana. As mulheres
interlocutoras romperam com as determinações desejando e buscando na
escola o prazer, o pensamento crítico, a arte, a paixão, a realização de um
sonho, a superação de apriorismos, a auto-estima, relacionamentos
interpessoais e movimento, caracterizando uma polissemia de sentidos.
No primeiro capítulo, abordo minha trajetória pessoal e as implicações
com o objeto de estudo, indicando como o interesse pelo campo da educação
de jovens e adultos foi tratado por mim em minha professoralidade. Depois
desse olhar sobre mim mesma, apresento a tese. Com um passado recente,
também ela tem uma história a ser contada. A escrita do trabalho registra os
movimentos de construção do objeto de análise ou, a migração da
pesquisadora, interessada em conhecer com mais profundidade os indícios de
fragilidade que se iam apresentando. Quando estes indícios se tornaram
conhecimento, a pesquisa foi se tornando tese. Por fim, neste primeiro capítulo,
apresento as interlocutoras, escolhidas entre um amplo universo de admiráveis
mulheres, através de uma pequena descrição que inclui sua idade,
escolaridade, profissão, escolaridade dos pais e dos filhos e o sentido atribuído
à escola. Apresento estas que dividiram comigo seus sonhos em relação à
escola, descrevo como perseguem estes sonhos e como realizam seus
projetos. O que se torna evidente é que, através dos sentidos atribuídos à
escola, as mulheres deste estudo projetam e atuam na vida dos filhos, seu foco
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central. Assim, essa tese se tornou uma história de mulheres que movimentam-
se em torno da escola, disputando atribuições de sentido, vivendo
intensamente uma escola sonhada, desejada, projetada, disputada.
No segundo capítulo, discuto o objeto da pesquisa, aprofundando os
referenciais teóricos e metodológicos que sustentaram a investigação. No
terceiro capítulo, apresento os sentidos atribuídos pelas interlocutoras,
categorizados por semelhança e que constituem o imaginário instituído e o
imaginário instituinte, sentidos que fazem parte da capacidade criadora do
humano. A conclusão diz respeito às verdades contrariadas, ou seja, o
caminho de reconstrução da pesquisadora e os sentidos atribuídos à escola
como espaço de projetos, decepções e espaço social.
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1. Apresentação...
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1. ...Da Pesquisadora
“Procuro-me no passado e ‘outrem me vejo’,
não encontro a que fui, encontro alguém que a que sou vai reconstruindo,
com a marca do presente. Na lembrança,
o passado se torna presente e se transfigura, contaminado pelo aqui e agora”
(Soares, 1991:37).
Reconstruir a que fui, com as marcas do presente, é inevitável nesse
trabalho de tese, uma vez que o objeto de pesquisa tem marcas ancoradas em
minha própria história de letramento e na relação desta com a sociedade
grafocêntrica em que vivemos, onde os impressos (que fazem parte dos
objetos culturais disponíveis) são repletos de significado.
Pesquisar os sentidos atribuídos à escola por mulheres não foi uma
escolha aleatória, casual, mais um problema de pesquisa que se avizinhou. Foi
uma volta ao passado e a minha própria trajetória, toda ela marcada por um
projeto onde escola foi o central. Filha de uma mulher desejosa dos saberes da
escola, cotidianamente realizo um sonho sonhado para mim e, há algum
tempo, intensamente por mim.
Credito à escola um poder inigualável, fundante do estar com os outros
em público. Ela é o lugar dos ensaios de sociedade, das trocas de projetos, do
experimento e do erro, lado a lado com o acerto. Ela é lugar de significação do
capital cultural familiar e de diponibilização de uma capital cultural universal.
Ela é, portanto, um lugar de relações e, também, lugar de estar na infância, na
adolescência e na adultez.
Escola, no entanto, não é um lugar de todos. E é disso, também, que
trata esta tese.
Reconstruir o projeto que me permitiu estar aqui, falar de mim mesma,
indicar o lugar do qual estou falando, expor as relações a partir das quais
componho cada uma das afirmações aqui expressas é o primeiro movimento
que realizo. Desejo comunicar os trajetos que me foram disponibilizados para
que as raízes deste objeto de pesquisa fiquem evidenciadas.
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O lugar de onde falo é um lugar cercado de livros lidos, alguns ainda não
apreendidos, outros esperando serem abertos, significados desde a mais tenra
infância, uma relação que mantenho e que comunico. Um lugar repleto de
gentes admiráveis, que insistem em me fazer desconfiar do que leio nesses
livros, num exercício cotidiano de buscar saber mais. Um lugar onde minha
palavra tem um estatuto de verdade, que indica caminhos - sempre o da escola
-, afirmando o projeto do possível.
Minha primeira imagem1 de saber escolar está confundida com o
aconchego que sentia ao adormecer entre minha mãe, “dona de casa”, e minha
tia, estudante de magistério, em intermináveis conversas acerca do vivido no
“Normal”. Era a década de 1970. Nos relatos do que havia passado durante o
dia na Escola Estadual Visconde de Cairú, nas reuniões para trabalhos em
nossa casa, no enfrentamento das professoras que eram preconceituosas,
minha tia Olívia foi imprimindo, no que hoje são saudades, um olhar de
autonomia com relação ao conhecimento, uma vontade de ser professora, um
vínculo com o ensino da língua materna e com as crianças das classes
populares. Matricular-me no pré-escolar aos cinco anos e atravessar a cidade a
pé para chegar até a escola foi apenas uma conseqüência daquele caminho
que minha mãe desejava e viabilizava para os filhos e as irmãs mais novas,
não pensava para ela.
“O que me ensinou minha família? Ensinou-me o Mediterrâneo,
o gosto pelo azeite, pela beringela, pelo arroz com feijão-branco,
pelas almôndegas de cordeiro aromatizadas, pelos salmonetes,
pelos folheados de queijo ou de espinafre. Todas estas substâncias e ingredientes
incorporados por meus ancestrais na Espanha, na Toscana e na Salônica
tornaram-se meus principais alimentos em Paris, onde nasci e cresci.”
Morin (1997:13):
1 Acredito ser possível reapresentar imagens, ou seja, olhar o passado e redimensioná-lo, não apenas com os recursos racionais de que disponho, mas também e muito pelos processos imaginários que compõem a escrita desta memória. Ao atribuir sentido, me permito utilizar todas as referências possíveis: o imaginário social, a antropologia via etnometodologia, e a sociologia.
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A escola que guardo na memória é repleta de cheiros, sabores, sons,
luz. Nela, as crianças com boa voz eram retiradas da sala para cantar no
orfeão da Dona Flávia, que, ao som do piano, nos ensinava a escala musical e
as músicas para as festas escolares. Nela havia um pátio amplo, com sol para
passeios e brincadeiras de criança; havia uma cozinha repleta de vapores das
sopas com legumes que cada uma das crianças trazia de casa e das roscas de
farinha e ovos, nos dias de maior fartura, ambas as merendas com um cheiro
que invadia nossos sentidos e nos fazia desejar estar lá o tempo todo. Lembro,
também, do cheiro do álcool das tarefas e provas reproduzidas em mimeógrafo
mas, infelizmente, não lembro da professora que me alfabetizou, nem da
cartilha que ela utilizava.
O primeiro contato com livros foi em casa, “A Fada dos Moranguinhos”.
Inesquecível! Na escola havia os clássicos da literatura (Grimm, Andersen,
Perrout, Esopo) que faziam parte de qualquer processo educativo daquela
época, uma época em que a infância ainda não era um lugar de cognição e sim
de imitação. Idealizada, a infância poderia ser descrita como pequenos
cidadãos aprendendo o amor à pátria através de hinos cantados nas filas e
desfiles no sete de setembro e pequenos fiéis aprendendo o amor a deus
através do catecismo, das novenas, dos cânticos e das liturgias. Os programas
de rádio traziam o contato com o mundo mais urbano e laico, com músicas de
amor, novelas e histórias infantis em programas dedicados à infância: era uma
janela para uma cidade que existia em algum lugar.
Sempre tive sucesso na escola e pouco conheci dos limites de classe e
de gênero colocados socialmente. Pela minha atividade intelectual, desde a
mais tenra idade, incentivada pelo convívio familiar onde meu pai aparece
como ícone de conhecimento e a minha mãe como mediadora de sonhos
possíveis, escapuli dos rótulos e aprendi muito mais do que esperavam.
Gostava de ler, escrever, pintar, ler e cantar em público, cenas escolares que
possibilitaram uma auto-estima elevada e a certeza de saber as "coisas da
escola". No turno inverso, e isso lá pelos oito anos, brincava de professora na
escola ao lado de minha casa, responsabilizada pela mestra a realizar
pequenas tarefas e cantar músicas de roda no recreio. Na sala, não lembro de
atuar, sei que passava para as crianças as folhas para colorir, seguir o caminho
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da cenoura até o coelho, passar por cima de algum traçado para aprender as
letras.
Lembro da escola infantil e do ensino fundamental como um lugar de
prazer, não faltava a aula nunca, adorava estar lá. Não lembro dos livros, da
biblioteca, das provas, de algum castigo ou de como castigavam as crianças.
Não lembro dos que ficaram no caminho, e, hoje, sei que muitos ficaram. A
escola a mim proporcionada era um lugar aonde aparentemente todos iam,
poucos fracassavam, os que não estudavam eram considerados vagabundos,
esculhambadores. Os conteúdos? Datados, seqüencialmente organizados,
cobrados nas provas, típicos da época, com Educação Moral e Cívica e depois
Organização Social e Política Brasileira.
Depois da escola pública fundamental, aprendi que estar com os outros
demandava aprender a responder por mim mesma, bancar as escolhas e “virar
gente”. Desta época, lembro do cheiro da bola de vôlei, esporte que
praticávamos com paixão, guris e gurias juntos, à tardinha, no ginásio do
Instituto Educacional Dom Bosco. Foi uma época em que as "gurias"
dominavam a Física e a Matemática tanto quanto os "guris" e, ao final do
segundo grau, eram aprovadas nos vestibulares das Universidades Públicas ou
Privadas importantes e em cursos como engenharia, medicina, enfermagem,
jornalismo. Ou seja, com quinze ou dezesseis anos escolher uma profissão
fazia parte do universo disponível às mulheres. Para os jovens das famílias
abastadas estar na Universidade era dar continuidade aos projetos familiares,
para os outros, eu incluída nestes, era uma possibilidade remota, uma batalha
que se iniciava.
A infância e adolescência, proporcionada a mim e meus irmãos, ao largo
do universo reservado para as crianças das famílias das classes populares, só
foi possível porque fazíamos parte de um sonho que não era nosso: o desejo
de estar na escola que minha mãe alimentava. Ela, mais que nossa própria
vontade, nos manteve na escola, nos vestiu e alimentou, bancou e suportou
todas as investidas para que não atravessássemos as barreiras simbólicas,
políticas e materiais que nos distanciavam dos clássicos vencedores. Observar
essa história com os olhos de hoje amplia o acontecido, não porque se
23
distancia no tempo e, sim, porque o conhecimento dos mecanismos produtores
do ficar à margem faz duvidar de projeto igual sendo possível.
As décadas de setenta e oitenta, nas quais realizei o Ensino
Fundamental e o Ensino Médio, foram tempos de silenciamento nas escolas,
através de mecanismos localizados na disciplina de Educação Moral e Cívica
e/ou Organização Social e Política Brasileira, no curso de Magistério só para as
moças, na existência dos cursos profissionalizantes noturnos para os filhos dos
trabalhadores em escolas polivalentes e nas ingênuas participações nos
Grêmios Estudantis. Nas relações com o saber, esse silenciamento produziu
sujeitos dependentes dos modelos curriculares onde cálculos de aceleração e
distância, desvios óticos e leis da gravidade eram mais importantes que a
relatividade e a temporalidade das teorias a respeito da origem do universo.
Nesta seleção de prioridades do conhecimento, fórmulas matemáticas, escolas
literárias, moléculas e tecidos, fatos históricos e afluentes esquerdos e direitos
de grandes rios dominavam nosso cabedal de informações e nos permitiam um
olhar restrito a respeito do saber, sem eco nas polêmicas décadas2 que
estávamos vivendo.
A ciência moderna, presente nos currículos escolares através dos
diferentes conceitos, nunca nos ofereceu autoria, nunca discutiu a humanidade
nem a historicidade dos grandes descobridores, nunca aceitou duas ou mais
respostas para um mesmo enigma matemático, jamais possibilitou o
nascimento de outra escola literária. Herdeiros de verdades já descobertas e
vividas nos restava acreditar, decorar, responder, preencher, copiar, marcar,
ligar, efetuar, completar como o modelo. Nesse jogo, o contato com o saber
escolar foi sendo travado com profunda ingenuidade, o estudar por estudar,
para não reprovar, para não tirar nota baixa, para passar no vestibular, num
misto de competição com linearidade.
2 As décadas de setenta e oitenta nas quais realizo minha escolaridade fundamental e média são marcadas, na historiografia brasileira, como os “anos de chumbo” e os “anos da distensão lenta e gradual”. Politicamente amarrada pela ditadura militar que inicia nos anos sessenta, mais especificamente no ano em que nasci, 1964, a realidade Brasileira passa a viver um clima de guerra civil que mistura partidos armados de esquerda, nas cidades e matas, com o mais sofisticado sistema de repressão, perseguição, tortura e morte aos que pensam diferente. Nas escolas as datas militares eram comemoradas com bandas, desfiles e hasteamento da bandeira da pátria ao som do hino nacional com um amor que não incluía a dúvida: era Brasil ame-o ou deixe-o!
24
A literatura e o esporte atuaram como mediadores de possíveis rupturas
com o estar na escola (um projeto que não era para minha classe social) e,
apesar das fórmulas e conceitos, pude usufruir a biblioteca: as aulas, então,
passaram a ser uma espera para o recreio, onde me embrenhava na imensa
sala e devorava, um atrás do outro, todos os “Jorge Amado” e os “Machado de
Assis” que encontrava. O saber escolar não se misturava com esta descoberta,
não era escola aquela troca do brinquedo e do jogo no intervalo pela leitura. É
claro que o prazer que tinha ao entrar na biblioteca foi se amalgamando a
minha vontade de ir à escola, mas, ao mesmo tempo, o espaço que separava a
sala de aula da literatura não era apenas físico, geográfico, apresentando para
mim uma relação de descontinuidade, de quebra, de lugares reservados3 para
os saberes. Hoje sei que os textos produzidos nas aulas de literatura e língua
portuguesa eram reflexos de minhas viagens ao lugar sagrado, limpo, quase
intocável e, percebo, havia uma organização para que esse saber estivesse
disponível, embora não significado e nem disponibilizado: aprendia-se a ler
para escrever e não para ler o mundo.
O esporte, outro mediador neste embate entre a escola formal e o prazer
foi praticado com “profissional amadorismo”: ser escolhida para o time de vôlei
do colégio e escalada para jogar contra o colégio rival era um prêmio, o que
carimbou em mim o cheiro da bola de vôlei que misturava couro, poeira, suor
de nossas mãos e a vontade de sermos brilhantes. Nas músicas das torcidas,
nas luzes do estádio, nos uniformes dos times, na rivalidade entre equipes que
se equiparavam em técnica e garra estava a energia que movia nossos treinos
e nossos jogos. Nessa época, namorar alguém do time rival poderia ser uma
traição ou, na ótica das gurias, uma vitória. Observando o passado com os
olhos de hoje percebo o culto ao atleta como representante de um país de
vitorioso, único, no pódio, lugar possível de ser ocupado apenas por um, não
um lugar de equipes. Esta forma de organizar o esporte é combatida por
educadores que desejam deste um aprendizado para viver entre os diferentes
e não um elogio à perfeição. Na época, as Universidades formavam
3 Paulo Freire (1987) critica a escola “em gavetas”, aquela que deposita conhecimentos de um tipo em um compartimento, fecha este, abre um novo e deposita ali um outro rol de saberes. Observando a época, percebo que tanto o currículo escolar como os procedimentos da escola seguiam esta lógica.
25
professores para ressaltar os melhores, treiná-los à exaustão, produzindo
exemplos do cidadão educado, fisicamente perfeito, representante de uma
geração.
No final do ensino médio é que as diferenças sociais e de gênero batem
à porta com mais alarde: concluir a escola não possibilitava uma entrada no
mercado de trabalho e a Universidade era quase uma impossibilidade pelas
sucessivas crises financeiras que passávamos. Aos dezessete anos, a
condição de não estar prestes a casar e nem ter uma profissão era um aceno,
freqüente, ao mundo do trabalho que possibilitaria dividir os custos de uma
família grande. Ao observar essa época, percebo que são frágeis os fios que
ligaram a escolaridade “suficiente” para alguém de minha classe social e
gênero com o passo maior – o projeto de vida que incluía a profissionalização
via Universidade. Acredito que, por muito pouco, este outro projeto não se
realizou e são tênues, quase invisíveis, os vínculos que possibilitaram a
transformação, entre eles, a teimosia de minha mãe para a continuidade dos
estudos, o ingresso do primeiro irmão na Universidade e mais alguma
inexplicável sorte. Essa confluência de atitudes interveio para que o caminho
sociologicamente traçado para os filhos das famílias populares pudesse ter
outro traçado, naquele momento.
O que me ensinou a escola? A escola ensinou-me a França.
(Morin, 1997:15)
O processo de conhecimento do mundo da Universidade – marco do
rompimento com o mundo da fé – acontece nos retornos para casa que meu
irmão, acadêmico de Engenharia, realiza. É ele que relata um mundo onde a
mediação não é mais a crença, onde se vislumbra uma história diferente via
participação política nos movimentos de jovens, onde mulheres estudam e
constroem independência. Nesse fascinante mundo é que ingressamos, um
depois do outro, todos lá em casa. Ao chegar lá, pareceu que nada havia
antes, que as idas à escola tinham sido apenas para justificar esse momento,
formando um hiato hoje observado: o início da vida adulta com resquícios dos
tempos de escola. A Universidade passa a ser razão de vida, agora
incorporado ao próprio sonho, não mais o sonho de outros. Entro, então, em
26
um mundo comandado por jovens como eu, com atitudes que iam desde
produzir e viver o “Nossas Expressões”,4 até as inaugurações de salas do DCE
com nome de estudantes mortos pela ditadura, os congressos estudantis, as
passeatas e os enfrentamentos com a Reitoria e com a Brigada Militar, as
ocupações da Câmara de Vereadores, as reuniões clandestinas para conspirar
por um país melhor, justo, e ao lado dos trabalhadores.
No curso de Pedagogia, em contato com a história e a sociologia da
educação, inicio o processo de profissionalização, compreendendo o
movimento estudantil como parte da minha formação, não a única. Passo a
considerar a existência de outros sujeitos envolvidos nas tramas sociais,
apesar de manter um olhar marcado pela orientação prescritiva dos que fazem
educação em nome dos outros e não com os outros, ou seja, uma leitura
possível do pensamento de Paulo Freire, que descrevia os analfabetos como
despossuídos, roubados, oprimidos, à margem. Nenhum projeto de pesquisa
ou extensão complementou minha formação acadêmica e a de nenhum colega:
alunos ainda não eram incluídos na pouca pesquisa que era realizada no
Centro de Educação, a maioria de cunho bibliográfico. A existência de jovens e
adultos analfabetos ou com pouca escolaridade não era objeto de investimento
acadêmico e, no movimento estudantil, as discussões estavam centradas na
ordem nacional e internacional. Nessas, a conjuntura, a economia, as greves
operárias, a abertura política, os partidos, os sindicatos, os grandes blocos
econômicos a redimensionar o mundo eram preponderantes. Na ordem local, a
cidade de Santa Maria, historicamente governada por partidos conservadores,
abria poucas possibilidades para jovens que estavam ali de passagem e que,
nem sempre, votavam ali5.
Criada para desencadear um processo de formação profissional,
mediada pela pesquisa e pelo embate desta com a realidade, a Universidade é,
4 Nossas Expressões foi um marco na produção cultural do Movimento Estudantil que realizávamos. Tratava-se de um múltiplo evento organizado pelo DCE que se repetiu por várias edições e buscava expressar toda a arte e cultura que estava sendo produzida na Universidade e no Rio Grande do Sul. Hoje, observo que esta possibilidade foi um diferencial nos movimentos estudantis da época, fruto da participação de jovens letrados, em íntima relação com a cultura do país. 5 Conservei meu título eleitoral onde estudei e, na eleição de 2000, pela primeira vez na história da cidade, elegemos o prefeito. Vários secretários e o vice-prefeito são colegas dos tempos da Universidade. Registro esse momento que compõe minha vida porque muitos dos sonhos que dividimos nesta época estão se realizando, impensável para nossos jovens projetos.
27
em sua origem, formadora de pesquisadores. No entanto, os cursos oferecidos
àquela geração estavam longe dessa possibilidade: na Engenharia se ensinava
a calcular, através de fórmulas, que alguém havia descoberto, qual a
resistência dos materiais; na Medicina, quais os procedimentos adotados para
manter calmos e entre grades, os doentes psiquiátricos; na Agronomia se
ensinava a construir plantas topográficas das terras da Universidade e nada a
respeito da estrutura fundiária do país; na Educação Física, como treinar
atletas de ponta; na Odontologia como trocar o amálgama pela resina e, na
Educação, as teorias a respeito de como ensinar, quase nada a respeito de
como o ser humano aprende.
A ciência moderna, conhecimento ensinado via leis criadas a partir de
generalizações, inverteu minha lógica de compreensão do mundo, até então
centrada na fé, e substituiu uma verdade por outra, uma lógica de
compreensão por outra, a racionalidade religiosa pela racionalidade científica.
Ao abandonar a certeza acerca do destino do homem pela racionalidade
científica, ingresso em uma outra crença, a de um futuro a ser feito, a ser
disputado em cada fórum, a ser tracejado pela humanidade que tem na mão o
seu próprio destino. É apenas no processo de estágio acadêmico, na periferia
urbana da cidade, que me deparo com a primeira oportunidade de real contato
com a produção do analfabetismo social ampliado pela escola. É uma lição da
provisoriedade dos conhecimentos, da restrita possibilidade das verdades
aprendidas e o primeiro embate entre verdades. Foi no Celina de Moraes6 que
aprendi como a escola trata os desiguais, como considera corajosa a
professora que se propõe a trabalhar com a "pior" classe, como reprova com
facilidade alunos que migram e, mesmo alfabetizados e crescidos, os fazem
retornar à primeira série. De posse de uma teoria7 e repleta de vontade política
conquistada nos fóruns do movimento estudantil que, juntas, me conferiam
uma competência provisória, ousei incluir as crianças destinadas à margem da
6 Escola Estadual de 1º Grau Professora Celina de Moraes onde realizei meu estágio acadêmico no segundo semestre de 1990, em Santa Maria, RS. 7 Diferentemente da possibilidade que encontro em abordar, na formação das acadêmicas de Pedagogia hoje, a convivência dos diferentes olhares que caracterizam a crise ou trânsito paradigmático, minha graduação teve como aporte teórico-metodológico o pensamento clássico e algumas pinceladas de reprodutivismo. Nestes, a escola é local onde os “bons” aprendem e “instrumento de dissimulação das desigualdades sociais” (Soares, 1991:32).
28
escola e da sociedade. Para uma escola assustada, crianças pobres lendo foi
uma lição interessante; para mim, uma prova de que significar o mundo letrado
é uma possibilidade ilimitada e pude observar, ao fazer, que a escola pode ser
mais que um projeto de sucesso profissional.
O que me ensinou a Universidade, parafraseando Morin, foi o Brasil: um
real e um possível e o encontro dos dois em um mesmo lugar, a escola. A lição
da Universidade possibilitou desejá-la, aprimorou o seu fim em meu projeto
familiar oferecendo novos desejos a partir dela. Profissionalmente, abriu dois
vértices: o investigar e o fazer, um como condição do outro. Foi o aprendizado
da possibilidade de arriscar, a aventura de subverter a ordem, a coragem de
desafiar o conhecimento acumulado. Hoje, percebo a solidez do conhecimento
que a Universidade tinha a oferecer e, também, a árdua tarefa de questionar
suas verdades e modificar suas prioridades. Da relação de subversão que
iniciei em meu estágio acadêmico, trago a certeza de que esta contradição –
duvidar e acreditar - é o que de melhor a idade da razão me legou.
Ao ingressar na Universidade Federal de Pelotas como docente em
1993, acredito ter encontrado a possibilidade de instaurar uma relação de
protagonismo com o saber, resultante dos dois vértices profissionais herdados:
o investigar e o fazer. Nas disciplinas ensinadas, na relação com os
acadêmicos, com os colegas e com a administração passo a conhecer a
Universidade feita por pares, para um público, onde conhecimento nem sempre
é sinônimo de saber. É desse lugar privilegiado que passo a conviver com
realizações a partir das noções de público e privado, não mais apenas
categorias de análise. Nessas realizações, o conhecimento, originalmente
público, pode tornar-se privado ao não estar disponibilizado.
Conto o passado - o passado que foi contemporâneo àquela que fui –
conhecendo-lhe o futuro; Portanto,
na verdade, reconstruo-o em função desse futuro,
que é o meu presente hoje. Não propriamente em função do ponto de chegada
(não “cheguei ainda”, bem sei), mas em função do ponto que agora estou.
29
(Soares, 1991:41)
O protagonismo, mesmo limitado, se inicia pela oportunidade de
subverter a lógica da docência sem pesquisa (herança de uma relação de a-
luna, não iluminada) e, diante das instâncias possíveis, ingresso na
coordenação de um Projeto de Extensão em Alfabetização da Faculdade de
Educação8, organizado para jovens e adultos servidores. É o primeiro
momento, em minha vida profissional, que me responsabilizo pela orientação
de estudantes que buscam a formação profissional via pesquisa e extensão:
momento único também para mim, raro, de aprendizagens e divisão de
pequenas vitórias e grandes derrotas.
Decidida a encontrar algumas saídas para propor e generalizar
procedimentos na Educação de Jovens e Adultos, escolho como tema de
minha dissertação de Mestrado o programa que a Faculdade de Educação
organizou e desenvolveu por aproximadamente quatro anos. Através de
entrevistas com coordenadoras, estudo de documentos, avaliação do conteúdo
do curso de formação dos alfabetizadores, dos instrumentos de avaliação e
“lembretes” que os professores deixavam impressos nas fichas e uma leitura
da obra de Paulo Freire, produzi uma análise amarga, forte, acusadora,
denunciadora de fragilidades na apropriação e generalização de saberes.
Nesse estudo, materializado na dissertação de Mestrado9, penso que consegui
perceber alguns dos limites impostos à Educação de Jovens e Adultos quando
esta se restringe a um projeto e, mais que isso, quando os próprios professores
têm conceitos sobre o analfabetismo ainda muito vinculados à idéia de
despossuídos de consciência.
O impacto desse programa na vida da Universidade e dos educandos,
no entanto, nunca foi objeto de minha preocupação. Os homens e mulheres,
nossos alunos, não foram ouvidos acerca do que pensavam do projeto, o que
haviam aprendido, que escola desejavam, caracterizando uma prepotência na
forma de fazer pesquisa que incluía tornar conhecimento generalizável o olhar
8 Projeto Alfabetização e pós-alfabetização de jovens e adultos servidores técnico-administrativos da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas: Faculdade de Educação, 1990. 9 Novas competências para um outro século: Um estudo crítico da conscientização na educação de adultos. Santa Maria, UFSM, Dissertação de Mestrado, 1997.
30
parcial produzido por ela. Questionar a teoria da conscientização, talvez a mais
forte marca desse estudo, e afirmar a certeza de que ela, sozinha, já não mais
bastava para um programa de EJA foi uma tentativa de apontar os “erros” da
academia. Foi uma tentativa de afirmar que, ao “aplicar” uma teoria sem
questionar seu tempo histórico, o império da prescrição e do dualismo
racionalista se institui, materializando a falta de sensibilidade e criatividade e
não permitindo que transpareça o que está oculto, inédito, ainda insondável. A
banca, na defesa da dissertação, evidenciou a insistência em apontar as
mazelas do projeto e a pouca generosidade com um programa que demandou
tantos esforços, tantos profissionais, tantos sonhos. Dessa lição de inclusão do
outro, tão legítimo como eu própria, é que guardei a necessidade de aceitar a
parcialidade do saber, possível a partir das condições materiais, políticas e
simbólicas da produção de si.
Retomar o trabalho na Universidade é um reencontro com a
possibilidade de instaurar relações de protagonismo com o saber, o que
acontece em 1997. Repleta de outras verdades, passo a coordenar a área de
EJA e, dentro dela, o Projeto de Extensão10, em dois bairros da periferia urbana
de Pelotas: a Vila Francesa e a Navegantes II. Na Vila Francesa, os
adolescentes, que há bem pouco tempo haviam sido abandonados pela escola,
nos esperavam com perguntas que indicavam tanto sua concepção do que é
possível se aprender como a expectativa com essa nova escolarização, que
incluía um opinar a respeito dos conteúdos a serem estudados. A demanda por
“psicologia” e “horóscopo” indicava que os adolescentes tinham universos de
interesse que passavam ao largo do que a tradicional escola se propõe e nos
ensinaram a pensar uma proposta menos conteudista, para além do ler e
escrever como ferramenta mínima. Assim, enquanto os jovens nos
perguntavam sobre sexo e drogas, as mulheres11 apareciam com os filhos no
colo, queriam copiar em silêncio e aprender “ao menos um pouquinho” e os
10 A retomada do projeto de extensão Alfabetização e Cidadania, que se encontrava sob coordenação de uma colega foi outra oportunidade de qualificar a prática pedagógica iniciada em 1993. 11 A metodologia de trabalho nestas salas de aula partia de um relato pessoal dos alunos a respeito de suas histórias de vida, atravessadas por imagens que marcaram sua relação com a escola (a não ida ou os fracassos) e as motivações que os levaram a voltar a estudar. Dentre as alunas, havia quem desejasse a escola para poder ajudar os filhos”, “aprender a costurar”, “entender as palavras do pastor” e outras que sofriam muito o olhar de humilhação das vizinhas no trajeto de casa até a escola, mas, mesmo assim, não faltavam.
31
homens sonhavam com a carteira de motorista, arrumar um trabalho ou
melhorar o que já dispunham.
A partir dessa experiência e desse novo lugar de conhecimento,
descubro, ano a ano, uma aprendizagem sem limites e, a cada desafio e grupo
de pessoas envolvidas, um novo fio se agrega à rede de saberes necessários
para a produção teórico-metodológica em EJA. Compromisso da Universidade,
a produção de saberes e a experimentação são fundamentais para a formação
de professores e, percorrendo os caminhos que ela me oferece, começo a me
perguntar, academicamente, quais as razões da improvável insistência com a
escolarização entre as pessoas oriundas dos meios populares que, apesar de
seus fracassos, adiamentos e até impedimentos, sonham e acessam a escola
por si mesmos ou através dos filhos.
Na formação de outras professoras para a Educação de Jovens e
Adultos, me deparo com enigmas cotidianos, um deles a inconformidade de
minhas orientandas com mulheres da Vila Santos Dumont12 que não
consideraram preconceito as empregadas domésticas, ilustradas em livros
didáticos, serem mulheres negras. Inconformidade com o não preconceito e
com o argumento manifestado por Eucalipto: “Trabalho é trabalho, não
importa o que a pessoa faz, importa que é honesta!” (Eucalipto, 32 anos, em
processo de alfabetização, 1998).
Ao ingressar no Doutorado, me acompanha ainda a crença na
necessidade de produzir um saber basilar para a EJA, inscrito na generalidade
ou uma “reflexão estatística sobre as relações, as correlações entre meio social
e desempenhos escolares” (Lahire, 1997:31). Assim, insisto em desvendar os
mecanismos produtores do analfabetismo na escola e evidenciar os métodos e
processos de produção de crianças não letradas ou analfabetas, o que se
materializou no projeto de ingresso no curso13. Passar da “linguagem das
variáveis à descrição sociologicamente construída das configurações sociais”
12 Sub-Projeto que desenvolvemos na periferia urbana de Pelotas no ano de 1998-1999 vinculado ao Projeto de Extensão intitulado “Alfabetização e Cidadania” (ROSA, 1998). Buscou construir alternativas frente ao fenômeno do analfabetismo jovem e adulto a partir das estratégias de sobrevivência no mundo letrado que tem, historicamente, oportunizado aos excluídos da escola o trânsito pela “cidade”.
32
como propõe Lahire (1997:31), seria a possibilidade de “tirar proveito de todos
os métodos e de todas as maneiras de construir a realidade social”, o que eu
ainda não dispunha.
Durante o curso, no entanto, deparo-me com professores que, revendo
suas certezas construídas pelo vínculo a algum dos paradigmas clássicos
(evolucionismo, funcionalismo, marxismo e estruturalismo, entre outros),
passam a conhecer e a aceitar diferentes possibilidades no humanizar-se. A
Antropologia invade os olhares e ingressa na disputa travada por décadas
entre a Economia, a Psicologia e a Sociologia, se impondo nas relações de
conhecimento; a Psicologia sofre profundas boicotes por ter, durante décadas,
o protagonismo das análises que singularizam os fenômenos; a Sociologia é
atacada pelas tentativas de generalização e totalidade que criam uma teoria
reprodutivista e limitada às relações sociais vinculadas às origens econômicas
dos grupos; a Física traz as rupturas, que parece sempre estiveram ali, e o
universo é prescrutado palmo a palmo em busca de contribuições que
respondam com mais generosidade nossas dúvidas. O legado dessa disputa
por protagonismos explicativos pode ser a própria disputa, ou seja, a
provisoriedade se intercalando com uma nova provisoriedade, o que veio a ser
conhecido como crise de paradigmas ou de matrizes teórico-metodológicas.
Devemos duvidar, ao menos esse benefício para nossas teses tão definitivas.
A relação que estabeleço com o saber, então, é fruto de uma época que
me permite duvidar embora o lugar da dúvida seja incômodo, desconfortável,
provisório. Saber se o que estou observando pode ser traduzido em
conhecimento e se este será respeitado enquanto tal é uma dúvida que
persegue minha necessidade de afirmar-me como professora, como
pesquisadora, como alguém que precisa dividir algumas certezas, não apenas
dúvidas. Convencida da urgência em propor a mudança do “foco da objetiva”
me apoio em Lahire (1997) que propõe heterogeneizar as representações que
fazemos dos seres sociais. Acredito que esse outro foco pode ser alcançado na
reordenação da relação entre singularidade e generalidade, uma possibilidade
13 Projeto de Pesquisa apresentado ao processo de seleção de Doutorado na UFRGS em julho de 1998, intitulado "A produção do analfabetismo em Pelotas – RS: mecanismos escolares de produção do fenômeno".
33
de ampliar o olhar generalizante que até então havia construído para a
pesquisa em educação. Para o sociólogo: Deslocar o olhar para os casos particulares, ou, melhor ainda, para a singularidade evidente de qualquer caso a partir do momento em que se consideram as coisas no detalhe, (...) mostra aquilo que os modelos teóricos fundados no conhecimento estatístico e na linguagem das variáveis ignoravam ou pressupunham: as práticas e as formas de relações sociais que conduzem ao processo de “fracasso” e de “sucesso” (Lahire, 1997:32).
É desse convencimento que retiro o argumento da necessidade de
embrenhar-me nas práticas e relações sociais que conduziram minhas
interlocutoras à busca insistente pela escola e, na maioria dos casos, uma
busca que pode ser observada a partir de vários pontos, pois não é a mesma
para todas.
Fazer ciência é uma exigência acadêmica e uma demanda da
humanidade. Tenho um “problema”, ouso acreditar que o olhar dedicado a ele,
imbuído do desejo de contribuir com o já produzido, aprimora a história da
Educação de Jovens e Adultos no Brasil, mas, na verdade, sou apenas mais
uma estudante em busca de respostas. Será que elas existem? Não quero crer
que não. Para Rubem Alves (1982),
“O mundo humano, não é parte da natureza, da mesma forma como a nossa roupa não é um prolongamento natural da pele. O mundo da cultura é uma invenção. E dentro dele os indivíduos adquirem a máxima variação. E a variação é tão grande que eles podem mesmo se decidir a ser diferentes do que são” (Alves, 1982:102).
É essa capacidade de sermos diferentes do que somos que nos torna
indivíduos “dolorosamente e maravilhosamente particulares, neuróticos e
sofredores, capazes de criar a arte, de amar, de se sacrificar, de fazerem
revoluções e se entregarem às causas mais loucas” (Alves, 1982:102).
Hoje, atribuo à Universidade a capacidade de tornar-me mais humilde,
de confirmar, a cada nova investida em busca de razão, a provisoriedade e a
parcialidade do conquistado. Dessa outra lição, possível a partir das condições
materiais, políticas e simbólicas que hoje estabeleço com o saber, trago a
necessidade de ouvir mais, em um exercício educador do olhar, numa relação
34
de horizontalidade. Rompo com a hierarquia pesquisador-pesquisado e
ingresso num terreno fértil, temerária e curiosa: o terreno da interlocução.
2. ...Da Tese A presente tese de doutoramento, trata dos sentidos atribuídos14 à
escola por mulheres15 em processos de letramento16. Este estudo surgiu a partir da observação e convivência com mulheres
em processos de alfabetização que contrariavam as expectativas sociais a seu
respeito, insistindo em buscar na escola um lugar de saberes e de convivência.
Essa observação originou o desejo de investigar quais as razões da improvável
insistência na escola de pessoas oriundas dos meios populares17.
Da observação passei a formular hipóteses a respeito dessa insistência
e ousei afirmar, como argumento central, que a insistência em voltar à escola,
permanecer e avançar nela está localizada nos sentidos que vêm sendo
atribuídos, por toda uma vida, à escola. Passei a investigar, então, se esta
atribuição de sentidos exerce influência na escolarização dos filhos, pois desejo
compreender quais as origens, desdobramentos e expectativas a respeito da
escola que essas mães alocam na vida dos filhos. Ao descrever e interpretar
trajetórias de vida de algumas mulheres desejo evidenciar o imaginário
instituído e o instituinte.
14 Para esta tese utilizo o conceito de sentido atribuído encontrado na obra de Bernard Charlot, (2000:56). Para o autor, “tem sentido uma palavra, um enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros em um sistema, ou em um conjunto, é significante o que produz inteligibilidade sobre algo, o que aclara algo no mundo, o que é comunicável e pode ser entendido em uma troca com outros. Em suma, o sentido é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros”. 15 A categoria mulheres, amplamente documentada nos estudos de gênero, não é, nesta tese, uma escolha aleatória. Funda-se na bibliografia lida e no convencimento de que a história da humanidade necessita dar conhecimento, credibilidade e poder ao olhar feminino sobre o mundo. 16 A categoria Letramento, nesta tese, é utilizada como a capacidade de interagir com diferentes portadores de texto, utilizar as mais variadas formas de comunicação escrita, ter senso crítico e intervir, via linguagem, na construção de novas abordagens acerca do já sabido, estar inserido nos contextos de compreensão da modernidade simbólica, política e econômica, respondendo adequadamente às competências de leitura exigidas social e profissionalmente. 17 Bernard Lahire (1997) estuda o sucesso escolar de crianças dos meios populares, afirmando que os estudos até então realizados estão alocados na generalização que fazemos acerca desses sujeitos e discute a expectativa social a respeito deles através do que chama de “as razões do improvável”, buscando na singularidade as explicações para esse improvável. Deparei-me com o improvável quando mulheres com mais de setenta anos insistiam em exigir a escola para si, buscando saberes que acreditavam estar ali disponíveis.
35
Base intelectual de todos os interessados em desvendar as causas do
fracasso escolar18, a relação entre a origem social e o êxito na escola tem sido
uma das maiores fontes de partida para o entendimento do fenômeno do
analfabetismo. No entanto, relação estatística não implica em causalidade e a
generalidade não garante singularidade.
Penso que a escola, criada para produzir bens de sentidos19,
universalizando saberes e competências, deve instituir-se como um espaço
social onde cada um de nós possa vir a ser um ser humano original, buscando
uma identidade planetária, uma compreensão ética do ser humano e uma
solidariedade intelectual e moral (Morin,2000a). Desejo que ela seja um lugar e
um espaço onde encontremos oportunidades de, publicamente, aprendermos
os limites sociais. Um lugar do cuidado ético20 que permita que a condição
humana seja situada no universo e não separada dele.
Acredito que há diferentes lógicas simbólicas ligando as pessoas à
escola e, entre elas, a lógica de quem tem sucesso, a lógica daqueles que
precisam estudar sempre, a lógica dos que nunca entram na escola, a lógica
dos que buscam, através da escola, um emprego. São estes diferentes aportes
de sentidos que causam o “mal-entendido permanente” (Charlot, 2000), ou
seja, o que se oferece na escola é apenas um dos sentidos possíveis para a
diversidade de lógicas presentes na relação com o saber escolar. A
possibilidade de articular e organizar saberes21 que são significativos para cada
um dos que a ela chegam é o desafio da rede de significados instituídos e a
instituir-se.
18 Fracasso escolar é um fenômeno estudado com densidade na literatura educacional. No Brasil, diferentes momentos históricos produziram teorias que buscam servir de parâmetro para a prática pedagógica. Principais elementos que constituíram essas teorias foram: ideologia do Dom, os níveis de prontidão, a teoria da carência cultural, a Escola como Aparelho Ideológico do Estado, a diversidade cultural e a discussão sobre a ortodoxia da escola (Resende, 2002:96-106). 19 Bens de sentido ou bens simbólicos são um dos vértices do constituir-se humano, segundo Severino (2001). Os outros dois vértices, os bens materiais e os políticos. 20 Do grego, Ethikós, costumes, comportamento, parte da filosofia que busca refletir sobre o comportamento humano do ponto de vista das noções de bem e de mal, de justo e de injusto. (Contrim, 1999). “Cuidado ético” se refere ao entendimento de que cuidar é ocupar-se com a lógica do outro, aceitando-o como um legítimo outro. Ética, a configuração de um pensar social capaz de abarcar todos os seres humanos. (Maturana, 1999:73). 21 Maturana (1999:16-17) afirma que há saberes de coerência operacional derivados de premissas fundamentais aceitas por todas as pessoas - a lógica, por exemplo -, e ideológicos, onde premissas fundamentais são aceitas como válidas consciente ou inconscientemente, gerando ameaças existenciais recíprocas, uma vez que os participantes de uma ou de outra negam ao outro os fundamentos de seu pensar e a coerência racional de sua existência. Em última palavra, negam o outro.
36
O estudo que realizei, preocupada em não prescrever propostas para a
educação mas, sim, em considerar as expectativas, os desejos, os sonhos das
interlocutoras, é resultado da investigação a respeito das significações
atribuídas à instituição escolar, seus saberes e as relações destes com a vida
mesma. A pesquisa colocou em pauta exatamente este ponto: quais os sentidos atribuídos à escola para si e para os filhos por um grupo de mulheres em diferentes relações de letramento.
Falar em busca ou construção de sentido é falar em imaginário. Este é
“um sistema de significações que toda sociedade possui, cujos sentidos
traduzem uma rede de sentidos que possibilitam a coesão em torno de uma
ordem/desordem vigente. Refere-se às manifestações da dimensão simbólica,
pois o imaginário para se manifestar, se utiliza do simbólico, reflete práticas
sociais que materializam crenças, ritos e mitos” (Valeska Oliveira, 1997:7).
Constitui-se em uma dimensão desafiadora de compreensão e análise da
realidade que se situa na devastadora “guinada interpretativa” que as ciências
sociais sofreram no período que se tornou conhecido como “pós-
paradigmático” (Costa, 2000). É a partir desse universo interpretativo que me
permito buscar desvendar quais os sonhos, os mitos, os desejos das mulheres
em relação à escola embora a dimensão imaginária constitua um universo a
ser penetrado que permite apenas uma aproximação com o simbólico.
A capacidade de criação histórica, a consideração dos sonhos, mitos e
expectativas e a autonomia são dimensões do imaginário social. Acredito que
essa abordagem oferece a possibilidade de considerar o que é próprio do
sujeito – o ser histórico, o ser capaz de sonhar, de ter desejos, de transgredir,
de se insurgir, de subverter, de se emocionar22 e de construir uma
aprendizagem que se faz no social23.
O alcance da pesquisa está na escolha de mulheres em diferentes
processos de letramento, desde analfabetas até as profundamente
22 Em “Emoções e Linguagem na Educação e na Política”, Humberto Maturana inaugura um olhar a respeito da aprendizagem onde há um entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, constituindo nosso viver humano. Para ele, “todo sistema racional tem um fundamento emocional” (1999:15). 23 Para Maturana, (1999:29), o educar ocorre todo o tempo e de maneira recíproca, como uma transformação estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem.
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escolarizadas, que mantém seu desejo pela escola intacto e materializam esse
desejo estudando ou fazendo estudar os filhos. Assim, são interlocutoras de
minha investigação mulheres com pouca escolaridade e ou cursando
programas de Alfabetização, mulheres que voltaram a estudar depois de uma
pausa para escolarizarem os filhos e mulheres que nunca se afastaram da
escola e hoje trabalham nela como educadoras. Outro critério organizador da
amostra, a origem rural, une essas mulheres em um movimento migratório, não
apenas geográfico que ofereceu elementos para a análise das significações
acerca da busca do saber.
Ser objeto de minha admiração, no entanto, foi o critério que unificou
estas mulheres e que as tornou interlocutoras da investigação. Admiro cada
uma delas pelo belo e pelo feio, pelo inusitado e pelo comum, pela coragem e
pelo medo, pela resistência e por sucumbir, pelo riso e pelo choro, pela
intimidade e pela timidez, pelo olhar e pelo desviar, pelo tom da voz e pelo
calar, pelo mergulho e pelo boiar, pelo remo e pelo descanso. Admiro, como se
estranhar fosse surpreender, como se olhar fosse elogiar, como se escrever
fosse dar voz, como se refletir fosse pactuar. A escolha destas trinta mulheres,
em um universo de aproximadamente duzentas24, deve-se aos qualificativos
que cada uma delas, em interações que datam, em alguns casos, de dez anos,
foram alvo de meu olhar admirado.
3. ...Das mulheres As interlocutoras dessa tese são mulheres na faixa etária dos vinte e
nove aos setenta e cinco anos. Trinta mulheres com diferentes graus de
escolaridade que oscilam do Ensino Fundamental Incompleto ao título de
Doutorado. Mulheres de diferentes etnicidades (dez delas negras), casadas,
separadas, viúvas, abandonadas, divorciadas (quinze vivem sós) e que se
dividem em três grupos: o primeiro, composto por mulheres pouco
escolarizadas – o grupo que deu origem ao estudo; o segundo, mulheres que
24 Esse universo diz respeito a mulheres que, no trabalho de alfabetização e letramento de jovens e adultos, nestes últimos dez anos, conheci, fui professora, entrevistei, escrevi fragmentos de histórias de vida e compartilhei momentos de vida.
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retomaram os estudos durante ou depois de escolarizarem os filhos; e o
terceiro, mulheres que estudam até hoje, são professoras e letradas.
Na escolha das interlocutoras respeitei uma distribuição de vínculos com
o mundo da escola: o primeiro agrupamento foi selecionado entre as mulheres
que estão cursando programas de Alfabetização e são moradoras da periferia
urbana da cidade, com idades que variam de vinte e nove a setenta e cinco
anos, com pouca ou nenhuma escolaridade, oriundas do meio rural onde
trabalharam como posseiras, cozinheiras, trabalhadoras rurais assalariadas,
pequenas agricultoras ou filhas de empregados rurais e hoje desempenham
funções subalternas ou estão aposentadas.
O segundo grupo é composto por mulheres que deixaram de estudar
depois de constituírem suas famílias ou que voltaram à escola depois de um
longo intervalo, investido na escolarização dos filhos. São mulheres com idades
que variam de 26 a 65 anos e escolaridade média, filhas de trabalhadores
rurais ou assemelhados que realizaram um movimento de migração no
universo cultural, moram em bairros da cidade como proprietárias e trabalham
como autônomas, artesãs, prestadoras de serviços de limpeza e como babás,
faxineiras, garçonetes ou no serviço doméstico. Um depoimento típico desse
grupo se encontra na trajetória da Madressilva:
“Na concepção de minha família, uma família de trabalhadores, eles viam a escola como um lugar que as pessoas podiam progredir” (Madressilva, 45 anos, 2002).
O terceiro agrupamento é constituído por mulheres que cursam uma
faculdade ou algum curso de pós-graduação (entre elas uma Doutora em
Letras), que realizaram um profundo movimento de migração, em alguns casos
do rural para o urbano, em outros, no universo cultural. São pessoas que nunca
se afastaram da escola, trabalham nela como educadoras ou estão se
preparando para tal, com idades que variam de 30 a 45 anos. Um dos critérios
que surgiu durante a pesquisa e que unificou as interlocutoras foi o movimento
migratório empregado por elas, de espaço e/ou de sentido, o qual ofereceu
elementos para a análise das significações acerca da busca do saber
39
representado pela escola. Na memória de uma delas, pode-se perceber
claramente a migração de sentido:
“Eu ia prá escola, eu nunca questionei, sempre teve uma coisa do projeto do pai, ‘eu quero que vocês estudem’, um pouco da minha mãe, também, porque é duma família que morava prá fora, era ela e o irmão, só os dois. A minha avó e meu avô eram super duros e super ignorantes porque não tiveram acesso à escola e entendiam que o homem é que precisava estudar. Então a mãe estudou até a quinta série e, eu acho que ela gostava, eu acho que isso foi sempre uma frustração dela, não ter podido dar uma continuidade pros estudos, o escolhido foi o filho homem, que era mais moço, mas era homem. Por outro lado tinha a família do pai, as irmãs professoras, a mãe professora, ele estudou até a quinta série, começou a trabalhar criança, eles tem uma história de vida super dura. A mãe dele tinha onze filhos. Quando ele fez dez anos, entregou ele prum tio que tinha loja, mas ele foi prá lá não como um sobrinho vivira prá minha casa, ele foi prá lá como empregado. Mas isso ele conta com orgulho, acha que aquilo ali foi uma lição prá ele em termos de formação. A gente quando era pequeno ouvia essa história e ficava revoltado. Mas prá época, pro tipo de padrão da época, aquilo ali era bem. Eu acho que os dois tinham esse projeto prá nós, os filhos podê estudá, o pai dizia várias vezes: Prá vocês não serem como eu, sem instrução, teve que trabalhá toda a vida” (Absinto, 40, 2002).
A escolha por mulheres como categoria para a interlocução se deve,
primeiro, por dados de realidade: a maior parte de nossos educandos em salas
de aula da periferia urbana de Pelotas, são mulheres25; segundo, pela
qualidade de seus relatos, todos eles tendo a escolarização dos filhos como
desejo, como suporte; por último, e decisivo argumento, pela admiração que
essas mulheres em mim causam.
Além do gênero, a semelhança entre elas está em um critério que as
agrega, a migração de espaço e ou sentido, que se revelou fundante do sentido
instituído mais evidente à escola: realizar o sonho de estudar e fazer estudar os
filhos. As diferenças, nas categorias faixa etária, escolaridade, etnicidade,
escolaridade dos pais, escolaridade dos filhos, vínculo de trabalho e imaginário
25 Desde 1993, quando inicio um trabalho sistemático na área da EJA, tenho encontrado um número maior de mulheres em busca de estudos, na faixa etária pesquisada. Desse universo, o recorte resultou
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instituído e instituinte. É importante ressaltar que todas permitiram publicizar
suas trajetórias e nomes, com exceção de Absinto; apesar disso, optei por
preservar suas identidades, nomeando-as com elementos da natureza como
plantas, flores, ervas. Quando citadas, preservei sua linguagem registrada por
escrito e também nas gravações, buscando preservar a originalidade e as
marcas da oralidade que, também elas, tem trajetos de migração.
1. Absinto, trinta e noves anos, casada, graduada, Mestra e Doutora em
Letras, dois filhos (um de dezessete anos, no Ensino Médio e uma de doze
anos, no Ensino Fundamental). Trabalha como professora em uma Instituição
Federal de Ensino Superior. Filha de um casal pouco escolarizado, mas
convivendo com tias professoras que dispunham de uma biblioteca, seu
processo de “significar os impressos” iniciou ainda na infância. Oriunda do sul
agrário e interiorano, encontrou em Pelotas inúmeras oportunidades de
letramento, o que se transformou em seu objeto do desejo. O sentido que
atribui à escola é o de espaço social: a escola é uma instituição privilegiada
para organizar, disciplinar e disponibilizar saberes e competências além de ser
um importante espaço de convivência e formação da infância e adolescência.
2. Canela, quarenta anos, casada, graduada em Secretariado Trilíngüe, quatro
filhos (um de dezenove anos cursando a Universidade, outro de dezessete
anos no Pré-Vestibular, uma de oito anos, no Ensino Fundamental e outra de
cinco anos, na Escola Infantil). Trabalha no serviço doméstico e no apoio à
ocupação do marido, além de alguns contratos emergenciais como secretária.
Neta de um carpinteiro letrado, mas analfabeto e filha única de uma mãe pouco
escolarizada que, junto com a família migra da zona rural para a cidade, entra
na escola como conseqüência de uma época, não como projeto familiar.
Credita suas relações de letramento ao casamento e à participação em um
partido político. O sentido atribuído à escola é o de lugar de aprender
competências para o mundo do trabalho, é caminho para um futuro de
felicidade via realização profissional.
em dez mulheres em processos de escolarização básica (alfabetização). Os outros dois grupos foram agregados à pesquisa mais tarde.
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3. Carambola, trinta e dois anos, casada, Licenciada em Matemática, cursando
Especialização em Educação, um filho (cinco anos, na Escola Infantil), dois
enteados (um de quinze anos e outro de dezesseis anos, no Ensino Médio).
Trabalha como Professora Substituta de uma Instituição Federal de Ensino
Superior, como professora de Física em uma Escola Privada e como
professora de Matemática e Física em uma Escola Estadual de Ensino
Fundamental. Nascida em um país da Europa, domina várias línguas e
consegue avaliar sistemas de ensino comparativamente. Sua vinda para o
Brasil se realiza dentro de um projeto familiar rural, com poucas expectativas
de progressão no mundo da escola. Apesar do papel reservado à mulher em
sua família – escolaridade básica, casar, ter filhos, ser sustentada – deseja e
busca mais para si. O sentido atribuído à escola para si é o do acesso ao
mundo do trabalho qualificado e, para o filho, é o de lugar do saber com prazer,
um “deveria ser”. Denuncia a escola pela sua formação restrita, formal, com
cobranças e treinos.
