o ecossistema bucal

18
5/26/2018 OEcossistemaBucal-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/o-ecossistema-bucal 1/18 55 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA.   INTRODUÇÃO Nós vivemos, desde o nosso nascimento, cercados por um número incontável de microrga- nismos. Muitos deles (calcula-se que cerca de 100 trilhões), na verdade, estabeleceram uma morada perene na superfície de nossa pele, de nossos dentes e das mucosas que têm contato com o meio externo. Assim, vários dos nossos compartimentos orgânicos abrigam uma série de microrganismos que infectam esses locais mes- mo no estado de saúde, constituindo as micro- biotas próprias de cada local. Começando a raciocinar em termos de Eco- logia — razão deste capítulo — devemos enten- der, primeiramente, o motivo da não existência de uma microbiota única, igual em todas as re- giões do nosso corpo; entender, por exemplo, por que a microbiota nasal é bastante diferente da vaginal e, ambas, da intestinal. Uma boa ex- plicação inicial reside no fato de cada região ser um habitat diferente, de cada região oferecer diferentes condições ambientais. Existem dife- rentes composições teciduais, portanto diferen- tes receptores para a aderência e diferentes nu- trientes necessários para cada microrganismo, diferentes teores de umidade, diferentes pH, maior ou menor teor de oxigênio, diferentes ou- tros fatores, e é evidente que só colonizam uma certa região, um certo habitat, os microrganis- mos que se adaptam à sua condição ecológica. Não é por acaso, pois, que o termo “ecologia” é originado do grego óikos , que significa “casa, habitação”. Existe, porém, no nosso corpo, um órgão ecologicamente especial, um local que, em fun- ção de sua complexidade anatômica, não alber- ga uma microbiota única, mas várias microbiotas com diferenças marcantes em suas composições qualitativa e quantitativa: esse local é a cavida- de bucal, o nosso campo de atuação médica. Na verdade, devido à existência dos dentes e do periodonto, a boca não é um sítio ecológico úni- co, mas apresenta vários sítios ecológicos, cada qual com características ambientais próprias e, conseqüentemente, cada qual com sua microbio- ta peculiar. Assim, existe a microbiota das super- fícies mucosas lisas, a microbiota da mucosa do dorso lingual que não é lisa, a microbiota da su- perfície dental sadia, a microbiota da superfície dental cariada, a microbiota do sulco gengival sadio, a microbiota da bolsa periodontal, portan- to várias microbiotas dentro da boca. Analisada como um todo, a microbiota bucal é a mais complexa de todo o nosso corpo: só de bactérias existem mais de 30 gêneros diferentes, abrangendo mais de 500 espécies diferentes. Socransky e Haffajee (2002) relataram que, na boca, existem aproximadamente 350 espécies bacterianas já cultivadas e mais de 200 que foram reconhecidas por métodos genéticos. Em núme- ro total de microrganismos, a microbiota bucal só encontra um concorrente na microbiota intes- tinal, mas a bucal é bem mais complexa, em nú-

Upload: vanessa-cristina-aragao

Post on 16-Oct-2015

207 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 55 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    Jos Luiz De Lorenzo

    5O Ecossistema Bucal

    INTRODUO

    Ns vivemos, desde o nosso nascimento,cercados por um nmero incontvel de microrga-nismos. Muitos deles (calcula-se que cerca de100 trilhes), na verdade, estabeleceram umamorada perene na superfcie de nossa pele, denossos dentes e das mucosas que tm contatocom o meio externo. Assim, vrios dos nossoscompartimentos orgnicos abrigam uma srie demicrorganismos que infectam esses locais mes-mo no estado de sade, constituindo as micro-biotas prprias de cada local.

    Comeando a raciocinar em termos de Eco-logia razo deste captulo devemos enten-der, primeiramente, o motivo da no existnciade uma microbiota nica, igual em todas as re-gies do nosso corpo; entender, por exemplo,por que a microbiota nasal bastante diferenteda vaginal e, ambas, da intestinal. Uma boa ex-plicao inicial reside no fato de cada regio serum habitat diferente, de cada regio oferecerdiferentes condies ambientais. Existem dife-rentes composies teciduais, portanto diferen-tes receptores para a aderncia e diferentes nu-trientes necessrios para cada microrganismo,diferentes teores de umidade, diferentes pH,maior ou menor teor de oxignio, diferentes ou-tros fatores, e evidente que s colonizam umacerta regio, um certo habitat, os microrganis-mos que se adaptam sua condio ecolgica.No por acaso, pois, que o termo ecologia

    originado do grego ikos, que significacasa, habitao.

    Existe, porm, no nosso corpo, um rgoecologicamente especial, um local que, em fun-o de sua complexidade anatmica, no alber-ga uma microbiota nica, mas vrias microbiotascom diferenas marcantes em suas composiesqualitativa e quantitativa: esse local a cavida-de bucal, o nosso campo de atuao mdica. Naverdade, devido existncia dos dentes e doperiodonto, a boca no um stio ecolgico ni-co, mas apresenta vrios stios ecolgicos, cadaqual com caractersticas ambientais prprias e,conseqentemente, cada qual com sua microbio-ta peculiar. Assim, existe a microbiota das super-fcies mucosas lisas, a microbiota da mucosa dodorso lingual que no lisa, a microbiota da su-perfcie dental sadia, a microbiota da superfciedental cariada, a microbiota do sulco gengivalsadio, a microbiota da bolsa periodontal, portan-to vrias microbiotas dentro da boca.

    Analisada como um todo, a microbiota bucal a mais complexa de todo o nosso corpo: s debactrias existem mais de 30 gneros diferentes,abrangendo mais de 500 espcies diferentes.Socransky e Haffajee (2002) relataram que, naboca, existem aproximadamente 350 espciesbacterianas j cultivadas e mais de 200 que foramreconhecidas por mtodos genticos. Em nme-ro total de microrganismos, a microbiota bucals encontra um concorrente na microbiota intes-tinal, mas a bucal bem mais complexa, em n-

  • 56 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    mero de espcies, porque sem dvida a boca um habitat muito mais complexo que o trato in-testinal, principalmente devido existncia dosdentes.

    Como qualquer outra microbiota encontradaem qualquer outro habitat da Natureza, a micro-biota bucal constituda por microrganismosque so classificados como residentes ou comotransitrios.

    Residentes ou autctones so as espciessempre presentes na microbiota e, de acor-do com sua freqncia, so subclassifica-das como indgenas ou como suplemen-tares.

    Uma espcie residente considerada ind-gena quando existe em altos nmeros na micro-biota, em proporo maior do que 1,0% do totalde microrganismos.

    A espcie residente considerada suple-mentar quando ocorre em baixos nmeros, ouseja, em proporo menor do que 1,0%; nestegrupo, esto inseridas bactrias patognicascomo os estreptococos do grupo mutans, lacto-bacilos, Prevotella intermedia, Porphyromonasgingivalis, Candida albicans e Treponema spp,cujos nmeros s aumentam se houver alteraoambiental.

    Transientes ou alctones so as espciesocasionais, vindas de outros habitatscomo ar, alimentos, bebidas e mos. Essasespcies exgenas s se instalam se ocor-rer severo desequilbrio na microbiota lo-cal; o caso, por exemplo, do encontro deenterobactrias e de Pseudomonas aerugi-nosa (bactria ambiental patognica e mui-to resistente a antibiticos) na placa den-tal de pessoas imunodeprimidas e das quese submetem antibioticoterapia durantetempos prolongados.

    A microbiota bucal compe, com seu habitat,a nossa boca, o complexo ecossistema bucal,alvo da anlise deste captulo, que tem comoobjetivos fundamentais os estudos:

    1o) dos mecanismos e das condies de im-plantao da microbiota bucal;

    2o) das influncias do hospedeiro sobre a mi-crobiota bucal;

    3o) das relaes intermicrobianas, ou seja,das relaes biticas estabelecidas entre osmembros da microbiota bucal;

    4o) das influncias da microbiota bucal sobreo hospedeiro.

    EVOLUO DA MICROBIOTA BUCAL AO LONGODA VIDA DO HOSPEDEIRO

    A microbiota bucal passa por vrias altera-es, muitas vezes significantes, no decorrer danossa vida.

    Na vida intra-uterina, a boca isenta demicrorganismos. Os primeiros chegam nossa boca na hora do nascimento e sotransitrios; quando o parto normal, somicrorganismos vindos do canal vaginal dame, tais como estreptococos, lactobaci-los, difterides, coliformes, leveduras comoCandida albicans e alguns vrus e proto-zorios.

