o discurso secreto - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó...

356
O DISCURSO SECRETO TOM ROB SMITH 1

Upload: others

Post on 13-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O DISCURSO SECRETO

TOM ROB SMITH

1

Page 2: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

UNIÃO SOVIÉTICA

MOSCOVO

3 de Junho de 1949

Durante a Grande Guerra Patriótica, tinha demolido a ponte de Kalach em defesa de

Estalinegrado, armadilhado fábricas com dinamite, reduzindo-as a escombros e ateado fogo a

refinarias indefensáveis, enxadrezando os contornos do horizonte com colunas de óleo ardente,

com pressa de destruir tudo o que pudesse ser requisitado pelos invasores da Wehrmacht. Ao

passo que os seus compatriotas choravam vendo as suas cidades natais desmoronarem-se à sua

volta, ele sobrevivera à devastação com um sorriso de gozo nos lábios. O inimigo podia

conquistar um território devastado, uma terra queimada e um céu repleto de fumo. Improvisando

amiúde com quaisquer materiais que estivessem à mão – lança-granadas, garrafas de vidro,

transvasando gasóleo de camiões militares abandonados e capotados – ganhara a reputação de ser

um homem de Estado no qual se podia confiar. Nunca perdera a calma, nunca cometera um erro,

mesmo quando operava em condições extremas: noites gélidas de Inverno, com água pela cintura

em rios de águas rápidas, a sua posição a ser atacada por fogo inimigo. Para um homem com a

sua experiência e temperamento, a tarefa de hoje devia ser rotineira. Não havia urgência,

nenhuma bala a assobiar-lhe por cima da cabeça. E, porém, as suas mãos, reconhecidas como as

mais firmes do ofício, tremiam. Gotas de suor rolaram-lhe para os olhos, obrigando-o a enxugá-

los com a ponta da camisa. Sentia-se agoniado, como se fosse de novo um noviço, pois esta era a

primeira vez que o quinquagenário herói de guerra, Jekabs Duvakin, fazia explodir uma igreja.

Era preciso colocar mais uma carga de explosivos, mesmo à sua frente, no local onde

anteriormente se erguia o altar. O trono do bispo, os bancos, os santos, os menalia – tudo fora

levado. Até a folha de ouro tinha sido raspada das paredes. A igreja estava vazia com excepção

da dinamite enterrada nas fundações e atada aos pilares. Apesar de profanado, pilhado e

saqueado, continuava a ser um espaço amplo e impressionante. A abóboda central, encastoada

com uma coroa de vitrais coloridos, era tão alta e tão repleta de luz, que parecia fazer parte do

céu. De cabeça arqueada para trás, boca aberta, Jekabs admirou o cimo da abóboda, cinquenta

metros acima dele. Raios de luz penetravam nas janelas altas, iluminando as pinturas a fresco,

que em breve deveriam ser detonadas, reduzidas às suas partes constituintes: um milhão de grãos

2

Page 3: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

de tinta. A luz espalhou-se pelo pavimento liso de pedra, não muito longe de onde estava

sentado, como se tentasse alcançá-lo, a palma de uma mão dourada estendida.

Murmurou:

— Não há deus.

Tornou a repeti-lo, desta vez mais alto, as palavras a ecoarem no interior da cúpula:

— Não há deus!

Era um dia de Verão; era evidente que havia luz. Não era um sinal de coisa nenhuma.

Não era algo divino. A luz não tinha qualquer significado. Estava a pensar demais, esse era o

problema. Ele nem sequer acreditava em Deus. Tentou recordar-se de um dos muitos slogans

anti-religiosos do Estado:

A Religião faz parte de uma época em que cada um era para si

E Deus era para cada um.

Ele não estava a destruir uma igreja: estava a criar um futuro melhor. Aquele edifício

não era sagrado ou abençoado. Devia vê-lo como nada mais do que pedra, vidro e madeira –

dimensões: cem metros de comprido e sessenta de largo. Sem produzir nada, sem servir nenhuma

função quantificável, a igreja não passava de uma estrutura arcaica erigida por razões arcaicas por

uma sociedade que já não existia.

Jekabs recostou-se, correndo com a mão ao longo do chão de pedra fria, polido pelos pés

de muitas centenas de milhares de fiéis que ali tinham ouvido as missas durante muitas centenas

de anos. Impressionado pela magnitude do que estava prestes a fazer, começou a engasgar-se

como se tivesse deveras qualquer coisa presa na garganta. A impressão passou. Estava cansado e

trabalhara em demasia, nada mais. Normalmente, num projecto de demolição daquela escala,

seria assistido por uma equipa, o trabalho seria repartido. Naquele caso, decidira que os seus

homens podiam desempenhar um papel secundário. Não havia necessidade de dividir aquela

responsabilidade, os colegas não precisavam de ser envolvidos desnecessariamente. Nem todos

eram detentores de um pensamento claro como ele. Nem todos se tinham expurgado de

sentimentos religiosos. Não queria homens com uma motivação conflitual a trabalhar a seu lado.

Trabalhara cinco dias a fio, do sol nascer ao sol-pôr, posicionando todos os explosivos de

forma estratégica para garantir que a estrutura se desmoronava para dentro, e as cúpulas caíam

ordenadamente no topo umas das outras. Longe de ser uma demolição caótica, havia ordem e

precisão no seu ofício, e ele sentia orgulho desta sua habilidade especial. Aquele edifício

representava um desafio único. Não se tratava de uma questão moral, mas de um teste

3

Page 4: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

intelectual. Com uma torre do sino e cinco cúpulas douradas, cuja maior de todas era sustentada

por um tabernáculo de oitenta metros de altura, a demolição controlada e bem-sucedida daquele

dia constituiria um desfecho adequado à sua carreira. Depois daquele trabalho, fora-lhe

prometida uma reforma antecipada. Falara-se até de receber a Ordem de Lenine, como forma de

pagamento por um trabalho que mais ninguém queria fazer.

Abanou a cabeça. Não devia estar ali. Não devia estar a fazer aquilo. Devia ter fingido

que estava doente. Devia ter obrigado outra pessoa a colocar a última carga de explosivos.

Aquilo não era trabalho para um herói. Porém, os perigos de se esquivar ao trabalho eram muito

maiores, muito mais reais do que quaisquer ideias supersticiosas de que aquele trabalho pudesse

estar amaldiçoado. Tinha uma família a proteger – a mulher, a filha – e amava-a muito.

#

Lazar encontrava-se entre a multidão, afastado do perímetro da Igreja de Sancta Sophia a

uma distância de segurança de cem metros, e a sua solenidade contrastava com o entusiasmo e a

tagarelice daqueles à sua volta. Concluiu que era o tipo de multidão que teria assistido a uma

execução pública, não por uma questão de princípio, mas apenas pelo espectáculo, apenas para

estar entretida com qualquer coisa. Havia uma atmosfera festiva, as conversas efervesciam de

expectativa. As crianças balouçavam-se nos ombros dos pais, esperando impacientemente que

acontecesse alguma coisa. A igreja não lhes bastava: tinha de desmoronar para seu

entretenimento.

Na frente da barricada, sobre um pódio construído a propósito para proporcionar

elevação, uma equipa de filmagens estava atarefada a montar tripés e câmaras, discutindo quais

os melhores ângulos para captar a demolição. Prestavam especial atenção a acautelar que

apanhavam todas as cinco abóbadas e havia uma séria especulação sobre se estas se iriam

despedaçar no ar quando colidissem umas nas outras, ou só quanto embatessem no solo.

Dependeria, arrazoaram, da perícia dos especialistas que estavam a colocar a dinamite no interior.

Lazar questionou-se se poderia haver também tristeza entre a multidão. Olhou para a

esquerda e para a direita, procurando almas com um pensamento idêntico ao seu – o casal ao

fundo, ambos em silêncio, rostos exauridos de cor; a anciã lá atrás, de mão no bolso. Escondia

qualquer coisa no seu interior, um crucifixo talvez. Lazar queria dividir aquela multidão, separar

os que sofriam dos que se compraziam. Queria ficar ao lado daqueles que davam valor ao que

estava prestes a ser perdido: uma igreja de trezentos anos. Baptizada e desenhada à semelhança

da Catedral de Sancta Sophia em Gorky, sobrevivera a guerras civis e a guerras mundiais. Os

4

Page 5: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

recentes estragos causados por bombardeamentos eram uma razão para preservá-la, não para

destrui-la. Lazar lera, com desprezo, o artigo publicado no Pravda, que alegava instabilidade da

estrutura – não passava de um pretexto, uma mão cheia de falsa lógica para tornar aquele feito

aceitável. O Estado ordenara a destruição da igreja e o que era pior, muito pior, a ordem tinha

sido dada com o acordo da Igreja Ortodoxa. Ambas as partes envolvidas naquele crime alegavam

que aquela se tratava de uma decisão pragmática, não ideológica. Tinham enumerado uma série

de factores concorrentes para a decisão: estragos causados pelos raides da Luftwaffe; o interior

precisava de renovações complexas, que não se podia pagar; além do mais, a terra no coração da

cidade era necessária para um projecto de construção de vital importância. Toda a gente no poder

estava de acordo com a resolução. Aquela igreja, que não era com certeza uma das mais belas de

Moscovo, devia ser deitada abaixo.

Por detrás do vergonhoso acordo ocultava-se a cobardia. As autoridades eclesiásticas,

depois de terem aliado todas as congregações a Estaline durante a guerra, eram agora um

instrumento de Estado, um departamento do Kremlin. Aquela demolição era uma mostra de

subjugação. Faziam-na ir pelos ares pura e simplesmente para provar a sua humildade: um acto

sórdido de automutilação para afirmar que a religião era inofensiva, dócil, domesticada. Já não

precisava de ser perseguida. Lazar compreendeu a política do sacrifício: não seria melhor perder

só uma igreja do que perdê-las todas?

Em jovem testemunhara seminários serem transformados em casernas de operários,

igrejas convertidas em centros de exibição anti-religião.

Os ícones eram usados como lenha, os padres postos na prisão, torturados e executados.

Contínua perseguição ou subserviência irreflectida: fora essa a escolha.

#

Jekabs ouvia o barulho da multidão reunida lá fora, o alarido enquanto esperavam que o

espectáculo começasse. Era tarde. Já devia ter terminado. Porém, nos últimos cinco minutos

permanecera imóvel, de olhos postos na última carga, sem fazer nada. Atrás dele, ouviu o ranger

da porta. Lançou um olhar por cima do ombro. Era o seu colega e amigo, parado na soleira da

porta, como se temesse entrar. Chamou, a sua voz repercutiu-se no interior:

— Jekabs! O que é que se passa?

Jekabs respondeu:

— Nada. Estou quase pronto.

O amigo hesitou antes de acrescentar um comentário, adocicando a voz:

5

Page 6: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Vamos beber uns copos logo à noite, nós os dois, para celebrar a tua reforma?

Amanhã acordas com uma terrível dor de cabeça, mas à noite já te sentes muito melhor.

Jekabs sorriu à tentativa de consolo do amigo: a culpa não seria pior do que uma ressaca;

passaria.

— Dá-me cinco minutos.

Dito isto, o amigo deixou-o a sós.

Ajoelhou-se numa imitação burlesca de uma prece e, a escorrer em suor, de dedos

escorregadios, limpou o rosto o que, porém, não fez grande diferença: a camisa estava ensopada e

não o podia absorver. Acabaria o trabalho! E nunca mais teria de trabalhar na vida. No dia

seguinte ia levar a filha mais pequena a passear à beira do rio. No dia seguinte, ia comprar-lhe

qualquer coisa, vê-la sorrir. No final da semana seguinte, já se teria esquecido daquela igreja,

daquelas cinco abóbadas douradas e da sensação do chão de pedra frio ao toque.

Agarrou rapidamente na espoleta e agachou-se para a dinamite.

#

Os vidros foram catapultados em toda a volta da igreja, todas as janelas de todos os pisos

se estilhaçaram em simultâneo, enchendo o ar de fragmentos coloridos. A parede traseira deixou

de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de

pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo depois com estrondo no solo, carcomendo a

relva, resvalando em direcção à multidão. A frágil barreira não oferecia qualquer protecção e foi

derrubada com um som estridente. À esquerda e direita de Lazar, as pessoas começaram a cair,

atingidas nas pernas. As crianças agarravam-se aos rostos, cortados pelos fragmentos sibilantes

de pedra e vidro. Como se fosse uma única entidade, um grande cardume, a multidão começou a

dispersar em uníssono, agachada, escondendo-se atrás uns dos outros, temendo o

bombardeamento de mais destroços. Ninguém estava à espera que acontecesse alguma coisa

ainda; muitos nem estavam a olhar na direcção certa. As câmaras de filmar não estavam ainda

instaladas. Havia trabalhadores no perímetro da explosão, um perímetro mal estimado ou uma

explosão mal calculada.

Lazar ali estava de pé, os ouvidos a retinir, de olhos fixos na nuvem de pó, à espera que

esta assentasse. À medida que a nuvem se rarefez, revelou um buraco na parede do dobro da

altura de um homem e igualmente largo. Era como se um gigante tivesse acidentalmente enfiado

a ponta da sua bota na igreja, retirando depois o pé em constrangimento, poupando o resto do

6

Page 7: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

edifício. Lazar levantou os olhos para as abóbadas douradas. Toda a gente à sua volta seguiu o

exemplo, uma só questão na mente de todos eles: iriam as torres cair?

Pelo canto do olho, Lazar conseguia ver a equipa de filmagens numa azáfama para ligar

as câmaras, a limpar o pó das lentes, abandonando os tripés, num desespero desenfreado para

capturar as imagens. Se perdessem o colapso, fosse qual fosse a desculpa, as suas vidas estariam

em risco. Apesar do perigo, nenhum deles fugiu; ficaram parados no mesmo sítio, à procura do

mais pequeno movimento: um pendor, um abanão, uma trepidação. Por um instante, parecia que

até os feridos tinham feito silêncio na expectativa.

As cinco abóbadas não caíram, distantes do insignificante caos do mundo em baixo.

Enquanto a igreja permaneceu de pé, muita gente na multidão sangrava, estava ferida, chorava.

Tão certo como o céu acima se encobrir, Lazar sentiu uma mudança de humor. Emergiram

dúvidas. Teria algum poder sobrenatural intervindo para impedir aquele crime? Os espectadores

começaram a afastar-se, alguns lentamente, outros juntaram-se-lhes, mais e mais, afastando-se

com passo apressado. Ninguém queria continuar a assistir. Lazar debateu-se para conter uma

gargalhada. A multidão caíra, ao passo que a igreja sobrevivera! Voltou-se para o casal, na

esperança de partilhar com eles aquele momento.

O homem que se encontrava atrás de Lazar estava tão próximo que quase se tocavam.

Lazar não o ouvira aproximar-se. Ele sorria, mas os seus olhos eram frios. Não usava uniforme

nem mostrou o seu cartão de identidade. Contudo, não havia dúvida de que era da Segurança do

Estado, um oficial da polícia à paisana, um agente do MGB – uma dedução que podia ser feita

não a partir do que estava presente na sua aparência, mas do que estava ausente. À sua direita e

esquerda encontravam-se pessoas feridas. Todavia, aquele homem não tinha interesse neles.

Fora plantado na multidão para vigiar a reacção das pessoas. E Lazar falhara: estivera triste

quando devia ter estado contente, e contente quando devia ter estado triste.

O homem falou por entre um sorriso fino, sem nunca desviar os seus olhos mortiços de

Lazar:

— Um pequeno revés, um acidente, resolve-se facilmente. Devia ficar: talvez ainda

aconteça hoje, a demolição. Quer ficar, não quer? Quer ver a igreja cair? Vai ser um

espectáculo tremendo.

— Sim.

Uma resposta cautelosa e também a verdade, ele queria de facto ficar, mas não, ele não

queria ver a igreja cair e certamente não diria que sim. O homem prosseguiu:

7

Page 8: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Neste local irá situar-se uma das maiores piscinas cobertas do mundo. Para que as

nossas crianças cresçam saudáveis. É bom as nossas crianças serem saudáveis. Qual é o seu

nome?

A mais comum das perguntas e, porém, a mais aterradora:

— O meu nome é Lazar.

— Qual é a sua ocupação?

Aquele diálogo deixara de estar sob o disfarce de uma conversa casual e passara a ser um

interrogatório aberto. Subjugação ou perseguição, ser pragmático ou reger-se por princípios:

Lazar tinha de escolher. E ele tinha de facto uma escolha, ao contrário de muitos dos seus

confrades, que eram instantaneamente reconhecíveis. Ele não tinha de admitir que era um padre.

Vladimir Lvov, antigo Procurador-Geral do Sagrado Sínodo, defendera que os padres não tinham

de se diferenciar dos outros pela suas vestes e que podiam despir as suas sotainas, cortar o cabelo

e transfigurarem-se em comuns mortais. Lazar concordava. De barba aparada e trivial aparência,

ele podia mentir àquele agente. Podia negar a sua vocação e esperar que a mentira o protegesse.

Trabalhava numa fábrica de sapatos ou fazia mesas — tudo menos a verdade. O agente esperava

de rosto apreensivo pela suspeita.

Lazar teve de escolher.

8

Page 9: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Nas primeiras semanas, Anisya não se preocupara muito com o assunto. Maxim tinha

apenas vinte e quatro anos. Graduara-se no Seminário Académico Teológico de Moscovo,

encerrado desde 1918 e recentemente reaberto como parte do esforço para a reabilitação das

instituições religiosas. Ela era seis anos mais velha do que ele, casada, inatingível, uma

perspectiva tentadora para um jovem que ela julgava ter pouca, ou mesmo nenhuma experiência

sexual. Introspectivo e tímido, Maxim não se dava com ninguém fora da igreja e tinha poucos

amigos ou família, ou pelo menos nenhum deles vivia na cidade. Não era de surpreender, pois,

que tivesse desenvolvido qualquer tipo de sentimento a partir de um arrebatamento. Ela tolerara

os seus olhares demorados, sentindo-se talvez até lisonjeada por eles. Porém, de forma alguma o

havia encorajado. Ele compreendera mal o seu silêncio, considerando-o como uma permissão

para continuar a cortejá-la. Era por essa razão que ele agora lhe segurava na mão e dizia:

— Deixa-o. Vem viver comigo.

Estava convencida de que ele jamais teria coragem de tomar uma atitude com base no

que poderia ser apenas um devaneio vão e pueril: os dois fugirem juntos. Porém, enganara-se.

Extraordinariamente, ele escolhera aquele lugar para atravessar a fronteira da fantasia

privada para uma proposta aberta: encontravam-se de pé no interior da igreja do marido, com as

pinturas a fresco dos discípulos, demónios, profetas e anjos julgando os seus movimentos ilícitos

das alcovas sombrias. Maxim arriscava tudo para o que estudara, enfrentando a desgraça certa e

o exílio da comunidade religiosa, sem esperança de redenção. O seu pedido sério e sincero era

tão errado e absurdo que ela não pôde se não reagir da pior forma possível. Soltou uma risada

curta, surpreendida.

Antes que ele tivesse tempo de responder, a pesada porta de carvalho fechou-se com um

baque. Anisya voltou-se, assombrada, dando de caras com o marido – Lazar – que se

aproximava deles com passo apressado, numa urgência tal que só podia supor que ele interpretara

aquela cena como uma prova da sua infidelidade. Afastou-se de Maxim, num movimento brusco

que apenas aumentava a impressão de culpa. À medida que ele se aproximava, porém,

compreendeu que Lazar, o homem com quem estava casada há dez anos, parecia preocupado com

qualquer outra coisa. Lançava olhares para a porta atrás dele. Ofegante, como se tivesse vindo a

9

Page 10: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

correr, pegou nas suas mãos, mãos essas que apenas poucos segundos antes tinham sido

seguradas por Maxim:

— Fui identificado na multidão. Um agente questionou-me.

Lazar falou depressa, as palavras saíram-lhe atabalhoadamente, e a sua importância

relegou para segundo plano a proposta de Maxim. Ela perguntou:

— Foste seguido?

Confirmou com um gesto de cabeça:

— Refugiei-me no apartamento de Natasha Niurina.

— O que aconteceu?

— Ele ficou lá fora. Fui obrigado a sair pelas traseiras.

— Irão prender Natasha e questioná-la?

Lazar levou as mãos ao rosto:

— Entrei em pânico. Não sabia para onde mais ir. Não deveria ter ido para casa dela.

Anisya agarrou-o pelos ombros:

— Se a única forma de nos encontrarem é prendendo Natasha, temos algum tempo.

Lazar abanou a cabeça:

— Já lhe disse o meu nome.

Ela compreendeu: não podia mentir. Não comprometeria os seus princípios, nem por ela

nem por ninguém. Os princípios eram mais importantes do que as suas vidas. A verdade é que

não devia ter ido assistir à demolição: avisara-o de que era um risco desnecessário. A multidão

iria inevitavelmente ser vigiada e ele seria um espectador fácil de identificar. Ele ignorara-a,

como era seu costume, parecendo sempre que ouvia os seus conselhos, mas sem nunca lhes

prestar devida atenção. Não lhe tinha ela pedido que não alienasse as autoridades eclesiásticas?

A posição deles era tão forte que se podiam dar ao luxo de fazer inimigos tanto no Estado como

na Igreja? Mas ele não tinha interesse nas políticas da aliança: queria tão-somente dizer a sua

opinião, ainda que esta o deixasse isolado, por criticar abertamente a nova relação entre bispos e

políticos. Teimoso, obstinado, exigia que ela apoiasse a sua posição, sem que a sua opinião

contasse. Ela admirava-o, era um homem íntegro. Mas ele não a admirava a ela. Era muito mais

nova do que ele e tinha apenas vinte anos quando se casaram. Ele tinha trinta e cinco. Por vezes

chegara a questionar-se se ele se teria casado com ela porque por ser um Padre Branco, um padre

casado, que fizera um voto monástico, essa era em si uma declaração reformista. O conceito era-

lhe apelativo, adequava-se ao seu esquema filosófico liberal. Ela estivera sempre preparada para

o momento em que o Estado se iria atravessar nas suas vidas. Porém, agora que esse momento

10

Page 11: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

chegara, sentia-se defraudada. Estava a pagar pelas opiniões dele, opiniões essas para as quais

nunca contribuira e que nunca tivera permissão para influenciar.

Lazar colocou uma mão no ombro de Maxim.

— O melhor é regressares ao Seminário e denunciar-nos. Uma vez que vamos ser

presos, a denúncia serviria apenas para te distanciares de nós. Maxim, tu ainda és um jovem.

Ninguém irá pensar mal de ti por partires.

Vinda de Lazar, aquela oferta de fuga era uma proposta armada. Lazar considerava esse

tipo de comportamento pragmático abaixo de si, adequado para os outros, homens e mulheres

mais fracos. A sua superioridade moral era sufocante. Longe de oferecer uma saída a Maxim,

estava a encurralá-lo. Anisya atalhou, tentando manter um tom de voz amigável:

— Maxim, tens de partir.

Ele reagiu, rispidamente:

— Quero ficar.

Melindrado pela anterior risada, mostrava-se inflexível e indignado. Falando num duplo

sentido invisível para o marido, disse-lhe:

— Por favor Maxim, esquece tudo o que aconteceu, não irás ganhar nada em ficar.

Maxim abanou a cabeça:

— Já tomei a minha decisão.

Anisya notou o sorriso de Lazar. Não havia dúvida de que o marido gostava de Maxim.

Tomara-o sob a sua protecção, cego à paixão do seu protegido por ela, alerta apenas às

deficiências do seu conhecimento das escrituras e da filosofia. Parecia estar satisfeito com a

decisão de Maxim em ficar, acreditando que tinha alguma coisa a ver com ele. Anisya

aproximou-se mais de Lazar:

— Não podemos deixar que ele arrisque a sua vida.

— Não podemos obrigá-lo a partir.

— Lazar, esta luta não é dele.

E não era também a sua.

— Ele fê-la dele. Eu respeito isso. E tu também deves respeitar.

— É um absurdo!

Moldando Maxim a partir de si próprio, um mártir, o seu marido escolhera humilhá-la e

condená-lo. Lazar exclamou:

— Basta! Não temos tempo! Queres que ele esteja seguro. Eu também. Mas se

Maxim quer ficar, fica.

11

Page 12: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

Lazar encaminhou-se apressadamente para o altar de pedra, despojando-o

precipitadamente. Todas as pessoas ligadas àquela igreja corriam perigo. Não podia fazer muito

pela sua mulher ou Maxim: tinham uma ligação muito próxima a ele. A sua congregação,

porém, as pessoas que se confidenciavam a ele, que compartilhavam os seus medos, era essencial

que os seus nomes se mantivessem em segredo.

Com o altar despido, Lazar agarrou num dos lados:

— Empurra!

Não muito sábio, mas obediente, Maxim empurrou o altar, retesando-se com o peso. A

áspera base de pedra resvalou ruidosamente pelo chão, deslizando devagar para o lado e

revelando um buraco, um esconderijo criado cerca de vinte anos antes, durante os ataques mais

intensos à igreja. As lajes de pedra tinham sido retiradas, expondo a terra que fora

cuidadosamente escavada e aprumada com suportes de madeira para a impedir de aluir, criando

um espaço de um metro de profundidade e dois de largo. Continha uma arca de metal. Lazar

debruçou-se para a cova e Maxim fez o mesmo, segurando na outra ponta da arca e levantando-a,

colocando-a depois no chão, pronta para ser aberta.

Anisya levantou a tampa. Maxim agachou-se a seu lado, incapaz de suprimir o espanto

da sua voz:

— Música?

A arca estava repleta de partituras escritas à mão. Lazar explicou:

— O compositor costumava vir aqui à missa, era um jovem, não muito mais velho do que

tu, estudava no Conservatório de Moscovo. Procurou-nos uma noite, aterrorizado porque estava

prestes a ser preso. Temendo que o seu trabalho fosse destruído, confiou-nos as suas

composições. Grande parte do seu trabalho fora condenado como anti-soviético.

— Porquê?

— Não sei. Creio que ele também não sabia. Não tinha um lugar para onde se virar,

não tinha família ou amigos em quem pudesse confiar. Por isso, procurou-nos. Concordámos

em ficar na posse do trabalho que fez em vida. Pouco tempo depois, desapareceu.

Maxim olhou para as notas:

— A música…é boa?

— Não ouvimos tocá-la. Não nos atrevemos a mostrar a ninguém, ou a pedir que a

toquem para nós. Podem fazer perguntas.

— Não fazes ideia de como soa?

12

Page 13: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Não sei ler música. E a minha mulher também não. Mas, Maxim, não estás a

compreender a questão. A minha promessa de ajuda não dependia dos méritos do seu trabalho.

— Estão a arriscar as vossas vidas? Se não tiver valor…

Lazar corrigiu-o:

— Estamos a proteger estes papéis; estamos a proteger o seu direito a sobreviver.

Anisya achou a segurança do marido exasperante. O jovem compositor em questão

tinha-a procurado a ela, não a ele. Ela falara depois com Lazar e convencera-o a aceitar a música.

No recontar da história, suavizara as suas dúvidas e ansiedades, reduzindo-a a uma simples

apoiante passiva. Perguntou-se se ele estaria sequer consciente dos ajustes que fizera à história,

enaltecendo automaticamente a importância do seu papel, recentrando a história em torno de si

próprio.

Lazar tomou a inteira colecção de folhas de música soltas, cerca de duzentas páginas no

total. Entre as partituras encontravam-se alguns documentos relativos ao negócio da igreja e

vários ícones originais que tinham sido escondidos e substituídos por réplicas. Dividiu

apressadamente o conteúdo da arca em três pilhas, verificando com a máxima acuidade que lhe

foi possível que as partituras se mantinham juntas. O plano era transportá-las dali para fora

clandestinamente, mais ou menos em partes iguais. Divididas em três, havia uma probabilidade

razoável de que a música sobrevivesse. A maior dificuldade era arranjar três esconderijos

distintos, três pessoas que estivessem dispostas a sacrificar as suas vidas em prol de notas escritas

numa página, sem nunca terem conhecido o compositor ou ouvido a sua música. Lazar conhecia

muitos na sua paróquia que poderiam ajudar. Muitos deles estariam provavelmente sob algum

tipo de suspeita. Para aquela tarefa precisavam da ajuda de um Soviete perfeito, de alguém cujo

apartamento nunca fosse ser revistado. Tal pessoa, a existir, nunca os ajudaria. Anisya atirou

sugestões:

— Martemian Syrtsov.

— Fala demais.

— Artiom Nakhaev.

— Ele concordaria, levaria os papéis e depois entraria em pânico, perderia a coragem e

queimá-los-ia.

— Niura Dmitrieva.

— Ela aceitaria, mas depois iria odiar-nos por lho termos pedido. Não iria conseguir

dormir, nem comer.

No final, dois nomes: foi tudo em que conseguiram concordar. Lazar decidiu guardar

parte da música escondida na igreja, junto com os ícones maiores, tornando a depositá-los na arca

13

Page 14: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

e empurrando o altar para o seu lugar. Como Lazar tinha maiores probabilidades de ser seguido,

cabia a Anisya e Maxim transportar parte da música até às duas moradas. Sairiam em separado.

Anisya estava pronta:

— Eu vou primeiro.

Maxim abanou a cabeça:

— Não. Eu irei primeiro.

Ela adivinhou a razão por que se oferecera: se Maxim conseguisse escapar, haveria

hipótese de ela também o conseguir.

Abriram a porta principal, levantando a grossa travessa de madeira. Anisya sentiu

Maxim hesitar, indubitavelmente temeroso, começava a interiorizar os perigos que enfrentava.

Lazar apertou-lhe a mão. Maxim deitou-lhe um olhar por cima do ombro do marido. Quando

Lazar terminou, Maxim aproximou-se dela.

— Boa sorte, Maxim.

Abraçou-o e viu-o entrar na noite.

Lazar fechou a porta, trancando-a atrás dele, reiterando o plano:

— Esperamos dez minutos.

Sozinha com o marido, sentou-se num banco próximo da dianteira da igreja. Ele juntou-

se-lhe. Para sua surpresa, em vez de rezar, ele segurou-lhe na mão.

#

Dez minutos depois, aproximaram-se da porta. Lazar ergueu a travessa de madeira. Os

papéis encontravam-se num saco, que ela levava a tiracolo. Anisya saiu para a rua. Já se haviam

despedido. Ela voltou-se, observando em silêncio Lazar fechar a porta atrás de si. Ouviu a

travessa de madeira assentar no lugar. Depois começou a caminhar em direcção à rua, vigiando

os rostos às janelas, os movimentos nas trevas. Uma mão segurou-lhe o pulso. Assombrada, deu

meia volta.

Era Maxim.

— Maxim?

Que faria ele ali? Onde estava a música que transportava consigo? Das traseiras da igreja

uma voz, severa e impaciente, chamou:

— Leo?

Anisya avistou um homem envergando um uniforme escuro: um agente MGB. Havia

mais homens atrás dele, apinhados como baratas. As suas questões dissiparam-se, concentrando-

14

Page 15: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

se no nome que ouvira chamar: Leo. Com o puxão de uma simples palavra o novelo de mentiras

deslindou-se. Era por isso que ele não tinha amigos ou família na cidade, era por isso que ele

estava tão calado nas lições com Lazar: ele nada sabia acerca de escrituras ou filosofia. Fora por

isso que quisera sair da igreja primeiro, não para protegê-la mas para alertar a vigilância, para

reunir a sua equipa, para preparar a prisão deles. Ele era um Chekist, um oficial da polícia

secreta. Enganara-a a ela e ao marido. Infiltrara-se nas suas vidas com o propósito de reunir

tanta informação quanto possível, não apenas sobre eles, mas também sobre as pessoas que com

eles simpatizavam, desferindo um golpe contra os restantes núcleos de resistência no interior da

Igreja. Tentar seduzi-la fora um objectivo ditado pelos seus superiores? Tê-la-iam identificado

como um alvo fraco, fácil de enganar, instruindo depois aquele belo oficial a criar uma persona –

Maxim – para manipulá-la?

Falou com voz branda, intimista, como se nada houvesse mudado entre ambos:

— Anisya, dei-te mais do que uma oportunidade. Vem comigo. Fiz alguns acordos. Eles

não estão interessados em ti. Estão atrás de Lazar.

O timbre da sua voz, carinhoso e preocupado, era aterrador. A oferta que lhe fizera

anteriormente, para fugir com ele, não fora uma fantasia ingénua. Não fora romântico. Fora o

calculismo frio de um agente. Prosseguiu:

— Segue o conselho que me deste e denuncia Lazar. Posso mentir por ti. Posso

proteger-te. É a ele que eles querem. Não vais ganhar nada com manter-te fiel. Peço-te, por

favor.

#

Leo estava a ficar sem tempo. Ela tinha de compreender que ele era a sua única hipótese

de sobrevivência, independentemente do que pensasse dele. Não ganharia nada em agarrar-se aos

seus princípios. O seu oficial superior, Nikolai Borisov, encaminhou-se para eles. Com quarenta

anos, possuía o corpo de um halterofilista envelhecido, ainda forte, muito embora desleixado com

o excesso de bebida:

— Ela está a cooperar?

Leo estendeu a mão, os seus olhos suplicando que lhe entregasse o saco.

— Por favor?

Em resposta, ela gritou tão alto quanto conseguiu:

— Lazar!

15

Page 16: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nikolai avançou um passo, esbofeteando-a com as costas da mão. Gritou aos seus

homens:

— Vão!

Os machados começaram a cravar-se na porta da igreja.

Leo viu ódio no rosto de Anisya. Nikolai arrancou-lhe o saco com um puxão.

— Ele tentou salvá-la, cabra mal agradecida.

Ela inclinou-se para diante, sussurrando ao ouvido de Leo:

— Acreditou deveras que eu poderia amá-lo? Não foi?

Os oficiais seguraram-lhe nos braços. Enquanto a levavam, ela sorriu-lhe, um sorriso

maldoso:

— Nunca ninguém o irá amar. Ninguém.

Leo voltou-lhe costas, aguardando com desespero que a levassem. Nikolai pousou-lhe

uma mão consoladora no ombro:

— De qualquer maneira, teria sido muito complicado explicar como é que ela não era

uma traidora. Complicado para si. É muito melhor assim. Melhor para si. Há mais mulheres,

Leo. Há sempre mais.

Leo tinha concluído a sua primeira prisão.

Anisya estava equivocada. Ele já era amado: pelo Estado. Não queria o amor de um

traidor: esse não era sequer amor. Engano, traição: esses eram instrumentos de um oficial. Ele

tinha um direito legítimo a eles. O seu país dependia da traição. Antes de se tornar agente do

MGB, fora soldado e experienciara a necessidade de violência na derrota do Fascismo. Mesmo a

mais terrível das coisas podia ser desculpada pelo bem maior que estas serviam.

Entrou na igreja. Em lugar de tentar escapar, Lazar ajoelhara-se diante do altar, rezando,

aguardando o seu destino. Ao ver Leo, o seu ar de desafio altivo dissipou-se. Naquele momento

de compreensão pareceu envelhecer vários anos:

— Maxim?

Pela primeira vez desde que se conheciam, procurou respostas no seu protegido:

— O meu nome é Leo Stepanovich Demidov.

Lazar permaneceu em silêncio durante vários segundos. Por fim, disse:

— Foi-me recomendado pelo Patriarca?

— O Patriarca Krasikov é um bom cidadão.

Lazar abanou a cabeça, recusando-se a acreditar naquelas palavras. O Patriarca era um

informador. O seu protegido era um espião que lhe fora enviado pela mais proeminente figura

religiosa do país. Fora sacrificado ao Estado, do mesmo modo que a Igreja de Sancta Sophia fora

16

Page 17: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

sacrificada. Era um idiota, aconselhando outros para que tivessem cuidado, pregando cautela

quando mesmo a seu lado, tirando notas, se encontrava um oficial do MGB.

Nikolai avançou:

— Onde estão os restantes papéis?

Leo gesticulou para o altar:

— Por baixo.

Três agentes desviaram-no para o lado, descobrindo a arca. Nikolai indagou:

— Ele deu-te mais alguns nomes?

Leo respondeu:

— Martemian Syrtsov. Artiom Nakhaev. Niura Dmitrieva. Moisei Semashko.

Vislumbrou o rosto de Lazar: o choque transformava-se em repulsa. Leo aproximou-se

dele:

— Mantenha os olhos no chão!

Lazar não se voltou. Leo empurrou-lhe a cabeça para baixo.

— Olhos no chão!

Lazar tornou a erguer a cabeça. Desta feita, Leo desferiu-lhe um murro. Lentamente, de

lábio aberto, Lazar tornou a erguer a cabeça, gotejando sangue, olhando para ele, repulsa

mesclada com desafio. Leo respondeu, como se os olhos de Lazar lhe fizessem uma pergunta:

— Eu sou um bom homem.

Segurando o seu mentor pelos cabelos, Leo não se deteve, murro após murro,

continuando mecanicamente como um soldado de corda, repetindo a mesma acção uma e outra

vez, até lhe doerem os nós dos dedos, até os seus braços ficarem doridos, e a face de Lazar se

tornar mole. Quando finalmente parou e o soltou, Lazar caiu por terra, uma poça de sangue a

formar-se em torno da sua boca, com a forma de um balão de fala.

Nikolai passou um braço pelo ombro de Leo, observando Lazar a ser carregado para fora,

ao mesmo tempo que deixava um rasto de sangue do altar até à porta. Nikolai acendeu um

cigarro.

— Leo, o Estado precisa de pessoas como nós.

Meio entorpecido, Leo limpou o sangue das calças, comentando:

— Antes de irmos, gostaria de um momento para revistar a igreja.

Nikolai aceitou a proposta sem protestar.

— Um perfeccionista, excelente. Mas despacha-te. Esta noite vamos beber. Há dois

meses que não bebes nada! Tens vivido como um monge!

17

Page 18: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nikolai riu-se da sua própria piada, dando palmadinhas nas costas de Leo, antes de se

encaminhar para a saída. A sós, Leo dirigiu-se para o altar que fora desviado, de olhos fixos no

buraco. Presa entre o flanco da arca e a parede de terra encontrava-se uma única folha de papel.

Inclinou-se, apanhando-a. Era uma página de música. Correu os olhos pelas notas. Decidindo

que era melhor não saber o que se perdera, ergueu a folha acima da chama de uma vela próxima,

observando o papel a enegrecer.

18

Page 19: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Sete anos depois

19

Page 20: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

MOSCOVO

12 de Março de 1956

Suren Moskvin era gerente de uma pequena tipografia académica e tornara-se conhecido

por produzir manuais escolares da mais reles qualidade, usando tinta que se esborratava e um

papel finíssimo, tudo seguro por uma lombada de cola que começava a deixar cair as páginas

poucas horas depois de se abrir o livro. Não por ser preguiçoso ou incompetente, pelo contrário:

começava a trabalhar logo cedo pela manhã e terminava a tardas horas da noite. A razão por que

os livros eram tão miseráveis encontrava-se nas matérias-primas que o Estado lhe fornecia.

Embora o conteúdo das publicações académicas fosse cuidadosamente controlado, não era

considerado um expediente prioritário. Fechado num sistema de quotas, Suren era forçado a

produzir um grande número de livros a partir da pior categoria de papel, num período de tempo o

mais curto possível. A equação nunca mudara e ele estava à sua mercê, extremamente

constrangido por a sua reputação ter descido tão baixo. Contavam-se piadas: com dedos

manchados de tinta, estudantes e professores gracejavam que os livros de Moskvin ficavam

sempre com a pessoa. Ridicularizado, nos últimos tempos sentia dificuldades em levantar-se da

cama. Não se alimentava como deve de ser. Bebia durante todo o dia, as garrafas escondidas nas

gavetas, por detrás das prateleiras dos livros. Com cinquenta e cinco anos, descobrira algo novo

sobre si: não tinha estômago para a humilhação pública.

Estava a inspeccionar as máquinas impressoras linótipo, cismando nas suas falhas,

quando reparou num jovem parado à porta. Suren dirigiu-se-lhe na defensiva:

— Sim? O que foi? Não é normal estar aí parado sem se fazer anunciar.

O homem avançou, num traje tipicamente estudantil, um casaco comprido e um lenço

preto barato. Segurava um livro, estendido. Suren arrancou-lho das mãos, preparando-se para

mais reclamações. Deitou uma olhadela à capa: O Estado e a Revolução de Lenine. Tinha sido

impresso um novo volume ainda na semana passada, distribuído há coisa de um dia ou dois atrás,

e aquele homem, ao que parecia, era o primeiro a detectar qualquer coisa mal. Um erro numa

obra fundamental era um assunto grave: durante o governo de Estaline, um erro era quanto

bastava para garantir a prisão. O estudante inclinou-se para diante e abriu o livro, folheando-o

para as primeiras páginas. No frontispício havia uma fotografia a preto e branco. O estudante

comentou:

— O texto por baixo diz que é uma fotografia de Lenine mas…como pode ver…

20

Page 21: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Na fotografia encontrava-se um homem que não se parecia nada a Lenine, um homem de

pé, encostado a uma parede, uma parede completamente branca. Os cabelos estavam revoltos.

Os olhos desvairados.

Suren fechou o livro bruscamente, voltando-se para o estudante:

— Julgas que poderia ter imprimido mil cópias deste livro com a fotografia errada? Por

quem te tomas! Qual é o teu nome? Porque é que estás a fazer isto? Os meus problemas devem-

se aos limites dos meus materiais, não a desleixo!

Ao recuar, o livro embateu-lhe no peito, fazendo com que lenço que trazia enrolado ao

pescoço se soltasse, revelando a ponta de uma tatuagem. A visão fez Suren deter-se. Uma

tatuagem era incongruente com a, de resto, típica aparência de um estudante. Ninguém, com

excepção dos vory, criminosos profissionais, marcaria a pele daquela forma.

Passada a impetuosa indignação de Suren, o homem aproveitou-se da sua hesitação e

apressou-se a sair. Com pouco entusiasmo, Suren seguiu-o, ainda de livro na mão, observando a

misteriosa figura desaparecer na noite.

Apreensivo, fechou a porta e trancou-a à chave. Algo o perturbava: aquela fotografia.

Tirou os óculos, abriu o livro e perscrutou o rosto um pouco mais de perto: aqueles olhos

aterrorizados. Como um navio fantasma emergindo lentamente de um denso mar de nevoeiro, a

identidade daquele homem surgiu perante si. Conhecia aquele homem. O seu rosto era-lhe

familiar. O seu cabelo e olhos estavam naquele estado selvagem porque fora preso e arrastado

para fora da cama. Suren reconheceu a fotografia porque fora ele quem a tirara.

Ele não fora sempre tipógrafo. Antes disso, estivera ao serviço do MGB. Vinte anos de

serviço leal, a sua carreira na polícia secreta prolongara-se por mais tempo do que a de muitos

dos seus superiores. Realizando uma variedade de tarefas banais – limpar celas, fotografar os

prisioneiros – a sua baixa patente fora uma vantagem, e ele fora suficientemente sagaz para não

mostrar pretensões de maior responsabilidade, para nunca dar nas vistas, escapando às purgas

cíclicas dos escalões mais elevados. Haviam-lhe sido exigidas coisas difíceis e ele cumprira as

suas obrigações com perseverança. Naquela época, ele era um homem a temer. Ninguém se

atreveria a fazer piadas acerca de si. Por razões de saúde, fora obrigado a reformar-se. Embora

recebesse uma boa remuneração e vivesse confortavelmente, achara a ociosidade intolerável.

Deitado na cama, sem que houvesse qualquer propósito no seu dia, a mente perdia-se em

digressões, arrastada para o passado, recordando-se de rostos como aquele que agora se

encontrava cravado naquele livro. A solução era manter-se ocupado com encontros e

compromissos. Precisava de uma ocupação. Não queria entregar-se a reminiscências.

21

Page 22: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Fechou o livro e enfiou-o no bolso. O que se passava naquele dia? Não podia ser mera

coincidência. Apesar da sua falha em produzir um livro ou um jornal de mínima qualidade, fora-

lhe inesperadamente pedido para publicar um importante documento de Estado. Não lhe fora

comunicada a natureza do documento. Contudo, o prestígio de tal tarefa requeria recursos de

elevada qualidade: bom papel e tinta. Finalmente era-lhe dada a oportunidade de produzir

qualquer coisa de que se pudesse orgulhar. Viriam entregar o documento naquela noite. E

alguém invejoso estava a tentar denegri-lo, logo agora que a sua sorte estava prestes a mudar.

Saiu da fábrica e encaminhou-se apressadamente para o escritório, alisando

cuidadosamente o fino cabelo para o lado. Envergava o seu melhor fato: possuía apenas dois, um

para o dia-a-dia, e outro para ocasiões especiais. Aquela era uma ocasião especial. Não precisara

de ajuda para se levantar da cama nesse dia. Acordou antes da mulher. Barbeou-se, trauteando

uma melodia. Tomou um pequeno-almoço completo, o primeiro em semanas. Quando chegou

de manhã à fábrica, tirou a garrafa de vodca da gaveta e despejou-a na pia, antes de passar o dia a

limpar, a esfregar o chão e a tirar o pó, removendo as manchas de gordura das máquinas linótipo.

Os seus filhos, ambos estudantes universitários, tinham vindo visitá-lo, impressionados com a

transformação. Suren lembrou-os de que era uma questão de princípio manter o local de trabalho

impecável. O local de trabalho era onde uma pessoa revia a sua identidade e o sentido de si.

Despediram-se dele com um beijo, desejando-lhe boa sorte com a enigmática nova encomenda.

Por fim, depois de muitos anos de secretismo e dos recentes anos de fracasso, estavam finalmente

orgulhosos dele.

Consultou o relógio. Eram sete da noite. Estariam ali a qualquer minuto. Tinha de se

esquecer do estranho e da fotografia, não era importante. Não podia deixar que isso o distraísse.

Subitamente, desejou não ter deitado a vodca fora. Uma bebida tê-lo-ia acalmado. Por outro

prisma, poderiam tê-la cheirado no seu hálito. Era melhor não ter nada, era melhor estar nervoso:

mostrava que levava o seu trabalho a sério. Suren pegou na garrafa de Kvass. Uma cerveja de

pão de centeio sem álcool: teria de servir.

Na sua pressa, e com a trémula coordenação de movimentos provocada pela abstinência

de álcool, derrubou uma caixa de moldes de letras de aço. Esta tombou da secretária, e o seu

conteúdo espalhou-se pelo chão de pedra.

Tlim, Tlim

O corpo retesou-se-lhe. Suren já não se encontrava no seu escritório: achava-se agora

num estreito corredor de tijolos, com uma série de portas de aço num dos lados. Recordou-se

22

Page 23: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

daquele lugar: a Prisão Oriol, onde fora guarda aquando da eclosão da Grande Guerra Patriótica.

Ele e os seus colegas, forçados a bater em retirada com a rápida aproximação do exército alemão,

tinham recebido ordens para liquidar a população de reclusos, sem deixar nenhum recruta

solidário para os invasores Nazis. Enquanto os edifícios eram bombardeados por Stukas e

Panzers a uma distância muito próxima, eles enfrentavam o quebra-cabeças logístico de eliminar

vinte celas apinhadas de centenas de criminosos políticos numa questão de minutos. Não havia

tempo para balas ou cordas. A ideia de usarem granadas fora sua: duas atiradas para o interior de

cada cela. Atravessou o corredor direito à porta, puxou a pequena grade de aço e atirou-as lá para

dentro – tlim, tlim – o som da granada a embater no chão de cimento. Depois, precipitou-se a

fechar a grade, para que não pudessem ser atiradas para fora, e correu até ao fundo do corredor,

para se afastar da explosão, ao mesmo tempo que imaginava os homens a tentar

atabalhoadamente alcançar as granadas, os seus dedos imundos escorregadios, tentando atirá-las

pela pequena janela gradeada.

Suren tapou os ouvidos com força, como se tal pudesse deter aquela memória. Mas o

barulho persistia, cada vez mais alto, granadas a embater no chão de cimento, cela após cela, após

cela.

Tlim, Tlim, Tlim, Tlim

Gritou:

— Parem!

Quando afastou as mãos dos ouvidos, apercebeu-se de que estava alguém a bater à porta.

23

Page 24: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

13 de Março

O pescoço da vítima tinha sido devassado por uma série de cortes fundos, irregulares.

Não havia ferimentos acima ou abaixo do que restava do pescoço do homem, dando a impressão

contraditória de frenesi e controlo. Considerando a ferocidade do ataque, apenas uma pequena

quantidade se sangue se espalhara à esquerda e à direita das incisões, formando uma poça com a

forma de asas esvoaçantes de anjos. O assassino parecia ter derrubado a vítima ao chão,

imobilizando-o nessa posição, continuando a cortá-lo, muito depois de Suren Moskvin – de

cinquenta e cinco anos, gerente de uma pequena tipografia académica – ter morrido.

O seu corpo fora encontrado nesse dia, de manhã cedo, quando os seus filhos, Vsevolod e

Akvsenti, entraram no estabelecimento, preocupados por o pai não ter regressado a casa.

Perturbados, tinham contactado a milícia, que se deparara com um escritório virado do avesso: as

gavetas arrancadas da secretária, papéis espalhados pelo chão, armários de arquivo abertos.

Concluíram que se tratara de um assalto desorganizado. Só ao final da tarde, cerca de sete horas

depois da descoberta, a milícia contactou enfim o departamento de homicídios, chefiado pelo ex-

agente do MGB, Leo Stepanovich Demidov.

Leo estava habituado àquele tipo de atrasos. Criara o departamento de homicídios três

anos antes, usando da influência que ganhara ao resolver os crimes de mais de quarenta e quatro

crianças. Desde a sua criação que a relação do departamento com a milícia comum era

problemática. A cooperação era errática. A própria existência daquele departamento era

considerada por muitos oficiais da milícia e do KGB como uma insinuação de um grau de

criticismo inaceitável, tanto do seu trabalho como do do Estado. Em rigor, estavam certos. A

motivação de Leo para criar aquele departamento partira de uma reacção contra o seu trabalho

enquanto agente. Prendera muitos civis durante a sua anterior carreira, prisões essas que fizera

com base em simples listas de nomes dactilografadas, que lhe eram entregues pelos seus

superiores. O departamento de homicídios, pelo contrário, procurava uma verdade baseada em

evidências, não uma verdade politizada. O dever de Leo era apresentar os factos de cada caso aos

seus superiores. O que eles faziam com essa verdade, era com eles. No fundo, alimentava a

esperança de um dia conseguir equilibrar os registos das prisões, de o número de culpados

ultrapassar o de inocentes. Mesmo calculando por baixo, tinha um longo caminho a percorrer.

24

Page 25: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

As liberdades garantidas ao departamento de homicídios resultavam de o seu trabalho

estar sujeito ao mais elevado nível de secretismo. Reportavam directamente a a altos cargos no

ministério do Interior, operando como uma subdepartamento clandestino do Ministério Central de

Investigações Criminais. A esmagadora maioria da população ainda precisava de acreditar na

evolução da sociedade. A diminuição dos índices de criminalidade era uma doutrina dessa

crença. Portanto, os factos contraditórios eram filtrados da consciência nacional. Nenhum

cidadão podia contactar o departamento de homicídios porque nenhum cidadão sabia que aquele

existia. Por esta razão, Leo não podia emitir requisições de informação nem pedir às testemunhas

que se apresentassem, uma vez que tais acções equivaleriam a propagandear a existência do

crime. A liberdade que lhe fora garantida era bastante peculiar e Leo, que fizera tudo ao seu

alcance para pôr a sua carreira na polícia secreta para trás das costas, encontrava-se agora a dirigir

um tipo de polícia secreta muito diferente.

Apreensivo com a explicação preliminar que fora encontrada para a morte de Moskvin,

Leo estudou a cena do crime e os seus olhos fixaram-se na cadeira. Esta encontrava-se

despercebidamente arrumada diante da secretária, com o assento ligeiramente inclinado.

Aproximou-se, agachando-se, e passou com o dedo por uma fina linha fracturada numa das

pernas de madeira. Ao testar timidamente o seu peso, empurrando-a na parte traseira, a perna

cedeu imediatamente. A cadeira estava partida. Se alguém se tivesse sentado nela, teria caído.

Contudo, estava arrumada diante da secretária como se estivesse em perfeito estado de

conservação.

Voltou a concentrar as suas atenções no corpo, pegando nas mãos da vítima. Não havia

cortes, nem arranhões: nenhum sinal de que o homem se tentara defender. Leo ajoelhou-se,

aproximando-se do pescoço da vítima. Quase não restava pele, com excepção da nuca, a zona

que tocava no chão, protegida de repetidos cortes. Leo pegou numa faca, forçando-a por debaixo

do pescoço da vítima e quando retirou a lâmina, esta trazia um pequeno pedaço de pele que não

tinha sido cortado. Estava escoriado. Retirou a faca e, preparava-se para se levantar, quando

divisou o bolso do fato do morto. Enfiou a mão lá dentro, retirando um livro delgado: O Estado e

a Revolução de Lenine. Ainda antes de o abrir, descobriu que havia algo de invulgar na

encadernação: tinha sido colada uma página. Ao folhear para a página em questão, viu a

fotografia de um homem desgrenhado. Embora Leo não tivesse ideia de quem era o homem,

reconheceu de imediato o tipo de fotografia: o pano de fundo muito branco, a expressão

desorientada do suspeito. Era a fotografia de um homem que fora detido.

Desnorteado com aquela anomalia cuidadosamente preparada, ergueu-se. Timur

Nesterov entrou na sala, deitando um olhar ao livro:

25

Page 26: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Alguma coisa importante?

— Não sei ao certo.

Timur era o colega e amigo mais chegado de Leo. A amizade que se desenvolvera entre

eles era do tipo discreto. Não bebiam juntos, não gracejavam um com o outro nem falavam

muito, excepto sobre trabalho: uma parceria acompanhada de longos silêncios. A um observador

exterior poderia parecer que nem sequer eram amigos e para um cínico tal atitute denunciava a

existência de um ressentimento nas suas relações. Leo era quase dez anos mais novo do que

Timur, e era agora seu superior, apesar de ter sido, em tempos, seu subordinado. Tratava-o

sempre, com formalidade, por General Nesterov. Objectivamente, Leo fora quem mais

beneficiara do seu sucesso conjunto. Havia quem inisuasse que ele era um individuo oportunista,

um individualista a quem só interessava a carreira. Timur, porém, não mostrava inveja. A

questão do posto era meramente incidental. Sentia-se orgulhoso do seu trabalho e o sustento da

família estava assegurado. Quando se mudara para Moscovo conseguira enfim, depois de

langorosas listas de espera, que lhe fosse designado um apartamento moderno, com água quente

corrente, canalização decente e corrente eléctrica durante as vinte e quatro horas do dia.

Independentemente do que a sua relação parecesse aos olhos dos outros: ambos confiavam as

suas vidas ao outro.

Timur apontou em direcção ao piso da fábrica principal onde se erguia uma torre de

máquinas linótipo, gigantescos insectos metálicos:

— Os filhos chegaram.

— Trá-los cá.

— Com o corpo do pai deles estendido no chão?

— Sim.

Os rapazes tinham sido autorizados a sair do local, enviados para casa pela milícia antes

que Leo pudesse questioná-los na cena do crime. Pediria desculpa por terem de ver o corpo do

pai novamente, mas não tinha intenção de confiar nas informações em segunda mão que lhe

tinham sido passadas pela milícia. Além do mais, estava curioso para observar as suas reacções.

Convocados, Vsevolod e Akvsenti – ambos dos seus vinte e poucos anos – apareceram à

porta, lado a lado. Leo apresentou-se:

— Sou o Oficial Leo Demidov. Compreendo que isto deva ser muito difícil.

Nenhum deles olhou para o corpo do pai, mantendo os olhos fixos em Leo. O mais

velho, Vsevolod, falou:

— Já respondemos às perguntas da milícia.

26

Page 27: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— As minhas perguntas não demoram muito. Esta sala está tal e qual a encontraram

esta manhã?

— Sim, está tudo na mesma.

Vsevold era o único que falava. Akvsenti permanecia em silêncio, erguendo os olhos

ocasionalmente. Leo prosseguiu:

— Esta cadeira estava à mesa? Pode ter sido derrubada, na luta talvez?

— Na luta?

— Entre o seu pai e o assassino?

Fez-se silêncio. Leo prosseguiu:

A cadeira está partida. Se se sentasse nela, ter-se-ia partido. Não é estranho que se

tenha uma cadeira partida diante de uma secretária? Não nos podemos sentar nela.

Ambos os filhos se voltaram para a cadeira. Vsevold respondeu:

— Trouxe-nos de volta para falar sobre a cadeira?

— A cadeira é importante. Acredito que o seu pai a usou para se enforcar.

Aquela sugestão devia ter sido absurda. Os filhos deviam ter ficado indignados. Porém,

permaneceram em silêncio. Pressentir que a sua especulação era acertada, Leo reafirmou a sua

teoria:

— Julgo que o vosso pai se enforcou: talvez o tenha feito numa viga do tecto da fábrica.

Subiu à cadeira e depois pontapeou-a de debaixo dos pés. Vocês encontraram o corpo esta

manhã. Arrastaram-no até aqui, tornaram a colocar a cadeira no sítio, mas não repararam que

estava partida. Seguidamente, um de vocês, ou os dois, cortaram-lhe o pescoço na tentativa de

encobrir as marcas das queimaduras da corda. O escritório foi encenado como se tivesse sido

assaltado.

Os jovens eram promissores estudantes, e o suicídio do pai poderia ter acabado com as

suas carreiras e destruído os seus projectos. Seriam infamados pelo estigma. Suicídio, tentativa

de suicídio, depressão – ou mesmo exprimir o desejo de se acabar com a vida – todas essas coisas

eram consideradas ofensas ao Estado. O suicídio, tal como o homicídio, não tinha lugar na

evolução de uma sociedade mais elevada.

Os filhos estavam evidentemente a tentar decidir se era ou não possível negar a alegação.

Leo suavizou o tom de voz:

— Uma autópsia irá revelar que tem a coluna partida. Tenho de investigar este suicídio

tão rigorosamente como faria no caso de um homicídio. A razão para este suicídio preocupa-

me, não o vosso compreensível desejo de o encobrirem.

O filho mais novo, Aksventi, respondeu, falando pela primeira vez:

27

Page 28: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Cortei-lhe a garganta.

O jovem prosseguiu:

— Estava a descê-lo da corda. E então compreendi o que ele fizera às nossas vidas.

— Fazem alguma ideia por que se suicidou?

— Bebia muito. Estava deprimido por causa do trabalho.

Estavam a dizer a verdade, porém esta estava incompleta, quer por ignorância ou

manipulação deliberada. Leo insistiu no assunto:

— Um homem de cinquenta e cinco anos não se suicida porque os leitores têm tinta nos

dedos. O vosso pai sobreviveu a problemas muito maiores do que esse.

O filho mais velho enfureceu-se:

— Passei anos a estudar para ser médico. Tudo para nada: não haverá hospital que me

contrate.

Leo acompanhou-os à saída do escritório, e encaminhou-os para o piso da fábrica, longe

da vista do corpo do pai:

— Não ficaram alarmados com o facto de o vosso pai não ter regressado a casa até de

manhã. Já estavam à espera que trabalhasse até tarde ou teriam ficado preocupados ontem à

noite. Se assim é, porque é que não há páginas prontas a imprimir? Há aqui quatro máquinas

linótipo. Ora, eu não estou a ver aqui páginas nenhumas. Não há nada que indique que tenha

estado a trabalhar.

Aproximaram-se das imensas máquinas. Na fronte havia um aparelho idêntico a uma

máquina de escrever, um teclado. Leo dirigiu-se aos filhos:

— Neste momento estão a precisar de amigos. Não posso deixar passar o suicídio do

vosso pai. Mas posso solicitar aos meus superiores que evitem que as suas acções afectem as

vossas carreiras. Os tempos mudaram: os erros do vosso pai não têm de se reflectir nas vossas

vidas. Mas primeiro têm de fazer por merecer a minha ajuda. Contem-me o que se passou. No

que é que o vosso pai estava a trabalhar?

O rapaz mais novo encolheu os ombros:

— Estava a trabalhar num documento de Estado qualquer. Não o lemos. Destruímos

todas as páginas que ele preparara. Não tinha terminado. Pensámos que talvez estivesse

deprimido porque ia imprimir mais um jornal de má qualidade. Queimámos a cópia de papel.

Derretemos a composição do texto. Não sobrou nada. Esta é a verdade.

Recusando-se a desistir, Leo apontou para a máquina:

— Em que máquina estava ele a trabalhar?

— Nesta aqui.

28

Page 29: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Mostra-me como funciona.

— Mas é como lhe dissemos: destruímos tudo.

— Por favor.

Aksventi lançou um olhar ao irmão, procurando evidentemente a sua permissão. O irmão

anuiu:

— O texto é introduzido aqui no teclado. À medida que se vão introduzindo as letras, a

máquina vai deixando cair as respectivas matrizes na parte de trás, onde ficam alinhadas, pela

ordem em que foram caindo. Cada linha é formada por matrizes individuais, e os espaços são

dados por placas de chumbo sem gravações. Uma vez terminada a linha, carrega-se nesta

alavanca que eleva a linha até à secção de fundição onde é moldado um só bloco de chumbo e

estanho. Essas linhas são colocadas nesta caixa, até se ter uma página inteira de texto. A

página de aço é então coberta de tinta e o papel rola por cima: o texto é impresso. Mas, como

lhe dissemos, derretemos as páginas todas. Não sobrou nada.