4. Cedro, cinqüenta e sete anos, viúva, dois filhos (um de quarenta e um anos
e outro de trinta e nove anos, os dois graduados em uma IFES), duas netas no
Ensino Fundamental. Cursa Magistério e administra uma venda. Saudosa dos
tempos de menina, da ingenuidade e liberdade daquela época, é migrante junto
com a família, da periferia rural da cidade em busca de trabalho,
fundamentalmente. Por não ter podido realizar através dos estudos a profissão
que desejava, é dessa lacuna que atribui sentido à escola: o de pilar, ponto de
partida, despertar de dons, habilidades, o de ser impulsionadora de atitudes:
base para o acesso a uma escolha profissional.
5. Centeio, sessenta e quatro anos, viúva, pouco escolarizada, cinco filhos (um
de trinta e nove anos, engenheiro, uma de trinta e oito anos, pedagoga, um de
trinta e sete anos, engenheiro, um de trinta e cinco anos, filósofo e uma de
vinte e nove anos, fisioterapeuta) e dois netos. Migrante da zona rural para a
cidade ainda solteira, encontra no casamento com um homem letrado um
sentido ampliado para as possibilidades na vida. À escola atribui a
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possibilidade de mediatizar um projeto de vida onde a formação para o trabalho
qualificado, bem remunerado e desencadeador de respeito social são o norte.
A realização desse sentido tem origem na escola infantil dos filhos onde falar
em público, vincular-se à literatura, praticar esportes, fazer teatro e contestar os
professores eram atitudes apoiadas por ela e, acredita, desencadeadora das
escolhas profissionais que os seus fizeram. De todas as interlocutoras, é a que
mais seguridade tem de que seu projeto deu certo.
6. Cerejeira, setenta e cinco anos, abandonada, pouco escolarizada, sete
filhos (nem todos concluíram o Ensino Fundamental, alguns tem o Ensino
Médio e uma filha ainda estuda (embora não saiba informar qual o curso,
porém afirma que é “para professora”), treze netos (todos no Ensino
Fundamental) e dois bisnetos (com idades entre zero e seis anos). Estuda a
noite no Projeto de Extensão Alfabetização e Cidadania e é aposentada. Esta
interlocutora, de maior longevidade entre as pesquisadas, é migrante da zona
rural, considerada a mais "atrasada"26. Na indústria do doce encontra o
extenuante trabalho safrista27, e revela nas mãos e no corpo as marcas desse
tempo. O sentido atribuído à escola é o de espaço social que mediatiza a
condição humana: ser gente, ser alguém, ser de respeito, não ser marginal.
Embora não saiba como se organiza a escola em termos de caminhos
possíveis para uma profissão, credita a ela um rol de saberes importantes, sem
os quais a vida fica muito próxima da marginalidade.
7. Clorofila, trinta e cinco anos, separada, duas filhas (uma de oito anos e
outra de seis anos, as duas no Ensino Fundamental). Cursa Pedagogia e
trabalha no setor de Assistência Estudantil em uma Instituição Federal de
Ensino Superior. Esta jovem interlocutora viveu tanto a miséria da zona rural
como a da periferia urbana no movimento de migração que sua família
26 As fazendas de pecuária extensiva são consideradas, na literatura, as mais atrasadas pelas relações de trabalho, propriedade da terra e universo simbólico. Neste locus, Cerejeira trabalhou parte de sua infância e adolescência como cozinheira dos peões, muitas vezes instalando a cozinha no campo, por dias, durante períodos em que o gado precisava estar em outros pastos, distante da sede. 27 A indústria do doce, em Pelotas, utilizou, durante muito tempo, a contratação temporária – nas safras – de separadores, descascadores, preparadores, envasadores, e embaladores na produção do doce. Destas ocupações, a de descascadores era a que necessitava de mais força física, resistência e rapidez. É nesta categoria que Cerejeira se encontra.
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percorreu. Dona de uma memória pródiga em detalhes, busca a Universidade
com uma paixão indescritível no léxico. O sentido atribuído à escola é o de
sonho inatingível, realização total, uma escolha que não tem vínculo com
nenhum argumento racional. É pura emoção.
8. Eucalipto, trinta e dois anos, solteira, pouco escolarizada, uma filha (de
nove anos no Ensino Fundamental). Estuda a noite no Projeto de Extensão
Alfabetização e Cidadania e faz “bico” como faxineira, babá, ou cozinheira.
Alegre, bem humorada, gosta de “fofoca” e é “pavio curto” em suas palavras.
Aos oito anos, com a morte da mãe, é abandonada pelo pai aos cuidados de
uma irmã que permanece na periferia urbana enquanto o pai se desloca com
os outros irmãos para a zona rural. Nunca mais teve uma família que pudesse
chamar de sua e foi, sucessivamente, deslocada de uma casa à outra,
recebendo, nestas, alguns cuidados e alguma escola. Cresce à margem de que
considera “respeito social” e a maior ofensa que alguém pode lhe impingir é
chamá-la de louca. O sentido atribuído à escola é o de espaço onde se
conquista respeito social, lugar que confere uma identidade, aos olhos dos
outros, que ela nunca conquistou: alguém que pensa, que sabe, que fala “coisa
com coisa”, que não se deixa intimidar, que sai à rua, que “levanta a cabeça”.
9. Erva-Cidreira, sessenta e dois anos, casada, quatro filhos (três vivos, com
diferentes tempos de escolarização no Ensino Fundamental). Na infância,
nunca foi à escola, mas sabe ler e escrever. Hoje, estuda a noite no Projeto de
Extensão Alfabetização e Cidadania onde incentiva o marido, que escreve e lê
muito pouco. Já trabalhou na terra como lavradora e, depois de uma passagem
pelas indústrias do doce nos anos 80 como safrista, hoje está aposentada e
cuida do serviço doméstico e do marido em permanente estado de
dependência. Antes de preencher suas noites com a escola, responsabilizou-se
por uma neta que, com problemas mentais e motores, demandou intensos
cuidados. Com a morte desta, Erva-Cidreira se deparou com o tempo
disponível e viu na escola uma possibilidade de amainar o sofrimento da falta.
O sentido atribuído à escola é o de espaço social para ocupar o tempo,
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resgatar, através da conversa com outras mulheres, a infância longe da escola
e encontrar ouvidos para suas dores.
10. Erva-Mate, quarenta e dois anos, solteira, pouco escolarizada, uma filha
(de doze anos no Ensino Fundamental). Trabalha em Serviços Gerais em uma
Instituição Federal de Ensino Superior. Vê o trabalho que realiza como uma
desonra, um lugar social que não quer para a filha mocinha. Por isso, investe
em coisas que considera alavancas para um outro lugar social para a filha: o
telefone celular, o cabelo alisado, o vídeo-game, um curso de computação.
Neta de escravos, é responsável econômica e afetivamente pela mãe (de
noventa e dois anos) que atualmente mora com ela. O sentido atribuído à
escola é o de acesso a uma profissão, uma outra via para o futuro da filha que
não seja o trabalho pouco respeitado socialmente e mal remunerado.
11. Gardênia, vinte e nove anos, casada, pouco escolarizada, um filho (de seis
anos, na Escola Infantil). Estudou no Projeto de Extensão Alfabetização e
Cidadania nos anos de 2000 e 2001. Trabalha como faxineira em residências e
deseja ser cozinheira, embora não tenha feito nenhum curso específico na
área. Uma de quatro das filhas de uma mulher abandonada à própria sorte pelo
marido, teve, ainda menina, de responsabilizar-se por irmãos mais novos
enquanto a mãe e a irmã mais velha trabalhavam fora de casa. Na infância, foi
entregue28 a uma família da zona rural como empregada doméstica, mas não
se adaptou ao mundo do trabalho sem brincadeiras e liberdade e voltou à
cidade. Com poucas informações acerca das relações de saber no universo
escolar, não sabe o que cobrar da escola na qual credita a possibilidade de
conquista de uma profissão para o filho, que será adulto daqui a quinze anos.
Apesar disso, interpela a professora a partir do que aprendeu em seus poucos
anos de escola, de onde traz lembranças muito dolorosas. Atribui à escola,
também, um sentido de universo inalcançável, lugar de difícil acesso
28 As famílias negras com muitos filhos que ainda hoje vivem à margem de oportunidades na sociedade encontram no emprego dos filhos menores em casas de família uma alternativa para o sustento desse filho e, ainda, algum recurso para a família. È nessa relação que Gardênia é, depois da irmã mais velha ter passado pela mesma experiência, “emprestada” a uma família abastada da zona rural.
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intelectual, onde acontecem coisas que ela não imagina como sejam,
determinantes do sucesso e do fracasso possível.
12. Gladíola, trinta e três anos, casada, estudante de Pedagogia, três filhos
(um de onze anos, uma de oito anos e outra de seis anos, todos no Ensino
Fundamental). É bolsista de pesquisa, trabalha como cabeleireira e vende
bijuterias que confecciona. Sonha ser escritora. Acredita que ficou longe da
escola por alguns períodos por comodismo, falta de seriedade, ingenuidade e
falta de maturidade. Como nunca abandonou os livros, é uma mulher letrada. O
sentido atribuído à escola está prenhe de emoção, que é comunicada pelos
olhos cheios de lágrimas quando fala do primeiro caderno escolar (ainda
guardado) e da aprendizagem da leitura. Parte de seu sonho, a escola é um
espaço que lhe permite viver e “viver é sinônimo de ler e ler em todos os
sentidos!”.
13. Haxixe, quarenta e um anos, separada, Pedagoga, dois filhos (um de treze
anos e um de onze anos, os dois cursando o Ensino Fundamental). Cursa
Mestrado em Educação em uma Instituição Federal de Ensino Superior e
trabalha em Escolas Públicas. Filha de uma família negra, com tias professoras
e pai gerente de livraria, nunca viveu intensamente o racismo. Hoje, ao
observar com mais elementos o impedimento que o preconceito racial exerceu
em sua ascensão social, está revendo suas certezas. Embora faça severas
críticas, o sentido que atribui à escola é o de espaço privilegiado para acessar
saberes, para aprender a pensar sobre as verdades e a se relacionar com os
outros.
14. Ipê, quarenta anos, casada, Nutricionista, uma filha (de quatorze anos, no
Ensino Médio). Cursa Universidade Holística e administra seu restaurante.
Considera o mundo do trabalho extremamente limitador do humano. Neta de
agricultores ricos que faliram na infância do pai é produto da busca intensa
deste pela graduação das filhas, o que lhe retirou da convivência familiar. Na
relação com a filha, cobra desta os saberes e os ritos típicos da escola mas, ao
mesmo tempo, investe em possibilidades que extrapolam o universo escolar,
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como viagens, cursos de línguas, intercâmbios e estágios na administração do
restaurante, além de investidas na cozinha para aprender a preparar pratos. O
sentido atribuído à escola é o de um espaço onde se acessa uma profissão
pois lá, acredita, o conhecimento está organizado cientificamente, de forma
atualizada e profunda. No entanto, relativiza esses saberes, afirmando que a
vida tem uma carga de conhecimentos que inexistem na escola. 15. Jasmim, trinta e um anos, casada, Ensino Médio completo, um filho (de
oito anos, no Ensino Fundamental em uma Escola Privada). Além do serviço
doméstico, trabalha revendendo produtos de beleza, o que lhe confere sucesso
profissional. Mulher negra casada com um homem branco sofre com a
possibilidade de enfrentar o preconceito em ocasiões sociais junto à família do
marido. Na escola do filho, agrupa-se com outras mulheres negras, que são
poucas, aproximadamente uma por série. Tem desejo que o filho se saia bem,
que não sofra preconceito, que saiba falar em público e acredita que a escola
pode oferecer oportunidades para que isso se realize. O sentido atribuído à
escola é de um espaço para aprender as ferramentas básicas para o mundo
adulto, que define como altamente competitivo, profissional, de mercado.
16. Jequitibá, quarenta e cinco anos, separada, Ensino Médio completo, uma
filha (de quinze anos cursando o Ensino Médio). Trabalha como secretária de
Faculdade em uma Instituição Federal de Ensino Superior. Tem um olhar de
sofrimento quando está no trabalho e, recentemente, ousou reconhecer que
não estudou o suficiente para estar em outro lugar social. Oriunda da
convivência infantil na zona rural sofreu profundamente ao encontrar os limites
de espaço e tempo na cidade. Separada de um engenheiro que tem uma
posição social mais valorizada, já conheceu dias melhores em termos
econômicos, tendo casa própria e vida mais confortável. Depois da separação,
voltou a morar com a mãe, irmãs e irmão, mais a filha e a sobrinha. Nesta nova
configuração familiar, o salário que recebe é alocado na renda comum, o que a
faz passar, muitas vezes, por dificuldades e pela necessidade de não ser,
nunca, a prioridade dos investimentos. O sentido atribuído à escola é o de
acesso a oportunidades profissionais, não necessariamente de realização
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pessoal. Relativiza o conhecimento produzido na Universidade uma vez que
critica a não democratização no acesso a esse.
17. Juta, quarenta e cinco anos, casada, dois filhos (uma de dezoito anos no
pré-vestibular e um de quatorze, no Ensino Médio). Estuda em uma Instituição
Federal de Ensino Superior, é bolsista de Extensão e trabalha no serviço
doméstico. Interlocutora que emociona profundamente, seu relato é pleno de
sofrimento pela violência doméstica sofrida e pelo andar sem rumo pelos
campos, fugindo do pai e da fome. De casa em casa, desde menina cresce
com as sobras de outras crianças e adultos e é resgatada pelo casamento. A
memória dos dias de sofrimento está intacta, cada uma das horas de dor está
registrada e é comunicada com muitas lágrimas. Há dois sentidos que atribui à
escola: o primeiro, o sonho, estar na Universidade como inacreditável e
apaixonante; o outro sentido é o que persegue para os dois filhos, o das
possibilidades que a escola promove na vida das pessoas tais como trabalho
qualificado e bem remunerado e felicidade.
18. Laranjeira, trinta anos, casada, três filhos (uma de quinze anos no Ensino
Médio, um de oito anos e outro de sete anos no Ensino Fundamental). Cursa
Pedagogia em uma Instituição Federal de Ensino Superior, é Conselheira
Tutelar e trabalha como assessora de Movimentos Populares. Filha de uma
professora politicamente engajada cresceu nos braços dos alunos desta e é
filha da consciência política dos anos 60. Embora cercada por livros, não se
tornou letrada na infância, localizando na chegada à Universidade o momento
em que aprendeu a ler com sentido de letramento. O sentido atribuído à escola
é o de espaço que oportuniza o acesso a saberes através da reflexão-ação-
reflexão. Sabedora do caráter público da escola, credita a ela a
responsabilidade de disponibilizar saberes que ampliem a visão de mundo das
pessoas que por ali passam.
19. Lúpulo, cinqüenta anos, casada, Ensino Médio completo (Magistério), duas
filhas (uma de vinte e três anos com Magistério concluído e uma de dezessete
anos cursando). Deseja cursar a Universidade e é trabalhadora informal e
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eventual, não vinculada à profissão. Nasce em um galinheiro e é rejeitada
desde a mais tenra idade, sentimento que dá origem, em sentido cumulativo,
aos outros tantos de abandono, descrença e insucesso. Apesar disso, cria
laços, compõe uma família, educa as filhas, já tem uma neta. O sentido
atribuído à escola foi sendo questionado durante a realização da pesquisa, nas
intelocuções que tive com ela. No início do seu depoimento, que foi por escrito,
escola era um lugar protegido pelo sonho ainda não realizado, a espera de ser
alcançado. Hoje, o sentido atribuído se encontra no campo do inatingível,
credita seu insucesso a conspiração contra os pobres, os de idade não
adequada, os sem sobrenome, categoria em que se enquadra. Há, também, o
sentido de redenção, que, acredita, virá através das filhas, mais precisamente
de uma delas, que mais sucesso tem tido na escola. 20. Macieira, vinte e seis anos, casada, Ensino Médio completo, dois filhos (um
de quatro anos e uma de dois anos, na Escola Infantil). Deseja voltar a estudar
e trabalha de servente de limpeza em uma empresa prestadora de serviço a
uma Instituição Federal de Ensino Superior. Filha de um pai frustrado por não
ter podido estudar por quem foi sempre estimulada, não perseguiu o projeto,
tendo pouca e frágil escolaridade. O sentido atribuído à escola é o de
realização profissional, de ser alguém, de vencer na vida. Apesar desse sentido
bem ampliado, relativiza os saberes da escola, dando grande importância aos
conhecimentos cotidianos aos quais recorre para externar hipóteses e para
resolver enigmas. Em seu depoimento manifestou receio de que os filhos
possam, no futuro, não ter condições de estudar, não ter “uma boa cabeça”,
receio este que pode estar vinculado ao convívio com uma irmã que tem
problemas mentais e, assim, não realizarem seu sonho de independência e
retorno econômico. Deseja que os filhos se realizem profissionalmente através
da escolaridade e acredita que ainda possa realizar o sonho de cursar Química
na Universidade.
21. Madressilva, quarenta e cinco anos, casada, Pedagoga, cinco filhos (um
de vinte e quatro anos, advogado, um de vinte e três anos, sociólogo, um de
vinte e dois anos, estudante de Direito, um de dezenove anos estudante de
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sociologia e um de dezesseis anos, cursando o Ensino Médio). Cursa
Especialização em Educação e trabalha como Diretora de uma Escola Infantil
Municipal na periferia urbana de Pelotas. Filha de uma família pouco
escolarizada é na figura da avó leitora que inicia o vínculo com o mundo
letrado. Tendo estudado em uma escola privada na adolescência e
vislumbrado o mundo dos abastados, cresce desejando participar desse
mundo. Depois de casada, passa a perseguir o prestígio social e o retorno
econômico que a escolaridade pode vir a conferir à família que constrói. O
sentido atribuído à escola é o de espaço de pertencimento e, para os filhos,
acesso ao mundo dos saberes socialmente valorizados, reconhecidos através
do exercício profissional em cargos de poder, como alguns do judiciário, por
exemplo.
22. Malva, quarenta anos, separada, Ensino Fundamental completo, um filho
(de quatorze anos, cursando Ensino Médio). Deseja voltar aos estudos e
trabalha como garçonete em um restaurante da Cidade. Filha de colonos
alemães agrega saberes comunicados oralmente e que datam das gerações
que chegaram nos navios da imigração. Entrou no mercado de trabalho cedo e
os estudos ficaram em segundo plano. Quando decide ter um filho, já é
proprietária de um pequeno apartamento na periferia urbana, para onde se
muda, saindo da casa dos pais. Extremamente comunicativa e muito
responsável, tem livre trânsito no mercado de trabalho, sempre em posições
subalternas. Com uma visão do mundo do trabalho que, em alguns casos
ultrapassa a dos chefes, mas sem possibilidade de efetivar suas idéias, acaba
se conformando com migalhas de poder. Mãe solteira trabalha para sustentar o
filho que deseja ver recebendo um diploma na Universidade. O sentido
atribuído à escola oscila entre a escola que teve - a do disciplinamento (com
respeito aos mestres, silêncio, ritos patrióticos e saberes clássicos) - e a que o
filho está tendo acesso, condição para uma profissão e um lugar social mais
respeitado. Em sua linguagem clássica, refere-se aos mestres como pessoas
superiores, idealiza a escola, seus integrantes e os conhecimentos ali
alocados. Acredita que na escola o respeito aos mais velhos (os professores,
diretores e pais) deve ser um objetivo central a ser ensinado.
50
23. Mandacaru, cinqüenta e cinco anos, casada, Ensino Fundamental
Incompleto, um filho (de trinta e oito anos, com Ensino Médio Incompleto) e um
neto (de onze anos no Ensino Fundamental). Trabalha em seu salão de beleza.
Filha de agricultores analfabetos, a escola não foi um caminho valorizado nem
oportunizado pela família e o trabalho foi o único meio pelo qual a vida na roça
foi substituída pelo emprego como doméstica na cidade. Mãe solteira aos
quinze anos, sai de casa para trabalhar pelo próprio sustento e fica a mercê do
preconceito que esta condição lhe alcunhou. O resgate veio através de uma
relação onde não há paixão, como faz questão de dizer, mas tranqüilidade
financeira e afetividade. O sentido atribuído à escola é de portadora de saberes
sem os quais a vida fica extremamente difícil profissionalmente. As
informações que tem a respeito da escola não ultrapassam os saberes básicos
e não sabe explicar as razões do filho não ter permanecido nela mais que
alguns poucos anos. Quando percebe que o neto está desinteressado das
coisas da escola, apesar do investimento que a família fez na escola privada,
não compreende, não se arrisca a alguma explicação.
24. Manjericão, quarenta e sete anos, casada, Ensino Fundamental
incompleto (segundo ano ginasial), dois filhos (um de trinta anos, licenciado em
Geografia, outro de vinte e oito anos, Ensino Médio concluído). Trabalha com
artesanato e no serviço doméstico. Filha de uma família pouco escolarizada
teve uma infância rica em relações afetuosas, mas com pouco preparo para as
demandas que encontrou na vida adulta: ser mulher, mãe, educadora. O
sentido atribuído à escola é o de atualizar as possibilidades de viver em
sociedade, educando, disciplinando as relações entre as gerações. Deseja que
a escola realize a interação com as novas atitudes e informações que estão
disponíveis atualmente, que a escola seja um espaço de aprendizagens para a
convivência entre os diferentes, entre as gerações e entre os gêneros.
25. Mangueira, sessenta e um anos, divorciada, pouca escolaridade, oito filhos
(com diferentes graus de escolaridade e, no máximo, o Ensino Médio), cinco
51
netos (de zero aos dez anos, todos na escola). Estuda a noite no Projeto de
Extensão Alfabetização e Cidadania e cuida do serviço doméstico. Trabalha em
sua casa. Filha de um casal de agricultores analfabetos e sem-terra, perde a
mãe muito cedo e passa a ser responsável, aos oito anos, pela gerência da
casa e pelos irmãos mais novos sob a violência do pai. O trabalho na roça, o
racionamento de alimentos e as surras sem motivo algum são marcas dessa
responsabilidade. Sair do mato, do campo, das relações injustas, das
impossibilidades, da ignorância, do impedimento passa por vincular-se à
escola, na cidade. O sentido atribuído à escola é o de realização de um projeto
de vida, mesmo que não tenha alcançado a escolaridade para si. Escola é
sinônimo de cidade.
26. Margarida, quarenta e dois anos, separada, Ensino Fundamental
Incompleto, duas filhas (uma de vinte e um anos, cursando Ensino Médio
Técnico em Administração e outra de dezenove anos, no Ensino Médio).
Trabalha como servidora em uma Instituição Federal de Ensino Superior. Filha
de agricultores do interior de Pelotas, não consegue realizar o sonho destes
que migram à cidade para que os filhos estudem e pensa realizar o sonho dos
pais através de suas próprias filhas. O sentido atribuído à escola é o de acesso
ao mundo profissional qualificado. Não conhece os mecanismos excludentes
exercidos pela escola, naturalizados em seu depoimento e acredita que as
filhas podem realizar os sonhos que foram sonhados para ela.
27. Nenúfar, quarenta e cinco anos, separada, Licenciada em Filosofia, três
filhos (um de vinte e quatro anos e uma de vinte e três anos, os dois com o
Ensino Médio e outra de dezesseis anos, cursando). Trabalha como professora
em uma Escola Pública Municipal e atua como uma das coordenadoras
pedagógicas da EJA na Secretaria Municipal de Educação. Filha de uma
família da zona rural de um município próximo à Pelotas, na infância a
possibilidade de estudar esteve vinculada ao empregar-se na escola. Aos onze
anos foi retirada temporariamente da escola para ser impedida de viver um
namoro. Quando retorna, é por um pequeno tempo, até terminar os estudos do
ensino médio (Magistério) para logo em seguida casar e ter filhos. Após o fim
52
do casamento reinveste nos estudos, agregando trabalho, filhos, solidão e
necessidade de qualificação. Sempre desejou a escola e via nela a saída para
si e para a família pobre. O sentido atribuído à escola hoje é o de superação de
um projeto de família que iniciou ingenuamente, vinculado a valores que não
acredita mais. Na filha mais nova deposita todas as suas crenças e sofre ao ver
os dois mais velhos longe do que a escola pode oferecer. Fala nas escolhas
destes como “sucumbir” a projetos que, hoje, não reconhece como seus, nem
importantes, pelo contrário. A escola é projeto de vida.
28. Pau-Brasil, quarenta e dois anos, solteira, graduada em História, um filho
(de treze anos, no Ensino Fundamental). Cursa Especialização em Educação
em uma Instituição Federal de Ensino Superior e trabalha em uma Escola
Pública Estadual. Filha de uma família onde ser professora era uma “coluna
vertebral” para as mulheres, aprendeu desde cedo, através do discurso e das
ausências da mãe o valor social do trabalho e da independência financeira. Em
processo de amadurecimento intelectual, o sentido atribuído à escola passou
por diferentes nuances durante o processo de interlocução. Inicialmente por
escrito, revelou um profundo encantamento com o universo escolar, de onde
saiu sua escolha para tornar-se professora, um encantamento fundado na
idealização do mundo da escola e do acesso que esse mundo pode oferecer.
Assim o sentido atribuído foi de realização. Nesse momento revelou-se a
professora que prepara crianças para a continuidade da escolarização, que as
convence das benesses e vantagens do mundo depois da escola. Na relação
atribulada e pouco interessada do filho com esse universo e diante das
frustrações político-profissionais que foi acumulando em vinte e dois anos de
profissão, no entanto, é que encontrou as razões para atribuir um sentido de
fracasso à escola e afirmar que esta não é mais um espaço do aprender. Seu
depoimento oral contraria a escrita inicial, é amargo, auto-punitivo, desejoso de
outras saídas. No entanto, mantive a categorização inicial, a mais forte, pelo
desejo de que assim fosse a escola.
29. Romã, setenta e dois anos, viúva, pouco escolarizada, um filho falecido
que estudou até o 1º ano do Ensino Médio. Credita a morte do filho ao desejo
53
de ajudar os pais, o que realizou abandonando a escola para trabalhar. Estuda
à noite no Projeto de Extensão Alfabetização e Cidadania e é aposentada.
Filha de uma mãe viúva que teve de trabalhar para sustentar os filhos, foi
impedida, na infância, de ir à escola, atitude que até hoje a revolta, pois
considera o motivo insignificante para seu desejo imenso pelo mundo da
escola. É esse desejo que a fez voltar e o sentido atribuído à escola hoje se
concentra na possibilidade de, com idade avançada, estar na escola, participar
desse espaço de pertencimento. É valorizada por isso, é tomada como
exemplo para outros estudantes e gosta de ser destacada, declarando seu
interesse em avançar na escolaridade. A frustração por não ter tido a
oportunidade de estudar, a revolta por não ter convencido o filho a permanecer
na escola e um dos lugares onde se distrai, onde passa o tempo de sua velhice
são sentimentos que relata quando se refere à escola.
30. Sisal, sessenta e dois anos, casada, pouco escolarizada, quatro filhos,
(uma de trinta e três anos, cursando Pedagogia, outros de vinte e três, trinta e
quatro e trinta e cinco anos, com Ensino Fundamental incompleto). Estuda à
noite no Projeto de Extensão Alfabetização e Cidadania e, além do serviço
doméstico, costura para familiares e vizinhas. Impedida de ir à escola pela
distância e condições econômicas da família, ao migrar para Pelotas se depara
com a necessidade de sustentar os filhos, adiando o sonho que perseguiu. O
sentido atribuído à escola é fundado na emoção (um sonho), enquanto história
pessoal, e na razão, enquanto história dos filhos. Um dos depoimentos mais
impactantes pela beleza do sentido atribuído (vai à escola para aprender as
pautas, pois deseja tocar piano), Sisal vive a contradição de buscar a escola
para os filhos e netos pela necessidade de sobreviver, de ter trabalho
remunerado e digno.
54
“E tu para que queres um barco, pode-se saber,
foi o que o rei de facto perguntou, Para ir à ilha desconhecida,
respondeu o homem, Que ilha desconhecida,
perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido,
dos que tem a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada,
A ilha desconhecida, repetiu o homem,
Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse,
rei, que não há ilhas desconhecidas,
Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas,
E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer,
então não seria desconhecida” (Saramago, 1998:16-17).
2.Sentidos buscados:
o elogio do sentido
55
1. Os sentidos da pesquisa
O conhecimento é, pois, uma aventura incerta
que comporta em si mesma, permanentemente,
o risco da ilusão e do erro” (Morin, 2001:86).
Há diversos pensadores contemporâneos produzindo análises acerca
deste período histórico. Um deles, Balandier (1989:10), afirma que “la ciencia
actual ya no intenta llegar a una visión del mundo totalmente explicativa, la
visión que produce es parcial y provisoria. Se enfrenta com una realidad
incierta, com fronteras imprecisas o móviles, estudia el ‘juego de los posibles’,
esplora lo complejo, lo imprevisible y lo inédito”. Para outro deles, Mires
(1993:152), “un determinado modo de entender al mundo está siendo
reemplazado por outro que no fue imaginado (o sonãdo). Esse es el quiebre
aludido, y a esse me referiré com el nonbre de revolución paradigmática”. Já
Brandão (1993:7) afirma que “o abalo das certezas, a flexibilização das
fronteiras entre as diferentes tradições científicas, bem como a desconfiança
das grandes teorias com pretensão à perenidade explicativa, são apenas
algumas das características de um momento que vem sendo tipificado como
aquele da crise dos paradigmas”.
O desconforto deste arcabouço tem as mesmas dimensões que o
impulso para ousar: invento-me pesquisadora rompendo com a teoria que já
dispunha, buscando instituir a capacidade de duvidar de minhas próprias
descobertas como uma firme certeza: Se o conhecimento, sob forma de
palavra, de idéia, de teoria, é fruto de uma tradução/reconstrução por meio da
linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro (Morin,
2000:20), como não duvidar do que produzimos?
Base do pensamento complexo, a incerteza é uma revolução não
apenas na forma de fazer ciência como na própria ciência. Nenhuma das
grandes teorias explicativas se mantém intacta após reconhecermos a
56
parcialidade e a provisoriedade29 de cada uma das verdades até então
construídas. Transitar pela impossibilidade de construir grandes verdades, e
sim, aproximações parciais e provisórias dos fenômenos, é o que propõe essa
nova época que está sendo chamado de “a crise dos paradigmas clássicos”.
Interessada em evidenciar se processos de letramento imprimem, em
mulheres analfabetas ou pouco escolarizadas, o desejo de escolarizar os filhos,
iniciei30 a pesquisa com interlocutoras não reconhecidas na comunidade
científica, a partir da certeza de que há produções de verdades nas relações
que estas estabelecem com o mundo da ciência. No primeiro movimento
realizado no campo, me deparei com diversos sentidos atribuídos à escola, no
universo de mulheres em processo de alfabetização31, sentidos estes que não
se restringiam à minha hipótese inicial de pesquisa.
Meus estudos a respeito do fenômeno do analfabetismo sempre se
inscreveram nas pesquisas e produções orientadas por um olhar sociológico,
que afirma o fracasso das crianças das famílias de categorias sociais populares
como produto social incrementado pela escola. Nesse olhar, há um duplo
movimento: social, amplo, que define os lugares sociais de cada um e escolar, restrito a mecanismos de disponibilização do saber prestigiado socialmente.
A resistência desse olhar, em mim, impedia que eu percebesse que
havia diferentes sentidos atribuídos à escola pelas mulheres que faziam parte
da interlocução que, quando perguntadas a respeito de sua insistência em ir à
escola, a permanência na sala de aula em idade avançada, a retomada após
vários fracassos, a presença apesar do frio ou da chuva intensa, as respostas
oscilavam entre ir à escola para se divertir, para virar madame, para namorar,
para aprender a falar sobre vários assuntos, para fugir da rotina, para escapulir
do marido, para não encontrar a sogra, para ocupar o tempo e até para não
ficar só, convencendo-me de que necessitava dar voz e ampliar a possibilidade
29 Nesta tese, o pensamento complexo será tratado como o esforço para conceber o real a partir dos princípios de incompletude e de incerterza. Para Morin (2000:91) “a complexidade é o contexto e também a sigularidade, localidade, temporalidade, o ser e a existência e tende a desnudar o mundo”. 30 O grupo que deu origem a essa pesquisa era de mulheres pouco escolarizadas. Desejava conhecer se ferramentas escolares a elas disponibilizadas acrescentavam possibilidades de produzir um projeto para os filhos no qual a escola seria a coluna vertebral. 31 A primeira coleta de dados foi realizada para o projeto de tese intitulado “Mulheres em práticas discursivas de letramento: nos relatos de vida as relações com a escola dos filhos”, defendido em fevereiro de 2000. Com as sugestões da banca de qualificação, o objeto de estudo se tornou os sentidos atribuídos à escola e o grupo de pesquisa foi ampliado.
57
de interlocução com essas mulheres e de que as atribuições de sentido
necessitavam ser mais intensamente analisadas e consideradas. Optei então
por reconstruir suas trajetórias escolares, ao mesmo tempo que percebi que
seria necessário categorizar o sentido atribuído em dois vértices: a escola que
tinham e a escola que desejavam para os filhos.
Partindo do pressuposto de que o letramento é um "direito humano
absoluto" nas modernas sociedades industrializadas, ou seja, é um direito
incontestável, que não se pode negar, construí uma argumentação que
afirmava que mulheres, tendo oportunidade de ingressarem em um processo
que as convidava a refletir acerca de sua condição de “estar à margem”,
passariam a traçar estratégias cada vez mais aprimoradas de manutenção no
ambiente letrado e de sustentação dos filhos neste novo patamar conquistado.
A contradição dessa hipótese se encontrava no preconceito com relação aos
projetos das classes populares, uma vez que não havia percebido que nessas
também se encontra o sucesso escolar. Esse preconceito tem origem no não
entendimento de que o letramento é um fenômeno que existe apesar da
escola, em interações culturais múltiplas que todos estamos envolvidos.
Ao buscar apresentar as saídas realizadas por mulheres a partir de
oportunidades escolares de conhecerem os mecanismos produtores do
analfabetismo do qual eram vítimas, incorri na ingenuidade de imaginar que,
longe da escola, não poderiam desejá-la e realizá-la para os seus. Essa tese
incluía desconsiderar as diferentes estratégias de sobrevivência em uma
sociedade grafocêntrica empregadas diariamente por elas que, historicamente
impedem que seus filhos repitam suas trajetórias de vida.
Ao analisar a capacidade que os grupos têm de constituirem-se, de
existirem publicamente, Bourdieu (1989:143) afirma que "o trabalho de
produção e de imposição do sentido faz-se tanto no seio das lutas de campo de
produção cultural como por meio delas mesmas" e a "passagem do implícito
para o explícito nada tem de automático, podendo a mesma experiência do
social reconhecer-se em expressões muito diferentes".
No campo, então, encontrei nos depoimentos das mulheres, diferentes
atribuições de sentido e, em nenhum momento a afirmação de que a escola é
produtora do seu "estar à margem", discurso tornado senso comum por mim.
58
Pelo contrário, a escola é desejada, preservada, elogiada! Nesse momento
iniciei meu processo de aprendiz de pesquisadora, obrigando-me a dar ouvidos
às mais diferentes expectativas que foram sendo depositadas na escola, em
alguns casos por mais de sessenta anos e percebendo a fragilidade da
hipótese central de meu projeto de tese. Fui convidada a incluir a "luta
simbólica pela produção do senso comum, pelo monopólio da nomeação
legítima – explícita e pública – da visão de mundo social" (Bourdieu,1989:146)
como uma das chaves para compreender a atribuição de sentido à escola.
Fazendo parte de um processo civilizatório, a escola que sempre ofereci
foi a do conhecimento, via atividade intelectual, ou seja, sempre desejei
imprimir na minha relação de ensino-aprendizagem o princípio de que a escola
é lugar de aprender a pensar. Também assim orientei as acadêmicas do curso
de Pedagogia em seus processos de tornarem-se professoras e, mesmo nas
salas de aula dos grupos mais à margem da sociedade, o que mais importava,
para mim, era o tornar-se um sujeito dono de conhecimentos relacionados com
o estar no mundo. No entanto, para cada um dos sentidos atribuídos ao estar
na escola por cada uma daquelas mulheres, uma nova demanda surgia para as
professoras, fazendo com que numa mesma sala de aula, tivéssemos muitos
desejos: de copiar do quadro, fazer contas, conversar, estar no recreio,
merendar, ficar em silêncio e até punir, excluir, lamentar ou recuperar o tempo
perdido. Cada educando concebia o aprender diferente e tensionava o
ambiente para que a aula fosse a sua maneira, ao seu modo.
Embora a escola tenha e represente um capital simbólico
institucionalizado, conhecido e reconhecido por todos, legal e não apenas
legítimo (Bourdieu, 1989:148), no embate entre o que oferecíamos e o que
desejavam nossos educandos, pude perceber que a escola não tem o mesmo
sentido para todas as pessoas que nela estão, nem mesmo para aqueles que
dela ficaram à margem e, esses diversos sentidos é que configuram
cotidianamente esta escola, fazendo dela não apenas o lugar do pensamento,
mas também o lugar do desejo32 e da vontade33.
32 “O desejo é a busca da fruição daquilo que é desejado porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida, determina nossos sentimentos e nossas ações. Se, como animais, temos necessidades, somente como humanos temos desejo. Por isso, muitos filósofos afirmam que a essência dos seres humanos é desejar e que somos seres desejantes” (Chauí, 2001:351).
59
Para Charlott (2002), a escola é um lugar onde devem se integrar três
grandes estatutos: atividade intelectual, prazer e sentido34. Para o autor, a
escola deve oferecer atividade intelectual, ou seja, aprimorar a capacidade de
pensar sobre o mundo, através dos conteúdos selecionados como relevantes
pela humanidade pois lá se deve ir para aprender coisas, conhecer, trabalhar.
A escola deve oferecer esta atividade intelectual por uma via prazerosa, as
crianças e os jovens devem sentir prazer nos processos de relação com o
saber, a escola deve ser agradável. O autor ainda afirma que a escola deve ter
um sentido para a sua existência, deve fazer sentido para as crianças e jovens
que ali estão, deve significar. Em suas palavras, a escola é um lugar onde “o
filho do homem é obrigado a aprender para ser uma perspectiva antropológica”
(Charlot, 2000:51).
Para Bourdieu (1989:148) "o título profissional ou escolar é uma espécie
de regra jurídica de percepção social, um ser percebido que é garantido como
um direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal". Para ele, "o sistema
escolar tende cada vez mais a representar a última e única garantia" de acesso
a "ganhos simbólicos" e inclusive de "bens que não é possível adquirir
diretamente com a moeda".
Hoje, levada a pensar que a escola é depositária de inúmeros sentidos
para as pessoas que a desejam, estão nela ou em seu entorno e que estes
sentidos podem vir a instituir-se na disputa com os efetivamente desenvolvidos
pela instituição escolar, decidi conhecer com mais profundidade quais os sentidos atribuídos à escola por um grupo de trinta mulheres migrantes que materializaram de diferentes formas o desejo de estudar e ou escolarizar os filhos. Convencida de que os sentidos atribuídos tornam-se
possíveis apenas na relação com outros sentidos, optei por abandonar o
universo restrito às mulheres analfabetas e decidi ampliar o grupo incluindo
mulheres em diferentes processos de letramento, com vidas marcadas pela
migração do mundo rural para o urbano.
33 “A vontade difere do desejo por possuir esforço por parte de quem quer vencer obstáculos, discernimento e reflexão antes de agir, deliberação, avaliação e tomada de decisão e refere-se ao possível. É, portanto, inseparável da responsabilidade” (Chauí, 2001:351-352). 34 Estes fragmentos do pensamento de Bernard Charlot foram ouvidos durante sua participação no II Encontro do Poder Escolar, realizado em Pelotas, RS, em maio de 2002.
60
Para evidenciar, registrar e analisar essa alocação de sentidos que se
mostrou diversa, plural, solicitei a cada uma delas que rememorassem quais os
sentidos que foram herdados35 e/ou atribuídos à escola, qual o significado de ir
à escola na infância e com que desejos continuam na escola. Busquei que
relatassem o que esperavam da escola quando para ela enviaram os filhos e
quais as expectativas que dispunham quando percorreram o caminho do rural
para o urbano em busca de escola. Através da recomposição das trajetórias de
vida, resgatei as primeiras e mais importantes referências do mundo da escola
para cada uma delas que se deu através de pais, professores, tios, um amigo,
um vizinho, um livro, a música, a cidade, figuras que, a seu modo, realizaram a
ponte entre minhas interlocutoras e o mundo da escola. Solicitei também, que
pensassem a respeito do movimento deste significado e relatassem se entre
uma geração e outra (avós, pais, elas, seus filhos, seus netos) havia ocorrido
mudanças de sentido atribuído à escola e quais tinham sido essas mudanças.
Outra fonte da pesquisa foram as relações de letramento que haviam sido
disponibilizadas para cada uma delas e pretendi que rememorassem quando e
em que circunstância haviam realizado os primeiros contatos com os
impressos, pois desejava averiguar se o sentido atribuído à escola estava
relacionado com o grau de letramento das interlocutoras.
O que pretendia? “Com toda a ousadia sem a qual nenhum projeto é
possível” (Betancur, 2001), desejei realizar um movimento que, ao dar voz às
múltiplas interlocuções, evidenciasse os sentidos atribuídos à escola através
dos quais seria possível perceber semelhanças e diferenças entre as mulheres
que tiveram um acesso muito restrito ao universo do letramento, as mulheres
que voltaram a estudar depois de terem escolarizado os filhos e aquelas que
são consideradas letradas. A pergunta que orientou a pesquisa, nesse
momento foi: Diferentes níveis de letramento são, por si mesmos, alocadores
de sentidos diferenciados na escola?
Registrar a voz de mulheres é reconhecer que muitas, quase todas as
minhas referências de vida são vinculadas a mulheres-fortaleza. Mulheres que
35 Nessa tese, chamo de sentidos herdados aqueles significados atribuídos por alguém do universo de influência de cada uma das mulheres interlocutoras. Assim, o sentido atribuído à escola pode ter sido construído por gerações que antecedem a interlocutora na expectativa de uma vida melhor a partir da escolaridade ou, em alguns casos, ser o oposto do recebido, um sentido que lhe foi negado.
61
foram subvertendo a lógica de estarem à margem dos processos de poder e
saber através de vários expedientes, como Cerejeira (75 anos, pouco
escolarizada), Mandacaru (55 anos, pouco escolarizada) e Mangueira (61
anos, pouco escolarizada), que mantiveram a família apesar do abandono dos
companheiros e apesar da vida dura na zona rural da qual só conseguiram sair
por desejar uma vida melhor para os filhos. Ou como Centeio (64 anos,
retomou os estudos depois dos filhos crescidos), Romã (72 anos, retomou os
estudos pelo desejo de estar ocupada) e Sisal (62 anos, que voltou à escola a
pedido da filha) que, tendo sido arrancadas da escola na infância, bancaram a
escolarização dos filhos a duras penas. Ou ainda como Clorofila (35 anos, na
Faculdade) que amava o marido que a interditava, Juta (45 anos, na
Faculdade) que só chegou à escola fugindo do pai agressor e sendo resgatada
do abandono da mãe através do casamento, Erva-Mate (42 anos, pouco
escolarizada) e Erva-Cidreira (62 anos, em processo de alfabetização)
impedidas de ir à escola pela extrema pobreza. Como também Gardênia (29
anos, pouco escolarizada) que, adulta, volta à escola apesar da humilhação
que a muita idade lhe impunha, ou Eucalipto (32 anos, em processo de
alfabetização) que teve que superar o abandono e a alcunha de louca.
Deixar emergir os sentidos que configuram a escola através de
trajetórias de vida de mulheres que estão fazendo seu presente, apesar dos
determinantes para não vivê-lo e dos impedimentos para não planejar um
futuro diferente para os filhos, é escrever a história amalgamada pelo senso
comum, repleta de meias verdades, condicionada pelo olhar particular do
pesquisador. O argumento mais convincente que tenho para fazê-lo é o de que
poucas vezes essa polifonia teve páginas dedicadas a registrá-la. Deixar
emergir mais outros sentidos, os de mulheres letradas, que trabalham em
escolas e os de mulheres que oportunizaram a escolarização para os filhos,
adiando ou abrindo mão da sua própria, é uma tentativa de compor uma rede
de sentidos atribuídos onde só tem sentido o singular amalgamado no geral, ao
mesmo tempo, único e todo.
Acredito que a realidade a qual desejei compreender é “mutifacetada,
sua composição pressupõe aspectos referentes a condições objetivas e
aspectos referentes à dimensão simbólica. Apresentando a realidade múltiplos
62
aspectos que vão da ordem do dizível à do indizível, obriga o pesquisador que
se coloca na condição de observador a dialogar com essa complexidade”
(Oliveira in Feitosa 2001:53) entendendo complexidade como um tecido, “o
paradoxo do uno e do múltiplo, na convivência inquieta e ao mesmo tempo
estimulante da ambigüidade, da incerteza e da desordem” (Petraglia, 1995:49).
Sei também, que as informações recolhidas, as trajetórias comunicadas
são sempre reelaboradas pelo falante, não podem ser compreendidas
linearmente. Mais que isso, sofrem uma interpretação através da escuta e
possivelmente na escrita dessas comunicações, tornando infindo o processo de
significação. Clifford Geertz (1989) alerta para o risco de imaginar que a fala a
respeito seja interpretado como o próprio acontecido. Para ele,
“Nos escritos etnográficos, o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas. (...) o que escrevemos é o noema (pensamento, conteúdo, substância) do falar. É o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento” (Geertz, 1989:19 e 29).
Assim, escrevo sobre mulheres em processos de letramento
considerando que, desde a mais frágil relação com o “estado ou qualidade de
alfabetizado, estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, como é o caso
do grupo de mulheres pouco escolarizadas, até aquelas que se encontram no
“estado ou condição de quem responde adequadamente às intensas demandas
sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita” (Soares, 1999:20),
há uma diversidade de sentidos sendo atribuídos à escola, sentidos estes que
redimensionam, cotidianamente, as relações entre a sociedade e o saber
escolar.
Busquei, através de uma escuta densa e sensível e um olhar único,
porque meu, mediado pela minha própria história de vida e de trânsito pela
academia, visualizar e refletir a respeito dos sentidos atribuídos à escola por
mulheres que têm relações diferenciadas com a escolarização e os processos
de letramento. Assim, a escrita é realizada em uma época em que diversos
desafios são colocados para os educadores, fundamentalmente compreender o
outro que, como afirma Scliar (2002:43), “continua sendo produto de nossa
invenção, fabricação e tradução”. Desejei conhecer se além dos sentidos
63
instituídos há sentidos instituintes nas atribuições de sentido dessas
mulheres.
Diante do meu “problema” de pesquisa, ouso pensar que cada caso não
é um caso, como alerta Fonseca (1999). Acredito que existe uma rede de
relações que estas mulheres estabelecem com seu entorno, relações de
“tensionamentos ao existente” (Dorneles, 2002:27)36 que incluem uma
conversa muito enfática com o universo escolar, com seus saberes e suas
promessas. E acredito que ao conhecer o que pensam, esperam, buscam e
realizam na escola, é possível evidenciar uma rede de significados atribuídos,
herdados ou construídos, afirmados ou negados por mulheres que investem a
escola de sentidos múltiplos.
Reconheço a complexidade do contexto em que pesquisei e, ao dar voz
a estas protagonistas, as reconheço sujeitas às mesmas influências históricas
que outras mulheres sofrem sem, no entanto, deixarem de ser únicas. Pretendi
situá-las dentro do contexto histórico e social ao relatar seu caminho de
migração, em busca de conhecer o todo, aquilo que as agrega, categoria na
qual elas se assemelham. No entanto, também desejei percebê-las únicas,
evidenciar as singularidades, “num caminhar do pensamento, num pensamento
que faz o ir e vir das partes ao todo e do todo às partes” (Morin in Petraglia,
1995:81). Acredito que é no “movimento interpretativo, indo do particular ao
geral, que o pesquisador cria um relato etnográfico” (Fonseca,1999:6). Nesse
movimento, defrontei-me com o impacto que é “estar lá e escrever aqui”, na
busca por representar o outro pesquisado no campo37, na minha escrita. Este
enigma, o da legitimidade etnográfica, é fruto da guinada interpretativa que as
ciências sociais vêm produzindo a partir da suspensão da crença no poder
explicativo de perspectivas teóricas, durante muito tempo dominantes, e da
crescente aceitação de que qualquer questão em torno da vida humana é
36 Para Malvina Dorneles (2002) “aos novos tempos de incertezas e perplexidades frente à complexidade do movimento do social, corresponde uma redefinição dos papéis institucionais de tomadas de decisão no campo educacional” e cabe à escola um “novo protagonismo”, uma vez que a prática educacional se defronta com “impasses, perspectivas e compromissos que se impõem como tensionamentos ao existente e se propõem como o lugar da reflexão e da ressignificação teórico-conceitual do ser e fazer educativo”. 37 Segundo Costa, 2000, apesar de todos os esforços não há respostas ao embaraço de representar o outro em palavras de forma satisfatória o que se transforma numa impossibilidade epistemológica. A resposta a esse embaraço aparece através da mediação constante em transformar, sempre que possível, uma impossibilidade em possibilidade, o que a autora chama de falha e sucesso cognitivo.
64
inevitavelmente ligada ao contexto e tem sempre uma grande parcela de
indeterminação (Costa, 2000:78). Assim, pretendi descrever e interpretar os significados atribuídos e compreender se esses são instituidores de sentidos na escola.
2. Sentido, Significado e Imaginário
“(...) a realidade não é facilmente legível”. As idéias e teorias não refletem,
mas traduzem a realidade e podem traduzir de maneira errônea.
Nossa realidade não é outra senão nossa idéia de realidade”
(Morin, 2000:85).
Antigo e problemático tema, situado num entroncamento por onde
passam a lingüística, a semiologia, a antropologia e a teoria do conhecimento,
a relação entre língua, pensamento, conhecimento e realidade é que possibilita
um entendimento da categoria sentido (Blikstein, 1990:17). No entanto, em
nenhum desses campos, isoladamente, se encontra uma conceituação
definitiva.
Na linguagem, sentido é o fenômeno da produção de conotação, ou
seja, o poder de uma mesma palavra indicar coisas e idéias diferentes. Para
Chauí (2001:148) “a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar
enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios
pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Eles nos fazem
pensar e nos dão o que pensar porque se referem a significados, tanto os já
conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não
conhecíamos e que descobrimos por estarmos conversando”. Para a autora,
sentido é significação ou significado.
Para Bernard Charlot, (2000:56) “tem sentido uma palavra, um
enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros
em um sistema, ou em um conjunto, é significante o que produz inteligibilidade
sobre algo, o que aclara algo no mundo, o que é comunicável e pode ser
entendido em uma troca com outros. Em suma, o sentido é produzido por
65
estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o
mundo ou com os outros”.
Na discussão a respeito da necessidade de uma teoria crítica,
Boaventura Santos (2000:30) defende a necessidade de uma forma de
conhecimento que é a solidariedade, forma essa que se obtém por via do
reconhecimento do outro enquanto produtor de verdades. Afirma o autor que
esse outro só pode ser respeitado enquanto produtor de conhecimento, quando
esse outro produza olhares respeitáveis, verdades possíveis. Para ter sentido,
a linguagem do outro precisa ser inteligível e, para tal, o autor propõe a
existência de uma teoria da tradução, uma hermenêutica que torne
compreensível uma aspiração, uma necessidade, uma prática de uma dada
cultura.
Para Morin (2000a), mesmo “nosso sentido mais confiável, a visão”
permite inúmeras possibilidades de erros de percepção e “o conhecimento não
é um espelho das coisas do mundo externo”, o que significa afirmar que a
impossibilidade de criar uma interpretação à imagem e semelhança do real
pode ser fonte de “traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos
(...) captados pelos sentidos”. Assim, sentido, seria a ponte que possibilita
traduzir, reconstruir e até criar interpretações acerca do real, investindo-o de
verdades, possibilitando assim o múltiplo, o inesgotável, o inédito. A união
entre razão e emoção permite supor que, nas relações investigativas que o ser
humano estabelece em busca de conhecer, compreender e explicar o real, o
sentido atribuído extrapola, em muito, as evidências que o ideal científico nos
ensinou a considerar.
Para a Lingüística é extremamente esperado que sentido seja
empregado como sinônimo de significado, ou seja, conhecer o sentido de algo
é o mesmo que ser, demonstrar, dar a entender, ter o significado de, querer
dizer, expressar, exprimir, denotar e a análise da palavra sentido é possível no
campo da semântica onde agregar valor a cada um dos termos é próprio da
disciplina. Semanticamente então, é possível empregar o termo sentido para o
rol de possibilidades humanas de receber sensações, uma possibilidade mais
imediata e onde se entende sentido como a faculdade de conhecer de um
66
modo imediato e intuitivo, um modo que se manifesta nas sensações que o
olhar, escutar, tocar, entre outros, nos permite.
No entanto, é possível ampliar essa categorização quando se ingressa
no estudo das relações entre linguagem e os outros sistemas de signos e
símbolos. Nele, a categoria significado compõe o triângulo semiótico38 de
Ogden e Richards (1956) e se localiza no vértice dedicado ao sinônimo de
pensamento ou referência. Resulta de uma impressão causada em nossos
sentidos através dos signos. Nos outros vértices deste triângulo estão o
referente ou objeto e o símbolo ou palavra. Assim, significar é variar segundo a
apreensão subjetiva, os pontos de vista ou objetivos de quem fala, ou ainda, o
significado de uma palavra, por exemplo, “depende de quem a usa, quando a
usa, onde, com que objetivos, em que circunstâncias e com que sucesso”
(Epstein,1990:3). Na conclusão dessa idéia o autor recorre a uma máxima:
“Para um grande número de casos onde é empregada a palavra ‘significado’,
este pode ser assim definido: o ‘significado’ de uma palavra é o seu uso na
linguagem”.
Nessa mesma ciência, é interessante perceber que muitos autores,
inclusive, denominam diferentemente o mesmo vértice do triângulo que estuda
as relações entre objeto, palavra e significado, o que permite afirmar que,
mesmo na Lingüística onde os preciosismos são tão caros, é possível
encontrar autores que partilham de uma mesma idéia com nomenclatura
diferente. O exemplo é empregar interpretante, referência, sentido, intenção,
designatum, significatum, conceito, conotação, connotatum, imagem mental,
conteúdo e estado de consciência como nomes do vértice que corresponde à
categoria significado (Epstein:1990:24).