    Algumas horas aps o nascimento, a bocacomea a ser infectada por microrganismosbucais provenientes das pessoas que es-to em maior contato com o beb, sobretu-do da me (transmisso vertical). Nessafase, a boca constituda apenas por umamucosa lisa bastante arejada, portanto asbactrias que se instalam so as tolerantesao oxignio, ou seja, as aerbias e asanaerbias facultativas adaptveis muco-sa. Numerosos estudos nos mostram queas primeiras espcies que se instalam comoindgenas so Streptococcus salivarius,do mesmo sorotipo encontrado na boca dame, S. oralis e S. mitis biovar 2. No pri-meiro ano de vida, cerca de 70% da micro-biota bucal so constitudos por Strepto-coccus spp, principalmente da espcieS. salivarius, que tem grande afinidade pelamucosa; o restante da microbiota cons-titudo principalmente por estafilococos,Veillonella spp e Neisseria spp.

    A complexidade da microbiota bucal inicia-se com a erupo dos dentes, que criaduas novas situaes ecolgicas, dois no-vos habitats mpares no nosso corpo: asuperfcie dental e o sulco gengival.

    A superfcie dental propicia as condiesnecessrias para a instalao de bactrias quetm a capacidade de se fixar a ela, tais comoS. sanguinis, S. gordonii, S. oralis e algumas es-pcies de Actinomyces, consideradas como ascolonizadoras iniciais da superfcie do esmalte(fase de formao inicial da placa dental). Em cir-cunstncias especiais analisadas nos Captulos6 e 7 (Placa Dental e Cariologia: Etiopatogenia daCrie Dental, respectivamente), os estreptococos

  • 57 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    do grupo mutans tambm se instalam na super-fcie do dente; o estabelecimento de S. mutansocorre posteriormente ao de S. sanguinis, mos-trando sua dependncia do cido para-amino-benzico (PABA) produzido por S. sanguinis.Tambm interessante salientar que certas re-gies anatmicas do dente, como as reasinterproximais e os sulcos e fissuras do esmalte,por serem menos atingidas pelo oxignio, forne-cem condies para o desenvolvimento de bac-trias anaerbias, sejam facultativas ou at mes-mo estritas.

    Por sua vez, o sulco gengival um nichocom baixssimo teor de oxigenao, possibilitan-do a instalao de bactrias anaerbias estritas.O aumento numrico de bactrias periodontopa-tognicas no sulco gengival, como Porphyro-monas gingivalis e Prevotella intermedia, geral-mente s ocorre a partir da puberdade, pois elasso favorecidas por hormnios sexuais (fatoresde desenvolvimento) que se fazem presentes noexsudato ou fluido gengival.

    Na fase de adulto dentado, a microbiotabucal atinge as suas propores mximas:em 1,0ml de saliva, existe uma mdia de 100milhes (108) de bactrias, e, na placa den-tal, a concentrao bacteriana ainda maior,cerca de 109 a 1010/g (10 bilhes/g).

    Se a pessoa perder alguns dentes, a micro-biota integral s persiste nas regies pro-vidas de dentes.

    Se ocorrer perda total dos dentes, pratica-mente vo desaparecer as bactrias quetm tropismo para os dentes e para operiodonto, voltando ao predomnio dasformas aerbias e facultativas que apresen-tam afinidade pelas mucosas. Portanto,nos desdentados totais, ocorre severa re-duo do nmero total de microrganismosbucais.

    Quando a pessoa coloca dentadura artifi-cial, voltam a instalar-se vrias espciesque apresentam afinidade para superfciesduras e vrios anaerbios, devido pre-sena dos dentes artificiais e de regies debaixa oxigenao existentes na base inter-na da prtese. Se a prtese for implanto-suportada, haver recolonizao das esp-cies prprias do periodonto, desde as no-nocivas at as nocivas, conforme o graude higienizao e de inflamao dos teci-dos de suporte.

    PRINCPIOS QUE REGEM O ESTABELECIMENTODA MICROBIOTA BUCAL

    Aps esta anlise, podemos concluir que acomposio da microbiota bucal vai-se alteran-do de acordo com as mudanas do ambiente bu-cal, obedecendo, portanto, s leis bsicas daEcologia.

    Baseados nessas leis, devemos entender porque, de todas as espcies bacterianas de A aZ, somente as espcies A, B, C e Dconseguem implantar-se na boca humana. Avan-ando mais neste raciocnio, devemos entenderos motivos pelos quais a bactria A conseguecolonizar facilmente o epitlio bucal e no a su-perfcie dos dentes, pelos quais as bactrias Be C s so encontradas em grande nmero noambiente subgengival e pelos quais a bactriaD isolada das fissuras oclusais dos dentese quase nunca das suas superfcies lisas.

    Como primeira explicao, o tecido infectadotem que fornecer uma srie de condies favo-rveis para o desenvolvimento desta ou daque-la espcie. Isto absolutamente fundamental,mas no suficiente. preciso haver algumacoisa que fixe ou que retenha a bactria no seunicho ecolgico. Para que uma determinada bac-tria se instale em qualquer estrutura, ela deve,preferencialmente, aderir ativamente a essa es-trutura ou, ento, pelo menos ficar retida emreentrncias existentes nessa estrutura. O inver-so desse raciocnio totalmente verdadeiro: sea bactria no dispuser de recursos para aderirou se no ficar retida nesse local, ela ser mera-mente transitria, sendo rapidamente eliminada.

    Aderncia ou Adeso de Bactrias

    Aderncia significa a fixao ativa de umabactria, com recursos prprios, a uma determi-nada superfcie, que pode ser qualquer estrutu-ra orgnica ou inorgnica, inclusive a superfciede outra bactria (coagregao). Portanto, exis-tem dois tipos de aderncia que permitem queuma bactria inicie a colonizao de uma super-fcie:

    a) a aderncia direta da bactria superfcie(Fig. 5.1);

    b) a aderncia da bactria a outra que j es-teja previamente aderida superfcie (Fig. 5.2).

    Por exemplo, muitas bactrias periodontopa-tognicas Gram-negativas no aderem superf-

  • 58 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    cie dental, mas tm stios de aderncia ao epit-lio da bolsa periodontal e tambm a Streptococ-cus spp e a Actinomyces spp, que esto entre oscolonizadores iniciais da superfcie dental.Fusobacterium nucleatum (representado emposio vertical na Fig. 5.2) parece ser um elo deligao importante neste aspecto, pois apresen-ta afinidade de ligao para com colonizadoresiniciais da pelcula adquirida da superfcie den-tal, como S. mitis, S. oralis e S. gordonii e, tam-bm, com patgenos periodontais como Actino-bacillus actinomycetemcomitans, Prevotellaintermedia, Porphyromonas gingivalis e outros.

    Aderncia a superfcies bucais: na boca,as bactrias tm duas possibilidades deaderncia: a fixao a uma superfcie molecomo a mucosa e a fixao estrutura dura,mineralizada do dente.

    Em qualquer desses casos, a aderncia me-diada por dois elementos bsicos. Na superfciedas bactrias, existem macromolculas ligantesgenericamente chamadas adesinas, geralmenteencontradas nas fibrilas e principalmente nas fm-brias. Na superfcie dos tecidos do hospedeiro,existem molculas receptoras que reconhecem asadesinas bacterianas e com elas interagem espe-cificamente. Dessa interao bioqumica altamen-

    te especfica, formam-se pontes de ligao, queso as bases da aderncia bacteriana.

    As adesinas mais bem conhecidas so aslectinas e as adesinas hidrofbicas.

    Lectinas so adesinas proticas que tm afi-nidade especfica por carboidratos. Assim, elass se fixam nos tecidos (mucosa ou superfciedental) em cujas superfcies exista o carboidratoque lhes afim, que funciona como receptor(Fig. 5.3).

    Importantes exemplos desta interao soS. sanguinis e S. oralis, que esto entre os pou-cos colonizadores iniciais da superfcie dentalpor possurem lectinas especficas para saca-rdios (galactose e o trissacardio cido silico)existentes na pelcula adquirida de saliva que re-cobre os dentes (glicoprotena salivar).