Leo circundou a máquina. Os seus olhos seguiram o processo mecânico, uma colecção

de matrizes de letras para compor uma linha. Perguntou:

— Quando introduzo o texto no teclado, as matrizes de letras são reunidas nesta caixa?

— Sim.

— É verdade que não há linhas completas de texto. Essas foram destruídas. Mas vejo

aqui uma linha parcial, uma linha que não foi acabada.

Leo estava a apontar para uma fileira incompleta de matrizes de letras.

— O vosso pai estava a meio de uma linha.

Os filhos espreitaram para a máquina. Leo tinha razão.

— Quero imprimir estas palavras.

O filho mais velho começou a bater na barra de espaços, observando:

— Se acrescentarmos material branco ao final da linha, teremos o comprimento

completo, pronto para fundir um bloco.

As matrizes individuais de espaços foram acrescentadas à linha incompleta até a caixa

estar cheia. Um pistão injectou chumbo derretido no molde, saindo uma linha composta: as

últimas palavras de Suren Moskvin assentadas antes de tirar a própria vida.

O bloco-linha estava virado de lado, as letras estavam inclinadas de uma forma que não

se viam. Leo perguntou:

— Está quente?

— Não.

29

Page 30: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo pegou na linha composta, colocando-a na caixa. Cobriu a superfície com tinta e

colocou uma única folha de papel branco sobre esta, pressionando.

Cuidadosamente, voltou a página.

30

Page 31: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Sentado à mesa da cozinha, Leo olhava fixamente para a folha de papel. Três palavras

era tudo o que restava do documento que levara Suren Moskvin a tirar a própria vida:

Sob tortura, Eikhe

Leo tinha lido as palavras vezes sem conta, incapaz de desviar delas os olhos. Mesmo

descontextualizadas, o seu efeito era hipnótico. Quebrando o seu feitiço, afastou a folha de papel

para o lado e pegou na pasta, pousando-a na horizontal sobre a mesa. No seu interior,

encontravam-se dois dossiês secretos. Para poder ter acesso a eles, precisara de autorização. Não

tinha sido difícil obtê-la no caso do primeiro, sobre Suren Moskvin. Contudo, o segundo

levantara algumas questões. O segundo dossiê que requisitara era sobre Robert Eikhe.

Ao abrir o primeiro conjunto de documentos, sentiu o peso do passado daquele homem, o

número de páginas acumuladas sobre ele. Moskvin tinha sido oficial da Segurança Estatal – tal

como Leo –, um Chekist, e estivera ao serviço durante muito mais tempo do que ele, mantendo o

seu emprego, ao passo que centenas de oficiais tinham sido abatidos. Junto com o dossiê havia

uma lista: as denúncias que Moskvin fizera ao longo da sua carreira:

Nestor Iurovsky. Vizinho. Executado

Rozalia Reisner. Amiga. 10 anos

Iakov Blok. Comerciante. 5 anos

Karl Uritsky. Colega. Guarda. 10 anos

Dezanove anos de serviço, duas páginas de denúncias e quase cem nomes – porém, só

tinha dado o nome de um familiar uma única vez.

Iona Radek. Prima. Executada

Leo reconheceu uma técnica: as datas das denúncias eram aleatórias, muitas calhavam no

mesmo mês, e depois nada durante vários meses. O espaçamento caótico era deliberado, ocultava

um cuidadoso calculismo. Denunciar a prima tinha sido quase de certeza uma decisão

31

Page 32: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

estratégica. Moskvin tinha de garantir que não parecia que a sua lealdade para com o Estado

acabava na família. Para conferir credibilidade à sua lista, a prima tinha sido sacrificada:

defendera-se assim da acusação que ele apenas nomeara pessoas que não o interessavam

pessoalmente. Aquele homem era um sobrevivente consumado, e o seu suicídio parecia uma

improbabilidade.

Ao verificar as datas e locais onde Moskvin trabalhara, Leo recostou-se na cadeira,

surpreendido. Tinham sido colegas: ambos se encontravam no Lubyanka, sete anos antes. Os

seus caminhos nunca se haviam cruzado, pelo menos não que se recordasse. Leo era

investigador, fazia prisões, seguia suspeitos. Moskvin era guarda, transportava prisioneiros,

supervisionava a sua detenção. Leo fizera todos os possíveis para evitar as celas de interrogação

na cave, como se acreditasse que as tábuas do soalho o protegiam das actividades realizadas por

baixo, dia após dia. Se o suicídio de Moskvin era uma expressão de culpa, o que desencadeara

tais sentimentos extremos depois de tanto tempo? Leo fechou a pasta, voltando a sua atenção para

o segundo arquivo.

O dossiê de Robert Eikhe era mais grosso, mais pesado, no frontispício lia-se

CONFIDENCIAL, as páginas estavam atadas como que para manter algo pernicioso recluso no

interior. Leo desenrolou nervosamente o cordel. O nome parecia-lhe familiar. Folheando as

páginas, reparou que Eikhe fora um membro do partido desde 1905 – antes da revolução –, na

altura em que ser um membro do Partido Comunista implicava o exílio ou a execução. A sua

ficha era impecável: um ex-candidato ao Comité Central do Politburo. Não obstante, tinha sido

preso no dia 29 de Abril de 1938. Manifestamente, aquele homem não era um traidor. E, no

entanto, Eikhe confessara: o protocolo estava no dossiê, página e páginas detalhando as suas

actividades anti-soviéticas. Leo esboçara demasiadas confissões pré-preparadas para não

reconhecer que aquilo era o trabalho de um agente, pontuado de frases feitas – sinais do estilo

interno, uma minuta onde qualquer pessoa podia ser forçada a assinar o seu nome. Folheando

para diante, encontrou uma declaração de inocência escrita por Eikhe enquanto estivera detido.

Ao contrário da confissão, a prosa era humana, desesperada, um amontoado de louvores

compassivos ao Partido, proclamando o amor pelo Estado e apontando com tímida modéstia a

injustiça da sua prisão. Leo leu-a, quase sem conseguir respirar:

Por não ser capaz de suportar as torturas a que fui submetido por Ushakov e Nikolayev

– especialmente pelo anterior, que se aproveitou de as minhas costelas partidas não estarem

ainda bem curadas, inflingindo-me uma dor terrível – fui forçado a acusar-me a mim próprio e

outros.

32

Page 33: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo sabia o que se seguiria.

No dia 4 de Fevereiro de 1940, Eikhe tinha sido fuzilado.

#

Raisa estava de pé, a observar o marido. Absorto nos dossiês confidenciais, não tinha

notado a sua presença. Aquela visão de Leo – pálido, tenso, de ombros corcovados sobre os

documentos secretos, o destino de outras pessoas nas suas mãos – podia ter sido retirada do

infeliz passado de ambos. Sentia-se tentada a reagir como reagira tantas outras vezes antes,

afastando-se, evitando-o e ignorando-o. O afluxo de más memórias atingiu-a como uma espécie

de náusea. Lutou contra essa sensação. Leo já não era esse homem. Ela já não estava presa

nesse casamento. Avançou alguns passos e estendeu a mão, pousando-a no ombro do marido,

elegendo-o o homem que ela aprendera a amar.

Leo retraiu-se ao seu toque. Não tinha dado notícia da entrada da mulher. Apanhado de

surpresa, sentiu-se exposto. Ergueu-se abruptamente, ao mesmo tempo que a cadeira produzia

um estrépito atrás dele. Olhando-a nos olhos, sentiu o seu nervosismo. Não queria que ela se

voltasse a sentir assim. Devia ter-lhe explicado o que estava a fazer. Caíra de novo nos velhos

hábitos: silêncio e segredos. Rodeou-a com os braços. De cabeça encostada ao seu ombro, sabia

que ela espreitava os arquivos pousados em cima da mesa. Explicou:

— Um homem matou-se, um eis agente da MGB.

— Alguém que conhecias?

— Não de que me recorde.

— Tens de investigar?

— O suicídio é tratado como…

Ela interrompeu-o:

— Quero dizer… tens de ser tu a fazê-lo?

Raisa queria que ele entregasse o caso a outra pessoa, que não tivesse nada a ver com o

MGB, nem mesmo indirectamente. Ele recuou.

— O caso não vai demorar muito.

Ela assentiu com um gesto de cabeça, antes de mudar de assunto:

— As meninas estão na cama. Vais ler-lhes? Ou estás ocupado?

— Não, não estou ocupado.

33

Page 34: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo tornou a guardar os dossiês na pasta. Quando passou junto da mulher, inclinou-se

para beijá-la, um beijo que ela bloqueou gentilmente com um dedo, olhando-o nos olhos. Não

disse nada, antes de desviar o dedo e de o beijar – um beijo que subentendia que ele lhe fizera a

mais inquebrável e sagrada das promessas.

Quando entrou no seu quarto, guardou os dossiês num lugar seguro, um velho hábito.

Depois, porém, mudou de ideias e resolveu deixá-los em cima da mesa-de-cabeceira, no caso de

Raisa os querer ler. Regressou apressadamente ao corredor, encaminhando-se para o quarto das

filhas, ao mesmo tempo que tentava suavizar a tensão do seu rosto. De sorriso largo, abriu a

porta.

Leo e Raisa tinham adoptado duas meninas pequenas. Zoya tinha agora catorze anos e

Elena, sete. Aproximou-se da cama de Elena, esticando-se junto a esta para retirar um livro do

armário, uma história infantil de Yury Strugatsky. Abriu o livro e começou a ler em voz alta.

Quase imediatamente Zoya interrompeu-o:

— Já ouvimos essa antes.

Esperou um momento, antes de acrescentar:

— Detestamo-la da primeira vez.

A história era sobre um menino que queria ser mineiro. O pai do garoto, também

mineiro, tinha morrido num acidente e a mãe temia muito que o seu filho enveredasse por uma

profissão tão perigosa. Zoya tinha razão. Leo já a tinha lido antes. Zoya resumiu,

desdenhosamente:

— O filho acaba por escavar mais carvão do que alguém jamais escavara, torna-se um

herói nacional e dedica o seu prémio à memória do pai.

Leo fechou o livro.

— Tens razão. Não é muito bom. Mas Zoya, embora possas dizer o que quiseres dentro

desta casa, tem mais cuidado lá fora. Exprimir opiniões críticas, mesmo sobre assuntos banais,

como uma história infantil, é perigoso.

— Vais prender-me?

Zoya nunca aceitara Leo enquanto seu guardião. Nunca o perdoara pela morte dos seus

pais. E nem tão pouco Leo se referia a si próprio como pai delas. Zoya tratava-o por Leo

Demidov, dirigindo-se a ele com formalidade, pondo tanta distância entre eles quanto lhe era

possível. Aproveitava todas as oportunidades para lhe recordar que estava a viver com ele por

razões práticas, a usá-lo como um meio para atingir um fim: proporcionar conforto material à

irmã, libertá-la do orfanato. Ainda assim, assegurava-se de que nada a impressionava, nem o

apartamento, nem os seus passeios, saídas ou refeições. Tão severa quanto bonita, não havia a

34

Page 35: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

menor suavidade na sua aparência. A infelicidade perpétua parecia ser de importância vital para

ela. Leo pouco podia fazer para encorajá-la a pôr tudo para trás das costas. Esperava que a

determinada altura as suas relações melhorassem lentamente. E ainda estava à espera. Esperaria,

se fosse preciso, o resto da vida.

— Não, Zoya, eu já não faço isso. E nunca mais o farei.

Leo inclinou-se para o chão, apanhando um dos jornais de Detskaya Literatura, uma

publicação nacional para crianças. Antes que pudesse começar, Zoya atalhou:

— Porque é que não inventa uma história? Gostaríamos muito, não é Elena?

Elena chegara a Moscovo ainda muito pequena, com quatro anos, e a idade facilitara a

adaptar-se às mudanças na sua vida. Ao contrário da irmã mais velha, fizera amigos e era muito

aplicada muito na escola. Muito dada a elogios, procurava a aprovação dos professores, tentando

agradar a todos, incluindo os seus novos pais adoptivos.

Elena ficou ansiosa. Compreendeu pelo tom de voz da irmã que esta esperava que

concordasse. Constrangida por ter de tomar partidos, apenas assentiu com a cabeça. Sentindo

perigo, Leo replicou:

— Há muitas histórias que ainda não lemos, tenho a certeza que vamos encontrar uma

de que gostemos.

Zoya, porém, não cedia:

— São todas iguais. Conte-nos uma coisa nova. Invente qualquer coisa.

— Duvido que fosse capaz de inventar alguma coisa boa.

— Nem sequer vai tentar? O meu pai costumava inventar muitas histórias. Histórias de

uma quinta longínqua, uma quinta no Inverno, com o solo coberto por uma camada de neve. O

rio ali próximo estava congelado. Podia começar assim. Era uma vez duas meninas pequenas,

irmãs…

— Zoya, peço-te.

— As irmãs viviam com a mãe e o pai e eram muito felizes. Até que um dia, um homem

de uniforme veio prendê-los e….

Leo interrompeu:

— Zoya? Pela Elena, peço-te.

Zoya lançou um olhar à irmã e calou-se. Elena estava a chorar. Leo levantou-se.

— Estão as duas muito cansadas. Vou arranjar livros melhores amanhã. Prometo.

Leo apagou a luz e fechou a porta. No corredor, reconfortou-se, dizendo para consigo

que as coisas iriam melhorar, um dia. Zoya apenas precisava de um pouco mais de tempo.

35

Page 36: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

Zoya estava deitada na cama, ouvindo o rumor da irmã a dormir: as suas lentas e suaves

golfadas de ar. Quando viviam na quinta com os pais, os quatro dormiam num pequeno quarto

com paredes de barro grossas, aquecidas pelo fogão a lenha. Zoya dormia ao lado de Elena,

debaixo dos cobertores ásperos, cozidos à mão. O rumor da sua pequena irmã a dormir

representava segurança: significava que os pais estavam perto. Não pertencia ali, naquele

apartamento, com Leo no quarto ao lado.

Zoya nunca caía no sono facilmente. Ficava deitada na cama durante horas, remoendo

pensamentos até a exaustão se apoderar dela. Era a única pessoa que se agarrava à verdade: a

única pessoa que se recusava a esquecer. Deslizou para fora da cama. À parte da respiração da

irmã mais nova, o apartamento estava em silêncio. Foi a rastejar até à porta, com os olhos já

habituados à escuridão. Seguiu pelo corredor, mantendo a mão na parede para se orientar. Na

cozinha, a iluminação da rua derramava-se pela janela. Movendo-se com ligeireza, como um

ladrão, abriu uma gaveta e segurou no cabo, sentindo o peso da faca.

36

Page 37: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Com a faca encostada à perna, Zoya encaminhou-se para o quarto de Leo. Abriu

lentamente a porta até haver suficiente espaço para se esgueirar para o interior. Caminhou em

silêncio sobre o soalho de madeira. As cortinas estavam fechadas, o quarto mergulhado na

escuridão, mas ela conhecia o espaço, sabia onde pisar para chegar a Leo, que dormia ao fundo.

Parada mesmo por cima dele, Zoya ergueu a faca ao alto. Embora não o pudesse ver,

delineou com a imaginação os contornos do seu corpo. Não tencionava apunhalá-lo no estômago:

os cobertores poderiam absorver a lâmina. Mergulharia a lâmina no seu pescoço, enterrando-a o

mais que pudesse, antes que ele tivesse hipótese de a dominar. De faca na vertical, dirigiu-a para

baixo, com controlo perfeito. Através da lâmina conseguia sentir-lhe o braço, o ombro – subiu

em direcção ao pescoço, afundando a ponta da faca aos poucos, até esta lhe tocar directamente na

sua pele. Agora que estava em posição, só precisava de segurar no cabo com ambas as mãos e

empurrá-lo para baixo.

Zoya fazia este ritual em intervalos irregulares, por vezes uma vez por semana, outras

passava um mês sem o fazer. A primeira vez tinha sido três anos antes, pouco depois de ela e a

irmã se terem mudado do orfanato para aquele apartamento. Nessa ocasião, tivera mesmo a

intenção de o matar. Nesse mesmo dia, ele tinha-as levado ao jardim zoológico. Nem ela nem

Elena tinham ido alguma vez a um jardim zoológico e visto de perto animais exóticos, criaturas

que ela nunca vira antes: esquecera-se dela própria. Durante pouco mais do que cinco ou dez

minutos, desfrutara da visita. Sorrira. Ele nunca a vira sorrir, sabia-o, mas isso não lhe

importava. Vendo-o com Raisa, um casal feliz, imitando uma família, fingindo, mentindo,

compreendeu que estavam a tentar roubar o lugar dos seus pais. E ela permitira-o. No caminho

de regresso a casa, no eléctrico, sentira uma culpa tão intensa que vomitara. Leo e Raisa

culparam os doces e o movimento do eléctrico. Nessa noite, febril, ficara deitada na cama, a

chorar, a coçar as pernas até fazer sangue. Como podia ter traído a memória dos pais tão

facilmente? Leo acreditava que podia ganhar o seu amor com roupas novas, comidas raras,

passeios e chocolates: era ridículo. Jurara que aquilo nunca mais voltaria a acontecer. E só havia

uma maneira de o garantir: fora buscar a faca e resolvera matá-lo. Ficara ali de pé, tal como

agora, pronta para matar.

37

Page 38: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Todavia, a mesma memória que a levara ao quarto, a memória dos seus pais, fora a razão

por que não o matara. Não teriam querido o sangue daquele homem nas suas mãos. Teriam

querido que tomasse conta da irmã. Obediente, chorando em silêncio, permitira que Leo vivesse.

De vez em quando voltava, esgueirando-se para dentro do quarto, armada com uma faca, não

porque mudara de ideias, não por vingança, não para o matar, mas como um memorial aos seus

pais, uma forma de dizer que não os havia esquecido.

O telefone tocou, estridente, inesperado. Alarmada, Zoya deu um salto para trás, e a faca

escorregou-lhe das mãos, caindo com estrépito no chão. Ajoelhou-se, aos apalpões à escuridão,

tentando encontrá-la. Leo e Raisa remexiam-se, a cama rangeu com os seus movimentos.

Estariam a estender a mão para acender a luz. Zoya procurava com frenesi nas tábuas do soalho,

guiando-se apenas pelo tacto. Quando o telefone tocou pela segunda vez, não teve outra hipótese

que não deixar a faca para trás. Contornou a cama apressadamente, correndo em direcção à porta,

e esgueirou-se pela nesga da porta no mesmo instante em que a luz se acendeu.

#

Leo sentou-se na cama, com os pensamentos vagarosos da sonolência, sonhos

confundidos com a realidade – tinha visto um movimento, uma figura, ou talvez não. O telefone

estava a tocar. Só tocava quando se tratava de trabalho. Verificou o relógio: era quase meia-

noite. Lançou um olhar a Raisa. Estava acordada, à espera que ele atendesse o telefone.

Murmurou um pedido de desculpas e levantou-se. A porta estava aberta. Não fechavam sempre

a porta antes de ir dormir? Talvez não, não era importante, e encaminhou-se para o corredor.

Leo levantou o auscultador. A voz no outro lado era urgente, alta:

— Leo? É Nikolai.

Nikolai: o nome não lhe dizia nada. Não respondeu. Interpretando correctamente o

silêncio de Leo, o homem prosseguiu:

— Nikolai, o teu ex-patrão! O teu amigo! Leo, não te recordas de mim? Fui eu quem te

deu a tua primeira missão! O padre, lembras-te Leo?

Leo lembrava-se. Há muito que não tinha notícias de Nikolai. Aquele homem não tinha

qualquer relevância na sua vida presente e por isso ressentiu o seu telefonema.

— Nikolai, é tarde.

— Tarde? O que é que te aconteceu? Só começávamos a trabalhar a estas horas.

— Agora já não.

— Não, agora já não.

38

Page 39: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

A voz de Nikolai fez-se fraca, antes de acrescentar:

— Preciso de lhe falar.

As suas palavras eram indistintas. Estava bêbado.

— Nikolai, porque é que não vais dormir e logo falamos amanhã?

— Tem de ser esta noite.

A voz quebrava. Estava prestes a chorar.

— O que é que se passa?

— Vem encontrar-te comigo, peço-te.

Leo queria dizer que não.

— Onde?

— Nos teus escritórios.

— Estarei lá dentro de trinta minutos.

Leo desligou. A sua irritação estava mesclada de uma ponta de desassossego. Nikolai

não o teria voltado a procurar sem uma boca causa. Quando regressou ao quarto, Raisa estava

levantada. Leo esboçou uma explicação, dando de ombros.

— Era um ex-colega. Quer encontrar-se comigo. Diz que tem de ser esta noite.

— Um colega de que altura? Daquela época?

— Sim.

— E telefona-te assim, sem mais nem menos?

— Estava bêbado. Vou falar com ele.

— Leo…?

Ela deixou a frase a meio. Leo assentiu.

— Também não me agrada.

Pegou nas roupas, enfiando-as rapidamente, quase pronto para sair. Enquanto apertava

os atacadores, vislumbrou qualquer coisa debaixo da cama, algo a chamejar. Curioso,

aproximou-se, agachando-se. Raisa perguntou:

— O que foi?

Era uma grande faca de cozinha. Próximo do sítio onde se encontrava havia um entalhe

no chão.

— Leo?

Devia mostrar-lha.

— Não é nada.

Quando Raisa se debruçou para ver o que era, ele ergueu-se, escondendo a faca atrás das

costas, e apagou a luz.

39

Page 40: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Chegado ao corredor, estendeu a lâmina na palma da mão. Lançou um olhar ao quarto

das filhas. Aproximou-se da porta e abriu-a devagar. O quarto estava às escuras. As duas

raparigas estavam deitadas, a dormir. Quando ia a retirar-se, fechando silenciosamente a porta,

sorriu ao ouvir a respiração lenta e quase sumida de Elena. E depois estacou, ouvindo com mais

atenção. Não conseguia ouvir nenhum rumor, vindo do lado do quarto onde se encontrava Zoya.

Estava a suster a respiração.

40

Page 41: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

14 de Março

Leo conduzia muito depressa e acabou por derrapar numa curva, os pneus escorregaram

no gelo enegrecido. Aliviou o pé do acelerador e levou o carro de novo para o centro da estrada.

Num estado de agitação, as costas húmidas de suor, sentiu-se aliviado ao chegar aos escritórios

do departamento de homicídios. Encostou, repousando a cabeça no volante. No interior frio, sem

aquecimento, a sua respiração formou uma neblina fina. Era uma da manhã. As ruas estavam

desertas, forradas por uma camada de neve desigual. Começou a tremer de frio; tinha-se

esquecido de pegar numas luvas ou num chapéu, quando saíra precipitadamente do apartamento,

na pressa de sair, de fugir do porquê que a porta do quarto estava aberta, do porquê que a sua filha

fingia dormir, e do porquê que havia uma faca debaixo da sua cama.

Haveria certamente explicações, mundanas e simples explicações. Talvez tivesse

deixado a porta aberta. Talvez a sua mulher tivesse ido ao quarto de banho, esquecendo-se de

fechar a porta quando regressara. Quanto a Zoya fingir estar a dormir: tinha ouvido mal. Na

verdade, por que é que ela precisava de estar a dormir? Fazia sentido que estivesse acordada,

tinha acordado com o telefone, e estava deitada na cama a tentar cair no sono novamente,

enfastiada com razão. Quanto à faca…não sabia, simplesmente não conseguia pensar, porém,

deveria haver uma razão inocente, mesmo que não fizesse a mais pequena ideia de qual seria.

Desceu do carro, fechou a porta, e encaminhou-se para os escritórios. O seu

departamento de homicídios, localizado no distrito de Zamoskvareche, a sul do rio, uma zona

com uma elevada concentração de fábricas, tinha sido instalado num espaço situado por cima de

uma grande padaria. Havia um quê de caricato na localização e, silmultaneamente, a mensagem

de que o trabalho deles deveria permanecer invisível. Os escritórios estavam identificados como

Fábrica de Botões 14, levando Leo a pensar, de tempos a tempos, o que se passaria nas outras

treze fábricas de botões.

Depois de entrar no decrépito vestíbulo, cujo pavimento se encontrava entrecruzado de

pegadas de farinha, Leo subiu as escadas, passando os acontecimentos daquela noite em revista

na sua mente. Tinha conseguido justificar duas das três ocorrências, mas a terceira – a faca –

resistia a quaisquer tentativas de desagravo. O assunto teria de esperar até à manhã seguinte,

quando tivesse oportunidade de falar com Raisa. Agora o telefonema inesperado de Nikolai

preocupava-o mais. Leo tinha de se concentrar na razão por que um homem com o qual não

41

Page 42: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

falava há seis anos lhe ligava a meio da noite, bêbado, suplicando que se encontrassem. Não

havia nada entre eles, nenhuma ligação ou amizade, nada com excepção daquele ano – 1949 – o

seu primeiro ano como agente do MGB.

Nikolai esperava-o no topo das escadas, esparramado à entrada como um vagabundo.

Assim que viu Leo, levantou-se. O seu casaco de Inverno era de bom corte, talvez até feito no

estrangeiro, mas encontrava-se em muito mau estado por desmazelo. A barriga saía-lhe para fora

da camisa desabotoada. Ganhara peso, perdera cabelo. Tinha um ar envelhecido e cansado, o

rosto oprimido de preocupação, arrepanhado em torno dos olhos. Tresandava a fumo, suor e

álcool o que, combinado com o habitual cheiro a forno e a massa cozida que impreganava o ar do

edifício, formava uma mescla irrespirável. Leo ofereceu-lhe a mão. Nikolai desviou-a para o

lado, abraçando-o, agarrando-se a ele como se tivesse acabado de ser salvo da vertente de uma

montanha. Não havia nada de piedoso naquele abraço: isto de um homem que construíra a sua

reputação sendo impiedoso.

Ocorreu-lhe de repente o entalhe no chão de madeira. Por que se esquecera daquele

detalhe? Não era importante, fora por isso. Inúmeras coisas podiam tê-lo causado. Podia estar

ali há já algum tempo, não era algo em que ele fosse necessariamente reparar, um arranhão

causado pelo arrastar da mobília. Contudo, bem no fundo de si, sabia que a faca e o entalhe

estavam ligados.

Nikolai tinha começado a falar, num discurso incoerente, desarticulado. Leo quase não

lhe prestava atenção, acenando com a cabeça à medida que abria o departamento, conduzindo o

convidado pelo seu escritório. Sentados diante um do outro, Leo juntou as mãos, apoiando os

cotovelos na mesa, e ficou a observar Nikolai a falar sem ouvir quase nada, ora prestando atenção

ora não, apanhando aqui e ali alguns fragmentos do discurso: qualquer coisa sobre umas

fotografias que lhe tinham sido enviadas. Fosse o que fosse que Nikolai estava a dizer, a mente

de Leo não tinha espaço para isso. Crescia dentro dele uma singular e terrível tomada de

consciência, que apartava todos os outros pensamentos. A faca tinha caído, a ponta da faca

cravara-se no chão antes de ricochetear para debaixo da cama; tinha caído porque quem quer que

a tivesse segurado na mão, tinha entrado em pânico, alarmado por um barulho súbito, um

telefonema inesperado. A pessoa tinha fugido do quarto, deixando a porta aberta, pois ia com

demasiada pressa para ter tempo de fechá-la.

Era ela

42

Page 43: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Mesmo agora, que todas as peças estavam encaixadas, era com relutância que articulava a

única conclusão lógica: a pessoa que estava a segurar na faca era Zoya.

Levantou-se, foi à janela e abriu-a. O ar frio bateu-lhe no rosto. Não soube ao certo

quanto tempo permaneceu naquela posição, a fitar o céu nocturno, ouvindo, porém, uma voz atrás

dele que lhe recordou que não estava sozinho. Voltou-se; preparava-se para pedir desculpa

quando engoliu as palavras. Nikolai, um homem que lhe ensinara que a crueldade era necessária

e boa, estava lavado em lágrimas:

— Leo? Nem sequer estava a escutar.

Ainda de lágrimas no rosto, Nikolai soltou uma risada, um som que transportou Leo de

volta para as obrigatórios festejos após terem feito uma prisão. Nessa noite, porém, o riso de

Nikolai era diferente. Era quebradiço. A insolência e a confiança tinham desaparecido:

— Queres esquecer? Não queres, Leo? Não te condeno. Dava tudo para poder

esquecer. Que belo sonho seria esse…

— Peço desculpa, Nikolai; a minha cabeça está noutro sítio, uma questão familiar.

— Seguiste o meu conselho… Uma família, isso é bom. As famílias são importantes. As

famílias são tudo. Um homem não é nada sem o amor da sua família.

— Podemos falar amanhã? Quando estivermos menos cansados?

Nikolai assentiu com um gesto de cabeça e ergueu-se. Junto à porta estacou, de olhos

postos no chão:

— Estou…envergonhado.

— Não te preocupes. Todos nós bebemos demais de vez em quando. Falamos amanhã.

Nikolai fitou-o. Leo julgou que ele fosse soltar nova risada, mas desta vez deu meia

volta, dirigindo-se para as escadas.

Leo sntiu-se aliviado por se encontrar finalmente a sós e ser capaz de se concentrar. Não

podia continuar a fingir. Ele era uma recordação sempre presente da terrível perda de Zoya.

Nunca falara sobre o que se passara naquele dia, quando os seus pais tinham sido mortos a tiro.

Tentara ignorar o passado. A faca era um grito de socorro. Tinha de agir para salvar a sua

família. Ele era capaz de resolver a situação. Falar com Zoya: essa era a solução. Tinha de falar

com ela imediatamente.

43

Page 44: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Nikolai saiu para a rua, as botas a afundarem-se na fina neve. Ao sentir o frio no

estômago descoberto, enfiou a camisa para dentro das calças – mal conseguia focar os olhos, o

corpo balançava como se estivesse no convés de um barco. Por que ligara a Leo? Que esperava

ele que o seu antigo protegido fizesse? Talvez tivesse vindo apenas pelo companheirismo, não

aquele companheirismo de um companheiro de copos; viera pela companhia de um homem que

partilhava a sua vergonha, um homem que não podia julgar sem fazer o mesmo julgamento a si

próprio.

Estou envergonhado.

Estas eram as palavras que Leo deveria ter compreendido melhor do que ninguém. A

vergonha mútua devia tê-los unido, tê-los tornado irmãos. Leo devia t~e-lo abaçado e dito: Eu

também. Teria ele esquecido a história de ambos tão facilmente? Não; possuíam meramente

diferentes formas de lidar com ela. Leo embarcara numa carreira nova e nobre, esfregando as

mãos sujas de sangue numa bacia de respeitabilidade cálida e cheia de sabão. A técnica de

Nikolai era beber até perder os sentidos, não pelo divertimento mas como um ataque à sua

memória.

Alguém não permitia que esquecesse, e enviava-lhe fotografias de homens e mulheres

tiradas contra uma parede branca, cortadas de forma a ver-se-lhe apenas os rostos. A princípio

não reconhecera os sujeitos, não obstante tivesse reconhecido imediatamente tratarem-se de

fotografias de detidos, do tipo que era requerido por qualquer burocracia prisional. Tinham

chegado em sequência, uma vez por semana, depois uma vez por dia, num envelope deixado em

sua casa. Ao observá-las, começara a recordar-se de nomes, de conversas – memórias

fracturadas, uma colagem rudimentar com a prisão de um cidadão entretecida na interrogação de

um outro e a execução de outro ainda. À medida que as fotografias acumulavam, segurando-as

num monte entre as mãos, começara a questionar-se se de facto teria prendido assim tantos. Na

verdade, ele sabia, tinha prendido muitos mais.

Nikolai queria confessar, pedir perdão. Mas não lhe enviavam exigências, não

reivindicavam pedidos de desculpa, não lhe davam quaisquer instruções sobre a forma de se

44

Page 45: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

poder mostrar arrependido. O primeiro envelope vinha marcado com o seu nome. A sua mulher

trouxera-lho e ele abrira-o casualmente à sua frente. Quando ela lhe perguntou o que continha,

ele mentiu, escondendo as fotografias. A partir desse dia, vira-se obrigado a abri-los em segredo.

Mesmo depois de vinte anos de casamento, a sua mulher nada sabia acerca do seu trabalho. Sabia

que tinha sido oficial da Segurança Estatal. Mas pouco mais sabia. Talvez a sua ignorância fosse

intencional. Não se importava se era intencional ou não, agradava-lhe a sua ignorância: dependia

dela. Quando a olhava nos olhos via um amor incondicional. Se ela soubesse, se ela visse os

rostos das pessoas que ele prendera, se ela visse os seus rostos depois de dois dias de

interrogatório, haveria medo nos seus olhos. O mesmo se aplicava às filhas. Riam-se e

brincavam com ele. Amavam-no e ele amava-as. Era um bom pai, atencioso e paciente, nunca

levantava a voz, nunca bebia em casa: uma casa onde ele permanecera um bom homem.

Alguém queria roubar-lhe isso. Nos últimos dias, os envelopes já não vinham marcados

com o seu nome. Qualquer um podia abri-los: a mulher, as filhas. Nikolai começara a temer sair

de casa, não fosse chegar alguma coisa na sua ausência. Fizera a família prometer que lhe

entregariam qualquer encomenda ou carta, estivesse ou não marcada com um nome. Na véspera,

tinha ido ao quarto das filhas e encontrara uma carta sem destinatário sobre a mesa-de-cabeceira.

Perdera as estribeiras, escumando de raiva pela primeira vez, perguntando furiosamente se as

raparigas o haviam aberto. Elas choraram, confusas com a súbita transformação, garantindo-lhe

que só o tinham posto em cima da mesa-de-cabeceira para não se perder. Vira-lhes o medo nos

olhos: partira-lhe o coração. Nessa altura, decidira-se a procurar a ajuda de Leo. O Estado tinha

de apanhar aqueles criminosos que o perseguiam insensatamente. Dedicara muitos anos da sua

vida a servir o país. Era um patriota. Ganhara o direito de viver em paz. Leo podia ajudá-lo:

tinha uma equipa de investigação às suas ordens. Seria do seu interesse mútuo apanhar aqueles

contra-revolucionários. Seria tal qual nos velhos tempos. Só que Leo não o quisera ouvir.

Os operários do turno da madrugada estavam a chegar à padaria. Estacaram, observando

Nikolai parado na entrada do prédio. Rosnou-lhes:

— Que foi?

Os outros não pronunciaram palavra, permanecendo agrupados a alguns metros de

distância, sem se cruzarem com ele.

— Julgam-me?

Os seus rostos estavam pálidos, homens e mulheres à espera de cozer o pão da cidade.

Tinha de ir para casa, para o único lugar, o único lugar do mundo onde era amado e onde o

passado nada significava.

45

Page 46: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Como vivia ali perto, começou a cambalear pelas ruas desertas, esperando que não

tivesse chegado mais um pacote de fotografias na sua ausência. Deteve-se: a sua respiração era

superficial e pesada, como a de um velho cão doente. Havia mais qualquer coisa, outro rumor.

Deu meia volta, olhando atrás de si. Passadas: estava certo, o bater, o bater de solas duras no

pavimento de pedra. Estava a ser seguido. Esgueirou-se para as sombras, procurando contornos,

aguçando os olhos. Vinham atrás dele, os inimigos, espiando-o: perseguiam-no como ele em

tempos os perseguira.

Corria agora, para casa, tão depressa quanto podia. Tropeçou antes de recuperar o

equilíbrio, o sobretudo badanava-lhe pela altura dos tornozelos. Mudou de direcção, voltando-se

com uma precipitação calculada. Havia de apanhá-los naquele jogo. Conhecia aqueles truques.

Eram os seus truques. Estavam a usar os seus próprios métodos contra ele. De olhos fixos nas

esquinas sombrias, nos lúgubres enclaves, nos esconderijos que ensinara os recrutas do MGB a

entrepassar, chamou:

— Sei que estás aí.

A sua voz ressoou no aparente vazio da rua. Vazio para um leigo, mas ele era um

especialista naquele assunto. A sua atitude de desafio foi breve e logo se dissipou:

— Tenho filhas, duas meninas. Elas amam-me! Não merecem isto. Se me magoar

estará a magoá-las a elas.

As suas filhas tinham nascido por volta da altura em que era oficial do MGB. Depois de

prender pais, mães, filhos e filhas, regressava todas as noites a casa e dava um beijo de boas

noites à sua própria família.

— Então e os outros? Há milhões de outros, se nos matarem a todos, não restará

ninguém. Estávamos todos envolvidos!

As pessoas começaram a vir assomar-se às janelas, alarmadas pela gritaria. Podia

apontar para qualquer edifício, qualquer casa, e lá dentro haveria ex-oficiais e guardas. Os

homens e mulheres de uniforme eram os alvos mais óbvios. Mas havia também os maquinistas

de comboio que levavam os prisioneiros para os Gulags, as pessoas que tratavam da papelada,

que imprimiam os formulários, as pessoas que cozinhavam e limpavam. O sistema requeria o

consentimento de toda a gente, mesmo que o seu consentimento consistisse em não fazer nada.

Nada era quanto bastava. Dependia de uma ausência de resistência, da mesma forma que

dependia de voluntários. Não tencionava ser um bode expiatório. Esse fardo não era tão-somente

seu. Toda a gente carregava uma culpa colectiva. Estava preparado para sentir remorsos de vez

em quando, para passar um minuto todos os dias a pensar nas coisas terríveis que fizera.

Todavia, as pessoas que o perseguiam não estavam satisfeitas com isso. Queriam mais.

46

Page 47: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Assustado, Nikolai voltou-se e correu, desta feita como um louco, tão depressa quanto

podia. Porém, emaranhou-se no sobretudo e caiu por terra, caindo de borco na neve lamacenta, as

roupas ensopadas em água suja. Levantou-se lentamente, de joelho latejante, calças rasgadas, e

deitou de novo a correr, a água a escorrer das extremidades do sobretudo. Dali a pouco, tornou a

cair. Desta feita, desfez-se num choro, exausto, soluçando desesperadamente. Voltou-se de

barriga para cima, libertando-se do sobretudo, agora terrivelmente pesado. Comprara-o há muitos

anos atrás, numa das lojas restritas. Orgulhara-se muito dele. Era prova do seu estatuto. Agora

já não precisava dele: nunca mais voltaria a sair, ficaria em casa, de porta trancada e cortinas

puxadas.

Quando alcançou o bloco de apartamentos onde vivia, entrou no átrio ofegante e lavado

em suor, a água suja a escorrer-lhe das roupas. Ensopado, encostou-se à parede, onde deixou uma

impressão do seu corpo; vigiou a rua, na esperança de vislumbrar os seus perseguidores. Como

não avistou ninguém – eram demasiado astutos –, começou a subir as escadas, os pés a

resvalarem-lhe nos degraus; depois, subiu-as de gatas. Quanto mais se aproximava de casa, mais

o seu espírito se apaziguava. Não conseguiriam alcançá-lo atrás daquelas paredes, do seu

santuário. Como se tivesse engolido um tónico calmante, começou a pensar racionalmente.

Estava bêbado. Exagerara, nada mais do que isso. Claro que fizera inimigos ao longo dos anos,

pessoas com invejas, amargas do seu sucesso. Se tudo o que podiam fazer era enviar-lhe umas

fotografias, não tinha por que se preocupar. A maioria – a sociedade – respeitava-o e valorizava-

o. Respirou fundo, ao alcançar o destino, procurando a chave.

Diante da sua porta encontrava-se um pacote, com cerca de trinta centímetros de

comprido, vinte de largo e dez de fundo, enrolado em papel pardo, bem atado com um cordel.

Não trazia nome, nem etiqueta, apenas um desenho a tinta no papel, um crucifixo. Nikolai caiu

de joelhos. As mãos tremiam-lhe ao desatar o cordel. No interior encontrava-se uma caixa. No

topo da caixa podia ler-se:

INTERDITA A PUBLICAÇÃO

Levantou o tampo. Não continha fotografias. Em seu lugar, havia uma pilha de páginas

bem impressas, um documento avultado, com mais de cem páginas. No topo repousava uma carta

a acompanhar. Pegou nela, examinando as palavras. Não vinha endereçada a ele: era uma carta

oficial de Estado, declarando que aquele discurso deveria ser distribuído em todas escolas e

fábricas, a todos os operários e grupos de jovens por todo o país. Confuso, pousou a carta,

pegando no discurso. Leu a primeira página com atenção. Começou a abanar a cabeça. Aquilo

47

Page 48: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

não podia ser verdade. Era uma mentira, uma invenção maliciosa, com a intenção de o levar à

loucura. Aquilo nunca podia ter sido publicado pelo Estado: jamais distribuiriam tal documento.

Era impossível.

INOCENTE

VÍTIMAS

TORTURA

Estas palavras não podiam existir preto no branco, impressas, autorizadas pelo Estado,

distribuídas em todas as escolas e fábricas. Quando apanhasse o responsável por aquele embuste,

aquele embuste bem informado, mandá-lo-ia executar.

Involuntariamente, Nikolai amarrotou a página que estava a ler e atirou-a para o lado.

Começou a arrancar a página seguinte, e a outra a seguir, rasgando-as em pedaços, atirando os

pedaços para o lado. Deteve-se, inclinando-se para diante, enrolado como uma bola, a cabeça

pousada nas páginas que não lera, murmurando de si para consigo:

— Não pode ser verdade.

Como é que era possível? Porém, ali estava, juntamente com uma carta timbrada do

Estado, contendo informações que só o Estado podia saber, com fontes, citações, referências. A

conspiração do silêncio, que Nikolai presumira durar para sempre, acabara. Não era um truque.

O discurso era real.

Nikolai soergueu-se, deixando os papéis espalhados pelo chão. Abriu a porta e entrou no

seu apartamento, abandonando os restos do discurso no corredor comunitário. Não interessava

que fechasse a porta atrás dele e fechasse as cortinas, a sua casa deixara de ser um santuário. Já

não havia santuários. Em breve toda a gente ficaria a saber, todas as crianças nas escolas, todos

os operários nas fábricas. Não apenas saberiam, como também teriam autorização para falar

sobre o assunto abertamente, encorajados a debatê-lo.

Abriu a porta do quarto, de olhos baixos a fitar a mulher, adormecida, deitada de lado, as

mãos debaixo da cabeça. Era muito bonita. Ele adorava-a. Tinham vivido uma vida perfeita,

uma vida privilegiada. Tinham duas filhas maravilhosas, felizes. A mulher nunca conhecera a

sua desgraça. Nunca conhecera a vergonha. Nunca conhecera outra faceta de Nikolai que não a

de marido querido, um homem carinhoso que daria a vida pela família. Sentou-se na beira da

cama, passando um dedo ao longo do seu braço pálido. Não conseguia viver com ela sabendo a

verdade, mudando de opinião sobre ele, afastando-se, fazendo perguntas, ou pior ainda,

permanecendo em silêncio. O seu silêncio seria insuportável. Todos os seus amigos fariam

48

Page 49: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

perguntas. Seria julgado. Quanto é que ela sabia? Soubera sempre? Seria melhor não viver a

vê-la envergonhada. Seria melhor ele morrer agora.

Só que a sua morte nada mudaria. Ela descobriria na mesma. Acordaria para descobrir o

seu corpo e choraria de pesar. Depois, leria o discurso. E não obstante fosse ao seu funeral,

estaria a pensar nas coisas que ele fizera. Reviveria na mente os momentos que passaram juntos,

quando ele a tocava, quando ele fazia amor com ela. Teria assassinado alguém horas antes? A

sua casa fora comprada com sangue? Talvez até acreditasse que ele merecia morrer e que tirar a

sua própria vida fora a atitude mais acertada, não apenas por ele, mas pelas filhas.

Pegou na almofada. A mulher era forte e iria lutar, porém, embora se soubesse em baixo

de forma, estava confiante de que tinha forças para a dominar. Instalou-se na cama

cuidadosamente ao que ela se mexeu, sentindo o seu corpo, sem dúvida satisfeita por ele estar em

casa. Voltou-se de barriga para cima, sorrindo. Não podia olhar-lhe no rosto. Tinha de agir

antes de perder a coragem. Baixou a almofada com um gesto rápido; não queria olhar para ela

quando abrisse os olhos. Pressionou com toda a força que possuía. Rapidamente, ela começou a

jogar as mãos à almofada, aos seus pulsos, arranhando-o. De nada adiantava, ele não a ia soltar –

não se conseguiria libertar. Em vez de tentar afrouxar as suas mãos cerradas, tentou escapar de

debaixo da almofada. Ele pôs-se em cima dela, enclavinhando-lhe as pernas em torno do ventre,

mantendo-a presa naquela posição, incapaz de se mexer enquanto ele segurava a almofada no

sítio. Ela estava imobilizada, indefesa, enfraquecida. Já não o tentava arranhar com as mãos, que

agora apenas lhe seguravam os pulsos até afrouxarem e caírem ao seu lado.

Nikolai deixou-se ficar na mesma posição, em cima dela, segurando na almofada durante

alguns minutos após ela ter deixado de se mexer. Finalmente, aliviou a força, soltando a

almofada, que deixou pousada em cima do seu rosto. Não queria olhar para os seus olhos

injectados de sangue. Queria recordar-se dos seus olhos cheios de amor. Enfiou a mão por baixo

da almofada para lhe fechar as pálpebras. Vagueou com a ponta do dedo pelo seu rosto,

aproximando-se mais e mais até lhe tocar na pupila: uma superfície levemente pegajosa. Fechou-

lhe cuidadosamente as pálpebras e levantou a almofada, de olhos baixos a fitá-la. Estava em paz.

Deitou-se a seu lado, com os braços em volta da sua cintura.

Exausto, Nikolai quase adormeceu. Sobressaltou-se para acordar. Ainda não tinha

terminado. Levantou-se, alisou os lençóis, pegou na almofada e encaminhou-se para a sala,

virando em direcção ao quarto das filhas.

49

Page 50: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Zoya e Elena estavam a dormir: Leo conseguia ouvir o rítmico oscilar das suas

respirações. Enquanto habituava os olhos à escuridão, fechou cuidadosamente a porta atrás de si.

Não podia falhar enquanto pai. O departamento de homicídios podia fechar portas, podiam

arrancar-lhe o seu apartamento e privilégios, mas tinha de haver alguma forma de salvar a sua

família, nada mais lhe importava. E estava convicto de que a sua família, apesar dos problemas,

oferecia a melhor hipótese para todos eles. Recusava-se a imaginar um futuro em que não

estariam juntos. Era verdade que ambas as raparigas eram bastante mais próximas de Raisa do

que dele. O obstáculo não era, claramente, a adopção, mas o passado. Tinha sido ingénuo ao

pensar que o seu relacionamento com Elena e Zoya requeria meramente tempo e que, tal como

num truque de perspectiva, afastando-se a uma distância suficiente do incidente, faria parecê-lo

menor e menos importante. Mesmo agora, usava eufemismos – o incidente – para o assassínio

dos seus pais. A raiva de Zoya estava tão vivida como no dia em que os seus pais tinham sido

mortos. Em vez de o negar, tinha de enfrentar de frente o seu ódio. A confrontação era o

caminho para a reconciliação.

Zoya dormia deitada de lado, de cara voltada para a parede. Leo estendeu a mão e

pousou-lha no ombro, virando-a delicadamente de costas. A intenção era acordá-la devagar,

porém, em vez disso, ela sentou-se direita na cama, de corpo tenso, afastando-se do seu toque.

Sem compreender exactamente o que fazia, pousou a outra mão no seu ombro, impedindo-a de se

afastar. Fê-lo com a melhor das intenções, para o bem de ambos. Precisava que ela o escutasse.

Esforçando-se por manter um tom calmo e tranquilizador, murmurou:

— Zoya, tu e eu precisamos de conversar. Não pode esperar. Se esperar até amanhã de

manhã, encontrarei uma desculpa e adiarei para o outro dia e depois para o dia seguinte. Já

adiei durante três anos.

Ela não pronunciou palavra, permaneceu imóvel, de olhos postos nele. Embora tivesse

passado pelo menos uma hora na cozinha, tentando ensaiar exactamente o que dizer, essas

palavras cuidadosamente planeadas desvaneceram-se:

— Sei que estiveste no meu quarto. Encontrei a faca.

Encetou com o tema errado. Estava ali para falar sobre as suas falhas, não para a criticar.

Tentou reverter a conversa:

50

Page 51: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Estás a tentar dizer-me para parar de fingir que sou teu pai, um homem por cuja

morte me consideras responsável. Mas…

Deteve-se:

— Primeiro, deixa-me esclarecer que agora sou uma pessoa diferente. Já não sou o

oficial que foi à quinta dos teus pais. Não te esqueças, também, que os tentei salvar. Falhei.

Terei de viver com essa falha para o resto da minha vida. Não posso trazê-los de volta. Porém,

posso dar-te a ti e à tua irmã algumas oportunidades. É assim que vejo esta família. É uma

oportunidade. É uma oportunidade para ti e para Elena, mas também para mim.

Leo parou, ficando em silêncio, à espera de ver se ela ia ridicularizar a ideia. Porém,

Zoya não se mexeu nem falou. Os seus lábios estavam cerrados: o corpo tenso.

— Não podes…tentar?

De voz trémula, pronunciou as primeiras palavras:

— Larga-me.

— Oh Zoya, não te zangues: diz-me pelo menos no que pensas. Sê honesta. Diz-me o

que posso fazer. Diz-me que tipo de pessoa queres que seja.

— Larga-me.

— Não, Zoya, peço-te, tens de compreender o quanto isto é importante.

— Larga-me.

— Zoya…

A sua voz tornou-se mais alta e rápida, as palavras amalgamavam-se umas nas outras:

— Larga-me larga-me larga-me larga-me!

Aturdido, afastou-se. Chorava como um animal ferido. Como é que as coisas podiam ter

corrido tão mal? Incrédulo, viu-a recuar do seu afecto. As coisas não deviam ser assim. Estava a

tentar expressar o seu amor por ela! E ela atirava-o de volta à sua cara. Zoya estava a arruinar as

coisas, não apenas para ele. Estava a arruinar as coisas para todos. Elena queria fazer parte de

uma família. Sabia que ela o queria. Quando lhe segurava na mão, ela sorria, ria. Queria ser

feliz. Raisa queria que ela fosse feliz. Todos eles queriam apenas ser felizes. Excepto Zoya, que

se recusava tenazmente a reconhecer que ele mudara, que se agarrava de forma infantil ao seu

ódio como se fosse a sua boneca preferida.

Leo sentiu o cheiro. Ao tocar nos lençóis, descobriu que estavam húmidos. Ainda assim,

demorou um segundo ou dois a compreender que Zoya tinha molhado a cama. Ergueu-se,

murmurando:

— Não faz mal. Eu limpo. Não te preocupes. A culpa é minha. Eu sou o culpado.

51

Page 52: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Zoya abanou a cabeça, sem dizer palavra, apertando as têmporas com as mãos,

arranhando as faces. Leo sentiu faltar-lhe o ar, perplexo por o seu amor poder causar tal miséria:

— Zoya, eu mudo os lençóis.

Ela abanou a cabeça, agarrando-se aos lençóis manchados de urina como se estes o

protegessem dele. Entretanto, Elena acordara e chorava, ignorando o que se passara, mas

demasiado consciente de que fora algo horrível e triste.

Leo virou-se para a porta e depois voltou para trás, incapaz de a deixar naquele estado.

Como poderia resolver o problema se ele era o problema?

— Só te quero dar o meu amor, Zoya.

Elena olhava intermitentemente para Zoya e Leo. O facto de ela estar acordada provocou

uma mudança em Zoya. Recuperou lentamente a compostura, dirigindo-se a Leo com voz calma:

— Vou lavar os meus lençóis. Vou fazê-lo sozinha. Não preciso da sua ajuda.

Leo baixou os olhos para os sapatos, de queixo aninhado no peito. Saiu do quarto,

deixando a menina que tivera esperanças de conquistar, sentada em cima de urina e lavada em

lágrimas.

#

Quando entrou na cozinha, começou a caminhar de um lado para o outro na divisão,

embriagado pela catástrofe. Embora tivesse arrumado os dossiês, a folha de papel da máquina

tipográfica de Moskvin ficara tal como a deixara:

Sob tortura, Eikhe

Encontrava-se, pois, numa companhia adequada: um lembrete da sua anterior carreira,

uma carreira que seria sempre uma sua sombra. Recordando a reacção de Zoya no quarto,

aterrorizada, molhando a cama, Leo foi forçado a contemplar algo que apenas minutos antes

rejeitara como impensável. A família poderia ter de ser separada.

O seu desejo de os manter unidos ter-se-ia tornado uma cega obsessão? Forçava Zoya a

mexer numa ferida que nunca iria sarar, infectando-a com ódio e amargura. Obviamente, se ela

não podia viver com ele, Elena também não podia ficar. As irmãs eram inseparáveis. Não lhe

restava outra escolha senão encontrar-lhes uma nova casa, uma casa que não tivesse qualquer

ligação com o Estado, talvez fora de Moscovo numa cidade pequena onde o aparelho do poder

fosse menos visível. Ele e Raisa teriam de procurar guardiões adequados, conhecer possíveis pais

52

Page 53: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

adoptivos, ao mesmo tempo que se questionavam se poderiam ter feito um trabalho melhor, se

poderiam ter dado felicidade àquelas meninas, algo que Leo falhara redondamente em dar-lhes.

Raisa apareceu à porta:

— O que se passa?

Tinha vindo do quarto deles. Nada sabia de Zoya ter molhado a cama ou da conversa, e

referia-se a Nikolai, ao telefonema, ao encontro a meio da noite. A voz de Leo estava requebrada

de emoção:

— Nikolai estava bêbado. Disse-lhe que falávamos quando estivesse sóbrio.

— E isso demorou a noite inteira?

Por que esperava? Devia dizer-lhe para se sentar e explicar as coisas.

— Leo? O que se passa?

Prometera-lhe que nunca mais haveria segredos. Contudo, não era capaz de admitir que,

depois de três anos a tentar ser pai, não conseguira mais do que o ódio de Zoya. Não era capaz de

admitir que a acordara a meio da noite, suplicando-lhe ridiculamente que o deixasse ser seu pai.

Sentia medo. E se Raisa, depois de saber da faca e dos lençóis molhados, chegasse à conclusão

que as raparigas não podiam viver com Leo? A separação da sua família poderia fazer com que

Raisa se questionasse de que lado queria ficar. Ficaria com as meninas ou com ele? Durante os

anos em que fora oficial da MGB, ela desprezara-o e tudo o que ele representava. Pelo contrário,

amava Elena e Zoya ilimitadamente, desde o primeiro dia em que se conheceram. O amor que

ela sentia por ele era complicado. O amor que ela sentia por elas era simples. Ao tomar a sua

decisão, era possível que escolhesse lembrar-se do homem que ele fora, do homem que ele

costumava ser. Convencido de que a sua relação com Raisa dependia de se comprovar enquanto

pai, pela primeira vez em três anos, mentiu-lhe:

— Não se passa nada. Foi um choque voltar a ver Nikolai. Só isso.

Raisa assentiu. Olhou para o corredor.

— As meninas estão acordadas?

— Acordaram quando voltei. Desculpa. Já lhes pedi desculpa.

Raisa pegou na folha de papel que se encontrava sobre a mesa.

— É melhor tirares isto daqui, antes de as meninas virem para a mesa.

Leo pegou na folha, levando-a para o quarto deles. Sentou-se na cama, observando

receoso Raisa a sair da cozinha para ir acordar as meninas. Nervoso, quase agoniado, esperou

que Raisa descobrisse a verdade. A mentira concedera-lhe um adiamento temporário, só isso.

Ficaria a saber tudo quando Zoya lhe explicasse o que acontecera. Compreenderia que Leo lhe

mentira.

53

Page 54: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Ergueu os olhos, espantado por ver Raisa emergir casualmente do quarto, regressando à

cozinha sem dizer palavra. Segundos depois, apareceu Zoya, carregando os lençóis para o quarto

de banho, onde os depositou na banheira, abrindo a torneira da água quente. Não contara nada a

Raisa. Não queria que Raisa soubesse. A única coisa que odiava mais do que Leo era a ideia de

que ele conseguira envergonhá-la daquela maneira.

Leo ergueu-se, entrou na cozinha e perguntou:

— Zoya está a lavar os lençóis?

Raisa assentiu. Leo continuou:

— Ela não precisa de fazer isso. Posso tratar de os mandar lavar.

Raisa baixou a voz:

— Acho que teve um acidente. Deixa-a, está bem?

Leo assentiu:

— Está bem.

Elena entrou primeiro, de camisa mal abotoada, e sentou-se. Estava em silêncio. Leo

sorriu-lhe. Ela estudou-lhe o sorriso, como se fosse algo desconhecido e ameaçador. Não lhe

devolveu o sorriso. Leo conseguia ouvir as passadas de Zoya. Estacaram. Estava atrás da porta,

esperando no corredor.

Zoya apareceu. Bem de frente para Leo, mirava-o do outro lado da divisão. Lançou um

olhar a Raisa, que estava ocupada a mexer as papas de aveia, e um outro à irmã, que estava a

comer. Nesse breve olhar compreendeu que ele também não lhes contara nada. A faca era um

segredo deles. A cama molhada era um segredo deles. Eram cúmplices, cúmplices naquela farsa

de família. Leo ganhou esperanças. Zoya não estava pronta para separar a família. O seu amor

por Elena era mais forte do que o seu ódio por ele.

Vagarosa e agilmente, como um gato de rua, Zoya encaminhou-se para a sua cadeira.

Não comeu quase nada, lançando-lhe ocasionalmente um olhar furtivo. Por sua vez Leo não

comeu nada, remexendo as papas de aveia na malga, incapaz de soerguer os olhos. Raisa

mostrou-se pouco satisfeita.

— Nenhum de vocês vai comer?

Leo esperou que Zoya respondesse. Ela ficou calada. Decidiu-se então a comer. Assim

que o fez, Zoya levantou-se, depositando a sua malga intocada no lava-louças.

— Sinto-me doente.

Raisa ergueu-se, verificando-lhe a temperatura.

— Sentes-te capaz de ir à escola?

54

Page 55: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Sim.

As meninas levantaram-se da mesa. Raisa aproximou-se de Leo:

— O que se passa contigo hoje?

Leo sabia que se abrisse a boca ia desfazer-se em lágrimas. Ficou calado, de punhos

cerrados debaixo da mesa.

Raisa abanou a cabeça e afastou-se para ir ajudar as meninas. Havia algum bulício junto

da porta de entrada: preparativos finais para sair, vestiam-se os casacos. A porta abriu-se. Raisa

regressou à cozinha, trazendo consigo um pacote embrulhado em papel pardo, atado com um

cordel. Depositou-o em cima da mesa e saiu. A porta da frente fechou-se com estrépito.

Leo não se mexeu durante vários minutos. Depois, lentamente, estendeu a mão, puxando

o pacote para si. Viviam num complexo fechado de apartamentos do ministério. Normalmente

as cartas ficavam no portão: aquela, porém, tinha sido deixada à porta. O pacote tinha cerca de

trinta centímetros de comprido, vinte de largo e dez de fundo. Não tinha nome, nem etiqueta,

apenas um desenho a tinta no papel, um crucifixo. Rasgou o papel pardo e viu uma caixa, onde

se lia no tampo:

INTERDITA A PUBLICAÇÃO

55

Page 56: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

A carruagem do metro não ia muito cheia e, porém, Elena pegou na mão de Raisa,

agarrando-a com força, como se temesse que fossem em breve ser separadas. Ambas as meninas

estavam invulgarmente silenciosas. O comportamento de Leo nessa manhã deixara-as inquietas.

Raisa não conseguia perceber o que se passava com ele. Normalmente era muito cuidadoso junto

das raparigas, e parecera-lhe que compreendera que estavam prestes a sentar-se para o pequeno-

almoço, todavia, vira-o preocupado com aquela palavra: tortura. Quando lhe pedira para guardar

o papel, a sua deixa para se controlar, obedecera apenas para regressar à cozinha no mesmo

estado desorientado, fitando as meninas sem pronunciar palavra. Os olhos injectados de sangue,

um olhar alucinado e irregular: não via aquela expressão há anos, não desde que regressava das

noites de missões como oficial da polícia secreta, exausto e porém incapaz de se ir deitar.

Afundava-se num canto, no escuro, absorto, silencioso, passando em revista os eventos da noite

anterior, como uma bobina em espiral de um filme. Nessas alturas nunca falava do seu trabalho

não obstante ela soubesse perfeitamente o que ele fazia: prendia pessoas indiscriminadamente, e

odiava-o secretamente por isso.

Esses tempos faziam parte do passado. Ele mudara: ela tinha a certeza disso. Arriscara a

vida para sair de uma profissão de prisões a meio da noite e confissões forçadas. O aparelho de

segurança de Estado ainda existia, agora rebaptizado com o nome de KGB, e permanecia uma

presença na vida de toda a gente. No entanto, Leo não participava nas suas operações e declinara

a oferta de um posto elevado. Em vez disso abrira o seu próprio departamento de investigação,

onde se expunha a riscos bem maiores. Todas as noites partilhava histórias do seu dia de

trabalho, em parte para procurar os seus conselhos, em parte para mostrar as diferenças que o

separavam do KGB, mas sobretudo para provar que tinha deixado de haver segredos entre eles.