Em “Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade”, Blikstein (1985:17)
afirma a impossibilidade ou a insuficiência de conhecer o mundo pela
linguagem, pelos signos lingüísticos. Afirma que isso talvez se dê, porque a
significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação lingüística
38 Procurando definir o “significado de significado”, superar as relações dicotômicas entre significante e significado ou entre signo e realidade, Ogden e Richards (1956), entre as numerosas e variadas correntes lingüísticas e semiológicas empenhadas em situar o significado lingüístico no processo cognitivo, criaram o triângulo considerado “ovo de colombo” da semântica. Nesse, signo, significado e referente passaram a figurar numa relação triádica, esquematizado num triângulo que se tornou clássico na lingüística e semiologia (Blikstein, 1985).
67
com que o recortamos onde os significados vão sendo desenhados na própria
percepção/cognição da realidade.
Dicionarizado, sentido é significação, significado, acepção. Significado é
uma atribuição de sentido, uma referência, uma significação. É o dado a
entender, mostrado, traduzido, símbolo e/ou sinal ou representação de algo,
denotado. (Ferreira, 1999). Dicionarizado, sentido e significado tem a mesma
acepção, o mesmo entendimento, um é sinônimo do outro.
Se na Lingüística é uma questão semântica, na Semiologia, ciência das
linguagens sociais, significado diz respeito ao repertório que suporta um
repertório de significantes e para que uma linguagem social sirva eficazmente à
comunicação do sistema de formação de signos que a caracteriza deve
proceder de um código que seja o menos ambíguo possível, pois esta
ambigüidade afeta tanto os significantes quanto os significados.
Para a filosofia, “significar, significado significativo e assim por diante,
são ambíguas, dependem inteiramente das intenções dos falantes nos
proferimentos das frases” (Searle, 2000:130-131) e frases são instrumentos
para falar sendo o significado do proferimento do falante a noção primária de
significado. Para o autor, “a chave para a compreensão do significado é a
seguinte: o significado é uma forma de intencionalidade derivada”, ou seja, “a
intencionalidade do falante original ou intrínseca do pensamento do falante é
transferida para palavras, frases, marcas, símbolos e assim por diante e, se
pronunciadas de forma significativa, passam a ter uma intencionalidade
derivada do pensamento do falante, não tendo apenas um significado
lingüístico convencional, mas, também, um significado desejado pelo falante”.
Para o imaginário39 social, as significações imaginárias são muito caras,
preciosas. Há uma história disponível para as construções de sentido ao
entendimento da “presença epifânica da transcendência”, do “pensamento
indireto” e da “imaginação abrangente” (Comerlato, 1998:36-37). Segundo
estudiosos da teoria do Imaginário, a sociedade ocidental amarga o processo
de “desvalorização ontológica da imagem e psicológica da função da
imaginação” (Comelato,1998:36-37) desencadeando um processo de dogmas,
39 Etimologicamente, imaginação é solidária de imago, representação, imitação, reproduzir. À imaginação caberia imitar modelos exemplares – as Imagens; ele as reproduziria, as reatualizaria (Postic, 1993).
68
atuação do pensamento direto e da semiologia, mas, apesar disso, o simbólico
é utilizado pelo imaginário não somente para exprimir.
Na crise em que o pensamento racional contemporâneo está imerso
parece que vivemos uma fase de autorização da capacidade imaginante e da
categorização do Imaginário Social, como sistema que possibilita a coesão
social. Valeska Oliveira (1997) afirma que a autorização do pensamento
imaginário percorre a história do pensamento ocidental e localiza sua disputa
com o pensamento racional nos pré-socráticos, onde a “atualização do
pensamento racional e a potencialização da função imaginante” impuseram um
dualismo entre real e imaginário. O surgimento de uma outra fase em que o
imaginário passa por uma autorização é, segundo a autora, fruto “da
subversão” que caracteriza o fim do século XX. A fase de autorização do
Imaginário inicia com as desconfianças nas teorias mestras e produz uma
retomada de estudos acerca do “sistema de significações que toda sociedade
possui, cujos sentidos traduzem uma rede de sentidos que possibilitam a
coesão em torno da ordem/desordem vigente”, o que caracteriza o Imaginário
Social. Bachelard (1986) é indicado pela autora como o pioneiro desta fase de
autorização, pois introduz a discussão acerca de dois pólos irreconciliáveis,
dois regimes que regem o homem em sua busca por conhecer, explicar,
realizar: o regime diurno – onde o espírito científico garante a construção do
real -, e o regime noturno – onde o homem sonha o imaginário.
Outro pesquisador do imaginário que representa essa autorização é
Durand (1988) que, em sua abordagem, “toma da antropologia estrutural os
princípios da classificação que faz dos símbolos” (Valeska Oliveira, 1997:12),
buscando observar as imagens produzidas a partir de dois regimes do
simbolismo, o diurno e o noturno. Para Comerlato (1998:37), estudiosa do
autor, “a imaginação simbólica propriamente dita se configura quando o
significado não é mais absolutamente apresentável e o signo só pode referir-se
a um sentido, não a um objeto sensível”.
Castoriadis (1982) fala sobre a capacidade de criação histórica que
chama de “criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica
e psíquica) de figuras/formas/imagens” e afirma que o que conhecemos por
realidade e racionalidade são criações imaginárias. O imaginário, para o autor,
69
tem o poder de criar as instituições e suas funções, assim, o sentido atribuído é
uma mediação indeterminada, incessante, o instrumento para traduzir,
reconstruir e criar o real, tornando verdades temporárias as figuras, as formas e
as imagens que produzimos.
Para Postic (1993), a imaginação é uma atividade de reconstrução do
real, a partir dos significados que atribuímos aos acontecimentos ou das
repercussões que estes causam em nós e, a ela, imaginação, caberia
reatualizar modelos exemplares – as Imagens. Sentido, para o autor, depende
do lastro para suportar os acontecimentos e das possibilidades que, a partir
desses acontecimentos, se criam em nossa capacidade de imaginar, inventar,
re-significar.
Investigar os sentidos atribuídos à escola por mulheres com diferentes
graus de letramento é o desejo de expressar as singularidades e os
movimentos desencadeados a partir delas. Ao materializar sentidos atribuídos
acredito que as interlocutoras representam a disputa por instituir, “recriar o
mundo através de seus sonhos e de seu imaginário” (Eizirik in: Comerlato,
1998:16).
2.1 - Sentidos de escola
“Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais
para indicar coisas e idéias já existentes? As palavras se referem a significações,
inventam significações, criam significações”
(Chauí, 2001:148).
A dimensão simbólica oculta ou explicitada nas relações com o “real
imediato”, ainda é pouco explorada nos estudos educacionais. É a ótica do
imaginário, que se instaura como uma das possíveis análises a respeito dos
fenômenos sociais vividos, produzidos em redes. As relações simbólicas
mediatizam e, mais que isso, instituem novas formas de relações. Desvelar a
relação simbólica é “considerar os grupos sociais que nela interagem” e é
“fundamental para compreender a complexidade e a heterogeneidade das
relações intersubjetivas” (Valeska Oliveira, 1997:60).
70
Há uma pluralidade de linguagens que, via de regra, tem pouca
ressonância nos discursos autorizados na escola, linguagens que não estão
contemplados nas pautas das reuniões e nem nas trocas com a professora,
mas que estão nas demandas de mães e pais e nos desejos das crianças.
Decifrar essa pluralidade e reconhecê-la instituidora de novas relações com a
escola é possível através dos sentidos atribuídos pelos diferentes grupos que
com ela interagem.
O processo de simbolização ou o “conjunto de interpretações das
experiências individuais, vividas e construídas coletivamente” não é findo. Pelo
contrário, como processo, se constitui de uma gama de elementos fundantes
que são as “crenças e fantasias, desejos e necessidades, sonhos e interesses,
raciocínios e intuições” (Ferreira e Eizirik, 1994:7). A escola, embora produza
seus próprios bens de sentido, não fica à margem da produção de outros
sentidos que se materializam de diferentes formas, através das relações de
afirmação ou negação de projetos.
A linguagem é parte do universo simbólico criado como instância
intermediária, interdito40, na relação com o mundo e “o imaginário deve utilizar
o símbolo, não somente para exprimir-se, o que é óbvio, mas para existir, para
passar do virtual a qualquer coisa a mais” (Castoriadis, 1982:142).
Instituição criada historicamente com uma função social, a escola
simboliza e materializa um espaço público – para todos - e uma possibilidade
de acesso ao conhecimento. É vista como condição para ascender
socialmente, base para as oportunidades no mundo do trabalho e passaporte
para o respeito na sociedade. Na modernidade, a escola é o espaço dedicado
à educação formal, que inicia com o acesso à linguagem escrita e culmina com
a formação de um cidadão disciplinado.
A escolha do referencial imaginário para analisar os sentidos atribuídos
à escola, “personalizada em seus sujeitos”, encontra respaldo porque “a
dimensão simbólica nos revela uma face da escola em que estão contidos os
desejos, as expectativas, os sonhos, os mitos construídos em torno da
40 Para Cassirer (1994:50), o homem já não pode fugir a própria consecução. Não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana.
71
instituição, a partir dos sentidos e dos significados atribuídos” (Valeska Oliveira,
1997:66).
Historicamente no Brasil, tanto a sociedade como a escola, permitem de
si e do conhecimento representações41 que amalgamaram relações de saber e
de poder (Bourdieu,1989), relações estas amplamente denunciadas por
educadores e formadores de educadores.
Campo de meu interesse, as imagens instituídas na sociedade sobre a
escola são conhecidas na literatura a respeito e são representadas através da
luz, do esclarecimento, do lugar de prestígio social, do “caminho para se
chegar lá” e, não raro, estão materializadas nos discursos e nas práticas de
professores, em todos os níveis de ensino. De domínio do senso comum, ou
fazendo parte de projetos de sociedade, é esperado que a maioria das pessoas
credite à escola, a partir dessa imagem, o poder de alavancar projetos de vida
e possibilitar mobilidade social.
Pela incapacidade do projeto público das luzes42 no entanto, outras
imagens passaram a disputar a hegemonia da escola como escada para uma
vida mais sábia, materialmente confortável e politicamente justa oportunizando
que outros sentidos pudessem ser atribuídos à escola. Hoje, uma pirâmide,
onde muitos na base sustentam o conforto e a riqueza de quem está no ápice é
uma imagem amalgamada no imaginário popular acerca da sociedade,
representação essa construída não apenas por dados de realidade, mas,
fundamentalmente, pela teoria crítica moderna que tem origem na teoria
marxista, onde a sociedade é vista como uma totalidade possível de ser
conhecida (Boaventura Santos, 2000:26).
41 Em seu estudo sobre o imaginário de mulheres recicladoras Feitosa (2001:10) pergunta: “a quem podemos creditar a realidade e toda sua complexidade, que satisfaz a uns poucos e mobiliza muitos outros a instituírem outras realidades senão a nossa capacidade de desejar sempre? O que produz significado para nossas ações cotidianas senão imaginarmos que cada dia poderá ser diferente”? 42 Projeto público das luzes é aqui referenciado como o surgimento da escola para universalizar saberes e competências na modernidade. Incapacidade desse projeto é a não universalização da escola (no Brasil, em 2002, 61,9% da população com mais de 25 anos não tem o ensino fundamental completo (ZH, 2002). Para Resende (2002), apesar da presença, na literatura educacional, de uma gama de explicações como ‘ideologia do Dom’, níveis de prontidão, teoria da carência cultural, escola como AIE, a diversidade cultural e a discussão sobre a ortodoxia da escola, ainda não somos capazes de compreender, enfrentar e modificar o fracasso escolar.
72
A representação acerca da escola não saiu ilesa dessa análise sócio-
política e, na abordagem conhecida como reprodutivista43, que se disseminou
no Brasil nos anos 60 e 70, a escola deixou de ser o universo do possível para
se transformar em um aparato de Estado, imagem parcialmente conhecida
entre o senso comum e a mídia e profundamente documentada na literatura
educacional44. Imagens que intencionaram informar a respeito das relações
não naturais entre classe social e escola, origem social e sucesso escolar,
conhecimento e ignorância, agregadas, apresentam sombras (Mafessoli, 1984)
para a escola.
Uma outra imagem da escola passou, então, a ser revelada e, dessa
imagem multifacetada fazem parte o analfabeto como fenômeno social e
escolar, a exclusão via reprovações e repetências, a incompetência como
resultado do desinteresse, falta de formação e alienação dos professores; a
escola-prisão, lugar das conformidades do corpo e da mente e a imagem do
conhecimento como caminho para o mercado, entre outras. Escolarizar, por si
só, já não basta para uma sociedade que vulgarizou a imagem da escola: ainda
desejada, jamais cumprida. Por quê, para quê e para quem se faz a educação?
A quem interessa a ciência e a tecnologia? A serviço de quem está o saber? As
respostas a essas questões são as teses acerca de uma escola que, parece,
sempre teve uma intenção que, até então, estava obscurecida. Palavras como
desvelamento, ideologia e conscientização fazem parte deste período de
produção de respostas.
No embate das teorias para uma imagem de escola tão descolada da
instituída, todas as áreas do conhecimento buscaram legar enunciados que
explicassem o analfabetismo45 e o não-letramento46, dois fenômenos que ela
43 A reprodução é fundada na teoria marxista que afirma que a sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica, realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igreja, escola, meios de comunicação) configurando-se no espaço social onde as relações sociais são pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias (Chauí, 2001:410). 44 Fragmentos da literatura que aborda a escola brasileira como parte do aparato do Estado capitalista podem ser encontrados nas obras de Arroyo (1998), Buarque (1991), Craydi (1998), Di Piero (2000), Ferraro (1997), Ferreiro (2000), Freire (1987), Freitas (1989), Haddad (2000), Moll, (2000), Patto (1990), Soares (1988, 1999) e Torres (1999), entre outros. 45 Alfabetismo é estado ou qualidade de alfabetizado, estado ou condição de quem sabe ler e escrever, isto é, o estado ou condição de quem responde adequadamente as intensas demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita” (Soares, 1999:20).
73
insistentemente produzia. Assim, diferentes abordagens foram publicizadas.
Entre elas estão o olhar psicologicista para o qual o fracasso escolar está
vinculado às “diferenças individuais” na capacidade de aprender; a abordagem
biologicista em que a não aprendizagem é resultado de “disfunção biológica” ou
resultado de “processo de desnutrição”; a abordagem culturalista, onde o
fracasso escolar é produto de um “ambiente sócio-cultural desfavorecido, pobre
em situações de estimulação lingüística, cognitiva e psicomotora” (Moll,
2000:87). Agregada a esta abordagem, a contribuição da Lingüística foi basilar,
uma vez que o estudo das diferenças entre linguagem oral e escrita,
considerando a variedade lingüística prestigiada socialmente e as inúmeras
variedades praticadas efetivamente, além do conteúdo e das referências
implícitas nos textos didáticos escritos, permitiu perceber que a escola dificulta
e/ou impede a aquisição da língua de origem.
Outra contribuição importante para analisar a escola, considerando um
de seus produtos – o analfabetismo -, se encontra na obra de Paulo Freire
(1990), que afirma o processo de não-alfabetização como demonstração de
uma forma de resistência ou recusa dos dominados em abandonar as
variedades lingüísticas pelas quais têm organizado suas visões de mundo, pois
considera que a linguagem tem um enorme papel na construção da
subjetividade humana. Essa contribuição muda “o foco da exclusão passiva,
conformada e resignada das classes populares, para outro, que coloca em
evidência os sujeitos, suas atividades, mesmo que pela negação, em direção à
liberdade e à autonomia” (Comerlato, 1998).
Ainda uma análise dual que corrobora essa visão reprodutivista da
escola, a psicogênese da língua escrita (Ferreiro & Teberoski, 1985) forjou uma
imagem de conhecimento em que, de um lado estava quem tinha acesso a
uma escola repleta de recursos para interações intencionalizadas com os
signos lingüísticos, com muitas experiências de uso significativo da língua
escrita em seus mais diversos contextos e acesso a informantes da língua
necessários para o sujeito construir hipóteses a respeito desse objeto do
46 Letramento pode ser qualificado como "estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham em nossa vida” (Soares, 1999:44).
74
conhecimento e aprender e, no outro lado, todos os que a esses mecanismos
não tiveram acesso e, portanto, tornam-se impossibilitados de aprender.
Agregada a essa idéia, a convicção de que, uma vez disponibilizados todos os
mecanismos acima descritos, a qualquer um seria possível ingressar no mundo
letrado, fazendo dele sua conexão com os outros bens constituidores do
humano.
A responsabilidade na produção do analfabetismo e do não-letramento,
o “fracasso” da escola, trocou de lugar, de nome, de espaço, mas não deixou
de ser produzido. Na década de 90, uma intensiva produção teórica e
metodológica aporta nos cursos de formação de professores, combatendo as
explicações anteriores que, isoladas, explicam, mas não resolvem a questão
que mais agrega os educadores: a insistência com que o fenômeno se faz
presente no cotidiano brasileiro. Segundo Telma Weisz, “ninguém escapou do
banco dos réus: os alunos por serem subnutridos, carentes, deficientes. A
escola, por ser uma máquina de reprodução das relações de poder. O
professor, por ser mal pago, mal formado, incompetente” (in: Ferreiro, 2000:4).
Uma contribuição importante no sentido de reapresentar a escola e não
apenas denunciá-la foi elaborada pelos teóricos da resistência que defenderam
a tese de que um trabalho reflexivo e racionalizado dos processos de exclusão
poderia desvendar práticas e modificá-las, no sentido da construção de ações
transformadoras da realidade social. Nessa tese, a escola seria um lugar não
apenas de reprodução, mas, também de resistência (Giroux, 1986) aos
projetos hegemônicos.
Processo social potencializado pela escola, o analfabetismo e o não-
letramento dizem respeito ao que de mais profundamente temos produzido no
intuito de tornarmo-nos humanos: a linguagem. Para Maturana (1999) foi pela
linguagem que nosso cérebro se desenvolveu, é por “ações coordenadas
consensuais” que podemos conhecer e reconhecer na linguagem os elementos
que nos fizeram tantos tipos humanos, escritores do passado, imaginadores do
futuro.
Manifestação humana utilizada para revelar sentidos, a linguagem
possibilita a compreensão do que está instituído e da dimensão instituinte da
sociedade, mas nem sempre se dá a conhecer pela expressão oral ou escrita.
75
Ao acessar o conhecimento das formas criadas que fazem sentido, bem como
dos desejos, expectativas e sonhos latentes na perspectiva da imaginação
criadora, às vezes se utiliza de silêncios. Assim como nem todas as palavras
têm sentido e quem dá sentido aos discursos é nossa capacidade criadora, é
na teoria do imaginário que se encontram pistas para conhecer os sentidos
atribuídos à escola que, ilesos ou não, transgrediram os cânones.
A desconfiança com as teorias que contêm uma determinidade para o
humano, com projetos de sociedade, de educação e de escola que
desconsideram a capacidade criadora dos sujeitos históricos de instituírem as
suas próprias criações, os seus próprios sentimentos, sonhos e mitos, torna a
abordagem imaginária um porto. Temporário? Mesmo assim um porto.
Acredito, como Castoriadis (1982:13), que é possível atuar, via instituinte, o
que está sendo construído, rompendo com o instituído que tende a se arrastar,
a conservar, a permanecer. Imaginário é criação incessante, essencialmente
indeterminada social, histórica e psiquicamente, de figuras, formas, imagens,
linguagens, a partir das quais, é possível somente comunicar algumas coisas.
2.2 - Mulheres e sentidos de escola “Durante mucho tiempo
las mujeres quedaron abandonadas em la sombra de la historia.
Pero fue sobre todo el movimiento de las mujeres el que las ha llevajo al escenario de la historia,
com ciertos interrogantes acerca de su passado y de su futuro.
Lo que intentamos comprender es su lugar em la sociedad,
su condición, sus papeles y su poder, su silencio y su palabra”
(Duby e Perrot, 1993).
Durante muito tempo a história foi a história dos homens, tomados como
representantes da humanidade. Hoje não é mais possível descrever a
humanidade como sinônimo de homens e tampouco cair na tentação de
escrever uma história de mulheres, como se fossem ilhas. A abordagem que
tem refletido esse outro tempo diz respeito a introduzir as relações entre os
sexos ou uma “história dos gêneros” na escrita da história global. Para
76
Thébaud (1993:26) essa abordagem deve deixar explícito que “la relación entre
los sexos no es um hecho natural, sino uma interacción social construída e
incessantemente remodelada, consecuencia y al mismo tiempo motor de la
dinâmica social”.
A história do movimento de mulheres47 possibilitou abordagens que se
complexificaram a partir de diferentes teorias de compreensão das relações
humanas, tanto do ponto de vista da multiplicidade de entendimentos, como da
qualidade delas. No estudo que faz a respeito de gênero, raça e classe social
no currículo, Marie Jane Soares (1999) apresenta um inventário a respeito das
diferentes concepções que organizaram e representam o pensamento
feminista48, desde o pensamento liberal até o pensamento pós estruturalista.
Para a autora, “feminismo é um movimento plural, com posições e
questionamentos diferenciados, por vezes contraditórios, que pode defender,
tanto posturas conservadoras, quanto emancipatórias” (Soares, 1999:58).
Nas diferentes abordagens que produzem o que conhecemos como o
pensamento feminista, existem problematizações que são compartilhadas por
todos os feminismos que, segundo Marie Jane Soares (1999), é
“a preocupação com as questões que afetam as mulheres; o avanço dos interesses das mulheres; a conquista e transformação do espaço social e cultural; a centralidade conferida nas análises às dimensões da sexualidade e a reprodução no arranjo entre os sexos” (Marie Jane Soares:1999:77).
As relações de gênero49 têm recebido uma atenção especial de quem
estuda a subjetividade, o imaginário, as significações imaginárias e os sentidos
atribuídos. Parte dessa atenção foi conquistada pela predominância de
mulheres em algumas profissões, como o magistério e a enfermagem
representada na polêmica vinculação entre profissão e vocação,
desencadeando estudos que buscam evidenciar a “análise das relações entre
47 Para Duby e Perrot (1993:21) a história das mulheres é “uma historia de relaciones, que pone sobre el tapete la sociedad entera, que es historia de las relaciones entre los sexos y, em consecuencia, también historia de los hombres”. 48 Em seu estudo a autora aborda com profundidade o feminismo liberal, o socialista marxista, o radical, o culturalista, o pós-moderno e o feminismo negro. Aponta ainda, como informação, a existência, em formulações, do feminismo ecológico, psicanalítico, existencialista e pós-estruturalista (Soares, 1999). 49 Para Scott (1990:14), gênero é o elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e modo de dar significado às relações de poder”.
77
os sexos a partir de sistemas culturais, marcados pelo poder” (Pinto e
Miorando, 2000).
No ocidente, o século XX é pródigo em imagens de mulheres a serviço
do homem e da família, o respeitado dueto mãe-esposa sem profissão. Ideais
de aparência física inspirados nas estrelas de cinema e nas modelos de beleza
exigem das mulheres que sejam magras, desejáveis, rainhas do lar,
organizadoras do orçamento doméstico, mães atentas aos conselhos médicos
e psicológicos no trato da prole, caracterizando o domínio da imagem e da
psicologia. Para Thébaud (1993:25) “el siglo XX también es el siglo en el cual
las mujeres, cada vez más mujeres, toman la palabra y el control de sus
identidades visuales, subrayan las implicaciones políticas de la representación,
intentan romper los esteriotipos y proponen múltiples vias de realización
personal”.
As primeiras vagas para o sexo feminino no magistério primário foram
produzidas em meados do século XIX mas o acesso ao ensino superior, como
possibilidade de romper com a predominância da idéia de que a continuidade
da maternidade estaria sendo exercida no magistério, se deu apenas na
década de 40 do século passado. Os estudos indicam que, além do propalado
“fazer feminino”, a permissão para as mulheres exercerem uma atividade “com
crianças, em um ambiente não exposto aos perigos do mundo e protegido do
contato com estranhos, especialmente do sexo oposto”, era uma forma velada
de controlar a sexualidade feminina (Vânia Oliveira, 2000:162-163).
Nos últimos cem anos, no entanto, pode-se observar uma insistente
mudança nesse quadro, representado pela expansão da escolaridade,
variedade de profissões e acesso e permanência das mulheres na escola, em
diferentes carreiras, o que possibilitou, no imaginário social, um rompimento
com a expectativa de que mulheres desejassem apenas cursos impregnados
de conteúdos humanísticos que desembocassem “em profissões tipicamente
femininas” (Rosemberg, 1982:10). O que permite que o mito vocacional ainda
exista fortemente, porém, são as baixas remunerações que segregam as
mulheres à margem das decisões e do poder de negociação.
Para Pinto & Morando (2000:225), “fazer parte da sociedade é estar em
constante conflito com o que nos é imposto e com a nossa autonomia enquanto
78
produtores dessa mesma sociedade”. Assim, diante de um padrão cultural tão
impregnado na vida das mulheres que estão na escola, das que deixam seus
filhos nela e das que fazem dela seu meio de vida, será possível encontrar
outros sentidos sendo atribuídos à escola? E esses sentidos terão alguma
possibilidade de serem instituídos? Será na “autonomia dos sujeitos frente a
padrões culturais” que encontraremos o espaço para a instituição de novos
significados?
A origem desta pesquisa está localizada em minha prática pedagógica e
na incompletude das respostas que fui encontrando para o meu fazer enquanto
educadora, fundamentalmente no que diz respeito aos sentidos atribuídos ao
saber escolar. Não é um estudo a respeito das diferenças promovidas na vida
das pessoas a partir de seu gênero e nem uma análise do efeito de padrões
culturais sobre o feminino e o masculino atualmente. Se agrega ao desejo de
conhecer qual o sentido que atribuem à escola mulheres que romperam com
papéis sociais de inferioridade, piadas grosseiras, chavões que se perpetuam
inacreditavelmente, diferenças salariais aviltantes, crimes violentos e
hediondos em nome da passionalidade, o estupro e a morte como
responsabilidade pelo desejo despertado. Não se trata, no entanto, de assumir
o “discurso miserabilista de opressão” (Perrot, 1988:169) e sim evidenciar o
imaginário instituinte que permitiu saídas.
Partindo do sentido que atribuo à escola, a partir do universo simbólico,
político e material que me agrega e desagrega, acreditava poder evidenciar
diferentes sentidos atribuídos à escola e diferentes atitudes de instituição de
sentidos a partir de diferentes níveis de letramento. Inicialmente, não restrita a
depoimentos de mulheres, critérios como a responsabilidade histórica pela
educação dos filhos, expectativas de sucesso e redenção sobre eles jogadas,
frustração destas mesmas expectativas, busca intensa pelas instituições
públicas e por formas de organização para garantir direitos e, ainda, a
qualidade dos relatos de vida, tornaram a pesquisa um “campo minado” de
mulheres.
Muitas das mulheres que se tornaram interlocutoras, no entanto,
passaram a expressar uma atribuição de sentido elaborada ou herdada muito
anterior ao ingresso na escola e em qualquer relação de letramento, negando a
79
hipótese central de meu interesse de estudo. Decidi, então, investigar quais os
sentidos que mulheres atribuem à escola, para si e para os filhos que estudam
e imaginei que seria mais farta a resposta se ampliasse o grupo de
interlocutoras que ficou assim organizado: mulheres em processos iniciais de
escolarização; mulheres que voltaram à escola após a escolarização dos filhos
e mulheres que nunca saíram deixaram de estudar e/ou que trabalham com a
educação. A decisão por agregar ao grupo de interlocutoras mulheres com
diferentes graus de letramento foi, também, o desejo de conhecer se os
sentidos atribuídos à escola se diferenciam em mulheres que tiveram múltiplas
oportunidades de interagir com os saberes escolares, com o imaginário
instituído e com níveis de letramento.
Escolhidas as mulheres e indo novamente ao campo, os diferenciados
graus de letramento50 não confirmaram a maior de minhas hipóteses, tornando
obsoleto considerar o “grau de letramento” como critério para atribuir e instituir
sentido letrado51 à escola. Assim, aprendi a ouvir. O estudo então, se
transformou em evidenciar se, além de sentidos instituídos, há sentidos
instituintes nas atribuições de significados à escola.
A migração campo-cidade foi um elemento que, inesperado, agregou
qualidade e ofereceu contorno ao campo da pesquisa. A migração, no entanto,
não se restringe ao conceito clássico e se instituiu como um movimento
percorrido pelas mulheres desse estudo: grande parte delas trabalhou no
campo ou é filha de trabalhadores rurais; outras, oriundas de municípios
vizinhos, buscaram em Pelotas melhores oportunidades de vida e de estudo,
por si ou por influência de seus pais. Todas, invariavelmente, reconhecem na
cidade, as possibilidades de trabalho e cultura.
Houve, no entanto, um critério não fundado no racional e nem em uma
categoria a priori, que unificou essas mulheres e que as tornou interlocutoras: a
admiração que provocaram. Admiradas por me oferecerem o desassossego
50 “Graus de letramento” na literatura é abordado nas obras de Tfouni (1997), Kleiman (1999) e Soares (1999). 51 Sentido letrado à escola , segundo minha expectativa, seria desejar que, através da escola, os filhos buscassem, como portadores da "condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham em nossa vida” (Soares, 1999:44), um significado amplo da escolaridade não restrito ao suporte para a mobilidade social.
80
de verdades contrariadas – elemento fundamental para uma pesquisadora
interessada em realizar uma descrição densa – e, também, pelas
emocionantes histórias que foram tornando legítimas cada uma das palavras,
cada um dos sentidos atribuídos, em uma polifonia de silêncios barulhentos.
É dessa admiração que retiro o argumento mais contundente para incluí-
las como autoras de pensamentos, linguagens e ações que me permitiram
reavaliar meu projeto de tese, minha intenção de pesquisa, as conclusões que
possivelmente serão parciais, temporárias e frágeis. Escolher trinta mulheres,
em um universo de aproximadamente duzentas, foi um exercício de humildade
intelectual, de reconhecimento da parcialidade do conhecimento que construí
até hoje, de respeito à voz do outro, que desejo um “legítimo outro” (Maturana,
1999). Mas, fundamentalmente, deveu-se à inesgotável capacidade humana de
produzir e atribuir significados.
Para ouvi-las, elaborei roteiros de pesquisa e solicitei, de acordo com a
vontade de cada uma delas, que o respondessem. Entre elas, algumas que
ainda não sabiam escrever, outras que pouco escreveram, algumas que
quiseram falar. Além das escritas, entrevistei por duas vezes, no mínimo, cada
uma delas e, depois, transcrevi a conversa, transformando as declarações em
relatos de vida.
O diário de campo, que registra as trajetórias de vida resultou em
duzentas e trinta páginas, fruto de no mínimo uma, no máximo três horas de
entrevistas com cada uma das mulheres. Para cada hora de entrevista foram
necessárias quatro horas de degravação. Algumas informações dadas por elas
precisaram ser conferidas com parentes, vizinhos ou até filhos, pois, pelo
menos três delas se contradiziam freqüentemente. Minha hipótese para as
contradições expressadas se funda nas fortes emoções que viviam ao relatar
suas trajetórias, o que se pode observar, pela recorrência de expressões da
linguagem oral, silêncios, lágrimas, olhos mareados e algumas confusões de
papéis52. A materialização dessas emoções tornou-se, na maioria dos casos,
impossível de ser traduzida na linguagem escrita.
52 A mais impressionante delas aconteceu na entrevista da Mangueira, onde pai e marido eram, sistematicamente, “confundidos”. Ela se referia a “ele” em uma mesma informação onde os dois estavam presentes, necessitando de minha intervenção para saber de quem era, afinal que ela estava falando.
81
Outra hipótese a respeito das contradições expressadas se localiza na
literatura a respeito da relação entre letramento, cultura e modalidades de
pensamento. Essa relação é explorada por Oliveira (1989, 1992, 1995) a partir
dos estudos de Luria (1990) e tem como argumento central o não
desenvolvimento de algumas funções psicológicas superiores entre adultos
pouco escolarizados como, por exemplo, “operações deliberadas dos sujeitos
sobre suas próprias ações intelectuais” (Oliveira, 1995:52). Nessa abordagem,
é mais frágil ou inexiste “a consciência do sujeito a respeito de seus processos
de pensamento, a qual lhe permite descrever e explicar esses procedimentos a
outras pessoas” e envolve, também, “uma busca intencional de estratégias
adequadas a cada tarefa específica a partir da consciência de que há diversas
regras e princípios possíveis de serem utilizados na solução de problemas”
(Oliveira, 1995:152-153).
Ouvi-las mais de uma vez, esclarecer detalhes dos depoimentos e
buscar informações que não haviam sido reveladas, levou-me a reescrever o
intrumento de pesquisa algumas vezes. Foi um dos aprendizados. A
diversidade de suas histórias redesenhou o objeto da pesquisa e levou-me a
viver estas vidas com escola, em sonho ou na realidade, com muita
intensidade. Devo a estas mulheres este outro aprendizado. Outra “lição” e
antigo desejo que pôde ser parcialmente realizado, embora não se traduza, na
escrita foram os movimentos do trabalho intelectual que obriguei algumas de
minhas interlocutoras a viver. Ao questioná-las a respeito de contradições em
suas comunicações, olhar, voz, corpo e movimentos denunciaram a
necessidade de um outro quadro explicativo para o fenômeno que eu estava
interessada em evidenciar.
Estes procedimentos metodológicos foram tomando contorno durante a
investigação que, sim, tinha categorias a priori. A impossibilidade de essas
categorias serem tão amplas quanto as respostas originou a tese. Tenho a
convicção de que esta é uma aproximação ao problema, orientado por um
ponto de vista: um dos possíveis, porque temporário e parcial.
Mesmo assim, saía da entrevista convencida que era um e quando escutava o relato, recorrentemente, me convencia que era do outro.
82
Encontrei, no movimento provocado pela desacomodação, sentidos
sendo questionados, buscas até desesperadas por entender o que de “errado”
havia acontecido na materialização de expectativas. Minhas interlocutoras
exercitaram seus imaginários, ora aceitando as ordens inicialmente divulgadas
por elas mesmas, ora resistindo a estas e aos sentidos dados socialmente à
escola e ao ter sucesso nela53. Desconfio, pelos inúmeros depoimentos que
colhi, em outros encontros depois da escrita, que cada uma delas passou a
criar novas necessidades, atribuir novos sentidos aos que até então percebiam
como certo, desejado, esperado. Ingressaram, penso, na consciência do
desconhecido, do instável, também eles constituidores do sujeito.
Nessa pesquisa a “aventura do entendimento humano” foi vivida a partir
da consciência da insuficiência dos paradigmas tradicionais do pensamento e a
escolha da Etnometodologia para orientar o percurso investigativo se deu por
ser esta uma abordagem que intenta proporcionar ao investigador "a pesquisa
empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo
tempo realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões,
raciocinar" (Coulon, 1995:30).
A Etnometodologia é uma teoria originária do campo da Fenomenologia,
aplicada inicialmente a estudos e pesquisas da Sociologia e da Sociologia da
Educação, que se preocupam em conhecer como os atores sociais percebem e
interpretam o mundo, bem como estes atores constroem suas ações sociais
cotidianas; é uma metodologia que se preocupa em conhecer como sujeitos
constroem as ações cotidianas utilizando-se do conhecimento produzido no
senso comum, considerado o enraizamento dinâmico contido neste
conhecimento; buscando a apreensão e compreensão da vida social tal como
ela é. Procurei, através dos procedimentos etnometodológicos, apreender os
sentidos que mulheres atribuem à escola, e como, a partir da produção
imaginária, conformam e dão concreticidade aos projetos de escolarização dos
filhos.
53 O sentido atribuído à escola na literatura a respeito do letramento é o de lugar social onde o contato com o sistema de escrita e com a ciência enquanto modalidade de construção de conhecimento se dá de forma sistemática e intensa. Além disso, o conhecimento em si mesmo é o objeto privilegiado da ação dos sujeitos envolvidos, independentemente das ligações desse conhecimento com a vida imediata e com a experiência concreta dos sujeitos (Marta Kohl de Oliveira, 1995:156).
83
A aproximação, relação autorizada pela Etnografia54 instituiu-se pela
rejeição à postura científica convencional justificada pelo rigor metodológico e
pela objetividade e possibilitou-me uma defesa dos pesquisados através do
“levantar a voz e falar em nome dos sujeitos, como forma de conferir-lhes
poder ao conceder mais autoridade às vozes dos sujeitos” (Magalhães,
1995:204), instaurando no jogo pesquisador-pesquisado, uma defesa explícita
das interlocutoras da pesquisa. Assim, a escrita de trajetórias de vida tornou-se
uma fonte de saberes que pôde ser explorada e não apenas um adereço ao
tema da pesquisa ou uma possibilidade de comprovação dos pressupostos
teóricos e metodológicos. Através dessa escrita busquei conhecer os sentidos
atribuídos à escola e evidenciar os movimentos de instituição que, acredito,
fazem parte de uma disputa entre o sentido atribuído e materializado pela
sociedade, também ele múltiplo, ao que é da escola55 e os outros tantos,
atribuídos pelas pessoas que estão no entorno dessa escola.
A Etnografia, segundo Fonseca (1991) é um “encontro tenso entre a
perspectiva sociológica, que tende para a reificação do social, e o
individualismo metodológico, que tende para a sacralização do indivíduo”.
Através dos sentidos atribuídos à escola comunicados nas trajetórias de vida,
encontrei uma possibilidade de registrar os significados instituídos e os
instituintes. Nas experiências individuais que acredito serem vínculos únicos
com a escola via fazer social e representar/dizer social (Castoriadis,1982),
busquei compreender e reapresentar a dimensão social e histórica em cada
uma delas e os movimentos de alocação de sentido que, mesmo durante a
pesquisa aconteciam. Acredito que pude perceber, nesse movimento, a
“criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e
psíquica) de figuras/formas/imagens” das quais fala Castoriadis (1982) e
entender que o que conhecemos por realidade e racionalidade são criações
imaginárias, passíveis de movimento, constante, incessante.
54 Segundo Coulon (1995:85-92), a Etnometodologia deve se utilizar dos instrumentos de pesquisa da Etnografia, como por exemplo, a etnografia constitutiva (que tem como hipótese que as estruturas sociais são construções sociais) e o tracking ou “espreita” que caracteriza a atitude do pesquisador como um dos da comunidade, alguém que segue os passos de alguém. 55 Da escola são relações, saberes e poderes intituídos pela sociedade na qual ela se tornou importante. Há, para esa caracterização, alguns discursos disponíveis. O mais contundente é o da relação de um analfabeto com a sociedade letrada, que me tornou, por muitos anos, uma buscadora por instituir um outro sentido, também ele redentor, fundado nas possibilidades de disputa de significado.
84
Etnos, em grego, quer dizer povo, raça; graphein, escrita, registro.
Etnografia é escrever sobre um povo específico, sua origem, sua história, por
meio da observação direta. Compor, via história deste povo, a participação
única na humanidade. Neste caso, Etnografia ou Método Etnográfico é sempre
um tensionamento entre uma história de vida única e as outras tantas em seu
entorno. Cabe acrescentar que etnografia também é um movimento de
alocação de sentido ao que foi revelado e uma reapresentação da realidade,
tanto pelo pesquisado como pelo pesquisador que, nessa tese, chamo
interlocutoras. A possibilidade de trabalhar na produção/análise de relatos
autobiográficos ou histórias da vida escolar, “parece possuir como recurso
metodológico um potencial de compreensão bastante fecundo. Ao serem
trabalhados, esses relatos favorecem o redimensionamento das experiências
(...) e das trajetórias (...) e tendem a fazer com que se infiltrem na prática atual”
(Catani, 1997:18).
Acredito, assim como Catani, (1997:19) que “o reconhecimento das
potencialidades educativas do trabalho com os relatos (...) apoia-se na idéia de
que a espécie de reflexão favorecida pela reconstituição da história individual
de relações e experiências com o conhecimento, a escola, a leitura e a escrita
permitem reinterpretações férteis de si próprio, (...) o que as tornaria
instrumentos de reconstrução da identidade e não apenas relatos factuais”.
Esse movimento, de um olhar singularmente expressado considerado em
relação, ampliou a possibilidade da análise, criou pontes, projetou sentidos,
derrubou marcos.
Na interação com as interlocutoras, aqui uma ampliação do papel de
“sujeito de pesquisa”, a intenção primeira foi compreender o que estava sendo dito, a partir da premissa de que havia universos simbólicos em
contato: o da pesquisada e o da pesquisadora. A intenção segunda foi
categorizar os sentidos atribuídos a partir do aprofundamento nos dados
oferecidos pelo campo. A terceira, evidenciar rupturas com um imaginário
instituído e reconhecer possibilidades instituidoras de novos significados
para a escola.
85
2. Trajetos e trajetórias
“Antes de ser atrativo, a cidade é necessidade.
Os migrantes, que são essencialmente gente do campo,
vêm a ela primeiro para procurar trabalho, para viver melhor,
o que comporta também a busca do prazer” (Perrot, 1998:16)
Nenhuma cidade é impune ao seu passado. Num país de tantas
diversidades culturais, cada recanto de seu território guarda um pedacinho da
história de 500 anos. Pelotas, sul do Rio Grande do Sul, não poderia ser
diferente: berço cultural e econômico do Rio Grande do Sul, se encontra
economicamente decadente, culturalmente pobre e fragilizada em sua auto-
estima, embora tenha sido conhecida por títulos vinculados a seu processo de
desenvolvimento.
Princesa do Sul e Atenas do Rio Grande são denominações que indicam
a importância no contexto econômico do Rio Grande do Sul no final do século
XIX e peculiaridades culturais diferenciadas em relação a outras cidades do
Estado. Originou-se nas charqueadas num momento em que predominava a
criação extensiva do gado e, pela sua posição geográfica às margens do rio
São Gonçalo e seus afluentes (Arroio Pelotas, Arroio Santa Bárbara e Arroio
Moreira), Pelotas permitiu o desenvolvimento desta indústria, que teve a
opulência econômica entre 1860 e 1890. De produção sazonal e mão de obra
predominantemente escrava, a produção de charque era um negócio rentável.
Além de alimentação básica de senhores e escravos, as charqueadas
pelotenses abasteciam o centro e o norte do país, o que permitiu uma
imagem56 de centro cultural desenvolvido, o que incluía o envio de filhos das
famílias abastadas à Europa, no final do século XIX e início do XX.
56 Como centro cultural Pelotas tem uma história peculiar, estudada, inclusive, em teses acadêmicas. Uma delas, “O imaginário social de pessoas descendentes de famílias tradicionais de Pelotas”, aborda o impacto que ainda hoje tem sobre estes descendentes o fato de ancestrais terem recebido títulos de nobreza da coroa portuguesa quando de sua estada no Brasil – Império - e o sentimento de estar acima das classes populares e da acumulação econômica, derivados destas distinções (Moreira dos Santos, 2000).
86
O processo de ocupação territorial aconteceu sob o regime de
Sesmarias, isto é, da repartição da terra em imensos latifúndios, alguns
explorados pelos agraciados originais, outros transferidos em sua totalidade e,
ainda outros, alienados em múltiplas frações. Apesar do fracionamento, o
município ainda conta com latifúndios originários das antigas sesmarias.
(Lucas, 1999:74). Para Andrade (2000:12), a região sul constituiu-se, desde a
sua formação, aos moldes da economia agropecuária, como subsidiária da
agro-exportação, voltada para o abastecimento do mercado interno brasileiro,
conhecida pelo cognome de “celeiro do país”.
Passado de intensa produção econômica e cultural que a faz ser, ainda,
uma referência na música e na literatura, o seu presente é marcado por um
sentimento que está alicerçado em dados mas não apenas neles. A
decadência econômica57 pode ser entendida como fruto de uma divisão do
campo e da cidade (o mundo rural e urbano) onde estancieiros, charqueadores,
latifundiários e industriários – representantes da concentração de riquezas –
não souberam ou não desejaram democratizar o aceso à terra, à escola, ao
trabalho e à renda, resultando em uma sociedade onde uns tem muito e a
maioria esmagadora vive à margem58. A pacata convivência com a poluição da
Lagoa dos Patos59, a restrita área verde na cidade, o abandono de bairros da
periferia à própria sorte, o alto índice de analfabetismo entre jovens e adultos e
a facilidade com que a cultura da reprovação é perpetuada nas escolas são
alguns dos indicativos de que algo mais que a economia vai mal em Pelotas.
Terceira maior cidade do Rio Grande do Sul em população60 e sétima
em renda, Pelotas tem uma rede de ensino público municipal61 que atende a,
57 Há muita divergência acerca das causas da derrocada econômica da região sul do RS. Especificamente em Pelotas, a partir de incentivos fiscais à indústria do pêssego, criou-se nos anos 60, 70 e 80, uma nova pujança, conectada com a industrialização no restante do Brasil. Diferentemente de cidades pólo como Porto Alegre e Caxias do Sul, no entanto, essa indústria praticamente desapareceu, mergulhando a região em um outro ciclo de pobreza. 58 Segundo Martins (1973) na transição da sociedade agrária para a industrial capitalista dependente que ocorre no processo de industrialização e urbanização brasileira, as cidades se tornaram objetos de investimento de capital passando o mundo rural a um segundo plano. O que se pode observar neste movimento, em Pelotas, é uma contradição profunda, uma vez que a riqueza continuou vinculada ao latifúndio pela propriedade das terras e a produção urbanizou-se baseada nos pequenos produtores que, ao longo de poucos anos, foram massacrados pelas políticas das indústrias e do poder público. 59 Pelotas é banhada pela Lagoa dos Patos, a maior em extensão no mundo. Poderia vir a ser um pólo turístico pela beleza, 60 323 mil pessoas / 219 mil eleitores segundo o Censo do IBGE 1991. Destas, estavam ocupadas, 55.404 pessoas e ocupados assalariados 41.193 pessoas.
87
aproximadamente, 25 mil alunos, sendo que o município é responsável por
46,87% dos alunos da zona urbana e 83,14% da zona rural. Contraditoriamente
à oferta de ensino fundamental (98,29% de escolarização na população de 7 a
14 anos em 1990), a cidade encontra-se em 183° lugar no quadro do
analfabetismo no Rio Grande do Sul ou 8,9% de analfabetismo entre pessoas
de 11 a 14 anos62.
Com oferta de formação acadêmica em todos os níveis63, é a “capital da
metade sul”, e teve sua economia baseada na produção de charque64 e arroz
em latifúndios65, inicialmente, e na indústria conserveira minifundiária (pêssego,
morango, aspargo, milho, figo e pepino) em meados do século passado.
Conhecida como capital nacional do doce, é o “maior centro geo-econômico66
da região sul do Estado, exercendo influência sobre um universo de 1,2 milhão
de pessoas em 19 municípios, com um potencial de consumo de serviços que
supera algumas capitais brasileiras” segundo dados oferecidos pela UFPel67. A
época de ouro vivida pela indústria conserveira68, caracterizada por emprego
amplo69, remuneração digna e promessa de futuro melhor, se existiu, está
longe de voltar.
61 Em todo o município, segundo o IBGE, encontram-se 235 estabelecimentos públicos e privados de ensino com 55.738 matrículas no Fundamental e 18.626 no Ensino Médio. Fonte www.ibge.gov.br 62 Fonte: IBGE / UNICEF. Crianças e adolescentes: Indicadores sociais do Rio Grande do Sul -1991 63 A UFPel tem atualmente 9 mil acadêmicos distribuídos entre seus 36 cursos de graduação, 9 Doutorados e 13 Mestrados. (Fonte: site da UFPel). Já a UCPel, com 6.800 alunos, possui três mestrados, dois doutorados e 25 cursos de graduação. (Fonte: site da UCPel). 64 Segundo diversos estudos, embora fortemente produtiva no final do império, a cultura do charque enfrentou diversos momentos de crise que a lErva-Materam à estagnação, substituição e derrocada. Entre eles, a abolição da escravatura, as revoluções rio-grandenses de 1893 e 1923, o desenvolvimento de charqueadas em outras regiões, o advento dos frigoríficos e a expansão econômica da região norte do estado, com a vinda dos imigrantes europeus (Brião, 1997). 65 O escravo negro estabeleceu-se nos atuais territórios com o início da produção do charque a nível industrial (1780) e Pelotas além de centro charqueador gaúcho tornou-se um grande polo escravista (Mello, 1994). Segundo Varoto & Soares (1988), em 1814 “era de homens de cor quase a metade da população de Pelotas”. 66 A estrutura fundiária pelotense, em 1996, era: 92,81% dos proprietários detém propriedades de menos um até 50 ha enquanto que os 7,18% restantes detém de 50 até mais de 10.000 há. Pelotas possui 6 hospitais, um comércio variado, duas Universidades e uma rede de ensino fundamental e médio importante, para onde acorrem, de todas as regiões, milhares de pessoas, dando forma ao processo conhecido como migração ou êxodo rural. IBGE, 1991. 67 www.ufple.tche.br 68 A região já possuiu 56 indústrias no setor, hoje só 14 funcionam. O setor está 60% ocioso e empregava, em 1980, 4.500 trabalhadores fixos e 17 mil safristas. Em 1994, 730 fixos e 3.100 safristas. Há culturas em decadência, como o aspargo cujo fim já foi decretado (Gonçalves, 1999). 69 A indústria conserveira tinha, em 1980, 14.300 produtores e em 1994 apenas 4.280 continuavam produzindo. Em 1980 produzia 40 milhões de latas de pêssego (a metada da demanda nacional em 1998) sendo que hoje apenas 17 milhões (Gonçalves, 1999).
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A concentração de renda no município é, segundo recentes indicadores
sociais (UCPel,1999)70 muito extremada, sendo considerados ricos em torno de
seis mil pessoas ou 2% da população. Entre os excluídos, milhares de
analfabetos71. Às causas econômicas do declínio é possível agregar
explicações que, para Pierre Moreira Santos (2000:46), incluem um mergulho
no imaginário das famílias ditas tradicionais, que surgiram com a distribuição
de títulos nobiliárquicos. Nobreza originada na troca de favores com a corte, de
caráter capitalista, a riqueza econômica provinda da indústria saladeril
proporcionou oportunidades de uma cultura mais urbanizada, representada no
cultivo das artes, literatura, teatro e música. Segundo o autor, a crença na
própria nobreza está situada no imaginário das pessoas que dela fazem parte,
pois não há existência legal da nobreza brasileira: restringe-se a uma
construção imaginária materializada em valores, comportamentos, formas de
falar e se relacionar uma vez que, com o fim do império, essas famílias
perderam a referência.
Tradição antiga, a oferta de rede escolar pelo Município, tanto na zona
rural como urbana, datam das primeiras décadas do século XX (Dall’Igna,
1992:188). Apesar disso, são conhecidos os locais onde essa escola é
abundantemente excludente, com reprovações em massa e pouca
aprendizagem entre as crianças que permanecem nela. A formação dos
professores que atuam no ensino fundamental é frágil72 para um município que
tem escolas funcionando desde 1845. Perguntados73 a respeito da importância
da escola para a sociedade, professores da rede elencaram desde a
expectativa de ascensão social até a promoção da cidadania como funções da
70 Indicadores que fazem referência a bens, PIB per capita, consumo de energia elétrica, estabelecimentos agro-pecuários, estabelecimentos industriais, estabelecimentos comerciais, indicadores sociais como saneamento básico, habitação, educação, nascimentos, gravidez na adolescência extraídos do Banco de dados da zona sul – RS. Boletim informativo UCPel (10/1999). 71 Com uma média de 13% da população de 14 anos ou mais considerada analfabeta, recentemente Pelotas figurou na imprensa como a cidade do RS com o maior número de eleitores analfabetos. (IBGE, 2002). 72 A partir de 1995, iniciou-se um processo de qualificação em serviço (Programa Especial de Formação de Professores em Serviço e Curso de Leigos) para professores que atuavam nas escolas públicas municipais e estaduais da zona sul. Com aproximadamente 100 professores ingressando por ano, em 2002, 580 estarão qualificados. (Fonte: FaE/Upel, 2002). 73 Pesquisa realizada em 1998 na disciplina de Alfabetização/Curso de Pedagogia/Faculdade de Educação da UFPel. Consistiu em entrevistas semi-estruturadas a 42 professoras alfabetizadoras sobre: alfabetização, cultura popular, livro didático, papel do professor, processo de aprendizagem, método de ensino e relação entre conteúdo escolar e realidade social. Estas professoras foram observadas em sala de aula e seus livros didáticos estudados na Universidade. Rosa, 2000b.
89
escola. Confrontados com os indicadores da reprovação e Erva-Matesão, não
conseguiram fugir das explicações clássicas que coloca ou nos pais, ou no
aluno, ou ainda no “sistema” a responsabilidade pelo fenômeno da exclusão
escolar, ou seja, a escola, através de seus professores, não se responsabiliza
pelo fenômeno da não aprendizagem de suas crianças e participa, desse
modo, de um fenômeno mais recentemente detectado: mesmo os que são
aprovados, na maioria das escolas, não se tornam letrados74.
Nas escolas municipais de Pelotas, o tempo destinado à escolarização
para alcançar a alfabetização é longo, aproximadamente quatro anos para que
91,5% da população de sete a dez seja considerada alfabetizada. A
expectativa é de que apenas 58,8% das crianças que ingressam na escola aos
sete anos sejam aprovadas para a segunda série (Vaz Dias,1993:186). Em
uma análise comparativa com outros municípios do Rio Grande do Sul, que
têm apresentado uma antecipação na condição de alfabetizados (crianças
aprendendo a ler aos 5 anos), os dados assumem uma maior importância.
A convicção de que a alfabetização de adultos envolve questões
peculiares que a distinguem da alfabetização da criança, tais como estudos
estatísticos do analfabetismo no País, determinantes sociais, culturais,
econômicos do analfabetismo, problemas cognitivos do adulto na
aprendizagem da língua escrita, definição de métodos e procedimentos de
alfabetização, relações entre aquisição da língua escrita e inserção no mundo
do trabalho; ideologias e políticas de campanhas de alfabetização, entre outras
(Soares, 1989:15), tem feito com que educadores estudem o fenômeno do
analfabetismo separadamente dos outros temas escolares. No entanto, o
vínculo que podemos estabelecer entre e escola e produção do analfabetismo
e não letramento se dá, na medida em que, o analfabeto jovem e adulto deste
início de século, dispõe de um imaginário a respeito da escola, fruto do projeto
das luzes, ao mesmo tempo, que tem gravado na sua história pessoal, uma
passagem de fracasso por ela.