    Por outro lado, a interao hidrofbica en-volve dois componentes lipdicos, como os tri-glicerdios (gorduras), os fosfolipdios (princi-pais constituintes das membranas celulares) e osesteris. Essas molculas contm cidos graxoscom cadeia longa, constitudas por muitos radi-cais hidrocarboneto (CH2) desprovidos de cargaeltrica (apolares), portanto insolveis em gua

    Fig. 5.2 Aderncia interbacteriana (coagregaes homo-tpicas e heterotpicas).

    Fig. 5.1 Aderncia direta a superfcies.

    Fig. 5.3 Representao esquemtica da adeso bacteriana a estruturas orgnicas, por meio de lectinas.

    Estruturaorgnica Bactria

    = lectina bacteriana (adesina)

    = carboidrato receptor

  • 59 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    (hidrofbicos). Nesse tipo de ligao, tanto asadesinas bacterianas como os receptores teci-duais so hidrofbicos (Fig. 5.4). Em presena degua, esses elementos de ligao se agrupam,pois no se solubilizam. A. naeslundii, S. san-guinis, S. mitis e P. gingivalis so altamentehidrofbicos para a hidroxiapatita do dente, en-quanto S. mutans, S. salivarius e P. intermediao so moderadamente.

    Alm das ligaes via lectinas e hidrofbicas,so conhecidos outros recursos de adernciadireta ao esmalte dental e glicoprotena salivarque se deposita sobre ele:

    Interao eletrosttica via Ca++ salivar: uti-lizada por S. mutans.

    Interao via IgA-S salivar: S. sanguinis. Interao com glicosiltransferase (GTF) e

    glucanos: S. mutans e S. sobrinus. Interao com protenas salivares acdicas

    ricas em prolina: S. gordonii, A. naes-lundii, F. nucleatum.

    Interao com estaterina (fosfoprotenasalivar): F. nucleatum, A. naeslundii.

    Interao com a amilase salivar: S. gordonii. Interao com fragmentos de clulas bac-

    terianas depositados sobre a pelcula adqui-rida: S. sanguinis, S. oralis, S. gordonii.

    Interaes com outros receptores: S. mitis,S. sanguinis, S. oralis, S. gordonii, F.nucleatum, Capnocytophaga ochraceae.

    Seja qual for o mecanismo de adeso utiliza-do, o importante que as adesinas bacterianasse liguem aos receptores do hospedeiro forman-do pontes de unio. Evidentemente, quanto maioro nmero dessas pontes, mais forte ser a liga-o. Na verdade, a aderncia deve ser firme, es-tvel, para superar todas as foras que tendema desalojar a bactria, como o movimento brow-niano, a repulso eletrosttica (bactrias, clulas

    epiteliais e glicoprotena salivar tm carga eltricanegativa) e, principalmente, a fora de arraste dofluxo salivar e dos movimentos dos msculos daboca.

    Algumas bactrias consolidam sua adernciausando polmeros de carboidratos, polissacar-dios extracelulares complexos muito hidratados,abreviados como PEC (explicao no item se-guinte). Os PEC, principalmente o glucano inso-lvel, aglutinam as clulas bacterianas e os re-ceptores teciduais, conferindo uma adeso bas-tante firme entre eles. Exemplos: S. salivarius naclula epitelial (levano) e estreptococos do gru-po mutans (EGM) e A. naeslundii sorotipo 2 nasuperfcie dental (glucano e heteropolissacardio,respectivamente).

    Mas o aspecto mais importante que temos aressaltar, no estudo da aderncia, que existeum elevado grau de especificidade na interaoadesinas receptores. Essa especificidade expli-ca por que diferentes espcies bacterianas, mes-mo pertencentes a um mesmo gnero, tm afini-dades por diferentes estruturas da boca. Porexemplo, S. sanguinis isolado em grandesquantidades quando raspamos a superfcie dodente e praticamente no encontrado nas mu-cosas bucais. O contrrio ocorre com S. sali-varius, que a espcie bacteriana predominan-te na superfcie das mucosas e quase no apa-rece na dental. S. mitis mais ecltico, pois im-planta-se bem tanto na mucosa como no dente.No ambiente periodontal, algumas bactriascomo P. gingivalis e P. intermedia so providasde fmbrias ou de fibrilas que contm adesinasque permitem sua adeso ao epitlio da bolsaperiodontal.

    Aderncia interbacteriana (coagregao): a responsvel por conferir volume mi-crobiota, sendo de grande importncia,

    Fig. 5.4 Esquema representando uma ligao hidrofbica.

    Receptor hidrofbico (tecido)

    Adesina hidrofbica (bactria):cido lipoteicico, fosfolipdios, lipoprotenas

  • 60 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    por exemplo, na fase de estratificao oumaturao da placa bacteriana. Uma bact-ria pode se fixar superfcie de outra bac-tria da mesma espcie (coagregaohomotpica) ou, ento, de espcies diferen-tes (coagregao heterotpica) e estes fe-nmenos ocorrem por diversos mecanis-mos, todos com carter de especificidade.

    a) Aderncia mediada por PEC: um impor-tante mecanismo de aderncia entre bactrias damesma espcie. O exemplo mais conhecido ocor-re na superfcie do dente (biofilme dental) e con-siste na agregao de clulas de S. mutans en-tre si pelo glucano, que um polmero da glico-se derivada da clivagem enzimtica da sacarose.Quando existe excesso de acar no meio am-biente, algumas espcies bacterianas produzeme acumulam PEC extracelularmente, como reser-va nutritiva e energtica.

    A sacarose a maior fonte de energia para osestreptococos do grupo mutans (EGM). Quandoexiste pequena quantidade de sacarose na placabacteriana, S. mutans elabora uma enzima cons-titucional, uma glicosiltransferase (GTF) conhe-cida como invertase, que fragmenta a molculade sacarose em seus componentes glicose efrutose. Esses monossacardios so pequenos e,assim, so absorvidos pela clula bacteriana, oxi-dados e transformados em energia.

    Mas quando existe maior concentrao desacarose na placa, S. mutans aproveita uma partedo acar para sua necessidade atual, oxidando-a pela via glicoltica e assim obtendo energia. Orestante do acar armazenado para os pero-dos entre as refeies, principalmente noite,quando ocorre escassez dessa fonte de energia.O acar armazenado principalmente na formade PEC. Algumas GTF sintetizam n molculas

    de glicose formando os glucanos solvel e inso-lvel (mutano), que so homopolmeros de glico-se (Glicose-Glicose-Glicose...). A GTF-B formaglucano insolvel, a C forma ambos e a D formaglucano solvel. Por outro lado, a FTF (frutosil-transferase) une n molculas de frutose compon-do o frutano ou levano, que um homopolmero defrutose (Frutose-Frutose- Frutose...). Esses meca-nismos esto esquematizados na Fig. 5.5.

    O glucano insolvel, que apresenta estrutu-ra fibrilar e persiste maior tempo na placa bac-teriana, une as clulas de S. mutans entre si, fa-vorecendo sua colonizao na superfcie do es-malte dental (Fig. 5.6 e 5.7).

    Mas o glucano, que tambm produzido porS. sanguinis, S. gordonii e S. oralis, noaglutina as clulas dessas espcies. Ocorre que,para ligar as clulas, o glucano tem que encon-trar receptores nas superfcies dessas clulas.

    Fig. 5.5 Esquema de formao de PEC por Streptococcus mutans.

    Fig. 5.6 Microscopia eletrnica de varredura mostrandovrias clulas de S. mutans sobre a superfcie dental, unidaspelo glucano (estrutura fibrilar) (Acervo Disciplina Microbiolo-gia Oral ICBUSP).

    {

    S. mutans

    invertase

    Sacarose

    Glicose Glucanos

    Frutose Frutano (levano)FTF

    GTFInsolvel (mutano)

    Solvel (dextrano)

  • 61 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    Provavelmente, apenas os EGM possuem recep-tores para glucanos (lectinas com afinidade paraglucanos e dois tipos de GTF unidas clula) e,por este motivo, a colonizao via glucano sejauma capacidade exclusiva dessas espcies. Noentanto, acredita-se que o mutano pode aprisio-nar, de maneira no especfica, outras bactrias.

    O frutano ou levano, produzido por vriasespcies, principalmente por S. salivarius, pro-vavelmente no exerce funo adesiva muito in-tensa, por ser o mais solvel dos PEC e por serdegradvel por algumas bactrias que elaboramfrutanases.

    Outro PEC muito importante na adernciainterbacteriana o heteropolissacardio produzi-do por A. naeslundii 2 a partir de vrios carboi-dratos, inclusive o amido.