Contudo, a sua aprovação não era suficiente. Ao observá-lo junto das meninas, Raisa

compreendeu bruscamente que ele se comportava como se estivesse amaldiçoado, como uma

personagem de uma fábula infantil so o feitiço de um passado negro que apenas podia ser desfeito

pelas palavras «Gosto muito de ti» pronunciadas por ambas as meninas.

Apesar do desapontamento, nunca se mostrara invejoso da relação fácil que Raisa

mantinha com Elena e Zoya, mesmo quando Zoya o atormentava deliberadamente, mostrando-se

56

Page 57: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

abertamente carinhosa para com ela e fria para com ele. Ao longo dos últimos três anos, ele

suportara rejeição e aspereza, sem nunca perder as estribeiras, absorvendo todas as hostilidades

como se achasse que não merecia outra coisa. Transformara as meninas na sua única esperança

de redenção. Zoya sabia-o e insurgia-se contra isso. Quanto mais ele procurava o seu afecto,

mais ela o odiava. Raisa não podia chamar a atenção para essa contradição, ou dizer-lhe que

descontraísse. Não fazia parte da natureza dele. Em tempos fanático pelo Comunismo, ele agora

fanático pela sua família. A sua visão de utopia tornara-se menor, menos abstracta, e embora

agora englobasse apenas quatro pessoas, em lugar do mundo inteiro, permanecia igualmente

inalcançável.

O comboio parou na estação de TsPkiO, abreviatura do nome Tsentralnyl Park Kulturyi

Otdykha Imeni Gorkovo. Da primeira vez que as raparigas ouviram o nome ser pronunciado,

formalmente, em voz alta através dos altifalantes tinham rebentado em gargalhadas. Apanhada

desprevenida por aquele absurdo casual, Zoya revelara um bonito sorriso que até àquela altura

mantivera resguardado dentro de si. Nesse momento, Raisa teve um vislumbre da criança que se

perdera: brincalhona e irreverente. O seu sorriso desvaneceu-se, porém, em poucos segundos. Ao

observá-la, Raisa sentira uma dor funda. O seu envolvimento emocional não era menor que o

dele. Como não podia ter filhos, a adopção era a sua única oportunidade de maternidade.

Contudo, era de longe a mais hábil dos dois a esconder os seus pensamentos, não obstante o facto

de Leo ter sido treinado pela Polícia Secreta. Tomara uma decisão táctica, tendo o cuidado de

não demonstrar constantemente às crianças de quão importantes eram para ela. Tratava-as sem

grandes espalhafatos ou cerimónias, estabelecendo fundações de ordem prática: a escola, as

roupas, a comida, os passeios à rua, os trabalhos de casa. Embora tivessem formas diferentes de

lidar com a situação, ela compartilhava o sonho de Leo: o sonho de criar uma família amada e

feliz.

Raisa e as meninas desembarcaram na estação, na esquina da Ostozhenka e a

Novokrymskiy, seguindo por um trilho cavado na neve, a caminho das respectivas escolas. Raisa

quisera inscrever ambas as meninas na mesma escola onde, idealmente, ela também ensinaria de

modo a ficarem as três juntas. Contudo, fora tomada a decisão, pelas autoridades escolares, ou a

um nível mais elevado, de que Zoya frequentaria o Lycee 1535. Como apenas aceitavam

estudantes do nível secundário, Elena era obrigada a frequentar uma outra escola. Raisa

contestara a decisão, uma vez que a maioria das escolas aceitavam tanto alunos do nível primário

como secundário, e não havia necessidade de as separar. O seu pedido tinha sido rejeitado. Os

irmãos iam à escola para criar uma relação com o Estado, não para se abrigarem nos laços

familiares. De acordo com esse raciocínio, Raisa teve sorte em conseguir um trabalho no Lycee

57

Page 58: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

1535 e por isso desistira do pedido para preservar a vantagem. Pelo menos assim, poderia ficar

de olho em Zoya. Embora Elena fosse mais nova e estivesse claramente mais nervosa com a

perspectiva de frequentar uma escola nova numa cidade grande, Zoya dava-lhe mais

preocupações. Estava muito atrasada nos estudos, a escola que frequentara na aldeia não estava

ao nível dos padrões de Moscovo. Era uma menina inteligente, sem dúvida. No entanto,

mostrava-se pouco educada, sem direcção, pouco disciplinada e, ao contrário de Elena, recusava-

se terminantemente a esforçar-se para se integrar, como se fosse uma questão de princípio

manter-se isolada.

À porta da escola primária, um chalé aristocrático pré-revolucionário reconvertido, Raisa

demorou-se desnecessariamente a arranjar o uniforme de Elena. Por fim, apertando-a contra si,

murmurou:

— Vai correr tudo bem, prometo.

Durante os primeiros meses, Elena chorava sempre que se separava de Zoya. Embora se

tivesse gradualmente habituado a passar oito horas separada da irmã, no final de cada dia, sem

excepção, esperava-as junto ao portão, aguardando a sua reunião com grande entusiasmo. A sua

excitação ao ver a irmã mais velha não diminuíra com o passar do tempo, uma reunião tão cheia

de alegria, que parecia ter-se passado todo um ano.

Depois de Zoya ter abraçado a irmã, Elena encaminhou-se apressadamente para a escola,

estacando à porta para fazer um aceno de despedida. Assim que ela entrou, Zoya e Raisa

dirigiram-se em silêncio para o Lycee. Raisa resistia à necessidade de questionar Zoya. Não

queria inquietá-la antes das aulas. Até o mais simples dos inquéritos arriscava pô-la na defensiva,

desencadeando uma cadeia de comportamentos insubordinados que se prolongariam durante todo

o dia. Se lhe perguntasse sobre os trabalhos de casa era uma crítica implícita aos seus progressos

escolares. Se lhe perguntasse sobre os colegas de turma era uma referência à sua recusa em fazer

amigos. O único tema aberto a discussão eram as habilidades atléticas de Zoya. Era uma

rapariga alta e forte. Escusado será dizer que não gostava de desportos em equipa, por ser

incapaz de receber ordens. Já os desportos individuais eram um assunto diferente: era uma

exímia nadadora e corredora, a mais rápida da sua idade na escola. Zoya, porém, recusava-se a

competir. Se entrava numa competição, perdia deliberadamente a corrida não obstante tivesse

orgulho suficiente para não ficar em último lugar. Almejava propositadamente o quarto lugar, e

como ocasionalmente fazia mal os cálculos, ou se esquecia dela própria no calor do momento,

poderia chegar em terceiro ou mesmo segundo.

O Lycee 1535, construído em 1929, era um edifício rectilínio e de uma arquitectura

rígida, com a intenção de corporizar uma abordagem igualitária da aprendizagem, um novo tipo

58

Page 59: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

de arquitectura para um novo tipo de estudante. Vinte metros antes dos portões, Zoya estacou,

paralisada naquele sítio, a olhar fixamente em frente. Raisa baixou-se:

— O que foi?

Zoya baixou a cabeça, falando por baixo da respiração:

— Sinto-me triste. Sinto-me triste o tempo todo.

Raisa mordeu o lábio, esforçando-se por não chorar. Pousou uma mão no braço de Zoya.

— Diz-me o que posso fazer.

— A Elena não pode voltar para aquele orfanato: não pode voltar nunca mais para lá.

— Ninguém vai a lado nenhum.

— Quero que ela fique contigo.

— E vai ficar. Vão ficar as duas. Claro que vão ficar. Gostamos muito de vocês.

Raisa nunca se atrevera a dizer aquilo em voz alta. Zoya observou-a com atenção:

— Eu podia ser feliz…a viver contigo.

Nunca tinham falado daquela maneira. Raisa tinha de ser cuidadosa: se dissesse a coisa

errada, desse a resposta errada, Zoya fechava-se em copas e podia não ter outra oportunidade.

— Diz-me o que queres que eu faça.

Zoya reflectiu:

— Deixa Leo.

Os seus bonitos olhos pareciam dilatar-se, absorvendo todos os detalhes da reacção de

Raisa. A sua expressão estava repleta de esperança, com a ideia de nunca mais voltar a ver Leo.

Estava a pedir a Raisa que se divorciasse dele. Onde é que ela teria ouvido falar de divórcio? Era

um tema que raramente era abordado. A atitude inicialmente permissiva do Estado endurecera

sob o governo de Estaline, tornando o divórcio mais difícil, caro e estigmatizado. No passado,

Raisa considerara uma vida sem Leo muitas vezes. Teria Zoya detectado reminiscências dessa

relação amarga, ficando esperançada? Ter-se-ia atrevido a fazer tal pedido se não soubesse que

havia uma hipótese de Raisa concordar?

— Zoya…

Raisa sentiu-se apoderada de um desejo intenso de dar àquela menina tudo o que ela

quisesse. Ao mesmo tempo, ela era jovem: precisava de orientação, não podia fazer exigências

extravagantes e esperar que estas se realizassem.

— Leo mudou. Vamos falar, tu, eu e ele, juntos, esta noite.

— Não quero falar com ele. — Não quero vê-lo. Não quero ouvir a sua voz. Quero que

o deixes.

— Mas Zoya…eu amo-o.

59

Page 60: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

A esperança evaporou-se imediatamente do rosto de Zoya. A sua expressão tornou-se

fria. Sem dizer mais palavra, começou a correr, deixando Raisa para trás, que atravessou

apressadamente o portão principal.

Raisa viu Zoya desaparecer no interior da escola. Não podia correr atrás dela: era

impossível falarem sobre aquilo à frente dos outros alunos e, de qualquer forma, era tarde demais.

Zoya ficaria em silêncio, recusando-se a responder. O momento passara, a oportunidade

escapara-lhe; Raisa dera a sua resposta: eu amo-o. Palavras que foram por ela recebidas com um

estoicismo deprimido, como um condenado a ouvir a sentença de morte confirmada.

Amaldiçoando-se a si própria por ter dado uma resposta tão definitiva, Raisa entrou no terreno da

escola. Ignorando os estudantes e os professores com que se cruzava, reflectiu sobre o sonho de

Zoya: uma vida sem Leo.

No interior do edifício escolar, entrou na sala dos professores, incapaz de se concentrar,

tonta e distraída. Encontrou um pacote à sua espera. Não trazia carta. Abriu-o, lançando uma

vista de olhos ao conteúdo. Continha instruções que deveria ler o documento anexo a todos os

seus estudantes, a todos os grupos de idades. A carta era do Ministério da Educação. Rasgou o

papel pardo no qual o pacote vinha embrulhado, e espreitou para o tampo da caixa:

INTERDITA A PUBLICAÇÃO

Levantou a tampa, retirando de dentro uma grossa pilha de páginas bem dactilografadas.

Como era professora de política, recebia regularmente material, com instruções para o transmitir

aos estudantes. Quando deitou a carta no cesto dos papéis, descobriu que estava repleto de cartas

idênticas. Deviam ter sido enviadas cópias a todos os professores, o discurso devia ser lido a

todas as classes. Como estava já atrasada, Raisa pegou na caixa, saindo apressadamente.

Quando entrou na aula, os alunos conversavam, aproveitando o seu atraso. Eram trinta

alunos ao todo, com idades compreendidas entre os quinze e os dezasseis anos. Ensinara muitos

deles durante os três anos que se encontrava naquela escola. Pousou as páginas em cima da

secretária, explicando que hoje iriam ouvir um discurso do líder Khrushchev. Aguardou que os

aplausos enfraquecessem, começando depois a ler em voz alta.

— Relatório especial do vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética.

Por Nikita Sergeyevich Khrushchev, Primeiro Secretário, Partido Comunista da União Soviética.

Era o primeiro congresso desde a morte de Estaline. Raisa recordou à classe que a

revolução Comunista era internacional e que nestas reuniões se encontravam emissários dos

partidos internacionais de trabalhadores, assim como líderes soviéticos. Enquanto se mentalizava

60

Page 61: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

para uma hora de trivialidades e de declarações auto-congrulatórias, os seus pensamentos

centraram-se na esperança improvável de que Zoya conseguisse passar um dia sem se meter numa

luta.

Rapidamente a sua atenção tornou a regressar ao material que estava a ler. Aquele

discurso não era um discurso comum. Não abria com as normais descrições dos extraordinários

sucessos soviéticos. A meio do primeiro parágrafo, apertou o papel entre as mãos, parou, incapaz

de acreditar nas frases que lhe tinham sido enviadas. A classe estava em silêncio. Numa voz

irresoluta, leu:

— O culto da pessoa de Estaline tem vindo gradualmente a crescer, um culto que se

tornou fonte de toda uma série de perversões extremamente sérias e graves dos princípios do

Partido, da democracia do Partido, da legalidade revolucionária.

Espantada, folheou o documento, questionando-se se haveria mais, lendo em silêncio:

— As características negativas de Estaline, que, no tempo de Lenine, eram apenas

incipientes, transformaram-se durante os últimos anos num grave abuso de poder…

Passara a sua carreira inteira a propagandear o Estado, a ensinar aquelas crianças que o

Estado tinha sempre razão, era sempre bom e justo. Se Estaline tinha sido culpado de gerar um

culto, Raisa tinha sido um seu instrumento. Se legitimara o ensino de tais falsidades fora porque

considerava necessário que os seus estudantes aprendessem a linguagem da adulação, o

vocabulário da adoração do Estado, sem os quais estariam vulneráveis a suspeitas. A relação

entre um estudante e um professor assentava na confiança. E ela acreditava que se mantinha fiel

a essa premissa, não num sentido ortodoxo de dizer a verdade, mas no sentido de lhes dizer as

verdades que precisavam de ouvir. Todavia, aquelas palavras faziam dela uma mentirosa.

Ergueu os olhos. Os estudantes estavam demasiado confusos para compreender de imediato as

implicações do que acabara de ler. Mas acabariam por compreendê-las. Compreenderiam que

ela não era um modelo esclarecido, mas antes uma escrava de quem quer que estivesse no poder.

A porta abriu-se de repente. Iulia Peshkova, uma professora, estava parada na soleira da

porta, o rosto flamante, a boca aberta, aparentemente desconcertada, incapaz de pronunciar

palavra. Raisa ergueu-se:

— O que foi?

— Venha depressa.

Iulia era professora de Zoya. Raisa sentiu o medo atingi-la. Pousou as páginas,

ordenando aos alunos que permanecessem sentados nos seus lugares, e seguiu Iulia pelo corredor,

desceu depois as escadas, sem receber uma resposta em concreto:

— O que foi que aconteceu?

61

Page 62: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— É a Zoya. É o discurso. Eu estava a lê-lo e ela…tem de ver com os seus próprios

olhos.

Alcançaram a sala de aula. Iulia ficou para trás, deixando que Raisa entrasse primeiro.

Abriu a porta. Zoya estava de pé em cima da secretária da professora. A secretária tinha sido

empurrada para junto da parede. Todos os outros alunos estavam no lado oposto da sala,

agrupados, tão afastados quanto possível, como se Zoya tivesse uma doença contagiosa. Em

torno dos seus pés estavam as páginas do discurso e pedaços de vidro. Zoya estava de pé,

orgulhosa, triunfante. As suas mãos estavam cheias de sangue. Segurava nelas os restos de um

poster que tinha sido arrancado da parede, uma imagem de Estaline onde se lia por baixo:

PAI DE TODAS AS CRIANÇAS

Zoya subira para cima da mesa e arrancara a imagem da parede. Esmagara a moldura,

cortando-se na mão, e depois rasgara o poster em dois, decapitando a imagem de Estaline. Os

seus olhos rebrilhavam de vitória. Ergueu as duas metades do poster no ar, manchadas do seu

sangue, como se brandisse o corpo de um adversário vencido:

— Ele não é meu pai.

62

Page 63: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

À porta do apartamento de Nikolai, no corredor comunitário, estavam os restos do

discurso. Ao ver as páginas rasgadas, aao mesmo tempo que lançava um olhar às palavras, Leo

desembainhou a arma. Atrás dele, Timur fez o mesmo. Leo avançou, com o papel a amarrotar-se

debaixo dos seus pés, estendendo a mão para a maçaneta da porta. O apartamento não estava

trancado à chave. Empurrou suavemente a porta; os dois homens entraram para a sala de estar

vazia. Não havia sinal de distúrbios. As portas para os restantes quartos estavam fechadas, com

excepção de uma, a do quarto de banho.

A banheira estava cheia até cima, a superfície da água sangrenta quebrava-se apenas pela

emergência da cabeça de Nikolai, e a ilha formada pelo seu estômago anafado, coberto por um

ramalhete de pêlos. Os seus olhos e boca estavam abertos, como se espantados por um anjo, e

não o demónio, o ter recebido na morte. Leo agachou-se junto ao seu antigo mentor, um homem

cujas lições ele passara os últimos três anos a tentar desaprender. Timur chamou:

— Leo…

Ao ouvir a voz do seu delegado, Leo ergueu-se, seguindo-o ao quarto adjacente.

As duas meninas pareciam estar adormecidas, os cobertores puxados por cima dos seus

corpos até aos pescoços. Se fosse de noite, a calma daquele quarto teria parecido natural. Porém,

era meio-dia e a luz do dia penetrava pelas nesgas das cortinas. Ambas as raparigas estavam de

cara virada para as paredes: de costas voltas para uma para a outra. O cabelo comprido e

brilhante da mais velha estava espalhado por cima da almofada. Leo afastou-o, tocando-lhe no

pescoço. Restava ainda um vestígio ténue de calor, preservado debaixo do grosso edredão no

qual fora aconchegada com amor. Não havia sinais de ferimentos no seu corpo. A mais nova,

não devia ter mais de quatro anos, estava posicionada de forma idêntica. Estava fria. O seu

pequeno corpo tinha perdido o calor mais depressa do que o da irmã. Leo fechou os olhos. Podia

ter salvo aquelas meninas.

Na porta ao lado, a mulher de Nikolai, Ariadna, estava arranjada, tal como as filhas,

como se estivesse a dormir. Leo conhecia-a vagamente. Sete anos antes, depois de uma prisão,

Nikolai costumava insistir para que jantasse com eles. Fossem que horas fossem, Ariadna tinha

sempre o jantar preparado, oferecendo hospitalidade e civilidade depois das mútuas selvajarias de

Leo e Nikolai. Os jantares constituíam uma demonstração do valor do espaço doméstico, onde os

63

Page 64: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

detalhes do seu emprego sanguinolento não existiam, onde podia manter a ilusão de ser tão-

somente um comum marido afectuoso. Sentado à sua mesinha do toucador, Leo observou a

escova de marfim, os perfumes e os pós: luxos que Ariadna aceitara como forma de pagamento

pela sua devoção inquestionável. Não compreendera que a ignorância não era uma escolha: era

uma condição da sua existência. Nikolai não toleraria a sua família de outra forma.

Nunca conte nada à sua mulher

Como jovem oficial, Leo interpretara tais palavras como um aviso, murmuradas depois

de ter feito a sua primeira prisão, como referindo-se à necessidade de cautela e secretismo, uma

lição para não confiar mesmo naqueles que lhe eram mais próximos. Porém, não fora nada disso

que Nikolai pretendera dizer.

Incapaz de permanecer naquele apartamento por mais tempo, Leo soergueu-se,

cambaleando. Deixou os corpos para trás e caminhou apressadamente para o corredor

comunitário, onde se encostou à parede, respirando fundo e olhando para os restos do discurso de

Khrushchev, que se encontravam dispersos pelo chão, entregues e depositados à porta de Nikolai

com intenção letal. Quando regressara a casa na véspera, Nikolai lera apenas uma pequena parte;

a maioria dos papéis encontrava-se intocada dentro da caixa. Uma página tinha sido rasgada.

Acreditaria Nikolai que podia destruir aquelas palavras? Se esse pensamento lhe atravessara a

mente, a carta que as acompanhava teria acabado com essa esperança. O discurso era para ser

copiado e distribuído. A inclusão da carta oficial era uma mensagem para Nikolai, informando-o

que os segredos do seu passado já não estavam sob o seu controlo.

Leo lançou um olhar a Timur. Antes de se juntar ao departamento de homicídios, fora

oficial da milícia, prendia bêbados, ladrões e violadores. Ele não compartilhava a sua história de

prender criminosos políticos. Timur, um homem que raramente perdia o controlo das suas

emoções, estava visivelmente zangado.

— Era um cobarde.

Leo assentiu. A vida de Nikolai era a sua família. Não podia viver sem ela. E também

não podia morrer sem ela. Leo pegou numa página do discurso, olhando-a como se fosse uma

faca ou uma pistola: a mais efectiva de todas as armas mortais.

Um tropel de passos encheu as escadas. O KGB estava a chegar.

Os oficiais entraram no apartamento, olhando Leo com manifesto desprezo. Já não era

um deles, tinha desertado. Recusara o trabalho para poder dirigir o seu departamento de

64

Page 65: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

homicídios, um departamento que eles tentavam fechar desde que fora iniciado. Prezando a

lealdade acima de tudo o resto, nos seus olhos lia-se a pior de todas as coisas: traidor.

A chefiar a operação estava Frol Panin, oficial superior de Leo do Ministério do Interior,

o oficial das Investigações Criminais. Panin, com cerca de cinquenta anos, era um homem

bonito, bem constituído, charmoso. Embora Leo nunca tivesse visto um filme de Hollywood,

imaginava que Panin seria o tipo de homem que nele representaria. Fluente em várias línguas,

ocupara o cargo de embaixador e sobrevivera ao governo de Estaline, permanecendo no

estrangeiro. Segundo constava, não bebia, fazia exercício todos os dias e cortava o cabelo uma

vez por semana. Ao contrário de muitos oficiais, que se orgulhavam das suas raízes modestas e

mostravam indiferença para com todas as aparências burguesas, Panin era de uma impecabilidade

descarada. De discurso suave, educado, era uma nova casta de oficial, que sem dúvida aprovava

o discurso de Khrushchev. Era frequente falarem mal dele por trás das suas costas. Dizia-se que

nenhum homem tão tímido e afectado como ele, teria sobrevivido sob Estaline. As suas mãos

eram demasiado macias, as suas unhas demasiado limpas. Leo sabia que Panin teria aceitado tais

palavras como um elogio.

Panin estudou com vivacidade a cena do crime, antes de se dirigir aos oficiais do KGB:

— Ninguém sai do edifício. Contem quantos estão nos outros apartamentos,

contraverifiquem os seus registos residenciais e assegurem-se de que toda a gente é examinada.

Ninguém vai trabalhar, e vão procurar aqueles que já saíram, para serem interrogados.

Entrevistem toda a gente: descubram o que viram ou ouviram. Se suspeitarem que estão a

mentir, ou a ocultar informações, levem-nos para uma cela e perguntem-lhes outra vez. Nada de

violência, nem ameaças, façam-nos simplesmente compreender que a nossa paciência tem

limites. Se souberem de facto alguma coisa…

Panin entrecortou-se, acrescentando depois:

— Tratamos disso caso a caso. Além do mais, quero uma história para encobrir isto.

Acordem os detalhes entre vocês, mas não mencionem assassínio. Compreendido?

Depois, porém, reconsiderou e decidiu não lhes outorgar a responsabilidade de inventar

uma mentira plausível, dizendo:

— Estes quatro cidadãos não foram assassinados. Foram presos, levados. As crianças

foram enviadas para um orfanato. Comecem a difundir rumores acerca das suas atitudes

subversivas. Usem as pessoas que plantaram nas comunidades próximas. É imperativo que

ninguém veja os corpos quando forem levados. Fechem a rua, se tiver de ser.

65

Page 66: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Era melhor que a sociedade acreditasse que uma família inteira tinha sido morta, que

desaparecera sem deixar rasto, do que saber que um oficial reformado do MGB tinha assassinado

a sua família.

Panin dirigiu-se a Leo:

— Encontrou-se com Nikolai ontem à noite?

— Ligou-me por volta da meia-noite. Fiquei surpreendido. Não falava com ele há mais

de cinco anos. Estava perturbado, bêbado. Queria encontrar-se comigo. Concordei. Eu estava

cansado. Era tarde. Ele não dizia coisa com coisa. Disse-lhe para ir para casa e que falávamos

quando estivesse sóbrio. Essa foi a última vez que o vi. Quando chegou a casa, encontrou o

discurso de Khrushchev diante da porta. Foi colocado aqui como parte de uma campanha

contra ele, instigada, segundo penso, pelas mesmas pessoas que colocaram o discurso à minha

porta esta manhã.

— Leu o discurso?

— Foi por essa razão que vim para cá. Pareceu-me demasiada coincidência que me

tivesse sido entregue na mesma altura em que Nikolai entrava em contacto comigo.

Panin voltou-se, fitando Nikolai deitado na banheira cheia de água sangrenta:

— Eu estava no Palácio do Kremlin quando Nikita Khrushchev pronunciou o discurso.

Muitas horas depois ninguém se mexia, silêncio total, incredulidade absoluta. Só um número

muito pequeno de pessoas trabalhou nele, membros seleccionados do Presídio. Não foi dado

qualquer aviso. O Vigésimo Congresso começou com dez dias de debates triviais. Os delegados

ainda estavam a aplaudir o nome de Estaline. No último dia, os delegados estrangeiros estavam

a preparar-se para regressar a casa. Fomos chamados para uma sessão a portas fechadas.

Khrushchev mostrava uma certa satisfação pela tarefa. É um ávido admirador de se admitirem

os erros do passado.

— Ao país inteiro?

— Admitiu que aquelas palavras não podiam sair das fronteiras do Palácio, caso

contrário prejudicariam a reputação da nossa nação.

Leo não conseguiu evitar o tom de raiva na sua voz:

— Então porque estão três milhões de cópias em circulação?

— Ele mentiu. No fundo, quer que as pessoas o leiam. Quer que as pessoas saibam que

foi a primeira pessoa a pedir desculpa. Ocupou o seu lugar na História: foi o primeiro homem

a criticar Estaline que não foi executado. A nota que não deve ser impresso na impressa, foi

uma concessão àqueles que se opuseram ao discurso. Claro, tal estipulação é absurda, no

contexto de planos de distribuição mais abrangentes.

66

Page 67: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Khrushchev ergueu-se sob Estaline.

Panin sorriu:

— Todos nós somos culpados, certo? E ele sente-o. Está a confessar, parcialmente. De

muitas formas, é uma denúncia à moda antiga. Estaline é mau: eu sou bom. Eu tenho razão:

eles estão errados.

— Nikolai, eu próprio, nós somos as pessoas que ele está a dizer a toda a gente para

odiar. Está a transformar-nos em monstros.

— Ou a mostrar ao mundo os monstros que nós, na realidade, somos. Incluo-me

também nisso, Leo. É essa verdade no caso de toda a gente que esteve envolvida, de toda a gente

que fazia este sistema andar. Não estamos a falar de uma lista de cinco nomes. Estamos a falar

de milhões de pessoas, todas elas activamente envolvidas ou cúmplices. Já considerou a

possibilidade de que podem haver mais culpados do que inocentes?

Leo olhou para os oficiais do KGB, que examinavam as duas crianças.

— As pessoas que enviaram este discurso a Nikolai têm de ser apanhadas.

— Concordo. Que pistas tem?

Leo abriu o bloco-notas, retirando a folha de papel dobrada, que fora retirada da máquina

tipográfica de Moskvin.

Sob tortura, Eikhe

Panin examinou-a enquanto Leo pegava numa página da cópia do discurso que Nikolai

recebera. Apontou para uma linha:

Sob tortura, Eikhe foi forçado a assinar um protocolo da sua confissão, preparado de

antemão pelos juízes de investigação.

Quando detectou a duplicação das três palavras Panin inquiriu:

— De onde é que veio a primeira folha?

— De uma tipografia, gerida por um homem chamado Suren Moskvin, reformado do

MGB. Tenho a certeza que o discurso lhe foi entregue a ele. De acordo com os filhos, ele tinha

um contrato oficial com o Estado para imprimir dez mil cópias. Mas não encontro provas desse

contrato. Nem tão pouco acredito que existisse: era uma mentira. Foi-lhe dito que se tratava de

um contrato do Estado e depois recebeu o discurso. Trabalhou toda a noite, a compô-lo para

impressão, até ao momento que chegou a estas palavras: nessa altura decidiu suicidar-se.

67

Page 68: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Entregaram-lhe o discurso, cientes do efeito que este teria nele, tal como o entregaram a Nikolai,

tal como o entregaram a mim. Ontem, Nikolai contou-me que lhe tinham sido enviadas

fotografias das pessoas que ele prendera. Moskvin também foi assediado com fotografias das

pessoas com quem teve contacto.

Leo retirou o volume modificado do texto de Lenine, segurando ao alto a fotografia do

prisioneiro, colada nas primeiras páginas, em lugar da de Lenine.

— Tenho a certeza que se trata de uma pessoa com ligações a nós os três – Suren,

Nikolai e eu próprio – alguém que foi recentemente libertado da prisão, um parente de uma…

Leo entrecortou-se antes de acrescentar a palavra:

— …de uma vítima.

Timur perguntou:

— Quantas pessoas prendeu como agente do MGB?

Leo reflectiu. Em ocasiões, prendia famílias inteiras: seis pessoas numa noite.

— Ao longo de três anos…muitas centenas.

Timur não conseguiu esconder a sua surpresa. O número era muito elevado. Panin

notou:

— E acha que o responsável lhe irá enviar uma fotografia?

— Não nos temem, agora já não. Agora somos nós quem os teme.

Panin bateu as mãos, chamando os diversos oficiais:

— Revistem o apartamento. Estamos à procura de um molho de fotografias.

Leo acrescentou:

— Nikolai deve tê-las escondido bem. Era vital que a sua família nunca as encontrasse.

Ele era um agente e, portanto, sabia onde esconder as coisas e sabia onde é que as pessoas as

poderiam procurar.

Os oficiais iniciaram uma revista sistemática a todas as divisões. O luxuoso apartamento

que Nikolai passara anos a mobilar e a decorar, demorou horas a ser desmantelado. Para poderem

procurar debaixo das camas e arrancar as tábuas do soalho, os corpos das crianças e da mulher

foram depositados no centro da sala de estar, enrolados em lençóis. À volta deles, desfaziam-se

guarda-roupas, rasgava-se colchões. Não se encontraram fotografias.

Frustrado, Leo fitou Nikolai deitado na banheira cheia de água sangrenta. Atingido

subitamente por uma ideia, dirigiu-se à banheira, e sem tirar a camisa, afundou o braço dentro de

água. Sentiu a mão de Nikolai. Os seus dedos estavam enclavinhados em torno de um envelope

grosso. Morrera agarrado a ele. O papel estava amolecido e desfez-se assim que Leo pegou nele;

o seu conteúdo começou a flutuar à superfície. Timur e Panin juntaram-se a Leo, observando à

68

Page 69: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

medida que, uma a uma, os rostos dos homens e mulheres ascendiam do fundo sangrento da

banheira. Em breve um filme de fotografias, centenas de rostos sobrepostos, balouçava na água,

para cima e para baixo. Os olhos de Leo erravam de velhas mulheres para jovens rapazes, mães e

pais, filhos e filhas. Um dos rostos chamou a sua atenção. Apanhou-o da água. Timur

perguntou:

— Conheces esse homem?

Sim, Leo conhecia-o. O seu nome era Lazar.

69

Page 70: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Na frente do envelope fora desenhado um crucifixo, um cuidadoso desenho a tinta da

cruz ortodoxa. Era um desenho pequeno, aproximadamente do tamanho da palma da sua mão.

Alguém demorara-se a desenhá-lo: as proporções estavam correctas, o trabalho a tinta era

competente. Teria o propósito de lhe instigar medo, como se de um espírito maligno ou um

demónio se tratasse? O mais provável era que albergasse uma intenção irónica, uma espécie de

comentário acerca do seu destino. Nesse caso, falhara redondamente: de certo modo, tratava-se de

uma psicologia amadora.

Krasikov rompeu o selo, esvaziando o conteúdo do envelope em cima da sua secretária.

Mais fotografias…sentiu-se tentado a atirá-las para a lareira como fizera com as outras, mas a sua

curiosidade deteve-o. Colocou os óculos, aguçando a vista, e começou a estudar o novo lote de

rostos. À primeira vista, não lhe diziam nada. Preparava-se para pô-los de parte, quando um dos

rostos lhe prendeu a atenção. Concentrou-se, tentando recordar-se do nome daquele homem de

olhos intensos:

Lazar

Aqueles eram os padres que ele tinha denunciado.

Contou-os: trinta rostos. Teria traído assim tantos? Nem todos tinham sido presos na

época em que ocupara o cargo de Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia, liderando a

autoridade religiosa no país. As denúncias tinham precedido essa nomeação, dispersas ao longo

de muitos anos. Estava agora com setenta e cinco anos. Para uma vida inteira, trinta denúncias

não era muito. A sua obediência calculada ao Estado salvara a Igreja de prejuízos imensuráveis –

uma aliança profana, talvez; porém, aqueles trinta padres tinham sido sacrifícios necessários. Era

um desleixo da sua parte não ser capaz de se lembrar de todos os nomes. Devia rezar por eles

todas as noites. Em vez disso, deixara que se lhe deslizassem da mente, como chuva a escorrer

por uma vidraça. Achou o esquecimento mais fácil do que um pedido de perdão.

E, mesmo com as fotografias nas suas mãos, não sentia remorsos. Não se tratava de

bravata. Não sofrera, de facto, pesadelos, não sentira angústia. A sua alma estava leve. Sim, lera o

discurso de Khrushchev, que lhe fora enviado pelas mesmas pessoas que haviam enviado aquelas

fotografias. Lera as críticas ao regime cruel de Estaline, um regime que ele apoiara, ordenando

70

Page 71: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

aos padres que elogiassem Estaline nos seus sermões. Houvera, indubitavelmente, um culto de

um ditador, e ele fora um idólatra fiel. E então? Se aquele discurso apontava para um futuro de vã

introspecção, que fosse: porém, ele não se prestaria a tais introspecções. Tinha sido ele o

responsável pela perseguição à Igreja nas primeiras décadas do Comunismo? Claro que não;

limitara-se a reagir às circunstâncias nas quais tanto ele como a sua venerada Igreja se

encontravam. A sua mão tinha sido forçada. A decisão de entregar alguns dos seus colegas fora

desagradável, porém, não fora difícil. Havia indivíduos que julgavam que podiam dizer e fazer o

que lhes apetecia, simplesmente porque se tratava da obra de Deus. Eram ingénuos, e ele achava-

os maçadores, gente ávida de se tornar mártir. Nesse sentido, limitara-se a dar-lhes o que

pretendiam, a oportunidade de morrer pela sua fé.

A religião, tal como tudo o resto, tinha de se comprometer. Por conseguinte, o pomestny

sobor, o concílio de bispos, propusera-o sagazmente para Patriarca. Precisavam de alguém que

tivesse uma atitude política, flexível e sensata, razão pela qual a sua nomeação fora aprovada pelo

Estado e por que o Estado permitira aquelas eleições, eleições essas que haviam sido

convenientemente manobradas a seu favor. Houve quem defendesse que a sua eleição era uma

violação da lei canónica Apostólica; que a hierarquia eclesiástica não devia ser consagrada pelas

autoridades seculares. Na sua opinião, tratava-se de um argumento académico obscuro, numa

altura em que o número de igrejas tinha diminuído de vinte mil para menos de mil. Deveriam eles

desaparecer todos, orgulhosamente aferrados aos seus princípios, como um capitão aferrado ao

mastro do seu navio a naufragar? A sua nomeação destinara-se a reverter esse declínio e a conter

as perdas. E ele fora bem-sucedido: haviam-se construído novas igrejas; os padres estudavam em

lugar de serem fuzilados. Fizera o que lhe fora pedido, nada mais. Não agira por maldade. E a

Igreja sobrevivera.

Krasikov ergueu-se, fatigado destas memórias. Pegou nas fotografias e amontoou-as

sobre o fogo, vendo-as encaracolar, enegrecer e arder. Contara com a possibilidade de represálias.

Era impossível governar uma organização tão complexa como a Igreja, e gerir a sua relação com

o Estado, sem criar inimigos nesse processo. Como homem cauteloso que era, tomara medidas

para se proteger. Velho, adoentado, era Patriarca apenas de nome, e já não participava da gestão

quotidiana da Igreja. Passava agora grande parte do seu tempo a trabalhar num santuário de

crianças por si fundado, não muito distante da Igreja da Concepção de Santa Anna. Havia quem

considerasse o seu santuário a tentativa de redenção de um moribundo. Que pensassem o que

entendessem. Tal não o preocupava. Agradava-lhe o trabalho: não havia mais mistério que esse.

O trabalho duro era realizado pelos membros mais jovens da congregação, ao passo que ele

fornecia orientação espiritual às cerca de cem crianças que podiam acomodar, convertendo-as de

71

Page 72: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

um caminho de adição ao chiffir, um narcótico derivado de folhas de chá, a uma vida de devoção.

Tendo dedicado a sua vida a Deus, uma dedicação que o impedia de ter filhos seus, aquela era

uma excepcional forma de compensação.

Fechou a porta do escritório, trancando-a à chave, e desceu as escadas que conduziam à

sala principal do santuário, onde as crianças tomavam as refeições e recebiam as suas lições.

Havia quatro dormitórios: dois femininos, dois masculinos. Havia também uma sala de orações

com um crucifixo, ícones e velas: uma sala onde ele professava assuntos de fé. As crianças não

podiam frequentar o santuário se não quando abriam os seus corações a Deus. Se resistissem, se

se recusassem a acreditar, eram expulsas. O que não faltava eram crianças de rua. De acordo com

as estimativas do Estado, às quais ele tinha acesso, havia cerca de oitocentas mil crianças sem-

abrigo dispersas pelo país, concentradas sobretudo nas grandes cidades: vivendo em estações

ferroviárias ou dormindo em becos. Algumas tinham fugido de orfanatos, outras de colónias de

trabalho forçado. Muitas tinham vindo da província, subsistindo nas cidades como matilhas de

cães selvagens: rebuscando no lixo e roubando. Krasikov não era sentimental. Compreendia que

aquelas crianças eram potencialmente perigosas e desonestas. Por isso, contratara os serviços de

ex-soldados do Exército Vermelho para manter a ordem. O complexo era seguro. Ninguém podia

entrar ou sair sem a sua permissão. Toda a gente era revistada à entrada. Havia guardas no

interior, a circular, e sempre dois na porta principal. Aparentemente, aqueles homens tinham sido

contratados para manter as cem crianças na ordem. Contudo, aqueles homens forneciam também

um segundo serviço: eram os guarda-costas de Krasikov.

Krasikov observou a sala, procurando entre os rostos agradecidos a sua mais recente

admissão, um rapaz, dos seus treze, catorze anos. Não dissera a sua idade, recusando-se a falar

muito. O rapaz sofria de uma gaguez aguda, e o seu rosto era peculiarmente adulto, como se por

cada ano passado na Terra tivesse envelhecido três. Estava na hora da integração do rapaz, de

decidir se a sua dedicação a Deus era sincera.

Krasikov fez sinal a um dos guardas que lhe trouxesse o rapaz. Este evitou-o como um

cão maltratado, desconfiado do contacto humano. Tinha sido encontrado na soleira de uma porta,

não muito longe do santuário, embrulhado em farrapos, segurando entre as mãos uma figura de

barro de um homem sentado no dorso de um porco, cavalgando-o como se este fosse um cavalo.

Era uma peça cómica de porcelana doméstica, sugerindo origens provincianas. A pintura da

figura, em tempos de cores vivas, desbotara. Notavelmente, não estava partida com excepção da

orelha esquerda, um pouco lascada. O rapaz, viçoso e forte, nunca a perdia de vista e nunca a

largava. Tinha porventura qualquer valor sentimental, um objecto pertencente ao passado do

rapaz.

72

Page 73: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Krasikov esboçou um sorriso ao guarda, dispensando-o educadamente. Abriu a porta da

sala de orações, esperando que o rapaz o seguisse. Porém, ele não se mexia, agarrando o homem

pintado em cima do porco com tanta força como se este estivesse cheio de ouro.

— Não és obrigado a fazer nada que não queiras. Porém, se não consegues deixar Deus

entrar na tua vida, não podes ficar aqui.

O rapaz deitou um olhar às outras crianças. Tinham parado de fazer o que estavam a

fazer: observavam a decisão que ele tomaria. Nunca ninguém tinha dito que não. O rapaz entrou

na sala de orações, receoso. Quando passou por ele, Krasikov inquiriu:

— Recorda-me o teu nome.

O rapaz balbuciou:

— Ser…gei.

Krasikov fechou a porta atrás ele. A sala tinha sido preparada. Havia velas a arder. A luz

da tarde dissipava-se. Ajoelhou-se diante do crucifixo, sem dar instruções a Sergei, esperando que

o jovem se juntasse a ele, um teste simples para ver se a criança tinha alguns antecedentes

religiosos. Aqueles que tinham experiência juntavam-se a ele: aqueles que não a tinham

permaneciam junto à porta. Sergei não se mexeu, permanecendo junto da porta:

— Muitas das crianças eram ignorantes quando aqui chegaram. Isso não é crime. Irás

aprender. Espero que Deus ocupe um dia o lugar dessa figura de brinquedo que tanto estimas.

Para surpresa de Krasikov, o rapaz respondeu trancando a porta. Antes que pudesse

interrogar a sua atitude, o rapaz avançou rapidamente, extraindo um fio de arame da orelha

lascada do porco. Ao mesmo tempo, ergueu a figura de barro acima da sua cabeça, atirando-a ao

chão com toda a sua força. Krasikov virou-se instintivamente, esperando que esta o atingisse.

Mas a figura falhou o alvo e caiu com estrondo a seus pés, partindo-se em vários fragmentos

desiguais. Chocado, espreitou para os fragmentos de porcelana. Havia mais qualquer coisa para

além dos restos do porco: algo cilíndrico e preto. Dobrou-se, apanhando-o. Era uma lanterna.

Confuso, ainda tentou soerguer-se. Antes que o conseguisse, porém, um laço corrediço

passou-lhe por cima da cabeça, enrolando-se-lhe à volta do pescoço. Era um fio de aço preso por

um nó. O rapaz segurava na outra ponta, enrolada na mão. Puxou com força: o arame apertou-se;

Krasikov arquejou quando a respiração lhe foi cortada. As faces tornaram-se-lhe vermelhas, o

sangue constringido. Escorregou com os dedos pelo arame, sem contudo conseguir enfiar os

dedos por debaixo, incapaz de soltar o nó. O rapaz puxou-o novamente, falando numa voz fria,

composta, sem o menor vestígio da anterior gaguez:

— Se responder correctamente, deixo-o viver.

73

Page 74: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

À entrada do santuário, Leo e Timur eram impedidos de entrar, barrados por dois

guardas. Frustrado com o atraso, Leo mostrou a fotografia de Lazar aos homens, explicando:

— Toda a gente envolvida na prisão deste homem corre perigo. Já morreram dois

homens. O Patriarca denunciou-o ao Estado. É seguramente um alvo.

Os guardas mostraram-se pouco impressionados:

— Iremos transmitir a mensagem.

— Temos de nos certificar que ele está bem, imediatamente.

— Milícia ou não, o Patriarca deu-nos instruções para não deixarmos ninguém entrar.

No andar de cima ouviu-se um grande alarido: o som de gritos. Num instante, a

complacência dos guardas transformou-se em pânico. Abandonaram o seu posto, galgando as

escadas, seguidos por Leo e Timur, irrompendo numa sala repleta de crianças. O pessoal estava

apinhado junto de uma porta, abanando-a, sem contudo conseguir entrar. Os guardas juntaram-se

ao tumulto, puxando a maçaneta da porta, ao mesmo tempo que ouviam as explicações

sobrepostas:

— Ele entrou aí para rezar.

— Com o rapaz novo.

— Krasikov não responde.

— Partiu-se qualquer coisa.

Leo interveio na discussão:

— Derrube a porta.

Voltaram-se para encará-lo, indecisos.

— Façam-no, já.

O guarda mais forte e mais pesado correu para diante, esmagando o ombro contra a

madeira. Fez nova investida, a porta partiu-se.

Trepando pela nesga estilhaçada, Leo e Timur entraram na sala. Uma voz jovem,

autoritária e segura, gritou:

— Fiquem onde estão!

Os guardas detiveram-se, homens ferozes rendidos, impotentes, à cena diante deles:

O Patriarca estava de joelhos, virado para eles, o rosto vermelho como sangue, a boca

aberta; tinha a língua de fora, obscena, como uma lesma retorcida. Um fio de arame, estendido

nas mãos do jovem, constrangia-lhe a garganta. As mãos do rapaz estavam enroladas em trapos,

e o fio estava enrolado em várias voltas numa delas. Como um mestre com um cão pela trela, o

74

Page 75: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

rapaz exercia o seu controlo absoluto e letal: se puxasse um pouco mais, o arame estrangularia o

Patriarca ou cortar-lhe-ia a garganta.

O rapaz recuou um passo com cautela, aproximando-se da janela, ao mesmo tempo que

mantinha o arame apertado e sem ceder uma folga. Leo emergiu do grupo de guardas, que tinham

ficado paralisados ao constatarem o seu fracasso em protegê-lo. Separavam-no cerca de dez

metros do Patriarca. Não podia arriscar-se a correr para diante. Mesmo que conseguisse alcançar

o Patriarca, seria impossível enfiar os dedos por debaixo do arame. O rapaz dirigiu-se a Leo,

pressentindo as suas intenções, dizendo:

— Se se aproximar mais, ele morre.

Depois, abriu a pequena janela, trepando para o peitoril. Estavam no primeiro andar,

demasiado alto para ousar um salto. Leo perguntou:

— O que pretendes?

— Um pedido de desculpas deste homem…por ter traído Lazar.

Leo lançou um olhar ao Patriarca. A ameaça de morte seria com certeza suficiente para

torná-lo complacente. As ordens do rapaz eram arrancar-lhe um pedido de desculpas. Se essas

eram as suas ordens, iria obedecer: era a única margem de manobra que Leo possuía.

— Ele vai pedir desculpa. Afrouxa o arame. Deixa-o falar. Foi para isso que vieste.

O Patriarca assentiu, indicando que queria aceder. Após uma breve reflexão, o rapaz

afrouxou o arame devagar. Krasikov arquejou, numa inspiração de ar estrangulada.

Nos olhos do velho cintilou uma resistência suprema, e Leo compreendeu que tinha

cometido um erro terrível. Reuniu as suas forças, espalhando cuspo a cada palavra:

— Diga a Lazar…que o trairia outra vez!

Com excepção do Patriarca, todos os olhos se viraram para o rapaz. Porém, ele já tinha

desaparecido. Tinha saltado pela janela.

O arame ergueu-se no ar e, com o peso originado pelo peso do rapaz, o pescoço do velho

homem foi colhido com tal violência que este se ergueu em peso, como uma marioneta puxada

por fios, antes de cair de costas, arrastado ao longo do chão, indo por fim embater na pequena

janela. O seu corpo ficou preso no vão da janela. Leo deu um salto para diante, arrepanhou o

arame em volta do pescoço do Patriarca, tentando aliviar a pressão. O arame, porém, tinha-se-lhe

cravado na carne, decepando os músculos. Leo não podia fazer nada.

Espreitou pela janela e avistou o rapaz na rua em baixo. Sem uma palavra, Leo e Timur

correram para fora da sala, deixando para trás os guardas ainda de espírito confuso, e

atravessaram a sala principal do santuário, apinhada de crianças, descendo as escadas. O rapaz era

habilidoso e veloz, mas era jovem e não correria mais depressa do que eles.

75

Page 76: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Chegados à rua, não avistaram o rapaz em lado nenhum. Não havia becos, nem esquinas

onde pudesse virar num raio de distância muito grande; não podia ter percorrido aquela rua toda

no breve espaço de tempo que demoraram a alcançar a rua. Leo correu para a janela onde o arame

ainda estava pendurado. Encontrou as pegadas do rapaz na neve e seguiu-as até uma sarjeta. A

neve fora afastada. Timur levantou a tampa. O poço era bastante fundo: uma escada de metal

conduzia a um sistema de esgotos. O rapaz já se encontrava próximo do fundo, com os trapos

enrolados nas mãos. Ao ver luz acima dele, ergueu os olhos, revelando o rosto à luz do dia.

Assim que avistou Leo, soltou a escada e deixou-se cair, desaparecendo na escuridão.

Leo voltou-se para Timur:

— Vai buscar as lanternas ao carro.

Sem mais demoras, Leo agarrou na escada e começou a descer. Os degraus estavam

gelados e, sem luvas, a pele colava-se-lhe ao metal. De cada vez que tirava as mãos dos degraus,

ficava sem um pedaço de pele. Havia luvas no carro, mas não podia atrasar a perseguição. O

sistema de esgotos era um labirinto de túneis: o rapaz podia desaparecer facilmente, bastava que

se enfiasse num deles sem ser visto e estaria livre. Leo cerrou os dentes de dor, quando as palmas

das suas mãos começaram a sangrar. De lágrimas nos olhos, olhou para baixo, avaliando a

distância que faltava. Ainda estava demasiado longe para poder arriscar um salto. Tinha de

continuar, forçado a premir as mãos em carne viva contra o metal gelado. Soltou um grito e

largou a escada.

Aterrou de forma estranha num rebordo de cimento, os pés a escorregarem-lhe, quase que

tombando num canal fundo de água imunda. Reequilibrou-se e começou a examinar o espaço em

seu redor: um túnel de tijolo largo, aproximadamente do tamanho do túnel do metro. Uma poça

de luz vinda do cimo do poço iluminava um retalho de chão à sua volta, mas pouco mais.

Adiante, estava escuro, com excepção de uma pequena luz intermitente, como um pirilampo,

cerca de cinquenta metros mais à frente. Era o rapaz: tinha uma lanterna, preparara-se para aquela

fuga.

De súbito, a luz desapareceu. Ou o rapaz tinha apagado a lanterna, ou entrara noutro

túnel. Incapaz de o seguir na escuridão, incapaz de ver o chão de cimento adiante, Leo ergueu os

olhos para o poço, esperando por Timur: todos os segundos contavam.

— Anda lá…

O rosto de Timur assomou-se no topo. Leo gritou:

— Atira-a!

Se não conseguisse apanhar a lanterna, esta esmagar-se-ia no chão de cimento e teria de

adiar a perseguição até Timur descer. Nessa altura, já o rapaz teria desaparecido. Timur recuou de

76

Page 77: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

forma a não tapar a luz. O seu braço apareceu estendido, segurando uma lanterna, posicionando-a

mesmo no centro do buraco. Depois, deixou-a cair.

Leo seguiu o objecto com os olhos quando este começou a girar, ricocheteando na

parede, indo de encontro aos rebordos novamente, num movimento que era agora completamente

imprevisível. Deu um passo em frente, estendeu a mão e apanhou o cabo, sentindo uma dor

pungente nas mãos em chaga ao agarrá-lo. Enquanto expulsava o instinto de soltar a lanterna,

ligou o interruptor. A lâmpada ainda funcionava. Dirigiu a luz na direcção em que o rapaz

desaparecera, revelando uma faixa estreita de cimento, que corria ao longo das paredes do túnel,

acima do vagaroso curso de água imunda. Deitou a correr: a sua velocidade, porém, estava

limitada pelo gelo e pelo lodo, as pesadas botas escorregavam na precária superfície. Temperado

pelo frio, o cheiro não era insuportável, e ele restringiu-se a inspirar breve e superficialmente.

No sítio onde o rapaz desaparecera, a faixa de cimento terminava. Havia um segundo

túnel, bastante mais estreito – cerca de um metro de largo – cuja base aparecia à altura dos seus

ombros. Aquele túnel lateral conduzia a um canal situado abaixo. As paredes estavam pinceladas

de excrementos. O rapaz devia ter trepado por ali. Não havia outra saída. Leo tinha de rastejar

para dentro do túnel.

Atirou primeiro a lanterna. Retesou-se e agarrou-se às paredes laterais conspurcadas, as

feridas abertas bramindo de dor ao toque da carne em ferida na sujidade e nos dejectos.

Entontecido pela dor, tentou içar-se, ciente de que se as mãos lhe escorregassem, cairia no canal

em baixo. Mas não havia nada a que se pudesse agarrar, para além das paredes interiores do túnel:

estendeu a mão, que escorregou para uma superfície recurvada, suave. Com a ponta da bota

conseguiu firmar-se na parede de tijolos partida. Içou-se para dentro do túnel, deitado de bruços,

tentando limpar a sujidade das mãos. No espaço confinado, o fedor era insuportável. Leo teve

vómitos. Depois de controlar os vómitos, pegou na lanterna, dirigindo o foco de luz para o fundo

do túnel, e começou a rastejar de barriga para baixo, apoiando-se nos cotovelos para se

propulsionar para diante.

Uma série de barras enferrujadas bloqueavam o caminho adiante: o espaço entre elas era

menor do que a largura da sua mão. O rapaz devia ter seguido por outro caminho. Preparava-se

para regressar, quando se deteve. Tinha a certeza: não havia outra saída. Limpou a fuligem e

examinou as barras. Duas delas estavam soltas. Agarrou-as, abanando. Podiam ser retiradas. O

rapaz tinha inspeccionado aquele caminho, fora por isso que trouxera a lanterna, fora por isso que

sabia que tinha de enrolar trapos nas mãos: a sua intenção era escapar pelos esgotos. Mesmo

depois de ter retirado as duas barras, Leo teve dificuldades em enfiar-se pelo buraco. Foi obrigado

a despir o casaco para conseguir caber, emergindo depois numa câmara cavernosa.

77

Page 78: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Quando baixou os pés, teve a sensação de que o chão se mexia. Apontou a luz para baixo.

O chão estava vivo com ratazanas, três ou quatro camadas a rastejarem umas sobre as outras. A

repugnância que o atingiu foi moderada pela curiosidade que lhe despertou o facto de seguirem

todas na mesma direcção, numa fuga desesperada. Apontou a luz na direcção de onde vinham a

correr, afluindo em magotes de um túnel mais largo. No interior desse túnel, Leo avistou o rapaz,

a cerca de cem metros de distância de si. O rapaz não ia a correr: estava parado junto à parede, a

mão encostada a esta. Cauteloso, pressentindo que havia alguma coisa que não batia certo, Leo

avançou.

O rapaz deu meia volta e, ao avistar o seu perseguidor, começou novamente a correr.

Pendurara a lanterna ao pescoço com um pedaço de cordel, o que lhe deixava ambas as mãos

livres. Leo estendeu a mão, sentindo as vibrações na parede do túnel. Eram tão intensas que os

dedos lhe começaram a tremer.

O rapaz corria depressa, com a água a salpicar-lhe em torno dos tornozelos. Leo seguiu-

lhe os movimentos com a lanterna. Ágil como um gato, usava a curvatura das paredes laterais

para ganhar impulso e saltar para o alto. O seu alvo era a travessa de uma escada, que emergia na

vertical de um túnel acima. O rapaz não conseguiu agarrar o degrau de baixo, aterrando com um

chape no chão. Leo correu para diante. Atrás dele, conseguia os gritos asco de Timur, sem dúvida

por causa da massa de ratazanas. O rapaz entretanto levantara-se, preparando-se para ensaiar

novo pulo para a escada.

Subitamente, o fino curso de água estagnada começou a inchar, a encapelar-se, a

avolumar-se. Um barulho tremendo encheu o túnel. Leo ergueu a lanterna. O foco de luz recaiu

sobre uma espuma branca: a crista rompente de uma parede de água, abatendo-se sobre eles a

menos de duzentos metros de distância.

Restando-lhe apenas poucos segundos, o rapaz fez nova tentativa para alcançar a escada,

saltando para a parede, e deitando a mão à travessa de baixo. Desta vez conseguiu apanhá-la,

segurando-se com ambas as mãos. Içou-se, trepando para o túnel vertical, para longe do alcance

da água. Leo voltou-se, gritando a Timur:

— Corre!

A água aproximava-se. Timur acabava de entrar no túnel principal.

Aproximando-se da base da escada, Leo prendeu a lanterna entre os dentes e saltou,

agarrando-se à barra metálica, as mãos pungindo à medida que se içava. Conseguia ver o rapaz

acima dele a subir. Ignorou a dor e apressou-se, aproximando-se dele. Agarrou num dos pés do

rapaz. Segurando-o firme, enquanto o rapaz tentava libertar-se com pontapés, Leo apontou a luz

da lanterna para baixo. Avistou Timur na base do poço. Desesperado, Timur deixou cair a

78

Page 79: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

lanterna, e saltou para a última travessa. Agarrou-a com ambas as mãos, no preciso instante em

que a água se amontoou à sua volta, uma água branca e espumosa explodindo para o interior do

túnel vertical.

O rapaz riu-se:

— Se quiser salvar o seu amigo, terá de me soltar!

Tinha razão. Leo tinha de soltar o rapaz e descer para ajudar Timur.

— Ele vai morrer!

Timur emergiu da água, a arfar, içando-se, ao mesmo tempo que enrolava um braço na

trave seguinte e se libertava da espuma. Grande parte do seu corpo ainda estava submerso, mas

ele era um homem forte de braços. Levantou os olhos para Leo:

— Eu estou bem.

Aliviado, Leo não se mexeu, mantendo o tornozelo do rapaz bem seguro, enquanto ele

dava pontapés e coices. Timur escalou até junto de Leo, tirou-lhe a lanterna que segurava na boca

e apontou-a para o rosto do rapaz.

— Se deres outro pontapé, parto-te a perna.

O rapaz deteve-se: não tinha dúvidas de que Timur falava a sério. Leo acrescentou:

— Vamos subir juntos, devagar, até ao próximo nível. Compreendido?

O rapaz assentiu com um gesto de cabeça. Os três começaram a escalar a escada,

devagar, de uma forma estranha, uma massa de membros, movendo-se como uma aranha

deformada.

Quando alcançaram o cimo da escada, Leo estacou, segurando no tornozelo do rapaz,

enquanto Timur se esgueirava por entre eles, alcançando a passagem acima:

— Larga-o.

Leo soltou-o e subiu. Timur segurava os braços do rapaz. Leo pegou na lanterna com a

ponta dos dedos, para evitar o toque com as mãos em chaga. Apontou a luz para o rosto do rapaz.

— A tua única hipótese de te manteres vivo é falando comigo. Assassinaste um homem

muito importante. Muita gente vai querer executar-te.

Timur abanou a cabeça.

— Estás a perder o teu tempo. Olha para o pescoço dele.

O pescoço do rapaz estava marcado com uma tatuagem, uma cruz ortodoxa. Timur

explicou:

— Faz parte de um gangue. Prefere morrer a falar.

O rapaz sorriu:

— O senhor está aqui em baixo. Lá em cima, a sua mulher…Raisa…

79

Page 80: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo reagiu instantaneamente, avançou, agarrou o rapaz pela camisola, arrebatando-o das

mãos de Timur, e levantou-o no ar. Era a oportunidade de que o rapaz estava à espera. Como uma

enguia, esgueirou-se para fora da camisola, saltou para o chão e fugiu para o lado. Leo ficou com

a camisa do rapaz na mão. Voltou a lanterna, encontrando o rapaz acocorado junto à borda do

poço. O rapaz saltou, caindo na água em baixo. Leo ainda o tentou agarrar, mas era tarde demais.

Quando espreitou para baixo não viu sinais do rapaz: tinha caído na água revolta, e fora arrastado.

Desorientado, Leo avaliou o sítio onde se encontrava: um túnel de cimento fechado.

Raisa estava em perigo. E não havia saída.

80

Page 81: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Raisa estava sentada diante do director da escola, Karl Enukidze, um homem afável, de

barba cinzenta e faces rechonchudas. Com eles estava também Iulia Peshkova, a professora de

Zoya. Os dedos de Karl estavam dobrados debaixo do queixo, coçando a barba para diante e para

trás, ao mesmo tempo que olhava para Raisa e depois para Iulia. Durante grande parte do tempo,

Iulia evitou o confronto, mordendo o lábio e desejando estar em qualquer lugar que não aquele.

Raisa compreendeu o seu temor. Se a destruição do retrato de Estaline fosse investigada, Zoya

ficaria sujeita ao escrutínio do KGB. Mas eles também. A questão da culpa podia ser

reconstituída: culpa-se a criança ou os adultos que influenciaram a criança? Seria Karl um

elemento subversivo, que encorajava os comportamentos dissidentes dos seus estudantes quando

estes deviam ser fervorosamente patrióticos? Ou talvez fossem as aulas de Iulia que tinham um

carácter soviético insuficiente. Surgiriam questões quanto ao tipo de guardiã que Raisa fora.

Tenteavam-se, pois, rapidamente, as possíveis consequências. Rompendo o silêncio, Raisa disse:

— Ainda nos estamos a comportar como se Estaline estivesse vivo. Os tempos mudaram.

Não há apetite para denunciar uma criança de catorze anos. Vocês leram o discurso:

Khrushchev admite que as prisões foram longe demais. Não precisamos de transformar um

assunto interno da escola num assunto de Estado. Podemos resolvê-lo sozinhos. Encaremos o

que aconteceu de forma realista: Zoya é uma jovem rapariga perturbada, que está ao meu

cuidado. Deixem-me ajudá-la.