74 Essa conclusão é fruto de empirismo, uma tendência de pesquisa, uma vez que ainda não houve apreensão a respeito de graus de letramento. É baseada em observações que venho realizando e pequenos ensaios de pesquisa com acadêmicos, professores, e escolas na área da produção de textos e de conhecimento da literatura (ler e gostar de ler).
90
Ao buscar circunscrever a “geografia” dessa pesquisa, localizá-la
espacialmente, percebi que nas trajetórias de vida das mulheres interlocutoras
havia marcas dos movimentos sociais ocorridos no sul do Brasil, mais
especificamente no caminho da industrialização e urbanização da região.
No Brasil como um todo, as lutas sociais no campo75, ocorridas no
período de 1954-1964 não fazem parte das memórias de nenhuma das
interlocutoras, que assim que puderam, abandonaram o campo em busca de
melhores condições de vida, como ilustra o depoimento da Margarida:
“Nasci em Canguçu, interior da zona sul onde se planta muita fruta e tudo de lavora. Ali eu estudei até a quinta série, vim prá Pelotas prá trabalhá nas indústrias do doce como safrista. Eu comecei a trabalhá com quartorze anos, foi minha primeira assinatura de carteira, em indústria de conservas, como safrista” (Margarida, 42 anos, 2002).
Amplamente estudada na Sociologia, a Migração é um fenômeno
complexo de constituição de um Brasil urbano que aporta nas cidades uma
“mão-de-obra sem ocupação produtiva nos novos setores que estavam sendo
criados pela industrialização substitutiva de importações”, oriunda de uma
“capacidade ociosa nos campos”, a partir “de terras que não eram mais
necessárias à produção” (Soto, 2002:276).
Há, na sociologia, um confronto de interpretações a respeito da questão
agrária no Brasil que acontece “no contexto das transformações das relações
sociais no campo, isto é, do desenvolvimento do capitalismo” onde a
“industrialização da agricultura e a urbanização são dois elementos
fundamentais no quadro histórico das transformações” que se expressa, “na
constituição dos complexos agro-industriais e na adoção por segmentos
importantes da população rural de valores e idéias76 da sociedade urbana”
(Soto, 2002:42). Um dos valores da sociedade urbana, a escola faz parte do
desejo de todas as mulheres do estudo e de algumas famílias delas,
75 Segundo Soto (2002:59) “as ligas camponesas aglutinavam um conjunto variado de grupos sociais (perceiros, meeiros, arrendatários, moradores e assalariados) que lutavam por melhores condições de trabalho e de vida: salários e terras para cultivo”. 76 Um dos valores e idéias da sociedade urbana, a escola, é amplamente desejada e fundamental para a nova colocação da mão de obra que chega às cidades. Não há trabalho para quem tem apenas conhecimentos do mundo rural para “vender” na cidade.
91
caracterizando um duplo engendramento de sentidos: o que foi herdado, como
projeto de vida no qual a escola é um degrau para a ascensão social e o que
foi construído, no qual a escola ultrapassa o instituído socialmente, restrito à
funcionalidade instrumental de escola, ingressando na atribuição de sentido
que caracteriza o imaginário instituinte.
Segundo Dos Anjos (2002), que estuda o agrário e o urbano na região
sul do Brasil, o movimento do campo para a cidade ocorre, fundamentalmente,
através das mulheres em busca de educação e saúde para os filhos,
ocasionando um fenômeno, na zona rural, que ele detecta como a
masculinização e o envelhecimento da população. Esse argumento é reiterado
pela ampla maioria das trajetórias aqui relatadas: dezoito das mulheres
deixaram para trás o campo abandonando maridos, pais e irmãos em busca da
escola e do trabalho. Em alguns casos, o deixar para trás não significou que a
relação com o campo foi mantida pelo homem e sim que houve, também, um
rompimento com esse homem, oportunizando o surgimento de famílias
matriarcais a partir daquele rompimento.
O fenômeno da migração rural-urbano marca a história da
industrialização e urbanização do Brasil a partir da metade do século XX e
caracteriza grande parte das histórias das mulheres dessa tese, impedidas de
realizar, para si, o desejo de escola. Impedidas de sair do lugar onde moravam
– os grotões sem estradas e sem transporte – e, em alguns casos impedidas
por projetos familiares que não vislumbravam e nem proporcionavam a
escolarização, a dor de não ir à escola marcou profundamente um significativo
grupo. Infância iniciada no campo ou perto dele, com escola distante ou
relativizadas na família pela necessidade de dividir com os adultos o sustento
da casa, muitas mulheres ficaram ao largo dos ensinamentos do ler e escrever
quando pequenas, como afirma a Mangueira:
“Eu nunca fui na escola, nós morava longe e o pai não quis que nós fosse porque a escola ficava longe, aí a dificuldade de nóis í e o pai não quiz dexá nóis estudá porque ficava longe, precisava de nóis trabaiá, precisava do serviço na lavora, aí ele não dexô. Nóis era seis, o mais velho eu nem sei se ele aprendeu, acho que depois de muitos ano, ele não sabia nem contá os dedo dos pé e das mão, eu aprendi
92
com o pai, o pai ensinô a contá e eu aprendi a contá, mexê em dinhero. Quem aprendeu mais foi eu. A outra, a irmã mais velha também não aprendeu, só depois de muitos ano, já casada eu acho que ela aprendeu, nunca foi na escola. Eu sabia que tinha escola, porque os otros iam, as otra crianças, sabia que tinha, mas ele não dexava, eu tinha vontade, mas ele não dexava. As otra iam prá escola prá aprendê, e nóis só trabaio na lavora. Aprendiam a lê e escrevê” (Mangueira, 61, 2002).
A contradição entre o desejo e a realidade só pode ser minimizada com
o ingresso na escola em idade avançada, em busca dos significados que foram
alocados na escola naquela época ou em busca de escolarização dos filhos,
um novo sentido que amplia o sentido originalmente atribuído, impulsionando
famílias inteiras a se deslocarem do campo para a cidade. O desejo de
escolarizar-se, permaneceu intacto, na maioria dos casos, levando parte delas
a buscar a escola depois que os filhos já tinham se tornado adultos, por
diferentes motivos, lugar do instituinte.
Herança advinda das famílias que originaram as interlocutoras, a
diferença no tratamento dado a filhos homens e filhas mulheres quando da
escolarização, foi bastante considerado por elas. Diferentes relatos informam
que, quando precisavam optar, os progenitores escolhiam os filhos homens
para ingressar ou dar continuidade aos estudos, mesmo quando estes eram
mais jovens. A diferença entre o proporcionado para mulheres e homens, em
famílias que poderiam romper economicamente com a impossibilidade de
estudar, por exemplo, indica o aporte cultural de gênero das famílias
patriarcais, elemento que aparece em diferentes histórias.
Outro elemento característico do sul do Rio Grande do Sul, o escravismo
marca um significativo grupo das interlocutoras e é evidenciado nesse estudo,
por impedimentos no caminho da escolarização via manutenção de relações de
escravidão, mesmo em famílias urbanas. Abandonada pelo provedor, a família
de Gardênia utiliza um expediente conhecido e colocado em prática pela avó: o
emprego das filhas em “casas de família”, em troca de comida e roupa, como
relembra a interlocutora:
93
“No tempo que a vó era viva, a vó dava, assim, emprestava as filha, a mãe trabalhava, a mãe vinha só de vez em quando visitá a família, vê a vó, vê o vô, todas foram assim, todas as ermã da mãe era assim. Tem a Neusa, a Carla, a Iara, a Marlene e mais uma que morreu e mais dois ermão, o Beto e o Sérgio, e com ela dava oito, todos eram empregado, os mais novo ficavam” (Gardênia, 29 anos, 2002).
Sem opções para alimentar todos, a mãe empreende a alternativa típica
de uma região onde a cultura escravista ainda estava em alta e que é
registrada pela Gardênia ao falar da irmã:
“Ela trabalhô desde os doze anos numa casa, era um lugar prá fora, vinha visitá uns dois, treis dia e ia de novo. Quando ela completou dezessete anos: ‘Não, não quero mais ficá, eu não saio, não faço nada, fico só presa dentro de casa’. Claro, né, passô só trabaiando! A mulé quiria ficá com ela mas aí ela não teria nem casado!” (Gardênia, 29 anos, 2002).
O fenômeno da continuidade da escravidão, em outros moldes, foi
registrado por Dalla Vechia (1996) em sua tese de doutorado, na qual o autor
analisa a vida de filhos de escravos que, frutos da lei do “Ventre Livre”, eram
nominados filhos de criação mas tiveram uma vida tão escrava quanto seus
pais por inúmeros condições, uma delas, a impossibilidade de capital para
aquisição de terras. Com a “Lei de terras” (Soto, 2002) implementada no Brasil
em 1850, decretando o fim das doações de lotes e aquisição apenas pela
compra além da proibição do tráfego negreiro, as terras tiveram uma
valorização extremada, impedindo que os recém libertos pudessem tornar-se
proprietários. O que se viu a partir disso, aqui na região sul do RS, foi uma vida
de escravos (sem direitos, sem leis trabalhistas, sob tutela das senhoras e dos
senhores) para homens e mulheres “livres”. Para mulheres que estavam na
zona rural como a Cedro (57 anos), a Centeio (65 anos), a Cerejeira (75 anos),
a Erva-Cidreira (62 anos), a Mandacaru (55 anos), a Mangueira (61 anos), a
Romã (72 anos) e a Sisal (62 anos), há aproximadamente cinqüenta anos
atrás, os resquícios dessa época foram fortes e mesmo para mulheres que
94
estavam na cidade, o empregar-se nas casas de campanha era uma
possibilidade.
Filha de uma filha de criação77 e único caso entre as interlocutoras
desse estudo, a Erva-Mate (42 anos) sofreu com mais intensidade os efeitos
dessa época, caracterizada na literatura como transição entre a escravatura e a
vida livre, uma vida extremamente limitada que se transformou apenas quando
chega à cidade, analfabeta, em busca de trabalho. A escola deixou de ser
objeto de desejo para si mas o sucesso da filha na escola é projeto prioritário.
A migração, nessa tese, não é apenas um movimento campo-cidade. É
também um caminho percorrido pelas famílias que, sem escola, aportam nela
um sentido ainda não experimentado, mas amplamente desejado: um futuro
melhor. Com informações que atribuíam à escola a possibilidade de um lugar
social importante, empregavam esforços para que os filhos tivessem acesso a
esse mundo, como ressalta a Madressilva em seu depoimento: “Eles não sabiam valorizá os saberes da escola, eles sabiam que a escola, um dia se podia ficá doutor e meu pai trabalhava dia e noite se fosse preciso, nunca me faltou um livro prá lê, nunca faltou um material, comida e a roupa simples, ele dizia que a cultura de um povo entra pela boca - a saúde - e pela escola que as pessoas aprendem, mas ele não se enchergava ali porque ele tinha uma vivência de escola pequena, quatro meses e era órfão” (Madressilva, 45 anos, 2002).
A partir da observação dessas memórias, pude perceber que os trajetos
geográficos encontrados nas trajetórias das mulheres dessa tese são
movimentos de duas envergaduras: a espacial, realizada efetivamente pela
migração campo-cidade; e a de sentido, realizada por dois aportes
diferenciados, um deles o discurso herdado que se amplifica; o outro, um
projeto engendrado, mesmo não materializado para si mas reapresentado para
os descendentes. No vínculo com os valores da cidade e as novas demandas
que essa vida exerce sobre o imaginário das mulheres, são esses dois
movimentos, concomitantes, que reconfiguram as outras atribuições de sentido
à escola.
77 Analfabeta, a mãe da Erva-Mate ajudava as crianças filhos dos patrões a fazer as tarefas escolares, costurava suas roupas à mão e, primeira a acordar, não tinha hora para dormir no chão, ao lado das
95
Quando menina momentos felizes brincadeiras
festas comemorativas teatro, dança, encenações.
felicidade e prazer intenso! O tempo foi e mocinha fui.
E a escola? Ah, estudo, brincadeiras nem! Tudo para o vestibular.
Entre estágio e o emprego, lá se foi um sonho
vestibular para trás! Anos passaram ...
E o sonho acordou! Classifiquei!
Minha mãezinha abraçou . Meu amor beijou.
Estou aqui conquistando pessoal, intelectual.
Escola, muito mais que lições escritas: vida, paixão!
(Cristina Pereira, 2002).
3. Sentidos atribuídos:
crianças. Ainda viva, contou-me essa história quando a visitei afirmando que não guarda mágoas da família, reservando às crianças que ela cuidou, um tratamento de irmãos.
96
o Elogio da Escola
97
O lugar ocupado pela escola na vida das interlocutoras desse estudo
está situado em um magma de significações (Castotriadis, 1982) que pode ser
traduzido por multiplicidade de significações, “uma reunião infinitamente
confusa de tecidos conjuntivos, feitos de materiais diferentes e no entanto
homogêneos, toda constelada de singularidades virtuais e evanescentes”. Para
o autor, o que transforma ou atualiza essas singularidades é a lógica identitária,
ou seja, as simultâneas relações determinadas e determinantes de
pertencimento.
Esse magma de significações está ancorado na produção simbólica
herdada que, reatualizada e resignificada, passa a fazer parte do capital
cultural a ser legado. Lugar de acesso a uma profissão, de relações de saber,
espaço de pertencimento, caminho para os projetos de vida, o sentido atribuído
é movimento. Na análise de como se apresentam, os discursos são apenas
pistas, indícios que anunciam possibilidades de compreender as relações com
a escola.
Reapresentados, reatualizados e resignificados, os sentidos atribuídos à
escola pelas interlocutoras se organizaram em dois grupos: o sentido para si, reapresentado através do percurso pela memória, desde a mais tenra idade e
amalgamdo por vínculos com as informações culturais herdadas; e o sentido
para os filhos, alicerçada nas atitudes, projetos, sonhos legados e
materializados por elas para os herdeiros. Nesses dois grupos de atribuições
de sentido, muita coisa permanece intacta, outras se refazem, se instauram.
São sentidos complementares que refletem diferenças culturais, de renda e de
oportunidades mas, fundamentalmente, oportunizam perceber que o acesso ao
universo da escola, aos seus saberes e ao significado a ela atribuído
socialmente é por si mesmo atribuidor de sentido.
O capital cultural que origina as atribuições de sentido à escola e ao
escolar, tanto as herdadas como as legadas, está inscrito nos "mecanismos
pelos quais a estrutura das relações de classe tende a se reproduzir,
reproduzindo os habitus que a reproduzem" segundo Bourdieu (1982). Ao
pesquisar os processos de transmissão e herança do capital escolar e cultural
em favor dos setores de classe favorecidos pelo sistema de ensino francês,
Bourdieu (1982) buscou compreender a lógica pela qual o sistema das
98
determinações ligadas à condição de classe opera ao longo da carreira escolar
e, nesse universo investigativo produziu as categorias capital cultural e capital
escolar, fundamentais para a compreensão dos depoimentos de minhas
interlocutoras.
Uma vez que a escola seleciona, autoriza e atualiza valores escolares,
capital lingüístico, acervos, capital das relações sociais e de prestígio e os
coloca em relação direta com a reprodução desse mesmo capital, impedindo,
via seleção, determinados sujeitos do aceso e sucesso na escola, foi
necessário compreender quais os mecanismos de rompimento com essas
determinações. É nessa perspectiva que se inscreve a contribuição de Lahire
(1997), interessado em conhecer os mecanismos de produção do sucesso
escolar nas crianças oriundas das classes subalternas e desvendar quais os
trajetos de sentido acerca do universo da escola que fundam esse sucesso.
As categorias de análise para compreender o fenômeno da reprodução
do habitus78 se inscrevem em um universo que inclui compreender a relação
entre residência, sexo, condição de classe de origem, condições de existência,
ethos (disposições com relação à escola e à cultura, à aprendizagem, à
autoridade, aos valores escolares, relações com a linguagem e a cultura) e
capital cultural e social. A relação entre essas categorias é responsável pela
"probabilidade objetiva de êxito escolar" e pela esperança subjetiva de acesso
à escola, de êxito e ascensão pela escola, segundo Bourdieu (1982, 1989).
Neste estudo, capital cultural diz respeito a todo o campo de saberes
que se relacionam com o sentido atribuído socialmente à escola: o sentido
primeiro, funcional, e os sentidos outros, incorporados pelas relações culturais
a essa instituição. Capital escolar é o capital lingüístico que circula na escola, o
acervo disponível para aquisição desse capital lingüístico e as informações
sobre o sistema escolar, seus procedimentos e valores.
No estudo que realizei, tanto o capital cultural como o capital escolar foi
herdado e legado diferenciadamente, nem sempre estritamente reproduzido
pelas condições de classe das interlocutoras, embora essa "determinação"
78 Bourdieu (1989: 60-62) afirma que habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver. Um capital, o habitus indica a disposição incorporada, quase postural. O autor, quando utilizou tal palavra desejava "pôr em evidência as capacidades criadoras, ativas, inventivas, do habitus e do agente, chamando a atenção para o primado da ação prática".
99
deva ser considerada. As conclusões de pesquisa permitiram perceber que a
multiplicidade de sentidos atribuídos permite ousar esperar rupturas
significativas, não apenas no círculo original de reprodução do habitus mas
preponderantemente no capital cultural a ser disponibilizado.
Preponderante, o sentido que está, de alguma forma, presente em todos
os outros entre as mulheres, é o que credita na escola o poder de acessar uma
profissão, sentido esse expressado por onze mulheres ou 36,6% do total da
amostra79. O segundo sentido mais atribuído à escola é o de espaço social: nada menos que 20% das mulheres assim se referiram à escola. Em dois
grupos de igual envergadura, escola é um lugar que representa um projeto de vida para quatro das mulheres interlocutoras e um sonho ainda não realizado
para outras quatro (13,3% das mulheres). Há ainda mais três sentidos
atribuídos à escola, embora em menor incidência: um lugar de
disciplinamento foi atribuído por 6,6% das mulheres, um lugar de saberes por
outras 6,6% e um lugar de realização pessoal para apenas uma delas (3,3%
do total das interlocutoras).
Ao expor o sentido atribuído à escola dos filhos, a maioria dos sentidos
atribuídos permanece o mesmo80, embora possa ter se deslocado de uma
interlocutora para outra. A escola como um lugar de realização, que pode ser
entendida como um desejo de escolha profissional agregada à felicidade,
aparece fortemente, próximo do sentido atribuído à escola como um lugar de
saberes e como sinônimo de projeto de vida, além do sentido de escola como
base para outras escolhas que são inferidas por pelo menos duas das
trajetórias. A exclusão do sonho como atribuição de sentido para os filhos
marca a diferença de gerações no alcance da escola, se não enquanto projeto,
como presença efetiva em suas vidas. Há também manifestações que
denunciam o desconforto com a escola entre as mulheres que mais a
conhecem, embora as propostas que se organizam a partir dessa
inconformidade ainda não são racionalizadas nem confessáveis,
caracterizando os sentidos instituintes.
79 Essa atribuição de sentido pode ser entendida como fortemente vinculada a crença no “mito da alfabetização ou a crença no seu poder inelutável de promover progresso econômico” (Ribeiro, 1999:233). 80 Escola como acesso a uma profissão é atribuído por 36,6%, Realização por 23,3%, Saberes e Projeto por 13,3% cada, base para 6,6% e Disciplinamento e Lugar social por apenas 3,3% cada.
100
Lugar de saber, lugar de encontro, lugar mágico, lugar dos projetos de
futuro, não-lugar, desprazer, desapontamento. Contradição. Circulação.
Sentido atribuído é movimento. É instituído mas também ainda não vivido. É
sonhado, desejado. Na análise de como se instituem, esses discursos são
apenas pistas, possibilidades de entender os passos traçados na instituição de
uma nova escola, com relações para além do materializar a produção de bens
simbólicos pré-determinados, anunciados, findos. O sentimento de estar
traindo, de estar rompendo, de ousar imaginar a vida sem escola pareceu um
pecado, típico sentimento da relação de racionalidades com o universo do
imaginário. Pareceu-me que, para algumas das mulheres, o “mito se quebrou”
e não há nada para ocupar seu lugar embora já existam indícios, desejos que,
receosamente, vão sendo comunicados.
A escolha da ordem de apresentação dos sentidos atribuídos obedeceu
à quantidade de mulheres que se agruparam em torno dessas categorias.
Assim, primeiro evidencio o sentido de escola como acesso a uma profissão,
sentido atribuído por onze mulheres. Segundo sentido, a escola como espaço
social, foi referendada por seis mulheres e será apresentado em segundo
lugar. Em terceiro, a escola como projeto de vida que foi evidenciada por
quatro mulheres e em quarto, a escola como sonho, escolhida por outras
quatro mulheres. A escola como lugar de saberes foi abordada por duas
mulheres e será apresentado em quinto lugar e a escola como um lugar de
disciplinamento, atribuído por outras duas, estará na sexta categorização. Em
sétima e última apresentarei a escola como um lugar de realização que foi
abordada por apenas uma das mulheres.
Com relação aos sentidos atribuídos à escola para si e para os filhos,
em apenas um dos perfis não houve deslocamento de sentido, mantendo-se o
mesmo para a interlocutora e para seus filhos. Nos outros vinte e nove perfis,
vou evidenciar o movimento realizado pelas mulheres quando pensam na
escola que desejaram, buscam ou tiveram em comparação com a escola que
materializam, conhecem ou desejam para os seus. É nessa comparação que
reside o deslocamento de sentido, uma das conclusões desse estudo. Esse
movimento é realizado em duas direções: legar sentido à escola e aos saberes
ali alocados, transformando seu discurso e sua prática em herança cultural
101
para a prole e, reinventar a escola, ou seja, no sentido do instituinte, do ainda
não vivido, da força da imaginação criadora.
1. Escola é acesso a uma profissão81
“Eu trabalhava na fábrica, fazia qualquer serviço que minha patroa pedia
porque eu precisava sustentar meus filhos. Só em sonho mesmo,
para todas as pessoas conseguirem bons trabalhos, com salários dignos
e terem todos os seus direitos respeitados” (Rosa, 2000:18).
As mulheres desse estudo investiram profundamente na escola, tanto
em atitudes concretas (deslocar-se para enviar os filhos à escola, fazer
sacrifícios para mantê-los na escola, punir as notas baixas das crianças,
autorizar o controle e a punição por parte do professor, discutir com a escola
seus parâmetros de avaliação, estabelecer ordens e regras para manuseio do
capital cultural escolar, vigiar sistematicamente as crianças e suas
aprendizagens, reservar parte de seu tempo na continuidade de estudos em
casa, comprar livros e similares para ampliar a acesso à pesquisa) como nas
atribuições de sentido à escola, o que pode ser observado nas tentativas de
legar o capital cultural relativo ao escolar quando disponível e, também, quando
era apenas discurso.
O sentido atribuído à escola como caminho para uma escolha
profissional é o mais incidente entre as interlocutoras82 desse estudo, confirma
e se agrega a um dos sentidos instituídos pela sociedade à instituição: o
caminho para a ascensão social83. O sentido mais comunicado não é, no
81 É na obra de Karl Marx que o trabalho passa a ser uma categoria de análise da sociedade, a força que move as relações sociais. Para o autor, “os seres humanos distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência – animais racionais -, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são com produzem. (Marx e Engels in:Chauí:2001:412). 82 Embora localizado entre onze das mulheres, há esse sentido em quase todas as interlocuções. Assim, me refiro a todas as mulheres que, em seus discursos e reflexões, contribuíram para discutir a categoria. 83 Segundo Ribeiro, é na “ideologia do desenvolvimento tecnológico, da globalização e da competitividade” que o “viés economicista transparece” em vários dos argumentos recentes acerca das habilidades básicas sobre a produtividade dos trabalhadores e a competitividade das economias. Para os
102
entanto, o mais realizado pois, a escola não significou, na vida da maioria das
mulheres, a oportunidade de melhores empregos. No entanto, é esse o sentido
dado a ela, esse é o desejo alocado nela, e, por causa dele, não pouparam
esforços para disponibilizá-la para os filhos.
Ascender socialmente, para grande parte delas, está intimamente
vinculado à oportunidade de ir à escola e, através dela, tornar-se um
profissional. Mulheres que não tiveram a oportunidade de usufruir as relações
sociais incrementadas pela escolaridade e mesmo aquelas que tem pouca
escolaridade afirmam a escola como um lugar de saberes sem os quais as
relações de trabalho ficam fragilizadas ou até impossíveis de serem
exercidas84. Ao rememorar o capital cultural disponível referente ao significado
da escola em sua vida, uma das interlocutoras afirma que o lugar onde se
queria chegar não importava muito, mas o caminho necessariamente era a
escola:
“Lembro que a escola era para nós o único caminho para se chegar a qualquer lugar. E o lugar a se chegar só dependia da gente e de quanto investiríamos no caminho que significava a escola” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Nada menos que onze das interlocutoras desse estudo (ou 36,6%)
falaram da escola como possibilidade de se acessar uma profissão. São elas:
Canela (40 anos, 2002), Carambola (32 anos, 2002), Cedro (57 anos, 2002),
Erva-Mate (42 anos, 2002), Gardênia (28 anos, 2002), Ipê (40 anos, 2002),
Jasmim (31 anos, 2002), Jequitibá (45 anos, 2002), Macieira (26 anos, 2002),
Mandacaru (55 anos, 2002) e Margarida (42 anos, 2002). Dessas, apenas três
cursaram uma Universidade (Canela, 40 anos, Carambola, 32 anos e Ipê, 41
anos) e apenas duas nas profissões desejadas. No entanto, não é um grupo
com pouca escolaridade (sete cursaram do ensino médio à faculdade e apenas
quatro tem pouca escolaridade) e, ao mesmo tempo, é um grupo de mulheres
que trabalha ou já trabalhou a partir da escolaridade que possui. Com exceção
partidários dessa ideologia, níveis inadequados de alfabetismo num segmento amplo da população são uma ameaça potencial à força das economias e à coesão social das nações.(Ribeiro, 1999:233-234) 84 Para Lahire (1997:51) são raras as pessoas radicalmente alheias ao universo dos primeiros anos de escolarização pois, em graus diversos, já interiorizaram hábitos mentais, hábitos de vida, as tecnologias intelectuais da vida quotidiana que tem relação com as práticas escolares.
103
de uma, todas têm renda própria e são oriundas de famílias com pouquíssima
ou nenhuma escolaridade.
O trabalho, para essas mulheres, sempre significou a possibilidade de
reproduzir-se existencialmente e, em alguns casos, foi a única via para sair da
condição de subalternidade, de exclusão e de aparhtação85 que viviam.
Trabalhar, em qualquer relação de trabalho, foi a condição que permitiu a saída
do meio rural para a cidade, permanecer nessa e, também, desejar e
materializar a escola para os filhos. E a escola, para a maioria, é condição para
acessar a saída e também o mundo do trabalho, como afirma uma delas:
“Eu acho que na vida a gente tem que tê uma profissão, uma coisa que te dê dinhero, e eu acho que tu tem que buscá um conhecimento porque eu acho que tu não vai consegui subi se tu não estudá. Vamos botá de uma maneira prática, uma coisa bem recente em minha vida, aprender música. Se alguém não te der os primeiros acordes, tu não consegue seguir este caminho, agora, se alguém já te direcionô, aí tu, claro, pela tua vontade tu vai, mas tu tem que tê alguém que te dê o início, um empurrãozinho” (Cedro, 57 anos, 2002).
A categoria trabalho86 mobiliza as mulheres desse estudo pois a falta
dele ou as condições em que estão trabalhando é, na maioria das vezes, o
tema de maior relevância em suas demandas pela escola. Falar em trabalho na
periferia urbana de Pelotas é falar, fundamentalmente do não trabalho, ou seja,
do desemprego. Assim, para um grupo considerável de mulheres, aquelas que
nunca tiveram a oportunidade de escolherem seus vínculos de trabalho e
aquelas que viram nas relações de trabalho esvair- se toda a sua juventude,
restando apenas sonhar com um mundo melhor para filhos e netos, discutir o
mundo do trabalho envolve sentimentos extremamente contraditórios.
85 A palavra aparthação é empregada por Cristovam Buarque para indicar a segregação geográfica da qual são vítimas as pessoas das classes populares. Tem origem na análise de similitude existente entre a política do Apartheid (política de segregação racial oficializada em 1948 na África do Sul, que impediu o acesso dos negros à propriedade e à participação política e os obrigou a viver em zonas residenciais segregadas) com a históra de ocupação do espaço no Brasil. 86 Tripalium, em latim, a origem do termo trabalho expressa “tanto uma espécie de canga usada sobre animais que puxam o arado ou carroça como um instrumento de tortura”. Nesse contexto, o exercício do trabalho era um constrangimento, transformado em critério de forte diferenciação social. Para Aristóteles, o homem era considerado um ser político, cuja condição seria somente possível de ser exercida pelos que, de fato, não trabalhavam” (Pochmann, 2003).
104
Para grande parte dessas mulheres, trabalho é diferente de profissão:
oito delas afirmaram que o trabalho é sinônimo de castigo, tarefa árdua ou
apenas uma ocupação, referindo-se ao que atualmente fazem ou referindo-se
genericamente aos lugares destinados a quem não tem escola. Nas palavras
delas, trabalho é o exercício de quaisquer atividades, na maioria das vezes não
escolhidas e sim realizadas por necessidade. Profissão implica uma escolha,
uma especialização e, ao ser exercida, traz felicidade, realização. Nas palavras
de uma das interlocutoras, há diferença entre trabalho e profissão que ela faz
questão de explicitar:
“Trabalho são as pessoas que trabalham mas não gostam e profissão é a pessoa que sabe tudo, por exemplo, as professoras” (Eucalipto, 32 anos, 2002).
Para Eucalipto, a relação de prazer que as professoras em formação
estabeleceram com a sala de aula, é um indicativo de que elas “sabem tudo”.
Assim, gostar tem a ver com o exercício da profissão, e não gostar ou ser
obrigado a fazer tem a ver com a origem do termo trabalho, que expressa o
contexto em que surgiu, um constrangimento, uma diferenciação social de
quem o exercia (Pochmann, 2003).
Nas palavras de outra interlocutora, o trabalho é qualquer ocupação
realizada por necessidade mas com a condição da honestidade, o que confere
ao trabalho, mesmo que subalterno, o respeito social. É uma reação ao lugar
social reservado às pessoas que exercem atividades subalternas, reação que
se origina também no significado latino da palavra trabalho:
“Eu fazia por necessidade, desde uma vez que seja honesto, trabalho é trabalho!” (Erva-Mate, 42 anos, 2002).
Essas máximas me fazem pensar que das relações brutais de trabalho
das quais a maioria delas é oriunda, com salários aviltantes e condições
precárias de desempenho das atividades, submetidas ao trabalho sem
qualquer distinção de gênero e geração, a escola aparece como uma tábua em
um naufrágio, salvando de uma condição e elevando a um outro lugar, ao
105
mesmo tempo87. Ao evidenciar esse movimento – resgate e ascensão - a
atribuição de sentido na escola ultrapassa o universo do possível, mas
confirma o ideal liberal. Nas palavras de uma das interlocutoras, ao se referir à
importância da escola na vida da filha, esse movimento pôde ser explicitado:
“Eu desejo ve-la numa posição social bem diferente da minha, sem sofrimento, sem sacrificio. Uma vida que ela possa trabalhar e chegar em casa e se orgulhar do seu trabalho. Não fazer que nem eu que ás vezes penso que vida! nem sei se vale a pena ser vivida” (Erva-Mate, 42 anos, 2002).
Nas palavras de Erva-Mate, a escola pode acessar um mundo do
trabalho que significa mais que ocupação, mais que ganhar a vida, mais que
reproduzir-se. O trabalho também significa dignidade, lugar social, respeito. O
sentimento de que o trabalho mal remunerado, pouco valorizado e ainda brutal
existe para ela, cotidianamente88, faz com que considere sua vida a partir
dessas relações:
“Eu era fascinada por enfermagem, eu tinha uma coleção de livros de enfermagem que comprei quando trabalhava em casa de família, com onze, doze anos, mas nunca consegui fazer enfermagem. Não, porque com onze anos eu já trabalhava lavando parede, com clorofila, os dedos correndo sangue, os dedos só pele, não se usava luva nessa época, se lavava com pano... Dentro da cidade de Pelotas!” (Erva-Mate, 42 anos, 2002).
Ao sucumbir à pressão exercida por esse cotidiano, ao referir-se ao peso
da vida, a interlocutora fica impossibilitada de perceber a distância entre o
“mundo memória” repleto de “memória olfativa, memória dos lugares de
infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres” (Certeau,
1996:31) e as conquistas e possibilidades que alcançou: não reconhece e não
87 Em estudo de perfis de crianças dos meios populares que tem sucesso na escola, Lahire (1997) afirma que pais “controlam o comportamento dos filhos na escola pois pensam que a escola serve para ensinar uma profissão que não seja ‘dura e suja’ e evitar o desemprego”, o que revigora a atribuição de sentido desse grupo de mulheres. 88 “O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada” (Certeau, 1996:31).
106
reapresenta os aspectos de sua trajetória que possibilitaram viver e produzir
um outro cotidiano, uma vez que não se insere nele. Na trajetória dessa
interlocutora, há um salto quantitativo e qualitativo de significações e de
materializações acerca, não apenas da escola, que precisa ser considerado: de
uma situação de "filha de criação" na qual a mãe se encontrava há setenta
anos atrás, sem escola, sem possibilidade de escola para os filhos, sem capital
cultural relativo ao mundo dos saberes da escola a ser legado, Erva-Mate
tornou-se a ponte para a situação de escola como condição de acesso a uma
profissão, significado que tem o cuidado de gerar, cultivar e legar para a filha
que está educando. A origem do capital cultural que lega à filha não é
localizada em seu “mundo memória”, que traz à tona a infância repleta de
tentativas de matar a fome, de ausências dos familiares que, a cada nova
dificuldade, reconfiguravam laços e marcada pela não aprendizagem na escola.
Outra das interlocutoras que credita na escola a possibilidade de mudar
a vida, Gardênia (29 anos, 2002) concebe o mundo do trabalho distinto do
reservado ao da profissão. Para ela, uma maior escolaridade possibilita pensar
em seguridade não em desemprego e o exemplo do marido é utilizado por ela
para defender essa tese que, infelizmente, foi sendo contrariada durante a
pesquisa. Em seu discurso ela revela os elementos novos que a fazem
observar o tipo de trabalho que está disponível para quem tem pouca
escolaridade, como o marido:
“O Alberto foi até o primeiro grau e se defendeu. Agora não tem serviço prá ele. Tê, tem, mas que tipo de serviço prá ele? Ele foi até o primero do segundo, eu insisti prá ele continuá, porque eu tava namorando ele, aí ele não quis, hoje em dia se deu mal. Eu disse: Vai, termina! Agora ele não qué mais, pode sê que ele vá, mas ele não qué mais, não qué voltá mais à ativa, é muito cansativo, o serviço dele não dá”. (Gardênia, 28 anos, 2002).
Uma vez que ela própria tem pouquíssima escolaridade, tendo como
principal instrumento de informação a oralidade, depende exclusivamente do
conhecimento que tem, quase todo relacionado com a atividade profissional
que desempenha. O trabalho que a Gardênia desempenha é invisível, só
percebido quando não é realizado e ela “não percebe suas atividades
107
profissionais fortemente limitadas por suas habilidades de leitura e escrita”
(Ribeiro 1999:132), o que a faz referir-se à escola como o lugar onde pode
aprimorar o trânsito pelo mundo conhecido, o mundo dos saberes culinários89:
“Eu quero estudá prá sabê mais de culinárias, prá abri um restaurante com minha irmã que já cozinhô em restaurantes na cidade e tem prática. Tenho vontade de sabê lê as receita, e por isso vô na aula do Projeto de noite. Eu adoro cozinhá, mas não sô de forno e fogão. Só sei o simples, de todo dia, arroiz, feijão, uns tipo de carne, massa. Prá trabaiá em restaurante tem de sabê fazê suflê, carnes assada, saladas, sobremesa” (Gardênia, 28 anos, 2002).
Ao nutrir os seus e ao cozinhar para outras famílias, Gardênia exercita
um “lugar de inventividade possível” destinado culturalmente para ela. Um lugar
de “invenções precárias sem nada capaz de consolidá-las, sem língua que
possa articulá-las, sem reconhecimento para enaltecê-las; biscates sujeitos ao
peso dos constrangimentos econômicos, inscritos na rede das determinações
concretas” (Certeau, 1996:216). No entanto, não reconhece esse lugar como o
lugar da profissão, pois não foi a escola quem lhe conferiu os saberes que
utiliza no desempenho dessas invenções. Para Certeau (1996: 217), “neste
nível de invisibilidade social, neste grau de não reconhecimento cultural, coube
há muito tempo e ainda cabe, como de direito, um lugar às mulheres, uma vez
que, em geral, não se dá qualquer atenção as suas ocupações cotidianas”.
É provavelmente pela invisibilidade desse lugar ocupado por ela que,
para o filho, Gardênia imponha a escolaridade como acesso a uma profissão e
se preocupe com o pouco interesse deste pela escola, com o sucesso que não
chega através da alfabetização. Busca em relatos de casos familiares as
explicações para o fenômeno, estranhando o não interesse do menino nos
saberes da escola e, às vezes, castigando-o90 por não aprender:
89 “Com seu alto grau de ritualização e seu considerável investimento afetivo, as atividades culinárias são, para grande parte das mulheres de todas as idades um lugar de felicidade, de prazer e de invenção. São coisas da vida que exigem tanta inteligência, imaginação e memória quanto as atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas, como a música ou a arte de tecer. Neste sentido, constituem de fato um dos pontos fortes da cultura comum” (Certeau, 1996:212). 90 Em estudo de perfis de crianças dos meios populares que fracassam na escola, Bernard Lahire (1997) encontrou o uso da violência contra as crianças por familiares adultos (os pais) e também por irmãos mais velhos quando esses recebem dos pais a autoridade para punir. A autoridade é oriunda do domínio de capital cultural necessário para a escola e a punição é por falta desse mesmo capital.
108
“Ele tá muito ruim, não vô minti, tá muito ruim. Ah, ele não consegue aprendê. Eu ia falá com a professora dele hoje, mas hoje quando eu cheguei em cima do lance ela já tinha entrado. Eu não sei, eu acho que ele não se esforça, acho que é difícil. Claro que é difícil, ele nunca feiz, né, nunca feiz aquilo ali e daí... Mas eu vou falá com a professora, falá com a psicóloga, conversá com ele, tudo! É priguiçoso, mesmo. Ele não tem vontade de aprendê. Eu acho, ele é desinteressado” (Gardênia, 28 anos, 2002).
Não poupa esforços no sentido de entender a situação, analisa a escola,
os conteúdos, a professora, interpela o menino, se propõe a revisar suas
tarefas escolares, marca seu tempo, restringe o brinquedo e a televisão, tudo
na tentativa de fazer o mundo da escola significar um tempo não desperdiçado.
Ao afirmar que o menino é preguiçoso porque só gosta de brincar, de desenhar
e de assistir televisão, denuncia uma inconformidade com o mundo que a ele é
destinado ao mesmo tempo em que revela as relações de acesso ao mundo
letrado nas quais está imerso: um mundo com “grau baixo de alfabetismo”,
onde são importantes pessoas “cujos hábitos de leitura e escrita são restritos e
quase exclusivamente relacionados às atividades profissionais” e onde o
“principal instrumento de comunicação, aprendizagem e informação é a
oralidade” (Ribeiro 1999:132).
A interlocução que busca fazer com a escola não tem, como horizonte, a
possibilidade do filho viver a infância91, um lugar do hoje. Conceito
reinventado92 e diferenciado de acordo não apenas com a classe social a que a
mãe está vinculada mas também a seu imaginário e desejo e ao tempo de
infância (entendido como o tempo destinado aos filhos para que existam sem
as responsabilidades do mundo adulto podendo, no entanto, experenciar
ludicamente o papel de adultos), não apenas o que se pensa, deseja e imagina
91 “O conceito de criança como um espaço de inocência, protegido do trabalho destinado aos adultos e adquirindo os conhecimentos necessários para a vida dentro de esferas familiar ou escolar, nem sempre é o mesmo em todos os lugares. Porque esse sentimento de infância é o da modernidade. E nem todos os povos entraram ao mesmo tempo na modernidade" (Capparelli, 2000). 92 Através de Philippfe Ariès (1973) é possível conhecer o papel desempenhado pela escola na invenção social da “infância” e do “sentimento de infância” o que aconteceu com o agrupamento segundo a idade biológica, a exclusão das atividades dos adultos mantendo-os numa situação de imaturidade social e irresponsabilidade provisória e sujeitos a uma maneira de ensinar conforme a idade. Assim, a escola participou da construção da infância como categoria social de percepção e organização e, com a atribuição de importância, a criança sai do anonimato.
109
é que vai definir o futuro deles. É provável que pela visão de infância e escola
que povoam o universo simbólico de Gardênia, se o filho ficar sem a escola,
perderá, talvez o único passaporte que hoje ela pode lhe oferecer para um
mundo um pouco diferente do seu e que ela considera melhor porque na
escola “se aprende a falar certo”. Para ela, o tempo da infância deve ser
aproveitado para preparar a adultez, o que busca explicitar:
“Eu digo pro Patric: Agora tu é pequeno ainda, pode estudá, pode brincá, pode tudo. Depois que for adulto é aqueles dois tempo: pá estudá, pá trabalhá... aí fica difícil, agora tá bom. Ele fica parado, me olhando... Porque se ele começá desde cedo, cedo tá formado, já trabalhando em arguma coisa. Craro, não naquilo no que a pessoa qué, mas já é numa profissãozinha melhor, né? Serviço melhor...” (Gardênia, 28 anos, 2002).
Ela busca se ajustar à escola por acreditar nela, acreditar na professora.
Além disso, busca contrariar uma visão de hereditariedade no desinteresse
pela escola, a preguiça como uma falha de caráter herdada de um tio93. Mais
que isso, intenciona modificar esse caráter decidindo por ele, lErva-Matendo-o
à escola à força e impedindo-o de fugir de lá. Sinal de uma “vontade parental
de controle da socialização dos filhos” (Lahire, 1997:234), essa reação também
pode ser inscrita na falta de capital cultural disponível para entender a distância
entre o capital cultural disponível na escola e o capital cultural familiar, as
demandas da escola e as demandas do filho, o que a deixa em uma situação
de imobilidade uma vez que seu discurso favorável à escolarização não tem
eco nas atitudes do filho na escola.
Outra duas interlocutoras desse mesmo grupo que, como Erva-Mate e
Gardênia, têm pouca escolaridade, declararam reconhecer na escola a
possibilidade de acessar uma profissão: Margarida (42 anos, 2002) e
Mandacaru (55 anos, 2002). Para Margarida, a escola era um projeto dos pais,
um capital cultural que se restringiu ao oral, uma vez que para além das séries
iniciais, não havia possibilidade de realizá-lo. Assim, pode-se afirmar que o
93 Pra Lahire (1997), há julgamentos e expectativas que, através de palavras, expressões ou análises, podem agir como “enunciados preditivos”, ou seja, se configuraram como desencadeadores do processo que estão negando ou até realizarem o que ainda pode sr modificado.
110
capital cultural foi disponibilizado mas não efetivado e a interdição se deu
quando a necessidade de trabalhar empurrou os filhos, ainda adolescentes,
para uma antecipação da vida adulta, como ela mesma relembra:
“Vim prá Pelotas prá trabalhá nas indústrias do doce como safrista. Eu comecei a trabalhá com quartorze anos, foi minha primeira assinatura de carteira. Ninguém na minha família estudou, ninguém conseguiu terminar porque tinha que trabalhar, aí tinha que sair prá fora de Canguçu” (Margarida, 42 anos, 2002).
A relação de benefício que o acesso à escola possibilita, para essa
interlocutora é explícito, linear. Embora não tendo vivido a escola, as relações
que estabeleceu na atividade profissional que desempenha lhe possibilitaram
entrar em contato com pessoas que considera vencedoras via estudo, o que a
faz incluir em seu legado a crença de que através do domínio dos saberes da
escola e do percurso por seus graus de conhecimento se tem mais
oportunidade no mundo do trabalho, oportunidades que estão difíceis para
quem não tem estudo. Investe na formação das filhas, não apenas oferecendo
escolaridade mas um aporte cultural via discurso, amplamente encontrado no
senso comum e nesse caso, visibilizado nas relações de trabalho, discurso
que, em alguns casos, faz a diferença em famílias oriundas das classes
populares e com frágeis vínculos com o mundo do letramento:
“Sempre falei e falo que a escola é muito importante, eu acho a escola muito importante, a riqueza hoje em dia é o estudo, se com estudo tá difícil trabalhar, sem estudo pior ainda” (Margarida, 42 anos, 2002).
Diferentemente das outras mulheres desse estudo, Margarida não
almeja uma maior escolaridade para si, mas afirma os trajetos percorridos no
sentido de qualificar os vínculos com o mundo do trabalho que pôde ir
realizando e revela seu gosto pela poesia e pela leitura. Acredita que o fato de
não se ajustar ao pouco que ia alcançando e por almejar sempre um outro
lugar social é que a ela se oportunizou que chegasse ao que hoje ocupa: um
local de trabalho confortável, com horários maleáveis e com acesso a pessoas
educadas, cultas, informadas. Como funcionária pública, tem seguridade social,
111
respeito de seus familiares e, embora desempenhe tarefas subalternas, são
muito melhores do que ser safrista nas indústrias do doce, experiência que está
muito viva em sua memória, o que a faz considerar, o atual, um ótimo local de
trabalho:
“Eu sempre fui uma pessoa muito lutadora, tudo que era concurso que dava os meu grau de estudo eu procurava fazer, cursinhos, tudo eu fazia, telefonista, recepcionista, tudo eu tenho, tudo que aparecia e que dava pra eu fazer, sempre fiz, hoje estou aqui na Universidade porque fiz concurso, eu sempre fui atrás, daí eu consegui” (Margarida, 42 anos, 2002).
É na vida das filhas que pensa realizar o capital cultural herdado e
mantido via oralidade, embora não realizado para si. Pensa que elas poderão
fechar o círculo de investimentos na escola que iniciaram com a vontade dos
pais de que os filhos estudassem, passaram pela necessidade de sair da zona
rural e enfrentar as agruras do mundo do trabalho nas fábricas, para, por fim,
poder ingressar, permanecer e ter sucesso na escola. A elas está destinado
cumprir o sonho familiar, ter uma profissão a partir da escola:
“O sonho deles, do meu pai e da minha mãe era de ver os filhos formados, agora só vão ver as netas formadas. As duas querem ser Nutricionistas, adoram. Elas estão bem entusiasmadas para fazer o vestibular e eu acho que é por aí o caminho!” (Margarida, 42 anos, 2002).
De todas as interlocutoras desse estudo apenas Mandacaru (55 anos,
2002) não pôde usufruir uma história de sucesso no relato de sua trajetória de
escolarização do filho. Apesar da pouquíssima escolaridade, a vida lhe
proporcionou encontros com pessoas letradas, um casamento com um homem
graduado em Medicina que é bastante bem informado e um trabalho por conta
própria. Esses encontros a fizeram interiorizar hábitos mentais, hábitos de vida
e tecnologias intelectuais da vida cotidiana que tem relação com as práticas
escolares como registro de informações, gerenciamento, planejamento,
investimento, cálculos e outras habilidades típicas de uma sociedade
112
grafocêntrica, possibilitando assim, que não ficasse alheia ao universo da
escola.
Na análise que ousou realizar acerca da não permanência do filho na
escola, acredita que deu incentivo a ele, pelejou para que esse, a cada novo
ano, fosse matriculado e freqüentasse, investiu em cursos extraclasse, na
tentativa de que ele permanecesse lá, sem considerar a fragilidade de laços
com a sociedade grafocêntrica e o ambiente familiar desprovido de
significações do mundo da escola que tinha para si e para esse filho94. Não
tendo tido êxito nas diferentes tentativas de escolarizá-lo com mais intensidade,
transferiu para ele o não sucesso dessa atribuição de sentido:
“Meu filho não estudou, estudou até a sétima, o danado! E olha que eu rebolei daqui e dali e botava ele aqui e botava em cursinho de datilografia, em aulinha de futebol e não sei o quê. O raio do guri não quis estudar, não teve jeito! Eu batalhei, até os quinze anos dele, eu vivia nos colégio fazendo matrícula, nas filas. Ele não dizia nada, simplesmente ele botava na caderneta do colégio que eu estava passando mal, dizia para a professora que eu estava doente, eu estava sempre doente, passando mal, nas cadernetas do colégio estava: Fulano saiu mais cedo porque mãe está passando mal. Era um filho da mãe mesmo!” (Mandacaru, 55 anos, 2002).
Convidada a pensar na origem dessas atitudes do filho, não consegue
explicar porque o menino fugia da escola. Não compreende como se dá o
fenômeno da não permanência desse nas diferentes oportunidades que
acredita ter providenciado para ele e avalia que, diferentemente de sua
infância, em que ninguém fez questão de escola, incentivou o menino. Hoje, o
filho que tem 38 anos, trabalha como motorista de transportes urbanos, não
tem nenhuma seguridade no emprego e ainda se socorre com ela quando não
tem recursos para sustentar sua casa, fazendo com que a Mandacaru reviva o
processo de formação desse adulto sem escola quase que cotidianamente:
“O pior é isso, ele teve incentivo, eu quis dar para ele esse incentivo, e ele não quis, o danado. Ele teve interno lá fora num colégio interno
94 Lahire (1997) afirma que o capital cultural que existe não necessariamente é legado e para que um herdeiro possa apropriar-se do capital cultural de sua família é necessário que interações efetivas com esse capital sejam desencadeadas constantemente.
113
que tem lá, agrícola, até lá eu botei ele interno, tu acredita que ele fugia os fins de semana e vinha para a cidade e eu nem ficava sabendo? A primeira, segunda, acho que até a quarta ou quinta ele foi direitinho, depois ele começou a ficar maior e aí ninguém segurou, mas eu lutei, até os quinze anos dele eu lutei, aí eu vi que ele não queria mesmo e aí eu também frouxei. Ele teve alguém para empurrar, coisa que eu não tive, só que ele não soube aproveitar, a pessoa tem que querer...” (Mandacaru, 55 anos, 2002).
É provável que por não estar em uma situação onde as atribuições da
mãe sobre a importância da escola pudessem encontrar “meios de se
concretizar nas formas de exercício de um controle e de um acompanhamento
mais regulares e permanentes de seu trabalho escolar” (Lahire, 1997:112), o
filho de Mandacaru tenha encontrado outros interesses que o tiraram do
caminho traçado, por ela, para ele. Apesar desse insucesso e, provavelmente
pelos efeitos de legitimidade95 que minha presença e o casamento com um
homem letrado exerçam sobre ela, a Mandacaru acredita na escola, investe a
instituição de poder letrado, um saber que prepara para a vida no trabalho, com
as demandas desse mundo:
“A pessoa se vira melhor na vida com escola, é mais evoluída, sabe mais e tudo, sabe ler, sabe se dirigir para qualquer lugar, sozinha sem ter que, acho que é necessário a escola, sem ela a pessoa fica totalmente fora do resto” (Mandacaru, 55 anos, 2002).
O que essa história indica é que “não basta estar ‘rodeado’ ou ‘cercado’
para conseguir construir concretamente suas competências culturais” (Lahire,
1997:109), e que ao transferir suas esperanças para a vontade do filho os pais
delegam não apenas poder de decisão, mas uma atribuição de sentido ao
escolar que a criança não tem condições de ter espontaneamente, seja pela
pouca idade ou por não encontrar na escola, lugar privilegiado para o capital
cultural se organizar, os vínculos necessários para que essa atribuição de
sentido se materialize. Além disso, a atribuição de sentido não é passível de
ser alocado em outro lugar como um “objeto”, sair integral do desejo da mãe e
tornar-se desejo do filho. É necessário que o herdeiro atribua sentido ao que
95 Segundo Lahire (1997) as perguntas sobre práticas de leitura e de escrita podem, às vezes, provocar efeitos de legitimidade em interlocutores suscetíveis aos valores do sistema escolar e aos seus
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está recebendo, apropriando-se e reconstruindo o objeto legado. Outro aspecto
importante a ser considerado é que a transmissão de capital cultural, no caso o
sentido atribuído à escola como um lugar que aciona um mundo melhor, não
necessariamente é herdado intacto, e há a possibilidade de que se transforme
no processo de outorgação de uma geração para outra.
As mulheres desse estudo, de certa forma, representam as profundas
modificações no mundo do trabalho que se operaram no Brasil nestes últimos
cinqüenta anos: modificações que incluem “inúmeras discussões acerca das
velhas e novas oportunidades ocupacionais, bem como a respeito da qualidade
dos postos de trabalho, do conteúdo funcional das novas vagas, entre outras
questões transdisciplinares” (Pochmann, 2003). Ao declarar que a escolaridade
possibilita o acesso ao mundo das profissões, o grupo de mulheres
identificadas com essa atribuição de sentido também declarou que deseja que
os filhos possam ir mais longe do que elas próprias, que este é o único projeto
que têm para eles, desconsiderando, às vezes, que elas próprias invidaram
esforços imensos e superaram barreiras de todos os tipos, tendo conseguido
posições melhores que a de suas famílias de origem. A necessidade da escola
para chegar com poder de disputa ao mercado de trabalho, no entanto, não é o
único argumento. Vinculado também a um discurso ético, a vida sem trabalho
ou sem um trabalho respeitado parece não ser uma vida digna de ser vivida,
tese que apareceu nas palavras de Erva-Mate (42 anos, 2002) e se repetem
nas de Jequitibá (45 anos, 2002):
“Sei que sem estudo ela não será nada e não terá uma vida digna para seguir enfrente” (Jequitibá, 45 anos, 2002).
Objeto de profundas transformações ao longo da história, o trabalho
evidencia, no discurso das interlocutoras, as marcas de sua origem de sentido
pejorativo, uma vez que indicava a função exercida socialmente e somente
trabalhavam aqueles que necessitavam prover suas necessidades básicas de
vida. Somente no segundo milênio, “passou a ser identificado como fonte de
geração de toda riqueza, assumindo uma mediação básica que permitisse a
representantes, ou seja, podem desencadear um processo de afirmação de importância dessas práticas mesmo que desconhecidas ou não acionadas.
