o economista como historiador -- flávio versiani

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O economista como historiador Poucas obras brasileiras de erudição têm exercido a influência de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, que este ano completa o trigésimo aniversário de publicação. Ao contrário de alguns clássicos, que todos citam e ninguém leu, o livro tem sido continuamente reeditado, o que decore de sua ampla utilização como instrumento didático em colégios e universidades.a par disso, as idéias do livro têm sido ponto de partida de numerosos trabalhos acadêmicos nessas três décadas. Organizado como um painel cronológico, o livro procura traçar a lógica econômica das várias etapas que caracterizam a estrutura produtiva do país, desde o início da colonização. Escrita em menos de quatro meses, a obra expande idéias anteriormente expostas por Furtado, especialmente em A economia brasileira, publicado em 1954, às quais agrega novos elementos, conseguindo notável unidade, apesar dessa origem compósita. O fio condutor do trabalho é a visão teórica do Celso Furtado quanto ao processo de desenvolvimento em economias periféricas, tema a que dedicou a maior parte dos seus escritos. Em sua análise, Furtado mescla elementos extraídos da análise macroeconômica keynesiana com as idéias sobre o desenvolvimento das economias latino- americanas, sob o signo do desequilíbrio externo. Esta última vertente está, como se sabe, associada, ao pensamento da “escola da Cepal”, das décadas de 1950,60 de que o próprio Furtado foi um dos expoentes. De forma esquemática, pode-se sintetizar o essencial de tal visão em quatro proposições: 1) o crescimento econômico de países subdesenvolvidos depende, em primeiro lugar,

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O Economista Como Historiador -- Flávio Versiani

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O economista como historiadorPoucas obras brasileiras de erudio tm exercido a influncia deFormao econmica do Brasil,de Celso Furtado, que este ano completa o trigsimoaniversrio de publicao. Ao contrrio de alguns clssicos, que todos citam e ningum leu, o livro tem sido continuamente reeditado, o que decore de sua ampla utilizao como instrumento didtico em colgios e universidades.a par disso, as idias do livro tm sido ponto de partida de numerosos trabalhos acadmicos nessas trs dcadas.Organizado como um painel cronolgico, o livro procura traar a lgica econmica das vrias etapas que caracterizam a estrutura produtiva do pas, desde o incio da colonizao. Escrita em menos de quatro meses, a obra expande idias anteriormente expostas por Furtado, especialmente emA economia brasileira, publicado em 1954, s quais agrega novos elementos, conseguindo notvel unidade, apesar dessa origem compsita.O fio condutor do trabalho a viso terica do Celso Furtado quanto ao processo de desenvolvimento em economias perifricas, tema a que dedicou a maior parte dos seus escritos. Em sua anlise, Furtado mescla elementos extrados da anlise macroeconmica keynesiana com as idias sobre o desenvolvimento das economias latino-americanas, sob o signo do desequilbrio externo. Esta ltima vertente est, como se sabe, associada, ao pensamento da escola da Cepal, das dcadas de 1950,60 de que o prprio Furtado foi um dos expoentes.De forma esquemtica, pode-se sintetizar o essencial de tal viso em quatro proposies:1)o crescimento econmico de pases subdesenvolvidos depende, em primeiro lugar, do volume anual de gastos autnomos (como exportaes e investimentos). Esses gastos aumentam o produto e a renda diretamente ( se h mais procura externa por nossas bananas, por exemplo, os produtores aumentam a oferta, vendem mais e ganham mais) e tambm indiretamente; o dinheiro ganho com bananas estimular o aumento da procura por bens de consumo, o que poder induzir uma expanso da produo destes no pas, com maior ou mais eficiente utilizao de fatores produtivos e, portanto, crescimento do produtoper capita( proposio elementar na macroeconomia keynesiana).2)a importncias dos efeitos indiretos, ou multiplicadores, no processo de desenvolvimento de economias altamente dependentes de exportaes reside no fato de que podem criar condies para um crescimento econmico auto-sustentado, com base no dinamismo de mercado interno. Seguindo com o exemplo, em decorrncia da prosperidade associada a umboomna exportao de bananas, aumentar a procura de bens de consumo e haver estimulo parainvestimentos na produo local desses bens. Como conseqncia, poderdesenvolver-se um setor industrial significativo. Mesmo que declinem ou cessem as vendas externas de bananas, o crescimento econmico poder continuar, sustentado pelo investimento e pelos ganhos de produtividade ligados nova atividade de