A julgar pela reacção muda de ambos, uma vida inteira de cautela não podia ser apagada

por um único discurso, independentemente de quem o proferisse e o que fosse dito. Raisa alterou

subtilmente a ênfase da sua estratégia, notando:

— Seria melhor que nunca participássemos este assunto.

Iulia levantou os olhos. Karl recostou-se no assento. Iniciou-se uma nova série de

tenteios: Raisa tentara silenciar a questão. A sua proposta podia ser usada contra ela. Iulia

respondeu:

— Não somos as únicas pessoas ao corrente do que se passou. Os alunos que estavam na

aula viram tudo. São trinta, ao todo. Por esta altura, já devem ter contado aos amigos, muitos

mais saberão. O número irá crescer. Muito surpreenderia se amanhã a escola inteira não falasse

do assunto. A notícia vai ser divulgada fora da escola. Os pais vão ficar a saber. E quererão

81

Page 82: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

saber por que não fizemos nada. O que é que lhes diremos? Que não achámos que fosse

importante? Essa não é uma decisão nossa. Confia no estado. As pessoas irão ficar a saber,

Raisa, e se não falarmos, alguém falará.

Tinha razão: não era possível abafar a questão. Raisa refutou:

— E se Zoya saísse da escola com efeito imediato? Eu podia falar com Leo; ele falava

com os colegas. Encontraríamos outra escola para ela. É claro que eu também teria de sair.

Era impossível Zoya continuar a sua educação ali. Os alunos iriam evitá-la. Recusar-se-

iam a falar com ela. Muitos nem se sentariam a seu lado. Os professores mostrar-se-iam

relutantes a tê-la nas suas aulas. Seria marginalizada, tão certo como se lhe tivesse sido pintada

uma cruz nas costas.

— Proponho que o senhor Karl Enukidze não faça declarações acerca da minha saída.

Simplesmente desapareceríamos: sem dar explicações.

Era uma ideia astuta. Os outros alunos e estudantes iriam deduzir que se tinha tratado do

assunto. O súbito desaparecimento seria interpretado como os culpados terem sido castigados.

Ninguém iria querer falar sobre o incidente porque as consequências tinham sido severas. Esse

tema seria encerrado, o assunto desapareceria: um barco afundando-se no mar, enquanto outro

barco passava a seu lado, todos os passageiros a olharem na direcção contrária.

Karl considerou a proposta. Por fim, perguntou:

— Trataria de tudo?

— Sim.

— Incluindo discutir o assunto com as autoridades competentes? O Ministério da

Educação, têm lá alguém conhecido?

— Leo tem, tenho a certeza.

— Não preciso de falar com Zoya? Não preciso de resolver nenhumas questões com ela?

Raisa abanou a cabeça:

— Pego na minha filha e vamos embora. Continua normalmente o dia, como se nada

tivesse acontecido. Amanhã nem eu nem Zoya viremos às aulas. Não precisa de falar com as

autoridades.

Karl olhou para Iulia, de olhos ávidos, recomendando o plano. Agora, dependia dela.

Raisa dirigiu-se à amiga:

— Iulia?

Conheciam-se há três anos. Tinham-se ajudado mutuamente em muitas ocasiões. Eram

amigas. Iulia assentiu, dizendo:

— Julgo que é o melhor.

82

Page 83: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nunca mais voltariam a falar uma com a outra.

#

À porta do gabinete, no corredor, Zoya esperava, encostada à parede – despreocupada,

como se apenas se tivesse esquecido de fazer os trabalhos de casa. A mão estava envolta numa

ligadura: o corte sangrara profusamente. Depois de concluídas as negociações, Raisa fechou a

porta do gabinete, encostando-se a ela, prostrada. Conseguira escapar. Agora o resto dependeria

de Leo. Aproximou-se de Zoya, acocorando-se junto a ela:

— Vamos para casa.

— Não é a minha casa.

Gratidão, nem sinal, apenas desdém.

— Por favor, Zoya…

Quase em lágrimas, Raisa não conseguia proferir outras palavras.

Depois de deixar o edifício escolar, Raisa deteve-se no portão. Dois homens de uniforme

vieram na sua direcção:

— Raisa Demidova?

O mais velho dos oficiais continuou:

— O seu marido enviou-nos para a acompanharmos a casa.

— O que é que se passou?

— O seu marido quer ter a certeza de que está em segurança. Temo não lhe poder dar

mais pormenores; a única coisa que lhe posso dizer é que houve uma série de incidentes. A nossa

presença é uma medida de precaução.

Raisa verificou os seus cartões de identidade. Estavam em ordem. Perguntou:

— Os senhores trabalham com o meu marido?

— Fazemos parte do departamento de homicídios.

Como o departamento era secreto, aquele reconhecimento atenuou de certa forma a

desconfiança de Raisa. Devolveu-lhes os cartões, acrescentando:

— Temos de ir buscar Elena.

Enquanto se encaminhavam para o carro, Zoya segurou-lhe na mão. Raisa baixou a

cabeça: A voz de Zoya era um murmúrio.

— Não confio neles.

#

83

Page 84: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Sozinho no seu gabinete, Karl olhava pela janela.

Os tempos mudaram.

Talvez fosse verdade, e ele queria acreditar nisso e esquecer-se de toda aquela questão,

tal como haviam acordado. Sempre gostara de Raisa. Era uma mulher inteligente e bonita e

queria-lhe bem. Pegou no telefone, reflectindo sobre a melhor maneira de formular a denúncia da

sua filha.

84

Page 85: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Sentada no assento de trás do carro, Zoya lançou um olhar zangado aos oficiais da

milícia, seguindo-lhes todos os movimentos como se estivesse encarcerada com duas serpentes

venenosas. Embora o oficial que ocupava o banco ao lado do condutor tivesse feito uma tentativa

apressada de se mostrar simpático, voltando-se para trás e sorrindo para as meninas, o seu sorriso

embateu numa parede de tijolos. Zoya odiava aqueles homens, odiava os seus uniformes e

insígnias, os seus cintos de couro e botas de biqueira de aço, sem fazer distinção entre o KGB e a

milícia.

Espreitando pela janela, Raisa tentava determinar em que local da cidade se encontravam.

A noite caíra. As luzes dos candeeiros da rua acenderam-se com um bruxuleio. Como não estava

acostumada a que a conduzissem a casa, reconstituiu a sua localização. Aquele não era o caminho

para o seu apartamento. Inclinou-se para a frente e, tentando suavizar a urgência na sua voz,

perguntou:

— Para onde é que estão a ir?

O oficial sentado no banco ao lado do condutor voltou-se para trás, de rosto inexpressivo,

as costas rangendo contra o forro de pele:

— Vamos levar-vos a casa.

— O caminho não é este.

Zoya saltou para diante:

— Deixem-nos sair!

O guarda enrugou o rosto:

— O quê?

Zoya não perguntou segunda vez. Com o carro em movimento, destrancou o trinco,

abrindo a porta no meio da estrada. Um clarão de faróis atravessou as janelas quando um camião

na faixa contrária se desviou para evitar uma colisão.

Raisa segurou Zoya, agarrando-a pela cintura, e puxou-a para dentro no preciso instante

em que o camião embateu na porta, fechando-a com um estrondo. O impacto amolgou o metal e

estilhaçou a janela, e no interior choveram vidros. Os oficiais gritavam. Elena gritava. O carro

embateu na borda do passeio, galgando-o, antes de derrapar, detendo-se junto à estrada.

85

Page 86: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Decorreu um silêncio atordoado, os dois oficiais voltaram-se para trás, pálidos e

ofegantes:

— O que é que se passa com ela?

O condutor, batendo com um dedo na têmpora, acrescentou:

— Não está boa da cabeça.

Raisa ignorou-os, examinando Zoya. Não estava ferida, mas os seus olhos chamejavam.

Havia qualquer coisa nela de selvagem: as energias primevas de uma criança feroz criada por

lobos e capturada pelos homens, que se recusava a ser domesticada e civilizada.

O condutor desceu do carro, examinando a porta danificada, coçando e abanando a

cabeça:

— Vamos levar-vos a casa. Qual é o problema?

— O caminho não é este.

O oficial retirou um pedaço de papel do bolso e entregou-o a Raisa pela abertura onde

anteriormente estava a janela. Era a caligrafia de Leo. Fixou estupidificada a morada, antes de

reconhecer que se tratava da morada do apartamento dos pais de Leo. A sua raiva evaporou-se:

— Esta morada é da casa dos pais de Leo.

— Eu não sei quem lá mora. Limito-me a seguir as ordens que me foram dadas.

Zoya libertou-se das mãos da mãe, trepando por cima da irmã e saindo do carro. Raisa

chamou-a:

— Zoya, está tudo bem!

Inquieta, Zoya não regressou. O condutor começou a encaminhar-se para ela. Vendo que

se preparava para agarrá-la, Raisa gritou-lhe:

— Não lhe toque! Deixe-a! Vamos a pé o resto do caminho.

O condutor negou com a cabeça:

— Recebemos ordens para a acompanhar até Leo chegar.

— Nesse caso, siga atrás de nós. Não vamos voltar a entrar no carro.

Sentada no banco de trás, Elena chorava. Raisa pôs-lhe um braço à volta:

— Zoya está bem. Não se magoou.

Elena pareceu absorver estas palavras, olhando para a irmã para se certificar de que

estava bem. Ao ver que não estava magoada, parou de chorar. Raisa limpou-lhe as lágrimas:

— Vamos a pé. Não é longe. Achas que consegues?

Elena assentiu:

— Não gosto de ir de carro para casa.

86

Page 87: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Raisa sorriu:

— Nem eu.

Raisa ajudou-a a sair do carro. O condutor ergueu as mãos ao alto, exasperado com o

êxodo dos passageiros.

Os pais de Leo viviam num bloco de apartamentos moderno, de poucos andares, a norte

da cidade, lar de muitos pais dos oficiais do Estado; com efeito, era um lar de reformados para os

privilegiados. No Inverno, os residentes entretinham-se a jogar à carta nas casas uns dos outros.

No Verão, jogavam às cartas ao ar livre, no arrelvado. Iam às compras juntos, cozinhavam juntos;

tratava-se de uma comunidade onde existia apenas uma regra: nunca se falava do trabalho dos

filhos.

Raisa entrou no edifício, guiando as meninas até ao elevador. As portas fecharam-se no

preciso instante em que os oficiais vinham a chegar, forçando-os a seguir pelas escadas.

Impensável que Zoya fosse ficar confinada num espaço com aqueles dois homens. Ao alcançarem

o sétimo andar, Raisa guiou as meninas pelo corredor, até ao último apartamento. Stepan – o pai

de Leo – veio abrir a porta, surpreso por vê-las. A sua surpresa transformou-se depressa em

preocupação:

— O que é que se passa?

A mãe de Leo, Anna, apareceu da sala, igualmente preocupada. Dirigindo-se a ambos,

Raisa respondeu:

— Leo quer que fiquemos aqui.

Raisa apontou com um gesto para os dois oficiais, que vinham das escadas,

acrescentando:

— Temos escolta.

Havia um medo na voz de Anna:

— Onde está Leo?

— Não sei.

— O que é que se passa?

Raisa abanou a cabeça:

— Não sei.

Os oficiais alcançaram a porta. O mais velho dos dois, o condutor, ofegante da subida das

escadas, perguntou:

— Há mais alguma entrada para o apartamento?

Anna respondeu:

— Não.

87

Page 88: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Vamos ficar aqui.

Anna, porém, queria mais informações:

— É capaz de nos explicar o que se está a passar?

— Houve reprimendas. É tudo o que sei.

Raisa fechou a porta. Anna não estava satisfeita.

— Leo está bem, não está?

De dentes cerrados, Zoya escutava Anna, observando a pele murcha do seu queixo a

balouçar à medida que falava. Era uma mulher gorda, de não fazer nada o dia inteiro, gorda dos

alimentos caros e raros que o filho lhe provia. Ouvir a sua preocupação com Leo revirava-lhe o

estômago. A sua voz estava estrangulada de preocupação com o filho assassino:

Leo está bem? Leo está bem, não está?

Estão-no as famílias que ele prendeu, as famílias que ele destruiu – estão elas bem?

Mimavam-no como se ele fosse uma criança. Pior do que a preocupação era o orgulho daqueles

pais, excitados com todas as suas histórias, atentos a todas as palavras que ele tinha a dizer.

Aquelas manifestações de afecto eram repugnantes: beijos, abraços e remoques. Tanto Stepan

como Anna eram ávidos e sôfregos cúmplices da conspiração tecida por Leo em fingir que eram

uma família normal, planeando passeios e visitas às lojas, às lojas restritas, em lugar daquelas

onde havia longas filas de pessoas e escassez de bens. Era tudo uma maravilha. Era tudo muito

confortável. Era tudo uma grande mentira, destinada a encobrir o assassínio do seu pai e da sua

mãe. Zoya odiava-os por o amarem.

Anna perguntou:

— Represálias?

Repetiu as palavras como se o conceito fosse absurdo e desconcertante, como se ninguém

pudesse ter qualquer razão para não gostar do filho. Zoya não se conseguiu controlar, intervindo

na discussão e dirigindo as suas palavras a Anna:

— Represálias por ter prendido muitas pessoas inocentes! O que julga que o seu filho

andou a fazer estes anos todos? Não leu o discurso?

Stepan e Anna voltaram-se para ela conjuntamente, chocados pela menção do discurso.

Não sabiam. Não tinham lido o discurso. Apercebendo-se dessa vantagem, Zoya contorceu os

lábios num sorriso:

— Não leram?

Stepan perguntou:

88

Page 89: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Que discurso?

— O discurso sobre como o seu filho torturou vítimas inocentes, sobre como as forçou a

confessar, sobre como as espancava, sobre como os inocentes eram enviados para gulags,

enquanto os culpados viviam em apartamentos como este.

Raisa agachou-se diante dela, como se tentasse deter as suas palavras:

— Quero que pares. Quero que pares já com isso.

— Porquê? É verdade. Não fui eu que escrevi o discurso. Leram-mo como parte da

minha educação. Só estou a repetir o que me disseram. Não vos cabe a vocês censurar as

palavras de Khrushchev. Devia querer que falássemos sobre isso, caso contrário não nos teria

permitido lê-lo. Não é um segredo. Toda a gente sabe. Toda a gente sabe o que Leo fez.

— Zoya, escuta-me…

Mas Zoya estava embalada, imparável:

— Achas que não devem saber a verdade sobre o seu filho maravilhoso? O filho

maravilhoso que lhes arranjou este apartamento maravilhoso, que os ajuda com as compras: o

seu maravilhoso filho assassino.

O rosto de Stepan empalideceu, a voz tremia-lhe de emoção:

— Não sabes o que estás a dizer.

— Não acredita em mim? Pergunte a Raisa: o discurso é real. Tudo o que eu disse é

verdade. E toda a gente vai ficar a saber que o seu filho é um assassino.

A voz de Anna era um murmúrio:

— Que discurso é este?

Raisa abanou a cabeça.

— Não precisamos de falar sobre isso agora.

Zoya não tinha a menor intenção de se render, agora que encontrara o seu novo poder:

— Foi escrito por Khrushchev e proferido no Vigésimo Congresso. Diz que o seu filho, e

todos os oficiais como ele, são uns assassinos. Agiram ilegalmente. Não são polícias! São

criminosos! Perguntem a Raisa, perguntem se não é verdade? Perguntem!

Stepan e Anna voltaram-se para Raisa:

— Há um discurso. Criticam Estaline.

— Não é só sobre Estaline, é também sobre as pessoas que seguiram as suas ordens,

incluindo o seu filho, o seu filho assassino.

Stepan aproximou-se de Zoya.

— Pára de dizer isso.

89

Page 90: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Paro de dizer o quê? Assassino? Leo, o assassino? Por quantas mortes pensa que ele

é responsável, para além dos meus pais?

— Já chega!

— Vocês sempre souberam! Sabiam o que fazia na vida e não se importavam porque

gostavam de viver num bom apartamento. São tão culpados quanto ele! Pelo menos ele estava

disposto a sujar as mãos!

Anna cortou-lhe a palavra com uma bofetada em cheio nas faces: as suas palavras

borbotaram ao mesmo tempo:

— Minha menina, não sabes o que estás a dizer. Falas assim porque foste muito mimada.

Durante três anos permitiram-te tudo. Fazes o que queres e tens tudo o que queres. Nunca te

ralharam. E nós vimos e calámo-nos. Leo e Raisa queriam dar-te tudo. Olha para ti agora, olha

no que te tornaste: mal agradecida, desdenhosa quanto a única coisa que todos querem é amar-

te.

Zoya sentia a pele arder muito no sítio em que levara a bofetada, uma sensação que se

espalhou por todo o seu corpo, tudo nela ardia, desde as pontas dos dedos à nuca. Estendeu a mão

e arranhou Anna, cravando-lhe as unhas tão fundo quanto podia, rasgando tanta pele quanto foi

capaz:

— Para o diabo o seu amor!

Anna recuou, soltando um grito. Zoya, porém, não tinha ainda acabado, investido contra

ela, de dedos arqueados como garras. Raisa pegou-lhe no pulso, volteando-a para longe.

Incontrolável, a raiva de Zoya procurou um novo alvo, concentrando-se em Raisa. Mordeu-lhe o

braço, afundando os dentes tão fundo quanto conseguia, as pontas dos dentes tocando na carne.

A dor foi tão intensa que Raisa quase perdeu os sentidos, as pernas dobraram-se-lhe e

cederam. Empurrou o rosto de Zoya, tentando afastá-la. Stepan segurou-lhe no maxilar, abrindo-

o, como se estivesse a lidar com um cão selvagem, raivoso. Das marcas fundas de dentes escorria

sangue. Zoya contorcia-se e estrebuchava. Stepan atirou-a ao chão, onde caiu, os dentes expostos

e sangrentos.

Alguém bateu à porta: os guardas tinham ouvido o alarido. Queriam entrar. Raisa

examinou a mordida: sangrava profusamente. Zoya ainda estava no chão, de olhos selváticos,

porém já não procurava bulhas. Stepan dirigiu-se rapidamente ao quarto de banho, regressando

com uma toalha, que pressionou contra o braço de Raisa. De novo bateram à porta. Raisa voltou-

se para Anna que estava parada quase na mesma posição em que se encontrava quando a rapariga

se atirara a ela, emudecida, a cara arranhada, quatro linhas sangrentas.

— Anna, manda os oficiais embora, diz-lhes que não precisamos deles.

90

Page 91: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Anna não reagiu. Raisa teve de levantar a voz:

— Anna!

Anna foi abrir a porta, voltando a cara ferida para o outro lado, pronta para tranquilizar os

guardas. À espera de ver os dois oficiais, ficou espantada ao dar de caras com quatro, como se, tal

como bactérias, se tivessem dividido e multiplicado. Os dois oficiais recém-chegados usavam

uniformes diferentes. Eram membros do KGB.

Os agentes do KGB entraram no apartamento, observando a cena diante deles: a rapariga

no chão de dentes e lábios sangrentos, a mulher a sangrar do braço, uma senhora idosa com a cara

arranhada:

— Raisa Demidova?

Representando uma farsa, Raisa tentou manter o tom de voz calmo e seguro, com a toalha

enrolada no braço vermelha de sangue:

— Sim?

— A sua filha tem de nos acompanhar.

A atenção dos oficiais concentrou-se em Zoya.

O plano de Raisa falhara. Iulia, ou o director da escola, haviam-na traído. Apesar do

ferimento, apesar de tudo o que se acabara de passara, Raisa colocou-se, instintivamente, num

gesto protector, diante de Zoya.

— A sua filha destruiu um retrato de Estaline.

— Esse assunto já está a ser resolvido.

— Tem de nos acompanhar.

— Estão a prendê-la?

Ao ver que os dois oficiais do KGB estavam determinados a executar as suas ordens,

Raisa dirigiu-se aos tímidos agentes da milícia, que Leo enviara para as proteger:

— Vão ter de esperar até que o meu marido regresse, não é?

O mais velho dos dois agentes do KGB negou com a cabeça:

— As nossas ordens são levar a sua filha para ser interrogada. O seu marido não tem

nada a ver com isto.

— Aqueles homens têm ordens para garantir que ficamos aqui, juntas, até Leo regressar.

O oficial da milícia avançou docilmente. Raisa sentiu-se desanimar.

— Estes senhores são oficiais do KGB…

— Leo não deve demorar. Ficamos aqui, juntas, até ele regressar: ele resolve o assunto.

Ela só tem catorze anos. Não há pressa em levá-la para lado nenhum. Nós podemos esperar.

Os KGB aproximaram-se mais, levantando a voz:

91

Page 92: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Ela terá de nos acompanhar imediatamente.

Havia algo na sua impaciência que não batia certo. Havia algo na forma de agir daqueles

agentes que não batia certo. O agente mais velho é que falava, o outro homem estava

simplesmente ali parado em silêncio, inquieto, os olhos dardejando de pessoa para pessoa, como

se esperasse que alguém o atacasse. Ambos envergavam uniformes que lhes assentavam de forma

estranha. Como é que tinham chegado ali tão depressa? Demoraria horas à KGB a preparar um

plano e a autorizar uma prisão. E o que era ainda mais estranho, porque é que estavam naquela

morada? Como é que sabiam que Raisa não estaria em casa? Espantada por estas discrepâncias,

os seus olhos pousaram no pescoço do agente. Uma marca sobressaia-lhe do colarinho: a ponta de

uma tatuagem.

Aqueles homens não eram membros do KGB.

Raisa lançou um olhar aos oficiais da milícia, tentando comunicar-lhes o perigo em que

se encontravam. Os oficiais estavam estupidificados pelo disfarce daqueles agentes, assustados

com a simples menção do nome KGB. Nos seus esforços para lhes chamar a atenção, atraiu a

atenção do impostor. Ao passo que os agentes da milícia eram cegos aos seus sinais, ele não era.

Antes que Raisa pudesse levantar a mão para avisar a milícia, o homem tatuado puxou da sua

arma. Voltando-se, disparou duas vezes, um tiro na testa de cada um dos oficiais. Mal estes

caíram no chão, o homem voltou a arma para Raisa:

— Vou levar a sua filha.

Raisa aproximou-se mais do cano da arma, em frente a Zoya que ainda estava agachada

no chão.

— Não.

A arma estava voltada para Elena.

— Entregue-me a Zoya. Ou mato a Elena.

Um tiro ressoou.

A bala não tinha acertado em Elena, cravando-se na parede do apartamento, um aviso.

Olhando-o nos olhos, Raisa compreendeu que aquele homem não teria quaisquer escrúpulos em

matar uma criança de sete anos, tão facilmente como matara os dois oficiais. Tinha de escolher.

Afastou-se do caminho, permitindo-lhes que levassem Zoya.

O homem ergueu Zoya nos braços.

— Se estrebuchares, ficas já a dormir.

Atirou-a para cima do ombro, carregando-a em direcção à porta, ao mesmo tempo que

gritava:

— Fiquem no apartamento!

92

Page 93: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

As chaves foram levadas: a porta do apartamento estava trancada.

Raisa correu para Elena, caindo a seu lado. Estava de joelhos, de olhos fitos no chão, o

corpinho todo a tremer, o olhar vazio. Raisa compreendeu que aquela era a primeira vez que

ouvia um tiro, desde a morte dos pais. Pegou na cabeça de Elena, conduzindo os seus olhos para

cima, tentando chegar a ela:

— Elena?

A menina, porém, parecia nem sequer ouvir, e não respondeu:

— Elena?

Continuava sem responder, completamente alheada e distante, de corpo mole.

Raisa entregou Elena aos cuidados de Anna e levantou-se, indo agarrar-se à maçaneta da

porta, incapaz de sair. Recuou, afastou os corpos dos oficiais mortos, pegou numa das suas

pistolas e enfiou-a na parte de trás das calças. Atravessou a sala apressadamente e foi abrir a porta

da pequena varanda. Stepan agarrou-lhe no braço.

— O que estás a fazer?

— Cuidem da Elena.

Saiu para a varanda, fechando a porta atrás de si.

Estavam no sétimo andar, a cerca de vinte metros acima da rua. Havia varandas idênticas

exactamente umas por baixo das outras. Talvez lhe pudessem servir de degrau para a próxima.

Talvez pudesse trepar até baixo, de varanda em varanda. Se caísse, a fina camada de neve não

serviria de grande amortecedor à queda.

Descalçou os sapatos de sola macia, e escalou o murete. Havia-se esquecido da mordida

no braço. Ainda estava a sangrar. Sentia o braço fraquejar, a força nas mãos menos segura. Sem

saber ao certo se seria ou não capaz de aguentar o seu peso, desceu para o lado de fora da

varanda. Estava pendurada pelos dedos, agarrada ao rebordo gelado de cimento, o sangue a

pingar-lhe para o ombro. Mesmo completamente esticada, não chegava com os pés ao murete da

varanda do sexto andar. Aventou que a distância não seria mais do que alguns centímetros. Não

tinha outra hipótese senão largar.

Depois de uma queda de segundos, os pés entraram em contacto com o murete de baixo.

Enquanto tentava manter o equilíbrio, balançando de um lado para o outro, ouviu a voz de Zoya.

Olhando por cima do ombro, avistou os homens a saírem da porta do prédio, um deles carregando

Zoya. O outro tinha a arma apontada para ela. Balançando no estreito murete, estava indefesa.

O homem disparou. Vislumbrou uma centelha de luz. Ouviu um vidro estilhaçar. Raisa

caía em direcção à neve.

93

Page 94: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

94

Page 95: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Sujo e ainda a cheirar a esgotos, Leo conduzia o camião a toda a velocidade. Desajeitado

e lento, totalmente incongruente devido à urgência, aquele tinha sido o primeiro veículo que

conseguiram requisitar depois de ele e Timur emergirem de uma sarjeta quase um quilómetro a

sul do local onde haviam descido inicialmente para os esgotos. As suas mãos estavam todas em

sangue, porém Leo recusara a oferta de Timur para conduzir, calçando um par de luvas,

segurando no volante com as pontas dos dedos, os olhos em lágrimas de cada vez que punha uma

mudança. Dirigira-se ao apartamento dos pais, apenas para descobrir que a área tinha sido

fechada pela milícia. Elena, Raisa e os seus pais tinham sido transportados para o hospital. Elena

estava em estado de choque; Raisa encontrava-se gravemente ferida; Zoya estava desaparecida;

os oficiais da milícia estavam mortos. Demasiado aturdido para conseguir pensar com clareza,

Leo não trocara o camião por um carro, arrancando de imediato sem nunca abrandar até alcançar

o Hospital Municipal de Emergência n.º 31.

Estacou a derrapar os pneus, deixando o camião na berma da estrada – de porta aberta,

chaves na ignição –, e entrou a correr com Timur atrás dele. Toda a gente ficou a olhá-lo

boquiaberta, chocada com o seu aspecto e fedor. Indiferente ao espectáculo que produzia,

exigindo respostas, Leo acabou por ser guiado à sala de cirurgia onde Raisa lutava pela sua vida.

À porta da sala de operações, um cirurgião explicou-lhe que ela tinha caído de uma

altitude considerável e sofria de uma hemorragia interna.

— Vai sobreviver?

O cirurgião não podia dizer com certeza.

Ao entrar na enfermaria privada onde Elena recebia tratamento, Leo avistou os pais junto

à sua cama. O rosto de Anna estava ligado. Stepan parecia não estar ferido. Elena dormia, o seu

corpinho perdido no meio de uma cama branca de hospital. Tinham-lhe dado um sedativo leve,

depois de ter ficado histérica quando se apercebera de que Zoya tinha desaparecido. Leo pegou na

mão de Elena, apertando-a contra o seu rosto, lastimoso, desejando poder dizer-lhe o quanto

lamentava tudo aquilo.

Timur pousou-lhe uma mão no ombro.

— Frol Panin está aqui.

95

Page 96: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo seguiu Timur até ao gabinete onde se encontrava Panin e a sua comissão armada. A

porta do gabinete estava trancada. Era impossível entrar sem anunciar previamente o nome. Lá

dentro, encontravam-se dois guardas armados. Embora Panin parecesse imperturbado, e

mantivesse a habitual compostura, aquele excesso de protecção indiciava que estava assustado.

Panin leu esta observação nos olhos de Leo.

— Toda a gente está assustada, Leo, pelo menos toda a gente no poder.

— O senhor não esteve envolvido na prisão de Lazar.

— Esta questão vai além do seu principal suspeito. E se este comportamento

desencadear um padrão de represálias? E se todos os injustiçados começarem a procurar

vingança? Leo, nunca antes aconteceu uma coisa destas: a execução e perseguição de membros

das nossas forças de Segurança Estatais. Simplesmente não sabemos o que pode acontecer a

seguir.

Leo permaneceu em silêncio, notando que o interesse de Panin não era o bem-estar de

Raisa, Elena ou Zoya, mas as implicações maiores. Era um político consumado, uma divindade

que lidava com nações e exércitos, fronteiras e regiões, nunca com o simples indivíduo. Era um

homem charmoso e espirituoso, e porém havia nele algo de frio, que vinha à luz em momentos

como aquele, em que uma pessoa comum teria oferecido algumas palavras de conforto.

Bateram à porta. Os guardas brandiram as armas. Uma voz chamou:

— Estou à procura do Oficial Leo Demidov. Foi entregue uma carta na recepção.

Panin acenou aos guardas, que abriram cautelosamente a porta, de armas em riste. Um

deles pegou no envelope, enquanto o outro revistou o homem que o entregara, sem encontrar

nada. O envelope foi entregue a Leo.

Na parte de fora havia um crucifixo cuidadosamente desenhado a tinta. Leo abriu o

envelope, encontrando uma única folha de papel:

Igreja de Sancta Sophia

Meia-noite

Sozinho

96

Page 97: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

15 de Março

À meia-noite e trinta, Leo estava à espera no local onde anteriormente se erguia a Igreja

de Sancta Sophia. As abóbadas e os tabernáculos haviam desaparecido. No seu lugar, estendia-se

uma vasta vala, com cerca de dez metros de fundo, vinte de largo e setenta de comprido. Uma das

paredes tinha ruído, formando uma encosta irregular que conduzia a uma bacia de neve

acastanhada, gelo enegrecido e água barrenta. As restantes paredes estavam em vias de ruir,

resvalando para o interior, criando a impressão de uma boca fechando-se em torno de uma

monstruosa língua preta. Desde 1950, não se fizera nada: era um local de construção sem

construção, selado e fechado. Ao longo da vedação de arame que o cercava, havia placas

avisando as pessoas para se manterem afastadas do local. Depois do desastroso resultado da

primeira tentativa, em que um especialista em demolição perdera a vida e muitas das pessoas que

ali se tinham reunido ficaram feridas, a igreja tinha sido enfim destruída. Os escombros foram

atirados para as traseiras de camiões, despejados nos arrabaldes da cidade, um cadáver de entulho

agora coberto por ervas daninhas. No local vazio, começara-se depois a obra do que deveria ser o

maior complexo de desportos aquáticos da nação, incluindo uma piscina de cinquenta metros e

um conjunto de banya: uma sauna feminina, outra masculina e ainda uma outra de mármore, para

oficiais do Estado.

A excitação em torno do projecto foi fabricada por uma extensa campanha mediática. As

plantas de arquitectura foram publicadas no Pravda; nos cinemas passavam imagens mostrando

pessoas reais sobrepostas contra um desenho mate do complexo concluído. Todavia, enquanto a

propaganda avançava a todo o gás, os trabalhos no local pararam subitamente. O terreno ao lado

do rio era instável e susceptível a derrocadas. As fundações tinham começado a mexer e a dar de

si, levando as autoridades a arrependerem-se de não terem examinado as antigas fundações da

igreja com mais atenção, antes de as levantarem e as atirarem para o lado. Algumas das mentes

mais brilhantes do país foram chamadas ao local e, após um cuidadoso exame, declararam que

não era adequado para um complexo que requeria redes de canos e esgotos a grande

profundidade, a maior profundidade daquela alcançada pela igreja. Esses especialistas tinham

sido dispensados, tendo sido chamados outros mais flexíveis, os quais, após um diferente tipo de

exame cuidadoso, declararam que o problema podia ser resolvido. Apenas precisavam de mais

tempo. Essa era a resposta que o Estado queria ouvir, pois não estava disposto a admitir um erro.

97

Page 98: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Esses tais especialistas foram instalados em apartamentos luxuosos, onde desenhavam diagramas,

fumavam charutos e escrevinhavam cálculos, enquanto a funda vala se enchia de chuva durante o

Outono, de neve durante o inverno e de mosquitos durante o Verão. As imagens de propaganda

acabaram por ser retiradas dos cinemas. Os cidadãos mais perspicazes compreenderam que o

melhor que tinham a fazer era esquecer o projecto. Os mais imprudentes comentavam de esguelha

que uma vala cheia de água constituía um substituto lacustre para uma igreja com trezentos anos

de existência. No Verão de 1951, Leo prendera um homem por soltar uma gracinha deste tipo.

Leo verificou o relógio. Havia já mais de uma hora que estava à espera. A tremer e

exausto, estava quase enlouquecido de impaciência. Não fazia ideia se a mulher tinha sobrevivido

à cirurgia e, sem poder comunicar com ninguém, não tinha forma de o saber. Não tinha dúvida de

que a decisão de deixar a cabeceira de Raisa e encontrar-se com Lazar era a mais correcta. No

hospital não podia fazer nada. Por mais que Zoya o odiasse, qualquer que fosse o seu

comportamento, por mais que o quisesse morto, assumira a responsabilidade por ela, uma

responsabilidade que prometera manter, quer ela o amasse ou não. Antes de vir para o local do

encontro, passara em casa, tomara um duche, esfregara a pele para retirar o cheiro a esgoto e

vestira roupa limpa. As suas mãos tinham sido ligadas no hospital. Recusara-se a tomar

medicamentos para as dores, temendo que pudessem entorpecer-lhe os sentidos. Estava

deliberadamente vestido à civil, ciente do que a indumentária da autoridade poderia provocar um

padre vingativo.

Ao ouvir um rumor, Leo deu meia volta, procurando o adversário nas trevas. Havia

alguma luz dos edifícios circundantes, do lado de lá do perímetro cercado. Maquinaria valiosa –

guindastes, escavadoras – estava abandonada, deixada a enferrujar porque ninguém se atrevera a

admitir a derrota e a transferi-la para onde fizesse falta. Leo tornou a ouvir o rumor: o ressoar de

metal a bater contra pedra. Não vinha do interior da obra: vinha do rio.

Cautelosamente, aproximou-se da orla de pedra, debruçando-se devagar e espreitando

para a água. Uma mão estendida imergiu, não muito longe do local onde se encontrava. Um

homem içou-se agilmente, acocorando-se na orla, antes de saltar para o recinto da obra. A seu

lado, trepou um segundo homem. Saíam a rastejar da boca de um túnel de esgoto, trepando pela

parede acima, como uma colónia de formigas perturbada, respondendo a uma ameaça. Leo

reconheceu o jovem rapaz que assassinara o Patriarca trepar em seguida, usando com destreza os

dedos da mão e dos pés para se segurar nos tijolos.

Enquanto o revistavam, para verificar se não estava armado, estudou o gangue. Eram

sete homens e o rapaz. Tinham tatuagens nos pescoços e nas mãos. Algumas das suas roupas

eram de bom corte, ao passo que outras eram horrendas, tudo misturado como se usassem uma

98

Page 99: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

selecção fortuita do guarda-roupa de cem pessoas diferentes. A sua aparência não deixava

dúvidas. Faziam parte de uma fraternidade criminosa – uma vory – uma irmandade fundada na

época dos gulags. Apesar da profissão de Leo, raramente se deparara com vory. Consideravam-se

à parte do Estado.

Os membros do gangue dispersaram: examinando a área, certificando-se de que era

segura. Por fim o rapaz assobiou, dando o sinal de que estava tudo em ordem. Duas mãos

apareceram no rebordo. Lazar trepou, erguendo-se acima do seu vory, perfilado contra as luzes na

outra margem do rio. Só que aquele não era Lazar. Era uma mulher. Era Anisya, a esposa de

Lazar.

Anisya usava o cabelo curto. As suas feições estavam duras. A suavidade do seu rosto e

corpo perdera-se por inteiro. Apesar disso, parecia mais intensamente viva, mais bela e

resplandecente do que nunca antes, como se uma grande energia emanasse dela. Usava calças

largas, uma camisa aberta e um casaco grosso e curto: vestida quase como um homem. Trazia

uma arma embainhada no cinto, o que completava a sua aparência de malfeitora. Da sua posição

triunfante, olhou para baixo para Leo, orgulhosa de que a sua chegada o tivesse surpreendido. Leo

apenas conseguiu dizer uma palavra, o seu nome:

— Anisya?

Ela sorriu. A sua voz era agora rachada e funda, e não melódica, já não era a voz de uma

mulher que costumava cantar no coro do marido:

— Esse nome não me diz nada agora. Os meus homens tratam-me por Fraera.

Saltou de cima do rebordo, aterrando não muito longe de onde Leo se encontrava.

Erguendo-se direita, estudou-lhe o rosto atentamente:

— Maxim…

Usou o pseudónimo que ele usara quando estivera infiltrado na igreja:

— Diz-me, e não mintas, quantas vezes pensaste em mim? Todos os dias?

— Não.

— Pensaste em mim uma vez por semana?

— Não.

— Uma vez por mês…

— Não sei...

Fraera deixou que ele embarcasse num silêncio embaraçoso, antes de notar:

— Posso garantir-te que as tuas vítimas pensam em ti todos os dias, todas as manhãs e

todas as noites. Lembram-se do teu cheiro e do som da tua voz: lembram-se de ti tão claramente

como eu te vejo agora.

99

Page 100: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Depois, ergueu a mão direita:

— Esta foi a mão que tocaste quando me fizeste a tua proposta, que deixasse o meu

marido. Não foi isso que disseste? Devia deixá-lo morrer nos Gulags, enquanto me enfiava

contigo na cama?

— Eu era jovem.

— Sim, eras. Muito jovem e, contudo, deram-te poder sobre mim, sobre o meu marido.

Eras um rapaz com uma paixoneta, pouco passavas de um adolescente. Pensaste que tinhas

praticado um bem em tentar salvar-me.

Aquela era uma conversa que ela praticara centenas de vezes, as palavras moldadas por

sete anos de ódio:

— Felizmente consegui escapar. Se o medo se tivesse apoderado de mim, se tivesse

fraquejado, teria acabado como a tua mulher, a mulher de um agente do MGB, uma cúmplice

dos teus crimes, alguém com quem podes partilhar a tua culpa.

— Tens todos os motivos para me odiar.

— Tenho mais motivos do que tu pensas.

— Raisa, Zoya, Elena: elas não têm de pagar pelos meus erros.

— Queres dizer que elas são inocentes? Desde quando é que isso interessa a oficiais

como tu? Quantas pessoas inocentes prendeste? Quantas vezes é que elas suplicaram? Quantas

vezes é que as ouviste?

— Tencionas matar todas as pessoas que te fizeram mal?

— Eu não matei Suren. Eu não matei o teu mentor, Nikolai.

— As filhas dele estão mortas.

Fraera sorriu:

— Não consegues fazer-me chorar Maxim. Eu não tenho coração. Nikolai era fraco e

presunçoso. Deveria ter adivinhado que ele morreria da mais ridícula das formas. No entanto,

como mensagem ao Estado foi certamente mais poderoso do que se se tivesse apenas enforcado.

Tal como a igreja de Sancta Sophia tinha sido destruída e substituída por uma vala escura

e fria, Leo perguntou-se se o mesmo lhe teria acontecido a ela. As suas fundações morais tinham

sido arrancadas e substituídas por um abismo escuro.

Fraera perguntou:

— Presumo que tenhas feito a ligação entre Suren, o homem que geria a tipografia,

Nikolai, o Patriarca, e tu mesmo? Conhecias Nikolai: era teu patrão. O Patriarca foi o homem

que permitiu que te infiltrasses na nossa igreja.

100

Page 101: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Suren trabalhou para a MGB, mas não o conhecia pessoalmente.

— Era guarda quando fui interrogada. Lembro-me de ele estar em bicos de pés, a

espreitar para dentro da cela. Lembro-me do topo da sua cabeça, dos seus olhos curiosos,

observando-me como se se tivesse esgueirado para dentro de um cinema.

Leo perguntou:

— Qual é o sentido de tudo isto?

— Quando todos os polícias são criminosos, os criminosos têm de se tornar polícias. Os

inocentes têm de viver nas catacumbas, entre os dejectos da cidade, enquanto os vilões vivem em

apartamentos aquecidos. Conforta-nos um pouco perseguir aqueles que vivem acima do nível do

solo, fazendo-os sentir medo, tal como nós sentimos medo.

Leo falou novamente, atrevendo-se a quebrar a sua retórica:

— E Zoya? Vão matá-la, uma menina que nem sequer gosta de mim? Uma menina que

só escolheu viver comigo para salvar a irmã do orfanato?

— Estás enganado nas tuas tentativas de apelar à minha humanidade. Anisya morreu.

Morreu quando o Estado lhe arrancou o filho.

Leo não compreendeu. Respondendo à sua evidente confusão, Fraera acrescentou:

— Maxim, eu estava grávida quando me prendeste.

Com a precisão de um cirurgião, Fraera explorou o novo corte, abrindo-o, vendo-o

sangrar:

— Nem sequer te deste ao trabalho de descobrir o que acontecer a Lazar. Nunca te deste

ao trabalho de descobrir o que me acontecera. Se tivesses folheado os registos, terias descoberto

que dei à luz oito meses depois da minha sentença. Permitiram-me alimentar o meu filho durante

três meses, antes de o levarem. Disseram-me para o esquecer. Disseram-me que nunca mais o

voltaria a ver. Quando fui libertada, e me foi concedida pena suspensa depois da morte de

Estaline, procurei o meu filho. Descobri que fora enviado para um orfanato, mas o seu nome foi

mudado e todos os registos da minha maternidade foram apagados. Era bastante comum isso

acontecer, disseram-me. Uma coisa é perder uma criança, outra é sabê-la viva, algures,

ignorante da nossa existência.

— Fraera, não posso defender o Estado. Eu segui ordens e cometi um erro. As ordens

estavam erradas. O Estado estava errado. Mas eu mudei.

— Eu sei das mudanças que fizeste. Já não fazes parte do KGB, agora és da milícia. Só

tratas de crimes reais, não de políticos. Adoptaste duas lindas meninas. É essa a tua ideia de

redenção? O que é que isso significa para mim? E a tua divida para comigo? E a tua divida para

com os homens e as mulheres que prendeste? Como será paga? Planeias construir uma modesta

101

Page 102: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

estátua de pedra para comemorar os mortos? Vais colocar uma placa de bronze com os seus

nomes escritos em letras minúsculas para caberem todos? Isso será suficiente?

— Queres tirar-me a vida?

— Pensei nisso muitas vezes.

— Então mata-me e deixa Zoya viver. Deixa a minha mulher viver.

— Morrerias de bom grado para as salvar. Isso faria de ti uma pessoa nobre; limparia

todos os teus crimes. Ainda acreditas que podes levar uma vida de herói?

Fraera apontou para as suas roupas:

— Despe-te.

Leo permaneceu em silêncio, na dúvida se teria ouvido bem. Ela repetiu as instruções:

— Maxim, despe as tuas roupas.

Leo tirou o chapéu, as luvas, o casaco, deixando-os cair no chão. Desabotoou a camisa,

tiritando ao frio, colocando-a num monte diante de si. Fraera ergueu a mão:

— Assim basta.

Ele ficou ali plantado, a tiritar, os braços ao lado do corpo.

— Achas a noite fria, Maxim? Não é nada comparada com os Invernos em Kolyma, o

canto mais gelado deste país, para onde enviaste o meu marido.

Para sua surpresa, Fraera também se começou a despir, tirando o casaco, a camisa, e

revelando o torso nu. Tinha a pele coberta de tatuagens: uma abaixo do peito direito, outra no

estômago, tatuagens nos braços, mãos e dedos. Aproximou-se de Leo.

— Queres saber o que me aconteceu nestes últimos anos? Queres saber como uma

mulher, a esposa de um padre, se tornou a líder de um gangue vory? As respostas estão escritas

na minha pele.

A sua nudez parecia-lhe natural. Pegou num dos peitos, levantando-o, chamando a

atenção de Leo para a tatuagem. Era um leão a rugir:

— Significa que me vingarei de todos aqueles os responsáveis por esta injustiça, desde

os advogados, aos juízes, aos guardas prisionais e aos oficiais da polícia.

No centro, elevando-se entre o peito, distinguia-se um crucifixo.

— Não tem nada a ver com o meu marido, Maxim. Representa a minha autoridade, como

chefe do bando. Talvez esta, tu entendas.

Tocou na tatuagem que lhe adornava o estômago. Mostrava uma mulher grávida de

vários meses – uma secção recortada revelava o interior da enorme barriga. Em lugar de um feto,

o estômago prenhe estava repleto de arame farpado, enrolado em muitas voltas, como um longo

cordão umbilical.

102

Page 103: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Tens a pele alva de uma criança, Maxim. Para mim, e para os meus homens, parece

desonesto. Onde estão os teus crimes? Onde estão as coisas que fizeste? Não vejo um só vestígio

delas. Não vejo marcas no teu corpo. Não vejo nenhuma da tua culpa escrita na tua pele.

Fraera aproximou-se mais um passo, o corpo dela quase tocando no dele.

— Eu posso tocar-te, mas tu, se me tocares com um dedo, serás morto. A minha pele é o

mesmo que a minha autoridade. Tocares-me seria uma violação, um insulto.

Apertou-se contra ele, murmurando:

— Sete anos depois, é a minha vez de te fazer uma proposta. Lazar ainda se encontra em

Kolyma, a trabalhar numa mina de ouro. Recusaram-se a soltá-lo. Ele é um padre. Os padres

são novamente odiados, agora que o Estado não tem guerras para eles promoverem. Disseram

que terá de cumprir a sentença completa: vinte e cinco anos. Quero que ele saia de lá. Quero

que corrijas esse erro.

— Não tenho esse poder.

— Tens ligações.

— Fraera, tu assassinaste o Patriarca. Culpam-te pela morte de dois agentes, Nikolai e

Moskvin. Nunca negociarão contigo. Nunca irão soltar Lazar.

— Nesse caso, tens de encontrar uma forma de o tirar de lá.

— Fraera, peço-te…se me tivesses pedido uma semana antes, talvez isso fosse possível.

Mas depois do que fizeste, é impossível. Ouve a minha voz. Faria qualquer coisa por Zoya,

qualquer coisa dentro dos meus poderes. Contudo, não posso libertar Lazar.

Fraera inclinou-se para diante, sussurrando:

— Lembra-te, eu posso tocar-te, mas tu não podes tocar-me.

E com esse aviso, beijou-o na face. Com suavidade ao princípio, mas depois agarrou-lhe

a pele com os dentes, e cerrou-os, enterrando-os com uma força crescente, fazendo-o sangrar. A

dor era intensa. Leo queria afastá-la, mas se lhe tocasse, seria morto. Não lhe restava outra

alternativa que sofrer a dor. Finalmente, ela abriu a boca, recuando, ao mesmo tempo que

admirava as marcas dos seus dentes.

— Aí tens a tua primeira tatuagem, Maxim.

Com o sangue dele nos lábios, concluiu:

— Liberta o meu marido, ou mato a tua filha.

103

Page 104: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Três semanas depois

104

Page 105: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Oceano Pacífico Ocidental

Águas Territoriais Soviéticas

Mar de Okhotsk

Navio-prisão Stary Bolshevik

7 de Abril de 1956

O oficial Genrikh Duvakin estava parado na coberta, descalçando as mitenes ásperas com

as pontas dos dentes. Os seus dedos estavam gelados e entorpecidos, de resposta lenta. Aqueceu-

os com uma baforada, ao mesmo tempo que esfregava as mãos uma na outra, tentando

restabelecer a circulação sanguínea. O seu rosto, exposto ao frio mordaz, estava como morto: os

lábios sem sangue e roxos. Os pêlos do nariz tinham congelado, e quando apertava as narinas, os

pêlos quebradiços partiam-se como sincelos em miniatura. Se tolerava estes desconfortos

menores era por o seu barrete ser um milagre de calor. Era forrado de pêlo de veado e fora cosido

com o cuidado de alguém conhecedor de que a vida da pessoa que o envergava dependia da

qualidade do seu trabalho. Três longas abas cobriam-lhe as orelhas e a nuca. As abas junto às

orelhas, bem apertadas por baixo do seu pescoço, davam-lhe a aparência de uma criança

embrulhada de maneira a não passar frio, um efeito intensificado pelas suas feições suaves, de

rapaz. O ar salgado que lhe batia constantemente no rosto não requebrara a sua tez suave, e as

faces rechonchudas mostravam-se resilientes à dieta pobre e à falta de sono. Com vinte e sete

anos, era amiúde confundido com um noviço: uma imaturidade física que não o servia bem.

Pressupunha-se que fosse intimidante e feroz, e no entanto era atrapalhado, desastrado, sonhava

acordado: um guarda improvável a bordo de um navio-prisão tão notório como o Stary Bolshevik.

O Stary Bolshevik era um navio com cerca do tamanho de um navio mercante, e contava

já com muitos anos de mar. O antigo vapor holandês tinha sido comprado na década de 1930 pelo

governo, sendo depois rebaptizado e reconvertido pela Polícia Secreta Soviética. Originalmente

concebido para exportação colonial – marfim, especiarias picantes e frutos exóticos –

transportava agora homens cujo destino eram os campos de trabalho mais mortais da empresa

gulag. Em direcção à proa erguia-se uma torre central com quatro andares, onde se situavam

também os aquartelamentos dos guardas e da tripulação. No cimo da torre encontrava-se a ponte

onde o capitão e a tripulação navegavam, um grupo muito unido e autónomo dos guardas

prisionais, deliberadamente cego ao encargo daquele navio, fingindo que essa responsabilidade

não era deles.

105

Page 106: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O capitão abriu a porta e saiu da ponte, vigiando a faixa de mar que deixavam agora para

trás. Fez um gesto a Genrikh, que se encontrava em baixo na coberta, acenando-lhe e anunciando:

— Tudo em ordem!

Acabavam de passar o Estreito de La Pérouse, o único ponto da sua viagem onde se

aproximavam das ilhas japonesas e arriscavam o contacto internacional. Eram tomadas

precauções para assegurar que o navio aparentava ser nada mais do que um navio de carga civil.

A pesada metralhadora montada na coberta central tinha sido desmantelada. Os uniformes

estavam ocultos por baixo de sobretudos compridos. Genrikh nunca percebera inteiramente por

que se davam a tal trabalho de esconder a sua verdadeira natureza dos olhares dos pescadores

japoneses. Em momentos ociosos, questionava-se se haveria navios-prisão idênticos no Japão,

com homens idênticos a ele.

Genrikh tornou a montar a metralhadora, aparafusando as partes. Em lugar de apontar

para o mar lá fora, dirigiu o cano para baixo, em direcção à escotilha de aço reforçado que

conduzia ao porão. Abaixo da coberta, no escuro, apertados em beliches como fósforos numa

caixa, encontrava-se a carga de quinhentos homens – a primeira viagem do ano transportando um

carregamento de condenados do campo de trânsito Buchta Nakhodka, a sul da costa do Pacífico,

para Kolyma, no norte. Embora ambos os portos fossem localizados na mesma faixa da costa, a

distância entre eles era vasta. Era impossível chegar a Kolyma por terra: só era acessível por

avião ou navio. O porto norte de Magadan servia de ponto de entrada para uma rede de campos

de trabalho que se tinham espalhado como esporos fúngicos ao longo da auto-estrada de Kolyma,

até às montanhas, florestas e minas.

Quinhentos era a menor carga de prisioneiros que Genrikh jamais supervisionara.

Naquela altura do ano, sob o governo de Estaline, o navio transportaria quatro vezes mais, a fim

de aliviar a acumulação nos campos de trânsito sobrelotados durante o Inverno, em virtude de os

comboios zek, os vagões repletos de prisioneiros, continuarem a trazer pessoas, mas os navios

ficarem na doca. O mar de Okhotsk só era navegável depois de as massas de gelo derreterem. Por

volta de Outubro estava novamente congelado. Uma viagem mal calculada significava ficar preso

no gelo. Genrikh ouvira falar de navios que se haviam aventurado demasiado tarde no Inverno, ou

que haviam zarpado demasiado cedo na Primavera. Incapazes de regressar ao seu destino, os

guardas tinham conseguido escapar, caminhando por cima do gelo, arrastando trenós carregados

de carne enlatada e pão, enquanto os prisioneiros abandonados ficavam para trás, no porão, a

morrer de fome e de frio, o que chegasse primeiro.

Neste dia os prisioneiros não iriam morrer de fome ou de frio, nem seriam sumariamente

executados, os seus corpos atirados borda fora. Genrikh não tinha lido o Discurso Secreto de

106

Page 107: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Khrushchev condenando Estaline e os excessos dos Gulags. Estava demasiado assustado. Havia

rumores de que fora engendrado para se detectarem os contra-revolucionários, um estratagema

para que as pessoas baixassem as defesas e se juntassem às críticas, para depois serem presas.

Genrikh não estava convencido daquela teoria: as mudanças pareciam reais – o sistema estava em

estado de choque. A prática, há muito estabelecida, de brutalidade e indiferença irresponsável

tinha sido substituída por uma compaixão caótica. Nos campos de trânsito as sentenças dos

prisioneiros eram apressadamente revistas. Centenas de pessoas destinadas a Kolyma tinham sido

subitamente libertadas, regressando à civilização tão abruptamente como lhe haviam sido

arrancadas. Estes homens livres – a maioria das mulheres tinha sido libertada pela amnistia de

1953 – sentaram-se então à beira-mar, a olhar para o mar, segurando nas mãos um bocado de pão

de centeio preto de quinhentas gramas, a ração da liberdade, destinada a sustentá-los até

chegarem a casa. Para a maioria deles, a casa ficava a centenas de quilómetros de distância. Sem

posses, sem dinheiro, apenas com os seus farrapos e o pão da liberdade na mão, olhavam para o

mar, incapazes de compreender que podiam ir-se embora sem serem executados. Genrikh

enxotara-os da beira-mar, como se fossem pássaros incómodos, encorajando-os a encetar a

jornada de regresso a casa, mas incapaz de lhes dizer como é que fariam essa jornada.

Os superiores de Genrikh passaram semanas em pânico, julgando que fossem ser levados

diante de um tribunal. Numa tentativa de mostrar o quanto haviam mudado, emitiram extensas

revisões e reformulações de regulamentos, sinais inquietos a Moscovo de que estavam

sincronizados com esta nova moda da equidade. Genrikh mantivera a cabeça baixa, fazendo o que

lhe ordenavam, sem nunca questionar o que fosse, sem nunca oferecer uma opinião. Se lhe

dissessem para ser duro com os prisioneiros, seria duro. Se lhe dissessem para ser simpático, seria

simpático. Como quis o destino com a cara acriançada, fora-lhe sempre mais fácil ser simpático

do que duro. Fora sempre um guarda que preferia alimentar os prisioneiros do que deixá-los

morrer à fome.

Depois de anos a transportar centenas de prisioneiros políticos condenados sob o Artigo

58, homens e mulheres que tinham dito a coisa errada, ou estado no local errado, ou conhecido as

pessoas erradas, o Stary Bolshevik desempenhava agora uma nova função: transportar uma carga

mais selecta, isto é, os mais violentos e perigosos criminosos da nação, homens que era sabido

não terem hipótese de alguma vez virem a ser libertados.

#

107

Page 108: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Na barriga negra como breu do Stary Bolshevik, entre os corpos fedorentos de quinhentos

assassinos, violadores e ladrões, encontrava-se Leo, deitado de costas, descansando numa tarimba

estreita e periclitante, com o ombro encostado ao casco. Do outro lado era a vastidão do mar, uma

massa de água gélida que era mantida do outro lado por uma placa de aço não mais grossa do que

uma unha do seu polegar.

108

Page 109: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

O ar estava bafiento e pútrido, cozido pelo vibrante motor a carvão que se encontrava

resguardado num compartimento adjacente. Os condenados não tinham acesso ao motor, mas o

calor que este produzia atravessava uma parede divisória de madeira, um acrescento tosco ao

traçado original do navio. No início da viagem, quando o casco ainda se encontrava gelado, os

prisioneiros tinham lutado por um lugar nas tarimbas mais próximas do motor. Com o passar dos

dias, porém, as temperaturas tinham disparado, e esses mesmos prisioneiros lutavam agora pelas

tarimbas mais distantes. O espaço de carga abaixo da coberta, dividido numa grelha de corredores

estreitos, com oito fileiras de tarimbas de madeira em ambos os lados, fora transformado num

antro de insectos, infestado de prisioneiros. Leo ocupara uma tarimba superior, um espaço pelo

qual lutara e que tivera de defender, muito cobiçado pela sua elevação do chão, a transbordar de

dejectos e de vomitado. Quanto mais fraco se era, quanto mais baixo se estava: como se tivessem

sido peneirados num processo de filtração, que os separava em níveis darwinianos. As lanternas

que a princípio emitiam uma luz ténue e fuliginosa, como estrelas através do nevoeiro da cidade,

estavam agora sem petróleo, criando uma escuridão tão total que Leo não conseguia ver as suas

próprias mãos, mesmo que coçasse o rosto.

Aquela noite era o sétimo dia no mar. Leo contara os dias tão cuidadosamente quanto

fora capaz, aproveitando-se das idas à casa de banho raramente permitidas, para poder readquirir

o sentido do tempo. No convés, com uma metralhadora montada dirigida para eles, os

prisioneiros faziam fila para usar o buraco, originalmente destinado à âncora, uma queda directa

no oceano. Enquanto tentavam manter o equilíbrio nos mares revoltos, açoitados por ventos

gelados, acocorados e a arrastar os pés, o processo convertia-se numa tremenda pantomima.

Alguns companheiros, incapazes de esperar na fila, perdiam o controlo dos seus intestinos,

borrando-se, e ficavam deitados nos próprios excrementos, até estes secarem antes de se tornarem

a mexer. A importância psicológica da limpeza era evidente. Uma pessoa podia perder o juízo

passados apenas sete dias de estar ali em baixo. Leo confortou-se com o facto de aquelas

condições serem apenas temporárias. A sua principal preocupação era manter o seu vigor físico.

Muitos prisioneiros estavam enfraquecidos em virtude dos meses passados no campo de trânsito,

os músculos amolecidos devido à inércia do corpo e à má alimentação, as suas mentes amolecidas

109

Page 110: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

pela perspectiva de dez anos a trabalhar nas minas. Leo fazia exercício regularmente, mantendo o

corpo firme e a mente focada na tarefa que tinha em mãos.

Depois do encontro com Fraera nos terrenos escavados da Igreja de Sancta Sophia,

regressara ao hospital, descobrindo que Raisa sobrevivera à cirurgia e que os médicos estavam

confiantes de uma total recuperação. Quando acordou, a primeira coisa que quis saber foi como

estavam Zoya e Elena. Ao vê-la tão pálida e fraca, Leo prometera-lhe que estava inteiramente

concentrado no rapto da filha. Não precisava de se preocupar. Depois de lhe explicar as

exigências de Fraera, Raisa dissera apenas:

Faz o que tiveres de fazer.

#

Fraera ganhara controlo de um gangue de criminosos. Tanto quanto Leo percebia, ela não

era um torpedy, um mero soldado subalterno – ela era o avtoritet – o líder. Os membros de

gangues criminosos, os vory, geralmente desdenhavam as mulheres. Escreviam canções sobre o

seu amor pelas mães, matavam-se uns aos outros por causa de algum insulto feito às mães, mas

não acreditavam que as mulheres fossem iguais. De algum modo, a mulher de um padre, uma

mulher que passara a vida inteira na sombra do marido, a assisti-lo na sua carreira, conseguira

penetrar no vorovskoi mir. E o que era mais surpreendente ainda, subira até ao topo. Fraera estava

integrada nos seus rituais: tinha o corpo coberto de tatuagens, o seu nome verdadeiro fora

substituído por um klikukha, um pseudónimo vory. As suas operações, abrigadas no altamente

secreto vorovskoi mir, seriam financiadas por carteiristas e pelo comércio no mercado negro. Se a

vingança fora a sua intenção desde o começo, tinha escolhido bem os seus aliados. Os gangues

vory eram as únicas organizações que o Estado não controlava. Não havia hipótese de haver gente

infiltrada entre eles. Tal demoraria demasiado tempo e requeria que um oficial passasse anos sob

disfarce, matasse e violasse para se demonstrar digno de pertencer à organização. Não que o

Estado não fosse capaz de encontrar um candidato adequado, mas antes porque sempre

considerara os vory uma irrelevância. Estes gangues viviam e actuavam num mundo próprio, um

sistema fechado baseado em lealdades e recompensas. Nenhum dos gangues demonstrara alguma

vez interesse em política, até agora, até Fraera.

Se a exigência de Fraera – a libertação do marido – tivesse sido feita antes dos

assassínios, poderia ter sido conseguida. O sistema penal encontrava-se numa convulsão,

subsequentemente ao discurso de Khrushchev. Leo podia ter solicitado uma dispensa especial,

110

Page 111: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

um perdão, ou uma suspensão da sentença de vinte e cinco anos de Lazar. A única complicação

seria a renovada campanha anti-religiosa de Khrushchev. Contudo, depois dos assassínios, era

impossível negociar a libertação de Lazar. Era impossível conseguir um acordo. Fraera era uma

terrorista, que devia ser perseguida e morta, independentemente de ter levado Zoya como refém.