115
compreensão de que ao homem caberia a transformação tanto da natureza
como de si próprio” (Pochmann, 2003). Para Pochmann, “A constituição de sociedades fundadas no reconhecimento do trabalho tem origem relativamente recente: um pouco menos de 300 anos. No Brasil, o trabalho livre somente passou a ser reconhecido com o fim da escravidão, em 1888. Mas somente com a Revolução de 1930, uma política pública de valorização do trabalho foi perseguida, com um conjunto de garantias definido e associado ao desenvolvimento do projeto de industrialização nacional. Entre 1930 e 1980, o avanço econômico foi significativo, com conseqüências favoráveis para os trabalhadores, especialmente no que diz respeito à forte geração de empregos, pois a cada dez novas vagas, oito eram assalariadas. É claro que o país não superou as condições de subdesenvolvimento, mantendo perversa a distribuição de renda e inclusão do conjunto da população nos frutos do desenvolvimento econômico” (Pochmann, 2003).
Atualmente, as possibilidades do mundo do trabalho tendem a ser muito
mais difusas, se explicitando em múltiplas formas de emprego96, o que é
percebido fortemente pelas mulheres desse grupo. A degradação na situação
ocupacional produziu, para quem tem pouca escolaridade, dois fenômenos que
elas denunciam e, ao mesmo tempo, almejam superar via escola: o
crescimento do desemprego e geração de postos precários de trabalho,
levando a manifestações onde a escolaridade aparece como antídoto.
“Hoje a escola significa pra mim o princípio meio e fim da vida de uma pessoa. Não que as pessoas que não tem estudo não tenham sabedoria mas o mundo em que vivemos somente com estudo pode conseguir um espaço melhor na vida cada vez a vida esta mais difícil” (Jequitibá, 45 anos, 2002).
Ao mesmo tempo em que o desemprego e os lugares subalternos se
apresentam como a preocupação principal, algumas delas percebem que há
um outro mundo do trabalho sendo gestado, mundo esse que incorpora “o que
existe de mais moderno em termos de ocupação e renda (células de produção,
teletrabalho, entre outros)” e que preserva o “mais ultrapassado, como a
96 Empregabilbidade é um termo recentemente anexado ao jargão sócio-econômico e tem duas significações concomitantes: condições de disputa no mercado de trabalho e novos postos. É um redimensionar do trabalho clássico a partir do surgimento de nichos de mercado que demandam várias
116
expansão do trabalho escravo e de crianças” (Pochmann, 2003). Nas palavras
de Jequitibá (45 anos, 2002), o mundo que pode ser acessado via
Universidade não mais está dando seguridade aos projetos inicialmente
traçados pois mesmo as profissões clássicas, que ela se propõe a formar,
requerem saberes que não estão disponíveis para todos como é o caso do uso
da Internet, acesso a bibliotecas atualizadas, a grupos de pesquisa, a viagens
de estudo além de meios de troca de informações e cursos de atualização.
Além disso, a competição acirrada é denunciada por ela como um elemento
ameaçador na formação de um profissional, indicando que a simples
escolaridade não mais responde pelas demandas do mundo do trabalho:
“Hoje a Universidade ficou muito competitiva pelo sistema em que vivemos então as pessoas têm que sempre ser o melhor para não ficar para trás, deve estar sempre atualizado fazer muita pesquisa. Nada daquela Universidade que eu pensava existir e tinha idealizada. O conhecimento cada vez melhor para aprender com internet ligado em todo o mundo e com aparelhos de última geração mais também quem não tem toda esta estrutura vai fica para traz. Mas quanto ao conhecimento, acho que está melhor cada vez melhor pra aprender mas falta que todos os cidadãos tenham acesso a tudo isso chamado universidade e não a minoria dos brasileiros. A profissão a cada dia que passa mais competitivo mas se tu não estiver o Curso Superior ainda fica pior” (Jequitibá, 45 anos, 2002).
É em evidências do novo mundo do trabalho representadas pelo
“computador pessoal, a internet, os novos materiais a substituírem os antigos,
a biotecnologia, entre tantos outros novos descobrimentos técnico-científicos”
(Pochmann, 2003) que se “criam perspectivas de conformação dos novos
parâmetros capazes de fundamentar a sociedade do conhecimento”
(Pochmann, 2003). Para muitas das interlocutoras, essa sociedade é
conhecida pelas interdições que chegam até elas, como por exemplo as novas
exigências do mercado para tarefas que, há bem pouco tempo, a escolaridade
básica (com conteúdos hierarquizados e complexificados a medida que o grau
de estudos se aprimorava), era capaz de responder. Ainda não explicitada,
habilidades e desvia a discussão focada no emprego/desemprego para o binômio novas oportunidades/empregabilidade.
117
embora seus efeitos já podem ser sentidos, para muitas das interlocutoras o
enigma passa a ser o projeto que deve ser gestado agora, ou seja, qual o
universo cultural a ser legado, uma vez que o pensado e arduamente buscado
está dando mostras de não mais resistir a análise de realidade.
Uma das interlocutoras que almejou a escola para si, Sisal (62 anos,
2002) refaz o discurso, recompõe o projeto, incorpora a necessidade de
conhecimento de uma das ferramentas desse novo contexto e passa a legar
para os seus as evidências do estar à margem. Entre os seus, apenas um dos
quatro filhos realizou o sonho de freqüentar a Universidade ao mesmo tempo
em que os netos se debatem diante da impossibilidade de se sustentar no
mercado de trabalho apenas com a escolaridade fundamental ou média. Ao
mesmo tempo, acredita que o acesso ao conhecimento dessas novas
tecnologias, paralelo a formação escolar é uma saída possível:
“Aqueles salários que não dão nada! Ah, eu acho que através do estudo, é por aí o caminho, eu não vejo otros caminhos. A minha neta tá fazendo computação então prá, no momento que já faça o segundo grau, já tem um trabalhinho, tão tudo pedindo é prá trabalhá em computação, se não tendo esse curso, quage não há trabalho” (Sisal, 62 anos, 2002).
Dominar a tecnologia ou ter acesso a ela é afirmado pela maioria das
interlocutoras desse grupo como um elemento que deve ser agregado à
escolaridade para se “vencer na vida”. Há, portanto, uma tentativa de recompor
o capital cultural a ser legado no qual a tecnologia é incluída como saber
indispensável, configurando uma nova atribuição de sentido ao escolar. São as
evidências de realidade que forjam essa atribuição de sentido: um mercado
restrito com oferta de vagas que exigem qualificação. No embate entre esse
mercado e o rol de saberes que a escola básica oferece, no entanto, as
interlocutoras não ousam desejar o fim da escola e, por isso, suas demandas
se caracterizam como uma nova atribuição de sentido, o que pode ser
observado nas palavras abaixo:
“A gente precisa de entendê as coisas, sabê, não é? Quem tem estudo é diferente que a gente que não entende nada, né? Sobre as
118
lei e essas coisa tudo e os lugar que a gente vai, tem que entendê! O meu pagamento, aquilo é tudo é com máquina, se a gente não sabe, como é que vai recebê? Tem que tá pedindo pruma pessoa í junto, né, tudo é difícil, então a gente sabendo a gente vai, né?” (Romã, 72 anos, 2002).
O sentido atribuído à escola como o caminho para uma escolha
profissional é referendado por Cedro (57 anos, 2002) que deseja cursar
Música, por Jasmim (31 anos, 2002) que apesar da pouca idade não fala mais
em estudar e delega esse passo para o filho, por Jequitibá (45 anos, 2002)
que, depois de ser remanejada dentro de suas funções na Universidade,
passou a acreditar nessa possibilidade e por Macieira (26 anos, 2002) que
herdou do pai o interesse pela Universidade e deseja cursar Química. Muito
possivelmente pelas oportunidades que tiveram na escola e fora dela e,
também pela possibilidade de refletir comparativamente, esse grupo confirma
um dos sentidos instituídos pela sociedade à instituição escolar – a ascensão
social via escolarização.
No caso de Macieira, de Jasmim e de Jequitibá com idades de 26, 31 e
45 anos, respectivamente, e mesmo no caso de Cedro de 57 anos, a
possibilidade de refletir comparativamente é muito intensa, o que significa que
essas mulheres têm, cotidianamente, vínculos, relações, possibilidades de
conhecer trajetórias de pessoas que estudam mesmo em idade não
considerada adequada. O interessante é que, apesar de acordos internacionais
firmados nos últimos treze anos em conferências mundiais97, cujos documentos
afirmam a educação como direito do homem e um meio essencial para atingir
os objetivos da igualdade sendo a educação desejada como “chave que
permite aos indivíduos abrirem a porta aos seus talentos e suas criatividades”,
da Constituição Federal do Brasil e do Plano Nacional de Educação (que
reafirma o direito de todos e o dever do Estado para com a educação e
estabelece medidas que confirmam o setor público como responsável pela
manutenção e desenvolvimento da educação), ainda é fortemente aceito, entre
97 A ONU decreta 1990 o Ano Internacional da Alfabetização e é realizada em Jomtien, Tailândia, uma conferência mundial na qual a categoria alfabetização é destinada a responder as necessidades educativas fundamentais dos adultos de modo que façam frente às suas responsabilidades profissionais e
119
o senso comum e mesmo nos meios acadêmicos, a idéia de que há uma “idade
própria” para aprender98.
A possibilidade de refletirem comparativamente no entanto, não se
esgota diante da evidência de que é possível estudar com idade diferente da
esperada mas, fundamentalmente, ao perceberem que existem pessoas que
nunca deixaram de estudar, o que permite que o sentido do que é “se formar”
se redimensione, assumindo a forma de uma espiral, com início e sem fim, do
pouco para o inimaginável. Assim, diante dessas oportunidades, olham para si
mesmas, reavaliam suas trajetórias, reorganizam suas escolhas, retomando
projetos antigos (perfil de Cedro), buscando responder ao desejo do pai e em
busca das poções mágicas (no caso de Macieira), apontando o caminho para o
filho (no caso de Jasmim) e incluindo a escola em seu universo de desejos,
como no caso da Jequitibá:
“Esse ano é decisivo para mim quero mudar, quero estudar quero fazer um curso superior penso que não vim ao mundo para ser só isso que sou quero ser mais e uma das coisas que quero fazer e que vai me realizar como pessoas é fazer o meu curso superior” (Jequitibá, 45 anos, 2002).
Com aspectos que as diferenciam das interlocutoras abordadas
anteriormente, também acreditam na escola como o caminho e projetam na
Universidade o lugar das profissões ou da possibilidade de escolha de uma. Na
fala de Macieira (26 anos, 2002), a sorte, elemento do universo mágico, é um
dos intervenientes que ousa invadir o caminho linear e racional do investimento
na escola. Apesar de creditar a ela, a sorte, a possibilidade de se vencer na
vida sem escola, é uma crença rapidamente e por ela mesma contestada:
“Depende da sorte da pessoa, chegar lá sem estudar, mas eu acho que sem estudo, mesmo, é difícil. A gente ouve muito nas famílias,
familiares e adquiram confiança neles mesmos para participarem dos afazeres da coletividade e influenciarem nas decisões políticas. 98 Para Matencio (1999:243), os conceitos e imagens sobre o analfabetismo nos meios de comunicação incorporam diferentes posições ideológicas realizando o que chama de “apagamento dos conflitos entre as fontes de enunciação” como uma “tentativa de homogeneizar sentidos que se movimentam por diferentes discursos e de estabilizar imagens sobre o analfabetismo que circulam no cotidiano brasileiro”. Nessa homogeneização está a idéia de que escola é um lugar de crianças e que adultos na escola básica são menos dotados intelectualmente.
120
estuda, estuda, a única coisa que a gente quer é que tu estude” (Macieira, 26 anos, 2002).
Na instituição de sentido a respeito da escola enquanto caminho para
um lugar social diferente do seu, Jasmim investe recursos e atribuição de
sentido na educação do filho único. Todos os esforços, todos os movimentos
são no sentido de que ele ultrapasse a escolaridade dela própria e do marido e,
também, que ele ultrapasse as barreiras do preconceito de raça que ela traz
vivo na memória de escola. Embora não aborde claramente o preconceito
sofrido, a confusão de papéis (professoras e alunas) revelada em sua escrita e
o desejo de que o filho tenha outras oportunidades indicam os sentimentos
contraditórios ainda vividos:
“Percebo muita diferença no ensino que eu recebi em relação ao que meu filho está recebendo, porque na minha época, eu tinha vergonha de ir ao quadro, vergonha de tudo porque os professores tinham a mania de criticar os erros e no final as crianças ficavam envergonhadas, quietas e acabavam deixando a turma super nervosa. Ele não tem vergonha de nada, não tem medo de errar e as professoras gritarem. Ele, graças a Deus, não é como eu, que tinha vergonha de tudo. Ele fala, briga pelas coisas dele, diz o que quer, então eu acho que ele vai ter mais chances” (Jasmim, 31 anos, 2002).
Para Jasmim, investir em uma escola privada, incluir o filho em uma
escola onde as maiorias das crianças são brancas, é garantir um trajeto seguro
para um lugar social diferente do seu. Com escolaridade média, morando na
periferia urbana e tendo casado com um homem branco, ela própria vive as
agruras de transitar entre dois mundos e suas atitudes na escola do filho são
no sentido de minimizar os efeitos que a sociedade e a escola reservaram para
as crianças negras. Deseja materializar, via escolarização, uma saída
grandiosa para os seus e é a única interlocutora que fala em concorrência,
desafios, homem de fibra, caracterizando uma linguagem própria para definir o
sentido que atribui à escola:
“Eu espero que a escola de agora ajude a formar, junto com a gente, um homem preparado para o futuro, um homem de fibra, preparado
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para o mundo que está aí, para os desafios, para a concorrência” (Jasmim, 31 anos, 2002).
Três únicas interlocutoras desse grupo que já passaram pela
Universidade e, portanto, tiveram acesso a uma escolha profissional, Canela
(40 anos, 2002), Carambola (32 anos, 2002) e Ipê (40 anos, 2002) não se
relacionam com essa escolha profissional da mesma forma.
O sentido atribuído à escola como caminho para uma escolha
profissional foi vivido por Canela (40 anos, 2002) não como um projeto de vida
e sim como a necessidade de ter oportunidades no mundo do trabalho, uma
vez que, tendo casado jovem e engravidado aos dezoito anos, viu-se na
emergência de abandonar uma das frentes que atuava.
“Eu nunca fui de pensar muito nas coisas. Naquela época eu vivia, eu não planejava muito determinadas coisas que eu ia fazê ou deixá de fazê, eu tinha intenção de fazê um curso superior, não tinha certeza exatamente do quê. Na época ainda era a área de Educação Física que eu gostava bastante. Mas aí me interessei mais pelo lado familiar, em virtude da gravidez, das crianças, e eu trabalhava na época, também, então eu passar três turnos fora de casa era muito tempo prá mim, eu considerava que era mais importante ficar com as crianças, que eles precisariam mais de mim naquele período, os dois primeiros anos de vida. Eu sempre tinha a idéia de voltá, só tinha que acomodá algumas coisas...” (Canela, 40 anos, 2002).
A família da qual Canela é oriunda não tinha internalizado hábitos de
vida que incluíam o letramento como uma das tarefas da escola e as
prioridades eram dadas à possibilidade de se sustentar, alcançar um emprego,
qualquer trabalho que lhe desse seguridade. Não se almejava mais do que um
lugar com seguridade, sem interesse por que tipo de trabalho se realizaria. Nas
palavras dela, um emprego público, com oito horas cumpridas era o ideal na
época em que cursava a escola básica e não tem lembrança de atribuições de
sentido à entrada na Universidade como o caminho para o mundo de uma
profissão. Assim, é possível compreender porque, ao se defrontar com as
obrigações do trabalho, do casamento e da gravidez, a continuidade dos
estudos foi relegada a um segundo plano. Nas palavras dela:
122
“Ninguém da minha família nunca se preocupô com isso, na verdade eu nunca permiti que ninguém falasse nada a respeito de minha vida, então eu fui levando da maneira como eu achava melhor, o que era prioritário para mim. Sabe aquela cobrança que não é uma coisa direta? Se eu pensar por aí, ela até existe, porque a minha mãe fazia esse tipo de comentário: Ah, fulano é médico, fulano é não sei o quê – os primos -, tu não vai voltá a estudá algum dia? Como eu cortei a história, então ficô por isso, nunca mais ninguém me falô, por falta de permissão minha, mesmo” (Canela, 40 anos, 2002).
Ao ignorar completamente as interferências da família e ao optar por
seguir um caminho próprio, no entanto, ingressa em um universo partilhado
pelo marido, de atribuição de sentido ao que é da escola, o que passa a
proporcionar para os filhos. É na idealização da maternidade e no ingresso dos
filhos na escola que o mundo das relações de saber passa a fazer parte de seu
universo de interesse e, através de práticas educativas com os filhos, descobre
as possibilidades da escola como caminho para uma profissão. Ao relacionar
escolaridade e filhos, no entanto, evidencia o desejo de que a escola seja mais
que uma escolha profissional:
“Com todo o processo social do nosso mundo hoje a gente sabe, sabia, da importância que tem tu tê uma formação, tu sê uma pessoa crítica, não só buscá a educação formal, trabalhá com a questão da leitura com as crianças. Aí os guris já tinham acesso a muitos livros, a muitas leituras, trabalhava com as crianças em casa, antes de eles irem pro pré-escolar, com coisinhas tipo grãos em casa, cola, aquela coisa assim de trabalhá com a parte motora, desde esse início, com essa outra visão, para que eles pudessem ter uma outra sorte, conquistá um outro espaço, um espaço melhor e num tempo mais curto, não acontecê como comigo que foi muito depois” (Canela, 40 anos, 2002).
Apesar de ter tido a oportunidade – que considera tardia – de cursar a
Universidade, Canela não encontrou no curso superior uma profissão. Foi o
único curso que pôde ser realizado dentro de suas possibilidades de vida onde,
família e as atribulações do marido eram o central.
“Depois de casada vieram os filhos e eu tinha aquela função de casa, filho, trabalhando, aí eu não tinha muito tempo prá nada, aí eu não
123
parava prá lê. Os anos foram se passando, eu terminei o segundo grau, eu fazia alguns cursos como datilografia, telex, mas isso pensando na vida profissional, pensando em algum concurso, em coisa assim. Aí não tinha tempo de voltá a estudá porque o D. passava os três turnos fora de casa e não tinha quem ficasse com as crianças à noite. E também foi uma opção familiar: algum de nós tinha que se formá e terminá, até prá podê trazê mais dinhero prá dentro de casa e o D. já tava nesse processo, já tava no fim, então a prioridade era dele, na época. Aí ele se formô, fez Pós-Graduação, enfim, fez várias coisas e aí depois que as meninas nasceram, foi que eu pensei em fazê vestibular” (Canela, 40 anos, 2002).
A atribuição de sentido à escola, no caso de Canela, é diferente com
relação ao que herdou e ao que está legando. Sem vínculos com o mundo do
trabalho que incluíam a felicidade, o prazer em realizar um trabalho escolhido
via escolarização, só cursou a Universidade para aprimorar-se em um campo
onde já havia exercido, por alguns períodos, tarefas que considera subalternas,
como as de secretária. Para os filhos, no entanto, evidencia o desejo de que a
escolarização permita escolhas profissionais e o que vem acoplado a esse
projeto: situação confortável economicamente falando, bens materiais, viagens.
Nas palavras dela:
“A gente sempre, o que a gente coloca prás crianças é o seguinte: herança que vocês tem é a educação. A grande herança que as crianças tem é a educação. Prá quê? Prá que eles possam, com isso, fazê a sua vida profissional, entende, e tê os benefícios todos materiais que eles são afim, viagem, casa, vida, tê as coisas boas prá isso eles precisam estudá prá tê uma boa profissão” (Canela, 40 anos, 2002).
Outra das interlocutoras desse grupo que passou pela Universidade,
Carambola (32 anos, 2002) se diferencia por ter sucesso em sua profissão e
poder viver dela, por ter podido escolher e exercer a escolha profissional.
Licenciada em Matemática e cursando Especialização em Educação, trabalha
como professora substituta de uma Instituição Federal de Ensino Superior,
como professora de Física em uma Escola Privada e como professora de
Matemática e Física em uma Escola Estadual de Ensino Fundamental, onde é
124
reconhecida como competente, apaixonada pelo que faz e capaz de exercer
entre os adolescentes uma liderança e um exemplo profissional. Nascida em
um país da Europa, ao vir para o Brasil sofre os primeiros impactos do
desconhecimento da língua:
“Eu não sabia direito o português, não falava em aula, além do bendito “presente” que eu falava todo errado por causa do sotaque. Como eu não queria ser diferente, comecei a treinar muito, a pronúncia correta das palavras, principalmente a do erre. Hoje, sou a única na minha família que perdeu praticamente todo o sotaque” (Carambola, 32 anos, 2002).
O sentido atribuído à escola para si é o do acesso ao mundo do trabalho
qualificado que permite que esteja em relação de igualdade com o marido,
diferentemente do esperado por sua família para a qual o ensino médio e um
bom casamento seria o suficiente. Para o filho ainda pequeno, deseja uma
escola que reproduza a escola infantil onde o saber é aprendido com prazer.
Acredita que a escola poderia ser mais importante na vida de crianças e
adolescentes, proporcionando saberes de ordem mais prática, como pequenos
serviços e habilidades que preparassem o jovem para a independência. Em
suas palavras:
“Acredito que a escola deve ensinar os conteúdos específicos, fazer com que o aluno descubra afinidades para se preparar profissionalmente. Além disso, deve ensinar valores como convívio, ética, caráter. Deve ainda ensinar a ler e interpretar, a estudar, a cozinhar para que os alunos sejam mais independentes. A escola deve ensinar ao aluno ser mais autônomo” (Carambola, 32 anos, 2002).
Ao realizar sua atribuição de sentido na escola, é possível perceber que
a escolha profissional é fruto de um paradoxo calcado na fragilidade e
temporalidade das categorias “fracasso” e “sucesso” escolar99, ou seja, seu
sucesso é construído a partir do suposto fracasso, como ela mesma explica:
99 As palavras “fracasso” e “‘sucesso” escolar são categorias, “primeiro e antes de tudo, produzidas pela própria instituição escolar e são noções que variam histórica e socialmente. O tema do fracasso ou do sucesso é o produto discursivo histórico de uma configuração escolar e econômica singular com um sentido e conseqüências que variam historicamente” (Lahire, 1997:54).
125
“A minha maior dificuldade, dentro ou fora da escola, é ter que escrever, desenvolver um texto. Como eu não estudei a língua portuguesa, brasileira ou brasiliana, propriamente dita, sinto uma grande deficiência no meu vocabulário. Bom, mas foi então na disciplina de matemática que eu podia mostrar que não era burra, pois na matemática eu sabia mais que meus colegas. A matemática fez crescer a minha autoconfiança que acabei trazendo para minha vida profissional” (Carambola, 32 anos, 2002).
Última das interlocutoras desse grupo, Ipê (40 anos) é Nutricionista, tem
sucesso no exercício de sua profissão e vive dela. Incomodada com a
competitividade que encontra no mercado de trabalho, que considera
extremamente limitador do humano, voltou a estudar, agora em uma
Universidade Holística, trazendo para as relações de trabalho (com as
funcionárias e os clientes do restaurante que administra), alguns dos princípios
que estuda.
Neta de agricultores ricos que faliram na infância do pai, pouco
conheceu da opulência que ouviu contar e da sua infância tem lembranças da
ausência do pai pela necessidade do trabalho intenso, do discurso a favor da
escolaridade herdado e dos momentos na cozinha que a mãe comandava com
maestria. É dessa origem que herda o desejo de estudar e se profissionalizar
em Nutrição: estudar para satisfazer o desejo do pai que não poupou esforços
para manter os filhos em escolas privadas; em nutrição para dominar a arte da
mãe, as combinações perfeitas de afeto e sabor com as quais era esperada a
cada dia, depois da escola.
Ao legar atribuição de sentido à escola para a única filha, cobra desta os
saberes (ler, escrever, fazer relações) e os ritos típicos da escola (ir à aula, não
se indispor com professores, suportar as mediocridades) mas, ao mesmo
tempo, investe em possibilidades que extrapolam o universo escolar, como
viagens, cursos de línguas, intercâmbios e estágios na administração do
restaurante, além de investidas na cozinha para que a menina aprenda a
preparar pratos.
O sentido atribuído à escola é o de um lugar onde se acessa uma
profissão pois lá, acredita, o conhecimento está organizado cientificamente, de
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forma atualizada e profunda. No entanto, relativiza esses saberes, afirmando
que a vida tem uma carga de conhecimentos que inexistem na escola. Nas
palavras dela:
“Eu acho que a escola passa muitas coisas teóricas, que muita teoria a gente não consegue fora dela, mas prática na verdade é vivendo. É muito simples: eu posso explicá prá minha filha toda a teoria de como se administra um restaurante mas daí ela está aqui dentro e me auxilia e vive inserida no dia-a-dia, é completamente diferente. Acredito que a bagagem dela vai sê outra, que isso também é uma escola prá vida dela, sabê gerenciá dinhero, sabê gerenciá pessoas, porque a gente lida com gente o tempo inteiro. A gente não consegue vivê só do conhecimento da escola. E o relacionamento? Isso é muito importante. Embora a escola também tenha isso, mas eu acho que a gente precisa mais, eu acho que isso não é suficiente” (Ipê, 40 anos, 2002).
O elogio que Ipê produz à escola se origina na contradição que a
instituição escolar produz ao ser parte de um processo mas não suficiente. É
dessa aparente falta que se evidencia sua importância na vida dela, uma vez
que teria condições de prescindir da escola para a filha. Seu retorno à
Universidade Holística indica, primeiro, sua maturidade, as demandas de uma
mãe de adolescente em busca de um sentido maior para a convivência
humana e, segundo, a crença de que em um lugar diferente do cotidiano, com
saberes, livros, pessoas, pensadores, agrega a possibilidade de saber mais.
Nas relações de trabalho, que teve a oportunidade de desenvolver
nesses últimos quinze anos, pode experenciar seus conhecimentos
específicos, legados pelo diploma acadêmico e, também, experenciar suas
fragilidades, campos de saber não apreendidos na Universidade que lhe fazem
falta. No entanto, não é na vida que encontra os princípios desses saberes, as
chaves para transpor as portas que vão se apresentando, ora fechadas, ora
semi-abertas, ora escancaradas. É no retorno ao saber organizado, um outro
tipo de saber, que se produz o elogio à escola:
“Eu acho que o ser humano é um eterno aprendiz e eu acho que a gente tem que se melhorá em todo os níveis. Eu busco a Universidade por causa disso. Hoje a minha visão é essa. Eu desejo que minha filha
127
tenha uma profissão, seja feliz com a profissão que ela escolhê e prá que a gente vá prá frente é preciso saber mais, né?” (Ipê, 40 anos, 2002).
2. Escola é espaço social
“Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações
e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um ‘suplemento’
aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias.
Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem.
De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem,
antes ou enquanto os pés a executam”. (Certeau, 1994:202).
Espaço é um lugar de pertencimento, de convivência, de
estabelecimento de relações, de movimento. Espaço é um “lugar praticado”,
diferentemente de um lugar próprio distintivo, definido geograficamente, um
estático ficar, circunscrito, ocupado. Um lugar implica uma indicação de
estabilidade, é a ordem segundo a qual se distribuem elementos nas relações
de coexistência e espaço é um lugar praticado que, diversamente do lugar,
não tem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Espaços são
especificados pelas ações de sujeitos históricos. (Certeau, 1994: 202-203).
Lugar praticado pois indica movimento sem o qual não seria espaço, seria
apenas um lugar. Para Perez, “a subjetividade e a cultura são construções espaço-temporais. O espaço é empírico, tem um corpo, um conteúdo que é a sua substância. A cultura é produzida nos lugares, as idéias são produto da vivência do lugar” (Perez, 2001:103).
Assim, uma escola “geometricamente definida por um urbanismo é
transformada em espaço” pelos estudantes. “Do mesmo modo, a leitura é o
espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos –
um escrito” (Certeau, 1994: 202-203). Como lugar praticado, o espaço indica
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instabilidade e é especificado pelas ações de sujeitos históricos, ao mesmo
tempo em que é descrito a partir das relações de pertencimento ou exclusão da
história desse mesmo espaço.
Imaginar a escola como um espaço social não significa desejá-la do
mesmo modo, afirmá-la igual, nem, tampouco, vivê-la do mesmo modo pois
“existem tantos espaços quantas experiências espaciais distintas” (Merleau-
Ponty in Certeau, 1994:202) e, entre as interlocutoras desse estudo, ficou
bastante evidente a multiplicidade de sentidos para espaço. Sentidos
complementares, refletem diferenças de capital cultural herdado e a ser legado,
mas fundantes de uma imagem instituinte de escola: o espaço existencial. Para
Merleau-Ponty há um espaço antropológico, ou seja, a existência é espacial, é
a relação de nosso ser como um ser situado em relação com um meio, um ser
situado por um desejo, indissociável de uma “direção da existência” e plantado
no espaço de uma paisagem (Merleau-Ponty in: Certeau, 1994:202).
O imaginário social se expressa por meio do simbólico e captar o
simbolismo de uma sociedade é captar suas significações. Como rede de
sentidos que permite a constituição de identidades pessoais e sociais, através
de um processo cotidianamente vivido por cada um, evidencia o sentido de
grupos ou de singularidades e, na troca, no movimento que a comunicação
desses ocasiona, possibilita a redimensão de sentidos.
No grupo de mulheres que mais fortemente atribuiu sentido à escola
como espaço social, três vértices distintos foram comunicados. O primeiro
deles é o sentido de pertencimento ao espaço intelectual que disponibiliza
saberes organizados através de um disciplinamento para a investigação e de
um grupo de iguais. O segundo é de pertencimento a um espaço sócio-cultural,
que tem saberes organizados e disponibilizados de acordo com a origem sócio-
econômica dos usuários. O terceiro é o de pertencimento a um espaço
antropológico representado pela convivência com os semelhantes.
Essas atribuições de sentido têm origem nas relações culturais e de
classe das interlocutoras, mas não só. Algumas delas (o grupo com maior
longevidade) sabem que a escola acessa o mundo das profissões e também
outras posições sociais mas não têm mais tempo para realizar esse trajeto e,
em alguns casos, não a desejaram como projeto de vida. Assim, a escola para
129
elas, é lugar de convivência e, ao atribuir sentido à escola de filhos e netos, é
que retomam sentidos socialmente construídos, produzindo um deslocamento
de sentidos.
O significado de escola como um espaço social foi evidenciado mais
intensamente por seis interlocutoras: Absinto (39 anos, 2002), Cerejeira, (75
anos, 2002), Eucalipto (32 anos, 2002), Erva-Cidreira, (62 anos, 2002),
Madressilva (45 anos, 2002) e Romã (72, anos, 2002). Destas, quatro são
mulheres com pouquíssima escolaridade (participam de um programa de
alfabetização para jovens e adultos há cinco anos, aproximadamente), uma
delas ingressou na Universidade com quarenta anos, atualmente cursa pós-
graduação em nível de especialização e exerce a profissão em uma escola
infantil pública na periferia urbana de Pelotas. A última interlocutora desse
grupo tem todos os atributos de uma intelectual: graduação, mestrado e
doutorado exercendo a função de professora e pesquisadora em uma
Instituição de Ensino Superior. Todas têm filhos e apenas uma delas atribui o
mesmo sentido à escola para si e para os filhos, justamente aquela que
realizou, com intensidade, o sentido atribuído à escola.
O sentido de escola como um espaço antropológico, está presente no
depoimento de Cerejeira (75 anos, 2002) interlocutora de maior longevidade
entre as pesquisadas que, migrante da zona rural, encontrou na cidade
trabalho e possibilidades de escolarizar os sete filhos:
“Ah, os meus filho? Eu sempre, sempre, sempre quis dá o estudo pra eles, porque eu dizia prás guria: óia, até se vocês qué trabaiá, voceis trabaiem mas primeiro de tudo o colégio, de manhã até meio dia tem colégio prá voceis e despois, cês vem prá casa, cês almoçam, querem trabaiá, vão trabaiá, mas primeiro de tudo o colégio. E graças à Deus, todos eles tiveram estudo, todos!” (Cerejeira, 75 anos, 2002).
No bairro em que mora exerce uma liderança por ter sido uma das
primeiras moradoras, por ter fundado a Associação e por ter acessado a
Universidade através do Posto de Saúde. Na sala de aula, como reflexo dessa
liderança, todos silenciam quando fala, quando rememora episódios não
apenas de sua história recente mas também dos tempos vividos na campanha,
130
ainda menina. Seus filhos, na faixa dos 50 anos já são avós, e ela lembra deles
ainda crianças, dependendo de seus cuidados e orientações.
A ela é permitida uma certa malícia, uma vez que é detentora de
experiência e, portanto, a voz mais moral da sala de aula. Sabedora dessa
possibilidade, é ela quem orquestra os momentos de descontração, as piadas,
os comentários jocosos. O imenso prazer em vir à escola se apresenta através
do banho tomado, do perfume e do cabelo arrumado. Apesar da extrema
dificuldade de locomoção, mostra-se disposta, falando alto na chegada e na
saída, comprometendo as professoras com o dia seguinte e cobrando a
presença de coordenadores, a realização de passeios, de visitas, de festas.
Através de sua experiência espacial codifica o lugar, faz ele existir a seu modo,
envolvendo colegas e professores nessa dinâmica, tornando a sala de aula um
espaço a ser preservado pois é nele que ela exercita sua liderança, que revive
o tempo de moça e as inúmeras histórias que acumulou na memória.
Cerejeira tornou o espaço da sala de aula, um espaço público portanto,
um lugar de reconhecer-se e, ao ser ouvida, admirada, acarinhada, reinveste o
espaço de significados, beneficiando todos os que ali estão, no movimento que
instituiu. O espaço antropológico pode ser vislumbrado em sua trajetória na
escola pois, embora plantada “no espaço de uma paisagem” (Certeau,
1994:202), a sala de aula, pela sua não formalidade, só existe na medida em
que é invadida pela confluência dessas trajetórias e só pode ser narrada
quando da relação entre as pessoas.
Também para Romã (72 anos, 2002) a escola é um espaço
antropológico, representado pelo desejo de conviver, de esquecer as dores que
sua vida lhe proporcionou. Impedida de ir à escola desde menina, guarda uma
grande mágoa da mãe que não lhe manteve estudando, embora não considere
correto lembrar dos mais velhos dessa forma.
Viúva, mãe de um único filho falecido (que estudou até o 1º ano do
Ensino Médio), credita a morte desse ao desejo de ajudar os pais, o que
realizou abandonando a escola para trabalhar. A dor com a perda, não a
impede de evidenciar que o único filho foi escolha do casal, para que o mesmo
pudesse ter uma educação adequada. No entanto, esse sentido atribuído à
131
escola não foi herdado pelo filho que optou por uma saída mais imediata, como
ela mesma afirma:
“Depois que ele fez o primário ele estudô no Pelotense, nós queria que ele seguisse a carrera prá sê alguma coisa na vida, sim, por isso nós tivemos só ele prá educá! Prá te ele bem, quando chegô o tempo do quartel ele não quis pediu prá nós se virá prá ele não precisdá í pro quartel e nós queria que ele fosse, consegui que ele era filho único, aquela coisa toda, né, ele não foi pro quartel. Aí sabe o que ele inventô? A música. Tocá no Conjunto. Tocô em três Conjunto. No fim ele tava no São Remo. Aí ele foi prá música e disse que estudá ele não ganhava dinhero e músico ele ganhava, prá ajudá os pai, eles tocavam baile, ganhavam, ele ganhava bem. Ele ajudava os pai” (Romã, 72 anos, 2002).
Séria, encara a sala de aula como um lugar de promoção do saber, não
ri, não gosta de barulho, não acha interessante quando as professoras
indagam a respeito da vida dos alunos. Quer saber mais, aprender, de
preferência coisas difíceis. Gosta de fazer provas de conhecimentos e de saber
suas chances de ir adiante. Como aposentada e dona de um certo padrão
sócio-econômico, não depende da escolaridade para melhorar de vida,
freqüentando a escola por prazer. É no embate com os seus que mostra a linha
de argumentação que a inclui no grupo que percebe a escola como um espaço
social:
“Tenho muitos amigos aqui e no grupo de idosos também. Tenho sobrinhos, o mesmo que filhos, todos me ligam seguidamente, me visitam prá vê comé que tô porque eu sô sozinha, né, então os sobrinhos são mais chegados que a própria irmã que eu tenho. Alguns acham que é bom estudá, alguns acham que pela idade que eu tô eu não divia, me cansando, pegando frio à noite, aquela coisa não é, tem um sobrinho que diz: Mas prá quê estudá? Mas eu digo: Eu gosto, eu gosto!” (Romã, 72 anos, 2002).
O desejo que a fez voltar à escola não está alocado em nenhuma
necessidade imediata, embora tenha declarado que a escola acessa saberes
importantes e o sentido atribuído à escola hoje se concentra na possibilidade
de, com idade avançada, estar na escola. É valorizada por isso, é tomada
como exemplo para outros estudantes e gosta de ser destacada, declarando
132
seu interesse em avançar na escolaridade. A frustração por não ter tido a
oportunidade de estudar e a revolta por não ter convencido o filho a
permanecer na escola estão na mesma ordem de sentidos que a movem para
participar de um dos lugares onde se distrai, onde passa o tempo de sua
velhice e onde é reconhecida como sábia.
Aparentemente uma contradição, o depoimento de Romã impossibilita
uma interpretação à imagem e semelhança do real necessitando “traduções e
reconstruções com base em estímulos captados pelos sentidos”, uma vez que
“o conhecimento não é um espelho das coisas do mundo externo” Morin
(2000a). Assim, o sentido que atribui à escola é a ponte que possibilita traduzir,
reconstruir e até criar interpretações acerca do real, investindo-o de verdades,
reescrevendo a própria história, num misto de razão e emoção que produz um
sentido que extrapola as evidências, tornando-se único, só possível na
singularidade.
As informações, recolhidas via trajetórias comunicadas, são sempre
reelaboradas e não podem ser compreendidas linearmente, sofrendo uma
interpretação desde sua emissão, pelos falantes, até a escrita e análise dessas
comunicações, tornando o processo de significação repleto de atenuantes,
silêncios, exclamações. Ao relatar as escolhas do filho, Romã reinstala a morte
e ocupa um lugar que o filho não quis.
“Eu venho na escola por distração, prá me distraí, porque eu fiquei viúva, não tenho filho, perdi meu filho em 80, aí fiquei com meu velho. Meu velho sempre adoentado, adoentado, foi, foi, ele adoeceu, morreu e eu fiquei sozinha. Aí eu pensei assim: eu já tinha grupo de idosos, já tinha a piscina que eu faço minha ginástica na piscina, faço a piscina às terças-feira, aí depois como eu fiquei sozinha eu disse: Sabe duma coisa? Eu vô continuá no grupo, vô arrumá mais coisa prá mim tê, aí comecei a estudá!” (Romã, 72 anos, 2002).
Para Erva-Cidreira (62 anos, 2002), também com uma história de
perdas, a escola é um ancoradouro, um espaço reservado para pertencer com
dignidade, para o qual se organiza, se perfuma e se faz acompanhar do
marido. Aos sessenta e dois anos, ainda lembra da infância sem escola, de ver
133
as crianças rumando para lá e não poder ir, pela falta de recursos e pela
necessidade de trabalhar:
“Lembro de vê otras criança indo prá a escola e chorava escondido mas quando a mãe perguntava porquê tanta tristeza, não tinha corage de contá que tinha vontade de também ir prá escola” (Erva-Cidreira, 62 anos, 2002).
Fragilizada por essas lembranças, não consegue relaxar na sala de aula,
culpando-se por não saber, por não ter desenvoltura com as coisas de escola,
por não saber brincar. Diferentemente de Cerejeira (75 anos, 2002), acredita no
saber alocado nas relações de sala de aula, busca com insistência aprender
mais, encara os estudos com método, silêncio, cópia, atenção e reprova
procedimentos mais ousados, conversas, diálogos, música. Carrega consigo
uma imagem de escola que busca instituir, embora não seja esse o sentido que
a move.
Tendo trabalhado na terra como lavradora e depois nas indústrias do
doce nos anos 80 como safrista, hoje está aposentada e cuida do serviço
doméstico e do marido em permanente estado de dependência. Antes de
preencher suas noites com a escola, responsabilizou-se por uma neta que,
com problemas mentais e motores, demandou intensos cuidados por
aproximadamente quinze anos, durante os quais tentou algumas vezes voltar à
escola. Com a morte da menina, Erva-Cidreira se deparou com o tempo
disponível e viu na escola uma possibilidade de amainar o sofrimento da falta,
como afirma:
“Depois que ela morreu, nem eu nem o Airto tinha mais nada para preencher o tempo e resolvemo estudá na escola do Postinho onde espero aprendê a lê e escrevê bem rápido. Eu tô gostando das aulas” (Erva-Cidreira, 62 anos, 2002).
O sentido atribuído à escola é o de ocupar o tempo, resgatar, através da
conversa com outras mulheres, colegas e professoras, a infância longe da
escola e encontrar ouvidos e solidariedade para suas dores. É entre as
mulheres que mais tempo ficaram à margem da escola, que sofreram grandes
134
perdas e que encontram e produzem na escola um espaço de relações
afetuosas que essas manifestações são encontradas.É comum que elas digam
que as professoras são como filhas, como mães, “coisa mais querida”,
atenciosas, carinhosas, pacientes. Sentido atribuído à escola, o espaço do
cuidado é materializado por iniciativa das mulheres que a ela acorrem e
confirma o que diz Certeau (1994) acerca do espaço, um lugar praticado.
Para Eucalipto (32 anos, 2002), embora jovem, a escola representa esse
mesmo espaço porque sua história de vida foi escrita longe da escola, uma vez
que sempre foi considerada louca100 e sem possibilidade de aprender. Embora
declare querer ser uma advogada ou promotora, a escola não mais lhe oferece
a realização do sonho uma vez que, com rudimentos de escrita e leitura, tem
muitas marcas que a impedem de ir adiante. O mundo do trabalho, a filha
pequena, o abandono do namorado tornam seu cotidiano repleto de outros
compromissos, ficando a escola secundarizada. No entanto, o sucesso da filha
na escola toma conta de seu depoimento onde precocidade de escolarização,
conversas com a professora, ajuda em casa, solicitação de ajuda a vizinhos e
parentes e uma análise criteriosa da escola101 fazem parte do universo que
deseja oferecer, legar:
“Olha, eu não sei, eu ainda, eu penso ainda em me formá, estudá e chegá a me formá, em alguma coisa, né? Isso vai influenciar a minha filha, porque ela já vê o pai dela, o pai dela nunca deu nada para ela, nunca, nunca. O pai dela não tem casa, não tem estudo nenhum, eu não ando em casa em casa, eu tenho a minha casa. Hoje em dia, o estudo é uma importância muito boa, hoje em dia, se agente não tem estudo, a gente fica aí, não dá nem prá... Até para sê lixeiro tem que tê estudo!” (Eucalipto, 32 anos, 2002).
100 Essa interlocutora não tem um diagnóstico preciso de problemas mentais, muito possivelmente pela sua origem sócio-econômica. No entanto, acredito que cristalizou alguns comportamentos que tipificam, para o senso comum, a loucura, como, por exemplo, explosões de raiva, xingamentos a qualquer um na rua, surras na filha em público, desleixo com a aparência, presença constante no posto de saúde, entre outros. Na sala de aula, é dócil, fala bastante, alegre, interessada mas com pouca aprendizagem. 101 Para Eucalipto, uma escola boa tem algumas características e, ao descrever uma escola que tem no bairro, indica quais: “Ali nesse colégio é muito fraco, eles não ensinam nada, nada, tudo que pessoas que estudam alí, quando sai, para estudar em outro colégio, eles rodam, ali não tem união dos professor nem da diretora, é um colégio que tá sempre pedindo apoio, ajuda, na mídia e isso e aquilo, não tem como í prá frente, tá sempre dizendo que vai fechar, fechar, eu não boto ela ali, eu não! (Eucalipto, 32 anos, 2002)
135
Aos trinta e dois anos, solteira, pouco escolarizada, é na filha de nove
anos que joga todas as suas expectativas e por ela faz “bico” como faxineira,
babá, ou cozinheira. Alegre, bem humorada, gosta de “fofoca” e é “pavio curto”
como se autodefine. Adora as colegas mais antigas, faz parceira com elas e
tenta criar para si um código moral que a coloque em igualdade com as
mulheres que têm marido. Com a morte da mãe aos oito anos, foi abandonada
pelo pai aos cuidados de uma irmã que permaneceu na periferia urbana
enquanto o pai se desloca com os outros irmãos para a zona rural. Nunca mais
teve uma família que pudesse chamar de sua e foi, sucessivamente, deslocada
de uma casa à outra, recebendo, nestas, alguns cuidados e alguma escola.
Cresce à margem de que considera “respeito social” e a maior ofensa que
alguém pode lhe impingir é chamá-la de louca. O sentido atribuído à escola é o
de lugar onde se conquista respeito social, lugar que confere uma identidade,
aos olhos dos outros, que ela nunca conquistou: alguém que pensa, que sabe,
que fala “coisa com coisa”, que não se deixa intimidar, que sai à rua, que
“levanta a cabeça”, o que fica claro em seu depoimento:
“Eu sonho me formá, em alguma coisa não, assim em uma advogada ou numa promotora, mais se não acontecer, já bastô o que eu estudei, o que eu aprendi. O que eu já aprendi me ajudou muita coisa, antes eu saía, eu tinha que perguntar: Ah, fulano, onde é tal loja, que ônibus é aquele que eu tenho que pegá? E eu não saída de casa, eu vivia enfurnada dentro de casa, agora em tudo quanto é lugar eu vou. Eu não sei, o estudo, a pessoa tem que estudar, sem estudo não leva a nada! Antes, as outras mandavam fazê alguma coisa e eu ia correndo, que nem cachorrinho de madame, agora, ninguém manda fazê nada, agora é tudo assim, faiz esse favorzinho prá mim? Pega aquela coisa ali e faiz prá mim? Não, agora não, agora se eu dizê que não, é não! Antes eu ficava quieta, até quando alguém me xingava na rua sem eu fazê nada eu ficava quieta, agora não, agora falo, eu sei me defendê” (Eucalipto, 32 anos, 2002).
Pausa para seus impedimentos sociais, a escola na vida de Eucalipto
não passa de um lugar para conviver e adquirir respeito das vizinhas, das
professoras, dos familiares, da filha, do pai da filha. No entanto, o sentido
atribuído socialmente à escola está lado a lado com o sentido realizado,
fazendo com que ela deseje mais, o que torna o conhecimento acerca desse,
136
complexo, pois concentra fenômenos distintos e diversos. Para Petraglia
(1995:47) a dificuldade do pensamento complexo é justamente ter de enfrentar
a confusão, a incerteza e a contradição e, ao mesmo tempo, ter de conviver
com “a solidariedade dos fenômenos existentes em si mesmo”.
Muito possivelmente a ponte para a realização de um outro sentido de
escola na vida de Eucalipto passe pela qualidade do aporte cultural que ela
está disponibilizando para a filha, incluindo ela na possibilidade de ser, de
aprender, de ter. Ser gente, aprender uma profissão e ter respeito social.
Alocada em um outro grupo de sentidos e única representante dele, ir à
escola, para Madressilva (45 anos, 2002), à primeira vista, é definido como
pertencer ou participar de um espaço social onde as relações de classe estão
explícitas e, portanto, os lugares sociais que ela acessa estão determinados
desde o ingresso, de acordo com a origem de classe de cada um que a ela
chega. Essa imagem de escola enquanto espaço geográfico que se transforma
em um instrumento importante para a compreensão do mundo é encontrado na
obra de Milton Santos (1998) onde o lugar é “o teatro de uma nova identidade”,
uma vez que permite localizar-se territorialmente e historicamente.
Para Madressilva, a oportunidade de conhecer na infância o universo
cultural de uma parcela da sociedade caracterizada por ela como “elite”, a fez
acreditar que não apenas os espaços estão definidos pela sua ocupação mas
também os saberes que circulam neles sofrem a influência dessa disposição:
“Quando eu fiz o ginásio, eu tive a oportunidade de conviver com outro grupo social, uma elite da sociedade, eu tinha uma bolsa de estudo e ali eu conheci as diferenças sociais mais profundas. Enquanto a gente tem um uniforme, uma ou duas roupas prá sair, nós tínhamos colegas que viajavam pelo Brasil, iam prá Europa, donos de empresas, e aí a gente sente que existe diferença social pelo econômico e pessoas que às vezes não tem tanto dinheiro mas tem capital cultural, lugares, espaços sociais privilegiados, embora naquela época eu não discernisse tão bem como hoje, eu vi que ali havia maior diferença. Mas eu não via com a clareza que eu vejo hoje” (Madressilva, 45 anos, 2002).
Aos quarenta e cinco anos, casada, Pedagoga, cursando pós-graduação
em nível de Especialização em Educação e se definindo etnicamente como
137
exemplo de brasilidade pela multiplicidade de origens, é uma vencedora. Uma
mulher admirável que guardou o desejo de ter sucesso na escola em nome do
projeto familiar e, depois do projeto em curso, foi desafiada pelo marido e os
filhos a ser mais (Freire, 1987). As marcas desse desejo adiado estão
impressas em seu depoimento e a baixa auto-estima ainda a impede de
comemorar as diferentes vitórias que foi acumulando desde então. Para os
cinco filhos (na faixa etária que se estende dos 16 aos vinte e cinco anos)
programou e deu possibilidade de acesso à Universidade e, hoje, apenas um
ainda cursa o Ensino Médio. É na crença de que a Universidade acessa
saberes que permitem a compreensão das relações sociais e, assim, impedem
o desespero caso à escolaridade não corresponda um bom emprego, que
encontra o argumento central para tão bravamente lutar para materializar o
sonho que criou para os filhos:
“Os meus filhos, eu tinha este sonho, todos se formariam, não importaria o esforço que tivesse que ser feito, nem que vendesse cachorro quente na esquina, mas eles saberiam por quê que eles estariam naquele lugar” (Madressilva, 45 anos, 2002).
Estudantes da escola pública, os filhos sempre foram extremamente
cobrados em suas responsabilidades com a escola (notas, freqüência,
desempenho, classificação), o que os levou à aprovação nos vestibulares da
Universidade Pública sem qualquer outra preparação que não a escolaridade
fundamental e média. Ao reavaliar as exigências que nortearam a educação
familiar dada aos filhos102, afirma que o projeto de escolaridade para o mundo
profissional foi sua prioridade embora tivesse poucos elementos para avaliar o
quê, além da escolha profissional, a Universidade poderia oferecer. É após seu
ingresso na Universidade e nas relações de pertencimento por ela
disponibilizados que o sentido atribuído passa a ser, cuidadosamente103
redimensionado:
102 O capital cultural que a família disponibilizou para os filhos é contestado quando, nas primeiras tentativas de ingresso na vida profissional, um dos filhos, com escolaridade superior, não consegue materializar a crença de que a Universidade promove a ascensão social e se recusa a executar tarefas que exigem uma mais baixa escolaridade. 103 Embora racionalmente tenha elementos para questionar sua tese, durante o estudo a interlocutora não modifica a crença e o discurso, possivelmente pela necessidade de ir até o fim, com os filhos que ainda
138
“Mas como dizê pros nossos filhos que ali ele encontra outras coisas, que não é só o dinhero, enxergá o mundo, é se construí, é sê gente, é sê mais, melhor pessoa. Não adianta tu te esforçar e dar livro, roupa, tu tem que ter noção do que tu quer e preparar teu filho para ele poder seguir. Porque só dar as coisas, o jovem não está pronto, ele precisa de alguém que mostre o horizonte, que mostre que valores, que saberes a escola tem que os outros lugares não tem” (Madressilva, 45 anos, 2002).
Depois que o projeto inicial passa a ser materializado pelos constantes
sucessos na vida escolar dos filhos, e logo em seguida por ela mesma, o
sentido atribuído à escola (oriundo de sua família de trabalhadores e
fragilmente contestado por uma avó leitora) se desloca da possibilidade de
acesso ao mundo das profissões para o espaço de pertencimento a uma “coisa
especial”, como ela diz. Esse sentido, no entanto, encontro apenas para ela
mesma, como se, ao ter uma idade em que já não esperam mais nada dela, ir
à Universidade e viver com intensidade seus “lugares praticados” pudesse ser
apenas mais uma das inúmeras tarefas de ocupação do tempo.
Ao poder viver a Universidade sem o compromisso para o qual seus
filhos chegaram a ela, Madressilva foi autorizada, pelo marido e filhos mas,
fundamentalmente por ela própria, a viver intensamente cada uma das
oportunidades que a Universidade ofereceu e, assim, cursos extra-curriculares,
projetos, reuniões, palestras, oficinas, oportunidades de docência, viagens de
estudo e monitorias foram sendo agregados a sua formação acadêmica. Suas
palavras revelam esse movimento:
“Isso é diferente, a escola é uma coisa especial. A escola faz com que a gente enxergue o mundo com outros óculos, a gente pode ganhá pouco e vivê até melhor se tu tiver uma escolaridade maior porque tu sabe se organizá, embora que a escola não prepare diretamente prá isso, em todos os conteúdos curriculares ela forma um todo que a gente é outra pessoa!” (Madressilva, 45 anos, 2002).
estão no meio do caminho. Uma outra hipótese está localizada na desconfiança da capacidade de se inserir no mercado que um dos filhos apresenta, o que, de certo modo, manteria sua tese intacta. De qualquer modo, não é de racionalidades que estou falando.
139
O restaurante universitário, que freqüentava com curiosidade
sociológica, foi um dos espaços que mais intensamente lhe oportunizou
contatos com grupos de estudantes de diferentes idades cronológicas e
intelectuais, das mais diferentes escolhas profissionais, de onde, a cada dia,
vinha repleta de informações e argumentos. Foi nesse espaço que assistiu,
como a um cinema aberto, quatro anos de movimento estudantil, com suas
verdades e criações de verdades, com suas paixões e energia e do qual extraiu
a capacidade de considerar os diferentes lados de um mesmo fenômeno para
fazer dele uma análise mais completa. Segundo Perez (2001:103), a
“subjetividade e a cultura são construções espaço-temporais” e, para a
interlocutora, foi possivelmente nesses lugares, espaços e tempos vividos que
pôde subjetivar-se, criando uma linguagem própria que instaura os “valores e
saberes que a escola tem que os outros lugares não têm” (Madressilva, 2002)
como universais.