    Ento, a colonizao via PEC feita principal-mente pelos estreptococos do grupo mutans epor A. naeslundii.

    a) Aderncia mediada por constituintes dasaliva e do fluido gengival: a aderncia entrebactrias da mesma espcie tambm pode sermediada por constituintes da saliva e do exsuda-to gengival. Por exemplo, S. sanguinis, S. oralis(que no se acumulam via PEC) e A. naeslundiiformam homoagregados quando colocados napresena desses dois elementos in vitro.

    Neste tipo de aderncia, esto implicadospolmeros de alto peso molecular como amucina ou glicoprotena salivar (Fig. 5.8) e an-ticorpos aglutinantes como a IgA-S dimrica dasaliva e a IgM pentamrica do fluido gengival(Fig. 5.9).

    Fig. 5.7 Esquematizao da aderncia inter-S. mutans mediada pelo glucano extracelular insolvel (mutano).

    Fig. 5.8 Aderncia de bactrias da mesma espcie mediada pela glicoprotena salivar (GPS).

    Receptor do glucano(glicosiltransferase unida clula e lectinas)

    Mutano (polissacardio filamentoso)

    Clula de S. mutans

    Superfcie do esmalte dental

    Pelcula adquirida (GPS)

    Adesina bacteriana (lectina)

    Receptores sacardicos da GPS(galactose e cido silico)

  • 62 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    S. sanguinis e S. oralis dispem de lectinascom afinidade pela galactose e pelo cido silico,um constituinte trissacardico perifrico da glico-protena salivar. A aderncia via glicoprotenasalivar provavelmente necessite de ons Ca++,pois o EDTA evita a agregao ou dissolve osgrumos j formados.

    b) Aderncia mediada por constituintes desuperfcie de bactrias de diferentes espcies: aagregao de bactrias de espcies diferentestambm especfica, envolvendo adesinas deuma espcie (contidas nas fmbrias, fibrilas ou nasuperfcie externa da parede celular) e receptoresda superfcie de outra espcie. Um exemplo cls-sico desta interao a chamada espiga de mi-lho, tpica da placa supragengival madura; tra-ta-se de agregaes entre bacilos filamentosos(Actinomyces spp ou Corynebacterium matru-chotii) e estreptococos como S. sanguinis eS. mitis (Fig. 5.10 e 5.11). Outro exemplo interes-sante a chamada forma em cepilho ou esco-

    va, encontrada na microbiota subgengival asso-ciada periodontite crnica e que consiste na in-terao de um bacilo filamentoso com bacilos fu-siformes, como Fusobacterium spp (Fig. 5.12).

    As agregaes heterotpicas favorecem aacumulao do biofilme, pois as espcies pionei-ras fornecem receptores para a implantao doscolonizadores intermedirios e estes para os tar-dios. Em grande parte dos casos, os patgenosperiodontais so colonizadores intermedirios eprincipalmente tardios, necessitando dos iniciaispara sua implantao.

    Algumas coagregaes heterotpicas descri-tas so:

    Streptococcus oralis* e S. sanguinis*com S. gordonii*, Actinomyces naes-lundii*, Veillonella atypica**, Haemo-philus parainfluenzae** e Prevotellaloeschei**.

    S. mitis* e S. oralis* com S. gordonii*,Capnocytophaga ochraceae* e Fuso-bacterium nucleatum***.

    S. gordonii* com S. oralis*, S. san-guinis*, S. mitis*, A. naeslundii*, F. nu-cleatum*** e Propionibacterium acnes**.

    C. ochraceae* com S. mitis*, S. oralis* eF. nucleatum***.

    A. naeslundii* com S. sanguinis*, S.oralis*, S. gordonii*, V. atypica** e F.nucleatum***.

    Fusobacterium nucleatum*** com S.oralis*, S. mitis*, S. gordonii*, A. naes-lundii*, C. ochraceae*, Actinomycesisraelii**, Capnocytophaga gingiva-lis**, P. acnes**, Prevotella denticola**,H. parainfluenzae**, V. atypica**, Cap-nocytophaga sputigena***, Prevotella

    Fig. 5.9 Aderncia entre bactrias da mesma espcie me-diada por anticorpos.

    Fig. 5.10 Micrografia eletrnica mostrando formaes emespiga de milho na placa supragengival madura (acervo Dis-ciplina Microbiologia Oral ICBUSP).

    Fig. 5.12 Representao esquemtica da formao emcepilho (vista lateral).

    Fig. 5.11 Representao esquemtica da formao emespiga de milho (vista lateral).

  • 63 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    intermedia***, Porphyromonas gingiva-lis***, Actinobacillus actinomycetem-comitans***, Eubacterium spp***, Tre-ponema denticola*** e Selenomonasspp***.

    * = colonizadores iniciais da superfcie dental;** = colonizadores intermedirios;*** = colonizadores tardios.

    Reteno de Microrganismos

    Outro recurso de implantao microbiana areteno, usado principalmente por microrganis-mos que no se caracterizam pela capacidade deaderncia a tecidos, como lactobacilos e bact-rias mveis. Esses microrganismos ficam retidosem reentrncias naturais e patolgicas da boca,tais como as papilas da lngua, as fossetas e fis-suras dos dentes, as cavidades de crie, o sul-co gengival e a bolsa periodontal. Quanto maiora reentrncia, maior o nmero de microrganismosretidos. Uma maneira de reduzir drasticamente onmero desses microrganismos eliminar ou re-duzir esses stios de reteno. O nmero delactobacilos significativamente reduzido quan-do promovemos o fechamento das leses de c-rie, mesmo com materiais provisrios. O nmerode bactrias mveis diminui consideravelmenteaps a reduo cirrgica da profundidade dabolsa periodontal. Ao conjunto desses procedi-mentos foi conferida a denominao adequaodo ambiente bucal sade.

    INFLUNCIAS DO HOSPEDEIRO SOBRE AMICROBIOTA BUCAL (REGULAO E CONTROLE)

    Analisados os mecanismos de implantaoda microbiota bucal, vamos estudar, agora, asinfluncias do hospedeiro sobre essa microbio-ta. Em outras palavras, vamos analisar os princi-pais recursos utilizados pelo hospedeiro para re-gular e controlar a microbiota bucal, tentandomant-la num equilbrio biolgico que no o pre-judique. Esses fatores so em grande nmero epodem ser divididos em trs grandes grupos:

    a) endgenos (saliva, fluido gengival, pre-sena ou ausncia de dentes, integridade dosdentes e de seus tecidos de sustentao e des-camao epitelial);

    b) exgenos (dieta do hospedeiro, qualidadeda higiene bucal e uso de antimicrobianos);

    c) fatores sistmicos.

    Saliva

    Sendo um fluido que banha constantementea nossa boca, a saliva pode ser considerada amaior responsvel pela regulao da microbiotasupragengival. Para a microbiota, a saliva umafaca de dois gumes. De um lado, alm de ofe-recer excelentes condies ambientais para asbactrias (temperatura, pH, umidade etc.), a sa-liva um excelente sopo nutritivo, principal-mente por conter todos os nutrientes derivadosda dieta do hospedeiro que nela se encontramsolubilizados. Na saliva, disposio da micro-biota supragengival, existem muitas protenas eaminocidos (glicoprotenas, albumina, globuli-nas; cidos asprtico e glutmico, leucina,glicina, cistina etc.), muitos carboidratos (cadeiasacardica do cido silico, glicose, galactose,manose etc.), vrios lipdios (triglicerdios, fosfo-lipdios e colesterol), vrias vitaminas e vrioscompostos inorgnicos (ons Ca, PO, Na, K,HCO3 etc.) necessrios para o metabolismo bac-teriano.

    Mas, por outro lado, na saliva, existem vriosmecanismos que limitam o desenvolvimentomicrobiano, principalmente substncias antimi-crobianas, alteraes prolongadas de pH e aomecnica de lavagem (fluxo salivar).