O gangue de Fraera era agora classificado uma célula contra-revolucionária. Para piorar as coisas,

ela não tinha feito o menor esforço para moderar a sua sede de sangue. Nos dias que se seguiram

ao rapto de Zoya, os homens de Fraera assassinaram vários oficiais: homens e mulheres que

tinham servido durante o governo de Estaline. Alguns tinham sido torturados da mesma forma

que haviam torturado outros. Os altos escalões do poder, confrontados com um reflexo dos seus

próprios crimes, começaram a ficar aterrorizados. Exigiam a execução de todos os membros da

célula de Fraera e de todos aqueles que os ajudassem.

Felizmente para Leo, o seu chefe, Frol Panin, era um homem ambicioso. Apesar de o

KGB e a milícia terem encetado a maior caça ao homem jamais vista em Moscovo, não tinham

encontrado vestígios de Fraera e do seu gangue. Os gritos clamorosos para a sua captura tiveram

como resposta um enorme fracasso. A imprensa não noticiara nada acerca destes eventos,

optando pelas celebrações das estatísticas industriais, depois da mais chocante das execuções,

como se aqueles números pudessem amortecer os rumores que corriam nas ruas. Os oficiais

mudavam as suas famílias para fora da cidade. Choviam requerimentos de férias. A situação era

intolerável. Panin, que cobiçava a glória de se tornar no homem que capturara Fraera, de envergar

o manto de um herói que exterminou um monstro, via Lazar como um isco. Como não

conseguiam que Lazar fosse libertado pelas vias normais, sem admitir que o Estado podia ser

feito refém, a única solução era ir lá libertá-lo. Panin sugerira que o projecto deles tinha apoiantes

poderosos e que estava a agir com o consentimento tácito das pessoas no governo.

Confirmou-se que Lazar era um condenado na região de Kolyma, Gulag 57. A fuga era

considerada impossível. Nunca ninguém tinha conseguido escapar. A segurança na maioria dos

gulags era pouco mais do que a sua localização: não havia forma de sobreviver fora do recinto.

As hipóteses de se atravessar o vasto e impiedoso terreno a pé eram quase nulas. Lazar, se

desaparecesse, seria considerado morto. Com a ajuda de Panin, fora apenas uma questão de

conseguir entrar no gulag, de fabricar a papelada necessária para colocar Leo como prisioneiro.

Sair, contudo, não seria fácil.

Leo despertou bruscamente dos seus pensamentos. Vibrações atravessavam o casco. A

proa do navio virou de bordo. Leo sentou-se muito direito. Tinham embatido em gelo.

111

Page 112: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Genrikh correu para diante, debruçando-se na amurada. Uma massa de gelo submersa

passou lentamente ao lado do navio; o seu pináculo não era maior do que um carro e a maior

parte do seu volume encontrava-se imersa debaixo de água, formando uma vasta sombra azul

escura. À primeira vista o casco parecia estar intacto. Não se ouviam gritos dos prisioneiros no

porão. O navio não estava a meter água. Sentindo o suor escorrer-lhe sob o pêlo de veado, fez

sinal ao capitão de que o perigo passara.

Nas primeiras viagens do ano, a proa colidia ocasionalmente contra restos de massas de

gelo, colisões que provocavam um estrépito ominoso ao embaterem contra o casco envelhecido.

No passado, estas colisões costumavam deixar Genrikh aterrorizado. O Stary Bolshevik era um

navio enfraquecido: não servia para o comércio ou o tráfego, apropriava-se tão-somente ao

transporte de condenados – quase não conseguia abrir um trilho nas águas quanto mais quebrar o

gelo. O vapor, movido a carvão, fora construído para alcançar uma velocidade de onze nós, mas

raramente alcançava mais do que oito, fumaçando como uma mula coxa. Com o passar dos anos,

o fumo que saía de uma única chaminé, localizada em direcção à popa, tornara-se mais escuro e

espesso, e o navio tornara-se mais lento, ao mesmo tempo que rechinava mais alto. Todavia,

apesar da deterioração do navio, Genrikh perdera gradualmente o medo do mar. Conseguia

dormir durante as tempestades e segurar as refeições no estômago, mesmo quando os pratos e as

panelas balouçavam com estrépito de um lado para o outro. Não que se tivesse tornado corajoso.

Um outro medo maior tomara o seu lugar: o medo dos guardas seus colegas.

Na sua primeira viagem, cometera um erro que nunca conseguira remendar, um erro que

os seus camaradas nunca lhe haveriam de perdoar. Durante o governo de Estaline, os guardas

conspiravam frequentemente com os urki, criminosos de carreira. E calhava organizarem a

transferência de uma ou duas prisioneiras femininas para o porão masculino. Por vezes a

cooperação das mulheres era comprada com falsas promessas de comida; por vezes eram

drogadas; outras, eram arrastadas, a estrebuchar, aos berros, numa aflição tremenda. Dependia

dos gostos dos urki, muitos dos quais apreciavam tanto o calor de uma luta quanto sexo. O

pagamento para esta transacção era informação sobre os políticos, ou seja, os condenados

sentenciados por crimes contra o Estado. O que os relatórios das coisas diziam, conversas

escutadas clandestinamente, informação que os guardas podiam traduzir em valiosas denúncias

112

Page 113: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

escritas quando o navio chegasse ao porto. Como pequeno bónus, os guardas davam as voltas

finais com as mulheres inconscientes, consumando uma aliança tão antiga quanto o próprio

sistema Gulag. Por idiotice, Genrikh declinara educadamente juntar-se a eles. Não ameaçara

denunciá-los. Não demonstrara qualquer censura. Apenas sorrira e dissera:

Não é para mim.

Palavras que acabara por lamentar mais amargamente do que qualquer outra coisa que

fizera na vida. A partir desse momento, começaram a ignorá-lo, a repeli-lo, a menosprezar as suas

interpelações. Pensou que a coisa fosse durar uma semana. Durara sete anos. Por vezes,

enclausurado a bordo, cercado pelo oceano, quase dava em maluco com a solidão. Nem todos os

guardas se juntavam às violações sempre que estas tinham lugar, mas todos os guardas se

juntavam algumas vezes. Porém, nunca lhe tinha sido dada a oportunidade de corrigir o seu erro.

O insulto inicial marcou-o, uma vez que não expressava uma preferência tal como: não lhe

apetecia naquele dia, mas tratara-se de uma reacção instintiva: aquilo era errado. Numa ocasião,

andando pelo convés à noite, ávido por alguém com quem falar, voltara-se para ver os outros

guardas reunidos lá ao longe. Na escuridão, tudo o que conseguira distinguir fora os seus cigarros

a arder, priscas vermelhas a brilhar na sua direcção, como olhos repletos de ódio.

Parara de se preocupar com que o mar pudesse engolir aquele navio ou que o gelo

pudesse rasgar o casco: isso seria quase um alívio. O seu medo era que uma noite ele

adormecesse, e quando acordasse, os seus pés e braços estivessem a ser seguros pelos outros

guardas, arrastado, tal como aquelas mulheres tinham sido arrastadas, a estrebuchar, a gritar,

sendo atirado borda fora, caindo no grande oceano gelado e negro, onde ficaria a esbracejar

impotente durante um minuto ou dois, vendo as luzes do navio tornarem-se mais e mais

pequenas.

Pela primeira vez em sete anos, esses medos já não o perturbavam. O inteiro contingente

de guardas tinha sido substituído. Talvez a sua retirada tivesse algo a ver com as reformas que

varriam os campos. Não sabia. Não interessava: eles tinham desaparecido, todos eles, excepto ele.

Tinha sido deixado para trás, excluído de uma mudança de sorte. Pois uma exclusão até lhe

convinha perfeitamente. Encontrava-se entre um novo grupo de guardas, nenhum deles o odiava,

nenhum deles sabia nada sobre si. Era um estranho novamente. O anonimato era uma sensação

agradável, como se estivesse miraculosamente curado de uma doença mortífera. Confrontado

com uma oportunidade de começar de novo, tencionava fazer tudo ao seu alcance para se

assegurar de que fazia parte da equipa.

113

Page 114: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Voltou-se e avistou um dos novos guardas a fumar na outra ponta do convés, olhando a

linha do horizonte ao crepúsculo, sem dúvida atraído para o exterior pelo barulho da colisão. Era

um homem alto, de ombros largos, dos seus trinta e picos anos, e possuía a pose de um líder. O

homem – Iakov Messing – tinha falado muito pouco durante a viagem. Não dera qualquer

informação acerca de si, e Genrikh ainda não fazia ideia se Iakov ficava a bordo do navio ou se

estava apenas a caminho de outro campo. Duro com os prisioneiros, reticente com os outros

guardas, um brilhante jogador de cartas e fisicamente robusto, não havia dúvida de que se se

formasse um novo grupo, tal como acontecera no último navio, seria formado com Iakov no

centro.

Genrikh atravessou o convés, cumprimentando Iakov com um aceno de cabeça, ao

mesmo tempo que esboçava um gesto para o maço de cigarros.

— Posso?

Iakov ofereceu-lhe o maço e um isqueiro. Nervoso, Genrikh tirou um cigarro, acendeu-o

e inalou profundamente. O fumo arranhou-lhe a garganta. Não costumava fumar e dava o seu

melhor para fingir que estava a desfrutar da experiência, partilhando um prazer mútuo. Era

imperativo que causasse uma boa impressão. Contudo, não tinha nada para dizer. Iakov quase

terminara o seu cigarro. Em breve regressaria para dentro. A oportunidade de estar com ele a sós

podia não surgir de novo: era a altura certa para falar.

— Tem sido uma viagem sossegada.

Iakov não pronunciou palavra. Genrikh sacudia a cinza para o mar, prosseguindo:

— É a sua primeira vez? Refiro-me a bordo. Sei que é a sua primeira vez a bordo deste

navio, mas estava a questionar-me se, já teria, talvez…estado a bordo de outros navios. Como

este.

Iakov respondeu com uma pergunta:

— Há quanto tempo está a bordo?

Genrikh sorriu, aliviado por ter conseguido uma resposta:

— Sete anos. E as coisas mudaram. Não sei é se mudaram para melhor. Estas viagens

costumavam ser dos diabos…

— Como assim?

— Oh…todo o tipo de… Bons tempos. Está a compreender a que me refiro?

Genrikh sorriu para sublinhar a insinuação dissimulada. O rosto de Iakov estava

impassível. Talvez estivesse a ser demasiado enigmático.

— Não. A que se refere?

114

Page 115: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Genrikh foi forçado a explicar. Baixou a voz, sussurrando, tentando persuadir Ivan a

alinhar na sua conspiração.

— Normalmente, depois do segundo ou terceiro dia, os guardas…

— Os guardas? Então, mas você não é um guarda?

Um deslize descuidado: insinuara que estava fora do grupo e agora o outro estava a

perguntar-lhe se era esse o caso. Clarificou:

— Quer dizer, nós. Nós.

Enfatizando a palavra – nós – e depois repetindo-a para completar.

— Nós falávamos com os urki, para ver se eles estavam dispostos a fazer-nos uma

proposta, uma lista de nomes, uma lista de políticos, alguém que tivesse tido uma coisa estúpida.

Perguntávamos o que eles queriam em troca desta informação: álcool, tabaco…mulheres.

— Mulheres?

— Alguma vez ouviu a expressão “ apanhar o comboio”?

— Recorde-me.

— A linha de homens que vão na sua vez, com as condenadas femininas, naquela altura.

Eu era sempre a última carruagem, por assim dizer. Que dizer, do comboio…de homens, que iam

na sua vez. Eu era o último.

Depois riu-se.

— Mas sempre é melhor do que nada, é o que eu digo.

Fez uma pausa, olhando para o mar, de mãos nas ancas, desejando poder indagar a

reacção de Iakov. Repetiu, nervosamente:

— Melhor do que nada.

Semicerrando os olhos à luz baça do crepúsculo, Timur Nesterov estudou o rosto daquele

jovem homem, enquanto ele se gabava com aquela história de violação. O homem queria que lhe

dessem palmadinhas nas costas, que o felicitassem e lhe confirmassem que esses tempos eram

bons tempos. O disfarce de Timur como guarda prisional, Iakov Messing, dependia da sua

invisibilidade. Não podia demarcar-se dos outros. Não podia armar confusão. Não estava ali para

julgar aquele homem ou para vingar aquelas mulheres. E, porém, era-lhe difícil impedir-se de

imaginar a sua mulher enquanto condenada a bordo daquele navio. No passado não fora presa por

um triz. Era bela e teria acabado à mercê do desejo daquele jovem.

Timur atirou o cigarro para o mar, encaminhando-se para dentro. Alcançara praticamente

a porta da torre, quando o guarda o chamou ainda:

— Obrigado pelo cigarro!

115

Page 116: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Timur deteve-se, questionando aquele código de comportamento brutal e selvajaria

insolente. Aos seus olhos, Genrikh parecia mais uma criança do que um homem. E, tal como uma

criança tentando impressionar um adulto, o jovem oficial apontou para o céu.

— Vem aí temporal.

A noite caía; ao longe, clarões de relâmpagos recortavam os perfis de nuvens negras

formando os nós dos dedos de um punho gigante.

116

Page 117: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Deitado de costas na escuridão, Leo escutava a pesada chuva caindo com força no

convés. O navio tinha começado a balouçar e a empinar-se, guinando de um lado para o outro.

Delineou a embarcação na sua mente, imaginando se seria capaz de suportar uma tempestade.

Tinha uma forma atarracada, como um gigantesco polegar metálico, e era um navio largo, lento e

estável. A única secção – à parte da chaminé de vapor – que se erguia acima do convés, era a

torre onde se situavam os aquartelamentos dos guardas e da tripulação. Leo encontrou conforto na

idade do navio: devia ter sobrevivido a muitas tempestades durante o seu tempo de vida.

A tarimba onde estava deitado abanou, quando uma onda embateu no costado, quebrando

por cima do convés – um ruído gorgolejante fez-se acompanhar de uma impressão visual: o

convés a fundir-se brevemente com o mar. Leo sentou-se. O temporal redobrava de fúria. Foi

obrigado a agarrar-se à tarimba, quando o navio guinou violentamente. Os prisioneiros

começaram a gritar à medida que eram cuspidos das tarimbas, gritos ecoando na escuridão.

Tinha-se tornado uma desvantagem estar tão alto. A armação de madeira era instável. A estrutura

não estava fixa ao casco. As tarimbas podiam cair, deitando os seus ocupantes ao chão. Leo

preparava-se para descer, quando uma mão lhe agarrou o rosto.

Com o vento e as vagas, e o alarido dos condenados, não se apercebera de que alguém se

aproximara. A respiração do homem cheirava a cárie. A sua voz era áspera:

— Quem és tu?

Pela autoridade na sua voz depreendeu que seria líder de um gangue. Leo estava certo de

que o homem não estava sozinho: os seus comparsas deveriam estar ali por perto, noutras

tarimbas, dos lados, por baixo. Era impossível lutar: nem tão pouco conseguia ver o homem com

quem devia lutar.

— O meu nome é…

O homem entrecortou-o:

— Não estou interessado no teu nome. Quero saber quem tu és. Porque é que estás aqui,

entre nós? Não és um vory. Não és um homem como eu. Ainda pensei que fosses um político.

Mas depois, vejo-te a fazer flexões, vejo-te a exercitares-te e sei que não és um político. Esses

escondem-se num canto e choram como crianças por nunca mais voltarem a ver as suas famílias.

Tu és algo diferente. Deixa-me nervoso, não saber o que vai no coração de uma pessoa. Não me

117

Page 118: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

importa que seja um assassino e viole ou roube. Nem sequer me importa se estejam metidos em

cânticos, orações e caridade; simplesmente gosto de saber. Por isso, torno a perguntar, quem és

tu?

O homem parecia inteiramente indiferente ao facto de o navio estar a ser atirado de um

lado para o outro, como um brinquedo, pelo temporal. A tarimba inteira saracoteava: a única

coisa que a mantinha fixa era o peso das pessoas sobre ela. Os prisioneiros estavam a saltar para o

chão, numa correria, saltando uns por cima dos outros. Leo tentou demover o homem:

— Que tal se falássemos quando o temporal passar?

— Porquê? Tens alguma coisa para fazer?

— Preciso de sair desta tarimba.

— Sentes isto?

A ponta de uma faca tocou no estômago de Leo.

Abruptamente, o navio embicou, num movimento tão repentino e poderoso, que parecia

que a mão de um deus do mar se enfiara por debaixo deles, erguendo-os do mar e atirando-os

contra o céu. Subitamente, o movimento cessou, a velocidade vaporizou-se, e a mão aquosa

transformou-se enfim em borrifos. O Stary Bolshevik caiu, mergulhando a pique.

A proa embateu na água. O impacto, semelhante à força de uma detonação, repercutiu-se

por todo o navio. Com um estouro sincronizado, todas as tarimbas se partiram e caíram. Durante

um segundo, Leo ficou suspenso na escuridão, caindo, sem saber o que haveria debaixo dele.

Virou-se de forma a cair de bruços, estendendo as mãos em direcção ao chão. Ouviu-se algo a

esmagachar. Ossos a partirem-se: sem saber se estava ferido, se o barulho tinha sido dos seus

ossos a partir, deixou-se ficar deitado, ofegante e aturdido. Não sentia dor. Apalpando o chão

debaixo dele, compreendeu que tinha aterrado sobre outro prisioneiro, em cima do peito de um

homem. O barulho que ouvira tinha sido das costelas do homem a fracturarem-se. Leo procurou-

lhe o pulso, porém o que encontrou foi uma lasca de madeira espetada no seu pescoço. Já estava

morto.

Ergueu-se a cambalear; o navio balouçava para um lado, e depois de volta para o outro.

Alguém lhe agarrou os tornozelos. Preocupado que fosse o líder do gangue sem nome nem rosto,

desferiu-lhe um pontapé, constatando de seguida que se tratava de uma pessoa a precisar

desesperadamente de ajuda. Todavia, não teve tempo para corrigir esse erro, pois o navio tornou a

embicar no ar, num ângulo ainda mais inclinado do que anteriormente, subindo em flecha para o

céu. As tarimbas desfeitas, agora livres para se moverem de um lado para o outro, começaram a

deslizar na sua direcção, amontoando-se. Fragmentos afiados, letais, comprimidos contra os seus

118

Page 119: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

braços e pernas. Os prisioneiros que não se conseguiram agarrar ao chão inclinado resvalaram

para trás, embatendo nele, uma avalanche de madeira e de corpos mortos.

Atirado por terra pela montanha recortada de pessoas e de madeira, Leo tentava, às cegas,

num desespero aflitivo, encontrar algo a que se agarrar para manter o equilíbrio. O navio estava

num ângulo de quarenta e cinco graus. Algo metálico apanhou-lhe uma das faces; Leo caiu, e

rolou às cambalhotas até embater na parede do fundo, contra as tábuas de madeira quentes, que

separavam os condenados do ribombante motor a carvão. A parede tinha quatro camadas de

prisioneiros colados a ela, que haviam sido cuspidos das suas camas; esperavam agora que o

navio ascendesse na direcção contrária, lançando-os na inevitável queda. Às apalpadelas,

tentavam alcançar qualquer coisa fixa a que se pudessem agarrar, temendo ser atirados para o

espaço desconhecido em frente. Leo tocou na superfície fria e lisa do casco. Não havia nada a que

se agarrar. O navio susteve a ascensão, empoleirado na crista de uma vaga.

Leo estava prestes a ser atirado para diante. Estaria indefeso, todos quantos se

encontravam atrás de si iriam aterrar-lhe em cima, esmagando-o. Incapaz de distinguir um palmo

à frente do nariz, tentou lembrar-se do traçado do porão. Os degraus que conduziam ao alçapão

do convés eram a sua única hipótese. Seria capaz de os encontrar na escuridão? O navio começou

a tombar para uma queda livre, acelerando para baixo. Leo atirou-se na direcção onde julgava

encontrarem-se os degraus. Embateu em algo duro – os degraus de metal –, e conseguiu enlaçar

um braço à volta destes no preciso instante em que a proa do navio embatia na água.

Um segundo impacto semelhante a uma explosão: a força era tremenda. Leo estava

convencido de que o inteiro navio se despedaçara, como uma casca de noz esmagando-se sob a

cabeça de um martelo. Esperava já uma parede de água, quando, em vez disso, ouviu o som de

madeira a partir-se, como troncos de uma árvore quebrando-se ao meio. Ouviram-se gritos,

homens ferozes, lançados pelos ares, indefesos, estropiados, lacerados. O braço de Leo,

enclavinhado no degrau, fora puxado com tal força que tinha a certeza de o ter deslocado.

Contudo, não havia uma parede de água precipitando-se numa torrente para o interior. O casco

estava intacto.

Leo olhou para trás de si e, para sua surpresa, viu fumo. Não só o via, como o cheirava.

De onde vinha aquela luz? O barulho do motor do navio parecia ter-se intensificado. A divisão de

madeira, separando os condenados do motor a carvão tinha-se partido. A sala do motor estava à

vista. No centro, havia um foco vermelho incandescente, rodeado pelos destroços das tarimbas e

corpos contorcidos.

Leo piscou os olhos, habituados à permanente escuridão. O porão já não estava seguro: os

prisioneiros – os homens mais perigosos de todo o sistema penal – tinham agora acesso aos

119

Page 120: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

aquartelamentos da tripulação e à coberta do capitão, que podiam ser alcançados a partir da sala

do motor. O oficial encarregado de manter o motor a funcionar, coberto de pó de carvão, ergueu

as mãos em sinal de rendição. Um condenado saltou-lhe em cima, arremessando-o contra o motor

rubro e ardente. O oficial gritou; um fedor de carne queimada encheu o ar. Tentou libertar-se do

metal, mas o condenado segurava-o ali preso, comprazendo-se, à medida que o homem era cozido

vivo, os olhos a revirarem-se, gorgolejando no próprio cuspo. O prisioneiro gritou, jubilante:

— Tomem o navio!

Leo reconheceu a voz. Era a voz do homem que o abordara na sua tarimba, o líder do

gangue que lhe apontara uma faca, o homem que o queria morto.

120

Page 121: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Arremessado de um lado para o outro, Timur ziguezagueava pelos corredores estreitos do

Stary Bolshevik, colidindo contra as paredes, correndo para proteger as duas portas de acesso que

conduziam à sala do motor. Encontrava-se na ponte quando o navio caíra da crista de uma onda,

como se tivesse largado de uma falésia de água a desmoronar-se, a proa a cair durante trinta

metros antes de embater numa cova oceânica. Timur tinha sido atirado para diante, catapultado

por cima do equipamento de navegação, caindo no chão. As placas de aço do navio reverberaram

com a frequência de um diapasão, ressoando com a energia do impacto. Erguendo-se, foi olhar

pela janela, e tudo o que conseguiu ver foi água espumante precipitando-se numa torrente na sua

direcção – uma amálgama de cinzento, branco e negro – convencendo-o de que o navio estava a

afundar-se, mergulhando a direito para o fundo do oceano; todavia, logo depois, a popa erguera-

se de novo no alto, inclinada para o céu.

Para indagar os estragos, o capitão ligara para a sala do motor. Não houvera resposta:

todas as chamadas não foram respondidas. Ainda havia potência, o motor ainda estava a

trabalhar, o casco não poderia ter aberto rombo. O movimento ascendente do navio punha de

parte uma grande inundação. Se o casco exterior estava intacto, a única explicação para a perda

de comunicação era a divisória de madeira ter sido destruída. Os condenados já não estavam

seguros: podiam entrar na sala do motor e subir as escadas, acedendo à torre principal. E, se os

prisioneiros alcançassem os níveis superiores, matariam toda a gente e traçariam um novo rumo

para águas internacionais, onde pediriam asilo em troca de propaganda anticomunista.

Quinhentos condenados contra uma tripulação de trinta, dos quais apenas vinte eram guardas.

O controlo dos níveis de baixo, situados abaixo da coberta estava, pois, perdido. Não

podiam recuperar a sala do motor ou salvar a tripulação que ali trabalhava. Contudo, era possível

selar esses compartimentos, encerrando os condenados nos níveis de baixo do navio. Havia duas

portas de acesso à sala do motor e Timur dirigia-se para uma delas. Outro grupo de guardas tinha

sido enviado para a segunda. Se uma delas estivesse aberta, se tivesse caído nas mãos dos

condenados, o navio estava perdido.

Depois de voltar à esquerda e à direita, desceu o último lance de escadas de um salto,

encontrando-se na base na torre. Conseguia ver a primeira porta de acesso adiante: ao fundo do

corredor. Estava destrancada, a balouçar para trás e para a frente, embatendo nas paredes de

121

Page 122: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

metal. O navio guinou abruptamente para cima, inclinando-se acentuadamente, e atirou Timur

para diante, de mãos e joelhos no chão. A pesada porta de aço abriu-se, revelando uma horda de

condenados a trepar do motor, cerca de trinta a quarenta rostos. Ambos se avistaram ao mesmo

tempo: sendo que a porta era o ponto intermédio entre eles; ambos os lados fitando-se

mutuamente através da divisão entre a liberdade e o cativeiro.

Os condenados precipitaram-se para diante, numa explosão. Timur reagiu de imediato,

erguendo-se do solo de supetão, correndo, saltando sobre a porta no preciso instante em que uma

massa de mãos se encostava a esta do outro lado, empurrando na direcção oposta. Era impossível

aguentá-los por muito tempo: os seus pés começaram a deslizar para trás. Os condenados estavam

quase a passar. Desembainhou a arma.

A tempestade atirou o navio para o lado, afastando os condenados da porta, ao mesmo

tempo que atirava com o peso de Timur contra ela. A porta fechou-se com um estrépito. Girou o

cadeado, fixando-o bem. Se a tempestade tivesse inclinado o navio na direcção oposta, Timur

teria sido atirado ao chão e os condenados tê-lo-iam atropelado, como uma horda em demandada,

esmagando-o. Frustrados por lhes ter sido tão cruelmente negada a liberdade, batiam com os

punhos na porta, dando pancadas e praguejando. Mas as suas vozes eram fracas, e os golpes na

porta inúteis. A grossa porta de metal era segura.

O seu alívio foi quebrado pelo som da metralhadora. Os condenados deviam ter passado

pela segunda porta.

Timur largou a correr, aos tombos, passando pelos aquartelamentos da tripulação e,

quando virou a esquina, avistou dois oficiais, agachados, a disparar. Quando os alcançou, puxou a

arma, apontando na mesma direcção. Havia corpos no chão entre eles e a segunda porta de

acesso, prisioneiros atingidos, alguns ainda vivos, esboçando gestos de súplica. Aquela porta, que

conduzia aos níveis abaixo do convés – e que agora constituía o único ponto de acesso para os

condenados à coberta superior – tinha sido forçada com uma tábua de madeira, saliente do meio.

Mesmo que Timur corresse de encontro à porta, era impossível fechá-la. Os oficiais, em pânico,

disparavam de forma errática, as balas ricocheteavam no metal, silvando com uma aleatoriedade

letal pelo corredor. Timur fez sinal aos oficiais para baixarem as armas.

Piscinas de água imitavam os bravios movimentos do mar, agitando-se de um lado para o

outro. Os prisioneiros não estavam a empurrar a porta, mantendo-se seguros atrás desta. Estariam,

sem dúvida, com dificuldades para eleger, de entre a sua equipa de sanguinários, aqueles vinte

que estariam dispostos a sacrificar as suas vidas e avançar, a fim de tomar controlo do corredor.

Pelo menos esse número morreria antes de os guardas terem sido dominados.

122

Page 123: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Timur apoderou-se de uma das metralhadoras, apontando para o cepo de madeira enfiado

na porta. Disparou, estilhaçando a madeira, ao mesmo tempo que avançava na sua direcção. O

cepo estava a desintegrar-se sob um firme fogo de barragem. Mantendo a salva de balas, a

madeira desfez-se em pedaços. A porta podia agora ser fechada e trancada, o último ponto de

acesso cerrado. Timur saltou para diante. Antes que pudesse alcançar o trinco, foram enfiados

mais três cepos de madeira. Era-lhe agora impossível fechar a porta. Sem munições, Timur

recuou.

Entretanto, tinham chegado mais quatro guardas, parados ao fundo do corredor,

perfazendo sete no total: uma deplorável força para segurar quinhentos homens. Desde as suas

primeiras baixas, os prisioneiros não tinham aventurado um segundo avanço. Se uma

percentagem não estivesse preparada para sacrificar a vida, não havia forma de saírem dali. Quase

certamente estariam a idear outros meios de ataque. Um dos oficiais sussurrou:

— Enfiamos as nossas armas pela nesga da porta! Eles não têm armas! Vão deixar cair

a madeira: nessa altura fechamos a porta.

Três dos oficiais assentiram com a cabeça, correndo para diante.

Não tinham dado mais do que alguns passos, quando a porta se abriu de par em par. Em

pânico, os oficiais abriram fogo – totalmente em vão. A maioria dos prisioneiros usava a

tripulação ferida como escudo humano. Era uma visão infernal: corpos queimados empunhados

como aríetes, descarnados, os rostos chamuscados gritando.

O oficial mais avançado ainda tentou retroceder, ao mesmo tempo que a sua arma

disparava em vão sobre a carne do colega. Porém, um condenado lançou o corpo sobre ele,

derrubando-o. Os guardas começaram a fazer fogo aos pés dos prisioneiros. Mas eles eram

muitos. A coluna de prisioneiros continuou a avançar. Dentro de poucos minutos, controlaria o

corredor, espalhando-se a partir desse ponto ao resto do navio. Timur seria linchado, espancado

até à morte. Paralisado, nem sequer conseguia disparar. De que serviam seis tiros contra

quinhentos homens? Era tão inútil como disparar sobre o mar.

Subitamente aflorou-lhe uma ideia à mente; deu meia volta, correndo para a escotilha.

Abriu-a de par em par, expondo a coberta a um mar bravio, uma massa de água vertiginosa. A

bordo, todos os guardas usavam um cinto de segurança. Timur prendeu o arnês ao cabo que corria

em torno da torre, um sistema destinado a impedir que os homens fossem atirados borda fora

pelas águas.

Espreitou para o local do tiroteio e viu que restavam apenas dois oficiais. Dezenas de

prisioneiros estavam mortos, mas um número aparentemente inesgotável concentrava-se atrás

destes. Timur soltou um grito para o mar, desafiando-o, convocando-o:

123

Page 124: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Anda, vem!

O navio mergulhou nas ondas, apontando Timur para uma concavidade funda entre as

ondas. Depois, lentamente, tornou a ascender. Uma montanha de água rolava mesmo na sua

direcção: a rebentação branca a desfazer-se muito alta, apagando o céu. Embateu contra o costado

do navio, inundando o corredor. Timur foi arrastado pela enchente, submergindo nas águas. A

água inundou o espaço com violência. Timur sentiu o ar ser-lhe arrancado dos pulmões, e um frio

atordoador. Estava indefeso: incapaz de se mexer, de pensar, arrastado com as águas pelo

corredor.

O arnês de segurança salvou-o, puxando-o para uma posição imóvel. Uma onda tinha

rebentado sobre o navio. Dali a pouco, o navio começou a inclinar-se na direcção oposta. A água

foi-se tão depressa como viera. Timur caiu no chão, arquejante, ao mesmo tempo que averiguava

os resultados da inundação. A parede de prisioneiros tinha sido atirada para trás, alguns foram

arremessados ao chão, outros tinham caído pelas escadas. Antes que eles pudessem recuperar,

desenganchou-se do cabo e correu para a porta, de roupas ensopadas e pesadas, as botas

chapeando sobre os corpos alvejados dos guardas e dos prisioneiros, vítimas da escaramuça.

Fechou a porta com força, trancando-a. Os níveis abaixo da coberta estavam seguros.

Não havia tempo a perder, porém. A escotilha estava aberta de par em par: outra

montanha de água podia inundar o interior, fazendo soçobrar o navio inteiro; Timur encaminhou-

se para lá, a fim de fechá-la. Uma mão agarrou-o. Um dos prisioneiros estava vivo, e acabava de

o derrubar. O prisioneiro trepou para cima dele, apontando a metralhadora à sua cabeça. Não

havia hipótese de falhar, não havia hipótese de ele o conseguir dominar. O prisioneiro puxou o

gatilho. A arma, todavia, sem munições ou danificada pela água do mar, não disparou.

Vendo-se absolvido, Timur regressou à vida, esmagando o nariz do prisioneiro com um

murro, ao mesmo tempo que o virava e lhe enfiava a cara numa poça de água. O navio começou

novamente a embicar, desta feita para desvantagem de Timur, pois a água começou a escorrer,

salvando o prisioneiro, que agora podia respirar. Os cadáveres deslizaram pelo corredor, até à

coberta. Timur e o prisioneiro ferido estavam a escorregar na mesma direcção, lutando, a poucos

metros de caírem no mar.

Quando passaram pela porta, Timur estendeu a mão para o alto e conseguiu agarrar a

linha de vida, desferindo um pontapé ao prisioneiro que o atirou de novo para a coberta. Uma

segunda onda precipitava-se sobre eles. Timur enfiou-se no interior, fechando a porta. Olhando

pela pequena janela de chapa de vidro, directamente nos olhos do prisioneiro, a onda atingiu o

navio. As vibrações percorreram-lhe os dedos. Quando a água se foi, o prisioneiro tinha

desaparecido.

124

Page 125: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Leo ficou a observar, do fundo das escadas, o novo líder eleito da rebelião a repuxar a

porta de aço, tentando abri-la. Estavam encurralados, sem forma de alcançar a ponte. Muitos dos

membros do seu gangue vory haviam sucumbido na tentativa de fuga. Desnecessário será dizer

que os comandara a partir de trás, esquivando-se às balas. A torrente de água arrastara-o escada

abaixo. Leo espreitou para a porta: uma massa de água até às canelas rolava de um lado para o

outro, destabilizando o navio. Era impossível bombeá-la para fora, não naquele clima de

hostilidade. A cooperação era impensável. Se a água continuasse a entrar, o navio iria virar.

Iriam afundar-se, na escuridão, sem hipótese de fugir, encarcerados numa prisão de aço, à medida

que o porão se enchia de água gelada. Todavia, a condição precária do navio não interessava

muito o novo líder auto-eleito. Aquele homem, um condenado revolucionário, parecia

determinado a alcançar o que queria ou a morrer.

O motor a carvão começou a casquinar. Leo deu meia volta a fim de determinar os

estragos. Era imperioso que o motor continuasse a trabalhar. Dirigindo-se aos restantes

prisioneiros, chamou por ajuda:

— Temos de manter o carvão seco e alimentar o fogo.

O líder tornou a aparecer na sala do motor, rosnando:

— Se não nos libertarem, damos cabo do motor.

Leo abanou a cabeça.

— Se perdermos o motor, o navio fica à deriva e vai ao fundo. Temos de manter o motor

a trabalhar. As nossas vidas dependem disso.

— E a deles também. Se pararmos o motor, serão obrigados a falar connosco: serão

obrigados a negociar.

— Eles jamais abrirão aquelas portas. Se destruirmos o motor, eles abandonam o

navio. Têm cinco botes, o suficiente para os levar a todos, e nenhum para nós. Preferiam

deixar-nos afogar.

— Como é que sabe?

125

Page 126: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Já aconteceu antes! A bordo do Dzhurma! Os prisioneiros assaltaram a loja,

roubaram comida e pegaram fogo ao resto, sacos de arroz e prateleiras de madeira, esperando

que os guardas viessem a correr. Mas eles não vieram. Deixaram arder. Os prisioneiros

morreram todos sufocados.

Leo pegou numa pá. O líder abanou a cabeça:

— Põe-na em baixo.

Leo ignorou-o e começou a encher a pá de carvão, alimentando o motor. Este, deixado

ao abandono, arrefecera bastante. Nenhum dos outros homens o ajudava, à espera de ver o

desenlace do conflito. Depois de ter avaliado o adversário, Leo concluíra que provavelmente não

o conseguiria dominar. Há muito que não lutava com ninguém. Contudo, fora um soldado, e o

seu treino deveria contar sobre a força bruta daquele homem. Leo apertou a pá nas mãos,

preparando-se. Para sua surpresa, o condenado sorriu:

— Vá, cave carvão, como um escravo. Mas há outra saída.

Agarrou numa segunda pá e trepou pela parede divisória desfeita até ao porão dos

prisioneiros. Leo deixou-se ficar quieto, na dúvida se deveria continuar a apanhar carvão ou

seguir o outro. Passado instantes, o clangor de aço a embater em aço ressoou. Leo enfiou-se

rapidamente pelo buraco da parede divisória, regressando às trevas do porão. De olhos

semicerrados, avistou o vory no cimo das escadas, batendo furiosamente com a pá na escotilha da

coberta. Para um homem comum, tal empreitada seria escusada. Mas aquele indivíduo possuía

uma força tal que a escotilha começava já a corcovear, curvando-se sob a pressão. O aço acabaria

por ceder. Leo berrou:

— Se partir a escotilha, isto aqui vai encher-se tudo de água. E não haverá maneira de a

fechar outra vez. Se o porão ficar inundado o navio irá virar!

O condenado, parado no cimo dos degraus, esmagando a escotilha com uma força

colossal, bradou aos companheiros:

— Antes de morrer, vou ser livre! Vou morrer como um homem livre!

E continuava a abrir mossa na escotilha de metal, aparentemente incansável, apontando

cada golpe para o mesmo local onde o anterior caíra.

Era impossível determinar quanto tempo faltava para a escotilha ceder, sem hipótese de

ser reparada. Leo tinha de fazer qualquer coisa já. Lutar contra aquele homem sozinho seria

impossível. Precisava de granjear a ajuda de outros prisioneiros. Voltou-se para eles, pronto para

os mobilizar:

126

Page 127: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— As nossas vidas dependem de…

Porém, a sua voz não foi capaz de se erguer acima do clangor das batidas no aço e do

temporal. Ninguém o iria ajudar. Teria te lutar contra aquele homem sozinho.

Para se equilibrar, com o balouçar do navio, Leo precipitou-se sobre o degrau de baixo.

O condenado tinha enrolado as pernas em torno da armação de aço das escadas, mantendo-se em

posição, à medida que continuava a matracar a escotilha. Assim que avistou Leo a trepar na sua

direcção, apontou para ele a pá deformada. O adversário de Leo encontrava-se numa posição

superior. A única hipótese seria puxar-lhe pelas pernas, fazendo-o cair. O prisioneiro pôs-se

numa posição defensiva, levando atrás a pá.

Antes que Leo pudesse mudar de posição, um turbilhão de balas penetrou na escotilha,

crivando-se nas costas do condenado. Com a boca cheia de sangue, o vory baixou os olhos para o

peito, em estado de perplexidade. A força da tempestade derrubou-o com um abanão do degrau

de cima, cuspindo-o no chão. Leo desviou-se do caminho, deixando que o homem caísse na

água. Entretanto, as balas continuavam a crivar-se na escotilha, passando de raspão o rosto de

Leo. Decidiu saltar, e aterrou na água, longe da linha de fogo.

Leo espreitou para o outro lado. O vory estava morto, deitado de bruços. Ele já não

constituía um perigo. A escotilha estava coberta de buracos de balas. E um denso chuveiro de

água penetrava através destes de cada vez que uma vaga galgava a amurada, rebentando na

coberta. Se não conseguissem tapar aqueles buracos, o nível da água iria subir e o navio

capotaria. Leo tinha mesmo de subir as escadas e tapar os buracos. O navio continuava a ter

atirado de um lado para o outro e a água jorrava para o interior através da escotilha. O nível da

água no porão subia continuamente, salpicando o motor a carvão que ia arrefecendo cada vez

mais. Leo não podia esperar mais. O navio tinha dificuldades em manter-se direito: virando

lentamente para uma posição vertical. Leo tinha de agir quanto antes.

Começou a rasgar as roupas do condenado morto, estraçoando-as. Com gestos

hesitantes, ao mesmo tempo que grossos fios de água lhe caíam em cima deixando-o ensopado,

pôs o pé no degrau de baixo, preparando-se para subir. A sua vida dependia agora da inteligência

do guarda incógnito que se encontraria do outro lado.

127

Page 128: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Num estado de euforia, Genrikh colava-se à metralhadora, ao mesmo tempo que as ondas

rebentavam em torno de si, como se montasse o dorso de uma monstruosa baleia. Em virtude da

sua valentia, a tentativa de fuga dos condenados fracassara. Ele tinha salvo o navio. De cobarde

a herói numa noite! Pouco antes, encontrava-se então na torre, assim que ouvira a batalha entre

os guardas e os prisioneiros estalar, correra a refugiar-se nos aquartelamentos da tripulação,

encolhido de medo. Tinha visto o seu amigo Iakov passar a correr e nada fizera, limitando-se a

esconder-se. Só quando teve a certeza de que os condenados tinham perdido, de que tinham sido

forçados a bater em retirada e o navio se encontrava seguro, é que se resolveu a aparecer,

compreendendo tardiamente o outro perigo que agora enfrentava. Os sobreviventes iriam acusá-lo

de ser um desertor. Iriam odiá-lo, do mesmo modo que a antiga tripulação o odiara. Seria

condenado a mais sete anos de isolamento. Estava ele ainda desolado pelo desespero, quando

uma oportunidade de redenção lhe apareceu caída do céu: o clangor de aço contra o aço. Fora o

único membro da tripulação que dera fé de os condenados estarem a tentar esmagar a escotilha.

Estavam a tentar invadir o navio a partir da coberta. Porém, a escotilha não estava preparada para

aguentar aquele tipo de investidas constantes. Normalmente, nenhum prisioneiro se atreveria a

tocar na escotilha por medo de ser fuzilado. Durante o temporal, porém, a torre do canhão ficava

desocupada. Era uma oportunidade de mostrar o que valia. Revigorado por essa perspectiva,

atravessara a coberta a correr, dirigindo-se à torre do canhão. Apontara a mira e disparara sobre a

escotilha. Zonzo pela excitação, gritara, crivando uma segunda e uma terceira salva de balas na

escotilha. Ficaria ali enquanto o temporal durasse. Toda a gente que se encontrava na torre seria

testemunha da sua extraordinária coragem. Se algum condenado tentasse passar por ali, se algum

condenado tentasse sequer aproximar-se da escotilha, matá-lo-ia.

#

128

Page 129: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Parado na ponte, escumando de raiva pela estupidez de Genrikh, Timur decidiu que não

podia permitir que ele disparasse mais uma salva de balas sobre a escotilha. O navio ia baixo na

água, o capitão mal conseguia fazê-lo subir as vagas. Se metesse mais água, iriam afundar-se. O

temporal não dava mostras de amainar. Timur sabia, ao passo que os outros não, a quantidade de

água que já entrara na embarcação quando abrira a escotilha. Depois de ter salvo o navio dos

condenados, agora teria de o salvar de um guarda.

Depois de descer os lances de escadas, segurou-se bem antes de abrir a porta para a

coberta. O vento e a chuva rodearam-no num turbilhão, como se insultados pessoalmente pela

sua presença. Fechou a porta atrás de si, enganchando-se na linha de vida. A distância entre a

base da torre e a torre do canhão seria talvez de quinze metros, numa faixa desprotegida da

coberta. Se fosse apanhado por uma vaga a atravessar esse espaço seria arremessado contra a

parede do convés ou atirado borda fora. O cabo de segurança não lhe serviria de muito, pois seria

arrastado pelo mar como um isco de pesca até a linha se partir. Espreitou para os buracos de

balas na escotilha. Qualquer coisa despertou-lhe a atenção: um trapo enfiado, tapando o buraco.

Genrikh não compreendeu. Estava preparar outro tiro, pronto para disparar.

Timur atravessou a coberta à velocidade de uma flecha, no preciso instante em que uma

vaga galgava a amurada, precipitando-se sobre ele. Atirou-se para o chão, agarrou no flanco da

torre e desviou o cano para o ar. Genrikh disparou. A vaga abateu-se sobre o navio. Durante

uma fracção de segundos, as pernas de Timur foram levantadas no ar. Se não estivesse agarrado

a alguma coisa, teria sido arrastado para o mar. Assim que a água escoou, os seus pés voltaram a

assentar em solo firme. Com a boca e nariz cheios de água salgada, Timur cuspiu. Depois de

recuperar, agarrou Genrikh pelo cachaço, completamente descontrolado, furioso, ao mesmo

tempo que o abanava como se aquele fosse uma boneca de trapos. Empurrou-o para trás e retirou

o carregador de munição da metralhadora, atirando-o ao mar.

Depois de ter desarmado a arma, Timur regressou a cambalear para a torre, verificando o

estado da escotilha ao passar. Tinham sido enfiados mais trapos nos buracos.

Alcançara quase a torre quando sentiu o impacto de uma nova onda. Assim que se

voltou, descobriu que o mar se precipitava sobre ele. Foi içado no ar e atirado contra as paredes

da coberta. Durante instantes fez-se silêncio. Tudo o que conseguia ver era um milhão de

bolhas. Depois a água escoou da coberta, ao mesmo tempo que o clamor da tempestade

regressava. Ergueu-se, olhando em redor. A bateria da metralhadora desaparecera: tinha sido

129

Page 130: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

arrancada, como um dente podre. Os destroços tinham sido arrastados até à ré do navio. Genrikh

fora apanhado no metal retorcido.

Timur tinha suficiente folga no cabo para se puxar ao longo do lado e agarrar o jovem

guarda. Genrikh tentava, num esforço lamentável, libertar-se do metal. Estava preso. Se os

destroços fossem borda fora, arrastariam Genrikh com eles. Timur podia salvá-lo. E, contudo,

não se mexia. Olhou para o mar lá fora. Subiam outra onda e em breve iriam mergulhar no mar,

na cava das ondas, e a força que arrastara uma bateria de metralhadora aparafusada ao convés, iria

arrastá-lo arrastá-los também a eles.

Assim, voltou costas a Genrikh, segurou no cabo e içou-se em direcção à torre. O ângulo

do navio inverteu-se, mergulhando no mar. Timur alcançou a porta, trepou para dentro e fechou-

a seguramente.

#

Genrikh foi levantado por uma onda, bracejando para se manter à tona de água. A água

estava tão fria que não sentia nada abaixo da cintura. Antes de ser arrastado borda fora, sentira

uma dor terrível quando o aço lhe rasgara as entranhas. Mas agora, dormente do choque, essa dor

passara, como se as vagas geladas o tivessem cortado a metade com uma dentada. Durante um

segundo, ficou a ver o navio e as luzes da torre, e depois desapareceu.

130

Page 131: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Dez quilómetros a norte de Moscovo

8 de Abril

Os pulsos e os tornozelos de Zoya estavam atados com um arame tão apertado que, de

cada vez que tentava mudar de posição, este lhe cortava a pele. Tinha os olhos vendados e a boca

amordaçada e estava deitada de lado. Não havia um cobertor debaixo dela – nada para amortecer

a trepidação da estrada. A julgar pelo barulho do motor e a quantidade de espaço à sua volta,

encontrava-se nas traseiras de um camião. Conseguia sentir a aceleração e as vibrações através

do chão metálico. A cada paragem abrupta, o seu corpo rolava para trás e depois novamente para

a frente, assemelhando-se mais a um cadáver do que a uma pessoa viva. Quando se refez da

desorientação, começou a visualizar a viagem com a mente. À saída tinham virado muitas vezes,

atravessando o trânsito. Estavam na cidade – Moscovo –, embora não pudesse ter a certeza.

Neste momento seguiam a direito, numa velocidade constante. Deviam ter saído da cidade. Para

além do roncar do motor, não havia qualquer ruído, nenhum trânsito. Estavam a levá-la para um

sítio qualquer remoto. Com base nestas observações, e na indiferença com que a tratavam –

enfiando-lhe um trapo pela garganta abaixo causando que quase sufocasse – estava convicta de

que iria morrer em breve.

Quanto tempo é que estivera presa? Não poderia dizer ao certo – tornava-se difícil medir

a passagem do tempo. Depois de a terem levado do apartamento, tinham-na drogado. Quando a

enfiaram no carro, vira ainda Raisa cair. Essa era a última coisa de que se lembrava antes de

acordar, com a cabeça pesada, a boca seca como poeira, estendida no chão de um cubículo de

tijolo sem janelas. Embora estivesse inconsciente quando a trouxeram para ali, tinha uma forte

impressão de que se encontrava a muitos metros abaixo do nível do solo. O ar estava sempre frio

e húmido: os tijolos nunca aqueciam, o que a impedia de perceber quaisquer ciclos do dia e noite.

O fedor levava-a a pensar tratar-se de um sistema de esgotos. Ouvira muitas vezes o rumor da

água. Por vezes as vibrações eram tão fortes que parecia existir rios a passar por túneis

adjacentes. Os captores tinham-lhe dado comida quente e cobertores, sem se esforçarem por

ocultar as suas identidades. Não haviam falado com ela, com excepção de uma série de ordens e

perguntas breves, mostrando-se pouco interessados nela, para além das necessidades básicas de a

manter viva. Porém, de tempos a tempos, apercebera-se vagamente de alguém a observá-la,

131

Page 132: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

escondido nas trevas do corredor diante da cela. Assim que se aproximava, tentando vislumbrá-

los, escapuliam-se nas trevas.

Nas últimas semanas, pensara muito na morte, virando e revirando o assunto no espírito,

como se estivesse a chupar um rebuçado. Afinal, vivia exactamente para quê? Não tinha

quaisquer ilusões de ser salva. A ideia de liberdade não lhe trazia lágrimas de alegria aos olhos.

A liberdade fora uma vida enquanto estudante impopular e infeliz – odiada e odiosa. Não se

sentia mais só ali presa do que se sentira em casa de Leo. Não se sentia mais como uma

prisioneira agora do que se sentia antes. A única coisa que mudara fora o cenário. Os captores

tinham mudado. De resto, a vida era igual. Não chorava quando se lembrava do seu quarto, ou

de uma refeição quente na companhia da família, sentada à mesa da cozinha. Nem sequer

chorava quando se lembrava da irmã. Talvez Elena fosse mais feliz sem ela – talvez estivesse a

retrair a irmã, a impedi-la de levar uma vida normal, crescendo junto de Raisa e Leo.

Por que não consigo chorar?

Beliscou-se. De nada adiantou, porém. Simplesmente não conseguia chorar.

Esperava que Raisa tivesse sobrevivido à queda. Esperava que Elena estivesse bem.

Todavia, até mesmo estas esperanças, muito embora sinceras, pareciam deslocadas, como se

fossem os pensamentos de outras pessoas acerca do que deveria estar a sentir, e não os seus

sentimentos mais profundos. Na maior parte dos dias, sentia-se indiferente e vazia. Faltava, por

assim dizer, uma peça fundamental na sua engrenagem interior, e em lugar de ligar as emoções às

experiências vividas, as rodas giravam inutilmente. Deveria ter medo. Deveria estar aterrorizada.

Mas sentia-se como se flutuasse numa banheira de resignação tépida. Se quisessem matá-la,

podiam. Se quisessem libertá-la, podiam. Bravata à parte, era-lhe honestamente tudo indiferente.

#

O camião saiu da auto-estrada, metendo por um caminho de terra, aos solavancos.

Passado algum tempo, começou a abrandar, virando diversas vezes, antes de estacar. Ouviu as

portas da dianteira abrir e fecharem-se, logo seguidas por um soar de passos a ranger no solo,

aproximando-se das traseiras. Puxaram a lona. Zoya foi levantada em peso, como se de carga se

tratasse, e colocada de pé, quase sem se conseguir suster levantada, pois os ferimentos nos

132

Page 133: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

tornozelos dificultavam-lhe o equilíbrio. O chão era de lama áspera e pequenas pedras.

Maldisposta da viagem, ainda pensou que fosse vomitar. Porém, não queria que os captores

pensassem que era fraca e tinha medo. Tiraram-lhe a mordaça. Respirou fundo. Um homem

começou a rir, um riso condescendente, presunçoso, fundo e lento, à medida que lhe

desapertavam o fio de arame e lhe tiravam a venda dos olhos.

Zoya semicerrou os olhos à luz do dia, tão brilhante que parecia encontrar-se apenas a um

palmo de distância da superfície do Sol. Como um demónio que se vê fora do seu covil, Zoya

voltou as costas ao céu. Os seus olhos começaram a habituar-se à luz, as coisas em seu redor

começaram lentamente a tornar-se nítidas. Estava parada num caminho de terra batida. Diante

de si, na berma do caminho, viam-se minúsculas flores brancas, dispersas irregularmente, como

salpicos de leite entornado. Quando ergueu os olhos, avistou um bosque. Depois de tanto tempo

privados de estímulos, os seus olhos comportaram-se como uma esponja ressequida, atirada para

dentro de água, alargando-se, expandindo-se – absorvendo cada gota de cor em seu torno.

Quando se lembrou dos captores que ali estavam, voltou-se. Eram dois – um homem

baixote de braços e pescoço grossos, tronco musculado desmesuradamente grande. Tudo nele era

robusto e comprimido, como se tivesse crescido no interior de uma caixa demasiado pequena. A

seu lado, por contraste, encontrava-se um rapaz, talvez dos seus treze ou catorze anos, da sua

idade. Era esguio e vigoroso. Os olhos astutos. Olhou-a com manifesto desdém, como se ela

estivesse abaixo de si, como se ele fosse um adulto e ela não passasse de uma menina pequena.

Não gostou nada dele.

O homem baixote apontou para as árvores:

— Vai dar uma vota. Estica as pernas. Fraera não quer que fiques fraca.

Ouvira aquele nome antes – Fraera –, apanhando fragmentos de conversas quando os

vory estavam bêbados e tumultuosos. Fraera era o seu líder. Zoya apenas a vira uma vez.

Entrara na sua cela, com uma arma no cinto, o pescoço, mãos e braços cobertos de tatuagens.

Não se apresentara. Nem precisava de o fazer. O poder envolvia-a como um manto. Ao passo

que Zoya não sentira medo dos outros rufias, cuja força podia ser medida pela grossura dos seus

braços, sentira medo daquela mulher. Fraera estudara-a com um calculismo frio, um artífice

esperto examinando os pormenores intricados de um relógio de segunda, um objecto a

cascabulhar como lhe conviesse. Embora fosse uma oportunidade para lhe fazer a pergunta – o

que tenciona fazer comigo? – Zoya fora incapaz de falar, entorpecida no silêncio. Fraera passara

não mais do que um minuto na cela antes de sair, sem dizer palavra.

133

Page 134: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Livre para caminhar, Zoya saiu do caminho de terra, e meteu pelo bosque, com os dedos

dos pés a afundarem-se no solo lamacento e na vegetação. Talvez a matassem enquanto se dirigia

para as árvores. Talvez as armas já estivessem levantadas. Deitou um olhar atrás de si. O

homem estava a fumar. O rapaz seguia todos os seus movimentos. Como interpretou mal a razão

por que ela olhara para trás, gritou:

— Se tentares fugir, irei apanhar-te.

Arrogante, desdenhoso – não lhe agradava a sua atitude de superioridade. Não devia ter

tanta confiança em si próprio. Se havia uma coisa na qual ela era boa, era correr.

Depois de dar vinte passos na floresta, deteve-se, encostando a mão ao tronco de uma

árvore, ávida de sensações diferentes da monotonia dos tijolos frios e húmidos. Apesar de estar a

ser observada, rapidamente perdeu a consciência de si e agachou-se, apertando uma mão cheia de

terra. Fios de água suja escorreram-lhe pelos lados da mão. Como crescera no kolkhoz,

trabalhara nos campos ao lado dos pais. Por vezes, cultivando os campos, o pai costumava

dobrar-se e apanhar uma mão cheia de terra, esfregando-a nos dedos, desfazendo os torrões,

apertando a terra tal como ela a apertava agora. Nunca lhe perguntara porquê. O que lhe diria

aquela terra? Ou seria apenas um hábito? Lastimou não o saber. Lastimava muitas coisas, todos

os segundos desperdiçados, os amuos e os joguinhos tolos, em lugar de ouvir quando ele queria

falar, comportando-se mal e fazendo os pais perder a paciência. Agora eles tinham desaparecido

e nunca mais voltaria a falar com eles.

Zoya abriu o punho, deitando bruscamente a terra fora. Não queria aquelas recordações.

Se não encontrava sentido na vida, encontrava-o decerto na morte. A morte significava o fim de

todas aquelas memórias tristes, o fim dos seus lamentos. A morte seria menos vazia do que a

vida. Estava certa disso. Ergueu-se. Aquele bosque assemelhava-se bastante ao bosque em

Kimov, próximo do kolkhoz onde crescera. Era melhor do que a monotonia dos tijolos frios e

húmidos – esses não lhe lembravam nada. Estava pronta para ir.

Zoya voltou-se para o camião. Deu um salto, surpreendida por encontrar o homem

baixote e musculoso parado mesmo atrás de si. Não o ouvira aproximar-se. Baixou os olhos para

ela e sorriu-lhe, revelando uma boca quase sem dentes. Atirou o cigarro para o lado, ao mesmo

tempo que ela observava onde este aterrava, consumindo-se no solo. O homem já tinha despido o

casaco. Agora estava a arregaçar as mangas da camisa:

— Fraera mandou que praticasses algum exercício. E ainda não fizeste nada.

134

Page 135: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Estendeu a mão, tocando-lhe no cimo da camisa, correndo-lhe com o dedo pelo rosto,

como se limpasse uma lágrima. As suas unhas eram ásperas, roídas. Baixou o tom de voz:

— Não estamos domesticados, como tu. Não somos educados, como tu. Quando

queremos uma coisa, tomamo-la.

Zoya fazia por manter a sua fachada corajosa, recuando à medida que ele avançava.

— Tomar é o que fazemos melhor. A submissão é o que as meninas pequenas melhor

fazem. Podes chamar-lhe violação. Eu cá, chamo-lhe…exercício.

Medo era o que aquele homem desejava – medo e domínio. Não lhe daria nenhuma

dessas coisas.

— Se me tocar, dou-lhe um pontapé. Se me atirar ao chão, arranho-lhe os olhos. Se me

partir os dedos, mordo-lhe a cara.

O homem riu-se alto:

— E como é que vais fazer isso, minha pequena, se antes te puser inconsciente?

Cada passo que Zoya dava, ele igualava, o seu corpo largo a encurralá-la, até ficar

encostada a uma árvore, incapaz de se mexer. De mãos escondidas, apalpou o tronco com as

mãos, procurando qualquer coisa com que se defender. Partiu um pequeno ramo, esfregando com

a ponta do dedo a sua extremidade. Teria de servir. Olhou para o rapaz. Este andava a lesmar

nas proximidades do camião. Seguindo a direcção do seu olhar, o homem virou-se para o rapaz:

— Ela pensa que a vais salvar!

Acrescentou com um sorriso conspirador:

— Podes vir na tua vez, a seguir a mim.

Zoya levantou o galho com toda a sua força, esmagando a ponta recortada no rosto do

homem. Esperava ver sangue. Porém, o galho apenas se partiu, desfazendo-se na sua mão. De

olhos a piscar de surpresa, o homem fitou-lhe a mão, vendo os restos do galho, e compreendendo

o que se passara, tornou a rir-se.

Zoya deu um pulo para diante. O homem estendeu-se para agarrá-la. Ela baixou-se,

escapando. Começou a dirigir-se para o camião, a correr tão depressa quanto podia, sentindo que

o homem a encalçava. Claro que o rapaz a iria interceptar no caminho, mas não o via. Agarrou

na porta da cabine do condutor e atirou-se lá para dentro. O seu perseguidor estava apenas a

alguns metros de distância e já não sorria. Agarrou no puxador da porta e fechou-a com força,

antes de ele embater nela. Empurrou o trinco para baixo, na esperança de que ele não tivesse as

135

Page 136: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

chaves. E não tinha – estavam na ignição. Passou para o assento do condutor e deu à chave. O

motor despertou com uma explosão brusca.

Sem uma noção muito clara do que fazer, agarrou na alavanca das mudanças, engrenando

a primeira com um arranhão – o som áspero de metal. Não parecia acontecer nada. O homem

entretanto despira a camisa, enrolando-a em torno do punho. Levou o braço atrás para ganhar

balanço e estilhaçou a janela lateral, aspergindo a cabine de vidros. Incapaz de alcançar o pedal

do acelerador, Zoya deslizou do assento, empurrando o pé para baixo, reavivando o motor. O

camião rolou para a frente no preciso instante em que o homem abria a porta, inclinando-se sobre

o assento ao lado do condutor. Abaixou-se o mais que conseguiu. Ele agarrou-a pelos cabelos,

puxando-a para cima. Ela gritou, arranhando-lhe as mãos.

Inexplicavelmente, ele soltou-a.

Zoya caiu para trás no chão da cabine, agachando-se, com a respiração arquejante. O

motor engasgou-se. O camião já não estava em movimento. O homem desaparecera e a porta

estava aberta. Ofegante, soergueu-se com cautela e espreitou para o assento ao lado do condutor.

Conseguia ouvir o homem. Praguejava. Debruçou-se um pouco mais, descobrindo-o deitado no

chão.