Outro espaço privilegiado onde pôde usufruir e produzir relações
culturais com idéias diferentes das que até então havia produzido acerca da
Universidade foi o transporte coletivo. Repleto de estudantes com histórias de
vida interessantes, cujos depoimentos ilustravam seus exemplos de
tenacidade, persistência e foco na formação profissional desencadeada na sala
de aula, “a vivência do lugar” (Perez, 2001:103) revigorou seus argumentos
com os filhos mas, mais que isso, complexificou sua possibilidade de atribuir
sentido à escola, tornando-a, o pertencimento a um espaço antropológico
representado pela convivência com os semelhantes104.
Um dos impeditivos de sua auto-estima, a idade maior foi um diferencial
na atuação em sala de aula em projetos nos quais desenvolveu a docência.
Através de seu depoimento, onde foi autorizada a considerar interessante a
retomada dos estudos após os quarenta anos, dava e recebia olhares de
incentivo e solidariedade de jovens e adultos que haviam abandonado a
escola, o que agregou para ela própria outra possibilidade de conhecer-se,
identificar-se. Ao instaurar o possível, reinventava-se, reescrevia sua própria
trajetória e, imediatamente, propunha-se a escrever junto com os outros, os
140
que estavam se aventurando, uma outra história. Ao elogiar a escola, elogiava
a si mesma, elogiava os que ainda acreditavam, instaurava a crença na
instituição, maior até do que ela própria suporta. Ao atribuir sentido tão amplo,
instituiu novos sentidos, fazendo com que todos em volta passassem a
perseguir esse instituir.
Representante de um sentido único nesse estudo, a Absinto é mais uma
das interlocutoras desse grupo que é admirável. Para ela, a escola permite o
encontro com os saberes organizados, através da relação com um grupo de
pessoas que busca saber mais, que aprimora relações de pertencimento e
essas relações alimentam a continuidade do pertencimento. Um dos autores
que estuda o espaço do ponto de vista do pertencimento geográfico e histórico
(o que chama de territorialidade), Milton Santos (1988) diz que “a definição do
lugar depende do cotidiano e a definição do cotidiano depende do lugar, um é
condição do outro”.
Diferentemente das mulheres que ao atribuir sentido à escola falaram
em pertencimento a um espaço sócio-cultural (com saberes organizados e
disponibilizados de acordo com a origem sócio-econômica dos usuários) e em
pertencimento a um espaço antropológico (representado pela convivência com
os semelhantes), o sentido atribuído à escola por Absinto evidencia os saberes
que são acessados nesse espaço, definindo a ida e permanência na escola
como o pertencimento a um espaço intelectual que disponibiliza saberes
organizados através de um disciplinamento para a investigação e de um grupo
de interlocutores de igual envergadura intelectual. Sua filiação a essa categoria
se dá pelo movimento realizado desde a mais tenra idade no sentido de
vincular-se prazerosamente e esse espaço, por ter poucas oportunidades de,
em outros lugares realizar sua atribuição de sentido ao saber e, também pelo
espaço que a escola, hoje, ocupa em sua vida, como ela mesmo rememora:
“É um exercício que eu sempre fiz, desde o início, e que vem lá desde pequena, essa coisa da curiosidade de querer ler, de conhecer as coisas, esse fascínio que eu tinha. Os professores que eu não esqueço são aqueles que adoravam as disciplinas que davam,
104 Semelhantes do ponto de vista de atribuir sentido, uma vez que a interlocutora encontrou, nesse espaço, a diversidade na mais radical acepção da palavra.
141
independentemente de serem mais autoritários ou menos, de serem mais ou menos doces, eram professores que gostavam daquilo que estavam fazendo, do conteúdo que estava sendo trabalhado. Aquele professor que ficava fascinado desenvolvendo um raciocínio, ensinando alguma coisa, era o fascínio, esse é o meu modelo de professor! Quando eu comecei a pensar sobre o meu desempenho como professora eu sempre me lembro de algumas figuras que são referência. E, é claro, eu tenho as referências daquelas pessoas que eu não quero ser parecida, as queridinhas, mimosinha, nhém nhém nhém, eu não quero isso!” (Absinto, 39 anos, 2002).
Aos trinta e nove anos, casada há vinte com um compositor, dois filhos
leitores e afinado senso crítico, seu ambiente familiar é repleto de
possibilidades de saber mais. A leitura, a música e a amorosidade são
elementos constituidores do seu cotidiano onde o sentido atribuído à escola
para si passou, delicadamente a ser incorporado pelos filhos tornando-a, de
todo o universo de interlocutoras, a única que pôde desejar para os seus, o que
desejou e conquistou para si.
Mestre e Doutora em Letras, trabalha como professora em uma
Instituição Federal de Ensino Superior onde deseja ser uma profissional como
as que conheceu em seus vários anos de escolaridade:
“O que eu quero levar como referência são essas pessoas que tem essa relação muito forte com o conhecimento. E na Faculdade a mesma coisa, no mestrado e doutorado esse meu perfil de professor são as aulas que eu gosto, as coisas que me instigam, que me motivam, eu gosto de enfrentar dificuldades, eu tenho curiosidade com as coisas que eu não sei, eu adoro uma aula que me traga um monte de informação e isso é o meu perfil de aluna, também, aí eu saía dali correndo para outras coisas, aí se me mandavam ler um livro aquele ali me mandava pra mais cinco diferentes” (Absinto, 39 anos, 2002).
É dessa referência de escola que, possivelmente amalgamou o sentido
que atribui, uma vez que acredita em processos desencadeados pela escola e
pelo uso, com seriedade, de seus saberes.
Filha de um casal pouco escolarizado, é através da convivência com as
tias professoras que dispunham de uma biblioteca, que inicia seu processo de
“significar os impressos” na infância. Oriunda do sul agrário e interiorano,
142
encontrou em Pelotas inúmeras oportunidades de letramento, o que se
transformou em seu objeto do desejo.
“Adorava ir nas aulas, me emocionava com algumas coisas que eu estava aprendendo, começava a lê coisas sobre arte, sobre cultura, aquilo ali me encantava, era bárbaro! E foi aí que eu pude começar minha biblioteca, tinha mesada, comecei a comprar livros clássicos da literatura universal, os que eu queria ler, que eu já tinha ouvido falar. Gostava muito de cinema, comecei aos poucos comprando discos, coisas que eu gostava de ouvir, de ler, foi um momento muito legal! E a faculdade eu ia fazendo!” (Absinto, 39 anos, 2002).
Na Universidade, pôde relacionar-se com diferentes campos de saberes,
inventariar suas fontes, transitar livremente pelos aportes teóricos de cada uma
das faculdades que iniciou e, mais que isso, percorrer os caminhos da boemia,
dos colóquios, do cinema, da música que passou a conhecer com mais
profundidade, instaurando um processo profundo de letramento que nunca
mais abandonou e que tornaram leves suas não permanências:
“Eu estava na Faculdade e eu devia essa obrigação porque o pai estava me bancando, então eu fazia as coisas como eu tinha que fazer, aquele 'feijão com arroz' mas gostava mais dessas outras coisas, aula de estética eu adorava e saía dali e ia na livraria e comprava a prestação livro de história da arte, daí eu lia... Eu fui aos poucos definindo quais eram as coisas que eu gostava de lê, qual era o tipo de leitura e de estudo. E, ao mesmo tempo, me fascinava essa discussão da política, eu comecei com o movimento estudantil, comecei a ler os clássicos da filosofia e coisas da política. Lá nas Ciências Sociais a gente estudava disciplinas que eu gostava muito, então eu vivia isso, lendo coisas, estudando e festiando também, porque claro, eu tinha dezoito anos” (Absinto, 39 anos, 2002).
O sentido que atribui à escola dos filhos não entra em contradição com
o que desejou e realizou. Buscou e tem tido dificuldade de encontrar a
instituição privilegiada para organizar, disciplinar e disponibilizar saberes e
competências que, além disso, seja um espaço social de convivência e
formação da infância e adolescência e, no entanto, não deixou de acreditar que
a escola poderia ser esse espaço. Em casa, rodeou os filhos de oportunidades
de letramento e mergulhou junto com eles nesse processo. Hoje, colhe os
143
frutos desse investimento, não apenas nas escolhas profissionais que a eles
será possível, mas sobretudo, no trânsito que esses realizam na vida.
O elogio à escola, na trajetória de Absinto, é cotidiano, não se expressa
em palavras, mas em conquistas. É de sua seriedade em praticar o lugar que
tem acesso que saem fortalecidas as possibilidades de existência desse, o que
se expressa nas relações com orientandos e com colegas. Mas o elogio maior
está em poder superar o sentido funcional, ilustrado da escola, o que realiza
com os filhos e consigo mesma.
3. Escola é Projeto de Vida
“Quando tive meus filhos fiz um juramento
que eles estudariam de qualquer jeito, mesmo sendo exigido muito sacrifício.
Este juramento foi cumprido!” (Centeio, 64 anos, 2002).
O significado de escola como um projeto de vida105 foi evidenciado, mais
intensamente por quatro interlocutoras. Projeto de vida é mais que buscar a
escola para acessar uma profissão, ter saberes ou um lugar de convivência.
Ter consciência de seu lugar social, dos caminhos possíveis e dos lugares que
estão à espera depois da escola, para quem a entende como um projeto de
vida, são apenas parcelas de significado. Projeto de vida é viver intensamente
a escola e os saberes que ali estão disponibilizados, é ocupar os espaços
enquanto se acessa o saber maior que será a profissão escolhida, é usufruir
cada um dos momentos de convivência, trocas de saberes, enfrentamentos,
disciplinamentos e realizações, não adiando para o futuro o sonho de
cidadania.
Há apenas quatro mulheres desse estudo que assim percebem a escola:
A Centeio (64 anos), a Mangueira (61 anos), a Lúpulo (50 anos) e a Nenúfar
(45 anos). Duas delas (Lúpulo e Nenúfar) puderam viver esse lugar social e
105 Projeto de vida se inscreve nas escolhas éticas que cada um de nós pode vir a fazer, de acordo com a filiação moral, racional ou cultural. Nessa tese, não avalio nem categorizo as escolhas éticas das mulheres que atribuíram à escola o sentido de projeto de vida, apenas ressalto elementos que fazem com que suas escolhas, ações e deliberações configurem essa escolha.
144
usufruir o que pensam a respeito dela, desejando sempre mais do que foi
alcançado e envolvendo os filhos nesse projeto. As duas outras (Centeio e
Mangueira), tendo como norte esse projeto, não mediram esforços para que
seus filhos pudessem ocupar esse espaço, fazendo do vínculo dos filhos com a
escola o caminho possível para usufruir dela.
Para a Mangueira (61 anos, 2002) o projeto buscado na escola incluiu
um rompimento com os desmandos do pai que impediu o acesso à escola na
sua infância, um rompimento com o marido que considerava a vida possível
sem escola e um rompimento com o determinismo, que prevê uma vida
miserável para os filhos dos miseráveis. O movimento migratório realizado pelo
desejo de que os filhos, através da escola, alcançassem um trabalho menos
cansativo, menos bruto, menos mal-remunerado, mais valorizado socialmente
foi o propulsor desses enfrentamentos. Suas palavras deixam claro o que
sempre a manteve alerta, no rumo da escola desejada, uma rota perseguida
por ela para ser seguida pela família que constituiu:
“O que eu não tive que meu pai não me deu eu quero dá prá eles, pelo menos que eu dê o estudo pra eles! Vamo dá um jeito, vamo dá um jeito de í embora daqui pros gurí estudá” (Mangueira, 2002).
Ao avaliar o impacto do investimento que fez na família ao sair do campo
e insistir para que todos estudassem, Mangueira reconhece a brutalidade que,
às vezes, teve de utilizar para manter os filhos freqüentando a escola e, ao
revelar o tipo de argumentação que utilizou com os filhos, expõe sua imagem
de escola:
“Passava trabaio mas fazia ele í! Tem que í prá aula porque o futuro da tua vida é esse, o futuro é estudá. É pro bem doceis, quando é mais tarde eu não tenho nada prá dexá proceis...” (Mangueira, 61 anos, 2002).
A escola como projeto de vida demandou de Mangueira (61 anos, 2002),
o rompimento com o marido. Não porque esse não contribuía com a renda
familiar, porque era alcoólico e não assumiu nunca a filha que tinha problemas
mentais e sim, fundamentalmente, porque ele considerava a vida possível sem
145
escola. Ao não priorizar a escolaridade dos filhos como projeto, o marido de
Mangueira permitiu que atitudes de subordinação, exposição pública das
fragilidades e exploração do trabalho da mulher e dos filhos pequenos se
agregasse à situação de miséria econômica na qual viviam. É dessa
argumentação que Mangueira se utiliza para defender a necessidade de tornar-
se uma mulher que pensou por toda a família. Para ela, a grande vitória no
embate com o marido se dá através de um dos saberes que a escola
disponibiliza: a escrita.
“O pai deles não, o pai deles: “Eu não estudei e não faiz falta, não vai fazê falta!” Agora eu bato na cara dele, tu tem que fazê um papel, tu não tem direito de nada, nem de assiná o teu nome porque tu não sabe, pagá um, fazê um papel prum otro assiná por ti, porque não tem valor. Tá vendo como é triste? Digo prá ele, na cara dele, eu digo” (Mangueira, 61 anos, 2002).
Para Centeio (64 anos), o projeto começa a ser gestado quando há um
rompimento com a escola, quando é impedida, pelas condições familiares, de
permanecer em um processo de escolarização e de vínculo com a cultura
herdada dos avós imigrantes:
“Aos oito anos fui morar na casa do meu avô paterno a pedido do mesmo para viabilizar a vida escolar automaticamente comecei a conviver com a cultura. Meu avô era decendente de Italianos vindos da Italia portanto tinha uma visão adiantada, de progresso. Nós tinhamos ascesso ao jornal da época que era o Correio do Povo recem fundado do qual meu avô era acinante, tinhamos a nossa disposição uma coleção de livros intitulado o Tesouro da Juventude, mas só podiamos manusia-los se estivessemos com as mãos bem limpas” (Centeio, 64 anos, 2002).
Para ela, no entanto, não são as condições financeiras que a tiram da
escola e sim a desorganização, o descompromisso e a impunidade do pai
diante da infância. Numa cultura familiar onde crianças obedeciam, ir à escola
dependia da vontade dos adultos. Adulta, ela inverte as prioridades e torna a
educação dos filhos o central de sua própria vida:
146
“Fiquei muito revoltada quando com 11 anos me tiraram da escola, que mais tarde quando tive meus filhos fiz um juramento que eles estudariam de qualquer jeito, mesmo sendo exigido muito sacrifício. Este juramento foi cumprido pois tenho 5 filhos e todos estão formados pela Universidade Federal, em diversas profissões, pelo qual estou muito feliz” (Centeio, 64 anos, 2002).
Bernard Lahire (1997:334) busca compreender as razões do improvável
sucesso escolar de sujeitos oriundos dos meios populares fazendo uma análise
do discurso dos educadores que afirmam a omissão dos progenitores na
produção do fenômeno do não aprender. Para o autor, esta argumentação é
um mito produzido pelos professores e uma “tremenda injustiça interpretativa
que se comete quando se evoca uma omissão ou uma negligência dos pais”.
Embora algumas mulheres tenham declarado que a escola nunca foi
significativa para seus pais como no caso de Mandacaru (55 anos, 2002),
“Meus pais nunca deram importância para os estudos, para a gente estudar,
quando a gente quis parar, todo mundo parou, ninguém forçou, porque eles
eram analfabetos também, meu pai e minha mãe”, a maioria delas afirmou que
isso se deu pela necessidade de sobreviver e que os filhos sempre foram mão-
de-obra indispensável na reprodução da família, tanto na lavoura, quando
moradoras da zona rural, quanto na cidade, como empregadas nas indústrias
do doce, nas casas de família, nos serviços subalternos e brutalizantes. A
distância da escola, geográfica e simbolicamente está bem definida na fala de
Mangueira que indica, dentro da sua família, o significado apreendido:
“Meus avós eram de lá mesmo, não sabia nada, nem lê, nem escrevê, não ia na Igreja, só conhecia dinhero, isso sabia. Ia no cartório registrá os filhos e deu! Nem se falava em escola, prá í a pé nem dava!” (Mangueira, 61 anos, 2002).
Ainda a respeito da tese que localiza nos familiares a omissão pelo
legado simbólico do conhecimento, defendida por professores e também pela
sociedade como um todo, Lahire (1997:335) afirma que “o termo moralizador
de omissão, que remete a um ato voluntário, uma escolha deliberada da parte
dos pais” que está presente na acusação da não escola para os filhos, nem
147
sempre corresponde ao que se pode apreender das realidades de
interdependência social. Na vida das mulheres dessa tese, fundamentalmente
das duas que não tiveram escola para si mas que a viabilizaram para os filhos,
não há a afirmação de escolha deliberada, mas de despreparo, descaso, falta
de interesse, pouco esforço no sentido de cumprir com o desejo que elas,
crianças, tinham e, ao mesmo tempo, a argumentação que utilizam para ter
agido de forma contrária a seus progenitores, se localiza nesse mesmo
universo: sacrifício, no caso de Centeio e jeito, no caso de Mangueira, ou seja,
a atitude fundada nas deliberações, o que caracteriza o projeto ou o ato
voluntário.
Um outro fenômeno registrado entre minhas interlocutoras foi a diferença
entre “herança cultural e condições adequadas para que o herdeiro herde”
(Lahire, 1997). Progenitores interessados em materializar seus próprios
desejos de escola através da escolaridade das filhas, os pais de Ipê (40 anos,
2002) e de Jequitibá (45 anos, 2002), não tiveram sucesso em transmitir o
capital cultural familiar, caracterizando o que a literatura indica como um
desperdício de capital cultural. Segundo Ipê, a insistência do pai para que as
filhas estudassem estava alicerçada na impossibilidade que este, na infância,
havia encontrado para concluir seus estudos, na dor que sentiu quando foi
obrigado a sustentar a família que havia sofrido profundas perdas econômicas.
Em suas palavras:
“O pai a vida intera fala isso prá gente, que o maior orgulho dele é que a gente tenha se formado. A mais velha largô a faculdade e ele fazia propostas mil para que ela acabasse a faculdade. Ele queria que a filha tivesse um diploma e ela nunca acabô” (Ipê,40 anos, 2002).
No caso de Jequitibá (45 anos, 2002), o capital cultural não foi herdado,
segundo ela, por imaturidade, por não acreditar que a adultez chegaria um dia,
por não reconhecer a necessidade de uma profissão e não ter a dimensão do
mundo racional que o pai propunha. Afirma também, que este projeto era
apenas do pai, não encontrava eco nas atitudes e discursos da mãe que,
diante das reclamações do pai de que as crianças não estudavam e não
148
levavam a sério a escola, se contrapunha, desencorajando as cobranças mais
intensas:
“Nossa mãe nos passava a mão porque quando ele brigava porque não estudava e ele nos dava oportunidade ela dizia basta eles não serem marginais” (Jequitibá,45 anos, 2002).
Nos trajetórias abordadas acima, o capital cultural indisponível ou não
cultivado em algumas famílias gerou desejo de escola em mulheres que
fizeram dela um projeto de vida para si ou para os filhos. Esse mesmo capital
cultural foi desperdiçado por outras mulheres, que hoje, com filhos, retomam o
discurso e as atitudes de seus pais para reinstaurarem com os filhos o que não
realizaram. Essa aparente contradição leva a supor que o capital cultural
circula e independe dos laços geracionais, estando mais vinculados a
experiências sociais e emocionais intensas, a escolhas éticas e a significações
do mundo da escola que, talvez, expliquem o desejo por escola em famílias
que não a cultivam como projeto.
Das quatro mulheres deste estudo que se referem à escola como um
projeto de vida, duas puderam viver esse lugar social e usufruir o que pensam
a respeito dela: Lúpulo (50 anos, 2002) e Nenúfar (45 anos, 2002) que, junto
com a realização pessoal, agregaram os filhos no projeto. São mulheres que
tiveram impedimentos no sentido de ampliar sua passagem pela escola e até
restrições quanto a vivê-la com qualidade. No entanto, têm escolaridade
suficiente para entender quais os saberes e competências que a escola
disponibiliza, buscam esses saberes e competências para si e para os filhos e,
mais que isso, se referem à escola como o norte de suas vidas ao mesmo
tempo em que lamentam escolhas diferentes por parte de algum dos filhos. Em
suas trajetórias fica evidente não apenas as características do projeto de vida
mas a linguagem que utilizam dando suporte a essas escolhas.
A interlocutora que mais sofre a ausência da escola e que manifesta isso
durante a investigação, não apenas enquanto espaço de conquista profissional
mas fundamentalmente como espaço para viver intensamente cada momento e
cada um dos saberes que ali circulam é Lúpulo. A escola significa, para ela
149
“O princípio, meio e fim da vida de uma pessoa, não que as pessoas que não tem estudo não tenham sabedoria mas o mundo em que vivemos somente com estudo pode conseguir um espaço melhor” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Embora reconheça saberes fora da escola, mantém firme a convicção de
que sem os conhecimentos que ali estão alocados o acesso aos lugares
sociais importantes como a direção de uma escola, a opinião publicada em um
jornal, um filho formado em uma universidade e o respeito de pessoas como
um Juiz, um professor, um médico, um escritor, por exemplo, serão
impossíveis. Apaixonada pelo universo da escola, faz dela seu projeto de vida:
estar na escola, ser vitoriosa nela, manter as filhas vinculadas e
progressivamente atingir graus cada vez mais intensos de escolaridade. Cerca-
se de pessoas bem sucedidas escolarmente como exemplos a serem
seguidos, cita-as em cada um das etapas de sua vida como referência para si e
para as filhas, utiliza como argumento as agruras que estas mesmas pessoas
passaram para garantir que é possível. Ao mesmo tempo, essas conclusões
lhe indicam a certeza de que alguma coisa de diferente essas pessoas têm,
pois, apesar de tudo que faz, as conquistas são frágeis, poucas, temporárias.
Sua narrativa evidencia a valorização extremada que atribui às pequenas
vitórias ao mesmo tempo em que amplia os impasses que vai superando:
“A passagem do primário para o primeiro ano ginasial, foi uma vitória pois as vagas eram conseguidas com exame de admissão, passei de cara. Poucos apostavam em mim e alguns outros me desiludindo, mas cada vez mais eu queria vencer. Poucos me elogiavam, mas mesmo assim eu jurava vou conseguir. Ao final, tive meu maior sonho cortado: desejava fazer Magistério. Eu não poderia ser professora, filha de criação de uma empregada doméstica analfabeta, era muito tabu para aquela época!” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Ao reapresentar o passado, observa os impedimentos – mas não as
vitórias –, com os olhos de hoje, com seus conhecimentos de mulher adulta,
com noções de divisão da sociedade em classes e não percebe que, em
alguns casos, suas atitudes de servilismo com os que acreditava cultos,
educados, poderosos, contribuiu para que ficasse à margem. No entanto,
150
pareceu-me que os momentos mais felizes de toda sua trajetória, aqueles que
deseja relatar para a pesquisa, aqueles que fazem parte da biografia que
gostaria de ver escrita são os passados na escola:
“Quando fui inscrever minha filha no Magistério, criei coragem. Para minha surpresa fui sorteada no Assis Brasil (359 candidatos só 150 sorteados) em 8º lugar e no Municipal Pelotense (430 candidatos só 22 vagas) em 2º lugar. Optei pelo Assis Brasil, pois era um turno só, como eu trabalhava há onze anos de doméstica na mesma casa, fiz um acordo: cursava e trabalhava por sete horas em turno inverso. Foi uma luta, mas consegui. Foram quatro anos de guerra total em todos os sentidos: casa, trabalho, filhas, marido e pior, dentro da própria escola a discriminação pela idade e pela função que eu exercia. Certos professores apostavam que eu não iria conseguir. Tive que lutar com unhas e dentes para o meu sonho não morrer. Chegava a dormir só três vezes por semana e à noite, depois que todos se acomodavam, lá estava eu, clareando o dia com os livros sobre a mesa, fazendo meus trabalhos para apresentar. Muitas vezes era elogiada, outras vezes humilhada, mas lá estava, firme. Fazia das amarguras as horas mais felizes de minha vida, dentro da sala de aula. Quando faltava algum professor nas séries iniciais, lá está a Lúpulo feliz da vida, regendo a classe que era uma 2º ou 3º e até 4º série. Cumpria o meu dever e saía feliz e sorridente pelos corredores” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Na história de Lúpulo, a escola é um projeto de vida pelas evidências
narradas e também pelo emprego de uma linguagem compatível com a força
de vontade, que caracteriza o projeto. Palavras como “pedras pelo caminho”,
“vontade de vencer”, “prêmio pela minha perseverança”, “realização total de
minha vida”, “subi no palco de toga e tudo que eu tinha me dado o direito”,
“aplaudida por todos”, “foi a glória”, “me senti aquela jovenzinha, que havia
guardado um sonho de 30 anos atrás”, indicam que ela se cercou de todos os
cuidados para não permitir que essa parca experiência de escola se tornasse
apenas mais uma experiência.
Minha pergunta com relação a essa interlocutora é: Como herdou o
desejo de escola e o sentido atribuído a ela que ultrapassa, em muito, a função
para a qual a escola foi criada? “Como herdamos? Quais são as condições
151
sociais, relacionais, para que uma disposição cultural possa ser ‘transmitida’
ou, em todo o caso, passada, de uma maneira ou de outra – à força de se
inculcar, de forma expressa ou difusa, direta ou indireta – , de um corpo
socializado a um outro corpo socializado?” (Lahire, 1997). De onde Lúpulo
retirou toda essa tenacidade, perseverança, resistência? Como não sucumbiu
às agruras, às violências que a vida lhe impôs? Como continuou perseguindo
cada um de seus objetivos, comemorou cada uma de suas vitórias, retomou
cada um de seus sonhos? Há pistas em sua narrativa que indicam a influência
de uma professora, talvez quem tenha significado a escola para ela:
“Tenho saudade e carinho por uma professora que foi muito boa, na quarta série. Ela me incentivava e dizia: ‘Vai ser professora, vai ser professora!’ Ela botava na minha cabeça, dizia que era o único meio de tapar todas as dores e todas as amarguras que eu tinha. Acreditei, acreditei tanto que, aos quinze anos, aprovada para o Magistério e não podendo cursar, olhei para o colégio e disse: um dia eu volto! Voltei trinta anos depois para dentro daquela escola! Não tapou nada, eu aprendi a conviver com as coisas!” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Já Nenúfar (45 anos, 2002) é uma mulher que, desde menina, sonhava
com a escola como “condição de sair e tirar minha mãe daquela pobreza”.
Filha de agricultores pobres e sem escolaridade, precisou abandonar a família
e trabalhar, mesmo menina, para custear os estudos e acessar a escolaridade
que desejava, o que considerou um “sacrifício” que valeu a pena.
Na trajetória de Nenúfar, a escola é projeto de vida desde a mais tenra
idade, a condição para alcançar um outro mundo não apenas para si. Quando
desiste de estudar, o faz por um pequeno tempo, ao casar e viver “3 anos de
muita felicidade”. É com a chegada dos filhos e dos problemas financeiros
que reinicia a pensar na escola como alternativa. O ingresso desses na escola
viabilizam sua retomada dos estudos, o que considera “uma mudança radical”
em sua cabeça e o magistério, que sempre foi seu ideal, pôde ser cursado. A
chegada ao curso superior é relatada como uma ruptura em sua forma de
152
pensar o mundo, provavelmente porque entrou em contato com uma Faculdade
politizada que desejava mais que formação acadêmica de seus alunos:
“Dois anos depois cursei pedagogia e daí para cá vivi ao mesmo tempo os sentidos de educar os filhos e trabalhar como educadora na escola. Na Pedagogia alcei o vôo da gaivota, abriram-se os horizontes. Passei para os filhos os melhores exemplos de força de vontade e coragem e principalmente de que a escola era o melhor lugar de se estar” (Nenúfar, 45 anos, 2002).
Também no relato dessa trajetória de vida o emprego de uma linguagem
compatível com as características de “força de vontade” evidencia a atribuição
de sentido à escola como projeto de vida. Na história da relação de Nenúfar
com os dois primeiros filhos, no entanto, a linguagem mencionada é utilizada
para indicar a opção por projetos diferentes do seu, por escolhas em que a
escola não era a prioridade. Através de palavras como “perseguiam outros
ideais”, “fracassados”, “não perseverou”, “a concorrência pegou”, “os estudos
sempre ficaram em segundo plano”, “terminarem o 2º grau com muita
dificuldade”, “lacunas no processo de aprendizagem”, “ambos não chegaram
ainda a Universidade”, que recheiam seu relato, Nenúfar descreve e, ao
mesmo tempo, comunica seu sofrimento em não conseguir dar um rumo, influir
mais firmemente nas escolhas dos filhos. Atribui o insucesso de convencer os
filhos aos momentos em que esses puderam entrar em contato com
informações de outros membros da família que acreditavam em “se dar bem”
sem escola, vencer na vida sem estudar. Nas suas palavras:
“E o mais frustrante no papel de mãe/educadora é que estes valores sociais não fui capaz de passar aos meus filhos, porque fui vencida pela mídia e cultura familiar e social a eles expostas no meio social do qual conseguimos fazer parte nas vivências que nos foi possível experimentar” (Nenúfar, 45 anos, 2002).
Há uma pausa para esse sofrimento vivido com os primeiros filhos,
pausa encontrada na integração da filha ao projeto alicerçado e materializado
por ela. É nessa menina que Nenúfar deposita todas as esperanças de
153
realização e continuidade do projeto que rascunhou na infância e que teve a
oportunidade de lapidar em seus estudos e na vivência profissional, ao lado de
outros educadores:
“A orientação educacional à filha mais moça se deu num outro referencial, onde o mundo era totalmente livresco, pois a mãe e os irmãos viviam cercados de livros enquanto ela brincava a volta. Também teve o exemplo permanente e concreto da leitura e do conhecimento do mundo infantil que a mãe-educadora havia adquirido. Esta com certeza tem a mesma idéia sobre os benefícios da escola para todos que por ela passam e provavelmente por tudo isso, soube aproveitar o tempo e vivências escolares, hoje já cursando o segundo ano do ensino médio. E com certeza pronta para prestar um vestibular com sucesso” (Nenúfar, 45 anos, 2002).
O que seria do discurso, das crenças, do sentido atribuído à escola por
Nenúfar se seus filhos, sem escola, tivessem tido sucesso? Como alguém que
não herdou o significado atribuído e legou apenas em parte ainda alimenta seu
desejo de escola como um projeto de vida? Como afirmei anteriormente, o
sentido atribuído circula, não é herdado nem legado linearmente o que torna
esse estudo mais interessante.
4. Escola é sonho
“Ah, não sei,
tinha vontade de estudar até piano, eu tinha até vontade de estudar piano
e para estudar piano tinha que ter a ..., tinha vontade de fazer piano,
por Deus, adoro, adoro! Gosto muito, para isso tinha que ter escala,
aprender a escala, para ler e para fazer...
Não tenho coragem, vou falar com uma professora
e ela vai me dá aquilo e eu tô bem embananada,
eu não gosto!” (Sisal, 62 anos, 2002).
154
O significado de escola como um sonho106 foi apaixonadamente
comunicado pela maioria das mulheres desse estudo. Mais intensamente por
quatro delas, Sisal (62 anos, pouco escolarizada), Juta (45 anos, cursando
Universidade), Clorofila (35 anos, cursando Universidade) e Gladíola, (33 anos,
cursando Universidade).
O irreal para a teoria do imaginário107 é a dimensão onde o regime
noturno se realiza e nesse regime o homem sonha o imaginário. A criação
histórica, fruto do imaginário, para Castoriadis (1982) é a capacidade de fazer
surgir o que não estava dado e que não pode ser derivado daquilo que já era
dado.
Sonhar108 para cada um de nós é uma experiência única, indizível.
Sonhar, para as mulheres desse estudo, é estar em permanente estado de
expectativa e de desconfiança com relação ao realizado. Dentre o grupo de
quatro mulheres, três estão onde desejaram e, apesar disso, não acreditam
que ali estejam. Sonhar, para elas, é cultivar uma sensação de iminência de
que tudo acabe, apesar da escola que se tornou palpável.
Como em outras categorias já abordadas, também esta é originária nas
trajetórias dessas admiráveis mulheres que, impedidas pela pobreza extrema,
por pais violentos, por maridos ciumentos e até pela baixa auto-estima, a
escola, mesmo a alcançada permanece em estado de imaginação. No entanto,
o grupo se organiza em dois sentidos: para Sisal (62 anos), a mais longeva do
grupo e a com menor escolaridade, há um sonho de que a escola lhe retorne à
mocidade, aos bailes de orquestra nos quais admirava e desejava,
ardentemente, tocar piano. Acredita que a escola possa lhe dar muito mais,
rapidamente, para que possa se apresentar diante de uma professora e saber
ler as pautas, tocar melodias. Para as outras três mulheres, duas delas com
trajetórias de vida marcadas pela violência doméstica (praticada por pais e
106 (A diferença entre sonho, arte e loucura é muito pequena e frágil: a imaginação aberta aos outros (arte) ou fechada aos outros (loucura)” (Chauí, 2001:135), 107 A tradição filosófica tem um lugar destinado ao estudo da imaginação e para ela, quando falamos em imagens, referimo-nos a coisas bastante diversas como filmes, esculturas, figuras de linguagem, sonhos, dErva-Mateneios, alucinações, dança, poesia que tem algo em comum: oferecem-nos um análogo das próprias coisas, seja porque estão no lugar das próprias coisas, seja porque nos fazem imaginar coisas através de outras (Chauí, 2001:131-136). 108 Sonhar, no sentido dicionarizado, é ter sonhos enquanto se dorme mas também é fantasiar, idealizar, desejar, projetar. Nesse estudo, sonhar é empregado no sentido de desejar, projetar.
155
maridos agressores), a Universidade foi alcançada depois do Ensino Supletivo,
o que lhes deu uma sensação de falta, de incredulidade com relação as suas
condições de estarem no ensino superior. Para elas, estar na Universidade é
inimaginável, é um bem maior, um estado de graça, indescritível e a linguagem
que utilizam para descrever o espaço onde se encontram reflete essas
sensações.
Impedida de ir à escola pela distância e condições econômicas da
família, ao migrar para Pelotas Sisal (62 anos, 2002) enfrentou a urgência de
sustentar os filhos com os parcos conhecimentos que havia adquirido na
administração de uma fruteira no interior e, diante da necessidade, dependia
dos outros para realizar seus empreendimentos. Ao relembrar esses tempos,
reedita o desejo de escola como o não realizado:
“Nós morava no Arroio Grande, então as escola era tudo muito longe, prá gente se comunicá, prá gente í prá escola. Então eu era muito doente e minha mãe não quis que eu estudasse porque eu ia í a pé, eu ia com chuva, de carroça, assim não tinha condição, não tinha ônibus, não tinha carro, não tinha nada: não estudei. Fui aprendendo em casa, aos pouquinhos, com os irmãos que eram mais adiantados, então depois fiquei moça, fiquei jovem, não tive mais oportunidade de estudá. E aí me casei” (Sisal, 62 anos, 2002).
O sentido atribuído à escola se origina em sua própria história mas se
desloca para sentidos outros, uma vez que já se relacionou com a necessidade
e dificuldade de enviar e manter os próprios filhos na escola. A contradição
entre inserir os filhos no mercado de trabalho ou mantê-los estudando foi vivida
com grande sofrimento por ela e apenas um dos quatro filhos chegou à
Universidade, mesmo assim, trabalhando. Os netos estão recebendo
informações diferentes das que ofereceu para os filhos, uma vez que acredita
que a escolarização básica já não mais é suficiente para um trabalho digno e
bem remunerado. O sonho da juventude que pode se expressar através do
desejo de conhecer a “escala” como condição para tocar piano, para os filhos e
netos passa a ser de uma escola que acesse uma profissão, o que se permite
pela longevidade alcançada e pelo compromisso cumprido:
156
“Eu sonho prá elas um futuro brilhante, um, Faculdade que dê, uma vida bem saudável, a situação financeira que seje bem melhor, bah, tu nem imagina como eu sonho isso, a minha filha percisa isso, bah! Aqueles salários que não dão nada! Ah, eu acho que através do estudo, eu acho que se Deus quizé, é por aí o caminho, eu não vejo otros caminhos. Não vejo mais nada, porque serviço, qualé que dá?”
Nesse perfil, o mais interessante é o desejo de escola maior para si,
mais amplo, mais impossível, enquanto que para os filhos e netos, a razão
instrumental toma conta de seus sonhos. A racionalidade dessa explicação é
evidente. No entanto, não é essa a intenção: desejo evidenciar a conservação
de um sonho, a alegria e o deslumbramento do momento em que “confessou”
seu desejo por tocar piano, sonho que ultrapassou todas as agruras dos
sessenta e dois anos ao largo da escola e do acesso que ela dá. O imaginário
instituinte atuou como um alocador de sentido na própria vida, e ultrapassou
em muito os retornos que a escola pode dar em termos de realização. Para
Sisal, a escola é um passo para as teclas do piano, a escola é a antecâmara da
felicidade repleta de melodias:
“Piano? Há muito tempo, desde que eu era moça vivia naqueles bailes de orquestra típica aí eu me apaixonava por aqueles tango tocado à Piano, aqueles Bandonion... Já cheguei perto de um piano mas nunca botei as mão nas tecla, não, não. Claro, eu olho, assim, assistia, olhava. Bah, eu tinha paixão por aqueles bailes de orquestras típica com Piano e Bandonion, ai como eu gostava, menina! Dançava! Das mais lá do ambiente, eu era, eu era!” (Sisal, 62 anos, 2002).
Interlocutora que emociona profundamente, Juta (45 anos, 2002) está na
Universidade e é a estudante mais freqüente. Da infância, guarda imagens da
fome, das surras e de outras violências; guarda a dor de vagar pelos campos,
fugindo e procurando; guarda a lembrança de ter esquecido da mãe, quando
por esta foi dada a outros para não morrer de fome; guarda ainda, talvez a
maior dor, a lembrança dos cadernos destruídos por uma tia, com o argumento
de que eram bobagens:
“Eu amo o estudo, eu amo, amo, amo. É uma teimosia, eu não sei a palavra certa, se é teimosia, ou se é um capricho, ou se é vontade. A
157
minha mãe é analfabeta, a maioria da família da mãe ninguém sabe nem, só botá o dedo, não sabe nada, ou assina mal e porcamente. E essa tia que me criô, rasgava os meus cadernos. Terminava o ano ela botava tudo fora, dizia que esses cadernos era uma frescura, que eu parecia uma boba estudando, que eu era meio fanática, sempre assim. E eu deixei meus cadernos, quando eu fui trabalhá em casa de família, numa caixa no fundo do guarda roupa e ela botô tudo fora, ela dizia que aquilo tudo era muquiço!” (Juta, 45 anos, 2002).
Em uma história dolorosamente comunicada109, permanecem intactos
dois sentidos atribuídos à escola: o primeiro, o alcançado, é estar na
Universidade como inacreditável e apaixonante:
“Estar na Universidade hoje, é um sonho, prá mim, assim, é uma coisa que só me beliscando prá vê que eu tô viva, né, porque prá mim é uma coisa que não tava ao meu alcance, eu acho assim que eu só passei porque aquele vestibular tava muito fácil, acho que se fosse hoje eu não passaria, eu penso assim” (Juta, 45 anos, 2002).
O outro sentido é o que persegue e está conquistando para os dois
filhos: o das possibilidades que a escola promove na vida das pessoas tais
como trabalho qualificado e bem remunerado e felicidade:
“O meu filho é tão inteligente, ele tem um alcance incrível que ele não estuda em casa e é geralmente a nota máxima. Ele está fazendo inglês de manhã e o meu marido quer que ele trabalhe e ele não quer largá o inglês. Eu acho que ele não deve largá, se a gente consegue sustentá ele que ele vá em frente. Não quero. Minha filha se formô ontem na Escola Técnica, em química, estou sem dormir, o baile foi ontem, passei a noite de baile. Essa filha é um orgulho. Ela vai fazê cursinho, está fazendo um estágio no SANEP, está cuidando de nossa água, e quer farmácia, Porto Alegre ou Santa Maria e última alternativa Química aqui. E nós vamos bancar, com certeza, nem que eu coma arroz e feijão! É bem assim” (Juta, 45 anos, 2002).
Para Juta, o processo de simbolização ou atribuição de sentido à escola
não está acabado. Muitas das conquistas que virão serão possibilidades de
109 A delicadeza com que a Juta comunicou sua história exigiu que eu suprimisse trechos onde sua vida íntima foi exposta. Durante a pesquisa, pela intimidade que já construímos e pela gravidade das
158
novas atribuições e, possivelmente, ampliarão o que hoje é fantasia, desejo,
sonho e necessidade.
Outra das interlocutoras que, estando na Universidade duvida de sua
conquista, Clorofila, (35 anos, 2002) precisou romper com o casamento para
ter seu sonho realizado, o que lhe trouxe dor imensa e insegurança quanto ao
que significa amar o outro. Extremamente emotiva, delicada, solidária, vem de
uma história infantil de muitas perdas, fundamentalmente das referências da
adultez.
“Até meus oito anos eu achava que meu pai era o máximo, pois ele era um pai muito conservador mas de alguma forma ele era carinhoso. Hoje, meu pai já passou por 16 internações hospitalares e é considerado um paciente maníaco-depressivo. Eu sempre o amei muito, não consigo entendê-lo, queria ajudá-lo. O meu sonho era estudar Psicologia para ver se eu conseguia ajudá-lo e até hoje eu tenho este desejo” (Clorofila, 35 anos, 2002).
A necessidade do trabalho na infância impediu que a escola fizesse
parte de seu universo e, talvez por isso mesmo, estar na Universidade seja
inacreditável.
“Com 13 anos comecei a trabalhar de doméstica e fui obrigada a parar de estudar e com 14 consegui um emprego numa farmácia de caixa operadora. Para ganhar essa vaga, me obrigaram a deixar de estudar, naquele momento não tive escolha, pois precisava mais do emprego” (Clorofila, 35 anos, 2002).
Esta jovem interlocutora viveu tanto a miséria da zona rural como a da
periferia urbana no movimento de migração que sua família percorreu e nem
mesmo o trabalho duro conseguiu aplacar seu desejo de escola. Dona de uma
memória pródiga em detalhes e de sentimentos intensos com relação a
realização que possa ter via estudos, busca a Universidade com uma paixão
indescritível no léxico. Para chegar até ela, rompe com várias certezas, entre
elas, o casamento. O sentido atribuído à escola é o de realização total, uma
escolha que não tem vínculo com nenhum argumento racional. É pura emoção:
informações, desliguei o gravador por algum tempo, o que não impediu que o sentido atribuído à escola fosse evidenciado.
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“Aquele desejo de estudar que nunca me abandonara voltou incessantemente, junto aumentou nossa crise conjugal, mas eu não estava mais disposta a abrir mão deste sonho. Brigávamos muito e eu sempre obsecada pelo estudo. Depois de um cursinho de três meses, para minha felicidade, fui aprovada no Vestibular de 2000, Curso de Pedagogia da UFPel, quase morri de emoção! Valeu a pena, hoje estou aqui!” (Clorofila, 35 anos, 2002).
Embora tenha filhas pequenas, não se refere a elas em sua alocação de
sentido e, aparentemente, busca construir uma infância sem dor, sem traumas,
com adultez e com escola para elas.
Já para Gladíola, interlocutora de trinta e três anos e a mais jovem desse
grupo, casada pela segunda vez, estudante de Pedagogia com três filhos (um
de onze anos, uma de oito anos e outra de seis anos, todos no Ensino
Fundamental), ir à Universidade é um sonho que havia abandonado e uma
ponte para o desejo maior que é ser escritora.
“Sou uma apaixonada pelos livros, gosto muito de ler, saio desse mundo ao entrar nas páginas, nos símbolos, que embora calados dizem tanto, viajo e vivo nesse encontro com os livros.Apesar de algumas dificuldades pelas quais passei, estudar é muito bom e não penso em parar tão cedo; nunca é tarde para recomeçar, recomeçar e não desistir de sonhar foi o que me manteve e mantém viva” (Gladíola, 33 anos, 2002).
Foi muito provavelmente por não ter herdado o sentido que a família
atribuía à escola que esta interlocutora afastou-se temporariamente dela,
embora conhecesse o universo escolar e tivesse sucesso nela. Mesmo não
tendo sido explícita, o primeiro casamento contribuiu para esse afastamento do
mundo da escola, uma vez que foi mãe muito cedo e as responsabilidades da
maternidade e do lar ocuparam com intensidade o seu tempo:
“Com o final do primeiro grau também veio a indecisão e após cursar dois meses do segundo grau, parei de estudar. Passaram-se os anos e vieram os amores, os filhos, as decepções, um divórcio, novos sonhos e um difícil recomeço. Nesse período em que estive afastada dos estudos sempre tive o hábito de ler e escrever, acho que foi esse o
160
elo que me ligou ao meu recomeço escolar. Nessa fase tive a sorte de ter ao meu lado pessoas que me incentivaram muito: meu marido e meus pais” (Gladíola, 33 anos, 2002).
Por não ter abandonado a leitura, manteve-se inserida em um universo
letrado, produzindo diários, poemas, lendo intensamente, escrevendo e
sonhando. Os filhos são leitores pois reservou parte importante de seu tempo
para iniciá-los nesse mundo, acompanhando-os nos trânsitos escolares. Assim,
o sentido atribuído à escola não se desloca de si para os filhos, permanecendo
o legado que foi transmitido. A existência de uma rede de sociabilidade onde
encontram maneiras de dar sentido e valor a suas leituras é provavelmente um
dos laços mais fortes que Gladíola legou para os filhos, tornando-os leitores
ávidos e fazendo do sentido, que atualmente atribui à escola, o maior sentido:
“Quanto aos meus filhos que participaram dos meus altos e baixos e do meu recomeço, aprenderam a amar os livros da mesma maneira que eu. São leitores ávidos e observo eles lendo diariamente e essa é uma das maiores recompensas da minha trajetória” (Gladíola, 33 anos, 2002).
O sentido que atribui à escolaridade para si está repleto de emoção,
comunicada pelos olhos cheios de lágrimas quando fala do primeiro caderno
escolar (ainda guardado) e da aprendizagem da leitura. A escolaridade que
está sendo realizada aparece em suspenso, um sonho em pleno andamento,
onde não há racionalidade e o sentido vai sendo alocado na conquista dos a
posteriori. Para ela, escola é um espaço de desejar mais, um espaço mágico,
com fronteiras indefinidas e tempos não capturáveis pelo nosso calendário.
Seu depoimento é uma ode à escrita que, embora nomeie ferramenta,
considera uma ponte para a memória, a sensibilidade e o sentido de escola:
“Enxergo na escola muitos sentidos e porque não dizer, enxergo a escola como o próprio sentido. Acredito ser a escrita a ferramenta mais poderosa já inventada. Quanto se aprende, quanto se guarda, quanta história preservada, quantos projetos, e isso tudo graças à escrita! Olhar para trás ilumina nosso futuro, nos ensina, nos fortalece, nos faz ver que os anos passaram, mas que não foram em vão, que esses anos foram etapas de nosso crescimento e que embora
161
mais maduros carregamos ainda um pouco da criança sonhadora. Ao olhar para trás vi na minha trajetória o reflexo do que sou hoje. Tive muitos sonhos, muitas decepções, mas muitas alegrias também e muitos recomeços...” (Gladíola, 33 anos, 2002).
Acredito que o processo de simbolização que essas interlocutoras
permitiram apreender nesse momento do estudo não é findo e se constitui de
uma gama de elementos fundantes que são as “crenças e fantasias, desejos e
necessidades, sonhos e interesses, raciocínios e intuições” (Ferreira e Eizirik,
1994). A escola, embora produza seus próprios bens de sentido, não fica à
margem da produção desses outros sentidos que se materializam de diferentes
formas, através das relações de afirmação ou negação de projetos, através da
imaginação e da realização dessa. As trajetórias de vida das mulheres que se
agregam a essa categoria estão repletas de mediações simbólicas. Simbolizar,
reapresentar o passado e, nesse, as relações com um lugar - a escola – foi
emocionante.
Os fenômenos sociais vividos por elas - ir à escola, ser impedida de ir à
escola, ter sucesso nela, fracassar, ir mais tarde à escola, ir junto com o filhos,
buscar a escola para os filhos, separar-se do marido para poder ir à escola,
entre outros aqui descritos -, são repletos, também, de relações simbólicas que
mediatizam e instituem novas formas de relações sociais. A materialização de
cada um desses projetos, instaura novas atribuições de sentido e encaminha
essas mulheres para novos investimentos.
Na pluralidade de linguagens que tive acesso, pude, também ousar. Ao
ter acesso e decifrar essa pluralidade de sentidos atribuídos convenci-me de
reconhecê-la – a pluralidade -, instituidora de novas relações com a escola.
Acredito que há uma diversidade e uma sonoridade presente nesses discursos
que, embora desapercebidas nos sentidos que a escola insiste em atribuir a si,
estão plenos de significados em disputa e constituem o imaginário radical, uma
“originação perpétua de alteridade” (Castotriadis, 1982), ou um outro sentido,
uma outra versão possível.
5. Escola é disciplinamento
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“Antes de tudo é preciso destacar o fato de que a escola não é
um simples lugar de aprendizagem de saberes, mas sim, e ao mesmo tempo,
um lugar de aprendizagem de formas de exercício do poder
e de relações com o poder” (Lahire, 1997:59).
Embora pouco incidente, o sentido atribuído à escola como um lugar de
disciplinamento110 pôde ser evidenciado na trajetória de duas mulheres, Malva
(40 anos de escolaridade fundamental completa) e Manjericão (47 anos de
escolaridade fundamental incompleta), o que corresponde a 6,6% do total das
interlocutoras. Não são isolados os desejos de que a escola organize, através
de atitudes e punições, o pertencimento ao mundo adulto, e, entre o grupo de
mulheres, quatro111 valorizaram como importante a hierarquia adulto-infante,
mas apenas duas tornaram esse desejo o atributo primordial da escola que
recordam e/ou desejam.
Como podem elogiar a escola ao mesmo tempo em que participam de
sua tarefa disciplinar? Qual o sentido de disciplinamento para essas mães que
desejam uma escola que amplie e dê base para suas relações de autoridade
com os filhos? Penso que é bastante complexo afirmar essa atribuição de
sentido, pela carga emotiva que o assunto desperta, pela dificuldade de
considerar essa atribuição de desejo um elogio à escola e, também, pela
análise que pode vir a ser feita do conceito de disciplina.
Sob aspectos diferentes, as mulheres que enfatizam a escola como
responsável pela relação de submissão do jovem à autoridade, valorizam em si
qualidades que localizam nesse aprendizado ou lamentam não ter tido mais
oportunidades de realizar a continuidade desses valores na escola, como é
possível observar neste depoimento:
110 O espírito da disciplina é, ao mesmo tempo, o sentido e o gosto da regularidade, o sentido e o gosto da limitação dos desejos, o respeito às regras, que impõe ao indivíduo a inibição dos impulsos e do esforço. (Fauconnet in Lahire, 1997:58). 111 Cerejeira (75 anos) e Lúpulo (50 anos) são as outras duas interlocutoras que também valorizam o espaço escolar como um lugar de disciplinamento, embora não façam desse desejo o central de sua atribuição de sentido.
163
“Meu filho fica incrédulo quando conto que os alunos esperavam a professora na sala de aula e quando ela entrava todos levantavam em sinal de respeito, ao nos dirigíamos a ela levantamos a mão e pedíamos licença, se concedida só então nos dirigíamos à professora, o que escutávamos na sala de aula era a própria respiração, mas sempre no final da aula nos eram dados alguns minutos para conversar com os colegas e a professora. Esse respeito, essa distinção de ierarquia que sinto falta na sala de aula de meu filho” (Malva, 40 anos, 2002).
A escola, como um “universo onde reina a regra impessoal, opõe-se a
todas as formas de poder que repousam na vontade ou inspiração de uma
pessoa” (Lahire, 1997:59) e, no entanto, é essa escola que as interlocutoras
buscam, a da regra impessoal, do comando e do respeito, formador de um
sujeito integrado, ilustrado. O depoimento de uma das interlocutoras que
defende a punição para o neto se situa nesse ideário:
“Se amanhã ou despois ele saí, se ele não vim pro colégio e saí um marginal, quem é que vai pagar por isso? Tem que tê obrigação, um home que não tem obrigação, que se cria um home e não tem obrigação, que serventia ele tem?” (Cerejeira, 75 anos, 2002).
Nesse estudo, no entanto, há diferentes entendimentos da categoria
disciplinamento, entendimentos esses que têm sua origem no ideário das
épocas que antecedem ou coincidem com as quais nasceram e foram
educadas as interlocutoras. Duas das interlocutoras que contribuem neste
estudo (Cerejeira de 75 anos e Lúpulo de 50 anos) falaram do disciplinamento
como necessário para o reconhecimento social e também sobre o poder da
escola para intervir em comportamentos desviantes, impedindo o nascimento e
o desenvolvimento de um “marginal” ou, ainda, instituindo a “razão sobre si
mesmo”. O primeiro aspecto pode ser vislumbrado na análise que a
interlocutora faz da hierarquia ensinada, da forma como se devia dirigir aos
mestres, enumerando os procedimentos:
“Eu me lembro muito do colégio, que quando nóis andava no colégio, a gente chegava, a primeira coisa, cumprimentá os professores e quando entrava nóis se lErva-Matentava. E prá respondê: Fulano, o
164
que que é isso, ou tu fizesse isso? Ah, fiz, fiz sim senhor! Agora, é uma coisa que não tem mais” (Cerejeira, 75 anos, 2002).