    Substncias antimicrobianas: desde a An-tigidade, o homem j usava sua salivapara o tratamento de leses microbianascomo herpes, lceras infectadas, teris,varola, hansenase etc. Hoje, sabemos quea saliva tem uma relativa atividade antimi-crobiana atribuda a algumas substnciasnela presentes:

    a) Anticorpos, principalmente da classe IgA-S, que, alm de participarem da destruio micro-biana, ainda aglutinam microrganismos, impedin-do sua aderncia aos tecidos e facilitando suadeglutio.

    b) Lisozima: enzima descoberta por Fleming(1922), encontra-se amplamente distribuda nosleuccitos, em todas as secrees humanas e napele. Sua concentrao na saliva parotidiana semelhante no sangue, mas muito menor doque na lgrima (1/300) e no muco nasal (1/45). Alisozima tem efeito bactericida porque hidrolisa opeptidoglicano, importante componente da pare-de celular, fazendo com que a bactria, principal-mente a Gram-positiva, fique muito sensvel a al-teraes osmticas e seja lisada.

  • 64 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    c) Lactoferrina: liga ons ferro, reduzindo aconcentrao necessria para o desenvolvimen-to bacteriano; bactericida para S. mutans mes-mo em concentraes diminutas.

    d) Lactoperoxidase: reage com perxido dehidrognio ons tiocianato (SCN-) formandohipotiocianato (OSCN-), que reage com grupossulfidrila de enzimas bacterianas, inativando es-sas enzimas e levando morte das bactrias.

    Alteraes prolongadas de pH: em condi-es normais, a saliva tem um pH (logarit-mo negativo da concentrao de ons H+)em torno de 6,0 a 7,0, fisiolgico tanto parao hospedeiro como para as bactrias. EssepH mantido pelos tampes salivares, prin-cipalmente pelos ons bicarbonato (HCO3),responsveis por cerca de 85% da capaci-dade tamponante da saliva; os outros 15%so garantidos por alguns outros saiscomo fosfatos, por protenas e por amino-cidos. As clulas glandulares em repou-so produzem pequenas quantidades de bi-carbonato, mas essa produo aumentabastante quando as glndulas so estimu-ladas. Assim, durante as refeies, a capa-cidade tampo atinge o auge e, entre as re-feies, o mnimo. Conseqentemente, acapacidade tampo da saliva diretamen-te proporcional quantidade de fluxo sa-livar.

    O mecanismo mais bem conhecido de tampo-namento se exerce sobre os cidos. O pH bucalpode ser alterado principalmente:

    a) pelo pH de substncias introduzidas naboca, levando a alteraes transitrias; porexemplo, quando ingerimos refrigerantes ou fru-tas cidas e seus sucos, o pH cai para em tor-no de 3,0.

    b) pela produo de cidos (ons H+) resul-tantes da fermentao bacteriana de carboi-dratos.

    O aumento da concentrao de ions H+ (ci-dos ionizados) o responsvel pelo declnio dopH e os tampes servem para contrabalanaressa alterao e estabilizar novamente o pH.

    Quando o pH da saliva se torna cido, o onHCO3 associa-se com um on H+ livre, pela aoda enzima anidrase carbnica, formando cidocarbnico (H2CO3) e parte desse cido carbni-co se dissocia em H2O + CO2. Assim, o on H+fica aprisionado na molcula de H2O, deixandode acidificar o meio ambiente (Fig. 5.13).

    Porm, quando a alterao de pH intensa efreqente, os tampes no conseguem contra-balan-la; nesses casos, a microbiota pode serprofundamente alterada, levando riscos para ohospedeiro. Sem dvida, o risco mais bem co-nhecido ocorre quando o pH da placa dentalpermanece cido durante muito tempo, porque aconsistncia gelatinosa do biofilme retarda con-sideravelmente o ingresso da saliva e de seustampes.

    Toda vez que ingerimos acares, muitasbactrias da placa dental os fermentam, produ-zindo cidos orgnicos que causam o declnio dopH da placa. Quando o pH atinge ndices inferio-res a 5,5 e permanece nesse nvel durante umtempo prolongado, essa acidez inibe temporaria-mente o metabolismo da grande maioria das bac-trias da placa. Durante todo esse tempo, ocor-re no biofilme dental a seleo de bactriasacidricas ou acidfilas, como os EGM e os lac-tobacilos, que so intensamente acidognicasmesmo em pH cido, causando a desmineraliza-o do esmalte dental, ou seja, a leso inicial decrie dental (ver Captulo 7 Cariologia: Etiopa-togenia da Crie Dental).

    Fluxo salivar: para que as substncias an-timicrobianas e a capacidade tampo atuemcom eficincia, necessrio um fluxo sali-var adequado. As glndulas salivaressecretam 1,0 a 1,5 litro de saliva por dia,promovendo uma benfica lavagem damucosa bucal e da superfcie dos dentes.Esta constante ao de limpeza remove re-sduos alimentares e boa parte dos micror-ganismos no aderidos, que so degluti-dos, impedindo que eles colonizem os te-cidos. A ao de limpeza do fluxo salivar auxiliada, ao longo do dia, pela mastigao

    Fig. 5.13 Esquema do mecanismo bsico de tamponamento do pH cido na saliva.

    anidrase carbnica

    HCO3 + H+ livre H2CO3 H2O + CO2

  • 65 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    e pelos movimentos musculares, que pro-movem aumento do fluxo salivar, com aflu-ncia de todos os fatores que regulam amicrobiota e que reduzem o nmero de mi-crorganismos.

    Em contrapartida, quando dormimos, o fluxosalivar fica extremamente reduzido, favorecendoum considervel aumento numrico de microrga-nismos, fazendo aumentar o risco de crie den-tal e de doenas periodontais. Da a extrema im-portncia de uma higienizao bucal rigorosaantes de dormirmos, para diminuirmos o nmerode bactrias e os nutrientes necessrios para seudesenvolvimento. Nas ltimas dcadas, foi adi-cionada mais uma vantagem a esse procedimen-to: os dentifrcios contm fluoretos e a estasesalivar faz com que eles permaneam muito maistempo em contato com os dentes. Alm da redu-o do fluxo salivar que ocorre quando dormi-mos, outros fatores afetam consideravelmente ataxa de secreo do fluxo salivar, conforme de-monstra a Tabela 5.1.

    Fluido Gengival

    No domnio subgengival, o principal fator re-gulador no a saliva, mas o exsudato gengival,que resulta da resposta inflamatria montadacontra a agresso das bactrias subgengivais.Esse fluido existe mesmo em gengivas clinica-mente sadias, mas em quantidade mnima, emquantidade fisiolgica suficiente para controlar

    o nmero de bactrias presentes no mbitosubgengival. Mas medida que o nmero des-sas bactrias vai aumentando, principalmentecomo conseqncia de uma higienizao inade-quada, a resposta inflamatria vai se tornandocada vez mais intensa. O aumento da permeabi-lidade capilar traz como resultado a exsudaodo plasma sangneo (fluido gengival) no tecidoe no sulco gengival.

    Na condio de sade periodontal, o fluidogengival uma faca de dois gumes para a mi-crobiota subgengival. Por um lado, uma exce-lente fonte de nutrientes, principalmente de pro-tenas que favorecem o desenvolvimento dasbactrias dotadas de metabolismo proteoltico.Em contrapartida, um excelente recurso de de-fesa local: nele existem fagcitos, anticorpos(principalmente IgG) e o sistema complemento(C); alm disso, seu fluxo carrega bactrias noaderidas para fora do sulco gengival, reduzindoo contingente microbiano subgengival.

    No entanto, quando se instala a inflamao,o exsudato gengival torna-se mais favorvel paraas bactrias, inclusive patognicas, e mais des-favorvel para o hospedeiro. O aumento de seufluxo faz com que aumente a disponibilidade lo-cal de protenas; esta nova situao favorece oaumento numrico de bactrias proteolticas,que tambm vo se alimentar das protenas teci-duais como o colgeno. Alm disso, no sanguee conseqentemente no fluido gengival, existemaltos teores de hemina, de vitamina K (menadio-

    Tabela 5.1Fatores Modificadores da Taxa de Secreo do Fluxo Salivar

    Fatores que afetam a taxa de fluxo salivar

    Aumentando o fluxo Reduzindo o fluxo

    Inflamaes agudas da boca, Climatrio como estomatites Diabetes melito herptica e aftosa Hipotireoidismo Hipertireoidismo Alcoolismo Retardamento mental Desnutrio e m nutrio (sndrome de Down) Periodos febris Regurgitao cida Crises emocionais Erupo dental Parotidite infecciosa (caxumba)

    SialolitaseMedicao prolongada com anorexiantes, anti-hipertensivos, antidepressivos,anti-histamnicos, antiparkinsonianos, diurticos, anticolinrgicos etc.Supresses permanentes por sndrome de Sjgren, radiaes teraputicas,extirpao cirrgica das glndulas e paralisia cerebral

  • 66 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    na) e de hormnios como o estradiol e a proges-terona e essas substncias so fatores essen-ciais para o desenvolvimento de P. gingivalis,P. intermedia, espiroquetas e outras bactriasperiodontopatognicas (Fig. 5.14).