Sem compreender o que se passara, Zoya reparou então na presença do rapaz junto do

homem. Segurava uma faca na mão. A lâmina estava manchada de sangue. O outro apertava

com a mão a parte posterior do tornozelo. Sangrava bastante: os seus dedos estavam tingidos de

vermelho. O rapaz fitava-a, sem dizer palavra. Incapaz de se levantar, o homem tentava alcançar

as pernas do rapaz. Este desviou-se para o lado. O homem fez nova tentativa de se levantar,

caindo rapidamente, rolando de costas. Os tendões na parte posterior do tornozelo tinham sido

cortados. O pé esquerdo pendia como um peso morto. De rosto contorcido, gritava ameaças

terríveis. Contudo, era incapaz de implementar qualquer uma delas, coxeando pelo chão, numa

visão peculiar – letal e porém simultaneamente patético.

O rapaz, ignorando-o completamente, voltou-se para Zoya.

— Sai do camião.

Zoya desceu da cabine, mantendo-se à distância do homem ferido. Usava a camisa para

ligar o pé, atando-a em torno do tornozelo. O rapaz limpou a lâmina da faca, e esta pareceu

desaparecer nas pregas das suas roupas. Sem nunca perder de vista o homem, Zoya disse-lhe:

— Obrigada.

O rapaz enrugou a fronte:

136

Page 137: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Se Fraera me tivesse dado ordens para te matar, tê-lo-ia feito.

Esperou antes de perguntar:

— Como te chamas?

Ele hesitou, em dúvida se haveria de responder. Por fim, murmurou:

— Malysh.

Zoya repetiu o nome:

— Malysh.

Baixou os olhos para o homem ferido e depois ergueu-os para o camião. Tinham saído

do caminho. O homem dava murros no chão, vociferando:

— Espera até saberem o que fizeste. Vão matar-te!

Zoya olhou para o rapaz, notando a preocupação palpitando-lhe no rosto:

— É verdade o que ele diz?

Malysh ponderou:

— Fraera decidirá. Vamos regressar a pé. Se tentares escapar, corto-te as goelas. Se

soltares a minha mão, nem que seja para coçar o nariz…

Satisfeita por conhecer, enfim, a identidade do seu admirador secreto, Zoya terminou a

frase:

— Cortas-me as goelas?

Malysh olhou-a de esguelha com suspeita – sem dúvida perguntando-se se ela estaria a

troçar dele. Para o sossegar, Zoya estendeu a mão e segurou na mão dele.

137

Page 138: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Costa do Pacífico

Kolyma

Porto de Magadan

Navio-prisão Stary Bolshevik

No mesmo dia

Os degraus e os ferros das escadas eram as únicas estruturas sólidas que proporcionavam

alguma elevação da água que inundava o porão, e estavam consequentemente apinhados de

prisioneiros, apertados uns contra os outros, empoleirados como corvos num cabo de

electricidade. Os menos afortunados estavam amontoados sobre os escombros das tarimbas que

haviam ruído – tábuas que se aglomeravam até ao alto, criando uma ilha de madeira improvisada,

rodeada de água gelada, que nela quebrantava. Os corpos daqueles que tinham morrido haviam

sido empurrados para longe e balançavam à superfície, alguns de rosto para baixo, outros de rosto

virado para cima. Leo era um dos poucos privilegiados muito acima da água, nos degraus de aço

que conduziam à escotilha esburacada pelas balas, que ele tapara com trapos.

Depois de ter tapado os buracos, Leo teve de manter o motor a carvão a trabalhar,

tostando o peito e o rosto com a proximidade do fogo, ao passo que as pernas, dentro de água até

aos joelhos, ficavam dormentes com o frio – o corpo cortado em sensações opostas. A tremer de

exaustão, quase sem conseguir levantar a pá, trabalhara sem a ajuda de ninguém. Os outros

condenados haviam-se sentado na escuridão húmida, como criaturas da caverna, imóveis e

passivas. Enfrentando uma vida de trabalhos forçados, para quê acrescentar-lhe mais um dia? Se

o motor parasse e o navio não andasse mais, ficando à deriva em mar aberto, isso era um

problema que cabia aos guardas resolver. Que cavassem eles o seu carvão. Aqueles homens não

iam ajudar no seu próprio transporte para a prisão. Leo não tinha energia para os convencer dos

perigos de não fazerem nada. Sabia que se os guardas fossem obrigados a descer ao porão, depois

da tentativa de revolta, matariam indiscriminadamente como medida de controlo.

Sozinho, entregou-se à tarefa durante o tempo que foi capaz. E só depois de ter deixado

cair o carvão que tinha na pá, quando esta lhe escorregou das mãos, é que emergiu um outro

homem das trevas, a fim de ocupar o seu lugar. Leo murmurou algumas palavras inaudíveis de

138

Page 139: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

agradecimento, subindo os degraus – à medida que os prisioneiros lhe abriam alas – e caiu por

fim derreado no topo. Se é que podia denominar-se aquilo de dormir, dormira, tremendo em

delírio, com sede e fome.

#

Leo abriu os olhos. No convés encontravam-se pessoas. Conseguia ouvir-lhes os passos

por cima. O navio parara. Quando se tentou mexer, descobriu que o seu corpo estava rígido – os

membros calcificados numa posição fetal. Esticou os dedos, depois o pescoço: as articulações

estalaram numa sucessão rápida. A escotilha abriu-se. Leo ergueu os olhos, semicerrando-os à

claridade. O céu parecia tão ofuscante como metal fundido. À medida que os seus olhos se

habituaram à luz, aceitou que era, na realidade, cinzento fosco.

Os guardas apareceram à sua volta: metralhadoras apontadas para baixo. Um dos

homens gritou, dirigindo-se ao porão:

— Se tentarem algum truque, afundamos o navio com todos vocês aí fechados. Morre

tudo afogado.

Os condenados mal se podiam mexer, quanto mais armar uma insurreição à sua

autoridade. Não havia qualquer gratidão por terem mantido o motor a funcionar, nem

reconhecimento por terem salvo o navio, apenas o cano de uma metralhadora. Uma voz diferente

chamou:

— Para o convés! Imediatamente!

Leo reconheceu a voz. Era Timur. O som da voz do amigo reanimou-o. Lentamente,

sentou-se direito. Como um boneco de madeira ringente ergueu-se, puxado pelos cordéis,

trepando os degraus até ao convés.

O velho navio dava de borda, inclinado na água. A torre de artilharia havia desaparecido.

Tudo o que dela restava eram uns quantos fios de metal retorcido ali espetados. Era difícil de

imaginar que o mar, que agora se encontrava liso, plano e calmo, pudesse ter alcançado tamanha

ferocidade. Depois de trocar um brevíssimo olhar com Timur, Leo observou o rosto do amigo, as

linhas escuras sob os seus olhos. O temporal fora, também para ele, extenuante. Teriam de

comparar histórias um dia mais tarde.

Depois de passar a seu lado, Leo encaminhou-se para a beira do convés e apoiou as mãos

na amurada, vendo pela primeira vez o porto de Magadan, porta para a mais remota região do

139

Page 140: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

país, uma parte da nação à qual Leo se encontrava intimamente ligado e onde era,

simultaneamente, um estranho. Nunca ali tinha estado, e porém, enviara centenas de homens e de

mulheres para aquele lugar. Não os destinara a nenhum gulag especifico, tal não era da sua

responsabilidade. Inevitavelmente muitos teriam ido parar a bordo daquele navio, ou de outro

idêntico, avançando numa fila, tal como ele agora avançava, prontos para serem processados.

Tendo a conta a fama da região, esperara uma paisagem de maior impacto, mais sinistra e

denunciatória. Porém o porto, construído cerca de vinte anos antes, era pequeno e silencioso. As

barracas de madeira mesclavam-se com os ocasionais edifícios de cimento rectilíneos, cujos

flancos se encontravam decorados com slogans e propaganda, uma insólita pincelada de cor numa

palete esbatida, de resto composta apenas de cinzento, branco e preto. Além do porto, à distância,

achava-se uma rede de gulags dispersos entre as faldas de uma cordilheira toucada de neve. As

montanhas, mais baixas próximo da costa, alteavam-se mais para o interior da terra, onde imensos

cumes se fundiam com as nuvens. Um terreno plácido e ameaçador em igual medida, que não

admitia fragilidades e fazia deslizar as fraquezas pelas suas encostas de frio ártico.

Leo desceu para a doca onde se encontravam três pequenos botes pesqueiros: evidência

de uma outra vida que não a do sistema prisional. Os Chukchi, os habitantes daquela região, que

se alimentavam daquela terra muito antes de ter sido colonizada por gulags, carregavam cestos de

presas de morsa e a primeira apanha de bacalhau do ano. Dispensaram-lhe tão-somente um olhar

desatento e frio, como se os condenados fossem os culpados pela transformação da sua terra num

império prisional. Havia guardas parados na doca, apascentando os novos elementos.

Envergavam peles grossas e feltro, deitadas por sobre os uniformes – uma mistura de roupas

artesanais Chukchi e uniformes de corte miserável, produzidos em massa, estandardizados.

Atrás dos guardas, reunidos para a tardia viagem de regresso a casa, encontravam-se

alguns prisioneiros que iam ser libertados. Ou já haviam cumprido as penas ou as suas sentenças

tinham sido revogadas. Eram homens livres, salvo que pelo aspecto dos seus corpos ainda não o

sabiam – tinham os ombros corcovados e os olhos em baixo. Leo procurou um qualquer sinal de

triunfo, um qualquer prazer malicioso, porém compreensível ao ver outros serem enviados para

os campos que acabavam de deixar para trás. Em vez disso, divisou dedos em falta, peles

gretadas, músculos doridos e enfraquecidos. A liberdade poderia rejuvenescer alguns,

devolvendo-lhes a aparência da pessoa que em tempos haviam sido, mas não os iria salvar a

todos.

Eis o que restava dos homens e mulheres que ele para ali enviara.

140

Page 141: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

No convés, Timur observava os presos serem conduzidos em direcção ao armazém. Leo

tornara-se indistinguível entre os demais. As suas identidades falsas estavam intactas. Apesar do

temporal, tinham chegado incólumes. A viagem de barco fora uma parte necessária do seu

disfarce. Embora fosse possível voar até Magadan, organizar um voo desse tipo tê-los-ia

impedido de se infiltrarem no sistema despercebidamente. Os presos nunca eram levados de

avião. Felizmente, o mesmo não era necessário para a viagem de regresso. Na pista de aterragem

de Magadan aguardava um avião de carga. Se tudo corresse conforme planeado, dali a dois dias,

ele e Leo estariam a caminho de volta para Moscovo com Lazar. Timur compreendeu nesse

momento que os acontecimentos a bordo do navio haviam sido a parte mais fácil do plano.

Sentiu uma mão pousar-lhe no ombro. O capitão do Stary Bolshevik e um homem que

Timur nunca vira antes estavam parados atrás dele – um oficial superior a julgar pela qualidade

da sua indumentária. Surpreendentemente, para um homem de poder, possuía uma fisionomia

excepcionalmente delgada, magro como um prisioneiro, rara solidariedade para com os homens

que vigiava. A primeira coisa que lhe veio ao espírito foi que estivesse doente. O oficial falou, à

medida que o capitão acenava obsequiosamente com a cabeça, antes de o homem terminar sequer

a frase:

— O meu nome é Abel Prezent, director regional. O oficial Genrikh…

Voltou-se para o capitão:

— Como é que ele se chamava?

— Genrikh Duvakin.

— O oficial Duvakin está morto, segundo me disseram.

Quando ouviu o nome do jovem que ele deixara a morrer no convés, Timur sentiu um nó

apertar-se-lhe na garganta.

— Sim. Perdeu-se no mar.

— Genrikh mantinha um posto permanente neste navio. O capitão precisa agora de

novos guardas para a viagem de regresso. Temos muita falta de pessoal. O capitão notou que

fez um excelente trabalho a bordo, controlando o motim. Pediu-me pessoalmente que

substituísse Genrikh.

141

Page 142: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O capitão sorriu, esperando que Timur ficasse entusiasmado com o elogio. Timur corou

pelo pânico:

— Não compreendo.

— Deve ficar a bordo do Stary Bolshevik para a viagem de regresso.

— Mas tenho ordens para seguir para o Gulag 57. Vou ocupar a posição de segundo-

comandante no campo. Tenho importantes directivas novas de Moscovo para implementar.

— Apraz-me saber. E será estacionado no 57, conforme designado. A viagem até

Buchta Nakhodka dura sete dias, se o tempo permitir, e outros sete dias de regresso para cá.

Estará no seu posto dentro de três semanas, no máximo.

— Senhor, insisto que as minhas ordens sejam seguidas e que encontre outra pessoa.

Prezent começou a ficar impaciente, as veias protuberantes em sinal de aviso:

— Genrikh está morto. O capitão solicitou que o substituísse. Explicarei aos seus

superiores a minha decisão. O assunto está encerrado. Ficará a bordo do navio.

142

Page 143: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Moscovo

No mesmo dia

Malysh estava postado ao lado do seu acusador, Likhoi, o vory a quem cortara o tendão.

Likhoi tinha o tornozelo todo ligado e, por ter perdido muito sangue, exibia um ar pálido e febril.

Apesar do ferimento, insistira que o skhodka, um tribunal que mediava disputas entre membros

do gangue, procedesse, decidido a que fosse feita justiça:

— E o nosso código, Fraera? Um vory nunca deve atacar um seu companheiro, não é

verdade? Ele envergonhou-a ao atacar-me. Envergonhou-nos a todos.

Apoiado numa muleta, Likhoi recusava-se a sentar-se pois esse seria um sinal de

fraqueza. Escorria-lhe espuma dos cantos dos lábios, pequenas bolhas de saliva, indignação que

ele não se incomodara a limpar:

— Eu queria sexo. Isso é algum crime? Para um criminoso não o será!

O outro vory sorriu. Confiante por ter o seu apoio, tornou a confrontar Fraera, inclinando

a cabeça em sinal de respeito, ao mesmo tempo que baixava o tom de voz:

— Peço a morte de Malysh.

Fraera confrontou Malysh:

— O que tens a dizer?

Vendo os rostos hostis que o circundavam, encolheu os ombros:

— Disseram-me para a manter em segurança. Essas foram as suas ordens. Fiz o que

me mandaram.

Nem tão pouco a perspectiva de morte o tornava mais persuasivo. Embora Malysh

estivesse convencido de que Fraera não desejava condená-lo à morte, a verdade é que as suas

acções deixavam-lhe pouco espaço de manobra. Tratava-se de um facto incontestável – ele tinha

quebrado o código do gangue. Era proibido um vory atacar outro vory, sem a autorização de

Fraera. Deviam proteger-se mutuamente como se as suas vidas estivessem entretecidas. E ele

violara claramente as regras, agindo de forma impulsiva, tomando o partido da filha do inimigo.

143

Page 144: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Malysh observou Fraera andando por entre o círculo dos seus seguidores, avaliando o

estado de espírito dos membros do gangue. A opinião popular estava contra ele. Em momentos

como aquele, o poder tornava-se ambiguo. Teria Fraera autoridade para decidir contra a maioria?

Ou era obrigada a manter-se do lado da maioria, a fim de preservar a sua autoridade? A posição

de Malysh agravou-se ainda mais pelo facto de o homem que o acusava ser uma figura bastante

popular. A sua klikukha – Likhoi – devia-se às suas afamadas proezas sexuais. Malysh, pelo

contrário, era uma klikukha humilde, significando jovem, e referia-se à sua inexperiência, tanto

sexual como criminal. O jovem só se juntara ao gangue recentemente. Ao passo que os outros

vory se haviam conhecido nos campos de trabalho, Malysh juntara-se-lhes quase por acaso.

Trabalhava como carteirista desde os cinco anos de idade no terminal ferroviário de Baltiysky em

Leninegrado. Como criança de rua, depressa ganhara nome como um dos ladrões mais

habilidosos. E entre as pessoas que ele roubara contava-se também Fraera. Ao contrário de

muitos, ela notou imediatamente a falta e correu atrás dele. O jovem, apanhado de surpresa pela

sua velocidade e determinação, precisara de recorrer a toda a sua perícia e conhecimento do

edifício do terminal para lhe conseguir escapar, saltando por uma janela onde mal cabia um gato.

Ainda assim, Fraera conseguiu agarrar-lhe num dos sapatos. Julgava Malysh que o assunto

tivesse ficado assim encerrado, regressando ao trabalho no dia seguinte, numa estação de

comboios diferente, quando se deparou com Fraera à sua espera, com o sapato na mão. Em lugar

de o repreender, ofereceu-lhe a oportunidade de deixar a união de carteiristas para se juntar ao seu

bando. Ele fora o único carteirista que lhe conseguira fugir.

Apesar dos seus talentos como larápio, a ascensão de Malysh ao estatuto de vory tinha

sido controversa. Os outros olhavam com sobranceria para o seu passado de crime corriqueiro.

Não parecia digno de entrar nas suas fileiras. Nunca assassinara ninguém, nunca passara tempo

num Gulag. Fraera ignorara estas apreensões. Começara a gostar dele, embora fosse um jovem

circunspecto e retraído, que raramente dizia mais do que um par de palavras. Os demais

aceitaram, relutantemente, que ele agora fosse um deles. E ele aceitou, relutantemente, que era

um deles. Na realidade, ele era dela e todos o sabiam. Em troca da sua protecção, Malysh amava

Fraera da mesma forma que um feroz cão de luta amaria o seu dono, rondando-lhe os pés,

mordendo todos aqueles que se aproximassem demasiado. Apesar de tudo, não era ingénuo.

Com a autoridade da líder sob escrutínio, a relação de ambos não contava nada. Fraera não era,

de forma alguma, sentimental. Malysh não derramara apenas o sangue de outro vory, como

comprometera também os seus planos. Por não puderem conduzir o camião sem atrair atenções

144

Page 145: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

sobre si, ele e a rapariga tinham sido obrigados a regressar à cidade a pé, uma jornada que

demorara quase oito horas. Podiam tê-los mandado parar e ter sido presos. Explicara à rapariga

que se gritasse por ajuda, ou soltasse a sua mão, lhe cortaria a garganta. Ela obedecera. Não se

queixara que estava cansada e caminhara a distância inteira sem nunca pedir para descansar.

Mesmo nas ruas mais movimentadas, onde lhe poderia ter causado problemas, nunca soltara a sua

mão.

Fraera disse, então:

— Os factos são incontestáveis. De acordo com as nossas leis, o castigo por se ferir

outro vory é a morte.

Morte não no sentido ordinário da palavra. Não seria fuzilado ou enforcado. Não lhe

cortariam o pescoço. Morte significava o exílio do gangue. O seu corpo seria marcado com uma

tatuagem bem visível – na testa ou nas mãos –, exibindo uma vagina aberta ou um ânus.

Semelhante tatuagem era um sinal para todos os vory, fossem para quem fossem as suas

lealdades, de que o portador daquela tatuagem merecia todo o tipo de torturas físicas ou sexuais, e

que estas lhe podiam ser feitas sem receios de retaliações por parte do outro gangue. Malysh

amava Fraera, mas não aceitaria semelhante castigo. Mexeu a perna e colocou a mão em

posição. Tinha uma faca escondida nas pregas das calças, que os outros não tinham visto quando

o revistaram. Retirou-a do tecido, de dedo a postos sobre a mola, ao mesmo tempo que

ponderava a sua fuga.

Fraera avançou um passo. Tomara uma decisão.

#

Fraera estudou os rostos dos seus homens, expressões de intensa concentração fixadas

nela, como se tal bastasse para obterem o veredicto almejado. Demorara anos a conquistar a

lealdade daqueles homens, recompensando a sua obediência com generosidade e punindo as

dissidências de forma implacável. Apesar disso, aquele incidente de tão pouca monta perigava

tudo o que alcançara. Uma revolta precisava de uma causa unificadora e Likhoi, um homem

popular e bronco, conseguira unir os seus homens, que o viam como o epítome de um vory.

Identificavam-se com os seus impulsos e, portanto, se ele estava a ser julgado, também eles o

estavam. Por muito trivial que parecesse aquele desacordo, os problemas levantados naquele

145

Page 146: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

skhodka estavam longe de ser simples. Nas suas mentes, havia tão-somente um veredicto

admissível: ela autorizaria a morte de Malysh.

Ao ouvi-los citar a lei vory como se fosse algo sagrado, espantou-a a sua falta de auto-

consciência. As regras por que se regiam assentavam tanto na transgressão das tradicionais

estruturas vory, como no seu cumprimento. Mais do que isso, eram homens chefiados por uma

mulher, facto inaudito na história vory. Ao contrário de outros derzhat mast – líderes de uma

comunidade de ladrões –, Fraera não pretendia existir à margem do Estado. Ela procurava

vingar-se deste e daqueles que o serviam. Descrevia-lhes essa vingança em termos que pudessem

entender, dizendo que o Estado não passava de um gangue rival de maiores dimensões, com o

qual tinha a mais amarga e sangrenta das rixas. Porém, no fundo, sabia que os vory eram

conservadores. Prefeririam um líder masculino. Prefeririam preocupar-se apenas com dinheiro,

sexo e bebida. O seu plano de vingança era algo que eles toleravam, tal como o facto de ser

mulher – e toleravam-no apenas pela sua superioridade intelectual. Ela financiava-os, protegia-

os, e eles dependiam dela. Sem ela, o núcleo desmoronaria e o gangue dividir-se-ia em facções

insignificantes e rivais entre si.

A inesperada aliança que os unira nascera em Minlag, um campo no Norte do país, a

sudeste de Arkhangelsk. Anisya, como na época se chamava, era uma prisioneira política

condenada sob o artigo 58, e não se interessava pelo mundo dos criminosos comuns. Estes

viviam em esferas sociais separadas, camadas que nunca se misturavam com as demais, como a

água e o óleo. A sua vida girara sempre em torno do filho, Aleksy, que nascera recentemente. Ele

era a razão da sua existência, uma criança que amava e que queria proteger. Depois de ter

amamentado o filho durante três meses, de tê-lo amado mais do que jamais se imaginara capaz de

amar, levaram-no. Acordou um dia a meio da noite e descobriu que o bebé havia desaparecido.

Ao princípio a enfermeira dissera-lhe que Aleksy morrera durante o sono. Anisya agarrou-se à

enfermeira, abanando-a, exigindo que lhe devolvessem o filho, até ser espancada por um guarda.

A enfermeira gritara que nenhuma mulher condenada sob o Artigo 58 merecia educar uma

criança:

Nunca há-de ser mãe.

O Estado era agora a família de Aleksy.

146

Page 147: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Anisya adoecera, destroçada pelo desgosto. Caíra de cama, recusando-se a comer, e

delirava com sonhos de que ainda estava grávida. Sentia o bebé a dar pontapés, a mexer-se e a

gritar por socorro. Fora sufocada pela solidão. As enfermeiras e os feldshers esperavam

impacientemente que ela morresse. O mundo dera-lhe todas as razões e todas as oportunidades

possíveis para morrer. Contudo, algo dentro de si resistia. Examinou então essa resistência à

morte quase de modo forense, como um arqueólogo varrendo cuidadosamente o fino pó do

deserto, desejando saber o que se encontra por debaixo. E o que desenterrou não foi o rosto do

filho, nem o rosto do marido. Encontrou Leo, o som da sua voz, a sensação das suas mãos nas

dela, a decepção e a traição e, como um elixir mágico, bebeu estas memórias de um longo trago.

O ódio trouxe-a de volta da beira do abismo. O ódio rejuvenesceu-a.

A ideia de se vingar de um oficial do MGB, um homem que se encontrava a centenas de

quilómetros de distância, teria sido risível se a tivesse pronunciado em voz alta. Longe de a

deprimir, a sua posição de impotência, porém, era uma fonte de inspiração – começaria do nada.

Construiria a vingança do nada. Enquanto os outros pacientes dormiam, intoxicados de codeína,

ela cuspia as pastilhas e guardava-as. Foi ficando na enfermaria, fingindo-se doente, enquanto

secretamente readquiria forças e amealhava doses e doses de comprimidos, que escondia na

bainha das calças. Depois de ter acumulado uma quantidade considerável de fármacos, Anisya

teve alta, para grande surpresa das enfermeiras, e regressou ao campo, levando consigo nada mais

que o seu engenho e as calças cheias de comprimidos.

Até à sua prisão, Anisya sempre se definira em relação a outra pessoa: era a filha de

sicrano, a mulher de beltrano. Vendo-se sozinha, resolveu-se a construir a sua pessoa de raiz.

Remetia todas as suas fraquezas para a personalidade de Anisya e reunia os traços fortes do seu

carácter no molde de uma nova identidade – a mulher na qual se converteria em breve. Habituou-

se então a escutar as conversas dos vory, familiarizando-se com a sua linguagem, e mudou de

nome. Seria conhecida por Fraera, a forasteira. Tratava-se de um termo depreciativo na gíria

vory, mas ela tencionava converter esse insulto no seu bastião. Começou então a trocar codeína

com o líder de um gangue, para obter os seus favores, pedindo-lhe permissão para se juntar a eles.

O líder dos criminosos escarneceu a ideia e propôs-lhe que mostrasse o que valia executando um

conhecido informador. No fundo, o vory tinha aceitado a codeína como um pagamento adiantado

não reembolsável, impondo-lhe um desafio que sabia de antemão estar muito além das suas

capacidades. Era uma mulher que três meses antes ainda estava a amamentar o bebé; e mesmo

que se atrevesse a atentar contra a vida do informador, seria apanhada e enviada para uma

147

Page 148: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

unidade de isolamento, ou seria executada. O facto é que o derzhat mast nunca esperou ter de

honrar a sua promessa. Três dias depois, o informador começou a tossir durante o jantar, caindo

por terra com a boca cheia de sangue. O estufado de couve e batatas que comera continha

pedaços de lâminas de barbear. Posto que o derzhat mast não podia voltar atrás com a sua

palavra – o código vory proibia-o – Fraera tornou-se a primeira mulher a integrar o seu gangue e

a primeira criminosa política a quem era permitida a entrada.

Fraera, porém, não tinha a menor intenção de permanecer uma subordinada. Para poder

pôr em prática os seus planos, impunha-se-lhe ocupar um cargo de chefia. Na sua demanda por

independência, fez uso da educação que recebeu do gangue. Tinham-lhe ensinado a ver o seu

corpo como um bem que podia ser trocado como qualquer outro, um recurso ao qual não

atribuíam qualquer ideia de vergonha. Assim, lançou-se na sedução do comandante do Gulag.

Como ele podia ordenar que lhe trouxessem qualquer mulher ao seu escritório para sua

gratificação sexual, Fraera precisava que ele se apaixonasse por ela. E embora sentisse

repugnância, encarou-a como apenas mais um obstáculo a ultrapassar. No espaço de cinco

meses, o comandante transferiu, a pedido seu, todos os membros do gangue vory ao qual

pertencia para outro campo, o que veio permitir que Fraera fundasse o seu próprio gangue.

Como nenhum vory que se prezasse aceitaria a protecção de uma mulher, Fraera voltou-

se para os expulsos, para os forasteiros – os vory que catavam lixo nos montes de esterco, pobres

coitados esfaimados que por ali deambulavam chupando espinhas de peixe e mastigando

hortaliças podres. Haviam sido banidos devido a algum desentendimento, uma traição ou

qualquer mostra de incompetência. Alguns deles tinham descido ao nível de um chuskhi, tão

desgraçados que era proibido a outro vory sequer tocar-lhes. De acordo com as suas leis, tal

desgraça era irreversível. Apesar disso, ela ofereceu-lhes uma segunda oportunidade, quando

nenhum outro vory aceitaria sequer pronunciar os seus nomes. Alguns estavam extremamente

enfraquecidos, mental ou fisicamente. Outros, o pago que lhe deram foi tentar derrubá-la, assim

que recobraram as forças. Mas a maioria acabou por aceitar a sua protecção.

Com a morte de Estaline, a liberdade chegou mais cedo – foi concedida uma amnistia às

mulheres e às crianças. Os membros do seu gangue já tinham sentenças curtas, uma vez que não

eram presos políticos. Fraera não tencionava perseguir Leo: afundar-lhe uma faca nas costas ou

enfiar-lhe uma bala na cabeça. Ele precisava de sofrer da mesma forma que ela sofrera. As suas

ambições requeriam tempo e recursos. Muitos gangues trocavam bens no mercado negro, mas

oportunidades dessas eram limitadas, uma vez que já se estabelecera um sistema altamente

148

Page 149: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

desenvolvido. E ela não tinha interesse em ser uma traficante de segunda, recebendo um lucro

modesto pela venda de bens importados, não quando tinha acesso a um bem muito mais precioso.

Durante a perseguição à Igreja, no auge do movimento anti-religioso, muitos dos

artefactos tiveram de ser escondidos: ícones, livros e objectos de prata, cujo destino era a

fogueira e a fundição. A maior parte dos sacerdotes resistira, tomando medidas para salvar o

património da Igreja. Enterravam os objectos nos campos, enfiavam as pratas em chaminés e até

o motor de um tractor abandonado e enferrujado servia para se esconderem quadros, enrolados

em couro. Não se desenhavam mapas. Apenas alguns sabiam as localizações, que eram

murmuradas entre eles, começando com as palavras:

No caso de eu morrer…

A maior parte dos guardiões destes segredos haviam sido presos, fuzilados, tinham

morrido à fome nos Gulags ou trabalhado até à morte por exaustão. De entre os que sabiam,

Fraera foi uma das primeiras a ser libertada. Desenterrou os tesouros, um a um. Servindo-se da

experiência vory do funcionamento do mercado negro, que sabiam quais as pessoas a ser

subornadas, enviou os objectos para o exterior do país, negociando as vendas com organizações

religiosas ocidentais, bem como com compradores privados e museus internacionais. Alguns

mostravam-se relutantes em comprar os tesouros da Igreja. Porém, as técnicas de venda de

Fraera revelaram-se ferozmente eficazes: se não concordassem com os preços, havia a

possibilidade de os artigos se perderem para sempre. Certa vez, enviou aos seus compradores um

ícone de São Nikolas de Mozaisk, do século XVII. A peça, pintada a têmpera com cores vivas,

estava descolorada e para se recuperar o brilho tinha sido coberta com ouro e folha de prata.

Fraera ficou a imaginar a cara dos padres chorosos depois de abrirem a encomenda e encontrarem

o ícone despedaçado, o rosto do Santo todo esfolado, com excepção dos olhos. Porém, nunca

confessou qual o seu papel neste vandalismo. Com vista a manter uma relação de negócios

operante, inculpou membros do partido excessivamente zelosos. Depois disso, fez o seu preço,

retratando-se como uma salvadora, em lugar de alguém que lucrava com aquele negócio.

Trouxe assim as riquezas prometidas, e pagas em ouro, ao grupo que liderava, tendo o

cuidado de desenterrar os tesouros um a um, para o caso de alguém considerar a sua liderança

dispensável. Fraera era cautelosa e não confiava em ninguém: a primeira coisa que comprou com

o dinheiro foi um dente de cianeto, que ostentava orgulhosamente aos seus homens, à laia de

149

Page 150: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

aviso: se pensavam que a poderiam torturar para que revelasse os locais onde se encontravam os

restantes artefactos, estavam enganados. Morreria apenas para os contrariar. A julgar pelas

reacções do gangue a esta medida, dois dos homens pensavam há muito nessa possibilidade.

Matara-os antes que essa semana terminasse.

Confrontou-se ainda com uma ponta solta que ficara por resolver quando o comandante

do campo de Minlag apareceu para reclamar a vida em comum que haviam sonhado e a sua parte

dos lucros:

Aqui tens a tua parte.

Espetar-lhe uma faca no estômago não foi propriamente justo, afinal ela devia-lhe a vida.

O desgraçado demorou pouco menos de uma hora a morrer, contorcendo-se no chão, ao mesmo

tempo que se perguntava como é que se enganara tanto. Até a ponta da faca lhe penetrar no

estômago, acreditara piamente que ela o amava.

#

A sala estava tensa de expectativa. Fraera ergueu a mão:

— Nós não seguimos as leis vory comuns. Em tempos vocês não tinham nada. Nem tão

pouco o que comer. Salvei-vos quando a lei dizia que vos deveria deixar morrer. Quando

ficaram doentes, dei-vos medicamentos. Quando estavam bem, deii-vos ópio e bebida. A única

coisa que exigi em troca foi obediência. Essa é a nossa única lei. Nesse aspecto, Likhoi falhou.

Ninguém se mexeu. Os olhos do grupo dardejavam de um lado para o outro; todos os

presentes tentavam imaginar o que o homem a seu lado estava a pensar. Apoiando-se na muleta,

a boca de Likhoi contorceu-se num rosnado:

— Vamos mas é matar esta cabra! Vamos ser governados por um homem! E não por

uma mulher que acha que fornicar é um crime.

Fraera aproximou-se de Likhoi:

— Quem governaria esse novo gangue, tu, Likhoi? Tu, que já lambeste as minhas botas

por uma côdea de pão? Tu ages por impulsos, e tornas-te estúpido por esses mesmos impulsos.

Tu levarias um gangue à ruína.

Likhoi dirigiu-se aos homens:

150

Page 151: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Vamos torná-la nossa meretriz. Montamo-la à vez! Vamos viver como homens!

Fraera poderia ter avançado um passo e cortado o pescoço de Likhoi, pondo fim àquela

afronta. Contudo, compreendendo que precisava de ganhar aquela disputa com o consentimento

dos outros, ripostou:

— Ele insultou-me.

Cabia agora ao vory decidir.

Primeiro ninguém fez nada. Depois, uma mão agarrou Likhoi e logo uma outra; a muleta

foi derrubada com um pontapé. Atiraram-no ao chão, rasgando-lhe as roupas que tinha no corpo.

Nu, foi imobilizado: um dos homens agachou-se junto dos seus braços e pernas. Os outros

ligaram o fogão, retirando um carvão incandescente do fogo. Fraera baixou os olhos para Likhoi.

— Já não és um de nós.

O carvão foi comprimido contra a tatuagem do crucifixo, que todos eles partilhavam, a

pele em bolhas. A sua pele ficaria branca, desfigurada, para que não pudesse albergar novas

tatuagens. De acordo com a prática, depois disso deveria partir, exilado. Porém, Fraera – que

conhecia bem demais as ânsias da vingança – iria certificar-se de que seria ferido de maneira a

não sobreviver. Deitando um olhar a Malysh, comunicou-lhe o seu desejo. Ele puxou da faca,

fazendo saltar a lâmina. Cortar-lhe-ia as tatuagens.

#

Fechada na cela, Zoya agarrava-se às barras, ouvindo os gritos que ecoavam no corredor.

O seu coração batia descompassadamente, enquanto se concentrava nos sons. Eram os gritos de

um homem, não de um rapaz. Sentiu-se aliviada.

151

Page 152: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Kolyma

Cinquenta quilómetros a norte do porto de Magadan

Sete quilómetros a sul do Gulag 57

9 de Abril

Estavam de pé, lado a lado, de olhos fitos no ombro do homem mais próximo de si,

balançando com o movimento do camião de carga. Embora não houvesse um guarda para

impedi-los de se sentar, não havia bancos e o chão estava tão frio que haviam tomado a decisão

colectiva de ficar de pé, arrastando os pés para se manterem quentes, como um rebanho de

animais emparcados. Leo ocupava um espaço próximo da cortina de lona. Havia-se soltado,

enregelando o compartimento com temperaturas abaixo de zero, mas oferecendo, em troca, uma

vista parcial sobre a paisagem, à medida que a lona ora se abria ora se fechava com o vento. A

caravana de camiões – uma superfície artificial estendendo-se docilmente ao longo da paisagem

como se consciente do trespasse do território selvagem – subia em direcção às montanhas, ao

longo da auto-estrada de Kolyma. Ao todo, eram três camiões. Não havia sequer um carro a

segui-los, para garantir que os prisioneiros não saltavam das traseiras dos camiões, tentando

escapar. Não havia para onde escapar.

Abruptamente, a auto-estrada tornou-se mais íngreme, a traseira do camião pendeu

acentuadamente para baixo, inclinando-se para o vale coberto de neve num ângulo tão agudo que

Leo foi obrigado a agarrar-se à armação de ferro, os outros prisioneiros comprimidos contra ele à

medida que deslizavam. Não conseguindo subir, o camião deteve-se, oscilando, pronto para rolar

para trás. Puxou-se o travão de mão. O motor parou. Os guardas destrancaram as traseiras,

derramando os prisioneiros na estrada:

— Toca a andar!

Os primeiros dois camiões tinham conseguido transpor o cimo da montanha,

desaparecendo de vista. O outro – sem o peso dos prisioneiros – ligou o motor e começou a

acelerar para o topo da montanha. Deixados para trás, os condenados meteram-se a caminho,

bufando como velhos, os guardas atrás de si, de armas em riste. Naquele território, a pose

arrogante dos guardas parecia insignificante e absurda – como um insecto pavoneando-se.

Observando-os através dos olhos de um condenado, Leo espantou-se com o quão os guardas se

152

Page 153: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

julgavam diferentes do que o eram na realidade – homens a reunir gado. Gostaria de poder dizer,

apenas para ver a sua surpresa:

Sou um de vós

Este pensamento apanhou-o desprevenido. Era um deles? Presumido pelo poder,

estupidificado pela importância que o Estado lhe conferia: sabia que o fora.

No topo da montanha, a auto-estrada fez-se plana. Leo parou para respirar, observando a

paisagem diante de si. Atingidos pelo ar frio, os seus olhos lacrimejavam, enquanto era

confrontado pela superfície de uma lua – um vasto planalto da largura de uma cidade, suavizado

pelo gelo e pelo permafrost, esburacado de crateras. A solitária auto-estrada cortava uma

diagonal de contornos indistintos, dirigindo-se para uma montanha muito maior do que qualquer

uma com que se haviam deparado até ali: alçava-se do planalto como uma monstruosa bossa de

camelo. Algures, no sopé, achava-se o Gulag 57.

Enquanto os condenados voltavam a subir para as traseiras do camião, Leo lançou um

olhar aos outros dois veículos. Tinha de enfrentar o facto de Timur não se encontrar na caravana.

Parecia-lhe improvável que o amigo tivesse entrado num daqueles veículos sem lhe ter feito sinal,

nem que fosse um breve olhar no meio daquela massa de gente. Leo não o via desde a véspera,

quando passara junto dele no convés do Stary Bolshevik. Depois disso havia sido conduzido para

o campo de trânsito em Magadan, onde fora desparasitado, inspeccionado por um médico que o

declarara fisicamente apto, destinando-o ao TFT, tyazoly fezichesky trud, trabalho pesado, sem

limites nas tarefas de trabalho. Depois de devidamente processado, esperara numa das grandes

tendas erigidas para as chegadas, tendas essas que recordavam a Leo as instalações médicas

provisórias durante a Grande Guerra Patriótica, centenas de camas em monte. Haviam acordado

encontrar-se nessa noite. Quando Timur não aparecera, Leo tentou tranquilizar-se com diversas

explicações: tinha havido algum atraso e encontrar-se-iam na manhã seguinte. Era demasiado

arriscado perguntar por ele – para além de comprometer o seu disfarce, Leo poderia ser

confundido com um informador. Incapaz de dormir, levantara-se cedo, esperando encontrar o

amigo. Quando os meteram nos camiões, Leo deixara-se ficar para último. Tornava-se cada vez

mais difícil forjar explicações reconfortantes para a ausência de Timur.

Leo iria em breve encontrar-se com Lazar pela primeira vez, desde há sete anos. O seu

primeiro encontro, o momento em que se veriam pela primeira vez, era talvez o momento mais

153

Page 154: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

perigoso de todo o plano. Indubitavelmente, o ódio de Lazar ter-se-ia erodido com o tempo. Se

não o tentasse matar logo, iria anunciar que Leo era um Chekist, um interrogador, um homem

responsável pelo encarceramento de centenas de homens e mulheres inocentes. Quanto tempo

iria sobreviver rodeado de pessoas que tinham sido torturadas e interrogadas? A presença de

Timur era, precisamente por isso, imprescindível. Haviam previsto uma reunião violenta. Mais

do que isso, esse factor fazia parte da estratégia que haviam delineado. Como guarda, Timur

poderia intervir e travar quaisquer escaramuças. De acordo com o regulamento do campo, Leo e

Lazar seriam então afastados do conflito e enviados para a solitária, celas punitivas individuais.

Numa cela adjacente, Leo teria então a oportunidade de lhe explicar que se encontrava ali para o

libertar, que a sua mulher estava viva e que não havia outra hipótese de sair dali. Ou aceitava a

sua ajuda ou morria como escravo.

Passando com os dedos gelados pela cabeça recentemente rapada, Leo tentava

freneticamente improvisar uma solução. Só havia uma opção – teria de adiar o encontro com

Lazar até Timur aparecer. Esconder-se não seria fácil. Depois da morte de Estaline, o Gulag 57

tornara-se mais pequeno, tanto no número de presos, como em extensão geográfica. Dantes

compunha-se de muitos lagpunkts dispersos pela encosta da montanha, sub-colónias dentro de

uma colónia, algumas situadas em regiões tão expostas e em zonas mineiras de tão escassa

produção, que o único propósito da sua existência deveria ser a morte dos condenados. O Gulag

57 havia encerrado todas esses barracões menores, recolhendo o império prisional à base central

situada no sopé da montanha, o único lugar onde a mina de ouro produzira lucros viáveis. Pela

avaliação de Leo das plantas, até esse complexo central era rudimentar. A zona, a área

controlada, tinha uma forma rectangular. Embora um desenho curvilíneo fosse mais adequado ao

terreno, a lei ditava que a zona tinha de ter uma forma regular. As únicas formas redondas que

deviam haver num gulag eram as do arame farpado, enrolado em postes de seis metros de altura,

enterrados a dois metros de profundidade, formando um perímetro exterior. Dentro do perímetro

achavam-se vários barracões-dormitório e um barracão que servia de refeitório, ambos cercados

num rectângulo interior de arame farpado que os separava do centro de administração, formando-

se assim divisões dentro de divisões, zonas dentro de zonas. A segurança era assegurada por seis

pequenas torres de guarda, duas guaritas vakhta – uma de cada lado do portão principal, com

pesadas metralhadoras montadas no alto do posto de sentinela, e paredes forradas a barrotes de

madeira. Em cada canto da zona havia uma pequena torre, donde os oficiais vigiavam o terreno

através de uma mira telescópica. Se os guardas se deixassem dormir, ou apagassem com a

154

Page 155: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

bebedeira, tanto fazia, a liberdade era uma questão de escalar uma montanha imensa ou atravessar

quilómetros de uma planície desprotegida. Quando chegasse ao campo, Leo seria conduzido para

a zona prisional interior. Como havia três barracões, poderia, teoricamente, passar despercebido,

pelo menos durante as primeiras vinte e quatro horas. Isso poderia ser tempo suficiente para

Timur alcançar o gulag.

O camião abrandou. Temendo ser abatido por um atirador mais zeloso da vakhta, Leo

espreitou cautelosamente para fora, erguendo os olhos para a montanha. As encostas eram

perigosamente íngremes. Comparada com a colossal bossa formada pela montanha, a mina, uma

série de trincheiras e cursos de água feitos pelo homem, onde se lavavam e peneiravam torrões de

terra em busca de ouro, parecia absolutamente insignificante.

Havia sombras nos topos das duas vakhta: guardas observando os recém-chegados. As

torres tinham quinze metros de altura, alcançando-se o cimo por uma série de escadas

periclitantes que podiam ser recolhidas a qualquer altura. Entre as torres, os portões foram

abertos à mão. Os guardas empurravam os portões de madeira, raspando a base ao longo da neve.

Os camiões entraram no complexo. Das traseiras do camião, Leo viu os portões fecharem-se

atrás de si.

155

Page 156: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Depois de descer das traseiras do camião, Leo foi empurrado para uma formação em fila

pelos guardas. Lado a lado, numa fila única, os condenados detinham-se, a tremer de frio,

prontos para a inspecção. Sem cachecol e um barrete que não lhe assentava bem na cabeça, Leo

enfiara trapos em torno do colarinho do casaco para se isolar do frio. Apesar do muito esforço,

era incapaz de parar de bater os dentes. Percorreu a zona com os olhos. Os simples barracões de

madeira estavam erguidos do solo congelado, suportados por estacas baixas. O horizonte

compunha-se de arame farpado e um céu branco. Os edifícios e estruturas eram tão rudimentares

que era como se uma civilização em tempos poderosa tivesse retrocedido, substituindo-se os

arranha-céus por cabanas. Eis o local onde morriam: os homens e mulheres que ele prendera, os

homens e mulheres cujos nomes ele esquecera. Eis o local para onde eram desterrados e o que

viam. Com a única diferença de que ele não se sentia como eles se sentiam. Eles não tinham

planos de fuga. Eles não tinham qualquer tipo de planos.

Esperando em silêncio, não havia sinal do comandante Zhores Sinyavksy do Gulag 57,

um homem cuja reputação se expandira além dos gulags, levada pelos sobreviventes, e que era

amaldiçoado em todo o país. Sinyavksy, de cinquenta e cinco anos, era um veterano do Glavnoe

upravlenie lagerei – abreviado G U L A G –, que dedicara uma vida inteira a impor uma servidão

mortífera. Fiscalizara diversos projectos de construção de campos de condenados, entre os quais

o canal Fergana e o projecto abortado da ferrovia na foz do rio Ob, uma série de linhas

ferroviárias que nunca chegaram a ser ligadas ao destino planeado, o rio Yenisei, ficando a

muitos quilómetros de distância, a apodrecer no solo como os restos de uma besta pré-histórica de

aço. Contudo, o fracasso de tal projecto, que custou muitos milhares de vidas e centenas de

milhares de rublos, não chegou a prejudicar a sua carreira. Ao passo que outros supervisores

cediam às exigências de que os presos descansassem, comessem e dormissem, ele cumprira

sempre os seus objectivos. Obrigava os presos a trabalhar em pleno Inverno e no pico do Verão.

Não estivera a construir uma ferrovia. Estivera a construir a sua reputação, cinzelando o seu

nome nos ossos dos homens. Pouco importava que as travessas da linha férrea não tivessem sido

reforçadas, que rachassem com o sol de Julho e afundassem com o gelo de Janeiro. Pouco

importava que os trabalhadores desmaiassem de cansaço. No papel, a sua quota tinha sido

cumprida. No papel, ele era um homem de confiança.

156

Page 157: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Era evidente que para Sinyavsky aquilo era mais do que um emprego. Ele não ansiava

por privilégios. Ele não se movia por dinheiro. Quando lhe ofereceram postos administrativos

confortáveis, em climas temperados, supervisionando campos não muito distantes de cidades,

recusou. Com cinquenta e cinco anos, a sua maior ambição era governar o terreno mais hostil

alguma vez colonizado. Voluntariara-se para trabalhar em Kolyma. Vira a desolação e decidira

que aquele era o sítio certo para ele.

Ao ouvir um rangido de madeira, Leo olhou para o lado. No topo das escadas, Sinyavksy

vinha a sair dos barracões de comando, enrolado em peles de veado tão espessas, que estas

duplicavam o seu tamanho. O casaco era tão decorativo como prático, deitado por cima dos

ombros com tal aprumo, que dava a ideia de ter matado os animais numa batalha heróica. A

teatralidade da sua aparência seria certamente caricata em qualquer outro homem. Contudo, ali,

nele, parecia apropriada. Era o seu traje. Ele era o imperador daquele lugar.

Ao contrário dos outros prisioneiros, cujos instintos de sobrevivência se encontravam

extraordinariamente aguçados, depois de terem passado meses a fio metidos em comboios e

campos de trânsito, Leo fitou abertamente o comandante, com um fascínio imprudente.

Recordando-se tardiamente de que já não era um oficial da milícia, desviou os olhos,

redireccionando a vista para o chão. Um condenado podia ser fuzilado por olhar um guarda nos

olhos. Embora os regulamentos tivessem mudado em teoria, era impossível saber se tais

mudanças eram implementadas.

Sinyavksy gritou:

— Tu!

Leo manteve os olhos postos em baixo. Conseguia ouvir as escadas a ranger à medida

que o comandante descia da plataforma elevada, alcançando o solo, o estalar dos passos enquanto

atravessava a neve e o gelo. Duas botas de feltro magnificamente cortadas surgiram no seu

campo de visão. Mesmo assim, manteve os olhos em baixo como um cão repreendido. Uma mão

agarrou-lhe no queixo, obrigando-o a erguer os olhos. O rosto do comandante estava raiado de

sulcos espessos e escuros, a pele assemelhava-se a carne curada. As suas pupilas estavam

tingidas de um amarelo iodado. Leo tinha cometido um erro elementar. Demarcara-se. Fora

notado. Uma técnica muito comum era usar um condenado logo à chegada como exemplo, para

mostrar aos outros aquilo que poderiam esperar.

— Por que desviou o olhar?

157

Page 158: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Silêncio. Leo conseguia sentir o alívio dos outros prisioneiros emanar deles como calor.

Ele tinha sido escolhido, não eles. A voz de Sinyavksy era peculiarmente suave:

— Responda.

Leo respondeu:

— Não queria insultá-lo.

Sinyavksy soltou o queixo de Leo, recuando um passo, ao mesmo tempo que levava a

mão ao bolso.

Antecipando o cano de uma arma, Leo demorou vários segundos a ajustar-se. A mão de

Sinyavksy estava estendida – sim – mas tinha a palma da mão virada cima, para o céu. Nela

exibia pequenas flores lilases, não maiores do que o botão de uma camisa. Leo perguntou-se se

estaria a atravessar um momento de loucura, enquanto uma bala lhe trespassava o crânio, uma

confusão de imagens, memórias misturadas. Mas o tempo passou, e as pétalas das delicadas

flores ondeavam ao vento. Aquilo era real:

— Tire uma.

Seria veneno? Deveria contorcer-se de dor, diante dos outros? Leo não se mexeu, os

braços junto ao corpo.

— Tire uma.

Submisso, impotente, Leo estendeu a mão, o polegar e o indicador a tremer, tropeçando

pela palma da mão de Sinyavksy, como as pernas de um homem embriagado, quase derrubando

as flores. Por fim, pegou numa delas. Estava seca, as pétalas quebradiças.

— Cheire-a.

Mais uma vez, Leo nada fez, incapaz de compreender as suas intenções. Foram

repetidas:

— Cheire-a.

Leo ergueu-a ao nariz, cheirando a pequena flor, que não cheirava a nada. Não tinha

perfume. Sinyavksy sorriu:

— Encantador, não é?

Leo reflectiu, inseguro quanto a tratar-se de uma armadilha peculiar:

— Sim.

— Gosta?

— Gosto.

Deu uma palmadinha no ombro de Leo.

158

Page 159: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Será um cultivador de flores. Esta paisagem parece árida. Mas está cheia de

oportunidades. O solo só degela vinte semanas por ano. Durante essas semanas autorizo os

prisioneiros a cultivar a terra. Pode cultivar o que quiser. A maioria cultiva vegetais. Mas as

flores que aqui crescem são bastante bonitas, da sua forma modesta. As flores modestas são

amiúde as mais belas, não concorda?

— Concordo.

— Acha que irá cultivar flores? Não quero obrigá-lo a fazê-lo. Há outras coisas que

pode fazer.

— As flores…são…agradáveis.

— Sim senhor, são. São agradáveis. E as flores modestas são as mais agradáveis.

O comandante inclinou-se sobre Leo, murmurando:

— Vou guardar-lhe um bom pedaço de terra. O nosso segredo…

Apertou o braço de Leo, afectivamente.

Sinyavksy afastou-se, dirigindo-se a toda a formação de prisioneiros, de mão estendida,

exibindo as pequenas flores lilases:

— Tirem uma!

Os prisioneiros hesitaram. Repetiu a ordem:

— Tirem! Tirem! Tirem!

Frustrado com a sua resposta vagarosa, atirou as flores ao ar: pétalas lilases esvoaçando

em torno das suas cabeças rapadas. Levando a mão ao bolso, tirou mais uma mão cheia de flores

e atirou-as novamente ao ar, uma e outra vez, como uma chuva. Alguns dos homens, ergueram

os olhos, minúsculas pétalas lilases presas nas suas pestanas. Alguns homens ainda estavam a

olhar para o chão, sem dúvida convencidos de que se tratava de um truque retorcido que apenas

eles tinham passado.

Segurando ainda na flor, balançando na concha da mão, Leo não compreendia, não

conseguia perceber o que se passava – será que tinha lido o dossiê errado? Aquele homem com

os bolsos cheios de flores não podia ser o mesmo homem que ordenara aos prisioneiros para

trabalhar enquanto os corpos dos seus camaradas apodreciam a seu lado, não podia ser o

comandante que supervisionara o canal Fergana e a ferrovia do rio Ob. A sua provisão de flores

esgotou-se, as últimas pétalas giraram no ar em direcção à neve, Sinyavksy retomou o seu

discurso introdutório:

159

Page 160: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Estas flores vieram do solo mais bera, mais cruel do mundo! Beleza nascida de

fealdade: é nisso que acreditamos aqui! Não estão aqui para sofrer. Estão aqui para trabalhar,

da mesma forma que eu estou aqui para trabalhar. Não somos muito diferentes: Vocês e eu. É

verdade que iremos fazer diferentes tipos de trabalho. Talvez o vosso trabalho seja mais duro.

Contudo, trabalharemos arduamente juntos, pelo nosso país. Iremos melhorar-nos. Iremos

tornar-nos pessoas melhores, aqui, neste lugar onde ninguém espera encontrar bondade. Iremos

mostrar-lhes! Vocês e eu!

Sinyavksy fez sinal aos guardas; um deles dirigiu-se apressadamente para o barracão do

refeitório, regressando instantes depois com vários prisioneiros, cada um deles carregando uma

garrafa e um tabuleiro com pequenas canecas de barro. Despejaram um líquido espesso e escuro

nas canecas, oferecendo-o a cada um dos condenados. Sinyavksy explicou:

— O nome desta bebida é khvoya, trata-se de extracto de agulhas de pinheiro com água

de rosas. Ambos possuem muitas vitaminas. Irá manter-vos de boa saúde. Quando se está de

boa saúde, é-se mais produtivo. Irão levar uma vida mais produtiva aqui do que levavam fora

do campo. A minha função é ajudar-vos a tornarem-se cidadãos mais produtivos. Ao faze-lo,

também eu me torno num cidadão mais produtivo. O vosso bem-estar é o meu bem-estar. À

medida que fazem progressos, também eu os faço.

As suas palavras pareciam sentidas, proferidas com uma emoção genuína, quer fosse

porque estava destroçado pela culpa, ou remorso, ou medo de ser julgado pelo novo regime, era

bastante óbvio que o comandante enlouquecera.

Leo não se mexera ainda. Não mudara de posição. A sua mão ainda estava estendida.

Uma brisa apanhou a flor e levou-a ao chão. Inclinou-se a apanhou-a. Quando se ergueu, o

prisioneiro que trazia o tabuleiro da bebida aproximara-se dele. Leo pegou numa pequena caneca

de barro, os seus dedos roçaram brevemente os dedos do prisioneiro. Durante uma fracção de

segundos foram estranhos, mas depois houve uma faísca de reconhecimento.

160

Page 161: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Os olhos de Lazar apareceram enormes, luas de rocha negra com um sol vermelho

ardendo por detrás deles. Estava magro, o corpo minguado num concentrado da sua outrora

pessoa – as feições mais rígidas, mais pronunciadas, a pele muito retesada com excepção do lado

esquerdo do rosto onde o maxilar e a face se haviam deslocado, como se fossem feitos de cera e

tivessem estado demasiado próximos do fogo. Leo concluiu que deveria ter sofrido uma

apoplexia, antes de se lembrar da noite da sua prisão. Cerrou o punho involuntariamente – o

mesmo punho que usara para esmurrar Lazar uma e outra vez até o seu maxilar amolecer. Sem

dúvida sete anos era tempo suficiente para curar, tempo suficiente para qualquer ferimento se

curar. Lazar, porém, não devia ter recebido qualquer tratamento médico no Lubyanka. Os

interrogadores podiam até ter-se servido do seu ferimento, torcendo o osso partido sempre que as

suas respostas não eram satisfatórias. Devia ter recebido algum tipo de tratamento nos campos,

mas não cirurgia reconstrutiva – tal ideia era extravagante. Esse acto de violência impulsivo e

néscio, um crime que Leo esquecera mal os nós dos seus dedos desincharam, ficara imortalizado

nos ossos.

Lazar não mostrava qualquer reacção discernível ao seu encontro, com excepção de uma

pausa nos seus deveres, quando os seus olhos se entrechocaram como pedras. O seu rosto

mostrava-se inescrutável, o lado esquerdo da boca descaído num esgar permanente. Sem dizer

palavra, afastou-se, movendo-se ao longo da fila de prisioneiros, servindo pequenas canecas de

extracto de agulha de pinheiro aos recém-chegados, sem nunca olhar para trás, como se não

houvesse nada de errado, como se fossem novamente estranhos.

Leo apertou a pequena caneca de barro entre as mãos, os dedos enclavinhados com força

em torno do objecto, permanecendo exactamente na mesma posição. A superfície gelatinosa do

161

Page 162: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

xarope de agulhas de pinheiro e rosa estremeceu ao mesmo tempo que as mãos lhe tremeram.

Perdera a capacidade de pensar ou de engendrar estratagemas. O comandante do campo gritou,

de bom humor:

— Tu aí! Amigo! Tu que gostas de flores! Bebe! Vai tornar-te forte!

Leo levou a caneca aos lábios, emborcando o espesso líquido negro. Intensamente

amargo, encheu-lhe a garganta como alcatrão, fazendo com desejasse cuspi-lo. Fechou os olhos,

obrigando-se a engolir.

Quando os tornou a abrir, observou Lazar terminar o seu dever, regressando às barracas,

caminhando num ritmo desapressado. Mesmo quando passou junto a si, não se voltou para olhar,

sem mostrar o menor sinal de inquietação ou desassossego. O comandante Sinyavksy continuou

ainda a falar durante algum tempo. Mas Leo deixara de o ouvir. No interior do punho cerrado,

esmagara a flor lilás seca, reduzindo-a a pó. O prisioneiro parado ao seu lado direito, murmurou:

— Presta atenção! Estamos a andar!

Tardiamente, Leo compreendeu que o comandante finalizara o seu discurso. As

apresentações estavam terminadas; os condenados estavam a ser conduzidos da zona de

administração para a zona prisional. Leo estava próximo do fim da fila, o coração a bater

descompassado. A noite caíra, extinguindo o horizonte. Nas guaritas tremeluziam luzes. Não

havia holofotes potentes a varrer o solo. Com excepção do brilho fosco nas janelas dos barracões

a zona estava completamente escura.

Passaram através de uma segunda cerca de arame. Os guardas permaneceram na

fronteira das duas zonas, de armas em riste e prontas, indicando-lhes que seguissem para os

barracões. Nenhum oficial entrava naquela zona à noite. Era demasiado perigoso, demasiado

fácil para um prisioneiro esmagar-lhes o crânio e desaparecer. A sua única preocupação era

manter o perímetro, selando os condenados no interior, e deixando-os à sua sorte.

Leo foi o ultimo a entrar nos barracões – nos barracões de Lazar. Teria de o enfrentar

sozinho, sem Timur. Teria de o levar à razão, falar com ele. O homem era um padre: ouviria a

sua confissão. Leo tinha muito que contar. Ele mudara. Passara os últimos três anos a tentar

emendar os seus erros. Como um homem caminhando para a sua execução, trepou o lance de

escadas com pernas pesadas. Empurrou a porta, respirando fundo, inalando o cheiro pestilento de

um barracão sobrelotado e revelando um panorama de rostos repletos de ódio.

162

Page 163: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Leo desmaiara. Quando voltou a si, descobriu que se encontrava no chão, arrastado pelos

tornozelos, submerso sob as vagas de prisioneiros aos pontapés. Levou os dedos à cabeça,

descobrindo uma pele viscosa do sangue. Incapaz de se concentrar, incapaz de lutar, indefeso no

epicentro daquela ferocidade, não podia sobreviver muito tempo. Uma gota de cuspo atingiu-lhe

o olho. Uma bota embateu-lhe de lado na cabeça. O maxilar bateu no chão, os dentes raspando

uns nos outros. Abruptamente, os pontapés, as cuspidelas e os gritos acalmaram. Em uníssono, a

multidão afastou-se, deixando-o a salivar, como se tivesse sido arrastado por uma tempestade.

De um ódio atroador para silêncio, alguém devia ter intervindo – Lazar. Não permitiria que Leo

morresse depressa.

Leo permaneceu onde estava, temendo que aqueles preciosos segundos de calma

pudessem acabar assim que se atrevesse a olhar para cima. Uma voz soou:

— Levanta-te.

Não era a voz de Lazar, mas de um homem mais jovem. Leo desenroscou-se da posição

fetal em que se encontrava, espreitando para as figuras indistintas à sua volta – eram dois, Lazar e

a seu lado um rapaz, que teria talvez os seus trinta anos, de cabelo ruivo e barba também ruiva.

Depois de limpar a fleuma do rosto e o sangue dos lábios e nariz, Leo virou-se

desastradamente, sentando-se. Cerca de duas centenas de condenados observavam, empoleirados

nos beliches de cima, ou em roda de si, como se aguardassem uma peça teatral, com diferentes

níveis de assentos. Os recém-chegados estavam a um canto: aliviados pelas atenções não se

concentrarem neles.