Já o segundo aspecto, o da instituição, via regras escolares, da “razão
sobre si mesmo” transparece no depoimento de Lúpulo, que evidencia, na
escola, a continuidade de procedimentos que formavam uma criança:
“Quando criança eu aprendi na escola o Civismo, aprendi o amor à Pátria que hoje não se ensina mais, o Hino Nacional, que marchar era muito importante, hoje não dão bola. Eu aprendi que se usava um uniforme branco, feio que dói, mas a gente tinha que usar. Regras, eu aprendi regras, não que eu não tivesse, eu fui muito bem criada, graças à Deus, mas eu conheci regras: horário, civismo, educação” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Na história112 a respeito da disciplina na escola há registro das
mudanças pelas quais a atitude disciplinar passou. Essa história diz respeito às
expectativas da escola com relação ao aluno preparado, adequado ao ato
educativo. De uma escola que desejava definir, determinar e fazer cumprir, se
necessário com punições, os procedimentos adequados a uma educação para
a vida adulta e de um aluno submisso, obediente e cumpridor das ordens
passou-se a desejar uma escola que, através do argumento racional, fosse
capaz de produzir um disciplinamento interno, internalizar valores e
procedimentos. Nas palavras de Lahire (1997:59), a escola passou
historicamente “da construção da figura de um aluno domado à do aluno
sensato e racional sendo a razão um poder sobre si mesmo que substitui o
poder exercido pelos outros e pelo exterior”. Para as interlocutoras, esse
movimento que efetivamente aconteceu foi denunciado como a passagem de
um extremo a outro e, nesse caso, o anterior era melhor:
”Não digo que seja um tratamento austero, de freira, mas deveria haver um certo limite na maneira que os professores estão sendo tratados. Os alunos estão confundindo liberdade com libertinagem, a libertinagem está entrando dentro da escola e não sei se é culpa dos
112 Ao escrever sobre a expectativa dos professores com relação ao sucesso e fracasso das crianças na escola fundamental, Lahire (1997:58) afirma que características como autonomia e falta de autonomia são freqüentemente citadas para qualificar a atitude dos alunos. Para esses professores, a autonomia é vista como autodisciplina corporal (...) e ao mesmo tempo como autodisciplina mental (...).
165
governos, que os professores estão mal remunerados...” (Lúpulo, 50 anos, 2002).
Para Malva (40 anos, 2002), a escola é um espaço de disciplinamento
onde os ensinamentos de casa devem ser aprimorados e ampliados pela
escola. Acredita que a escola deva ter seu campo de saberes diferenciados da
educação familiar e, para ela, “os mestres devem dar conhecimento e
orientação e nós educarmos”, mas não aceita o desrespeito dos jovens no
acesso aos professores, como afirma abaixo:
“Minhas lembranças que contei ao meu filho não se parecem nada com a realidade que ele vê em sua escola em atitudes de seus colegas, professores e ele próprio. Quando faço visita surpresa à sala de aula vejo alunos tagarelando e professores desmotivados. Nas reuniões de pais sempre escuto a mesma coisa, a queixa dos professores com a falta de respeito dos alunos, a falta de postura na sala de aula e pais pondo em dúvida a capacidade do professor de ensinar. Mas não reconhecem em seus filhos a falta de motivação em aprender e o respeito que deveriam dar aquelas pessoas que tentam dar reconhecimento” (Malva, 40 anos, 2002).
Aos quarenta anos, educando um filho adolescente sozinha, com
escolaridade fundamental completa e larga experiência profissional em
espaços letrados, prioriza o controle das atitudes, horário e amizades do filho,
controla seu tempo, seus investimentos, não permite que esse trabalhe, joga
pesado nos estudos, planeja o futuro, poupa, ensina o menino a cozinhar,
cuidar da casa, das roupas, do quarto e de pequenos consertos.
Filha de colonos alemães que tem larga tradição de religiosidade e
cultura culinária, agrega saberes comunicados oralmente e que datam das
gerações que chegaram nos navios da imigração com aqueles que angariou
em seus diferentes empregos, que variam de trabalhos em setores
administrativos de empresas, assessoria a servidores da Justiça,
gerenciamento de pequenas empresas, secretaria a diretores de empresa até
serviços de garçonete em restaurante de grande porte. Para esses empregos,
levou a disciplina aprendida e desejada, tornou-se importante e, em alguns
casos, indispensável.
166
O sentido atribuído se desloca da imagem de escola que lhe foi
oportunizada na qual respeito, silêncio, ritos patrióticos e saberes clássicos era
a prioridade e a escola que o filho está tendo acesso, aquela que proporciona
uma profissão e um lugar social mais respeitado, embora ainda busque os
mesmos valores da sua. Acredito que, mais que um deslocamento de sentido,
o que se percebe é uma melancolia, uma vez que a interlocutora imagina e
deseja que o acesso a uma profissão seja um segundo passo: o primeiro, seria
o disciplinamento.
Em sua linguagem originária na educação clássica que recebeu e
perpetuou, refere-se aos professores como “mestres”, pessoas superiores, com
saberes e dignos do respeito incondicional dos pais das crianças que estão sob
sua responsabilidade. Idealiza a escola, seus integrantes e os conhecimentos
ali alocados e acredita que nela o respeito aos mais velhos deve ser o objetivo
central a ser ensinado.
Outra das mulheres que atribui à escola o sentido de disciplinamento,
Manjericão (47 anos, 2002), apresenta um outro olhar acerca do que é a
categoria. Para ela, na escola deve-se ter acesso a saberes que nos preparem
para viver em sociedade, educar os filhos e saber lidar com situações de
conflito. Casada muito jovem e tendo vivido os primeiros anos do casamento
longe dos familiares, teve de enfrentar todos os dilemas do casamento e da
maternidade sem apoio de saberes que credita à escola. Em suas palavras,
“Alfabetização, estudos de conhecimento do mundo, geografia, história essas coisas seriam escola, conhecimentos de escola. A escola deveria ensinar às crianças, desde cedo, desde as primeiras séries, a conviver, a convivência com os colegas, com a família, auxiliá-los no caso, que tem pessoas que chegam a não ter uma organização familiar, creio que isso é muito importante. Que a escola, além de dar o conhecimento, de alfabetizar, ela deve ensinar para a vida, também” (Manjericão, 47 anos, 2002).
Adolescente quando teve seu primeiro filho e afastada da escola, aporta
nela uma demanda para a qual a escola não foi criada: absorver os impactos
dos poucos argumentos que a família tem para convencer as crianças a
167
estudarem. O disciplinamento que deseja é um jeito de fazer, uma fórmula de
convivência, um jeito de operar com as crianças que a ensine - e a todos os
pais -, formas de evitar os conflitos que viveu intensamente com seus dois
filhos na adolescência. Embora não retire de si a responsabilidade, pede
socorro à escola:
“Como é obrigação dos pais prepararem os filhos, tem alguns pais que não tiveram esse preparo, e a escola poderia ajudar. Tem alguns pais que não tiveram nenhuma chance de ter preparo para vida e para lidar com os filhos nesse sentido de ensinar-lhes como seria a convivência. A criança precisa dos conhecimentos da escola tradicional, que seria o português, matemática, história e geografia, mas devia haver uma grande forma assim para o social, talvez uma matéria específica, uma professora preparada no lado mais psicológico para lidar com as crianças, para orientá-las nessa área” (Manjericão, 47 anos, 2002).
Aos quarenta e sete anos, muito jovem já se vê diante da possibilidade
de avaliar a educação das netas com as quais convive e não deixa de registrar
o grande fosso que separa a educação que lhe foi proporcionada e os
princípios que a geriram com a educação que é permitida às netas:
“A primeira lembrança que eu tenho, eu senti medo da escola, senti medo de ficar sozinha na escola. Na época que eu estudei, prá a idéia do meu pai, ele sentia ciúme da menininha dele ir para a escola, mas meus irmãos estudavam naturalmente... Creio que atualmente a escola, ela mudou bastante. Antes a escola era só para ensinar um e um são dois, ensinar a ler, escrever, era isso que se considerava. Hoje ela está mais humana, ensinando as crianças a conviverem um pouco mais... Hoje a criança tem mais liberdade de expressão, ela exige mais, ela por si cobra mais dos professores...” (Manjericão, 47 anos, 2002).
Filha de uma família pouco escolarizada teve uma infância rica em
relações afetuosas, mas não reconhece nessas a origem de ferramentas
suficientes para as demandas da vida adulta: ser mulher e educar crianças e
adolescentes. O sentido atribuído à escola é o de atualizar as possibilidades de
viver em sociedade, interagindo com as novas atitudes e informações que
168
estão disponíveis atualmente. Insiste que a escola deve ser um lugar de
aprendizagens para a convivência entre os diferentes, entre as gerações e
entre os gêneros e, ao desejar isso, é que se inscreve nessa categoria, uma
vez que acredita que na escola encontrará as fórmulas para essa convivência.
Ao lidar com o complexo mundo de informações que, aos borbotões
entram em sua casa via televisão, seu lado mais centralizador, rigoroso
aparece e, para ela, cabe aos pais limitar o uso e o acesso dos filhos a esse
meio de comunicação:
“Eu acho que em partes a TV é boa, acho que deveria ter muito controle dos pais, os pais deveriam observar bem os programas que permitem seus filhos olhar, e isso não seria para podar a criança, e sim para ajudar a criança, porque a televisão tem muita coisa negativa, eles despejam tudo que podem, em qualquer horário e acho que os pais deveriam classificar melhor, aí tá pros pais fazerem, deveria haver mais rigor nisso aí da televisão, não é querer voltar a restrição, à ditadura, mas deveria haver mais classificação de horários prá programas, essas coisas assim” (Manjericão, 47 anos, 2002).
Embora seu depoimento seja bastante complexo, pela contradição entre
seus princípios, o conflito com os filhos e as liberdades das netas, elogia a
escola quando imputa a ela o poder de criar espaços e saberes de convivência,
saberes capazes de orientar as famílias, de oportunizar espaços de
crescimento como pessoa. Com os filhos o sentido não se desloca, é uma
continuação de sua vida, não há uma redefinição do papel da escola, embora
tenha sido difícil mantê-los estudando, como ela mesma registra:
“Ir para a escola era uma experiência diferente, era coisa nova para os meus filhos e era importante para mim, eles sentiam que era uma alegria para mim, era uma fase nova da vida, da nossa vida, isso aí foi bom para eles. Até a quarta série, eles estudavam com entusiasmo. Depois disso, difícil foi fazer eles continuarem estudando com o mesmo entusiasmo. Que a criança vai se tornando, vai aprendendo a fazer mais farra, vai brincar e já começa a se dispersar mais, mas irem à escola sempre foram com vontade, o mais difícil era obrigá-los eles a estudar, fazê-los estudar. Sim, meu filhos tiveram bem mais
169
acesso a livros e à leitura. A princípio mostrando quanto era interessante um livro, sempre ganharam livros desde pequenos, e chegou época de sim, de quem não gostasse de ler ter a obrigação de pelo menos ler um livro durante as férias...” (Manjericão, 47 anos, 2002).
No grupo de mulheres interlocutoras, no entanto, há uma que lembra
dos momentos de disciplinamento pelos quais passou e da ingenuidade dessa
época. Professora de história, compreende o papel da escola na construção do
cidadão adequado a um projeto de sociedade que obedecia, caracterizando
uma faceta do disciplinamento que pode ser chamado de “disciplinamento
ideológico” ou alienação:
“Cantávamos o Hino Nacional em frente à bandeira e na Copa de 70, achava a música da época ‘Prá frente Brasil’, uma verdadeira manifestação de amor à pátria e o slogan da ditadura “Ame-o ou deixe-o”, muito sem significado para os meus 10 anos. Só fui entender toda aquela história, seu slogan e seu verdadeiro significado, muito mais tarde” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Há uma surpresa no aparecimento dessa categoria e, pela fragilidade
dos argumentos, poderia ser desconsiderada. No entanto, acreditei ser
necessário evidenciar os discursos que a fazem existir, fundamentalmente por
se tratar de um trabalho acerca de singularidades, mas não só. Outro aspecto
que me convenceu a tratar o disciplinamento como um sentido atribuído à
escola é a contradição intrínseca: ao delegar poder a uma instituição (para
regular, para normalizar, para punir) as mães abrem mão de um poder que
afirmam existir na família e que deveria anteceder o poder do estado, o poder
de educar.
6. Escola é espaço de saberes113
“Antes eu acreditava que somente com o meu saber da prática
113Para Tadeu da Silva (1999:149-150), tanto as teorias críticas quanto as pós-críticas nos ensinaram, de diferentes formas, que o currículo é uma questão de saber, identidade e poder e nossa imaginação está livre para pensá-lo de outras foras, para vê-lo de perspectivas que não se restringem àquelas que nos foram legadas pelas estreitas categorias da tradição. Em suma, não podemos mais olhar para o currículo com a mesma inocência de antes.
170
conseguiria resolver e dar conta das situações
que me eram apresentadas. Aos poucos
fui percebendo os conflitos que necessitavam de intervenção mais qualificada
e eu não as tinhas. Para mim é o sentido.
Usar do que tenho aprendido aqui na universidade
para dar suporte as minhas intervenções no mundo”
(Laranjeira, 30 anos, 2002).
A escola é um espaço de aprendizagem de saberes114. Criada
historicamente com uma função social, simboliza e materializa um espaço
público e a possibilidade de acesso ao conhecimento. No entanto, há uma
“inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado os
saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou
problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais e planetários” (Morin, 2000:36).
A linguagem é, por excelência, a manifestação humana utilizada para
revelar sentidos e tem um lugar de destaque nos saberes da escola115. É
através da linguagem que podemos enunciar sentidos acerca do mundo que
pertencemos e do mundo que desejamos, unindo em um mesmo discurso, o
instituído e a dimensão instituinte da sociedade. Mesmo o silêncio116 tem
sentidos e pode ser entendido como uma linguagem.
114 “O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital. È o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações sobre o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo-partes), o Multidimensional, o Complexo? “(Morin, 2000:35). 115 Para Soares (1991:118) “o poder que tem a escola na luta contra a discriminação social e na libertação das camadas populares” passa pelo ensino da língua materna como suporte para a participação cultural e política e para a reinvenção social. Para a autora, é a aprendizagem do dialeto socialmente privilegiado que pode acessar a realização de novos objetivos sociais que as camadas populares definam para si. 116 “O silêncio não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas” (Orlandi, 1995:34).
171
Tornar-se um sujeito “dono” de conhecimentos relacionados com o estar
no mundo117 implica relacionar-se com a escola de maneira curiosa e tornar-se
capaz de inventariar os saberes disponíveis para selecionar os pertinentes,
fazendo da vida de qualquer um, a possibilidade da solidariedade e do
protagonismo. A instrução ou o caminho pelo qual crianças, jovens e adultos
entram em contato com a educação escolarizada é apenas um dos processos
de desenvolvimento da “aptidão natural da mente em formular e resolver
problemas essenciais” (Morin:2000:39).
A escola pode ser um espaço de integração de três grandes estatutos:
atividade intelectual, prazer e sentido118. Esses estatutos estão, de algum
modo, incluídos nos depoimentos das interlocutoras acerca da escola. Mais
profundamente evidenciados por duas mulheres desse estudo: a Haxixe (41
anos, professora de escola pública, mestranda em educação, mãe de dois
meninos adolescentes que têm sucesso na escola) e a Laranjeira (30 anos,
estudante de Pedagogia, conselheira tutelar, mãe de uma adolescente leitora e
de dois meninos que estão nas séries iniciais do ensino fundamental).
Atribuir à escola o sentido de espaço de saberes, passa,
necessariamente, pelos trajetos119 do letramento que foram possibilitados para
essas interlocutoras. Ao investigar quais os caminhos que haviam percorrido na
vinculação com a leitura na infância, quem as havia iniciado nessas e quais
dessas práticas experenciaram na escola, pude perceber que o processo de
letramento, desejado por mim via escola, é raro, quase inexistente e que,
apesar do conceito ter sido muito recentemente incorporado ao ideário da
117 Reconhecer “nosso duplo enraizamento no cosmos e na esfera viva e, ao mesmo tempo nosso desenraizamento propriamente humano” significa compreender que estamos “simultaneamente dentro e fora da natureza” (Morin, 2000:48). 118 “O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo e a diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros da humanidade. Todo ser humano, tal como o ponto de um holograma, traz em si o cosmo e, todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo, traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários de suas cavidades e profundezas insondáveis” (Morin, 2000:57-58). 119 A produção acadêmica sobre o fenômeno do letramento no Brasil foi desencadeada por lingüistas e educadores. Nessa tese, utilizo letramento em um sentido antropológico e político, ou seja, como uma instituição imaginária social e histórica onde os sentidos atribuídos ao letrado não obedecem os preceitos do mundo acadêmico, embora não o desconsidere, uma vez instituído. Letradas são, nessa tese, as mulheres que ousaram discutir os papéis instituídos, pela sociedade e pela escola, para si e para os seus, que ousaram imaginá-la diferente, que sonharam com a instituição de outros valores que não apenas o poder desencadeado pelo saber escolar.
172
educação, seus sentidos são, há bastante tempo conhecidos ou, mais que isso,
são a origem do próprio saber120.
A história do letramento da maioria das mulheres desse estudo passa
por um vínculo onde leitura é saber ler e escola, espaço de aprender a ler e
escrever. O cotidiano é que se caracteriza como o espaço reservado e pleno
de processos de letramento. Afirmam que ler e escrever são tarefas da escola;
acreditam que de posse desses saberes, se movimentariam com mais
facilidade na vida; pensam que sua vida teria sido melhor se a escola fizesse
parte dela e estão convencidas que fora da escola a vida é pior, o que pode ser
entendido como uma percepção ortodoxa dessa, onde não se cogitam relações
com a leitura prioritariamente por prazer. Fenômeno importante já abordado
nesse estudo, o não letramento está identificado com procedimentos escolares
de produção do não leitor por diferentes vias: uma das faces, o desprazer; uma
outra, o descarte da leitura como prática social.
Prazer “tolerado ou furtivo” (Perrot, 1998), historicamente a leitura foi,
para muitas mulheres, “um jeito de se aproximar do mundo, do universo exótico
das viagens e do universo erótico dos corações” e é comparado, pela autora,
com o lugar ocupado pelo prostíbulo para os homens, misto de secreto,
proibido, prazeroso, “um amor superabundante, mas de papel”. Essa atribuição
de sentido – profana por si mesma -, não aparece nos relatos de minhas
interlocutoras, indicando uma rotura entre a leitura e a escola. Primeiro livro
para algumas das interlocutoras, a cartilha escolar com os procedimentos
metodológicos de ensino da leitura e da escrita, amalgamou marcas de não
letramento, o que evidencia o depoimento de uma delas: “Meu primeiro livro, que eu me lembro, foi um livro que formava as sílabas: ma, me, mi, mo, um, lá, lé, li, ló, lu, que usávamos em aula, e com as sílabas formávamos pequenas palavras como Lili, Mama, Papá, Lisa. Mas lembro que minha mãe sempre comprou livros para nós, ela e meu irmão mais velho adoravam a leitura. Eu comecei a gostar
120 Ao tomar distância da vida cotidiana, do pensamento imediato e de si mesmo, segundo Chauí (2001:12) o homem passa a “indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente nossa existência” e, assim, interroga a si mesmo, pois deseja conhecer por que crê no que crê, por que sente o que sente e o que são as crenças e os sentimentos, passando a adotar o que se chama de atitude filosófica.
173
somente por volta dos 14 anos, com o livro ‘Cristiane F, drogada e prostituída” (Carambola, 32 anos, 2002).
Mulheres que não sabem ler têm uma lembrança funcional da escrita e
os impedimentos causados por essa falta foram desencadeadores de
atribuição de sentido. Mulheres que sabem ler mas não fazem uso letrado
desse saber, amargam a impossibilidade de voltar atrás, deplorando o tempo
perdido que cristalizou uma auto-estima baixa em relação as suas
possibilidades no mundo letrado. Para as mulheres que chegaram à
Universidade, essa pareceu ser, na maioria dos casos, um lugar para o
letramento mais intenso, no sentido da literatura na área de conhecimento
escolhido e não necessariamente no sentido amplo da categoria.
Uma de minhas verdades contrariadas, os vínculos e as memórias de
letramento fora da escola é que estruturaram imagens e sentidos acerca do
saber que a leitura pode proporcionar. Para as interlocutoras que na infância
viviam na zona rural, foi através dos jornais assinados por avós ou pais que
tinham o hábito de ler e que cultivavam formas de letramento que se construiu
o elo com a lecto-escrita, permitindo uma atribuição de sentido ao letramento
no cotidiano, não necessariamente na escola.
“Tínhamos ascesso ao jornal da época que era o Correio do Povo recém fundado do qual meu avô era acinante, tinhamos a nossa disposição uma coleção de livros intitulado o Tesouro da Juventude, mas só podiamos manusia-los se estivessemos com as mãos bem limpas” (Centeio, 65 anos, 2002).
Os trajetos de letramento são ainda perceptíveis entre as interlocutoras
pouco escolarizadas que, tendo recebido rudimentos da lecto-escrita, mantém
um vínculo com a leitura para além da escola. Esse vínculo indica que mesmo
que a escola não aborde, valorize ou realize a mediação entre os saberes e o
uso desses em sociedade, ainda assim esses saberes podem ser postos em
uso por diferentes atribuições de sentido que se originam nas relações de
pertencimento a espaços sociais diferentes da escola.
174
Gostar de ler, apaixonar-se pela leitura, reconhecê-la um dos caminhos
mais instigantes para ter identidade121 é uma tarefa pouco realizada pela
escola e, entre minhas interlocutoras, poucas puderam relacionar o gostar de
ler com as aprendizagens escolares. Embora a maioria delas não realizou essa
ressalva e, talvez, nem tenha pensado sobre isso, pude evidenciar que a
maioria dos vínculos com a leitura tenha acontecido paralelamente à escola.
Diferenciando a escola que fracassa daquela que tem sucesso, o
letramento não é uma categoria escolar, apenas. E não há um único letramento
e sim, graus de pertencimento ao complexo planetário122. Podem ser
consideradas letradas cada uma das mulheres que ao atribuir sentido à escola,
manifestou conhecimento do universo dela, elencou conhecimentos que ela
deveria disponibilizar, criou expectativas de possíveis, o por-vir-a-ser que
caracteriza o imaginário radical, uma “originação perpétua de alteridade”
(Castoriadis, 1982).
As primeiras relações com o saber, com o universo simbólico da escola
e da escrita, que integra cada momento de nosso cotidiano, “constituindo-se
numa forma tão familiar de fazer sentido de nossa realidade que seu uso passa
despercebido para os grupos letrados” (Kleiman, 1999:7), reaparecem,
resignificadas quando se investiga os sentido atribuído via trajetórias de vida.
Sentido instituído123, escola é sinônimo de conhecimento. Para quem
ficou à margem, no entanto, as coisas da escola124, são de difícil entendimento,
um universo que não foi disponibilizado enquanto possibilidade funcional nem
representativa. Para Valeska Oliveira (2000), “a intenção de se visitar o
passado, através do trabalho de memória, permite um exercício de
121 A incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão do outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros” (Morin, 2000:97). 122 “O conhecimento dos problemas-chave, das informações-chave relativas ao mundo, por mais aleatória e difícil que seja, deve ser tentado sob pena de imperfeição cognitiva, mais ainda quando o contexto atual de qualquer conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico... é o próprio mundo. A era planetária necessita situar tudo no contexto e no complexo planetário” (Morin, 2000:35). 123 “A instituição da sociedade é que é e tal como é enquanto “materializa” um magma de significações imaginárias sociais, com referência ao qual somente indivíduos e objetos podem ser captados ou mesmo simplesmente existir; e não se pode também dizer que este magma é separadamente dos indivíduos que ele faz ser” (Castotriadis, 1982:401). 124 As coisas sociais não são “coisas”; elas só são coisas sociais e essas coisas na medida em que “encarnam” ou melhor, figuram e presentificam, significações sociais. As coisas sociais são o que são mediante as significações que elas figuram, imediatamente ou mediatamente, diretamente ou indiretamente. (Castoriadis, 1982:400-401).
175
desconstrução das imagens instituídas socialmente” com relação à escola e,
também, “a construção de um outro imaginário, a instauração de um outro
processo de subjetivação”.
A impossibilidade de representar causada pela não vivência, pode ser
observada através do depoimento de mulheres que fazem uso coloquial de
saberes escolares e, ao mesmo tempo afirmam não dominar o objeto de
conhecimento125, caracterizando um dos mitos da escola, ou seja, a distância
entre ciência e senso comum. Nessa aparente contradição há um “sucumbir”
ao imaginário instituído que pode ser pensado como uma “estabilidade relativa
e transitória das formas-figuras instituídas” (Castoriadis, 1982:416), uma
temporalidade e, ao mesmo tempo, uma “auto-alteração” ou “explosão dessas
formas-figuras que só pode ser sempre posição-criação de outras formas-
figuras” ou uma outra temporalidade.
Embora tenha sido muito restrito o universo de saberes que as
interlocutoras elencaram como típicos da escola e tenham tido alguma
resistência em reconhecer quais os saberes aprendidos na escola que são
indispensáveis na vida mesma, não ousaram afirmar que o que se ensina lá
não é importante, evidenciando que o que unifica uma sociedade “é a unidade
de seu mundo de significações” (Castoriadis, 1982:404). Para o autor, ao
“desconstruir” imagens instituídas social e historicamente126, embrenha-se,
quase sempre, em um campo desautorizado, porque estar à margem também
é um sentido instituído, “vestido, encarnado” pelas mulheres que vêem a escola
e seus saberes, como inatingíveis.
Instituídos no imaginário social, via lugares sociais ocupados por quem é
escolarizado, materializados nas grades curriculares e na hierarquia, no
sucesso ou no fracasso na escola, os saberes que foram elencados pelas
interlocutoras são ensinamentos do escrever, ler e conviver com as outras
pessoas, ensinar as crianças a ter senso crítico além de saber os conteúdos e
disponibilizar informações para que descubram afinidades para as escolhas
125 Entre as interlocutoras há um grupo significativo de mulheres pouco escolarizadas que administram seu orçamento familiar e pequenos negócios com maestria afirmarem que não sabem matemática. 126 Dizer das instituições imaginárias sociais que elas são instituídas, ou dizer que a instituição da sociedade é instituição de um mundo de significações imaginárias sociais, é dizer também que essas significações são presentificadas e figuradas na e pela efetividade de indivíduos, atos e objetos que elas informam” (Castoriadis, 1982:401).
176
profissionais. Além disso, afirmaram que a escola deve ensinar valores como
respeito, ética, caráter e deve ainda, ensinar a interpretar, a estudar, a cozinhar
para que os alunos sejam mais independentes. Há um desejo de que a escola
prepare para o futuro, para o mercado e para a convivência. São sentidos que
excedem a capacidade da escola e a função social para a qual ela foi criada,
sentidos que investem esse espaço de um poder que ele não tem, o que
constitui a demanda imaginária, uma atribuição de sentido ainda não incluída
no social-histórico instituído. Assim, os saberes da escola e da vida se
confundem pois as interlocutoras se recusam a separar os conhecimentos
típicos de um universo e de outro.
Para Haxixe (41 anos, 2002), uma das interlocutoras que mais deseja do
que encontra no universo escolar que conhece imensamente, escola é um
lugar de saberes que nem os livros, nem o computador, nem um professor
particular pode oferecer. Aos quarenta e um anos, com dois filhos adolescentes
(que se envolvem pouco com a escola embora tenham sucesso nela), o sentido
é o de lugar privilegiado para aprender a pensar sobre as verdades:
“Primeiro, o conhecimento propriamente dito, que eles tem acesso na escola o computador pode dá, só que a maioria de nossos alunos não tem acesso ao computador, eu não tenho computador, mas a análise deste conhecimento que surge, que surgiu através da escola, a troca, a reflexão, o computador não dá. Então, o que prá mim fica muito presente é a questão social do conteúdo trabalhado” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Professora convicta que brincava de professora quando criança e
oriunda de uma família onde tias alfabetizavam e onde em cada casa havia
uma professora, sempre teve vontade de ensinar e, através da escola,
aprendeu a apostar em um espaço onde o diálogo seria a atitude prioritária, um
caminho para aprender a pensar:
“Eu trabalho com filosofia com adolescentes e dentre os conteúdos eu deixei um espaço para que houvesse um debate sobre temas da atualidade, porque filosofia é discutir, fazer leituras da atualidade, como é que tu tá olhando esta realidade... E o primeiro assunto que surgiu foi aborto e eu quase caí da cadeira: adolescentes de 14, 15
177
anos querendo falar sobre aborto! Aborto, justiça, saúde, tudo a ver com nossa realidade” (Haxixe, 41 anos, 2002).
A escola que conheceu e que pôde vivenciar na infância foi um espaço
que despertou sua curiosidade, um espaço de alegria, onde aprendeu a amor
pela escola, pelos professores, respeito pelo ambiente, pelos colegas e
preservar aquele espaço era um hábito. Hoje, sente-se comprometida a dar
retorno para a escola, na tentativa de recuperar o conceito de escola que
construiu na infância:
“Eu fui preparada para um ambiente que não existia, sem problema de fome, sem problema de não ter material escolar, familiar muito pouco, existia uma estabilidade maior, tanto financeira quanto social, não vivenciei ditadura dentro da escola, não, a diretora era uma pessoa que tinha um colégio com 1600 pessoas e ela conhecia cada aluno, a sua família, passava por ti no corredor e perguntava: como tá o teu pai, a tua mãe, tinha esse vínculo, essa coisa do amor e da proximidade” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Acredita que a convivência em sala de aula e a interação com o outro
proporciona crescimento que os livros não possibilitam e pensa que através da
história de vida reapresentada na sala de aula é possível fazer pensar,
questionar os conhecimentos pré-estabelecidos e se preparar para ter opinião,
argumentos acerca do acontecido:
“Eu digo para eles: o espaço da escola, do livro, da filosofia, tem que proporcionar esse argumento que me dê um acréscimo àquilo que vem pronto, que está estático, tem que dá um movimento àquilo que está estático!” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Através de seu trabalho acredita que esteja ensinando as crianças a se
olharem como sujeitos, com poder de realizar autocrítica, não tendo medo da
autoridade do professor e acreditando que o adulto pode ser um interlocutor.
Pensa também que esses princípios criem relações de pertencimento que
podem se expressar na auto-regulação, através do compromisso com os
colegas em não perturbar os processos de conhecimento dos outros, por
178
exemplo. Para ela, a escola é um espaço de reciprocidade, onde adultos e
crianças deva ter vez e voz:
“Se aprende muito, às vezes negativamente, na relação com o outro, e isso é a escola que dá, porque pode aprender tudo através de um professor particular mas se tu não sabe se relacionar com o outro, não aprendeu a viver, porque a gente vive num mundo que é coletivo. Essa questão de vida, de relação social é a escola que proporciona, com todo o positivo e o negativo” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Já pensou, várias vezes em tirar os seus filhos do colégio, pois é
contrária à competição que ideologicamente é inculcada nas relações
escolares mas remete à falta de estrutura financeira a sua não tomada de
decisão. Ao mesmo tempo, como vem exercitando outro tipo de relação no
espaço escolar e está tentando colaborar para um mundo diferente, não
considera justo que seus filhos não possam ter professores ou uma escola
como a que ela acredita e constrói:
“Muitas vez me falta argumentos para mandar meus guris para a escola. Eu tenho vontade, muitas vezes de dizer: não vai para a escola. Fica, lê, conversa comigo, bem egoísta! Eu acompanho a vida escolar deles e sofro, desesperadamente, porque chega em casa, a primeira coisa, largar a pasta, pegar qualquer coisa menos o caderno. Eu: Tem tema? Não, não tem. Não tem que estudar? Não, não precisa. Eu gosto que meus alunos vão para casa ainda ligados em mim, com uma expectativa em relação a próxima aula e isso eu não vejo nos meus filhos” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Ao observar a escola ousa afirmar que a curiosidade natural que a
criança tem, a cada dia e a cada ano vem sendo morta pelos procedimentos,
regularidades, burocracias e coisas sem sentido que são ensinadas. Apesar
disso envia os seus, fundamentalmente porque se não tiverem a escolaridade
comprovada, não terão acesso a outros bens. Acredito que Haxixe pode
desejar uma escola diferente da que existe, fundamentalmente por que seus
filhos são letrados, são leitores e tem sucesso na escola. Assim, mesmo que
não tenha a qualidade que deseja ou que se considera capaz de fazer, envia
179
os meninos porque acredita na escola. Mais que isso, acredita que em algum
momento da escolaridade destes, o sentido que atribui à escola vai se realizar:
“Meus filhos são leitores, muitas vezes eu penso que eles estão dormindo, vou lá, eles de luz acesa, lendo! A escola desconsidera, não aprimora em nada, quase que faço, posso dizer, um trabalho paralelo. Eu tenho caderno com eles em casa, eu estudo com eles, na porta do quarto tem mapa, a casa vira meio colégio. Tudo que eles querem saber eles sabem que a partir de mim eles vão ter” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Para ela, o espaço da sala de aula é das interferências específicas e
deve ser um espaço agradável que contribua para crianças e adolescentes
como pessoas. A atribui à forma de trabalhar os conteúdos o desencanto
desses com a escola e pensa que o conteúdo estático, sem movimento, sem
vida, sem relação com o que a criança está vivenciando é que vai distanciando-
a da escola. A vida, para ela tem que estar presente na escola e se a escola
não representar a vida, não é escola:
“Eu busco tê força para colaborá prá que esse espaço que eu vejo tão diferente daquilo que eu pude vivê, e não é sê saudosista, que sei que escrevo bem, não falo com tantos erros, e não é atribuído ao Mestrado agora, é por todo um percurso que eu tive, então, eu quero ter força, ter argumento para colaborar para esse mundo melhor que a gente sonha, essa utopia tão distante, essa interferência mais direta, eu tenho que me senti fazendo isso. Não se fala em exercício de cidadania? Tá, mas o quê que é isso? Conhecer meus direitos, i atrás de meus deveres, ter essa noção do todo, então em cada espaço que eu estiver, eu quero colaborar...” (Haxixe, 41 anos, 2002).
Para Laranjeira, outra das interlocutoras que atribui à escola o sentido
de espaço de saberes, a descoberta do mundo da escola é rememorado com
saudade127 e como sinônimo de cuidado. Levada no colo por alunas de sua
mãe, aprendeu a ler entre esses braços, sem necessitar de relações mais
sistemáticas:
127 E o que é a saudade senão a presença de uma ausência incorrigível daquilo que nos remete sempre à falta de alo para a nossa felicidade? (Ferreira, 2002).
180
“Aprendi a ler sozinha, com quatro, cinco anos, minha mãe disse que não se lembra de ter me ensinado nada, que eu fui pegando o que as professoras foram me ensinando, lembro que eu estava sempre na volta das coisas dela. Eu gostava daquilo, sempre junto, do material que ela estava pintando, na biblioteca, ela cuidava da biblioteca” (Laranjeira, 30 anos, 2002).
Cursando a Universidade pela segunda vez, filha de uma professora
politicamente engajada, é também filha da consciência política dos anos 60.
Embora cercada por livros, não se tornou letrada na infância, localizando na
chegada à Universidade o momento em que aprendeu a ler com sentido de
letramento:
“Eu não tinha um vínculo com a leitura até 1998. Os professores da Geografia nos indicavam várias leituras mas eu lia porque tinha que cumprir com alguma coisa que estava ali, alguma questão que estava dentro de um texto, eu sempre fiz isso assim. O insigth para a leitura surgiu em 98, o professor deu um livro bem pequenininho, eu comecei a ler e comecei a gostar, e foi incrível, eu não larguei mais. Eu digo isso sem constrangimento. Aí caiu a ficha completa, porque eu tinha que estudar e elaborar os meus pensamentos. Quando eu comecei a ler e me dar conta de que era muito mais fácil colocar no papel as coisas... Antes eu elaborava um pensamento, queria expressar e não conseguia!” (Laranjeira, 30 anos, 2002).
O sentido atribuído à escola é o de oportunizar a reflexão que antecipa a
ação e a posterior reflexão dessa ação. Defensora do caráter público da
escola, credita a ela a responsabilidade de disponibilizar saberes que ampliem
a visão de mundo das pessoas que por ali passam. Com os filhos, vive a
contradição de saber a necessidade de ir à escola e de combater os
desmandos, as ignorâncias e os direitos não resguardados.
“Quando a gente tem a necessidade de colocar os filhos na escola para poder trabalhar, tu tem que ir mediando situações. A gente ia cantando, a creche que ficava muito longe da minha casa e eu levantava de manhã cantando, com chuva, com frio, com gelo e dizia que era muito bom ir prá escola, cantando, eles choravam prá saí de casa, então toda a coisa de contar histórias, de cantar, de ter vínculo de alegria e aí foi passando, mas sempre foi mediação pela
181
necessidade. Se eu tivesse outra opção não teria mandado” (Laranjeira, 30 anos, 2002).
Adota a defesa de que a escola é boa, que a professora que lá está é
uma trabalhadora mas reconhece que as crianças (que já tem senso crítico)
têm razão em uma série de reclamações que fazem da escola. Está
aprendendo a se relacionar de maneira menos protagonista com a escola dos
filhos, para que eles mesmos possam criar asas:
“Hoje a escola é um espaço deles, de construção deles, a relação deles eles vão mediando, construindo as relações deles, eu acordo eles as seis e meia, eles se vestem fazem a merenda, tudo sozinhos, e vão prá escola” (Laranjeira, 30 anos, 2002).
Na Universidade, exerce com amplitude o sentido que atribui: é
estudiosa, politizada, presente, argumentativa, sabe democratizar os saberes
que recebe ou que adquire, questiona os espaços e as seleções de conteúdos
e de bibliografias. Exercita, cotidianamente o sentido que atribui à escola, o que
faz com essa seja parte do que deseja. “Luto pela educação pública, gratuita e de qualidade, sendo este um dos principais sentidos de estar estudando e acredito na possibilidade da qualificação profissional em nível superior como algo que melhor me capacitará para fundamentar minha ação brigando pelo que acredito lá for” (Laranjeira, 30 anos, 2002).
Há ainda um elemento que pode ampliar o sentido atribuído à escola
como espaço de saberes: a forma de vestir-se para ir à escola. Ancorado na
produção simbólica produzida socialmente, o vínculo das interlocutoras com a
forma de se vestir para a escola foi um elemento que apareceu repleto de
saudades. A dimensão simbólica revela relações com a escola em que sair à
rua vestida para estudar tinha uma importância, distinguia seus membros,
revelava pertencimento a uma tribo, um grupo, afortunados por estar na escola
ou naquela escola. São as expectativas e os mitos construídos em torno da
instituição, a partir das cores, dos laços de fita, da limpeza do uniforme, do usar
sapatos, ter materiais escolares, receber estrelinhas. Algumas das mulheres
lembraram o uniforme como um diferencial, mas lamentaram que ele já não
182
significa a mesma coisa atualmente, ou que não é mais solicitado, sentimento
que pode ser agregado à dessacralização, ou, como pensa Ferreira, se insere
no movimento do sagrado ao profano128.
O aluno que vestia um “tapapó”, imaculadamente branco, professava,
publicamente sua ignorância, sua devoção ao mestre, sua filiação a uma
escola, a um local de saber e, o destaque nesse lugar, era o anúncio da
proximidade com o lugar ocupado pelo sagrado, uma deferência. Os pequenos
traços distintivos, laços azuis, saia pregueada, sapatos escuros, serviam para
definir, em uma escala simbólica, a quais escolas pertenciam, em qual fé
professavam, em quem confiavam seu futuro. No depoimento da Malva
aparece, profundamente simbolizado esse momento de ingresso em uma
“confraria”:
“Aos seis anos e meio chegou o grande dia de ir para o Grupo Escolar Alcides Mendonça Lima onde minhas duas irmãs mais velhas estudavam. Caderno novo, lápis, borracha e tapapó de tergal imaculadamente branco e eu e meu irmão fomos para a escola. Ao chegarmos uma senhora baixinha veio nos receber: era a D. Maria Tereza” (Malva, 40 anos, 2002).
Ao observar o destaque dado pelas mulheres nas memórias do “vestir-
se para a escola” pode ser encontrado na obra de Perrot (1998: 31-32), que
aborda imagens de mulheres. Nela, a autora afirma que o primeiro poder das
mulheres é estético, representado pelas mulheres da realeza e, logo depois,
pelas cortesãs, que “seduziam as mulheres antes dos homens” pela liberdade
amorosa e pela aparência e que “seduzir, reinar pela beleza, pela elegância,
conquistar um homem, vários homens” era atribuído às mulheres que
realizavam o “grande sonho identitário feminino”. Às outras, as castas, as
“recalcadas pela decência”, as quais estava reservado o não viver este sonho,
restava a literatura, onde figuras femininas de toda espécie eram encontradas
nos romances que as mulheres, no século XIX, liam com avidez. Para a autora
128 Embora a pesquisa de Ferreira (2002a) aborde o processo de dessacralização que atingiu a imagem do professor nos últimos 60 anos, acredito que esta atingiu a escola como um todo, resultando em uma rotura nas possibilidades de identificar-se também como “aluno”. O autor aponta a reivindicação por melhor remuneração como o eixo do deslocamento de sentido atribuído à atividade do magistério do sagrado ao profano.
183
ainda, publicamente a mulher, através de sua elegância, tem uma função de
representação que é exercida pela luxuosa forma de vestir e mesmo sua
beleza. É no vestir e se comportar que exprime a riqueza ou o prestígio de
seus maridos ou de seus companheiros.
Há um depoimento em que a sedução do momento público de mostrar-
se, mulher e professora, é um profundo gestador de sentidos; nesse
depoimento o sagrado vivido pela mãe e desenvolvido como uma ação
coadjuvante pela filha, uma das interlocutoras, desencadeou o processo
instituidor de sentido nela:
“Lembro muito bem das muitas vezes que fui com ela para a escola e pude ver de perto as aulas que ela dava. Eu adorava. Ficava encantada com aquela mulher perfumada e bonita que ia naquele lugar ensinar outras crianças que não éramos nós três com tanto cuidado. Lembro dos cadernos de caligrafia em que ela passava tema para os alunos, dos ditados que eram corrigidos na sala, dos mapas coloridos que ela fazia com muitas matrizes até ficarem perfeitos e das guloseimas que recebia na hora do recreio. Na época da formatura eu tinha 9 anos. Lembro do hotel que tinha uma sorveteria em baixo e um sorvete de abacate de dar água na boca, do meu vestido cor-de-rosa feito especialmente para a ocasião e da emoção enorme que foi a colação de grau. Eu não sei o que mais que eu entendia no momento. Só sei que lembrava dela indo e vindo e que agora tinha terminado tudo aquilo. Ela tinha conseguido se formar” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
7. Escola é realização
“Desde os 5 anos que minha vida gira em torno da escola.
Era o brinquedo que eu mais gostava. Colocava todos os meus primos e amigos,
junto com minhas irmãs, sentados em classes feitas de improviso em caixas de madeira,
cadeiras e banquinhos, enfileiras na minha frente para serem meus alunos.
O quadro era a parede da cozinha que eu preenchia com os mesmos exercícios que via minha mãe fazendo.
Era o brinquedo que eu mais gostava. Fazia questão de passar tema de casa
para deixá-los comprometidos
184
de brincarem de novo no dia seguinte" (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
A categoria espaço de realização refere-se a uma necessidade de
tornar-se imprescindível, o desejo de ser feliz e a força de vontade para
materializar cotidianamente esses elementos. O sentido atribuído agrupa todos
os elogios possíveis: a escola é, ao mesmo tempo um espaço social, um lugar
de saberes, um espaço para exercer uma profissão, um lugar que materializa o
projeto de vida e a possibilidade de fruir sonhos acalentados.
Como um projeto, realizar-se através de escola implica uma criação
imaginária a respeito de seu universo, a necessidade de sentir-se útil e o
desencadeamento de ações que possibilitem viver, com prazer, cada um dos
dias passados nela.
Acreditar que a escola é “o único caminho para se chegar a qualquer
lugar” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002) e que o lugar a se chegar só depende do
investimento pessoal é minimizar a necessidade de reproduzir-se, em nome do
desejo e da força de vontade para realizar. Assim, realização através da escola
é tornar não só a chegada, mas cada um dos passos da trajetória um ritual
mágico.
O sentido atribuído à escola como possibilidade de realização é maior
que o atribuído a ela como caminho para uma escolha profissional. Na maioria
das escolhas que nos são possibilitadas, atualmente, “o senso comum de
nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga
o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações...” (Chauí, 2001:18).
Outro aspecto a ser considerado na atribuição de sentido à escola como
um espaço de realização de um projeto de vida está na possibilidade de, como
realização, ter acumulado características que o senso comum desconhece em
um mesmo lugar, como por exemplo, escolha, trabalho e felicidade. Não há,
para a interlocutora que define a escola como um lugar de realização do projeto
amalgamado na infância, a necessidade de desconsiderar ou minimizar algum
dos aspectos que compõe essa categoria em detrimento de um maior:
necessidade, desejo ou vontade:
185
“A orientação que recebemos dessa mãe-professora foi de liberdade de escolha. Ela dizia que poderíamos escolher a profissão que quiséssemos. Nunca selou nossos caminhos. Deveríamos sim, aproveitar as várias mudanças que a luta das mulheres estavam fazendo, para fazermos uma opção que nos realizássemos e nos tornasse independentes financeiramente” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Escola como um espaço de realização é sinônimo de ser professora. È
ter imagens que permanecem inesquecíveis, que se eternizaram enquanto
“ausentes/presentes” (Ferreira, 2002:284) no que diz respeito às primeiras
professoras, iniciadoras na arte de sonhar e desejar a professoralidade:
“Cresci no meio de professoras dedicadas e crianças cheias de vida e de expectativas. Minha mãe era professora primária e lembro dela em volta de cadernos para corrigir, cartazes, provas para preparar e aulas. Lembro dos cadernos de caligrafia em que ela passava tema para os alunos, dos ditados que eram corrigidos na sala, dos mapas coloridos e das guloseimas que recebia na hora do recreio. Quando eu chegava em casa, queria fazer o mesmo. Então, colocava primos e amigos junto com minhas irmãs, sentados em classes feitas de improviso em caixas de madeira enfileiras na minha frente para serem meus alunos. O quadro era a parede da cozinha e eu preenchia com os mesmos exercícios que via minha mãe fazendo” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
O grande vínculo da maioria das mulheres com outras mulheres (mães,
tias, irmãs e também as professoras) que exerciam a profissão se dá por
afinidade, respeito, curiosidade, espelhamento, conhecimento. Foram modelos
a serem seguidos depois de admirados e reverenciados:
“Na época ser professora era uma escolha comum entre as mulheres que ainda não tinham muitas opções profissionais. A professora possuía um prestígio enorme e bons salários, garantia de uma excelente escolha profissional para seu tempo. Éramos uma família simples, mas vivíamos bem e com o respeito da cidade em que morávamos por que ali, reinava uma professora” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
186
Mesmo entre as mulheres com pouca escolaridade a professora é uma
figura importante, forte, marcante, para o bem ou para o mal. No cotidiano
escolar vivido intensamente por todas elas, os momentos de conflito,
enfrentamento, criação, descoberta, fantasia, afetividade, afirmação ou
repressão foram enunciados, algumas vezes com lágrimas, quase sempre com
saudades.
Para a totalidade da interlocutoras, a presença de um personagem
marcante em suas vidas, personificada nas professoras da infância ou nas que
atualmente convivem, significou um divisor de águas na relação com o saber,
corroborando para a tese de que o vínculo com pessoas que dão um
significado letrado à escola é determinante na constituição de sentidos.
Para Ferreira (2002:285), os professores de outrora povoavam o
imaginário social como quase deuses, “partícipes no espaço de sacralidade”,
seres de saber, de luz, acima dos outros mortais, melhores que eles, mais
felizes. Essa imagem sacra empurrou o professor para um local de “abnegação
sem limites”, um “desprendimento quase ilimitado”, em um processo de
simbolização da profissão que estava afastada dos demais trabalhadores e,
portanto de suas lutas e reivindicações.
“Na época nossa cidade não tinha nenhuma faculdade e minha mãe teve que estudar em Bagé que tinha cursos à distância. Então nas épocas determinadas de provas e exames, tinha que nos deixar com uma de nossas avós. Aquela movimentação toda era feita por um motivo especial para todos. Sabíamos que ela estava fazendo um investimento precioso. Não entendíamos muito como funcionava aquela faculdade, mas sabíamos que nossa mãe estava fazendo o certo e sentíamos o orgulho que as pessoas tinham no tom das palavras quando esse era o assunto” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Embora estudos a respeito das significações do trabalho docente129
indiquem um sentimento de nostalgia, de descrença no próprio trabalho, de
comiseração consigo e com seu trabalho, de inutilidade dos investimentos em
todos os níveis de ensino, não são essas as imagens que esta pesquisa
129 A esse respeito ver: Oliveira, Valeska. Imagens de Professor: significações do trabalho docente. Ijuí: UNIJUÌ, 2002.
187
encontrou no meio das trinta mulheres. Será que falavam de uma professora
que não existe mais?
Há, nos depoimentos, um movimento de sentidos, ora afirmando a
lembrança e a saudade de mulheres que ficaram pela sonoridade da voz, o tom
de voz, o rosto, a empatia, a simpatia, o carisma, os tratamentos carinhosos, o
apego, os sorrisos, a beleza, o cabelo, ora pelas aprendizagens e
ensinamentos:
“Não lembro o que aprendi na escola, mas lembro de uma professora, a da terceira série, ela era bonita, tinha o cabelo ondulado, comprido, morena. Eu nunca esqueço, ela era bacana!” (Mandacaru, 2002).
O imaginário social se expressa por meio do simbólico. Captar o
simbolismo de uma sociedade é captar suas significações, é buscar responder
quem somos nós, uns para os outros. As imagens de professora construíram
os sentidos atribuídos à escola como um lugar que realiza as pessoas e como
um espaço ocupado por um uma mulher feliz. Processo cotidianamente vivido
por cada um, a história das mulheres que atribuíram às professoras imagens
de conhecimento, de identificação, de valoração do ser mulher, de imitação e
desejo de poder, as interlocutoras apresentaram uma imagem de professora
ancorada no passado, imagem ainda sacra.
Nas vias de acesso ao imaginário, as formas de expressão nos remetem
ao campo do dizível e do indizível, do óbvio e do mistério, dos sonhos e do
desejo, do conhecimento e da ação. Apreender sentidos significa percorrer
caminhos sinuosos. No sentido atribuído à escola, há uma figura que está na
porta, esperando, com um veredicto. Nas falas de minhas interlocutoras, é uma
mulher de cabelos longos, perfumada, sorridente, afetuosa, que ensina. Às
vezes, castiga, é dura, machuca. Mas não corrompe a imagem, porque volta a
sorrir, visita o aluno doente, passa caligrafia no caderno e, ao final, confere
uma ou mais estrelinhas para o feito.
O significado de escola como realização foi atribuído mais intensamente
por apenas uma das interlocutoras desse estudo. Formada no Magistério e
graduada em História, Pau-Brasil cursa Especialização em Educação em uma
Instituição Federal de Ensino Superior e trabalha em uma Escola Pública
188
Estadual. Aos quarenta e dois anos, solteira, tem um filho de treze anos que
não tem sucesso na escola, condição que ela atribui à própria escola. O
sentido que ela atribui à escola para si se distancia, em muito, ao significado
dado pelo filho à escola o que a leva a creditar à instituição onde realiza seu
projeto de vida, o espaço que inviabiliza o sonho do filho:
“Eu, se tivesse hoje, uma outra alternativa para o meu filho, colocaria nesta outra alternativa, que não fosse a escola. Eu por que não enxergo esta outra alternativa, meu filho não tem uma herança para receber, não tem um negócio futuro para administrar, então ele tem que ir para a escola, porque é o único caminho! Se tivesse um outro caminho, escolheria este outro caminho! Um barco prá ensinar ele a velejar! Vai conhecer o mundo, meu filho. Velejar é assim, assim, assim, pescar é assim, assim, assado! Acho que é um caminho... Acho que é um caminho! Não sei se não é mais válido que a escola! Um monte de livros no barco, escolhe tu mesmo algumas leituras, um Atlas geográfico, alguns livros, uma bússola...” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Filha de uma família onde ser professora era um “reinado” para as
mulheres, aprendeu desde cedo, através do discurso e das ausências da mãe
o valor social do trabalho e da independência financeira. Em processo de
amadurecimento intelectual, o sentido atribuído à escola passou por diferentes
nuances durante o processo de interlocução. Inicialmente por escrito, revelou
um profundo encantamento com o universo escolar, de onde saiu sua escolha
para tornar-se professora, um encantamento fundado na idealização do mundo
da escola e do acesso que esse mundo pode oferecer. Nesse momento
revelou-se a professora que prepara crianças para a continuidade da
escolarização, que as convence das benesses e vantagens do mundo depois
da escola.