produo para o mercado interno (aqui h evidncias de idias da escola da Cepal e de autores como Ronsenstein-Rodan, quanto ao processo de industrializao em pases perifricos). Implcita nessa proposio est a idia de que a diversificao da estrutura produtiva benfica e desejvel. Essa idia, bsica na doutrina da Cepal, suscitou infindveis debates. A justificativa da tese est no argumento de que produtos primrios tm, em geral, condies de procura desfavorveis no mercado internacional, a longo prazo (a procura no aumenta na mesma proporo em que a renda cresce; os produtos sofrem obsolncia, pelo desenvolvimento de sucedneos; os preos so instveis), e limitada possibilidade de melhorias tecnolgicas em sua produo, em contraste com a indstria.3)O efeito multiplicador das exportaes ou dos investimentos depende de forma crucial da distribuio de renda. Se toda receita da exportao de bananas apropriada por um s latifundirio, que gasta tudo em produtos importados e viagens ao exterior, no haver estimulo diversificao da produo interna. Assim, em princpio, o desenvolvimento auto-sustentado depende de uma renda melhor distribuda (a nfase na estrutura da demanda presente em toda a obra de Furtado, mostra ecos de Kaldor e de Nurkse).4)Um grande volume de exportaes e uma distribuio de renda favorvel, no asseguram, no entanto, a detonao de um processo de crescimento auto-sustentado, pois podem existir vrios fatores impeditivos. Furtado confere maior importncia aos seguintes:(a) problemas de balano de pagamentos, dificultando a importao de mquinas e equipamentos; (b) ausncia de capacidade empresarial inovadora: as oportunidades de investimento no so reconhecidas e aproveitadas; e (c) indisponibilidade de conhecimento tecnolgico relevante.Dentro dessa perspectivas, Furtado examina as vrias etapas da evoluo da nossa economia, enfatizando a estrutura de distribuio da renda e a presena de fatores que favorecem ou impedem o desenvolvimento auto-sustentado da economia.A anlise da economia aucareira,por exemplo, demonstra que o gasto autnomo (valor exportado) era bastante elevado em termosper capita, mas se traduzia quase exclusivamente em importaes, dado o grau extremo de concentrao da renda. A receita monetria das vendas externas do acar era apropriada basicamente sob a forma de lucro, pelos donos do capital investido no engenho. Os gastos de consumo e investimentos eram quase totalmente feitos no exterior. No havia, assim, qualquer estimulo a uma diversificao maior da produo interna.Na economia de minerao, o produtoper capitaera provavelmente menor que o associado exportao do acar, mas a renda gerada era muito melhor distribuda. Em conseqncia, surgiu um mercado interno de apreciveis propores, a que se associou um processo importante de urbanizao. Apesar dessas condies, no se desenvolveu no pas uma estrutura produtiva diversificada, propiciando o crescimento endgeno, auto-sustentado. A hiptese de Furtado a de que no havia conhecimento tecnolgico na colnia que possibilitasse o aparecimento de novos setores produtivos.O advento de um setor cafeeiro importante, j no sculo XIX, trouxe novas possibilidades de diversificao da economia. O trabalho assalariado, de crescente utilizao, fazia expandir-se o mercado interno. O conseqente aumento da procura por importaes tendia a provocar problemas no balano de pagamentos, o que tambm favorecia a produo industrial interna, j que a desvalorizao cambial encarecia os bens importados. Por outro lado, esse encarecimento inclua as mquinas, o que dificultava o processo. Os negcios com o caf, tambm teriam propiciado, para Furtado, o surgimento de uma nova mentalidade empresarial, favorecendo a industrializao.Na dcada de 1930 a convergncia desses fatores promoveria o salto em direo ao desenvolvimento endogenamente determinado. A Grande depresso de 1929-1933marca, para o autor o fim do predomnio das exportaes como gastos autnomos promotor do crescimento, cedendo lugar ao investimento voltado para as atividades de produo para o mercado interno. Ao colapso dos preo do caf segue-se uma drstica desvalorizao da moeda nacional, dificultando as importaes, ao mesmo tempoque a poltica de compra do produto pelo governo amortece os efeitos da crise da queda da renda interna, estimulando a produo de bens de consumo. O processo seria acelerado no ps-guerra, com a adoo de tratamento cambial favorecido para a importao de mquinas e equipamentos.Com a perspectiva de 30 anos aps sua publicao, alguns argumentos do livro, como seria de se esperar, parecem pouco convincentes. Talvez o principal seja a nfase preponderante na crise dos anos 30 como marco do surgimento de uma produo voltada para o mercado interno dissociado do impulso derivado as importaes. Foi negligenciando um relevante processo anterior de