Leo soergueu-se, corcovado como um aleijado. Lazar avançou, examinando-o,

circundando-o, antes de regressar ao lugar directamente à sua frente, olhando-o olhos nos olhos.

A sua expressão tremeluzia com uma energia tremenda, a pele tensa a tremer. Lentamente abriu a

boca, fechando simultaneamente os olhos, claramente numa dor terrível. A palavra que ele

163

Page 164: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

pronunciou era menos do que um sussurro, uma minúscula exalação de ar, trazendo com ela um

som muito ténue:

— Max..im.

Tudo o que Leo planeara dizer, a história de como mudara, as fábulas da sua iluminação,

o inteiro edifício da sua transformação desintegraram-se como neve sobre carvão quente.

Reconfortara-se sempre por se considerar um homem melhor do que a maioria dos agentes ao

lado dos quais trabalhara, homens que haviam decorado as bocas com dentes de ouro arrancados

das bocas dos muitos suspeitos interrogados. Ele não fora o pior: nem de longe. Encontrava-se

no meio, talvez até mais abaixo, escondendo-se nas sombras dos monstros que assassinaram

acima de si. Tinha agido erradamente, um género modesto de erro – era na melhor das hipóteses

um vilão medíocre. Ao ouvir aquele nome, o nome falso que escolhera para si, começou a

chorar. Tentou parar mas de nada serviu, as lágrimas continuavam a correr-lhe pelo rosto abaixo.

Lazar estendeu a mão e tocou numa dessas lágrimas, recolhendo-a, segurando a gota na ponta do

dedo. Depois de a mirar durante algum tempo, regressou ao preciso lugar de onde a retirara –

encostando o dedo com força à face de Leo e besuntando-a com desdém, como se dissesse:

Guarda as tuas lágrimas.

Não contam para nada.

Pegou na mão de Leo – as suas palmas marcadas da perseguição através dos esgotos – e

colocou-a sobre o lado esquerdo do seu rosto. A face era irregular ao toque, como cascalho, uma

boca cheia de gravilha. Tornou a abrir a boca, crispando-se, fechando os olhos. Como se as leis

da física tivessem sido revertidas, e o cheiro pudesse deslocar-se mais depressa do que a luz, um

odor de decadência atingiu Leo, dentes doentes e podres. Muitos dos dentes nem sequer lá

estavam: a gengiva deformada, faixas negras com raízes sangrentas, remendadas. Ali estava a

transformação, ali estava a mudança: um brilhante orador, trinta anos de discursos e sermões –

transformado num mudo malcheiroso.

Lazar fechou a boca, retrocedendo. O homem ruivo postou-se a seu lado, oferecendo a

Lazar o lado do rosto como se fosse uma tela onde pintar. Lazar inclinou-se sobre ele, tão

próximo que os seus lábios quase tocavam a orelha do homem. Enquanto falava, os seus lábios

pareciam quase não se mexer, movimentos minúsculos. Quando terminou, Lazar permitiu que o

homem ruivo dissesse as seguintes palavras:

164

Page 165: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Tratei-te como a um filho. Abri-te as portas de minha casa. Confiei em ti. Amei-te.

O homem ruivo não transformou a primeira pessoa em terceira, falando como se fosse

Lazar. Leo respondeu:

— Lazar, não tenho defesa. Mesmo assim, peço-te que me ouças. A tua mulher está

viva. Enviou-me para te libertar.

Leo e Timur haviam especulado se Lazar já teria recebido uma carta em código, contendo

os planos de Fraera. Contudo, a surpresa de Lazar era genuína. Não sabia nada da mulher. Não

sabia o quanto ela mudara. Com um gesto de irritação, acenou ao homem ruivo, que saltou para

diante, pontapeando os joelhos de Leo. O ruivo sibilou:

— Estás a mentir!

Leo continuou, dirigindo-se a Lazar:

— A tua mulher está viva. Ela é a razão por que estou aqui.

O ruivo bateu-lhe:

— Cala-te!

— É a verdade!

O ruivo lançou um olhar por cima do ombro a Lazar, aguardando instruções. Lazar

abanou a cabeça. Pegando na sua deixa, o ruivo traduziu:

— Que sabes tu da verdade? És um Chekist! Não se pode confiar em nada do que dizes!

— Anisya foi libertada dos Gulags há três anos atrás. Ela mudou, Lazar. Tornou-se

uma vory.

Muitos dos vory que ali se encontravam a observar riram-se, ridicularizando a ideia de

que a mulher de um padre refractário pudesse ser uma deles. Leo prosseguiu, ignorando-os:

— Não só é uma vory, como é uma líder. Já não é conhecida pelo nome de Anisya. O

seu klikukha é Fraera.

Os gritos de incredulidade elevaram-se. Os homens gritavam, avançando, insultados com

a ideia de que uma mulher os pudesse governar. Leo ergueu a sua voz acima do tumulto:

— Chefia um gangue, procuram vingança. Já não é a mulher que recordas, Lazar.

Raptou a minha filha. Se não for capaz de te soltar, matá-la-á. Jamais te irão soltar. Vais

morrer aqui, a não ser que aceites a minha ajuda.

Indignada com aquela história, a multidão fermentou numa segunda fúria de maus-tratos,

erguendo-se dos beliches, circundando-o, pronta para atacar. Contudo, Lazar ergueu as mãos,

ordenando-lhes que recuassem. Tinha evidentemente algum poder entre eles, pois obedeceram-

165

Page 166: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

lhe sem o questionar, regressando aos beliches. Lazar chamou o homem ruivo, falando-lhe ao

ouvido. O homem acenou com a cabeça, assentindo. Depois de Lazar ter terminado, o ruivo

falou com um ar de importância:

— És um homem desesperado. Não dirias nada. És um mentiroso. Sempre foste um

mentiroso. Já me enganaste antes. Não me irás enganar novamente.

Já esperava o seu cepticismo. Se Timur tivesse chegado, poderia entregar-lhe a carta de

Fraera como prova de que estava viva. Escrevera-a para apaziguar precisamente aquelas dúvidas.

Contudo, Timur não estava ali. Sem a carta, Leo não podia fazer nada. Disse então:

— Lazar, tens um filho.

A sala caiu no silêncio. Lazar abanou-se, como se houvesse algo dentro dele, tentando

evadir-se. Abriu a boca, um gesto retorcido, e apesar da sua raiva, a palavra que pronunciou era

quase inaudível:

— Não!

A sua voz estava deformada à semelhança da face, um som rachado. A dor que lhe

causava emitir até aquela única palavra deixou-o sem forças. Foi trazida uma cadeira e Lazar

sentou-se, enxugando a transpiração do rosto pálido. Incapaz de continuar a falar, fez sinal ao

homem ruivo, que, pela primeira vez, falou por si:

— Lazar é o nosso padre. Nós somos a sua congregação. Eu sou a sua voz. Aqui ele

pode falar de Deus sem se preocupar de estar a dizer a coisa errada. O Estado não pode

mandá-lo para a prisão. Na prisão já ele está. Na prisão, encontrou a liberdade que não lhe

davam no mundo exterior. O meu nome é Georgi Vavilov. Lazar é o meu mentor, como outrora

tentou ser o teu. Com a única diferença de que eu preferia morrer a traí-lo. Desprezo-te.

— Estou aqui para o ajudar.

— Não interessa se dizes a verdade ou não – ele nunca aceitaria nada vindo de ti.

Preferia ser um prisioneiro a ser um homem livre.

— Posso tirar-te daqui também, Georgi.

O ruivo abanou a cabeça:

— Rejubilas com as fraquezas de um homem. Não desejo estar em qualquer outra parte

que não ao lado do meu mestre. Lazar acredita que lhe foste enviado por justiça divina.

Deverás ser julgado por homens que em tempos julgaste.

O homem falava com orgulho, um retalho de aforismos pseudo-bíblicos. Dirigiu-se aos

condenados:

166

Page 167: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— O que dizemos nós?

Um prisioneiro gritou. Um segundo ecoou o grito, depois um terceiro – em breve todos

os barracões gritavam:

— Culpado! Culpado! Culpado!

Lazar voltou-se para um ancião parado no fundo dos barracões, que até ali não se

envolvera nos procedimentos. Lazar fez sinal a esse homem para avançar. Ele assim fez,

devagar, caminhando corcovado. O ancião dirigiu-se a Leo:

— Há três anos conheci o homem que me interrogou. Tal como tu, foi mandado para as

prisões, um local para onde mandara tantos. Nós ideamos um castigo para ele. Compusemos

uma lista de todas as torturas que nós, enquanto grupo, havíamos sofrido. A lista contém mais

de cem métodos. Todas as noites submetíamo-lo a uma dessas torturas, seguindo a lista, tortura

a tortura. Se conseguisse sobreviver a todas, deixávamo-lo viver. Não queríamos que morresse.

Queríamos que passasse por todos os métodos. E foi por isso que o impedimos de se enforcar.

Alimentamo-lo Mantivemo-lo forte para que sofresse mais. Só alcançou a número trinta antes

de tomar a decisão deliberada de correr para a fronteira da zona, sendo fuzilado pelos guardas

por tentativa de fuga. A tortura que a que ele me submeteu era a primeira da lista. É a tortura

que enfrentarás primeiro.

O velho recluso enrolou as calças para cima, revelando uns joelhos roxos, enegrecidos e

deformados. revisão quarta 11

167

Page 168: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Kolyma

Trinta quilómetros a norte de Magadan

Setenta quilómetros a sul do Gulag 57

10 de Abril

O nível das nuvens baixara mil metros, obliterando a vista. Gotículas revestidas de prata

pairavam no ar – uma névoa composta por parte de gelo, parte de água, parte de magia – da qual a

auto-estrada baça surgia metro a metro, uma carpete grosseira e cinzenta, deslindando-se diante

deles. O camião andava devagar. Frustrado com mais esse atraso, Timur consultou o relógio,

esquecendo-se de que estava avariado, esmagado no temporal. Colava-se-lhe inutilmente ao

pulso, o vidro rachado, o mecanismo avariado pela água salgada. Perguntou-se se estaria muito

danificado. O pai dissera-lhe que se tratava de uma antiga jóia de família. Timur suspeitava que

era mentira e que essa fora a forma que o pai, um homem orgulhoso, encontrara para disfarçar o

facto de oferecer ao filho um relógio de segunda-mão muito gasto aquando fizera dezoito anos.

Era por causa da mentira, em lugar de apesar dela, que o relógio se tinha tornado na posse mais

querida de Timur. Quando o seu filho mais velho fizesse dezoito anos tencionava dar-lho,

embora ainda não tivesse decidido se lhe explicaria a importância sentimental da mentira, ou se

perpetuaria meramente a mitologia das suas origens.

Apesar do atraso, Timur retirava grande conforto do facto de ter pelo menos evitado ter

de atravessar o mar de Okhotsk na viagem de regresso para Buchta Nakhodka. Na noite da

véspera encontrava-se a bordo do Stary Bolshevik, o navio estava preparado para zarpar: o porão

fora reparado, a água bombeada para fora e os novos prisioneiros foram carregados, de rostos

contorcidos em contemplação da liberdade. Incapaz de encontrar uma saída para o sarilho em que

se encontrava, Timur ficara parado no convés, paralisado, observando a tripulação da doca a

desapertar as cordas. Dali a alguns minutos o navio iria estar no mar e ele não teria perspectivas

de alcançar o Gulag 57 se não um mês depois.

168

Page 169: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Desesperado, Timur caminhou até à ponte do capitão, na esperança de que a simples

força da circunstância o obrigasse a inventar uma desculpa plausível. Quando o capitão se virou

para ele, desembuchou:

— Há uma coisa que preciso de lhe contar.

Fora incapaz de pensar o quê exactamente. Como mentiroso inapto que era, recordou-se

de que era sempre mais fácil contar uma versão da verdade.

— Na realidade eu não sou guarda. Trabalho para a MVD. Mandaram-me para cá

para rever as mudanças que estão a ser implementadas nos sistemas após o discurso de

Khrushchev. Vi suficientes coisas impróprias na forma como este navio é gerido.

À mera menção do discurso, o capitão empalideceu.

— Fiz alguma coisa mal?

— Temo que o conteúdo do meu relatório seja secreto.

— Mas a viagem aqui, as coisas que aconteceram, isso não é culpa minha. Peço-lhe,

leve isso em consideração se apresentar um relatório descrevendo como perdi o controlo do

navio.

Timur espantou-se com o poder da sua desculpa. O capitão aproximou-se, a sua voz

implorante:

— Nenhum de nós poderia prever que a parede divisória se iria partir. Não me faça

perder o emprego. Não consigo encontrar outro. Quem quereria trabalhar comigo? Sabendo o

que fiz na vida? Gerir um navio-prisão? Seria odiado. Este é o único lugar para mim. É aqui

que eu pertenço. Por favor, não tenho mais nenhum lugar para onde ir.

O desespero do capitão tornou-se embaraçoso. Timur afastou-se:

— A única razão por que lhe estou a dizer isto é porque não posso fazer a viagem de

regresso. Preciso de falar com Abel Prezent, o director regional. Terá de se arranjar com o

navio sem mim. Pode apresentar uma desculpa qualquer à tripulação pela minha ausência.

O capitão sorriu obsequiosamente, inclinando a cabeça numa vénia.

Quando desembarcava do navio e se dirigia ao porto, Timur congratulou-se por ter

encontrado uma desculpa tão boa. Confiante, entrou na secção administrativa do centro de

processamento de prisioneiros, subindo as escadas para o gabinete do director regional, Abel

Prezent, o homem que o designara ao Stary Bolshevik. Bateu à porta e entrou, o rosto de Prezent

enrugou-se pela irritação:

— Há algum problema?

169

Page 170: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Já vi suficiente do navio para elaborar o meu relatório.

Como um gato sentindo perigo, a linguagem corporal de Prezent mudou:

— Que relatório?

— Fui mandado pelo MVD para recolher informação acerca das reformas que estão a

ser implementadas após o discurso de Khrushchev. A minha intenção era permanecer incógnito,

não identificado, para poder julgar com maior acuidade a forma como os campos estão a ser

geridos. Contudo, como me destacou para o Stary Bolshevik, contrariamente às minhas ordens,

vejo-me forçado a apresentar-me. Não será necessário dizer-lhe que não trago identificação

comigo. Não pensámos que tal fosse necessário. Não prevemos que os meus deveres fossem

postos em causa. Contudo, se precisar de provas, conheço todos os detalhes do seu registo de

emprego.

Timur e Leo haviam estudado cuidadosamente os dossiês de todas as figuras chave da

região:

— O senhor trabalhou em Karlag, no Cazaquistão, durante cinco anos e antes disso…

Prezent interrompeu-o, educadamente, erguendo um dedo, de voz constringida, como se

umas mãos invisíveis lhe apertassem o pescoço fino e pálido:

— Sim, estou a ver.

Levantou-se, reflectindo, de mãos atrás das costas.

— Veio cá para elaborar um relatório?

— Exacto.

— Suspeitei que pudesse acontecer algo desse género.

Timur assentiu, satisfeito com a credibilidade da sua história improvisada:

— Moscovo requer avaliações regulares.

— Avaliações…essa palavra é letal.

Timur não previra tal reacção meditativa e melancólica. Tentou suavizar a ameaça

implícita.

— Trata-se de reunir factos e nada mais.

Prezent respondeu:

— Eu trabalho arduamente para o Estado. Vivo num lugar onde mais ninguém quer

viver. Trabalho com os prisioneiros mais perigosos do mundo. Fiz coisas que mais ninguém

queria fazer. Ensinaram-me a ser um líder. Depois disseram que afinal essas lições estavam

170

Page 171: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

erradas. Num minuto é a lei fazer determinado tipo de coisas. No outro, já se trata de crime. A

lei diz que eu deveria ser severo. A lei diz que eu deveria ser clemente.

O director tinha engolido a mentira de Timur completamente. A mera referência ao

Discurso Secreto fê-lo encolher-se de medo. Ao contrário do capitão, Prezent não implorou, nem

suplicou por um relatório favorável. Tornou-se nostálgico dos tempos passados, um tempo em

que o seu lugar e objectivo eram claros. Timur aproveitou para o pressionar:

— Preciso de transporte imediato para o Gulag 57.

Prezent disse-lhe:

— Com certeza.

— Tenho de partir imediatamente.

— A viagem para as montanhas não pode ser feita de noite.

— Arriscada ou não, prefiro empreendê-la já.

— Compreendo. Atrasei-o. Peço desculpa. Mas simplesmente não é possível. Partirá

amanhã de manhã, cedo. Não há nada que eu possa fazer quanto à escuridão.

#

Timur voltou-se para o motorista:

— Quanto tempo falta para lá chegarmos?

— Duas, três horas – o nevoeiro não ajuda, três horas, diria eu.

O motorista riu-se, antes de acrescentar:

— Nunca vi ninguém com tanta pressa para chegar a um gulag.

Timur ignorou a piada, dirigindo a sua energia impaciente para uma reavaliação dos

planos. Para a coisa funcionar, era preciso que diversos elementos encaixassem. A única coisa

que não podiam controlar era a cooperação de Lazar. Timur tinha na sua posse a carta escrita por

Fraera, cujo conteúdo fora lido e relido, para verificar se havia qualquer tipo de aviso ou instrução

secreta. Mas não encontraram nada. Como outra medida de persuasão, que Fraera desconhecia,

Leo insistira em trazer uma fotografia de um menino de sete anos. A criança na fotografia não

era o filho de Lazar, mas ele não poderia saber isso. A visão manifesta dele poderia revelar-se

mais poderosa do que a mera ideia da sua existência. Caso não resultasse, Timur tinha em sua

posse uma garrafa de clorofórmio.

171

Page 172: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O camião abrandou e deteve-se. Adiante havia uma ponte de madeira, de construção

simples. Transpunha uma falha funda, uma quebra na paisagem. O motorista fez um gesto

sinuoso com a mão:

— Durante a primeira parte do Verão, quando a neve da montanha derrete, corre tão

depressa…imagine uma queda de água, mas de lado.

Timur esticou-se para a frente no assento espreitando para a ponte periclitante, cujo outro

extremo desaparecia no nevoeiro. O motorista franziu a testa.

— Aquela ponte foi construída por prisioneiros. Não é de confiança!

Com eles viajava um outro guarda, um homem que até àquele momento estivera a

dormir. A julgar pelo cheiro das suas roupas, apanhara uma bebedeira na noite da véspera,

provavelmente passava todas as noites da sua vida embriagado. O condutor abanou-o:

— Acorda! Inútil…preguiçoso…acorda!

O guarda abriu os olhos, piscando-os ao mesmo tempo que olhava a ponte. Esfregou os

olhos, saiu atabalhoadamente da cabine, saltando para o chão. Arrotou muito alto e

despreocupadamente e começou a acenar para guiar o camião. Timur abanou a cabeça:

— Espere.

Saiu da cabine, trepou para o chão e esticou as pernas. Depois de fechar a porta,

caminhou até ao princípio da ponte. O condutor tinha razão em estar preocupado: a ponte não era

muitos mais larga do que o camião. Havia talvez cerca de trinta centímetros livres em cada lado,

nada para impedir os pneus de deslizar se a aproximação não estivesse alinhada na perfeição.

Quando olhou para baixo, timur avistou o rio a cerca de dez metros abaixo. Línguas de gelo

brando e gotejante saltavam em cada um dos lados do banco. Tinham começado a derreter,

pingas áridas alimentando um ondeante curso de água estreito. Imaginou a imagem que o

motorista lhe descrevera. No espaço de semanas, quando a neve derretesse, haveria uma torrente.

O camião avançou cautelosamente. O guarda ressacado acendeu um cigarro, disposto a

esquivar-se à responsabilidade. Timur fez sinal ao condutor para alinhar o camião à direita:

estava a sair do rumo. Tornou a fazer-lhe sinal. A visibilidade era má mas ele conseguia ver o

condutor, e o condutor deveria ser capaz de o ver a ele. Timur gritou:

— À direita!

172

Page 173: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Embora fosse necessário fazer ajustes, o camião acelerou. Ao mesmo tempo, os faróis

cintilaram, um amarelo sulfúrico brilhante que o cegou. O camião não estava virado para a ponte.

Estava a ir mesmo direito a si.

Timur saltou do caminho, mas não foi a tempo: o pára-choques metálico embateu-lhe

enquanto ele se encontrava meio no ar, esmagando-lhe o corpo, antes de o cuspir por sobre a

ravina. Brevemente suspenso no ar, virado para o céu cintilante, depois caindo, o corpo a girar,

virando para o rio, directamente acima de um das bordas de gelo. Caiu de borco: os ossos e o

gelo estilhaçando-se em simultâneo.

Timur estava deitado com a orelha colada ao gelo, como alguém que ia arrombar um

cofre. Não se conseguia mexer. Não conseguia mexer os dedos ou as pernas. Não conseguia

mexer o pescoço. Não sentia dor.

Lá do alto, alguém gritou:

— Traidor! Andas a espiar os teus! Nós mantemo-nos unidos! Nós contra eles!

Timur não conseguia virar o pescoço para olhar para cima. Mas reconheceu a voz do

condutor:

— Não haverá relatórios, nenhuma culpa nem delito – não em Kolyma, talvez em

Moscovo mas não aqui. Fizemos o que tínhamos de fazer! Fizemos o que nos mandar! Para o

diabo o discurso de Khrushchev! Para o diabo o seu relatório! Sempre quero vê-lo a escrever

daí de baixo.

O guarda ressacado soltou uma risada por entre dentes. O condutor dirigiu-se a ele:

— Vai lá a baixo.

— Porquê?

— Porque senão toda a gente irá ver o corpo.

— Quem? Não há aqui ninguém.

— Não sei, alguém como ele, se mandarem outro.

— Não preciso de descer lá a baixo. O gelo vai derreter.

— Daqui a três semanas, quem sabe quem passará por aqui até lá. Vai lá a baixo e

empurra-o para o rio. Faz as coisas como deve de ser.

— Eu não sei nadar.

— Ele está em cima do gelo.

— E se o gelo se partir?

— Molhas os pés, ora. Vai lá abaixo e pronto! Nada de erros.

173

Page 174: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Fitando o rio, respirando áspera e irregularmente, Timur ouviu o relutante executor,

reclamando como um adolescente preguiçoso, a descer o banco ingreme – o som desastrado do

seu assassino a aproximar-se. Ele era uma mosca apanhada numa teia, sem se conseguir mexer,

esperando a morte.

Desde que se lembrava, o maior medo de Timur fora sempre que um membro da sua

família morresse nos gulags. Nunca se preocupara consigo próprio. Estivera sempe seguro de

que se conseguiria desenvecilhar e que, de alguma forma, acontecesse o que acontecesse, seria

sempre capaz de encontrar o caminho de volta a casa. Debateu-se para aceitar que aqueles eram

os últimos minutos da sua vida.

Pensou na mulher. Pensou nos filhos.

#

Irritado por ter de acatar ordens, com a cabeça a pesar-lhe da ressaca, obrigado a

escorregar e deslizar pela parede da ravina, arriscando-se a torcer um tornozelo, o guarda

alcançou enfim o banco do rio. As pesadas botas tocaram o gelo com passos hesitantes, testando

a sua resistência. Numa tentativa de distribuir o seu peso por igual, baixou-se, pondo-se de gatas.

Como um insecto absurdo rastejou até junto do corpo do tipo que fora enviado de Moscovo.

Bateu no traidor com o cano da pistola. Este não se mexeu.

— Está morto!

O condutor gritou:

— Revista-lhe os bolsos.

Enfiou a mão nos bolsos do homem, encontrando uma carta, algum dinheiro e uma faca –

bugigangas.

— Não há nada!

— Então e o relógio?

Desapertou o relógio do pulso do homem.

— Está partido!

— Empurra o corpo para dentro de água.

Sentando-se no gelo, usando as botas, começou a empurar o corpo com os pés em

direcção ao rio. O homem era pesado mas o seu corpo deslizou pela superficie suave do gelo,

174

Page 175: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

sem grandes dificuldades. Na margem da borda de gelo, viu que os olhos do homem estavam

abertos. Piscavam – o homem, o espião de Moscovo, ainda estava vivo.

— O tipo está vivo!

— Não por muito tempo. Empurra-o. Estou a ficar com frio.

Observou o homem a piscar os olhos mais uma vez antes de o empurrar com um pontapé

da berma do gelo para dentro do rio. Ouviu-se um chape. O corpo balançou para cima e para

baixo, antes de ser arrastado corrente abaixo, até desaparecer de vista numa paisagem selvagem

onde nunca mais ninguém o veria.

Ainda sentado no gelo, o guarda estudou o relógio. Parecia barato. Barato e partido, não

tinha valor. Mas algo o deteve antes de o atirar para a água. Com o vidro partido ou não, parecia

uma pena atirá-lo fora.

175

Page 176: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Moscovo

No mesmo dia

Elena perguntou:

— Quando é que a Zoya vem para casa?

Raisa respondeu:

— Em breve.

— Quando eu voltar das lojas?

— Não, não tão em breve.

— Quando, então?

— Quando o Leo voltar, traz a Zoya com ele. Não te sei dizer quando será, exactamente,

mas será em breve.

— Prometes?

— O Leo está a fazer tudo o que pode. Tens de ter paciência durante mais algum tempo.

És capaz de fazer isso por mim?

— Se prometeres que a Zoya está bem.

Era uma promessa que Raisa não tinha outra hipótese senão fazer:

— Prometo.

Elena perguntava as mesmas coisas todos os dias. De cada vez era como se nunca tivesse

perguntado nada antes. Não procurava necessariamente novas informações, era antes para estar

em sintonia com o tom da resposta, a ouvir variações actualizadas. Qualquer sinal de impaciência

ou irritação, qualquer sugestão de dúvida, e caía de novo na prostração catatónica que se

apoderara dela imediatamente após a captura de Zoya. Recusava-se a sair do quarto, chorando

até estar fisicamente exausta e incapaz de chorar mais. Leo não quisera seguir as instruções do

médico e sedá-la, sentando-se a seu lado todas as noites, hora após hora. Elena só começou a

mostrar sinais de melhora quando Elena regressou do hospital. E a melhora mais impressionante

ocorreu quando Leo deixou Moscovo, não por querer que ele se fosse embora: era a primeira

prova concreta de que se estava a fazer alguma coisa para trazer Zoya de volta. Conformou-se

176

Page 177: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

facilmente com a ideia de que quando Leo regressasse traria Zoya com ele. Elena não precisava

de saber onde se encontrava a irmã, ou o que estava ela a fazer, apenas que viria para casa, que

viria para casa muito em breve.

Os pais de Leo esperavam na porta de entrada. Como ainda estava fraca por causa dos

ferimentos, Raisa precisava da sua ajuda. Haviam-se mudado para o complexo ministerial

vedado, e cozinhavam, limpavam, criando uma sensação de normalidade doméstica. Elena estava

pronta para partir, mas deteve-se:

— Não podes vir connosco? Andamos muito devagar.

Raisa sorriu:

— Acho que não tenho forças suficientes. Daqui a mais um dia ou dois já podemos sair

juntas.

— E Zoya também vem? Podíamos ir ao jardim zoológico. Ela havia de gostar. Ela

fingiu que não gostou mas eu sei que ela gostou. Era o segredo dela. Também gostava que Leo

viesse. E Anna e Stepan.

— Havemos de ir todos.

Elena sorriu quando fechou a porta, o primeiro sorriso que Raisa lhe via desde há muito

tempo.

Sozinha, Raisa deitou-se na cama de Zoya. Tinha-se mudado para o quarto das meninas.

Elena só adormecia com ela ali ao lado. A segurança tinha sido reforçada no complexo

ministerial, tal como em toda a cidade. Os agentes, tanto reformados como activos, tomavam

precauções em casa, instalando mais cadeados na porta, barras nas janelas. Embora o Estado

tivesse tentado impedir a publicação de informação, tinham sucedido demasiados assassínios para

que não circulassem rumores. Toda a gente que tinha denunciado um amigo ou colega tomou

medidas de precaução. Os exploradores do medo estavam assustados, tal como Fraera prometera.

#

Raisa abriu os olhos, não soube quanto tempo teria dormido. Embora estivesse virada

para a parede e não conseguisse ver nada atrás dela, tinha a certeza de que se encontrava mais

alguém no quarto. Quando se virou e levantou a cabeça descobriu a silhueta de um oficial na

soleira da porta, uma silhueta andrógena. Era quase como se estivesse a sonhar. Raisa não sentiu

177

Page 178: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

medo nem surpresa. Aquele era o seu primeiro encontro e porém havia uma peculiar

familiaridade entre ambas, uma intimidade imediata.

Fraera tirou o boné, revelando o cabelo curto. Entrou no quarto, notando:

— Pode gritar. Ou podemos falar.

Raisa sentou-se na cama.

— Não vou gritar.

— Não, também me pareceu que não.

Raisa ouvira aquele tom de voz muitas vezes: a condescência com que os homens

tratavam as mulheres tornava-se estranha vinda dos lábios de outra mulher, apenas cinco anos

mais velha do que ela. Fraera reparou na sua irritação:

— Não se ofenda. Tinha de ter a certeza. Não foi fácil, entar aqui para a ver. Tentei

muitas vezes. Seria uma pena que esta visita acabasse prematuramente.

Fraera sentou na cama oposta, a cama de Elena – de costas encostadas à parede, pernas

cruzadas, desabotoando o casaco do uniforme. Raisa perguntou:

— Zoya está segura?

— Sim, ela está em segurança.

— Não está ferida?

— Não.

Raisa não tinha motivos para acreditar nela. Porém, acreditou.

Depois de ter desabotoado o casaco, Fraera pegou na almofada de Elena, apertando-a

entre as mãos, sem grandes pressas:

— Este quarto é bonito, está cheio de coisas bonitas de duas bonitas meninas, que dois

simpáticos pais lhes ofereceram. É essa a ideia?

— Não.

— Quantas coisas simpáticas são necessárias para compensar um pai e uma mãe

assassinados? Quão suaves têm de ser os lençóis para uma criança perdoar esse crime?

— Nunca tentámos comprar o seu afecto.

— Custa-me a acreditar, olhando em volta.

Raisa fez um grande esforço para controlar a sua zanga:

— Seriamos uma família melhor se não lhes comprássemos nada e as tratássemos de

forma cruel?

178

Page 179: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Mas vocês não são uma família. Não importa o que fazem. Claro, alguém que não

sabe a verdade poderia julgar que são uma família. Pergunto-me se é isso que Leo tem em

mente: A ilusão da normalidade. Não seria real, ele deve sabê-lo, mas poderia disfrutar,

reflectido nos olhos das outras pessoas. Leo tem jeito para acreditar em mentiras. As meninas

são pouco mais do que adereços, vestidas com roupas bonitas, para que ele possa brincar a ser

pai.

— As coisas não aconteceram dessa forma calculada. As meninas estavam num

orfanato. Nós oferecemo-lhes uma escolha.

— Uma escolha entre doença, empobrecimento e má-nutrição, ou viver com o homem

que assassinou os pais delas…não é grande escolha.

Raisa calou-se, indecisa, sem conseguir contrariá-la.

— Nem Leo nem eu pensámos que a adopção seria simples.

— Não me corrigiu quando disse que ele matou os pais delas. Esperava que me

dissesse: Leo não os matou. Tentou salvá-los. Era um bom homem entre maus. Mas não

acredita nisso, pois não?

— Ele era oficial da MGB. Fez coisas terríveis.

— E porém ama-lo?

— Não o amei sempre.

— Ama-lo agora?

— Ele mudou.

Fraera inclinou-se para diante:

— Por que não é capaz de responder? Ama-lo? Sim ou não?

— Sim.

— Quero ouvi-la dizê-lo: Eu amo-o.

— Eu amo-o.

Fraera recostou-se, reflectindo:

— Então é verdade.

Raisa respondeu:

— Ele já não é o homem que a prendeu. Já não é o mesmo.

— Tem razão. Não é. Há uma diferença. No passado ninguém o amava. Agora é

amado. A senhora ama-o.

179

Page 180: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Fraera desabotoou a camisa, apertada pelo colarinho, revelando a ponta das tatuagens que

se desfiavam pelo seu corpo como os símbolos de uma antiga feitiçaria:

— O que sabe sobre ele, Raisa? O que sabe sobre o seu passado?

— Ele contou-me tudo.

— Custa-me a acreditar nisso.

— Ele infiltrou-se na igreja do seu marido. Traiu-a, traiu a vossa congregação, e traiu

Lazar.

— E só por causa dessas coisas, merece morrer. Contudo, sabia que antes de revelar a

sua traição, me pediu em casamento? Como um jovem amante sob uma lua cheia?

Raisa baixou a cabeça e assentiu:

— Ele pediu-lhe para deixar Lazar. Ao mesmo tempo, tenho a certeza de que acreditava

que era seu desejo ser mulher dele. Estava enganado. Estava enganado sobre muitas coisas,

incluindo o amor. Em especial o amor.

Fraera parecia desapontada, desejando ter revelado um segredo. Prosseguiu,

visivelmente menos entusiasmada:

— Ele pensava que estava a tentar salvar-me. Na verdade, estava a tentar salvar-se a si

próprio. Se tivesse aceitado a sua proposta, ter-se-ia enganado a si próprio, julgando-se, no

fundo do coração, um homem decente. Eu não desculparia os seus crimes tão facilmente. Fiz-

lhe uma promessa. Jurei-lhe que nunca seria amado. Julgava que tinha razão, pois como é que

um monstro assim podia ser amado? Quem o amaria?

Raisa sentiu-se nervosa sob o olhar fixo de Fraera:

— Não vou defender as coisas que ele fez.

— Mas tem de o fazer. A senhora ama-o. Já vos vi os dois juntos. Observei-vos, espiei-

vos, tal como Leo me espiou. E você fá-lo feliz. E o que é pior, ele fá-la feliz. O seu amor é tudo

para ele. É por isso que o estou a pô-lo sob julgamento. É por isso que estou aqui. Quero

descobrir como é que é possível que viva com ele. Que durma com ele? Ao princípio pensei que

deveria ser estúpida: um troféu de oficial, bela e cega. Pior do que isso, pensei que talvez não

se importasse com os crimes que Leo cometeu.

Fraera ergueu-se, atravessando o espaço que as dividia e sentou-se na mesma cama onde

Raisa estava sentada, sentando-se como duas melhores amigas partilhando segredos a meio da

noite:

180

Page 181: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Descobri que não exibe uma lealdade gratuita ao Estado. Correram rumores que era

uma refractária. O seu amor por Leo tornou-se um mistério ainda maior, um mistério que eu

tinha de resolver a todo o custo. Fui obrigada a investigar o seu passado. Posso partilhar as

minhas descobertas?

— Tem a minha filha. Pode fazer o que lhe apetecer.

— A sua família foi morta durante a guerra. Viveu como uma refugiada.

Raisa ficou como que paralisada quando Fraera empunhou aquela informação como se

fosse uma faca:

— Durante esses anos foi raptada.

A boca de Raisa abriu-se, apenas um pouco, o suficiente para servir de confirmação. Não

tentou negar, sentindo que se seguiria mais:

— Como é que soube?

— Porque visitei o orfanato onde foi abandonada em criança.

Raisa sentiu algo muito mais poderoso do que surpresa. Os seus segredos mais íntimos

do passado, acontecimentos que ela apagara e enterrarra cuidadosamente, estavam a ser

desenterrados e brandidos diante de si. Perscrutando a reacção de Raisa, Fraera pegou-lhe na

mão:

— Leo não sabe?

Raisa suspendeu o olhar esperançoso de Fraera, respondendo:

— Ele sabe.

Mais uma vez, Fraera parecia desapontada:

— Não acredito nisso.

— Demorei muitos anos a decidir-me a contar-lhe, mas contei. Ele sabe, Fraera: Ele

sabe tudo. Sabe que não posso ter filhos, sabe porquê, sabe que entreguei a única criança a que

jamais dei à luz. Sabe a minha vergonha. Eu sei a dele.

Fraera tocou no rosto de Raisa:

— Foi por isso que se casou com ele? Sentiu quão desesperado ele estava para ser

amado. Ele aceitaria de bom grado a oportunidade de ser pai do seu filho. Viu-o como uma

oportunidade. Pensou em ir buscar a criança ao orfanato.

— Não, eu sabia que o meu filho tinha morrido antes de conhecer Leo. Fui ao orfanato

assim que recuperei as forças, assim que encontrei uma casa, assim que me senti para ser mãe

de novo. Disseram-me que o meu filho tinha morrido de tifo.

181

Page 182: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Então, por que se casou com Leo? Qual foi a razão que a levou a dizer-lhe que sim?

— Como já tinha abandonado o meu filho para poder sobreviver, não me pareceu uma

escolha demasiado difícil casar com um homem que temia mais do que amava.

Fraera inclinou-se para diante e beijou Raisa. Depois recuou e disse-lhe:

— Consigo sentir o teu amor por ele. E o teu ódio por mim…

— A senhora levou a minha filha.

Fraera ergueu-se, encaminhando-se para a porta, ao mesmo tempo que abotiava a camisa.

— Ela não é a tua filha. Enquanto amares Leo não me deixas outra saída. O teu amor

por ele é a razão por que ele consegue viver consigo próprio. Cometeu crimes indescritíveis e

porém, apesar disso, é amado. Matou e é amado. E por uma mulher que qualquer homem

admiraria, por uma mulher que eu admiro. O seu amor desculpa-o. É a sua redenção. O teu

amor é errado.

Fraera apertou o casaco, voltou a pôr o boné na cabeça, e desapareceu no seu disfarce.

— Falei com Zoya antes de vir para cá. Quis saber como era a vida nesta farsa de

família. Ela é inteligente, desfeita, confusa. Gosto bastante dela. Contou-me que lhe fez uma

proposta. Se deixasse o Leo, ela poderia ser feliz. Surpreende-me que possa ter sido cruel ao

ponto de rejeitar o pedido da menina com uma declaração de amor por Leo. Esta menina está

tão perturbada que vai buscar uma faca à cozinha e se posta por cima de Leo enquanto ele

dorme, planeando cortar-lhe o pescoço.

Raisa rendeu-se. Depois de muitas tentativas, Fraera conseguira enfim encontra-lhe o

ponto fraco – uma mentira, um segredo. Sorriu:

— Parece que há uma coisa que Leo não lhe contou. É verdade, Zoya costumava ficar

parada junto à cama, com uma faca na mão. Leo apanhou-a. Ele sabia quão perturbada ela

estava. E não lhe disse nada?

Num instante, Raisa encaixou as discrepâncias. Quando encontrara Leo sentado à mesa

da cozinha, absorto, não estava preocupado com Nikolai, estava a pensar em Zoya. Ela

perguntara-lhe o que se passava. Ele não lhe dissera nada. Mentira-lhe. Fora por essa razão que

as meninas estavam tão inquietas naquele dia.

Fraera detinha agora o controlo:

— Tendo esse incidente em conta, pense cuidadosamente no que lhe vou dizer. Vou

repetir a proposta de Zoya. Devolver-lhe-ei Zoya, incólume. Em troca, a senhora e as meninas

182

Page 183: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

nunca mais verão Leo. Ame as meninas ou ame Leo, essa foi a realidade da situação nos últimos

três anos. E agora, Raisa, tem de escolher.

183

Page 184: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Kolyma

Gulag 57

No mesmo dia

Leo mal podia suster-se de pé, quanto mais cavar. Estava a trabalhar num tosco sistema

de trincheiras a três metros abaixo da superfície da terra, a sua picareta tinia em vão contra o

permafrost. Havia vastos fogos a arder lentamente, como piras fúnebres de heróis caídos,

dispersas intermitentemente, ardendo devagar para amolecer o solo congelado. Mas Leo não

estava perto de nenhum deles, escolhera deliberadamente ficar próximo do líder da sua brigada

de trabalho, o brigadeiro, no recanto mais frio e remoto das minas de ouro, no sistema de

trincheiras menos desenvolvido onde, mesmo que estivesse na posse de todas as suas forças, seria

impossível cumprir a sua norm, o número mínimo de pedras que tinha de partir para poder

receber uma ração normal.

Exausto, as suas pernas vacilavam, incapazes de suportar o seu peso. As rótulas dos seus

joelhos, inchadas e cheias de bolhas, estavam afundadas atrás de sacos de fluido, turbilhões de

roxo e azul. Na noite anterior, Leo fora obrigado a ajoelhar-se, de mãos atadas atrás das costas,

os tornozelos levantados e atados aos pulsos, de forma que o todo o peso do seu corpo fosse

suportado pelas rótulas. Para impedir que caísse para a frente, ataram-no aos degraus de um

beliche. Hora após hora sem conseguir aliviar a pressão: a pele retesada, os ossos a roçar na

madeira, a pele parecia lixa. Sempre que tentava mudar de posição, gritava de dor e por isso

amordaçaram-no, para que os prisioneiros conseguissem dormir. Dormiram enquanto ele

permaneceu de joelhos, trincando com os dentes, como um cavalo ensandecido, no trapo imundo,

que os prioneiros prepararam, esfregando-o nos seus furúnculos húmidos. Ouvia-se os ressonos

atravessar os barracões, mas um homem permanecera acordado – Lazar. Ficara de guarda a Leo a

noite inteira, tirava-lhe a mordaça sempre que ele precisava de vomitar e voltava a pô-la depois

de ele acabar, exibindo uma dedicação paternal: um pai cuidando de um filho doente, um filho

que precisava de aprender uma lição.

184

Page 185: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Ao alvorecer, Leo recobrou bruscamente consiência quando lhe despejaram um balde de

água gelada por cima da cabeça. Quando o desamarraram e lhe tiraram a mordaça, tombou no

pavimento, incapaz de sentir os pés, como se lhe tivessem amputado as pernas abaixo dos

joelhos. Passaram-se vários minutos atrozes, antes de conseguir esticá-los, e vários minutos mais

antes de se conseguir soerguer – coxeando – como se tivesse envelhecido cem anos. Os outros

prisioneiros permitiram que tomasse o pequeno-almoço, que se sentasse à mesa, que comesse a

sua ração, de mãos a tremer. Queriam que ele vivesse. Queriam que ele sofresse. Como um

homem vagueando num deserto sonharia com um oásis, a mente de Leo concentrava-se na

miragem reluzente de Timur. Como era impossível empreender a viagem de Magadan à noite,

havia apenas uma pequena oportunidade, no início da noite, quando o seu amigo, o seu salvador,

poderia chegar.

De braços a tremer pela fadiga, Leo levantou a picareta acima da cabeça, porém as suas

pernas cederam. Quando caiu para a frente, embateu com os joelhos intumescidos no solo. Com

o impacto, as bolsas de fluido rebentaram, explodindo como a borbulha de um adolescente.

Abriu a boca, soltando um grito mudo, de olhos feitos em água, quando tombou para o lado,

aliviando enfim a pressão nos joelhos, deitado no fundo da trincheira. A exaustão abafava

qualquer sentido de auto-preservação. Por breves instantes, o seu maior desejo era fechar os

olhos e adormecer. Naquelas temperaturas nunca teria acordado.

Lembrando-se de Zoya, lembrando-se de Raisa e Elena – a sua família – sentou-se no

solo, pousando as mãos no chão, solevando-se vagarosamente. Enquanto se debatia para se suster

de pém alguém o agarrou, sibilando-lhe ao ouvido:

— Nada de descansar, chekist!

Nem descando, nem tão pouco misericórdia – esse fora o veredicto de Lazar. A sentença

estava a ser executada com vigor. A voz no seu ouvido não pertencia a um guarda: era de outro

prisioneiro, o brigadeiro, tomado por um ódio pessoal, recusando a premir a Leo um único

minuto sem dor, fome ou exaustão, ou todas estas coisas juntas. Leo não prendera aquele homem

ou a sua família. Nem sequer sabia o seu nome. Isso não importava. Convertera-se num talismã

para todos os prisioneiros: um embaixador da injustiça. Chekist era agora o seu nome, a sua

inteira identidade, e visto assim o ódio de toda a gente era pessoa.

Uma campainha soou. As ferramentas foram pousadas. Leo sobrevivera ao seu primeiro

dia na mina, uma provação modesta quando comparada com a noite que se aí vinha – mais uma

tortura que ainda não fora anunciada. Arrastou o corpo na subida da rampa, saindo da trincheira,

185

Page 186: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

e começou a seguir as costas dos demais, tendo como uma fonte de força a perspectiva da

chegada de Timur.

Quando se aproximou do campo, a ténue luz do dia, esparsa entre o manto baixo de

nuvens, quase desaparecera por completo. Emergindo da escuridão, avistou os faróis de um

camião no planalto. Dois punhos de luz amarela, pirilampos à distância. Não fossem os seus

joelhos, Leo ter-se-ia deixado cair no chão, chorando de alívio, prostrando-se ante uma divindade

misericordiosa. Os guardas deram-lhe um safanão e empurraram-no, atrevendo-se a xingá-lo

apenas porque se encontravam longe da vista do seu iluminado e reformado capitão; Leo foi

conduzido de volta ao interior da zona, deitando constantes olhares por cima do ombro,

observando o camião a aproximar-se. Sem conseguir controlar as suas emoções, de lábios a

tremer, regressou aos barracões. Fosse qual fosse a tortura que haviam planeado, estaria salvo.

Foi postar-se à janela – de olhos e nariz colados ao vidro, como uma criança pobre à porta de

uma gloriosa confeitaria, observando o camião a entrar no campo. Um guarda desceu da cabine

do camião, depois seguiu-se-lhe o condutor. Leo esperou, cravando as unhas na ombreira da

janela. Timur estaria com certeza com eles, talvez sentado no banco de trás. Passaram-se

minutos, mais ninguém desceu. Deixou-se ficar ali a olhar fixamente, num desespero que

esmagava a lógica, até finalmente aceitar que por mais que fitasse o camião, não vinha mais

ninguém a bordo.

Timur não chegara.

Leo não era capaz de comer, a fome fora substituída por um desapontamento tão forte

que lhe enchia o estômago. Deixou-se ficar sentado à mesa no barracão do refeitório, muito

depois de os outros prisioneiros saírem, fazendo tempo até os guardas o porem na rua, com

ordens furiosas. Era melhor ser castigado por eles do que pelos outros condenados, era melhor

passar a noite na cela de isolamento – celas punitivas geladas – do que ter de enfrentar mais uma

tortura. Afinal, aqueles guardas não estavam ao serviço do Comandante Zhores, um homem

transformado? Não falara ele de justiça, de equidade e de oportunidade? Quando os guardas o

começaram a empurrar para a porta, Leo, num acto deliberado acto de provocação, atacou-os

furiosamente, desferindo um murro. Estava fraco e os seus movimentos eram lentos:

apanharam-lhe o punho. A coronha de uma espingarda embateu-lhe no rosto.

Arrastado em braços, os pés a roçar pela neve, Leo não foi levado para a cela de

isolamento. Foi despejado nos barracões – estendido no meio da divisão. Ouviu os guardas a

186

Page 187: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

afastarem-se. Os seus olhos focaram-se nas traves de madeira. O seu nariz e lábios estavam

húmidos de sangue. Lazar baixou os olhos para ele.

Despiram-no todo, enrolaram-lhe toalhas molhadas à volta do peito, atadas atrás das

costas, e imobilizaram-no, de braços amarrados de lado. Ficou perplexo – não sentia dor.

Embora nunca tivesse trabalhado como interrogador, tinha conhecimentos em primeira mão dos

seus métodos. Por vezes, fora obrigado a assistir. Contudo, aquela técnica era-lhe inteiramente

nova. Levantaram-no em peso e deitaram-no de costas. Depois, os prisioneiros prosseguiram

com as suas actividades nocturnas. Sentia o estômago frio e molhado por causa das toalhas. Mas

estava demasiado exausto para se preocupar e, aproveitando a oportunidade, fechou os olhos.

Acordou, em parte devido ao barulho dos prisioneiros que se metiam nas camas, mas

sobretudo devido à dor no peito. Aos poucos, começava a entender aquela tortura. À medida que

as toalhas secavam ficavam mais apertadas, constringindo-lhe o peito cada vez mais, esmagando-

lhe as costelas. A subtil dinâmica do castigo era o conhecimento de que a dor apenas iria piorar.

Enquanto os outros homens se preparavam para se deitarem, Lazar ocupou o seu lugar habitual

numa cadeira junto de Leo. O homem ruivo, a voz de Lazar, aproximou-se:

— Precisa de mim?

Lazar abanou a cabeça, dizendo-lhe que se fosse deitar. O homem mirou Leo como um

amante enfadado e ciumento, antes de se retirar confome lhe fora ordenado.

Quando os prisioneiros já estavam a dormir, a dor tornou-se tão intensa que, se não

estivesse amordação, teria gritado desalmadamente por misericórdia. Vendo o seu rosto

contorcer-se devagar, como se lhe estivessem a apertar parafusos nos flancos da cabeça, Lazar

ajoelhou-se junto a Leo num gesto de prece, aproximando a boca do seu ouvido, o lábio inferior

tocou no lóbulo da orelha de Leo à medida que ele falava. A sua voz era tão ténue como a dança

das folhas de Outono no ar:

— É difícil…ver outros sofrer…não importa o que tenham feito...muda-nos…mesmo que

tenhamos toda a razão em desejar vingança…

Lazar entrecortou-se, recuperando do esforço que fizera para pronunciar aquelas palavras.

Era uma dor que nunca o deixava, que vivia com ele como uma companheira, sabendo que nunca

melhoraria e que nunca mais voltaria a conhecer um momento sem ela.

— Perguntei aos outros…Houve algum Chekist que vos tenha ajudado? Houve algum

homem bom…? Todos…responderam…que não.

187

Page 188: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Entrecortou-se novamente, limpando o suor das sobrancelhas, antes de tornar a aproximar

os lábios do ouvido de Leo:

— Maxim, o Estado escolheu-te…para me atraiçoares… Porque tens um coração…Eu

teria descoberto um homem sem coração…Essa é a tua tragédia…tinhas um coração…e

vendeste-o ao desbarato…

Concluiu:

— Não posso poupar-te… Há tão pouca justiça…temos de aproveitar a pouca que

conseguimos…

A dor transformou-se em delirio: a sensação era tão intensa que adquiriu propriedades

eufóricas. Leo já não estava consciente dos barracões: as paredes de madeira dissolviam-se,

deixando-o sozinho no meio de um planato branco de gelo – um planato diferente, mais branco,

suave e brilhante e nada feio ou frio. Caía água dos céus, água gelada, mesmo sobre si. Piscou

os olhos, abanando a cabeça. Estava de novo nos barracões, deitado no chão. Tinham-lhe

despejado um balde de água por cima. Tinham-lhe tirado a mordaça e Desapertado as toalhas.

Mesmo assim, apenas conseguia inspirar minúsculas golfadas de ar: Os pulmões haviam-se

habituado à constrição. Sentou-se: Saindo-lhe pequenos e vagarosos arquejos. Era de manhã.

Sobrevivera a mais uma noite.

Os passos arrastados dos prisioneiros ecoaram a seu lado, rosnavam em sinal de desdém,

a caminho do pequeno almoço. Os arquejos de Leo começaram a abrandar, tornando a respirar

normalmente. Estava sozinho nos barracões e perguntou-se se alguma vez se sentira tão só na sua

vida. Soergueu-se, tendo de se encostar à armação da cama para suportar o seu peso. Um guarda

chamou por ele, furioso por ter ficado para trás. Baixou a cabeça, dobrando-se para a frente,

incapaz de erguer os pés, arrastando-os ao longo da madeira suave, como se fosse patinador sobre

o gelo enfraquecido.

Quando entrou na zona administrativa, Leo deteve-se. Não seria capaz de aguentar mais

um dia de trabalho. Não seria capaz de aguentar uma terceira noite. Quebrantou-se-lhe o espírito

quando se lembrou das diversas torturas que testemunhara. Que viria a seguir? A miragem de

Timur era demasiado vaga para lhe dar alento. Os planos tinham falhado. Um guarda ali

próximo gritou:

— Toca a andar!

Leo tinha de improvisar. Estava por sua conta. Virando-se de frente para o gabinete do

comandante, gritou:

188

Page 189: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Comandante!

Constatando a violação das normas, os guardas precipitaram-se para ele. Lazar

observava do barracão do refeitório. Leo tinha de conseguir chamar a atenção do comandante

rapidamente:

— Comandante! Eu sei do Discurso de Khrushchev!

Os guardas alcançaram-no. Antes que pudesse dizer mais o que fosse, foi atingido nas

costas. Uma segunda cacetada atingiu-lhe o estômago. Baixou-se, encolhendo-se, à medida que

lhe descarregavam mais golpes.

— Parem!

Os guardas detiveram-se. Desdobrando-se, Leo ergueu a vista para os barracões

administrativos. O Comandante Sinyavksy estava parado no cimo dos degraus.

— Tragam-no cá.

189

Page 190: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Os guardas empurraram Leo apressadamente escada acima até ao gabinete. O

comandante recolhera-se num canto, junto a um fogão atarracado e bojudo. A divisão forrada a

toros fora decorada com mapas da região, fotografias emolduradas do comandante com os

prisioneiros a trabalhar – Sinyavksy de sorriso na boca, como se estivesse na companhia de

amigos, os rostos dos prisioneiros impassíveis. Havia sombras em torno das molduras,

denunciando que outras fotografias, de diferentes formas e tamanhos haviam sido recentemente

retiradas, substituídas por aquelas, numa troca apressada.

Envergando roupas andrajosas, o corpo mal-tratado, Leo estava corcuvado, a tremer

como um bezprizornik, uma criança de rua maltrapilha. Sinyavksy enxotou os guardas:

— Desejo falar com o prisioneiro a sós.

Os guardas entreolharam-se. Um deles disse:

— Este homem atacou-nos ontem à noite. Deveríamos ficar consigo.

Sinyavksy abanou a cabeça:

— Que disparate.

— Senhor, não fica seguro com ele.

Considerando o seu posto, o tom com que se lhe dirigiam era inapropriadamente

ameaçador. Era evidente que o poder do comandante estava a ser questionado. Dirigiu-se a Leo:

—Não me vai atacar, pois não?

Leo abanou a cabeça:

— Não, senhor.

— Não, senhor! Até se mostra educado. Agora, saiam: todos, vós. Eu insisto.

Os guardas retiraram-se, relutantemente, sem tentar esconder o seu desdém por aquele

tipo de brandura.

Depois de terem saído, Sinyavksy aproximou-se da porta, certificando-se que os guardas

já não estavam lá fora. Ouviu o ranger das suas passadas, à medida que desciam as escadas.

Seguro da privacidade, fechou o ferrolho da porta e dirigiu-se a Leo:

190

Page 191: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Sente-se, por favor.

Leo sentou-se na cadeira, posta diante da secretária. O ar estava quente e cheirava a

lascas de madeira. Leo queria dormir. O comandante sorriu:

— Deve ter frio.

Sem esperar por uma resposta, Sinyavksy aproximou-se do fogão. Em cima deste

encontrava-se uma pequena caçarola de ferro, na qual ele pegou, segurando pela pega, despejando

depois um liquido âmbar numa caneca de estanho, o mesmo tipo de canecas que haviam sido

usadas para o extracto de agulhas de pinheiro. Segurando na caneca pelo rebordo, ofereceu-a a

Leo:

— Cuidado.

Leo espreitou para a superfície fumegante. Levou-a aos lábios. O cheiro era doce. O

líquido sabia a mel derretido e flores silvestres, nenhuma das quais conseguia engolir: como as

primeiras chuvas caindo no leito de um rio disecado e rachado pela lama, os açúcares quente e o

álcool foram absorvidos num instante. O sangue subiu-lhe à cabeça. As suas faces coraram. A

divisão começou a girar. A sensação degenerou numa suave modorra intoxicada, a sensação de

uma canção de embalar, como se Leo tivesse engolido a felicidade sob a forma de um néctar.

Sinyavksy sentou-se diante dele, ao mesmo tempo que destrancava uma gaveta, retirando

do seu interior uma caixa de cartão. Depositou-a sobre a secretária diante deles. No topo lia-se:

INTERDITA A PUBLICAÇÃO

O comandante bateu no topo com os dedos.

— Sabe o que está lá dentro?

Leo assentiu:

— Sim.

— É um espião, não é?

Leo sentiu que não devia ter tomado aquela bebida. Os suspeitos esfaimados

costumavam ser embriagados, para soltarem a língua. Precisava de manter a vivacidade de

espírito. Era um erro do mais óbvio confiar na benevolência daquele homem. Quando entrara na

sala, tencionara revelar a sua verdadeira identidade, detalhando o seu profundo conhecimento da

191

Page 192: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

carreira do comandante, sustentada pelos nomes dos seus superiores. Tal alegação, vinda do

nada, apanhá-lo-ia desprevenido. O comandante quebrou o seu silêncio:

— Por favor, não tente pensar numa mentira. Eu sei a verdade. Está aqui para relatar

o progresso das nossas reformas? Como o seu amigo?

O coração de Leo subiu-lhe no peito.

— O meu amigo?

— Embora eu me esteja a esforçar para mudar, muitos nesta região não estão.

— O senhor sabe do meu amigo?

— Andam à sua procura, os dois oficiais que chegaram ontem à noite. Estão

convencidos de que veio mais do que um homem para os espiar.

— O que lhe aconteceu?

— O seu amigo? Executaram-no.

Leo desafroxou a mão com que apertava a borda da caneca, mas não a deixou cair no

chão. A força perdeu-se nas costas: sentiu a espinha tornar-se mole. Inclinou-se para diante, de

cabeça em baixo, fitando o soalho. O comandante continuou a falar:

— Temo que nos irão matar também. A sua explosão sobre o Discurso Secreto revelou a

sua identidade. Não o irão deixar sair daqui. Como viu, até conseguir um momento a sós

consigo não foi fácil.

Leo abanou a cabeça: Ele e Timur tinham sob-revido a situações inimagináveis. Não

podia estar morto. Deveria haver algum erro. Raisa sentou-se direito.

— Ele não está morto. Não estamos a falar do mesmo homem.

— O homem a que me refiro vinha a bordo do Stary Bolshevik. Devia vir para cá como

meu segundo-comandante. Essa era a história do disfarce. Foi enviado para elaborar um

relatório. Admitiu-o. Segundo disse, estava cá para nos avaliar. Por isso mataram-no. Não

irão permitir que os julgem. Nunca irão permitir tal coisa.

Timur devia ter inventado aquela história para poder vir para o campo, para tentar salvá-

lo. Nunca deveria ter pedido a ajuda de Timur. Leo estava tão preocupado em salvar Zoya que

não perdeu muito tempo a considerar os riscos que Timur enfrentaria. Minimizara-os, tão

convencido estava dos seus planos e capacidades. Quebrara uma família feliz na tentativa de

voltar a juntar uma família infeliz, arruinando uma coisa maravilhosa em busca do afecto de

Zoya. Começou a chorar quando interiorizou que Timur, o seu amigo, o seu único amigo – um

192

Page 193: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

homem amado pela sua mulher, pelos seus filhos, decente e leal, um homem que merecia viver

quando outros mereciam morrer, um homem que Leo tanto amava, estava morto.

Quando Leo voltou a erguer o olhar, viu que Zhores Sinyavksy chorava também. Leo

fitou descrente os olhos vermelhos e o brilho das lágrimas, as faces semelhantes a couro do velho

homem, e perguntou-se como é que um homem que construira uma ferrovia incompleta e inútil

com vidas de inocentes era capaz de chorar pela morte de um homem que nem sequer conhecia,

um homem por cuja morte ele não era responsável. Talvez chorasse por cada morte pela qual

nunca chorara, por cada vitima que perdera a vida na neve, ao sol, na lama, enquanto ele fumava

um cigarro, satisfeito por a sua quota ter sido alcançada. Leo enxugou os olhos, lembrando-se do

desdém de Lazar pelas suas lágrimas. Tinha razão. As lágrimas de nada serviam. Leo devia

mais a Timur. A morte nos campos significava que se desaparecia. Os corpos eram atirados para

valas comuns, abertas ao lado de canais ou linhas de comboios, ou deixados nas encostas da

montanha, ou na floresta. Se Leo não sobrevivesse, a mulher e os filhos de Timur nunca

saberiam da sua sorte. E Leo nunca teria oportunidade de lhes pedir perdão.

Os guardas estavam determinados a que ele nunca mais regressasse a Moscovo. Estavam

a proteger o seu feudo. Leo era um espião, odiado por ambos os lados – tanto prisioneiros como

guardas, sozinho, com excepção do comandante, um homem cuja mente parecia atormentada pela

culpa. Ele era, na melhor das hipóteses, um aliado imprevisível, que já não controlava o campo.

Como lobos, os guardas circundavam os barracões administrativos, esperando que ele emergisse.

Olhando em seu redor, a mente a girar de ideias, Leo avistou o altifalante sobre a mesa.

Estava ligado aos altifalantes montados em redor da zona.

— Pode falar para o campo inteiro?

— Sim.

Leo ergueu-se, pegando na caneca de estanho e enchendo-a até à borda com a bebida

âmbar quente. Entregou-a ao comandante:

— Beba comigo.

— Mas…

— Beba à memória do meu amigo.