“Hoje faz 37 anos que minha vida gira em torno da escola. Nela cresci, aprendi, amadureci, me preparei para assumir uma profissão e nela me reconheço professora. Foi na escola que vivi a maior parte da minha vida. Nela incentivei tantas pessoas a investir em si e no seu futuro. Nela aposto ainda para as mudanças possíveis dentro da sociedade. E é na escola que confio a preparação do futuro do meu filho” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
189
Fundado num processo prazeroso de letramento, a escolha pela
professoralidade ultrapassou o desejo de ser economicamente independente: a
escolha revelou-se a busca do sucesso, da liberdade, da qualidade de vida, da
independência e do poder que uma mulher pode ter em um universo onde seu
salário é parte significativa da renda familiar. Representada pela figura da mãe,
a professoralidade ou o acúmulo de todas essas qualidades tinha raízes
também sociais, que podem ser evidenciadas no movimento em torno de uma
casa de professora:
“Nossa casa tinha sempre livros. Lembro que era comum que os vendedores, sabendo o endereço dos professores da cidade, batessem muitas vezes na nossa porta. Tínhamos coleções pelas prateleiras organizadas de uma sala que chamávamos de biblioteca. Nela havia a “Delta Larousse”, “O mundo da criança”, e muitas outras que não lembro o nome. O mundo da criança era a minha coleção favorita. Tinha uns dois volumes que continham histórias infantis com gravuras que me fascinavam e me motivaram a ler todas as histórias. Ali foi o início da minha vida de leitora” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Vivendo intensamente o magistério, entrou em contato com crianças de
comportamento mais difícil, com pais exigentes e outros omissos, com os
salários baixos e a necessidade de lutar para mudar o que fosse possível. Só
passa a entender a engrenagem social quando entra na Universidade (1980,
período de vigência da ditadura militar no Brasil). Os professores que conhece
na Faculdade de História se mostravam assustados com as possibilidades de
comprometimento político e os conteúdos curriculares eram ensinados com a
neutralidade que acreditavam possível, em uma expressão da interlocutora,
como se estivessem “em cima do muro”. È no movimento estudantil que
encontra um caminho para observar, conhecer e proporcionar, a si e a seus
alunos, uma outra visão da história, da escola e da importância do trabalho
docente como agente de transformação social. A partir daí, desenvolve um
outro olhar a respeito das relações de sala de aula e a postura profissional se
modifica. Passa a acreditar que não só a razão faz a história e, por isso, luta por
190
um projeto de sociedade onde “os desejos possam potencializar as forças
sociais necessárias para as mudanças profundas que necessitamos em nossa
sociedade” (Ferreira, 2002:298). Ao ingressar em grupos de teatro, grupos
políticos e movimentos docentes, amplia o universo de atuação docente,
tornando mais complexa sua ação educativa:
“Tudo que aprendi estava muito longe daquilo que agora acreditava ser necessário para a educação. Tive que rever as matérias, os textos, as discussões em aula e os objetivos propostos para as turmas que trabalhava. Passei a desejar para meus alunos um mundo diferente, mais justo, mais humano e com mais possibilidades para todos. E meu trabalho foi se juntando a outros poucos professores que na época também pensavam assim. Lutava com minhas dificuldades em aula e no movimento sindical tentando mostrar a outros colegas o que eu pensava e junto de outros, por melhorias na educação” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
É essa ação educativa que a move para realizar seu projeto,
remodelado, não abandonado de professoralidade. A escola passa a ser um
espaço de investimento em um trabalho que mostre todos os lados de cada
história, de cada conhecimento e, também, de como esses conhecimentos são
gerados, por quem, a quem beneficiam e por quê. O desejo de transformar
cada aluno em um cidadão crítico, consciente, lúcido e capaz de fazer suas
próprias escolhas é seu novo desejo; é por esse cidadão que passa a lutar.
Nesses anos de trabalho, utiliza seus saberes que localiza no grupo de teatro
do qual participou, nos conhecimentos que o mundo da política relativizou, nas
discussões que pôde fazer com outros professores e nas demandas que a sala
de aula e as crianças lhe oportunizaram. Ainda acredita na escola:
“Mas acredito ainda que a escola é um lugar de mudanças e que deveríamos investir na formação dos professores para que estes pudessem, melhores preparados e com salários mais dignos, ajudar a essas gerações a investirem em seu futuro. Como professora, nosso trabalho hoje nos exige mais. Temos que estar sempre atualizados e o volume de informações é muito grande. Nossos alunos recebem informações com uma velocidade muito maior do que na minha época de estudante. A internet está popularizada e eles têm à mão um
191
veículo excelente de comunicação e entretenimento. Somos então mais exigidos agora” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
Acredita que há uma enorme diferença entre a educação que recebeu e
a do filho e sua geração, diferença que localiza na forma como foi educada e
no mundo cheio de expectativas (com mais oportunidades para que se
investisse na escola, com menos violência e mais garantias das apostas feitas
no futuro) que sua infância lhe proporcionou. Atribui à mídia o contato das
novas gerações com um mundo competitivo e desumano, individualista e
desanimador para quem necessita, através de uma profissão, se inserir no
mercado de trabalho. Reconhece que apesar de encontrar professores
interessados, informados e conscientes como ela mesma, é quase impossível
tornar-se contraponto ao modelo macro de influência: “Existe hoje, um movimento significativo entre alguns professores para fazer um trabalho diferenciado nas escolas, mas ainda é muito pouco para atender aos interesses dos alunos que, na minha opinião, não vêem muito significado na escola hoje. Observo isso mais de perto com meu filho que está agora com 13 anos e não tem motivação para o trabalho na escola. Ele e muitos de seus colegas não vêem muita motivação nos trabalhos escolares, mesmo quando se usa teatro, música, Internet...” (Pau-Brasil, 42 anos, 2002).
A escola realiza a necessidade de tornar-se imprescindível, mas apenas
para ela; realiza o desejo de ser feliz, felicidade do tamanho de sua vida; e
realiza os esforços empregados, embora ela reconheça que sozinha não tem
forças necessárias para desenvolver o projeto social no qual acredita.
Apesar disso, o sentido atribuído é um elogio à escola pois materializa
um espaço social de convivência único, que gira em torno do letramento, da
capacidade de conhecer e relacionar-se; disputa com a mídia o lugar de
saberes que estão representados pelo registro da produção da humanidade,
cultuando o conceito de cultura; um espaço para exercer uma profissão, uma
vez que foi uma escolha, há um investimento para exercê-la e uma
preocupação com a especificidade dessa; um lugar que materializa o projeto de
vida por todo o imaginário investido nesse e; a possibilidade de fruir sonhos
acalentados, nem todo com uma origem que possa ser evidenciada.
192
Os sentidos atribuídos à escola pelas interlocutoras desse estudo, foram
reapresentados, reatualizados e resignificados. Através do percurso pela
memória e pela memória da memória, pela herança recebida ou legada,
permitiram que a escola fosse, em cada um das trajetórias de vida, elogiada.
No movimento que o sentido para si – fundante, estruturante – tornou-se
sentido para os filhos, houve, em alguns perfis, significados que intactos, foram
legados. Outros que se refizeram, acompanhando a trajetória histórico-social
de atribuição de sentido à escola. Outros, ainda, que romperam com os que,
herdados ou inventados, não puderam se realizar. Complementares, compõem
a beleza e a infinitude desse estudo. Contraditórios, refletem a complexidade
da produção de sentidos. Significados emocionantes, dão sentido à palavra
elogio.
193
O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida;
sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora,
mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista,
mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura,
de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário
e pode conhecer o real, que é consciente da morte,
mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia,
mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas Idéias,
mas que duvida dos deuses e critica as idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados
mas também de ilusões e de quimeras. E quando,
na ruptura de controles racionais, culturais, materiais,
há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário,
quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado,
então o Homo demens submete o Homo sapiens
e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros”
(Morin, 2000:59-60).
IV – Sentidos contrariados: O elogio da pesquisa
194
Criada para produzir bens de sentidos, universalizando saberes e
competências, a escola é um espaço social onde cada um de nós pode ser um
ser humano original. Acredito que ela pode ser um espaço onde encontremos
oportunidades de, publicamente, aprendermos os limites sociais, um espaço
para o cuidado ético e, também, um espaço de realização de sonhos, nossos
apriorismos insondáveis.
Credito à escola o poder fundante do estar com os outros em público:
ela é o lugar dos ensaios de sociedade, das trocas de projetos, do experimento
e do erro lado a lado com o acerto. Escola é lugar de significação do capital
cultural familiar e de diponibilização de uma capital cultural universal. É,
portanto, um lugar de relações e, também, lugar de estar na infância, na
adolescência e na adultez.
Este estudo surgiu a partir da observação e convivência com mulheres
em processos de alfabetização que contrariavam as expectativas sociais a
respeito da escola, insistindo em buscar nela muito mais do que oferecia, muito
mais do que a elas era permitido, muito mais do que eu imaginava. As
verdades contrariadas por essas insistentes mulheres é que oportunizou minha
trajetória de pesquisadora, tendo ao meu lado, uma mulher que também faz
elogios à escola: minha orientadora.
A insistência em atribuir e materializar significados na escola está
ancorada nos sentidos herdados, gerados e legados, mesmo que sejam
sentidos que extrapolem a função para a qual foi criada a escola. Conhecer
quais as origens, desdobramentos, expectativas e mecanismos de alocação de
sentido na escola, por trinta admiráveis mulheres, foi a coluna vertebral desse
estudo e, ao descrever e interpretar as trajetórias de vida delas, pude
evidenciar, através de categorias, o imaginário instituído e o instituinte.
As diferentes lógicas simbólicas que unem essas mulheres à escola,
inicialmente abordadas por mim como causadores do “mal-entendido
permanente” (Charlot, 2000) a respeito do que se quer e do que se encontra na
escola, é, talvez a maior verdade contrariada desse estudo. Embora seja
observável que o fracasso das camadas populares na escola possa ser
compreendido por esse mal-entendido, as múltiplas atribuições de sentido
195
reveladas por essa pesquisa, não são, no meu entender, causas de abandono,
fracasso ou negação de seus saberes. Pelo contrário, são elogios à escola.
O argumento central da conclusão acima se encontra no deslocamento
de atribuição de sentido à escola, ou seja, na diferença de significado do
universo escolar para as interlocutoras e seus filhos: apenas uma das trinta
mulheres não ampliou o que herdou ao legar significado. As outras vinte e nove
mulheres, mesmo as que receberam um capital cultural restrito,
redimensionaram de tal forma o sentido atribuído à escola que ficou impossível
afirmar que há rupturas significativas entre o desejado, o projetado e o
materializado.
As interlocutoras que permitiram que esse estudo fosse realizado são
mulheres que, apesar das histórias escritas para elas, souberam conduzir o
leme de suas vidas e iniciar novas navegações em busca de ilhas
desconhecidas, de portos ainda não inaugurados, ainda não descobertos. Sei
que é impossível separá-las, datá-las, fazê-las sucumbir a um só regime:
instituído ou instituinte. Não é assim a imaginação. A imaginação é movimento,
uma rede de significados. Minha tese é de que cada um dos significados
atribuídos é instituidor de novos sentidos a serem herdados e legados,
possibilitando até a gestação de outros mais, ainda não inscritos no imaginário
de nenhuma delas. A condição para realizar esses trajetos está em
reconhecer-se possível. Um imaginável humano possível.
1. Das Verdades Contrariadas Ao investigar os sentidos atribuídos à escola procurei, primeiro, produzir
uma verdade. Inconformada com o que imaginava consenso produzido130,
minha formação acadêmico-política tornou-me uma buscadora de outra
hegemonia131. Indignada com o que considero resignação132 e interessada em
130 Central nessa discussão, o conceito de hegemonia para Marx e Gramsci, é a capacidade das classes dominantes transformarem em dominantes suas próprias idéias e, desse modo, fazer com que as classes dominadas acreditem ser governadas em nome do interesse geral, consentindo neste governo. 131 A teoria crítica a partir da qual aprendi o mundo racional teve um papel central em denunciar o caráter repressivo do consenso dominante e a mistificação ideológica em que se assentava. Acreditei que este embate produziria um campo para alternativas sociais e políticas para além do consenso hegemônico, o que aconteceu parcialmente, demandando, assim, novas análises, proposições e atitudes. 132 Resignação é uma categoria que indica um comportamento não apenas das classes dominadas mas um reflexo da certeza, pelos dominantes, de que não há alternativas a seu projeto de sociedade,
196
criar possibilidades de inscrever novos projetos aos que se tornaram
inevitáveis, busco construir ferramentas para conhecer e analisar a realidade
orientada pela desconfiança. Acredito que a desmistificação do consenso não
deixou de ser necessária e não acredito em consenso.
Assim, a produção dessas conclusões é o resultado de um movimento
de pesquisa que quis evidenciar a fragilidade dos consensos a respeito da
escola, de um único sentido socialmente valorizado, produzido pela
racionalidade e afirmado como condição para estar em sociedade. Ao mesmo
tempo, decidi tornar interlocutores sujeitos não reconhecidos pela ciência
moderna fundada na graduação do conhecimento, correndo o risco de
conviver, inexoravelmente, com a possibilidade de que os sentidos atribuídos à
escola pelas mulheres consideradas, nunca se instituírem como saber.
Na proposição de uma teoria crítica, ainda, Boaventura Santos
argumenta a necessidade de uma forma de conhecimento que é a
solidariedade, forma essa que se obtém a partir do reconhecimento do outro.
Afirma que esse outro só pode ser conhecido enquanto produtor de
conhecimento, ou seja, produzindo olhares respeitados, produzindo verdades
possíveis e não aprendendo verdades hegemonizáveis. Ao mesmo tempo,
pensa o outro que não mais existe ou que está subsumido na hegemonia do
pensamento dominante. Para ele, “O domínio global da ciência moderna como
conhecimento regulação acarretou consigo a destruição de muitas formas de
saber sobretudo daquelas que eram próprias dos povos que foram objeto do
colonialismo ocidental. Tal destruição produziu silêncios que tornaram
impronunciáveis as necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais
cujas formas de saber foram objeto de destruição” (Boaventura Santos,
2000:30).
Construir um conhecimento que inclua, que possa ser multicultural é
enfrentar a dificuldade do silêncio e da diferença. O silêncio como não dito e
não apenas o não ideologicamente dito, contra-hegemonicamente dito. A
diferença é a possibilidade de convivência com o que nos torna únicos,
absolutamente humanos e donos de verdades que podem vir a ser
acoplado à convicção da irrelevância e inevitabilidade do fracasso de qualquer idéias ou projetos hostis. (Santos, 2000)
197
universalizadas temporariamente. Boaventura Santos (2000:30) discute o
universal utilizado como imposto hegemônico: “Não esqueçamos que sob a
capa dos valores universais autorizados pela razão foi de facto imposta a razão
de uma ‘raça’ de um sexo e de uma classe social”.
A escrita desse estudo possibilitou conhecer sentidos atribuídos a partir
da interlocução de fragmentos de vida de trinta “outras”. Metodologicamente, o
desafio foi fazer falar o silêncio sem que ele comunicasse, necessariamente, a
linguagem hegemônica que o pretende fazer falar, no caso, o projeto do capital
cultural via escolarização que, significava para mim, a resignação ao projeto
da modernidade. A maior dificuldade que encontrei foi realizar um diálogo
multicultural quando, a maioria delas, por mulheres e por distância da escola,
sofreram um processo de silenciamento e as suas formas de ver e conhecer o
mundo, quase sempre, foram desconsideradas, impronunciáveis133.
A primeira das verdades contrariadas é que o sentido atribuído à escola
como possibilidade de ascensão social permanece inalterado para a maioria
das interlocutoras, apesar da escola estar sendo, cotidianamente resignificada.
È um paradoxo que pode ser entendido a partir da imagem que se mantém
intacta, tanto para a sociedade como para a própria escola, do espaço que ela
representa: um “símbolo do saber, do conhecimento” (Valeska Oliveira,
1997:59). Há ainda, entre a maioria das mulheres desse estudo, a convicção
de que a escolaridade é o caminho mais seguro, se não o único, de acesso a
uma profissão, a um lugar social de posição mais elevada do que o alcançado
por elas próprias, de situação econômica mais confortável, de respeito e de
valorização pessoal.
O paradoxo se encontra tanto na literatura produzida nesses últimos
quarenta anos a respeito do fracasso da escola em garantir acesso ao saber e
a formas de saber como também pela pouca mobilidade social, mesmo entre
aqueles que investiram na escolaridade como condição para a mudança de
lugar social.
133 “Os silêncios, as necessidades e as aspirações impronunciáveis só são captáveis por uma sociologia das ausências que proceda pela comparação entre os discursos disponíveis, hegemónico e contra hegemónicos, e pela análise das hierarquias entre eles e dos vazios que tais hierarquias produzem. O silêncio é pois, uma construção que se afirma como sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser desenvolvida!” (Santos, 2000:30).
198
Apesar dessa forte atribuição de sentido, nada menos que onze
mulheres assim se manifestaram com relação a ela, há a atenuante de que os
sentidos atribuídos à escola não se restringem aos instituídos escolarmente,
nem socialmente. Foi possível perceber que os sentidos instituídos
culturalmente pela escola no Brasil estão presentes nos discursos dessas
mulheres embora não se restrinjam a eles e, para o grupo pesquisado, escola,
além de possibilidade de acesso a uma profissão é também projeto de vida,
espaço social, espaço de realização pessoal, espaço de saberes, sonho ainda
não realizado, base para outros conhecimentos e espaço de disciplinamento.
É na atribuição desses outros significados para a escola que se encontra
a multiplicidade de vozes desse estudo, a qualidade das interações possíveis e
a possibilidade de afirmar que cada um dos sentidos atribuídos é instituidor de
novos sentidos a serem herdados e legados, possibilitando inclusive a
gestação de outros mais, ainda não inscritos no imaginário dessas trinta
mulheres e no de seus filhos.
Nesse estudo foi possível evidenciar que o sentido atribuído à escola
não é necessariamente herdado, ou seja, mulheres que tinham em suas
configurações familiares um capital cultural disponível em relação à escola e à
escolaridade, não necessariamente fizeram uso desse capital, abandonando a
escola e, em alguns casos, desistindo dela para sempre. A não-herança se
caracteriza, também, em perfis de mulheres que, mesmo desprovidas de
relações culturais que lhes disponibilizassem um capital cultural de valoração
do mundo da escola, gestaram sentidos para si e para os seus, indicando que
os sentidos podem ser gerados por relações que não de herança familiar. Uma
delas, que foi impedida pelos pais de ir à escola, chorava escondida vendo
crianças se dirigirem à escola e essa foi sua maior lembrança do tempo de
infância.
Do mesmo modo, o sentido atribuído à escola não é necessariamente
legado, ou seja, a atribuição de sentido das interlocutoras não tem relação
direta com os legados culturais ou de sentido que a vida e as relações de
pertencimento lhes proporcionaram, tendo, na maioria dos perfis, um sentido
para si e outro, para os filhos. Há apenas um perfil que contradiz essa máxima
199
(no qual o sentido para o filho é mais restrito); os outros todos a atribuição de
significado à escola legada aos filhos é ampliada pelas interlocutoras.
Essa conclusão indica que os sentidos se deslocam, ou seja, para um
grupo de mulheres, a escola tem sentidos completamente diferentes para si e
para os filhos. Para si, é um sonho que elas não racionalizam. Cada conquista
é uma grande vitória, a trajetória é narrada como uma epopéia, como um
superar constante de barreiras intransponíveis, com uma carga extra de
emoção. Já para os filhos, essa mesma escola é acessada como o caminho
natural, a realização do encontro entre escolha profissional e felicidade: a
escola profissional o caminho natural, a felicidade o que se acessa com o
retorno do exercício profissional.
Ao legar sentidos diferentes do seu próprio para a escola dos filhos,
oportunizam compreender que a escola que desejaram ou tiveram acesso não
necessariamente é a mesma que desejam para os filhos. A maior evidência
disso se encontra na atribuição de sentido à escola como realização pessoal,
para apenas uma das mulheres interlocutoras (Pau-Brasil, 42 anos, 2002) e a
de realização pessoal dos filhos para sete delas (Clorofila, 35 anos, 2002;
Gladíola, 33 anos, 2002; Juta, 45 anos, 2002; Lúpulo, 50 anos, 2002; Macieira,
26 anos, 2002; Madressilva, 45 anos, 2002 e Mangueira, 61 anos, 2002), tendo
como agregados outras onze mulheres que desejam que a escola seja um
espaço de saberes (Carambola, 32 anos, 2002; Haxixe, 41 anos, 2002; Ipê, 40
anos, 2002 e Laranjeira, 30 anos, 2002), de convivência (Absinto, 38 anos,
2002), de base (Manjericão, 47 anos, 2002 e Romã, 72 anos, 2002) para outras
investidas e que seja um projeto de vida (Canela, 40 anos, 2002; Centeio, 64
anos, 2002; Erva-Mate, 42 anos, 2002 e Nenúfar, 45 anos, 2002). Assim,
compondo o grupo de mulheres que legaram mais do que desejaram e
realizaram para si, dezoito mulheres projetam na escola dos filhos muito mais
que seu aspecto instrumental ou funcional e buscam nela o espaço que amplie
sonhos e realize felicidade.
Observei nesse estudo que o capital cultural independe dos laços
geracionais, ou seja, o capital cultural disponível nas famílias de origem circula
(pode ser legado de um avô para uma neta, de uma tia para uma sobrinha, de
uma professora para uma das interlocutoras) e não é linearmente legado,
200
estando mais vinculados a experiências sociais e emocionais intensas, a
significações do mundo da escola que, em alguns casos, explicam o desejo por
escola em mulheres cujas famílias não a cultivaram como projeto.
Essa conclusão pôde ser evidenciada em perfis onde o capital cultural
não esteve disponível ou foi restritamente disponibilizado, ou ainda em outros
onde não foi cultivado e nem materializado e, apesar da restrição, as mulheres
foram capazes de gerar desejo de escola, fazendo dela e de seus saberes, um
projeto de vida para si ou para os filhos. E também pôde ser percebido em
perfis onde o capital cultural disponível foi desperdiçado, ou seja, não teve
condições de ser herdado por mulheres que tiveram a escola e seus saberes
ao alcance dos sonhos e das materializações. Curiosamente, a maioria dessas
mulheres retomou o discurso e as atitudes de seus pais para reinstaurarem
para os filhos o que não realizaram, evidenciando a circulação de significados.
Pude evidenciar nesse estudo, também, que graus de letramento não
são diferenciadores de sentidos atribuídos, ou seja, o grau de letramento das
interlocutoras não é preponderante na atribuição de sentido à escola, pois a
maioria das mulheres considera a escola como um lugar melhor, desejado,
condição para uma vida melhor. Isso pode ser percebido quando em uma
mesma atribuição de significado se encontram mulheres pouco letradas e
altamente letradas, como na categoria escola como espaço social. Nessa, tanto
Absinto (38 anos, 2002) como Romã (72 anos, 2002) atribuem à escola um
mesmo significado, o de espaço social de convivência de saberes. O que as
diferencia, porém, é a compreensão dos limites da escola: quanto maior o grau
de letramento, mais intensamente compreendem os limites da escola no
sentido de realizar os sentidos socialmente atribuídos a ela.
Essa aparente contradição pode ser explicada pela não
necessariamente determinante relação entre a origem social e o êxito na
escola, indicando que relação estatística não implica em causalidade e a
generalidade não garante singularidade. A partir dos diferentes sentidos
atribuídos à escola pelas mulheres que fizeram parte da interlocução, a
confiabilidade das relações estatísticas e das generalizações foi confrontada,
sugerindo que a complexidade dos fenômenos sociais dependem,
profundamente, de singularidades.
201
Para as mulheres que atribuíram à escola o significado de espaço social, ou seja, um lugar de pertencimento, de convivência, de estabelecimento de
relações de amizade, esse “pertencimento” se expressa diferentemente para as
três categorias de mulheres: para a mais letrada, esse pertencimento é ao
grupo que acessa saberes organizados através de um disciplinamento para a
investigação; para a mãe que prioriza a escola para os filhos, o pertencimento
é a um lugar social, de respeito por saber o que está disponível apenas para
uma parcela da população e; para a mulher com pouca ou nenhuma
escolaridade e, na maioria dos casos na terceira idade, o pertencimento é a um
grupo de convivência onde o saber é o objeto de integração. Um grupo que a
escuta, que tem semelhanças enquanto despossuída de escola, um espaço
que a torna uma igual, em processo de aprendizagem.
Pude ainda observar que o sentido fundante da instituição escolar –
universalizar saberes e competências - foi substituído, pela maioria das
interlocutoras, por uma lógica imediata, pelo desejo da escola possibilitar
acesso ao mundo do trabalho agregado à realização pessoal. A maioria das
interlocutoras e mesmo aquelas que atribuíram a ela o significado de espaço
social, demandam da escola saberes mediáticos, ou seja, saberes que são
necessários, base para outras conquistas, que virão depois da escola. Assim,
os saberes e competências típicas da escola são mediações para projetos de
vida onde trabalho e realização pessoal é o desejado.
Através das atribuições de sentido que as trajetórias dessas mulheres
permitiram, foi possível perceber que alguns saberes que deveriam estar
alocados na escola, fazer parte do seu significado e estar disponíveis para
todos se realizam na vida cotidiana ou, em outras palavras, o letramento
acontece fora da escola. A história do letramento da maioria das mulheres
desse estudo passa por um vínculo onde leitura é saber ler e escola espaço de
aprender a ler e escrever e onde o cotidiano é o espaço para processos de
letramento.
Para a maioria das interlocutoras, a leitura foi agregada a um dos
saberes típicos da escola e referenciado como meio para se chegar a algum
lugar (leitura instrumental) e não fim em si mesmo (leitura como processo de
letramento), caracterizando mais uma das verdades contrariadas. Mesmo que
202
a leitura por prazer seja apenas uma das funções sociais da escrita, ela não
aparece na maioria das interlocuções; o sentido de ler e escrever é condição
para e não objeto do desejo em si (para formar leitores, interpretadores,
aprendizes do pensar). Em apenas dois depoimentos há uma referência
explícita à escola como um espaço que acessa habilidades de leitura
relacionadas com ao exercício de aprender a pensar, ao letramento.
Uma acalentadora verdade contrariada e que, com certeza daria base
para outros estudos do imaginário social está na evidência de que são as
mulheres, na maioria das trajetórias estudadas que legam e materializam a
atribuição de sentido. Na maioria dos relatos pude perceber que foram elas que
acessaram esse caminho para os filhos, que agilizaram saídas materiais e
simbólicas para o ingresso e permanência das crianças na escola, que
comemoram e que recebem os louros pelas conquistas dos filhos. Essas
saídas são visualizadas pelo trabalho sem descanso para que os filhos tenham
sorte melhor, pelo enfrentamento com as professoras, pelo rompimento com os
maridos que discordam ou se interpõem ao projeto e pela presença majoritária
em sala de aula, com idade avançada, em busca do sonho para si.
2. Sentidos atribuídos à escola Através das experiências individuais aqui apresentadas - vínculos únicos
com a escola via fazer social e representar/dizer social (Castoriadis,1982),
desejei compreender e reapresentar a dimensão social e histórica presentes
em cada uma das trajetórias das mulheres interlocutoras e, também, os
movimentos de alocação de sentido que aconteceram.
Acredito que essas trajetórias e a qualidade das interlocuções me
permitiram perceber a “criação incessante e essencialmente indeterminada
(social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens” das quais fala
Castoriadis (1982) e entender que o que conhecemos por realidade e
racionalidade são criações imaginárias, passíveis de movimento, constante,
incessante.
Se a realidade não é facilmente legível (Morin, 2000) e “as idéias e
teorias não refletem, mas traduzem a realidade e podem traduzir de maneira
errônea”, podemos concluir que “nossa realidade não é outra senão nossa
203
idéia de realidade” (Morin, 2000:85). Assim, as criações imaginárias de minhas
interlocutoras instauram uma realidade a partir da qual eu mesma já não posso
mais viver.
Nesse estudo, sentido é sinônimo de significado e imaginário é a
reatualização das representações. Acredito que é na relação entre língua,
pensamento, conhecimento e realidade que reside um dos entendimentos da
categoria sentido, mas em nenhum desses campos, isoladamente, encontrei
uma categorização definitiva, necessitando agregar sentidos ao próprio sentido.
Se ao falar produzimos entendimentos, conotações, sentidos, significar
depende inteiramente das intenções dos falantes nos proferimentos que fazem
e da possibilidade de entendimento dos ouvintes: do imaginário desses
interlocutores em relação uns com os outros.
Para o imaginário social, as significações imaginárias são muito caras,
preciosas. Segundo estudiosos da teoria do Imaginário, embora a sociedade
ocidental amargue um processo de desvalorização da imagem e da função da
imaginação, o simbólico é utilizado pelo imaginário. O dualismo entre real e
imaginário que a modernidade impôs pode estar sendo quebrado, o que indica
o surgimento de uma outra fase, fruto “da subversão” que caracteriza o fim do
século XX, em que o imaginário passa por uma autorização.
Os estudos acerca do “sistema de significações que toda sociedade
possui, cujos sentidos traduzem uma rede de sentidos que possibilitam a
coesão em torno da ordem/desordem vigente” (Valeska Oliveira, 1986) fazem
com que essa quebra seja repleta de produções de saberes que indicam a fase
de autorização por que passa o imaginário social, atualmente.
Autorização do pensamento imaginário, os sentidos atribuídos à escola
foram sendo instituídos algumas vezes como um pecado, outras, como um
segredo, outras ainda como um ardente desejo. Surpreendentes, apontam para
uma escola imaginada, impossível para funcionalidade a qual ela serve, mas
desejada, possível para o imaginário de mulheres que ousam mais do que lhes
foi permitido.
A linguagem utilizada para atribuir sentido à escola caracteriza esses
sentidos instituidores, é uma linguagem própria, dá forma e significado ao
proferimento, instaura um discurso e uma verdade para a ela.
204
Expressões como “penso que não vim ao mundo para ser só isso que
sou” (Jequitibá, 45 anos, 2002), “vamos à luta” (Lúpulo, 50 anos, 2002),
“recebi o maravilhoso presente da aprovação” (Clorofila, 35 anos, 2002)
“podes imaginar a glória que é para mim estudar?” (Gladíola, 33 anos, 2002),
indicam não apenas o sentido que é atribuído à escola como também o
julgamento de sua condição, os caminhos para conquistar seu projeto, a
comemoração de seu sucesso e o sentimento público em relação ao
pertencimento ao universo da escola em mulheres que desejaram, através da
escolaridade, realizar um projeto de vida.
A carga de sentimentos que brota de suas memórias, repleto de
expressões que instauram verdades acerca do vivido na escola indicam a
construção de um discurso acerca da caminhada, uma epopéia vivida
intensamente apenas por elas, desconhecida de quem não tem o mesmo
projeto. Houve expressões empregadas por algumas mulheres que são de outro
campo semântico, que evidenciam o movimento realizado no legar sentido aos
filhos, um movimento que inicia antes desses filhos efetivamente existirem. São
expressões que compõem o repertório acionado pelas interlocutoras para
enfatizar suas escolhas, os trajetos árduos pelos quais passaram para garantir
a escolaridade dos filhos e, mais que isso, para legar sentido e que podem ser
representadas pelas palavras como as de Madressilva, que projeta o futuro dos
meninos: “os meus filhos, eu tinha este sonho, todos se formariam, não
importaria o esforço que tivesse que ser feito” (Madressilva, 45 anos,
2002); como as de Centeio que, impedida de realizar seu próprio sonho,
assume uma atitude que queria dos pais para si: “quando tive meus filhos fiz
um juramento que eles estudariam de qualquer jeito, mesmo sendo exigido
muito sacrifício” (Centeio, 64 anos, 2002) e como as de Juta, que abre mão
de qualquer coisa para que os seus possam estudar: “nós vamos bancar
nossos filhos, com certeza, nem que eu coma arroz e feijão!” (Juta, 45 anos,
2002).
205
Ícone para a compreensão dessa atribuição de sentido a partir da
linguagem empregada, o depoimento de Gladíola (33 anos, 2002) evidencia a
epopéia para voltar a estudar ao mesmo tempo em que a afirma como a mais
importante porque sua, pela grandiosidade das barreiras, pelo medo de não ser
e pela imposição de uma força de vontade que caracteriza, aos olhos do sendo
comum, a diferença entre desejo e realização. Para ela, é emocionante olhar
para trás, é gratificante observar que valeram o esforço empregado, todas as
lutas, todas as lágrimas. Acredita que esse olhar retrospectivo permite
acreditar na capacidade condicionada à força de vontade, à luta com garra e
com perseverança e, cada obstáculo, um elo a mais na corrente que formará a
história de cada um. Tem ciência de outras lutas e as considera possíveis de
serem maiores, mas resguarda o direito de pensar a sua, por sua, é a mais
importante. A coragem que se atribui ao romper com anos longe da escola é o
que a credencia, segundo suas palavras, como "uma lutadora" que participa
"de uma longa corrida". Mais que isso, como uma vencedora, pela
concorrência enfrentada com os outros melhores preparados e consigo
mesma, com seus medos.
Através das experiências individuais relacionadas com a escola e com
os legados culturais aqui representadas em cada uma das trajetórias das
mulheres interlocutoras pude entrar em contato com narrativas que produziram
dolorosas conotações. Recordar, reconhecer e identificar, na reapresentação
do passado, as interdições foi uma das conotações dolorosas.
Para um grupo significativo de mulheres, apesar do desejo intenso, às
vezes inexplicável pela escolaridade, a condição de ser mulher é que
inviabilizava a herança no legado do capital cultural familiar ou escolar. Em
alguns perfis ainda, quando em relação de igualdade no acesso à escolaridade,
abriram mão em nome dos companheiros ou maridos, perpetuando um legado
cultural que identifica no homem o chefe da família, aquele que tem de trazer
para casa o sustento e, portanto, o que tem de Ter maior escolaridade.
A primeira interdição, não ser a prioridade nos investimentos de famílias
que, com poucos recursos optam por um dos filhos homens para receber o
legado cultural, investindo na manutenção de apenas este membro na escola,
206
pôde ser encontrado em alguns perfis como o de Absinto (38 anos, 2002), de
Erva-Cidreira (62 anos, 2002) de Ipê (40 anos, 2002), de Romã (72 anos,
2002), de Cerejeira, (75 anos, 2002), e de Manjericão (47 anos, 2002). Nos
perfis de Absinto e de Ipê, são os antepassados134 que passaram por essa
interdição e não elas próprias. No entanto, essa interdição fez parte de suas
memórias, mostrando o quanto foi marcante em suas trajetórias essas
interlocuções.
Nas trajetórias de Cerejeira, Erva-Cidreira e Romã, no entanto, pude
observar que elas próprias viveram a impossibilidade de ir à escola como
conseqüência das decisões de suas famílias, para as quais não era importante
que as mulheres se educassem. Oriundas de famílias numerosas, inseridas em
relações de trabalho degradantes e tendo na relação com os pais uma
obediência cega como sentimento primeiro, às meninas era reservado o
serviço doméstico e "os estudo para os filho home" (Erva-Cidreira, 62 anos,
2002).
Na trajetória da Manjericão, que também teve pouca escolaridade em
sua infância e adolescência, há um elemento agregador de sentido à não
prioridade da escolaridade para a filha mulher, que extrapola a condição
financeira da família e se insere na interdição do corpo, do ser mulher. Em seu
relato aparece o ciúme do pai pela iminência de perder a filha para a vida da
escola, sentimento que não percebia com relação aos irmãos homens e que
lhe marcou bastante. Criança ainda, não tinha estrutura afetiva para
compreender essa diferença e sentia-se traindo o pai ao desejar estar na
escola. Uma de suas expressões "meus irmãos estudavam naturalmente"
(Manjericão, 47 anos, 2002) indica essa diferença de incentivo recebido: para
ela, a disputa que o pai instituía com o espaço social desejado e freqüentado
naturalmente pelos irmãos. Pude evidenciar em um outro grupo de mulheres (com pouca
escolaridade e dentro de uma nova configuração familiar, o casamento),
134 No perfil de Absinto, é sua mãe que, mesmo sendo a filha mais velha, tem de abrir mão em nome do irmão, homem, para receber os investimentos escolares da família, o que marca profundamente sua relação com a escola e com a vida. No perfil de Ipê, o pai, por homem, quando a família tem uma
207
protagonistas portanto, que o desejo de escola cede espaço para a
necessidade da escola e, assim, não é quem sonha com a escola que terá
acesso a ela e sim quem precisa dela. È por essa atribuição de sentido
vinculada a não prioridade da mulher nas configurações familiares e na
sociedade de uma maneira geral, que quase sempre, abrem mão da volta aos
estudos em favor do marido e, até o ajudam a estudar e a ter sucesso na
escola.
Na trajetória de vida de Canela (40 anos, 2002) é dentro do casamento
que ela vai vivendo a relação com a escola, não como prioridade, mas como
uma coadjuvante nas outras relações mais importantes para aquele momento.
Em suas palavras fica explícita a relação de forças internas no casamento,
quando afirma que o "algum de nós tinha que se formá e terminá, até prá
podê trazê mais dinhero prá dentro de casa e o Marido já tava nesse
processo, já tava no fim, então a prioridade era dele, na época" (Canela, 40
anos, 2002). Fica evidente, também e é por ela defendido que o esperado do
outro cônjuge, aquele que "não trazia dinheiro para dentro de casa" era o
cuidado com as crianças, no sentido tanto de responsabilidade educativa como
de economia doméstica. Na trajetória dessa interlocutora a escola como um
projeto pessoal aparece apenas depois que o marido se forma e faz Pós-
Graduação e após duas outras gestações. Nesse momento é que ela pensa
em fazer vestibular, quase vinte anos depois de ter estado no ensino médio.
Quando essas mulheres, marcadas pela demanda social, cultural e até
religiosa do casamento, se aventuram a bancar seus sonhos, seus desejos,
pagam um preço alto, não apenas socialmente, mas na realização interna de
seu imaginário que, em crise, demanda rompimentos, separações e, esse
sofrimento causado pelo contraditório, abala suas certezas. O enfrentamento
entre imaginário e a racionalidade que cerca esse imaginário, a controvérsia
existente entre esses dois regimes (noturno e diurno), se fazem presentes e
são comunicados muito explicitamente pelo depoimento de Clorofila (35 anos,
2002), para a qual o casamento desgastado pela relutância do marido em
derrocada financeira, é retirado da escola para sustentar a família, o que marca radicalmente sua relação com a escolaridade das filhas.
208
permitir que ela estudasse criava um ambiente para brigas inclusive para que
ele estudasse, buscando na possibilidade de vínculo dele a permissão para os
seus. Sua decisão por romper com o marido para poder realizar seus sonhos é
repleta de dor e as palavras que usa são fortes. Acredita que para ser possível
a realização do sonho de estudar foi necessário lutar muito contra o
companheiro e inclusive deixar de amá-lo. Somente rompendo com a relação
afetiva é que conseguiu enfrentá-lo e voltar a estudar.
Ao impedir para reinar, as atitudes empregadas por pais e maridos
acentuam e materializam, a divisão sexual no acesso à escola, encarnam o
patriarcalismo, e, de responsáveis e companheiros, passam a inimigos na
trincheira, ocasionando o rompimento com eles entre aquelas que não se
submetem ou, também, uma profunda mágoa naquelas que, em nome de uma
temporalidade, bancam a escolaridade do marido e dos filhos antes da sua.
Embora essa pesquisa não tenha se inscrito no campo dos estudos de
gênero, as questões de gênero se impuseram como uma das características do
impedimento de ir à escola para uma parcela significativa das mulheres
interlocutoras, exigindo que fossem consideradas suas declarações.
Expressões proferidas a respeito do impedimento também são interessantes de
serem observadas e elas falam de engessar, desmotivar, obedecer, ir contra a
vontade, utilizando proferimentos que, em si mesmos, são conotativos da
solidão em que se encontravam em sua atribuição de sentido ao universo da
escola.
As experiências singulares dessas mulheres nas relações com a escola
e com a vida produziram muitas possibilidades de atribuições de sentido e, um
estudo desse porte, pela própria característica, tem de selecionar algumas,
talvez aquelas que mais me impactem, ao reapresentar.
Um dos sentidos atribuídos à escola que ainda não está incluído em sua
funcionalidade e, portanto, pôde ser evidenciado como uma
complementaridade de sentido foi o conhecimento e uso da tecnologia como
uma ferramenta escolar. Para um significativo grupo de mulheres, dominar a
tecnologia ou ter acesso a ela é condição para se “vencer na vida”. Há,
portanto, uma tentativa de recompor o capital cultural a ser legado aos filhos,
configurando uma nova atribuição de sentido ao domínio dessa nova técnica ao
209
situá-la no campo dos saberes indispensáveis, campo no qual só se situava a
escola, fazendo dessa complementaridade um sentido instituinte.
Ainda não explicitado, embora os efeitos dessa demanda (saber usar a
tecnologia) possam ser sentidos, para muitas das interlocutoras o enigma
passa a ser o projeto que deve ser gestado agora, ou seja, qual o capital
cultural a ser legado, uma vez que o pensado e arduamente buscado está
dando mostras de não mais resistir a análises da realidade. Para o grupo de
mulheres para as quais a tecnologia se encontra no campo dos saberes
indispensáveis, sem os quais não basta ter sucesso na escola, há um
redimensionamento e uma relativização dos saberes até então considerados
necessários e suficientes para realizar seus projetos de vida.
Dentro de uma razão ainda instrumental, a complementaridade não
deixa de ser, no entanto, uma atribuição de sentido à escola. Ainda não
incluída em seu universo, essa atribuição produz, a partir dos discursos e
práticas dessas mulheres, uma recomposição do capital cultural familiar e
social acerca dos saberes da escola.
Através das singularidades dessas trinta mulheres interlocutoras desejei
compreender e reapresentar os significados do mundo da escola para elas
próprias e, também, o legado que estão disponibilizando para os filhos.
São trajetórias em que a qualidade e a intensidade das interlocuções me
permitiram realizar o elogio da escola, e, também, entender que o que
conhecemos por realidade e racionalidade são criações imaginárias.
Há ainda um aspecto que precisa fazer parte da análise da instituição de
sentidos, que se aventura para uma instituição de sentidos contraditória à
maioria dos elencados anteriormente: é o sentido que sofre com profundidade
os limites da escola ou, em outras palavras, que deseja o fim dela.
Embora se restrinja a apenas dois depoimentos e não pode ser
considerado o significado atribuído por essas duas interlocutoras na sua
totalidade, acredito que devam ser considerados, observados, incluídos nessa
polissemia, uma vez que decidi dar voz, permitir a instituição de sujeitos
singulares, sem qualquer enquadramento teórico.
Para essas duas interlocutoras, Pau-Brasil (42 anos, 2002) e Haxixe (41
anos, 2002), o sentido acerca da escola que foi herdado, amorosamente , de
210
uma família de professoras (onde todos os sinais de respeito, profissionalidade,
afeto, competência, envolvimento e valoração social estão presentes) existe
apenas na memória, não fazendo parte do exercício de suas
professoralidades135. Ao “vir a ser profissional", nesse caso professora, entram
em contradição de sentido com o legado dessa “figura virtual” que já não mais
encontra “disponibilidade para atualizar-se” (Vilela Pereira, 2000:97).
A escola que rememoram, com cheiros, sabores, relações intensas de
proximidade, afetos, saberes, ritos e vínculos contrasta com a escola restrita,
limitadora, incompetente, árida, sem afetuosidade onde buscam realizar suas
profissionalidades, o que se percebe no depoimento de Haxixe (41 anos, 2002)
que, interessada em recuperar a escola que teve na infância, não se submete à
lógica da aridez
Para ela o sabor da escola, no decorrer do tempo, se perdeu, ficou
disperso, insosso, sem cheiro, embora mantenha a esperança e a necessidade
de retomar esses laços em suas atitudes pedagógicas. Ao chegar no ambiente
de trabalho que é a escola, recebe os carinhos e as atenções das alunas,
efetivando nessas relações o que deseja do ambiente escolar. Pensa que no
decorrer dos anos foi acontecendo um distanciamento entre a escola e os
alunos que "ficou até meio chato tu querer beijá um professor que tu gosta,
ter essa proximidade!" (Haxixe, 41 anos, 2002). Reação através de atitudes
que buscam reinstaurar a escola de sua infância, a Haxixe recorre à instituição
que tem no seu imaginário e, por imaginária, não racionalizada nem
categorizada. A escola que deseja, produzia e generalizava saberes
socialmente importantes, que viabilizavam a adultez profissional e a maturidade
afetiva.
Para Pau-Brasil (42 anos, 2002) o caminho para reinstaurar o imaginário
acerca da escola herdada deveria ser realizado por um grupo de pessoas que
produzisse mudanças a partir dos estrangulamentos da escola. Acreditando e
tomando como pressuposto momentos importantes da história recente do país,
quando lutavam pela abertura democrática, pela anistia ampla e irrestrita e
135 “A profissionalidade é uma marca produzida no sujeito, ela é um dispositivo de organização da prática subjetiva. Não é uma identidade: identidade é uma formação existencial modelada, retida em sua maneira
211
pelas eleições diretas para presidente, em que os mecanismos de luta foram o
agrupamento em torno de idéias, desejos, projetos, projeta uma escola que
utilize esses mesmos mecanismos para atualizar-se.
Envolveu-se amplamente nessas lutas acreditando que o movimento
causado pela sociedade nas ruas e pelos professores agregados em um
Sindicato representativo das demandas da educação e da profissão seria um
movimento que se voltaria para dentro das escolas, oportunizando que os
mesmos sonhos pudessem ser sonhados e vividos pelo cotidiano escolar.
Foi por acreditar nos espaços para as questões da escola, produzidos
pelos embates em que parcelas importantes da sociedade lutaram por
objetivos comuns, que se envolveu nesses, almejando construir o
conhecimento ou participar da construção do conhecimento a ser ensinado,
como ponte para as lutas maiores (a sociedade mais democrática) e as
cotidianas (a escola mais democrática). Sua decepção se encontra no
abandono das lutas, negando-se a observar que não apenas os sonhos mas
também as formas de realizá-los mudaram:
Ao afirmar que agora ninguém luta por nada, que diante da conquista de
liberdade e democracia, "pseudo-democracia" em suas palavras, os
professores não reivindicam por mais por nada, nem por salário, nada mais os
mobiliza. Credita esse sentimento a uma força maior que teria conseguido
realizar o projeto ideológico neoliberal, através de um sentimento generalizado
de que nada vai mudar, remetendo as pessoas a um lugar de silêncio e de
inevitabilidade. Sua indignação é intensificada pelo conceito que tem de escola,
o lugar no qual idéias não poderiam estar cristalizadas, com agentes que
viabilizassem questionamentos e interviessem no sentido de produzir
transformações pessoais "em cada um dos alunos, e se possível social” (Pau-
Brasil, 42 anos, 2002).
Ao não encontrar, na escola, um ambiente de ressonância para suas
demandas, ao ser “abalada por uma tensão desestruturante” (Vilela Pereira,
2000:97), a interlocutora rompe afetivamente com a escola que existe
de atualizar-se, a partir de um caminho determinado e condicionante. (...) A Marca é um traço, um vinco produzido na superfície de sua subjetividade que contamina suas formas de ser (Vilela Pereira, 2000:97).
212
efetivamente ao seu alcance e refugia-se na memória de escola herdada, não
necessariamente vivida136.
A frustração extremada com a escola pública se expressa em categorias
apreendidas em cursos de pós-graduação e mesmo nos discursos críticos
acerca da escola, universalizados nos últimos quarenta anos e representados,
fundamentalmente, pela inconformidade com a formação dos professores que
considera não preparados, acomodados, preguiçosos e temerosos. Atribui a
esses professores, falta conhecimento e, afirma, é por causa disso que se
encontram acuados, com medo de não ter o suficiente para “segurar aquela
onda, para costurar aquelas coisas todas que podem vir a surgir” (Pau-Brasil,
42 anos, 2002).
A intensidade das críticas ao modus operandi dos professores e à
estrutura que os acolhe e reproduz – a escola -, só é encontrada em quem está
profundamente ligado a essa instituição, quem a conhece na intimidade de
seus corredores, no barulho ensurdecedor de seus silêncios, no impiedoso
repetir de seus ritos. Para Pau-Brasil estar dentro da escola e enxergar "a falta
de ética, a falta de conhecimento, a falta de novos horizontes, a falta de
perspectiva, a falta de tato com o professor de lidar com essa falta de
perspectiva, essa falta de horizontes" (Pau-Brasil, 42 anos, 2002), tudo isso
todos os dias além da a falta de disposição de fazer a mudança que acredita
ser o pior de tudo, é desestruturante, é desanimador, é brutal.
O mais interessante nesses dois perfis é que as mulheres que desejam
o fim da escola tem nela sua profissão, ou seja, são professoras e, desde a
mais tenra infância circulam com afeto e qualidade por esse universo, tiveram
sucesso na escola, produzem a diferença nela, estabelecem cotidianamente
relações de verdade com a escola, reinvestem sua professoralidade de crença
no poder instaurador de boas novas que a escola possui. A racionalidade que
utilizam para desejar o fim da escola é a mesma que empregam para dar
136 A profissionalidade é uma marca que detecto, é o jeito, o modo de ser que temos alimentado, como via fundamental, tanto para navegar em campos individuais quanto para colocar-se dentro da coletividade. E a memória é, por excelência, o principal dispositivo de acesso a essa marca, sua gênese e suas configurações. (Vilela Pereira, 2000:98).
213
continuidade a ela, permitindo que os seus alunos encontrem, nelas,
professoras, sentidos, significados que também lhes permitam realizar o elogio
da escola. É por isso que o barco – figura mitológica – que Pau-Brasil deseja
no lugar da escola tem, em seu interior, os instrumentos típicos do universo
escolar. O barco que ela deseja é, em suas palavras, "um caminho, acho que é
um caminho, não sei se não é mais válido que a escola. Um barco com um
monte de livros, um Atlas geográfico, alguns livros, uma bússola...” (Pau-
Brasil, 42 anos, 2002).
3. O elogio da Pesquisa Explicitar e desvendar alguns sentidos atribuídos à escola através das
trajetórias de mulheres em diferentes processos de Letramento significa, ao
mesmo tempo, “deixar invisíveis, marginais e não-problematizados” outros
tantos sentidos implícitos, impronunciados. Assim, iniciar e pôr fim a uma
investigação e a uma escrita dessa, “revelam-se como faces de um processo
permeado de tensões entre vontade de poder e saber dizer tudo e a limitação
em fazê-lo”, limitação essa bem maior do que a vontade de poder dizer. È
desse processo, da “experiência da finitude e de transitoriedade daí derivada”
que podem ser retirados os frutos do trabalho realizado e considerados as
novas possibilidades produzidas por esses frutos nos seus produtores, no
caso, uma pesquisadora e as interlocutoras (Fonseca, 2000:196).
Ao tratar das significações atribuídas à instituição escolar, seus saberes
e as relações destes com a vida mesma, pretendi instaurar a contradição dos
saberes que circulam no vácuo das narrativas mestras que tão formatadas
estão na produção de saberes acadêmica. Para tal, recorri à teoria do
Imaginário Social e à teoria da Complexidade, buscando compreender e,
depois reapresentar, quais os sentidos atribuídos à escola para um grupo de
mulheres migrantes que apresentaram o desejo de estudar e escolarizar os
filhos.
O grupo de interlocutoras dessa investigação foi a escolha mais
acertada que fiz pois, a inicialmente categorização em grupos por graus de
escolaridade e letramento, ao se fazer ouvir, implodiu meus cânones,
214
produzindo, por si mesmo, a primeira verdade contrariada. Como todas as
verdades que necessitam de uma boa realidade, a minha, de que graus de
letramento produzem sentidos letrados acerca da escola, não resistiu à
primeira interlocução e, a polissemia que dali passei a ouvir criou outras tantas.
A migração – de espaço e/ou de sentido – que foi um dos critérios
agregadores que se evidenciou a posteriori, e que produziu a necessidade de
compreender o desejo de escola mesmo em lugares onde ela não é a
centralidade da vida das pessoas, foi uma interessante e contraditória verdade
que surgiu nesse estudo.
Ao escrever a história dessas mulheres, reescrevi a minha própria, agora
ampliada por imagens de escola que povoam outros imaginários e que se
materializam cotidianamente para muitas delas. Com as interlocutoras, percorri
os caminhos da história de minhas tias professoras, desejosas de abandonar a
vida dura na roça e conquistar os valores sociais atribuídos às professoras nos
anos sessenta e, em algumas delas encontrei as semelhanças com a história
de minha mãe, apaixonada pela escola e igualmente interditada por ser pobre,
primeiro e por ser mulher, logo depois. Esse estudo, então, é perpassado por
memórias de professoras, de escolas, de saudades: aspectos subjetivos que
me constituem e, na interlocução com outras mulheres que também desejam a
escola, tiveram a oportunidade de aparecer, de ter voz, ter um espaço que,
acredito, é ainda frágil para a qualidade do que a mim foi comunicado.
Redimensionado a cada investida de minhas hipóteses na realidade que
é movimento, impossível então de ser aprendida, explicada, categorizada, o
objeto de estudo se mostrou maior do que foi, inicialmente pensado, o que foi
um grande aprendizado. De um universo restrito – a relação de mulheres
analfabetas com a escola –, a investigação se ampliou para o universo de
mulheres de variados graus de letramento e ingressou na possibilidade de
compreender quais os sentidos que este grupo de mulheres atribui à escola.
Ao perceber que em suas trajetórias de vida ainda havia um imaginário
restrito aos sentidos já instituídos socialmente, e que escola para grande parte
delas ainda era um espaço de aprender a ler, escrever, contar, pude
compreender que a escola que sonho, que desejo intensamente que se
instaure, será fruto de negociação, de convencimento, de apresentação.
215
Ao escolher a Etnometodologia para orientar o percurso investigativo,
pude inscrever-me no campo da pesquisa como uma interlocutora, contrariar
minhas verdades mas, também, investir com elas na contraposição ao que ia
sendo comunicado. Esse exercício possibilitou que, degravando as entrevistas
individuais e elaborando o diário de campo, me reconhecesse limitada,
limitante e, também, às vezes, engendradora de sentidos, mais um dos
aprendizados.
Ao categorizar os sentidos, pude recompor minha própria imagem de
escola que, por muitos anos vinha sendo atacada por mim e por minhas
escolhas teórico-metodológicas. Saio dessa investigação acreditando mais do
que fazendo coro aos que preconizam o fim da escola. Acredito nela, quero
que seja o sonho possível de muita de minhas interlocutoras e, agora, não por
admirá-las, mas por saber a escola um espaço muito maior do que o
inicialmente construído, com concreto, tijolos, corredores, janelas poucas.
Embora essa pesquisa não tenha se inscrito no campo dos estudos de
gênero, as questões de gênero se impuseram e me obrigaram a pensar em
outras investigações, impulsionando meu trabalho para observar com mais
acuidade os discursos de mulheres.
A partir da polissemia de sentidos comunicados, chego a uma
experiência de finitude, com hipóteses contrariadas que passam a ser
instituídas como novas verdades: temporárias, provisórias, em movimento.
Acredito que essas verdades podem ser percebidas no campo da “importância
da fantasia e do imaginário no ser humano” uma vez que apenas uma parcela
ínfima de nosso sistema neurocerebral coloca nosso organismo em conexão
com o mundo exterior e, portanto, o subjetivo “constitui-se um mundo psíquico
relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos,
desejos, idéias, imagens, fantasias, e esse mundo infiltra-se em nossa visão ou
concepção de mundo exterior” (Morin, 2000:21).
Poderia ainda dizer que aprendi, confesso que aprendi. Aprendi a
admirar, a ouvir, a escrever, a receber orientação, a refazer. Mais que isso,
aprendi a autorizar-me, a maior lição.
216
Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão.
A educação do futuro deve enfrentar o problema da dupla face do erro e da ilusão.
O maior erro seria subestimar o problema do erro;
a maior ilusão, seria subestimar o problema da ilusão.
O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem,
em absoluto, como tais.
(Edgar Morin, 2000a:19)
V – Bibliografia
217
1. LIVROS E ARTIGOS ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras.
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