    Presena ou Ausncia de Dentes

    Outro fator importante que influencia a com-posio da microbiota bucal a presena ou au-sncia de dentes, condies j analisadas no in-cio deste captulo.

    Integridade dos Dentes e de seus Tecidosde Sustentao

    Alm da presena dos dentes, muito impor-tante o seu grau de integridade, incluindo o dosseus tecidos de sustentao (periodonto).

    Quanto aos dentes, cavidades de crie pos-sibilitam a reteno de restos alimentares e demaior nmero de bactrias, especialmente dasque necessitam de stios de reteno, como oslactobacilos. Alm das cavidades, defeitos estru-turais, restauraes inadequadas com excessoou deficincia de material, prteses em geral,apinhamentos dentais e aparelhos ortodnticosso fatores que permitem o aumento da microbio-ta bucal, aumentando o risco de crie dental parao paciente.

    Por outro lado, a microbiota subgengival so-fre grandes alteraes qualitativas e quantitati-vas quando se forma a bolsa periodontal. O sul-co gengival contm um nmero relativamentegrande de bactrias, parte das quais anaerbia.Quando se forma a bolsa periodontal e medi-da que ela se aprofunda, vai-se ampliando o cam-po fsico para a instalao de um nmero aindamaior de bactrias, caracterizando a alteraoquantitativa. A alterao qualitativa ocorre por-que, na profundidade da bolsa, existe uma mni-ma tenso de oxignio molecular (apenas 1 a2%), que favorece o amplo predomnio das esp-cies anaerbias estritas sobre as demais. O teormdio de oxignio no ar atmosfrico de 21%,

    correspondente a 16mm de Hg; nas regies dodorso da lngua e dos terceiros molares, o teorest reduzido metade (12 a 14%) e, na bolsaperiodontal, a cerca de 1/10 (1 a 2%) (ver expli-cao no Captulo 9 Microbiologia das Doen-as Periodontais).

    Em qualquer nicho anaerbio, os compostosqumicos so mais reduzidos (tm mais eltrons)do que oxidados, impossibilitando o desenvolvi-mento dos aerbios. Eh (potencial de xido-re-duo) exprime a tendncia de um meio ambien-te ou composto oxidar (retirar eltrons) ou redu-zir (acrescentar eltrons) uma molcula. Tecidosou microrganismos aerbios necessitam Eh+ e osanaerbios necessitam Eh- (Treponema spp exi-ge 180mV). A placa dento-bacteriana inicialtem Eh+ (200mV); devido ao consumo de O2 pe-las bactrias, o Eh cai para 0,0 em placas comtrs a cinco dias de evoluo; nas mais maduras,o Eh cai para 112 a 141mV (anaerobiose). O Ehsempre diminui em locais onde ocorre acmulode microrganismos, como a placa dental, favore-cendo o desenvolvimento de anaerbios obriga-trios (sucesso bacteriana).

    Descamao Epitelial

    Outro fator regulador importante na regula-o da microbiota a descamao do epitliobucal. A mucosa a superfcie mais extensa danossa boca, portanto a que fornece maiorcampo para a colonizao microbiana. A mu-cosa protege todos os tecidos internos e essegrau de proteo depende de seu teor de quera-tinizao, que muito varivel, sendo nulo noepitlio do sulco gengival e atingindo o mximono palato duro. Alm disso, depende, tambm,de sua constante descamao, pois todos osepitlios so reciclveis: as clulas superficiaismais envelhecidas vo sendo eliminadas, carre-gando consigo um nmero enorme de microrga-nismos aderidos a elas. Esse um fenmenousado para compensar o nmero de bactriasneoformadas e manter a microbiota em nveiscompatveis com a integridade dos tecidos. Num

    Fig. 5.14 Influncia da inflamao e do aumento do fluxo de exsudato gengival sobre o risco de doenas periodontais.

    Inflamao > fluxo de fluido gengival desequilbrio da microbiota > risco de periodontopatia

  • 67 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    ecossistema equilibrado, uma virtude compen-sa uma deficincia; assim, o epitlio do sulcogengival, para compensar a ausncia de queratini-zao, tem um grau de descamao muito maiordo que o dos outros epitlios bucais, renovan-do-se integralmente em quatro a seis dias.

    Dieta do Hospedeiro

    um fator exgeno de extrema importncia naregulao particularmente da microbiota supra-gengival. Tudo o que comemos ou bebemos ficaretido na boca durante algum tempo, maior oumenor. Assim, certos hbitos e comportamentosalimentares influenciam decisivamente as com-posies quantitativa e qualitativa principalmen-te da placa supragengival, que fica exposta dire-tamente aos resduos de nossa alimentao. Ainfluncia mais bem conhecida diz respeito aosEGM, que dependem de uma dieta rica em saca-rose para se desenvolverem na superfcie dodente e, quando o fazem, produzem placas volu-mosas conhecidas como placas cariognicas.Por outro lado, pessoas que consomem peque-nas quantidades de sacarose tm, em seu biofil-me dental, um domnio expressivo de S. san-guinis, S. gordonii e Actinomyces spp, que soos principais colonizadores iniciais da pelculaadquirida do esmalte e que no representam ris-co de doenas.

    Outra influncia pode ser determinada pelaslectinas extracelulares. Como j analisamos,lectinas so adesinas proticas que tm a capa-cidade de se ligar a resduos de carboidratos.Vrios dos nossos alimentos contm lectinasque podem ligar bactrias s nossas clulas epi-teliais ou superfcie dental, formando uma pon-te de unio entre elas. Mas, s vezes, a lectina doalimento ocupa os receptores teciduais destina-dos a ligar certas bactrias, dificultando suasaderncias. Por exemplo, lectinas existentes noamendoim cru e no germe de trigo fazem aumen-tar a aderncia de S. sanguinis. Trabalhos de-senvolvidos em nosso laboratrio (Simionato etal., 1994) demonstraram, in vitro, que a adern-cia de S. salivarius a epitelicitos bucais incre-mentada por lectinas derivadas de diversos ve-getais (amendoim, feijo, lentilha, abacate, bata-ta, germe de trigo) e reduzida na presena dalectina do tomate. Por outro lado, a adeso deS. mutans hidroxiapatita revestida por saliva

    significativamente favorecida pela lectina do to-mate e inibida pela existente no abacate.

    Um aspecto crtico da nossa dieta a suaconsistncia. Ces alimentados com dieta pasto-sa formam placas muito mais volumosas e de-senvolvem mais gengivites do que os alimenta-dos com rao consistente, dura. Numerososestudos demonstraram, em humanos, o maiorpotencial cariognico de alimentos pegajosos ecom alta concentrao de acar. O estudo so-bre crie dental experimental em humanos, reali-zado em Vipeholm (Sucia), comentado no Cap-tulo 7 (Cariologia: Etiopatogenia da Crie Den-tal), foi o primeiro a mostrar a intensa cariogeni-cidade gerada por caramelos e balas toffees, prin-cipalmente quando ingeridos ao longo do dia,nos perodos entre as refeies principais.

    Mas, sem dvida, o aspecto mais crtico dacariogenicidade a ingesto de carboidratosfermentveis fora das refeies principais, afreqncia de ingesto de alimentos cariogni-cos. Toda vez que fizermos uso de carboidratosfermentveis, principalmente de acar, o pH daplaca dental vai cair, ficar cido durante um bomtempo favorecendo a desmineralizao do den-te (pH < 5,5) e, depois, vai voltar ao normal, fa-vorecendo a remineralizao da leso. Se istoacontecer trs ou quatro vezes ao dia, nas refei-es, praticamente no vai haver problema, por-que o tempo de remineralizao vai ser maior doque o tempo de desmineralizao. O risco de c-rie dental aumenta significativamente quando apessoa ingere produtos aucarados vrias vezespor dia, nos intervalos entre as refeies, pois,nesse caso, o pH do ecossistema saliva/placadental/superfcie dental ficar cido praticamenteo dia todo, impedindo a remineralizao.