industrializao, como trabalhos mais recentes demonstraram. Outros detalhes tambm merecem reparos ou qualificaes, luz de achados posteriores, como por, exemplo:a)A distino entre o cafeicultor, imbudo de esprito empresarial capitalista, e o senhor de engenho, rentista ocioso e patriarca,l pouco defensvel. O patriarca do acar, de papel to saliente na obra de Gilberto Freyre, pertence fasede decadncia da economia aucareira, o que torna inapropriada a comparao com o empresrio de uma economia cafeeira em expanso. Alguns estudos sugerem que no faltou esprito capitalista weberiano no auge do acar.b)Furtado sups que os movimentos de cmbio fossem grandemente influenciados pelos interesses dos exportadores, que tinham na desvalorizao cambial uma compensao para a queda dos preos do caf. A hiptese, porm, desautorizada pelo que se conhece do mercado cambial do perodo, alm de supor um grau improvvel de articulao entre os exportadores e o aparelho do Estado.c)O autor supe que as compra de caf promoveram uma expanso de renda, na dcada de 1930, por terem sido financiadas internamente ( se financiadas externamente no teria esse efeito). Parte das aquisies feitas pelo governo, sabe-se hoje, foram sustentadas por crdito externo, mas ainda assim causariam expanso de renda: supor que o efeito macroeconmico de um aumento de gastos depende da forma de financiamento , no caso, teoricamente insubsistente.Pontos como os citados so importantes para o entendimento de perodos e processos de transformao especficos; nesse sentido, o livro de Furtado certamente continuar a ser esmiuado e criticado por imprecises ou incorrees que contenha.No contexto de uma apreciao geral, no entanto, em que o importante no o pormenor, mas o quadro amplo da evoluo da nossa economia, fica claro que o livro no envelheceu, resistindo com garbo ao exame crtico de vrias de suas teses. A anlise, hoje clssica, da reao da economia brasileira a crise de 1929 um exemplo saliente: em grandes linhas, os argumentos do livro quanto a esse episdio foram ratificados. O mesmo se pode dizer da anlise dos efeitos da poltica cambial do ps-guerra. Isso ainda mais notvel porque a base de dados do autor era muito mais estreita que a disponvel hoje.Tanto quanto h 30anos atrs,Formao Econmica do Brasiltem o grande atrativo de indicar as razes histricas de caractersticas atuais de nossa economia. O processo evolutivo traado, mostrando, at meados do sculo passado, perodos relativamente curtos e descontnuos de prosperidade, seguidos de declnio e estagnao, um elemento bsico do nosso subdesenvolvimento. Furtado assinala - e isso pode ser visto hoje, com melhores dados, de forma mais ntida que a taxa mdia de crescimento da economia brasileira, desde meados do sculo passado, alta em termos internacionais. Assim, de um ponto de vista quantitativo, as origens de nosso atraso teriam que ser buscadas mais atrs no tempo. O autor sugere que o perodo crucial so os trs quartos de sculo de estagnao entre o declnio da economia de minerao e o incio da expanso da economia cafeeira, ao redor de 1850.Outro ponto destacado da obra, da maior importncia para o entendimento da economia e da sociedade brasileira atuais, a formao de vastos contingentes populacionais restritos a uma economia de subsistncia, aps o declnio do acar e do ouro. Essa populao, em sua esmagadora maioria barrada historicamente no acesso propriedade da terra teve como alternativas bsicas agregar-se grande propriedade rural ou oferecer sua fora de trabalho no mercado urbano, ao longo do processo de diversificao da estrutura produtiva. A persistncia dessa grande massa de mo-de-obra no qualificada na economia fator fundamental do baixo nvel mdio de remunerao do trabalho, no presente, e do alto grau de desigualdade na distribuio de renda.A relevncia para a compreenso da atualidade aliada conciso e brilhantismo da exposio, tornam fcil a previso de que o livro de Furtado continuar sendo, ainda por muito tempo, uma das melhores introdues possveis ao estudo da economia brasileira, e um manancial de sugestes para tpicos de pesquisa.Formao econmica do Brasil um exemplo do papel que pode ter o economista no desenvolvimento dos estudos histricos: a construo de um arcabouo, logicamente estruturado em termos econmicos, onde os fatos histricos so colocados e analisados. Furtado afirmou emA fantasia organizada,de 1985, que seu livro de 1959 uma coleo de hipteses sobre a formao da economia brasileira. Talvez haja a um exagero de modstia: a obra bem mais do que isso. De qualquer forma, a existncia de um conjunto de hipteses to rico como o presente no livro uma base fecunda para a interao entre economistas e historiadores, no estudo da evoluo de nossa economia.Flvio Rabelo VersianiDepartamento de EconomiaUniversidade de Braslia