    Qualidade da Higienizao Bucal

    Outro fator exgeno de suma importncia aqualidade da higienizao bucal, que consistena combinao do uso constante e adequado daescova e do fio dental, da remoo peridica deplaca bacteriana e de trtaro pelo profissional,alm de eventuais correes ortodnticas. A hi-giene bucal, seguramente, o melhor meio demantermos a microbiota em nmeros fisiolgi-cos, compatveis com a nossa sade. A limpezaperidica do dorso da lngua, que pouca gentefaz, muito importante, porque a lngua o gran-de depsito bacteriano da boca.

  • 68 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    Uso de Antimicrobianos

    O uso de substncias antimicrobianas, embo-ra eventual, pode interferir drasticamente no sen-tido de desequilibrar a microbiota. Quando usa-mos determinado antibitico durante algum tem-po, esse antibitico suprime um grupo de micror-ganismos mas no suprime outros que, assim,so selecionados durante aquele tempo. Umexemplo clssico refere-se utilizao de anti-biticos de amplo espectro de ao, que supri-mem a grande maioria das bactrias de qualquerregio do nosso corpo, abrindo espao para osuperdesenvolvimento de espcies resistentes ede fungos como Candida albicans. Os antibi-ticos e os antisspticos de uso local desequili-bram abruptamente a microbiota, acarretando ris-cos para a pessoa; portanto, devemos desenco-rajar o uso desnecessrio dessas substncias.

    Fatores Sistmicos

    A boca faz parte do universo do nosso cor-po, influenciando e recebendo influncias deoutros sistemas do mesmo. Assim, a microbiotabucal pode sofrer algumas modificaes em fun-o de alteraes sistmicas fisiolgicas e pato-lgicas como:

    Alteraes hormonais: na puberdade, soproduzidos hormnios sexuais, que apre-sentam estrutura qumica semelhantes davitamina K (menadiona), portanto favore-cem o desenvolvimento de alguns patge-nos periodontais como Porphyromonasgingivalis, Prevotella intermedia e A.actinomycetemcomitans. O aumento dataxa de progesterona na gravidez, nas mu-lheres que tomam contraceptivos orais enas que fazem reposio hormonal, favo-rece o desenvolvimento de P. intermedia,predispondo ao aparecimento de gengivi-te, se a mulher no executar eficiente con-trole de placa bacteriana.

    RELAES INTERMICROBIANAS POSITIVAS ENEGATIVAS

    A ecologia bucal altamente influenciadapelas relaes biticas mantidas entre o grandenmero de espcies microbianas que constituema microbiota bucal. Este estudo fundamentalporque, muitas vezes, essas relaes repercutembenfica ou malevolamente no hospedeiro.

    Relaes Positivas: Comensalismo eSinergismo (Protocooperao)

    Como em qualquer outra microbiota, as rela-es mais comuns entre as centenas de espciesda microbiota bucal so as relaes positivas, asrelaes diplomticas como comensalismo e osinergismo. Em situao normal, a microbiota for-ma uma comunidade socialista que acaba be-neficiando todos os seus componentes. Alm deobter nutrientes a partir da dieta e dos tecidosdo hospedeiro, as bactrias ainda so alimenta-das por substncias produzidas por suas vizi-nhas, estabelecendo uma complexa cadeia ali-mentar entre elas, que caracteriza o comensalis-mo (Fig. 5.15).

    Um excelente exemplo de relao sinrgicaocorre na placa bacteriana, com implicaes noprocesso de crie dental. A placa contm altosnmeros de Veillonella spp, uma bactria Gram-negativa que tem o lactato como fator de desen-volvimento; mas apesar de serem anaerbias es-tritas, essas bactrias no dispem das enzimasglicoquinase e frutoquinase, portanto no con-seguem fermentar carboidratos e, assim, no socapazes de formar o lactato necessrio para elas.Vrias espcies de estreptococos esto presen-tes em nmeros ainda maiores na placa; a maio-ria delas, principalmente os EGM, apresenta me-tabolismo essencialmente sacaroltico; conse-qentemente, fermenta diferentes carboidratosproduzindo quantidades significantes de lactato(fermentao lctica) que so liberadas na placa

    Leucemia Diabetes Imunodeficincias Quimioterapia anticncer Defeitos em neutrfilos e na quimiotaxia

    reduo do fluxo salivar

    maior risco de infeces

    Estresse Diabetes melito insulino-dependente (tipo I) }

    }

  • 69 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    dental. Assim, parte desses cidos pode seraproveitada para o metabolismo das veillonellas,que se beneficiam desse relacionamento. Mascomo se trata de uma relao sinrgica, asveillonellas retribuem esse favor. Com exceodos EGM, a maioria dos estreptococos, comoS. sanguinis, muito sensvel ao dos ci-dos, tendo expressiva reduo do metabolismoem pH cidos. Como as veillonellas metabolizamgrande parte do cido lctico, desdobrando-o emcidos mais fracos e volteis como os cidosactico e propinico, o pH no cai at os nveisintolerveis para os estreptococos e para a gran-de maioria das bactrias do biofilme, que neleassim se mantm. Mesmo os EGM, que soacidricos, so beneficiados, pois no suportampH inferior a 4,0. Na verdade, os nossos dentestambm se beneficiam dessa simbiose porque asespcies do gnero Veillonella, reduzindo aquantidade de cido lctico na placa, contri-buem para diminuir o risco de desmineralizaodo esmalte dental.

    Relao Negativa: Antagonismo ouAntibiose

    Uma comunidade bacteriana no estabeleceexclusivamente relaes pacficas. Existem mui-tos mecanismos de antagonismo entre seusmembros, sendo os mais conhecidos a competi-o por ocupao de espao (receptores teci-duais), a competio por nutrientes e a produode metabolitos txicos para outras espcies.Quanto a este aspecto, vrios estreptococosbucais, como S. sanguinis, uma das espciespredominantes na placa dental, produzem H2O2que inativa A. actinomycetemcomitans, um pat-geno muito agressivo para o periodonto de adul-tos e, principalmente, de jovens. Este antagonis-mo bilateral, pois A. actinomycetemcomitanstambm inibe estreptococos bucais, tanto assimque, nas faces dentais proximais corresponden-tes s leses de periodontite agressiva localiza-da (antes de 1999 denominada periodontite juve-nil localizada), dificilmente so encontradas le-

    Fig. 5.15 Cadeia alimentar entre importantes componentes da placa dental madura.

    StreptococcusActinomyces

    Lactato

    Succinato Treponema IsobutiratoPutrescina

    PABA

    NH4

    CO2

    AcetatoFormiato

    Veillonella

    Vrios Gram-positivos

    H2

    HeminaMenadiona

    FusobacteriumEubacterium

    S. mutans

    CapnocytophagaEikenella

    A. actinomycetem-comitans

    FusobacteriumEubacteriumBacteroides

    Peptostreptococcus

    CampylobacterWolinellaB. gracilis

    P. gingivalisP. intermedia

    P. endodontalis

  • 70 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    ses de crie dental. Em nosso laboratrio, DeLorenzo, Campos e Silva Jr. (1981) demonstraram,in vitro, que o pigmento produzido por patge-nos Gram-negativos anaerbios estritos na po-ca denominados Bacteroides melaninogenicus(na atualidade, Porphyromonas spp e Prevo-tella spp) inibe o desenvolvimento de S.mutans (Fig. 5.16). No prximo item, sero ana-lisados outros exemplos de grande importnciapara o hospedeiro.

    RELAES ENTRE A MICROBIOTA BUCAL E OHOSPEDEIRO: BENEFCIOS E PREJUZOS

    A relao normal estabelecida entre a micro-biota e o hospedeiro uma coexistncia pacfi-ca, uma convivncia harmoniosa que ocorre ge-ralmente sem prejuzo para nenhuma das partesenvolvidas.

    Benefcios da Microbiota para oHospedeiro

    Alm de geralmente no ser prejudicado pe-las diferentes microbiotas locais, o hospedeiro claramente beneficiado por elas, sob algunsimportantes aspectos. O melhor exemplo queconfirma esta assertiva a inequvoca e decisi-va contribuio da microbiota indgena para adefesa biolgica da boca. Esses microrganis-mos j esto assentados, em altos nmeros,nesse terreno e o defendem contra a invasodos sem-terra aliengenas. Para que umpatgeno exgeno consiga instalar-se na boca,ele tem que competir com a microbiota previa-

    mente instalada e essa luta no nada fcil parao invasor. Ele tem que competir por receptoresj ocupados, competir por nutrientes, e, almdisso, enfrentar a antibiose comentada no itemanterior.

    Um exemplo magnfico refere-se a S. pyoge-nes (beta-hemoltico, grupo A de Lancefield), umimportante patgeno que causa freqentesdoenas em estruturas contguas boca comofaringe e tonsilas, mas que muito raramente seinstala em nossa boca. Isto porque na microbiotabucal existem vrias espcies antagnicas aS. pyogenes. Alguns estreptococos bucais (bac-trias do mesmo gnero) produzem vrias subs-tncias, genericamente chamadas de bacterio-cinas, que inibem S. pyogenes.

    Uma bacteriocina bem conhecida a mutaci-na, elaborada por S. mutans e que inibe o desen-volvimento de S. pyogenes, Staphylococcusaureus, S. sanguinis e A. naeslundii. S. sali-varius produz bacteriocinas contra S. pyogenese A. naeslundii. Lactobacillus spp elabora bac-teriocinas contra S. pyogenes, fungos e entero-bactrias.

    A microbiota bucal tambm contribui para anutrio do hospedeiro, produzindo, por exem-plo, vitaminas que so constantemente degluti-das pelo hospedeiro. Este fato no deve causarsurpresas, pois h muito se sabe que a microbio-ta intestinal sintetiza e excreta grandes quantida-des de vitaminas do complexo B e de vitamina K,que so absorvidas pelo homem, que no tem acapacidade de sintetiz-las.

    As enzimas (proteases, sacarases, lipasesetc.) produzidas por essas bactrias e constan-temente deglutidas tambm devem contribuirpara nosso processo digestivo. Essa contribui-o deve ser to eficiente que animais isentosde germes, portanto desprovidos de enzimasbacterianas, necessitam de uma quantidade dealimento quatro vezes maior do que os animaisconvencionais.

    Microrganismos instalados nas diversas mi-crobiotas contribuem, por outro lado, para o de-senvolvimento de determinados rgos e teci-dos. Em animais isentos de germes, constatou-se ausncia de desenvolvimento normal do sis-tema linftico e do intestino; a ausncia de mi-crorganismos resulta em ausncia de estmuloimunognico, conduzindo atrofia, por hipofun-o, dos rgos imunitrios fundamentais para adefesa do hospedeiro.

    Fig. 5.16 Inibio do desenvolvimento de S. mutans ao re-dor de colnias previamente desenvolvidas de bacilosperiodontopatognicos Gram-negativos anaerbios produtoresde pigmento negro (De Lorenzo, Campos e Silva Jr., 1981).

  • 71 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    Prejuzos da Microbiota para oHospedeiro

    De acordo com o analisado, em condiesnormais, homeostticas, a microbiota comensalauxilia o hospedeiro em vrios aspectos. No en-tanto, em circunstncias especiais, o equilbriobiolgico pode ser severamente rompido, permi-tindo o aumento numrico de algumas espciespatognicas e resultando em prejuzo para a sa-de do hospedeiro. A maioria dos microrganismospatognicos para nossa boca faz parte da micro-biota residente, mas em pequenas proporesrelativas (< 1,0% da microbiota total), em nme-ros insuficientes para lhe causar dano. O nme-ro desses microrganismos s aumenta como re-sultado de um desequilbrio ecolgico. O proble-ma que, agora em altos nmeros, esses micror-ganismos, conhecidos como oportunistas oupatgenos potenciais ou mais adequadamentecomo anfibiontes (Rosebury, 1962), conseguemexpressar a sua virulncia. So eles os respons-veis pelo aparecimento das doenas infecciosasendgenas da boca, tais como crie dental, dife-rentes doenas periodontais, perimplantites in-fecciosas, pulpopatias infecciosas e periapicopa-tias, candidase, actinomicose etc. Essas doenasso chamadas de endgenas porque no neces-sitam da instalao de nenhum microrganismoaliengena; os patgenos se encontram normal-mente na boca, mas em pequeno nmero, umnmero restringido pelas defesas locais.

    Como exemplos de anfibiontes bucais devi-damente reconhecidos citamos os estreptococosdo grupo mutans, Lactobacillus spp, A. naes-lundii, P. gingivalis, A. actinomycetemcomitans,B. forsythus, P. intermedia, P. endodontalis, A.israelii e C. albicans.

    As doenas infecciosas endgenas apresen-tam algumas caractersticas especiais que as di-ferenciam das exgenas:

    1a) Seus agentes etiolgicos fazem parte damicrobiota residente, portanto esto presentestanto no estado de doena como no de sade,embora em nmeros diferentes, ou seja, em dife-rentes propores relativas.

    2a) Normalmente necessrio um grandenmero de anfibiontes para desencadear a le-so.

    3a) O aumento da populao dos anfibiontesresulta da interferncia de fatores predisponen-tes inerentes a cada doena e so justamente

    esses fatores predisponentes que causam o rom-pimento do equilbrio biolgico.

    4a) As doenas geradas por presena de bio-filme (crie, periodontopatias e perimplantites)geralmente demoram para se evidenciar clinica-mente aps a infeco se instalar, e seus cursosso lentos.

    5a) Induzem a baixa imunidade clnica, por-tanto se repetem, s vezes, com elevada freqn-cia ao longo de nossa vida.

    BIBLIOGRAFIA

    1. De Lorenzo JL, Campos CM, Silva Jr EA.Fenmenos de antibiosis en la microbiota bucal.Rev ADM (Mxico), 38:144-146, 1981.

    2. Gibbons RJ. Adherent interactions which mayaffect microbial ecology in the mouth. J Dent Res,63:378-385, 1984.

    3. Kollenbrander PE, London J. Adhere today, heretomorrow: oral bacterial adherence. J Bacteriol,175:247-252, 1993.

    4. Liljemark WF, Bloomquist CG. Flora microbiananormal do corpo humano. In: Nisengard RJ,Newman MG. Microbiologia Oral e Imunologia,2a ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, pp.102-109, 1997.

    5. Lillich TT. Oral Microbiology. In: Roth GI,Calmes R. Oral Biology. Mosby, St. Louis, pp.307-339, 1981.

    6. Loesche WJ. Ecologia da flora oral. In: NisengardRJ, Newman MG. Microbiologia Oral e Imuno-logia, 2a ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro,pp. 264-274, 1997.

    7. Malamud D. Influence of salivary proteins on thefate of oral bacteria. In: Mergenhagen SE, RosanB (ed). Molecular Basis of Oral MicrobialAdhesion. American Society for Microbiology,Washington, pp. 7-13, 1985.

    8. McIntire FC. Specific surface components andmicrobial coaggregation. In: Mergenhagen SE,Rosan B (ed). Molecular Basis of Oral MicrobialAdhesion. American Society for Microbiology,Washington, pp. 153-158, 1985.

    9. Morhart R, Cowman R, Fitzgerald R. Ecologicdeterminants of the oral microbiota. In: MenakerL. The Biological Basis of Dental Caries. Harper& Row, pp. 278-296, 1980.

    10. Ofek I, Perry A. Molecular basis of bacterialadherence to tissues. In: Mergenhagen SE, RosanB (ed). Molecular Basis of Oral MicrobialAdhesion. American Society for Microbiology,Washington, pp. 7-13, 1985.

  • 72 Direitos reservados EDITORA ATHENEU LTDA.

    11. Rosan B, Eifert R, Golub E. Bacterial surfaces,salivary pellicles, and plaque formation. In:Mergenhagen SE, Rosan B (ed). Molecular Basisof Oral Microbial Adhesion. American Society forMicrobiology, Washington, pp. 69-76, 1985.

    12. Schonfeld SE. Oral microbial ecology. In: Slots J,Taubman MA. Contemporary Oral Microbiologyand Immunology. Mosby, St. Louis, pp. 267-275,1992.

    13. Simionato MRL, Mayer MPA, Cai S, De Lo-renzo JL, Zelante F. Influence of lectins of S.

    salivarius to buccal epithelial cells. Rev Micro-biol, So Paulo, 25:83-85, 1994.

    14. Simionato MRL, De Lorenzo JL, Mayer MPA,Cai S, Zelante F. Influence of vegetable lectins onadhesion of oral streptococci to saliva-coatedhydroxyapatite. J Dent Res, 73:769 abstr. 111,1994.

    15. Socransky SS, Haffajee AD. Dental biofilms:difficult therapeutic targets. Periodontol 2000,28:12-55, 2002.