O comandante engoliu a bebida de um trago. Leo tornou a encher.

— Beba à memória de todos aqueles que morreram aqui.

O comandante acenou, terminando a caneca. Leo tornou a encher:

— E a todas aquelas mortes inocentes no nosso país.

193

Page 194: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O comandante engoliu o restante álcool, limpando os lábios. Leo apontou para o

altifalante:

— Ligue-o.

— Porquê?

— Porque vai ler.

194

Page 195: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

No refeitório, Lazar reflectia sobre a decisão de Leo de se entregar à mercê do

comandante. Zhores Sinyavksy, um homem recentemente convertido à compaixão, poderia

ajudá-lo. Os outros prisioneiros estavam furiosos com a perspectiva de lhes ser arrancada a

justiça. Já haviam planeado uma terceira, uma quarta e uma quinta tortura – cada homem ansiava

avidamente pela noite em que Leo iria sofrer como eles haviam sofrido, quando pudessem ver no

seu rosto a dor por que haviam passado e ele gritaria por misericórdia e eles teriam a hipótese há

muito sonhada de dizer:

Não

Quanto à história de Leo sobre a sua mulher – Anisya – afectara-o. Mas os vory

presentes nos barracões haviam-lhe assegurado que era impossível uma mulher que em tempos

entoara hinos, limpara e cozinhara, pudese chegara a líder do seu próprio gangue. Leo era um

mentiroso. Desta vez, Lazar não seria enganado.

Os altifalantes no exterior emitiram uma estática sibilante. Embora não passasse de um

ruído de fundo, a sua rotina diária era tão rígida e constante que Lazar estremeceu aquando esta

ocorrência fora do normal. Levantou-se, contornou a massa de prisioneiros que tomavam o

pequeno-almoço, e abriu a porta.

Os altifalantes estavam instalados em postes altos de madeira, um por cima de cada

barracão prisional e um na zona administrativa, situadoo diante dos barracões da cozinha e do

refeitório. Raramente eram usados. Um punhado de prisioneiros curiosos reuniram-se atrás de si,

incluindo Georgi, a sua voz, que nunca saía do seu lado. Os olhos fitaram o altifalante decrépito,

gasto pelos ventos, torto. Um cabo enrolado em torno do poste alcançava o chã congelado, de

onde corria até ao gabinete do comandante. A estática sibilou novamente, convertendo-se depois

na voz metálica do comandante. Parecia inseguro:

— Relatório especial…

195

Page 196: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Pausou, depois recomeçou, mais alto desta feita:

— Relatório especial do Vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética.

Sessão a portas fechadas. 25 de Fevreiro de 1956. Por Nikita Sergeyevich Khrushchev, Primeiro

Secretário.

Lazar desceu os degraus, encaminhando-se para o altifalante. Os guardas tinham deixado

o que estavam a fazer. Após um instante de confusão, murmuraram entre eles, claramente

desinformados da intenção do comandante. Um pequeno grupo de guardas afastou-se,

marchando para os barracões administrativos. Entretanto, o comandante continuou a ler em voz

alta. Quanto mais ele lia, mais os guardas se agitavam.

— O que aconteceu durante a vida de Estaline, que praticava uma violência brutal, não

apenas face a tudo o que lhe era oposto, como também face a tudo aquilo que parecia, ao seu

carácter caprichoso e despótico, contrário às suas ideias.

Apressadamente, os guardas subiram as escadas, batendo com força na porta, chamando

com urgência pelo comandante, tentando determinar se agia sob coacção. Um gritou, com uma

seriedade simplória:

— Foi feito refém?

A porta permaneceu fechada. No interior, longe da vista, o comandante ignorava as suas

preocupações. Não pareceu a Lazar que estivesse a ler sob coacção. A sua voz assumia o papel,

apoderando-se das extraordinárias palavras:

— Estaline criou o conceito Inimigo do Povo. O termo tornou possível o uso da mais

cruel repressão, violando todas as normas da legalidade revolucionária, contra todos aqueles

que discordassem dele...

Lazar inclinou a cabeça para o altifalante, de boca aberta, numa incredulidade, como se

um milagrre celestial estivesse a ser realizado no céu.

A inteira população da prisão abandonou o pequeno-almoço, ou veio de malga na mão,

reunindo-se em torno daquele único altifalante, um vasto nó, a olhar para cima, hipnotizada pelas

palavras crepitantes. Tratava-se de críticas ao Estado. Tratava-se de críticas a Estaline. Lazar

nunca ouvira nada semelhante antes, não daquela forma, palavras que não eram murmuradas

entre dois amantes, nem por dois prisioneiros deitados em beliches. Aquelas palavras eram de

um líder, palavras que tinham sido ditas em voz alta no congresso, transcritas, impressas e

encadernadas, distribuídas nos lugares mais longínquos do país:

196

Page 197: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Como é que uma pessoa confessa crimes que não cometeu? Só há uma forma: A

aplicação de tortura, levando a pessoa a um estado de inconsciência, privação do seu juízo,

levando a sua dignidade humana.

O homem ao lado de Lazar pôs um braço à sua volta. O prisioneiro a seu lado fez o

mesmo e em breve todos os prisioneiros estavam ligados, de braços por cima dos ombros.

Lazar tentou não prestar atenção aos guardas, concentrando-se no discurso, mas foi

distraído pelo seu dilema – estavam a tentar decidir se haviam de impedir o comandante de

continuar a ler, ou impedir os prisioneiros de ouvir. Decidindo que era mais fácil lidar com um

só homem, em lugar de mil, batiam com os punhos na porta, ordenando ao comandante que

parasse imediatamente. Construída para aguentar as condições do ártico, a porta era feita de toros

grossos. As pequenas janelas possuíam portadas. Não havia forma de entrar. Deseperado, um

dos guardas disparou a metralhadora, as balas estilhaçaram-se em vão na madeira. Não abriu a

porta, mas alcançou o resultado pretendido. A leitura cessara.

Lazar sentiu o silêncio como uma perda. E não era o único. Zangados por o discurso ter

sido interrompido, os prisioneiros à sua esquerda e direita começaram a bater com os pés no solo,

e rapidamente juntaram-se-lhes outros, todos, mil pernas a subir e a descer, batendo no solo

gelado:

— Mais! Mais! Mais!

A energia do protesto era irresistível. Pouco depois o seu pé também batia pesadamente

no chão marcando o compasso de:

— Mais!

#

Leo e o comandante ouviram o alvoroço lá fora. Sem poderem arriscar-se a abrir as

portadas, com medo de que os guardas disparassem sobre eles, não conseguiam ver o que se

estava a passar. Nem precisavam. As vibrações das botas a embaterem no solo viajaram através

das tábuas do soalho. O som dos gritos de protesto trespassaram as grossas paredes:

— Mais! Mais! Mais!

Sinyavksy sorriu, colocando a mão no peito, tocado, parecendo interpretar a resposta dos

presos como uma afirmação do seu carácter reformado. Amavam o que ele dizia. Queriam mais.

197

Page 198: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O ambiente no campo era volátil, exactamente como Leo pretendia. Fez sinal para as

páginas do discurso que ele escolhera apressadamente, condensando o documento, comprimindo-

o numa série de admissões chocantes. Entregou a próxima página ao comandante. Sinyavksy

abanou a cabeça:

— Não.

Leo foi apanhado de surpresa:

— Porquê parar agora?

— Quero proferir o meu próprio discurso. Fui…inspirado.

— O que é que vai dizer?

Com uma pompa enigmática, o comandante respondeu:

— A verdade.

Sinyavksy levou o alti-falante junto da boca, dirigindo-se ao Gulag 57:

— O meu nome é Zhores Sinyaksy. Conhecem-me como o comandante deste Gulag, onde

trabalhei durante muitos anos. Aqueles que chegaram recentemente pensarão que sou um bom

homem, correcto, justo e generoso.

Leo duvidou que assim fosse. Contudo, tentou parecer empenhado e convencido por

aquelas declarações. O comandante estava a tratar o seu discurso com absoluta seriedade.

— Aqueles que estão cá há mais tempo, não me julgarão de forma tão amável.

Acabaram de ouvir Khrushchev admitir os erros cometidos pelo Estado, admitindo os actos de

crueldade de Estaline. Quero seguir o exemplo do nosso líder. Quero admitir os meus próprios

erros.

Ao ouvir a palavra – seguir –, Leo questionou-se se o comandante era guiado por culpa

ou por uma vida de obediência inquestionável. Seria redenção ou imitação? Se o Estado

regressasse ao terror, poderia Sinyaksy regressar à brutalidade com a mesma subitaneidade que

abraçara a clemência?

— Fiz coisas das quais não me orgulho. Chegou a hora de pedir o voso perdão.

Leo compreendeu que a força de tal confissão poderia ser ainda maior do que as

admissões de Khrushchev. Os prisioneiros conheciam aquele homem. Conheciam os prisioneiros

que ele matara. Os gritos e batidas no solo pararam. Estavam à espera da sua confissão.

#

198

Page 199: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Lazar reparou que até os guardas haviam parado de tentar arrombar a porta, esperando

pelas próximas palavras. Depois de uma pausa, a voz metálica de Sinyaksy, ressoou através do

campo:

— Arkhangelsk, a minha primeira nomeação: Fui incubido de supervisionar os

prisioneiros que trabalhavam na floresta. Tinham de cortar as árvores, preparando a madeira

para o transporte. Era novo. Estava nervoso. As minhas ordens eram recolher uma quantidade

fixa de madeira todos os meses. Nada mais interessava. Tinha norms, tal como todos vós.

Passado uma semana, descobri que um prisoneiro fazia batota para poder cumprir a sua norm.

Se não o tivesse apanhado, a minha contagem seria curta e teria sido acusado de sabotagem.

Portanto, como vêem…era uma questão de sobrevivência, nada mais. Não tive escolha. Fiz dele

um exemplo. Foi despido, amarrado a uma árvore. Era Verão. Ao pôr-do-sol o corpo dele

estava negro dos mosquitos. Na manhã seguinte, estava inconsciente. Ao terceiro dia estava

morto. Ordenei que o corpo dele ficasse na floresta como sinal de aviso. Durante vinte anos,

nunca mais pensei naquele homem. Recentemente, penso nele todos os dias. Não me recordo do

seu nome. Não sei se alguma vez soube o seu nome. Recordo-me que era da minha idade, nessa

altura. Eu tinha vinte anos.

Lazar notou como o comandante moderava honestidade com qualificações.

Não tive escolha.

Com essas palavras, milhares haviam morrido, não pelas balas mas pela lógica perversa e

raciocínio cuidadoso.

Quando Lazar voltou a sua atenção para o discurso, o comandante já não falava sobre a

sua carreira nas florestas de Arkhangelsk. Discutia agora a sua promoção para as minas de sal de

Solikamsk. O comandante prosseguiu:

— Nas minas de sal, como medida de eficiência, ordenei aos homens que dormissem em

subterrâneos. Como não tinha de mover os homens para cima e para baixo no final de cada

turno, poupei milhares de horas de trabalho preciosas, beneficiando o nosso Estado.

Os prisioneiros abanaram as cabeças, imaginando as condições desse inferno subterrâneo:

— O meu propósito era descobrir novas formas de trazer lucros ao nosso Estado! Que

posso eu dizer? Se não tivesse pensado nisso, o meu oficial subalterno poderia tê-lo proposto e

199

Page 200: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

eu teria sido castigado. Aqueles homens precisavam mais de luz do dia do que o Estado de sal?

Quem tinha autoridade para apresentar tal argumento? Quem se atreveria a falar por eles?

Um dos guardas, um homem que Lazar nunca tinha visto antes, avançou na direcção

deles, brandindo uma faca. Iam cortar o cabo e acabar com o discurso. O guarda sorria, satisfeito

com a sua solução:

— Saiam do caminho.

O prisioneiro mais avançado deu um passo em frente, postando-se em cima do cabo,

bloqueando a passagem do guarda. Um segundo preso juntou-se-lhe, e depois um terceiro e um

quarto, impedindo-o de alcançar o cabo. Sorrindo ameaçadoramente, como que a dizer que se

lembraria daquilo mais tarde, o guarda avançou para outro pedaço de fio. Reagindo, os presos

avançaram rapidamente, enchendo o espaço, protegendo o cabo. O nó de presos tomou nova

forma até haver uma densa fila postados lado a lado, estendendo-se desde o poste de madeira

onde se encontrava o alti-falante até à base dos barracões administrativos. A única forma de o

guarda alcançar o cabo era rastejando debaixo dos barracões, algo que o seu orgulho o impedia de

fazer.

— Saiam do caminho.

Os presos não se mexeram. O guarda virou-se para enfrentar as duas vakhta, as torres

fortificadas com vista para o campo. Acenou aos disparadores, apontando para os presos antes de

se afastar apressadamente.

Abriram fogo. Em uníssono, os presos caíram de joelhos. Lazar olhou em redor,

esperando ver mortos ou feridos. Ninguém parecia ter ficado ferido. Os disparos deviam ter sido

apontados por sobre as suas cabeças, atingindo o flanco dos barracões, um disparo de aviso.

Lentamente, todos se levantaram. Vozes nas traseiras gritaram:

— Precisamos de ajuda!

— Tragam o feldsher!

Lazar não conseguiu ver o que se estava a passar. Os gritos pelo médico continuaram.

Mas ninguém apareceu. Os guardas nada fizeram. Em breve os gritos pararam – já ninguém

gritava por ajuda. As explicações correram como uma onda pela multidão. Um preso morrera.

Sentindo o ambiente esombrecer, o guarda guardou a faca e puxou da pistola. Disparou

para o alti-falante, falhando diversas vezes, até finalmente acertar. Faiscou e crepitou, caindo em

silêncio. Os restantes quatro alti-falantes na zona prisional ainda estavam a f uncionar, mas

200

Page 201: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

encontravam-se a alguma distância: a voz do comandante reduziu-se a um ruído de fundo,

praticamente inaudível. De arma puxada, o guarda anunciou:

— Regressem aos barracões! E mais ninguém morre!

A ameaça era mal julgada.

Apanhando o cabo do chão, um dos prisioneiros precipitou-se para diante, enrolando-o à

volta do pescoço do guarda, estrangulando-o. Os prisioneiros circundaram a luta. Os outros

guardas correram para intervir. Um dos presos agarrou na pistola, disparando. Um guarda caiu,

ferido. Os outros puxaram as armas, convertendo-se num esquadrão de execução, disparando à

vontade.

Os presos dispersaram. Uma compreensão invadiu-os instantaneamente. Se os guardas

ganhassem controlo, as represálias seriam selváticas, fossem quais fossem os discursos proferidos

em Moscovo. Nesse momento, ambas as torres abriram fogo.

#

O comandante ainda estava a falar, relatando pormenorizadamente confissão sangrenta

após confissão sangrenta, aparentemente alheado dos disparos no exterior. A sua mente entrara

em colapso: sob Estaline o seu carácter havia sido puxado com extrema força numa direcção e

agora estava a ser puxado na exacta direcção contrária. Não tinha resistência, não fazia ideia de

quem era realmente, nem um homem bom nem um mau, apenas um homem fraco.

Deixou que o comandante prosseguisse e abriu a portada, olhando cautelosamente para o

exterior. Os prisioneiros rebelados corriam em todas as direcções. Jaziam cadáveres na neve.

Medindo as forças em ambos os lados, Leo calculou uma proporção de um guarda para cada

quarenta presos, uma proporção elevada, que explicava em parte por que era tão dispendioso

administrar os campos – o trabalho forçado não conseguia recuperar os custos de manter os

presos alimentados, alojados, transportados e escravizados. Uma despesa fulcral eram os

guardas, que recebiam um prémio por trabalhar em tão remotas regiões. Era por essa razão que

matavam, que se agarravam à sua autoridade. Não tinham vidas para as quais regressar, nem

família, nem vizinhos que os quisessem. Nenhuma comunidade fabril os aceitaria. A sua

prosperidade dependia daqueles presos. A luta podia ser igualmente desesperada em ambos os

lados.

201

Page 202: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Houve o clarão de um disparo vindo de uma das torres – a janela estilhaçou-se. Leo

baixou-se, os vidros caíam em torno de si, as balas atingiam as tábuas do soalho. Seguro atrás

das grossas paredes de toros, Leo ergeu lentamente os braços, tentando fechar as portadas. A

madeira partiu-se numa chuva de lascas. A divisão estava exposta. Na secretária, o equipamento

dos alti-falantes, atingido pelas balas num rodopio, foi levantado no ar, girando, antes de embater

no chão com estrépito. Sinyavksy caiu para trás, enrolado numa bola. Por cima do barulho, Leo

gritou:

— Tem uma arma?

Os olhos de Sinyavksy apontaram para o lado. Leo seguiu-os para uma caixa de madeira

arrumada a um canto, fechada a cadeado. Levantou-se, correndo na sua direcção, apenas para

encontrar o comandante a correr para lhe bloquear a passagem, de mão erguidas:

— Não!

Leo empurrou o comandante para o lado, pegou num candeeiro de metal que se

encontrava sobre a secretária, e bateu com a base pesada no cadeado, esmagando-o. Com um

segundo golpe, o cadeado partiu-se, e ele tirou-o da caixa. O comandante tornou a saltar para a

frente, atirando-se sobre a caixa:

— Peço-lhe…

Leo afastou-o, abrindo a portinhola.

No interior parecia não haver mais do que uma colecção de bugigangas. Havia

fotografias emolduradas. Mostravam o comandante postado orgulhosamente junto a um canal.

Havia presos macilentos trabalhando ao fundo. Leo supôs que aquelas eram as fotografias que

inicialmente estavam penduradas na parede do gabinete. Atirou-as para o lado, enfiando as mãos

entre dossiês, certificados, condecorações e cartas congratulando Sinyanksy por alcançar a quota

– os detritos da sua grande carreira. No fundo achava-se uma espingarda de caça. O cabo exibia

entalhes, vinte e três mortes. Certamente aqueles entalhes não se referiam a lobos ou ursos, Leo

carregou a espingarda com balas grossas, do comprimento de dedos, regressando à janela.

As duas torres principais, as vakhta, eram estrategicamente cruciais, contruidas sobre

estacas altas de madeira. Os guardas já tinham recolhido as escadas, impossibilitando que

alguém escalasse até às suas posições. Protegido atrás de grossas paredes de toros, o cimo de

cada torre alojava metralhadoras montadas num pódio, capazes de disparar centenas de rajadas

por minuto, um poder de fogo colectivo muito maior do que qualquer coisa situada no solo. Leo

tinha de desviar os seus disparos dos prisioneiros. Apontou para a torre mesmo adiante. Era

202

Page 203: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

impossível fazer um disparo suficientemente preciso para penetrar no buraco das paredes de

toros. Disparou duas vezes, estremecendo com o potente rechaço da espingarda. Pararam de

disparar sobre os prisioneiros, desviando a salva de balas na sua direcção.

Agachando-se, aninhado junto ao chão, Leo deitou um olhar a Sinyavksy. Ele estava no

canto, lendo as restantes páginas do Discurso Secreto, calmamente, como se não se passasse

nada, enquanto o seu gabinete estava a ser destroçado por fogo cerrado. Ergueu os olhos para

Leo, lendo um excerto:

— Que o meu grito de horror alcance os vossos ouvidos: não permaneçam surdos,

ajudem-me; por favor, ajudem-me a acabar com o pesadelo dos interrogatórios e a mostrar que

tudo isto é um erro terrivel!

Sinyavksy ergueu-se, repetindo as últimas palavras:

— Tudo isto é um erro terrível!

Leo gritou-lhe:

— Baixe-se!

Uma bala acertou-lhe no ombro. Incapaz de o ver morrer, Leo saltou para trás, deitando o

comandante ao chão. Quando aterrou no solo com os joelhos feridos, quase desmaiou de dor.

Sinyavksy murmurou:

— Esse discurso salvou-me a vida.

Leo sentiu o cheiro de fumo. Deitou-se de costas, de forma a retirar a pressão dos

joelhos. Ergeu-se, caminhou agachado até à janela. Já não havia fogo cerrado. Através da janela

partida, perscrutou a zona e avistou a origem do fumo. Mesmo por baixo do chão da cabine havia

fogo, chamas imensas trepando a estrutura. Tinham rolado barris de gasóleo para debaixo da

cabine, ateando-lhes fogo: a guarita queimava como um pedaço de carne na ponta de um espeto.

Para os homens que se encontravam lá dentro não havia escapatória possível. Como não podiam

descer pela escada, os guardas tentavam esgueirar-se por entre o buraco nas paredes de toros.

Porém, este era demasiado estreito: um dos homens estava preso, entalado, sem poder ir para a

frente ou para trás quando o fogo pegou. Os gritos eram aterradores.

A segunda torre tentava proteger-se de um destino idêntico: Disparando sobre os presos

que carregavam material para fazer uma fogueira. Porém eram muitos condenados, precipitando-

se de todas as direcções. Uma vez debaixo, a única coisa que os guardas da torre podiam fazer

era esperar. Um novo fogo foi ateado. Depois de ambas as torres terem sido derrotadas, o

equilíbrio do poder mudou. Os presos tinham agora o controlo sobre o campo.

203

Page 204: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Um machado tanchou-se na porta do gabinete do comandante, um segundo golpe e um

terceiro, a ponta metálica espetada na madeira. Antes que pudessem entrar, Leo baixou a

espingarda e destrancou a porta, recuando, de braços no ar, mostrando que se rendia. Uma

pequena força de presos penetrou em alvoroço na divisão, brandindo facas, armas e barras

metálicas. O homem que os chefiava, observou os captivos:

— Tragam-nos cá para fora.

Os presos agarraram Leo pelos braços, empurrando-o degraus abaixo, juntando-o aos

guardas que haviam sido capturados. Maltratados e ensanguentados, estavam sentados na neve

vendo as duas vakhta arder. Colunas de fogo elevaram-se, bloqueando um grande retalho do céu,

anunciando a sua revolução à inteira região.

204

Page 205: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

De semblante enrugado, Malysh estudou a lista escrita à mão. Segundo lhe havia sido

dito, nela constavam os nomes dos homens e mulheres que Fraera planeava assassinar. Como

não sabia ler, a lista aparecia-lhe aos olhos como uma mera colecção de símbolos ininteligíveis.

Até muito recentemente, o facto de não saber ler nem escrever nunca o incomodara; sendo apenas

capaz de reconhecer as letras do seu klikukha, era um tudo-nada mais letrado que um cão que

reconhece o chamamento do seu nome. Por essa razão, aquando da sua iniciação, tivera

suficiente esperteza para insistir que nenhuma das suas tatuagens contivesse palavras, por medo

de que os companheiros explorassem a sua ignorância e lhe marcassem o corpo com algum tipo

de insulto. Embora fosse proibido criar uma falsa tatuagem, uma mentira aberta, sob pena de

morte, tal regra poderia não bastar para impedir que os outros se divertissem às suas custas, e o

apelidassem de picha pequena em lugar de pequeno rapaz. Graças à sua astúcia, conseguira

esquivar-se ao problema. Fora sempre capaz de arranjar uma maneira de contornar os problemas.

Era um rapaz inteligente. Não precisava de um certificado ou de um diploma que o atestassem.

Não precisava de ler ou escrever. Para que lhe serviriam tais capacidades? De resto, também não

esperava que um professor fosse capaz de arrombar um cadeado ou de atirar uma faca. Por que

haveria alguém de esperar que um ladrão soubesse ler? Embora este raciocionio ainda lhe fizesse

sentido, algo mudara. Dentro de si crescia um embaraço, um embaraço que começara a crescer

desde que Zoya lhe pegara na mão.

Ela não podia saber que ele era analfabeto. Talvez presumisse o pior, e o visse como um

bandidozeco qualquer, viciado em chiffr. Aliás, não lhe importava. Ela devia estar mais

preocupada se ele lhe iria cortar a garganta do que a julgá-lo. Era uma parvoíce sua,

macaquinhos no sótão. Respirou fundo e tornou a fixar a sua atenção nos nomes diante de si – os

chequistas reformados. Sabia do que ouvira de Fraera que a lista continha nomes, moradas e uma

descrição dos crimes de cada indivíduo – quer se tratasse de um investigador, interrogador ou um

informador. Correu com o polegar sujo por sobre cada linha, conseguiu identificar a coluna onde

se encontravam os seus nomes: era a coluna com menos palavras; a coluna com os números era

a das moradas; e, por dedução, a coluna final, que continha mais palavras, deveria ser a descrição

205

Page 206: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

dos crimes que haviam cometido. Quem é que ele estava a tentar enganar? Aquilo não era ler.

Nem nada que de longe se parecesse. Atirou a lista para o chão e pôs-se a andar de um lado para

o outro no túnel de esgotos. Era tudo culpa dela – daquela rapariga; ela era a razão por que se

sentia assim. Desejou nunca mais a ver.

Sem saber muito bem o que ia fazer, correu ao longo do túnel, entrando na caverna fétida

do bando. De acordo com Fraera, ocupavam as ruinas de uma antiga biblioteca, a biblioteca

perdida de Ivan, o Terrível, que em tempos guardara a inestimável colecção de pergamninhos

Bizantinos e Hebraicos. Um iliterado escondido numa biblioteca – a ironia nunca lhe ocorrera

antes, não antes de Zoya chegar. Quer fosse uma antiga biblioteca ou não, considerava que a base

do bando não passava de uma rede de câmaras de pedra feias e húmidas. Evitou os outros, que,

como sempre, estavam a beber, e encaminhou-se silenciosamente para a cela de Zoya.

Pegou no banco e pôs-se em cima dele, espreitando por entre as barras. Zoya dormia a

um canto, enrolada sobre o colchão. Havia uma lanterna suspensa do tecto – como estava longe

do seu alcance, alumiava permanentemente a cela, sujeitando-a a um constante escrutínio. A

raiva de Malysh alterou-se de imediato. Os seus olhos deambularam-lhe pelo corpo, vendo-a

dormir, o ritmo lento do seu peito subindo e descendo. Embora fosse um vory, nunca tinha

estado com uma mulher. Assassinara pessoas mas nunca tivera sexo, uma fonte de grande

divertimento para os outros. Costumavam arreliá-lo, dizendo que se não começasse a dar uso à

gaita iria infectar e cair, e ele não passaria de uma menina. Depois da sua iniciação, tinham-no

levado a uma prostituta, empurrando-o para dentro do quarto e fechando a porta, ordenando-lhe

que crescesse. A mulher estava sentada na cama, entediada, nua, a pele dos braços e pernas

repleta de borbulhas. Estava a fumar um cigarro – na ponta um longo coto de cinza dependurado

– e tudo em que Malysh conseguia pensar era se a cinza quente lhe iria cair em cima do peito.

Quebrou a cinza no chão e perguntou-lhe por que esperava, acenando para o meio das pernas.

Ele desafivelou o cinto e tirou-o; mas depois voltou a pô-lo, dizendo-lhe que não queria ter sexo,

que ela podia ficar com o dinheiro, desde que não contasse nada aos outros. Ela encolheu os

ombros, disse-lhe que se sentasse, iam esperar cinco minutos e depois podia ir; de qualquer

forma, ninguém acreditaria que aguentasse mais do que isso. Esperaram os cinco minutos.

Sentou-se na cama e depois saiu. Quando ia a percorrer o corredor, preparando a mentira que

havia de contar, ela gritou aos outros que tinham razão. Acobardara-se. Os vory riram-se alto

como bruxas. E até Fraera parecera desapontada com ele.

206

Page 207: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Ao ouvir alguém atrás de si, Malysh virou-se bruscamente, puxando da faca. Agarraram-

lhe na mão, seguraram-lhe nos dedos e tiraram-lhe a faca. Depois de fechar a lâmina e de lhe

devolver a faca, Fraera inclinou-se sobre o seu ombro, espreitando para o interior da cela:

— É bonita, não é?

Malysh não respondeu. Fraera baixou os olhos para ele:

— Não é costume surpreenderem-te, Malysh.

— Estava a controlar a prisioneira.

— A controlar?

Corou. Fraera pôs-lhe um braço em volta e acrescentou:

— Quero que ela te acompanhe no teu próximo trabalho.

Malysh ergueu os olhos para Fraera.

— A prisioneira?

— Usa o nome dela.

— Zoya.

— Ela tem mais razões do que muita gente para odiar os chequistas. Eles assassinaram-

lhe os pais.

— Ela não sabe lutar. É inútil. Não passa de uma rapariga.

— Eu também não passava de uma rapariga.

— Mas a senhora é diferente.

— E ela também é.

— Ela pode tentar escapar. Pode pôr-se a gritar por socorro.

— Por que não lhe perguntas? Ela está a ouvir.

Houve um silêncio. Fraera gritou para o interior da cela:

— Sei que estás acordada.

Zoya sentou-se na cama, encarando-os. Seguidamente, disse-lhes:

— Eu não disse que não estava.

— Tenho uma proposta para uma jovem rapariga corajosa. Queres acompanhar Malysh

na sua próxima missão?

Zoya fitou-o, incrédula:

— Para fazer o quê?

Fraera respondeu:

— Para matar um chequista.

207

Page 208: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Kolyma

Gulag 57

No mesmo dia

As duas vakhta tinham-se desmoronado em dois montes ardentes de destroços, um

amontoado de madeira queimada, reduzido a brasas vermelhas e uma ou outra chama

tremeluzente. Colunas de fumo ondulavam no céu nocturno, transportando consigo as cinzas de

pelo menos oito guardas: o seu último feito na terra consistiu em encobrir uma faixa de estrelas,

antes de se espalharem ao longo do planato. Os guardas do Gulag que tinham caído, aqueles que

haviam sido mortos longe da armadilha de fogo na vakhta, estavam estendidos onde tinham

morrido, dispersos pelo campo. Um dos corpos estava dependurado de uma janela. A ferocidade

com que fora morto sugeria que fora um homem particularmente perverso no cumprimento dos

seus deveres – depois de ser perseguido por presos revoltados, acabara por ser apanhado,

espancado e apunhalado, enquanto tentava desesperadamente saltar pela janela. O seu corpo fora

ali deixado, suspenso por sobre o peitoril da janela, como uma bandeira do seu novo império.

Os guardas, e restante pessoal do Gulag, que havia sobrevivido, cerca de cinquenta ao

todo, tinham sido reunidos no centro da zona administrativa. A maior parte estava ferida. Sem

cobertores ou tratamento médico, apinhados na neve, a sua dor, fome e desconforto foi acolhida

com indiferença, uma lição que os presos aprenderam bem. Aquando da avaliação do ambiguo

estatuto de Leo, haviam-no classificado como uma guarda, em lugar de um preso, e haviam-no

obrigado a sentar-se, tremelicando de frio, ao mesmo tempo que observava o desmoronamento

das velhas estruturas de poder e a formação de novas.

Tanto quando podia perceber, havia três líderes não eleitos, homens cuja autoridade se

havia estabelecido no interior do microcosmo dos seus barracões. Cada um deles tinha o seu

próprio bando de seguidores, definidos distintamente. Lazar era um desses líderes. Aqueles que

o seguiam eram velhos presos, os religiosos, intelectuais presos, artifices – os jogadores de

xadrez. O segundo lider era um jovem, atlético, bonito, porventura um eis trabalhor fabril – o

soviete perfeito, e contudo ali encarcerado. Os seus seguidores eram mais jovens, fortes, homens

de acção. O terceiro lider era um vory. Rondaria talvez os seus quarenta anos, de olhos finos e

dentes entalhados, um sorriso de tubarão. Apoderara-se do casaco do comandante. Como lhe

208

Page 209: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

ficava demasiado comprido, arrastava-o pela neve como um manto imperial. Os seus seguidores

eram os outros vory: ladrões e assassinos. Três grupos, cada um deles representado pelo seu

próprio líder, cada um deles com pontos de vista concorrentes. Os embates de opiniões foram

imediatos. Lazar, representado por Georgi, o ruivo, aconselhou caução e ordem:

— Temos de estabelecer pontos de vigia. Temos de pôr homens armados ao longo do

perímetro.

Depois de muitos anos de prática, Georgi tornara-se capaz de falar ao mesmo tempo que

ouvia Lazar:

— Além do mais, temos de proteger e raccionar as nossas provisões de alimentos. Não

podemos perder a cabeça. É preciso haver ordem.

O operário de queixo quadrado, como que recortado de uma peça de propaganda,

discordou:

— Temos direito a toda a comida a que conseguirmos deitar a mão e a toda a bebida que

encontrarmos como compensação pelos salários perdidos, como recompensa por termos ganho a

liberdade!

O vory que envergava o casaco de pêlo de veado fez uma única exigência:

— Depois de uma vida inteira de regras, a desobediência deve ser tolerada.

Havia um quarto grupo de presos, ou antes um não-grupo, indivíduos que não seguiam

qualquer líder, intoxicados de liberdade, alguns correndo como cavalos selvagens, saltando de

barracão em barracão, explorando, bramindo com prazes indeterminados, enlouquecidos quer

pela violência, quer com uma loucura perene que finalmente podiam expressar. Alguns deitaram-

se a dormir nas confortáveis camas dos guardas: a liberdade para eles era a possibilidade de

poderem fechar os olhos quando estavam cansados. Outros estavam drogados com morfina, ou

bêbados com a vodca dos seus eis captores. Rindo-se, estes homens cortavam tiras das cercas de

arame, convertendo o odiado arame farpado em ornamentos com os quais decoravam os guardas

que em tempos os haviam controlado, enfiando-lhes coroas de arame farpado nas cabeças, ao

mesmo tempo que os apelidavam escarnecedoramente de filhos de Deus, e gritavam:

— Crucifiquem os filhos da mãe!

Enquanto testemunhava a anarquia que em seu torno orbitava, Lazar insistiu no seu

argumento, sussurando-a a Georgi, que o repetiu:

— Temos de proteger os mantimentos com urgência. Um homem esfomeado consome-se

até à morte. Temos de parar de cortar o arame. Serve-nos de protecção às forças que

209

Page 210: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

inevitavelmente irão chegar. Não podemos aconselhar liberdade absoluta. Não iremos

sobreviver.

A julgar pela reacção velada do vory que envergava o capote do comandante, grande

parte da pilhagem já tinha sido feita. Os recursos mais preciosos já se encontravam nas mãos do

seu grupo.

O operário de maxilar quadrado, cujo nome Leo não conhecia, concordou em que fossem

tomados alguns passos propostos, medidas práticas, desde que tratassem da premente questão dos

castigos dos guardas capturados:

— Os meus homens querem que seja feita justiça! Tem de ter justiça imediatamente!

Esperaram anos! Sofreram! Não podem esperar nem mais um momento!

Falou em slogans, cada frase terminava num ponto de exclamação. Embora Lazar

estivesse relutante, e preferisse adiar as medidas práticas, aceitou para ganhar apoio. Os guardas

foram levados a julgamento. Leo foi levado a julgamento.

#

Um dos seguidores de Lazar tinha sido advogado, na sua vida passada, como a ela se

referiu, e assumiu um papel proeminente no estabelecimento do tribunal no qual Leo e os outros

seriam julgados. Ideou o sistema com deleite. Depois de anos de servidão submissive, o

advogado estava encantado em regressar a um tom de autoridade e perícia, um tom que ele

considerava natural em si:

— Concordámos que apenas os guardas serão julgados. O pessoal medico e os eis

presidiários que agora trabalham para a administração do Gulag ficam dispensados.

A proposta foi aceite. O advogado prosseguiu:

— Os degraus que conduzem ao gabinete do comandante irão servir-nos de estrado do

tribunal. O guarda sera conduzido ao degrau de baixo. Nós, homens livres, iremos mencionar

exemplos da sua brutalidade. Se um incidente for considerado válido, o guarda subirá um

degrau. Se o guarda alcançar o degrau de cima, será executado. Se não alcançar, mesmo que

alcancem o penúltimo degrau e não lhe puderem ser imputados mais crimes, o guarda terá

licença para descer as escadas e sentar-se.

210

Page 211: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo contou os degraus. Eram treze ao todo. Como começavam no degrau de baixo,

precisariam de doze crimes para alcançar o topo: doze para morrer, onze ou menos para se

manterem vivos.

O advogado baixou a voz, entoou uma gravidade deliberada e chamou:

— Comandante Zhores Sinyavksy.

Sinyavksy foi conduzido ao primeiro degrau e encarou o tribunal. Tinham-lhe ligado o

ombro de forma tosca, estancando a hemorragia para que se mantivesse vivo tempo suficiente

para encarar a justiça. Estacou de braço caído, inutilmente. Apesar disso, sorria como uma

criança numa peça de teatro escolar, procurando um rosto amigável entre os presos ali reunidos.

Não havia um único representante de defesa ou acusação: ambos os lados eram debatidos pelos

presos ali reunidos. O julgamento era colectivo.

Quase imediatamente elevou-se um coro de vozes. Houve insultos, exemplos dos seus

crimes, numa sobreposição de vozes quase ininteligível. O advogado ergueu os braços, pedindo

silêncio:

— Um de cada vez! Levantam a mão, eu aponto, e depois falam. Toda a gente terá

direito a falar.

Apontou para um dos presos, um velho. O preso deixou-se ficar de mão no ar. O

advogado notou:

— Já pode baixar a mão. Pode falar.

— A minha mão é a prova deste crime.

Tinham-lhe sido cortados dois dedos pelo nó, cotos escurecidos.

— Queimados pelo frio. Não tinha luvas. Cinquenta graus abaixo de zero: o frio era

tanto que se se cuspisse, o cuspo transformava-se em gelo antes de chegar ao chão. E mesmo

assim mandou-nos lá para fora, em condições que nem o cuspo se aguentava! Mandou-nos lá

para fora! Dia após dia, após dia! Dois dedos, dois degraus!

Toda a gente apladiu em sinal de concordância. O advogado endireitou o casaco cinzento

prisional, como se este fosse uma toga:

— Não se trata do número de dedos que perdeu. Cita condições de trabalho desumanas.

O crime foi aceite. Mas esse é um exemplo, um crime e portanto um degrau.

Da multidão elevou-se uma voz:

211

Page 212: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Eu perdi um dedo do pé! Porque não conta o meu dedo do pé para um degrau?

Havia dedos deformados e negros mais do que suficientes para levar o comandante ao

topo. O advogado perdia o controlo da situação, incapaz de engendrar suficientes regras para

tranquilizar a convulsa multidão.

Entrecortando o debate, o comandante gritou:

— Têm razão! O seu ferimento é um crime. Cada um dos ferimentos que sofreram é um

crime.

O comandante subiu mais um degrau. As interjeições desvaneceram-se, os argumentos

silenciaram enquanto ouviam:

— A verdade é que cometi mais crimes do que há degraus. Se houvessem degraus até ao

cume daquela montanha, teria de os subir todos.

Melindrado por o seu sistema ter sido derribado pela confissão, o advogado respondeu:

— Portanto reconhece que merece morrer?

O comandante respondeu de forma indirecta:

— O que vos pergunto é: se podemos subir um degrau, não poderemos também descer

um? Se podemos fazer o mal, não poderemos também fazer o bem? Não me é permitido corrigir

os males que fiz?

Apontou para o prisioneiro que perdera o dedo do pé:

— Você perdeu o dedo do pé por causa do frio, e por isso subi um degrau. Mas no ano

passado, quis enviar o salario à sua família. Quando lhe disse que, devido à injustiça do nosso

sistema, não tinha ganho tanto quanto precisavam, não tirei eu do meu próprio salário para

compensar a diferença? Não assegurei pessoalmente que a sua mulher recebia o dinheiro a

tempo?

O preso olhou em roda, nada dizendo. O advogado inquiriu:

— É verdade?

O preso acenou relutantemente:

— Sim.

O comandante desceu um degrau:

— Por esse acto, não posso descer um degrau? Reconheço que não fiz ainda bem

suficiente para contrabalançar os meus erros. Portanto, por que não deixar-me viver? Permitir-

212

Page 213: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

me passer o resto da minha vida a tentar corrigir os meus erros? Não será melhor do que

morrer?

— E quanto às pessoas que matou?

— E as pessoas que salvei? Desde a morte de Estaline que a taxa de mortalidade neste

campo é a mais baixa de Kolyma. Esse é um resultado das minhas mudanças. Aumentei as

rações de alimentos. Dei-vos periodos de descanso mais longos e dias de trabalho mais curtos.

Melhorei os cuidados medicos. Os doentes já não morrem! Os doentes recuperam. Eu sei que

esta é a verdade! A razão por que fostes capazes de dominar os guardas é porque estais melhor

alimentados, mais descansados e fortes do que alguma vez antes! Fui eu quem tornou este

motim possível!

O advogado deu um passo em direcção ao comandante, e murmurou-lhe que o seu

sistema estava uma confusão.

— Não dissemos que podia descer um degrau.

O advogado dirigiu-se tríptico de líderes condenados:

— Queremos mudar o sistema?

O lider de queixo quadrado virou-se para os seus camaradas:

— O comandante pede uma segunda hipótese. Concedemo-la?

A resposta começou como um murmurio, tornando-se depois cada vez mais alta à medida

que mais se lhe juntavam.

— Não há segunda hipótese! Não há segunda hipótese! Não há segunda hipótese!

O comandante baixou o rosto. O advogado encarou então os condenados. Era evidente

que não tinham reflectido bem sobre o processo. Não tinham atribuido a ninguém o papel de

carrasco. O comandante retirou do bolso uma das suas pequenas flores lilases secas, apertando-a

de punho cerrado. Subiu ao topo das escadas, fitando o céu escuro. O avogado falou, de voz

tremente pela pressão:

— Oferecemos um julgamento colectivo. Temos de realizar um castigo colectivo.

Puxaram-se armas. O advogado afastou-se. O comandante bramou:

— Uma última coisa…

Soaram disparos de armas, fuzis e salvas de uma metralhadora – o comandante caiu para

trás, como se empurrado por um dedo gigante. Um homem que fora ignóbil em vida, confrontado

213

Page 214: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

com a morte tinha alcançado uma espécie de dignidade, que os presos lhe ressentiam. Não lhe

permitiram mais palavras.

O ambiente no tribunal improvisado passou da excitação com a ideia da sua existância à

gravidade de ser um lugar onde as pessoas viviam e morriam. O advogou clareou a garganta e

perguntou:

— O que fazemos com o corpo?

Alguém disse:

— Deixem-no aí, para o próximo ver.

Concordou-se. O corpo ficaria ali.

— Quem é o próximo?

Leo retesou o corpo. Georgi declarou:

— Leo Stepanovich Demidov.

O advogado espreitou por sobre os guardas:

— Quem é esse? Quem é Leo?

Leo não se mexeu. O advogado chamou:

— Erga-se ou perderá o direito a julgamento e será imediatamente executado!

Lentamente, sem saber ao certo se as pernas cederiam, Leo ergueu-se. O advogado

indicou-lhe o degrau de baixo, onde se virou para enfrentar o tribunal. O advogado inquiriu:

— É um guarda?

— Não.

— Então quem é você?

— Sou agente da milicia de Moscovo. Fui enviado para cá sob disfarce.

Georgi gritou:

— É um chequista!

A multidão, os jurados e o juiz rebentaram num estertor de raiva. Leo olhou para o

homem que o acusara. Georgi estava a agir por sua conta. Lazar lia uma folha de papel,

porventura uma lista dos crimes de Leo. O advogado inquiriu:

— É verdade? — É um chequista?

— No passado fui agente da MGB.

O advogado bramou:

— Exemplos dos seus crimes!

214

Page 215: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Georgi replicou:

— Denunciou Lazar!

Os presos soltaram gritos de insultos. Leo subiu um degrau. Georgi continuou:

— Espancou Lazar! Desfez-lhe o maxilar!

Leo foi guiado para o próximo degrau.

— Prendeu a mulher de Lazar!

Leo encontrava-se agora no quarto degrau.

— Prendeu membros da congregação de Lazar!

Quando Leo alcançou o quinto degrau, Georgi ficou sem mais que dizer. Mais ninguém

no complexo o conhecia. Mais niguém podia nomear os seus crimes. O advogado declarou:

— Precisamos de mas exemplos! Mais sete!

Frustrado, Georgi gritou:

— É um chequista!

O advogado abanou a cabeça.

— Isso não é um exemplo.

De acordo com as regras do sistema que haviam implementado, ninguém o conhecia

suficientemente bem para o condenar, ninguém, com excepção, de o próprio Leo. Os presos

estavam insatisfeitos. Sabiam perfeitamente que ele era um chequista, devia haver mais

exemplos que eles não conheciam. Leo sentiu que o sistema não o iria proteger. Se não tivesse

testemunhado a execução do comandante, provavelmente teria subido até ao topo e admitido os

seus erros. Mas não tinha um discurso tão eloquente como o do comandante. A sua vida

dependia das regras daquele sistema. Precisavam de mais sete exemplos. E não os tinham.

Georgi recusou-se a desistir e gritou:

— Durante quantos anos é que foi um chequista?

Depois de ter servido no exército, Leo havia sido recrutado para a polícia secreta. Tinha

sido um chequista durante cinco anos.

— Cinco anos.

Dirigindo-se aos condenados ali reunidos, Georgi perguntou:

— Não se poderá deduzir que ele denunciou pelo menos duas pessoas por ano? Será

dificil de acreditar que um chequista o tenha feito?

215

Page 216: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

A multidão concordou: dois degraus por cada ano. Leo virou-se para o advogado, na

esperança de que ele indeferisse aquela emenda. O advogado encolheu os ombros, a sugestão

tornou-se lei. Indicou a Leo o topo, sentenciando-o à morte.

Incapaz de compreender que aquele era o fim, Leo não se mexeu. Uma voz gritou:

— Para o topo ou fuzilamos-te onde estás!

Atordoado, Leo subiu docilmente até apo topo, estacando por sobre o corpo crivado de

balas do comandante, com uma série de armas apontadas para si.

Uma voz, a do homem que o odiava, Georgi, chamou:

— Esperem!

Leo observou Lazar a falar ao ouvido de Georgi. Estranhamente, Georgi não traduzia as

suas palavras em simultâneo. Quando Lazar terminou, Georgi olhou-o com um ar interrogatório.

Lazar indicou-lhe que repetisse as suas palavras. Georgi dirigiu-se a Leo, perguntando:

— A minha mulher está viva?

Georgi pegou no papel que Lazar segurava na mão, levou-o até Leo e ofereceu-lho. Leo

agachou-se ao reconhecer a caligrafia de Fraera, prova de que ela estava viva, e contendo

informação que apenas ela podia saber. Timur transportava aquela carta consigo. Os guardas

deviam tê-la arrancado das suas posses antes de o matarem:

— Foi encontrada no bolso de um guarda. Não estava a mentir.

— Não.

— Ela está viva?

— Sim.

Lazar indicou a Georgi que regressasse, sussurando-lhe ao ouvido. Com uma obediência

relutante, Georgi anunciou:

— Peço que o poupem.

216

Page 217: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Moscovo

No mesmo dia

Zoya e Malysh estavam sentados lado a lado em cima do telhado do bloco de

apartamentos n.º 424, como dois gatos vadios. Zoya mantinha-se próxima de Malysh, desejosa de

lhe assegurar que não tencionava escapar. Depois do esforço de viajar vários quilómetros através

do sistema de esgotos, trepando escadas, esgueirando-se ao longo de paredes cobertas de lodo,

ambos estavam lavados em suor, e era agradável estar ali no telhado, sentindo nas faces a brisa

fresca da noite. Zoya sentia-se revigorada. Em parte devido ao esforço físico, depois de muitos

dias e muitas noites sedentárias. Mas sobretudo por estar com ele. Parecia vivenciar a infância

que lhe fora roubada – aventura travessa com um espirito gémeo.

Zoya olhou para a fotografia presa entre os dedos de Malysh:

— Como se chama ela?

— Marina Niurina.

Zoya tirou-lhe a fotografia das mãos. Niurina era uma mulher dos seus trinta anos,

severa e decorosa. Envergava um uniforme. Zoya devolveu-lhe a fotografia e perguntou:

— Vais matá-la?

Malysh assentiu levemente com a cabeça, como se alguém lhe tivesse perguntado se tinha

um cigarro. Zoya não sabia bem se havia de acreditar nele ou não. Vira-o atacar o vory que

tentara violá-la. Era habilidoso com a faca; porém, reticente e ranziza, não parecia alguém que

se gabasse gratuitamente.

— Porquê?

— É um chequista.

— Que fez ela?

Malysh mirou-a com um ar desconcertado, sem compreender. Zoya estendeu a pergunta:

— Prendeu pessoas? Interrogou-as?

— Não sei.

— Vais matá-la mas não sabes o que fez?

— Já te disse. É um chequista.

217

Page 218: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Zoya questionou-se o que saberia ele sobre a Polícia secreta. Notou, cautelosamente:

— Não sabes muito sobre eles, pois não? Sobre a Polícia Secreta ?

— Sei o que eles fizeram.

— E que fizeram eles?

Malysh reflectiu algum tempo sobre o assunto, antes de responder:

— Prenderam pessoas.

— Não precisas de saber um pouco mais sobre uma pessoa, antes de a matares?

— Fraera deu-me ordens. Não preciso de mais nenhuma razão.

— É isso que os chequistas dizem para justificar as coisas que fizeram: que estava a

seguir ordens.

Malysh principiou a irritar-se.

— Fraera disse-me que podias ajudar. Por isso, podes ajudar. Não me disse que te ias

pôr a fazer uma data de perguntas estúpidas. Posso levar-te de volta a cela, se é isso que queres.

— Não te zangues. Eu teria perguntado porquê, só isso. Porquê que vamos matar esta

mulher? Que fez ela?

Malysh dobrou a fotografia ao meio e tornou a enfiá-la no bolso. Zoya tinha ido longe

demais. Sentia-se excitada e passara das marcas; deixara-se levar pela impetuosidade.

Permaneceu em silêncio, na esperança de não ter estragado tudo. Esperando uma densa irritação,

ficou surpreendida quando Malysh falou num tom suave, quase repeso:

— Os crimes dela estavam escritos numa lista. Não quis pedir a niguém para ma ler.

— Não sabes ler?

Ao mesmo tempo que perscrutava a reacção dela, abanou a cabeça: Ela teve o cuidado

de manter o rosto inexpressivo, consciente da sua insegurança:

— Não foste à escola?

— Não.

— Que aconteceu aos teus pais?

— Morreram. Cresci grande parte em estações de comboio, até Fraera aparecer.

Malysh perguntou:

— Achas que é mau não saber ler?

— Nunca tiveste oportunidade de aprender.

— Não é uma coisa de que me orgulhe.

218

Page 219: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Eu sei.

— Gostaria de poder ler e escrever também. Vou aprender um dia.

— Vais aprender depressa, tenho a certeza.

Ficaram sentados em silêncio durante mais ou menos uma hora, observando as luzes nos

edificios vizinhos a apagarem-se, uma a uma, à medida que os seus ocupantes iam para a cama.

Malysh ergueu-se e esticou-se, como uma criatura nocturna que apenas se mexia quando toda a

gente dormia. Dos bolsos de umas calças largas, retirou um rolo de arame duro, desenrolando-o.

Na ponta do arame prendeu um caco rombo de um espelho, enrolando-o no arame até este estar

bem preso. Depois, inclinou cuidadosamente o espelho, de maneira a ficar num angulo de

quarenta e cinco graus. Caminhou até à berma do edifício, deitou-se de barriga para baixo e fez

descer o arame até o espelho se encontrar diante da janela do quarto de Marina Niurina. Zoya

aproximou-se, deitou-se a seu lado e espreitou para baixo. O cortinado estava corridor, mas havia

uma pequena nesga. No quarto escuro, conseguiu divisar uma figura na cama. Malysh puxou o

arame para cima, desenrolou o espelho da ponta, enrolou o arame e tornou a guardar os objectos

no bolso.

— Vamos entrar pelo outro lado.

Zoya assentiu. Deteve-se, murmurando:

— Tu podes ficar aqui.

— Sozinha?

— Confio que não vais fugir.

— Malysh, eu odeio os chequistas tanto quanto Fraera. Estou contigo.

Depois de descalçarem os sapatos e de os arrumarem ordenadamente lado a lado no

telhado, desceram pela parede de tijolo, segurando-se ao cano de esgoto. Era uma descida curta:

cerca de um metro. Malysh alcançou o peitoril da janela tão facilmente como se houvesse uma

escada. Zoya seguiu-o com movimentos hesitantes, esforçando-se por não olhar para baixo.

Estavam no sexto andar e qualquer queda seria fatal. Com um movimento rápido, Malysh puxou

da faca e levantou a janela de guilhotina, entrando no apartamento. Preocupado que Zoya

pudesse fazer barulho, virou-se para trás e ofereceu-lhe a mão. Ela rejeitou-a com um gesto,

descendo cautelosamente para as tábuas do soalho.

Tinham entrado na sala de estar, uma divisão grande. Zoya murmurou ao ouvido de

Malysh:

— Ela vive sozinha?

219

Page 220: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Ele assentiu com a cabeça, concisamente, desaprovador da pergunta – de qualquer

pergunta. Queria silêncio. O tamanho do apartamento era impressionante. Somando os metros

quadrados daquele espaço vazio, Zoya conseguia adivinhar a escala dos crimes daquela mulher.

Adiante, a porta do quarto estava fechada. Malysh estendeu a mão, segurando na

maçaneta. Antes de abrir a porta, indicou a Zoya que ficasse ali, longe da vista, na sala. Embora

o quisesse seguir, compreendeu que ele não a deixaria avançar mais. Zoya assentiu e recuou,

esperando à medida que Malysh abria a porta.

#

Malysh entrou no quarto escuro. Marina Niurina estava na cama, deitada de lado.

Preparou a faca e aproximou-se da mulher; depois, estacou, como se balançasse na beira de um

penhasco. A mulher deitada na cama era muito mais velha do que a mulher da fotografia – tinha

cabelos grisalhos, o rosto enrugado, teria pelo menos sessenta anos. Hesitou, questionando-se se

estaria no endereço errado. Não, o endereço estava correcto. Talvez a fotografia tivesse sido

tirada há muitos anos atrás. Se fosse esse o caso, alguém deveria tê-lo avisado. Inclinou-se mais

de perto, ao mesmo tempo que tirava do bolso a fotografia para comparar. O rosto da velha

senhora estava na sombra e não podia ter a certeza. O sono tornava toda a gente inocente.

Subitamente, Niuria abriu os olhos e ergueu o braço de debaixo dos cobertores. Segurava

numa arma, elevando-a à altura dos olhos de Malysh. Balançou as pernas para fora da cama,

revelando uma camisa de dormir floral.

— Afaste-se.

Malysh obedeceu, de braços erguidos, faca na mão, fotografia na outra, calculando se ela

seria suficientemente rápida para o desarmar. Ela adivinhou-lhe os pensamentos, engatilhou a

arma e disparou sobre a faca na sua mão, cortando-lhe a ponta do dedo. O jovem soltou um grito.

A faca caiu com estrondo no chão. Malysh agarrou-se ao dedo ensanguentado. Niurina disse:

— Este disparo vai fazer com que os guardas subam. Não te vou matar. Vou deixar que

te torturem. Provavelmente, juntar-me-ei a eles. Vou descobrir onde é que estão os teus

companheiros. Depois vamos matá-los também. Julgavas que nos iamos render e deixar que tu

e o teu bando nos matassem um a um?

Malysh recuou. A velha ergueu-se:

220

Page 221: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Se pensas que fugindo terás uma morte fácil, como uma bala nas costas, pensa

melhor. Faço-te os pés em fanicos. Na verdade, o melhor é disparar já sobre os teus pés, não vá

o diabo tecê-las.

#

Com o coração a bater em ritmo alterado, quase incapaz de respirar, Zoya tinha de agir

depressa; não podia ficar ali parada no meio da sala, estupefacta como uma criança estúpida. A

mulher não a podia ter visto. Olhou em redor; não havia um lugar onde se esconder, salvo

debaixo da secretária. Malysh estava ferido e recuava do quarto em sua direcção, com a mão a

escorrer sangue. Teve o cuidado de não olhar para ela, de não a denunciar. Ela era a sua única

hipótese. A mulher alcançara quase a porta. Zoya precipitous-se para debaixo da secretária.

Do seu esconderijo, Zoya vislumbrou pela primeira vez a figura da mulher. Era muito

mais velha do que a fotografia, mas tratava-se da mesma pessoa – o mesmo rosto severo, a

mesma postura rígida. Sorria, ou escarnecia, gozando do poder da arma que segurava, ao mesmo

tempo que seguia Malysh de perto. Se Zoya nada fizesse, se se deixasse ficar ali debaixo daquela

secretária, quando os guardas chegassem e Malysh fosse preso, ela seria salva, poderia voltar para

junto de Elena e Raisa, para junto de Leo. Se não fizesse nada, a sua vida voltaria ao normal.

Zoya levantou-se de um salto, e gritando, atirou-se sobre a arma. Apanhada de surpresa,

Marina Niurina virou a arma na sua direcção. Zoya agarrou na mão da mulher, mordeu-lhe o

pulso, cravando os dentes tão fundo quanto conseguiu. Foi disparado um tiro, um barulho

ensurdecedor junto ao seu ouvido; a bala crivou-se na parede e Zoya sentiu as vibrações do recuo

atravessarem-lhe os dentes. Com a mão livre, a mulher socou Zoya uma e outra vez, atirando-a

ao chão.

Indefesa, Zoya ergueu os olhos vendo a mulher apontar para ela a pistola. Antes que

pudesse disparar, Malysh saltou-lhe para as costas, agarrou-se-lhe à cabeça e afundou-lhe os

dedos nos olhos. A velha gritou, ao mesmo tempo que deixava cair a arma; tentava arranhar-lhe

as mãos, o que o fazia cravar os dedos ainda mais. Malysh baixou os olhos para Zoya:

— A porta!

Enquanto a mulher gritava, rodando em circulos, Zoya correu para a porta da frente e

trancou-a, no preciso instante em que o guarda subia com alarido as escadas, pronto para irromper

por ali adentro. Quando Zoya voltou, Niurina baixou as mãos para os joelhos; Malysh continuava

221

Page 222: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

montado nas suas costas. Retirou os dedos, deixando duas cavidades ensanguentadas onde

anteriormente se achavam os seus olhos. Malysh apanhou a arma, fazendo sinal a Zoya que o

seguisse: corria para a janela.

Atrás deles, os guardas derrubavam a porta. Malysh disparou através da madeira,

impedindo que avançassem. Como a câmara da arma estava vazia, deixou cair a arma, seguindo

Zoya até ao peitoril da janela. Os guardas ripostaram na mesma moeda, abrindo fogo de

metralhadora; as balas atingiram todas as paredes da sala. Começaram a trepar pela parede

exterior. Zoya alcançou o telhado primeiro, içando-se. Ouviu a porta da sala ser esmagada, os

guardas exclamando quando se depararam com a cena sangrente diante deles.

Zoya inclinou-se e ajudou Malysh a subir. Assim que ambos se encontraram no telhado,

Zoya pegou nos sapatos, pronta para correr. Malysh segurou-lhe no pulso:

— Espera!

Quando ouviu as vozses dos guardas na janela em baixo, Malysh pegou numa chapa do

telhado, preparando-se. A mão de um guarda agarrou o rebordo. Assim que o guarda se içou,

Malysh esmagou-lhe a chapa na cara. O guarda soltou o rebordo, caindo na rua em baixo.

Malysh gritou:

— Corre!

Correram apressadamente pelo telhado, saltando por sobre a distância que os separava do

edifício adjacente. Quando olharam para baixo, avistaram enxames de oficiais na rua. Malysh

comentou:

— Era uma armadilha. Estavam a vigiar o apartamento.

Esperavam que Niurina fosse um alvo. Esperavam que alguém viesse.

A rota de fuga de ambos estava agora bloqueada, e foram obrigados a entrar no bloco de

apartamentos, penetrando num dos quartos. Malysh gritou:

— Fogo!

Nos edificios sobrelotados, com estruturas antigas de madeira, ligações eléctricas

deficientes, era comum haver incêndios. Agarrou na mão de Zoya e correu para o corredor;

ambos gritavam:

— Fogo!

222

Page 223: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Mesmo sem fumo, em poucos segundos o corredor estava apinhado de pessoas. O pânico

espalhou-se rapidamente pelo edificio, alimentando-se sozinho. Chegados às escadas, Zoya e

Malysh começaram a gatinhar por entre as pernas das pessoas.

Lá fora, na rua, os habitantes surdiam em magotes do edifício, Fundindo-se com o KGB e

a milícia. Zoya segurou na mão de um homem, fingindo-se desorientada. Malysh fez o mesmo;

o homem, solidário, guiou-os a ambos através dos oficiais que julgaram tratar-se de uma família.

Assim que se viram livres, soltaram a mão do homem, esgueirando-se dali para fora.

Correram até à sarjeta mais próxima, levantaram a tampa de ferro, e desceram para os

esgotos. No topo da escada, Zoya rasgou um pedaço da camisa, enrolou-a em torno do dedo

ensanguentado de Malysh, dando várias voltas, até este se assemelhar a uma grossa salsicha.

Respiraram fundo e ambos começaram a rir.

223

Page 224: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Kolyma

Gulag 57

12 de Abril

A luz da manhã estava clara e nítida como Leo nunca vira antes – um perfeito céu azul e

uma perfeita planície branca. Parado em cima do telhado dos barracões da administração, levou

aos olhos o que restava de uns binóculos queimados e retorcidos. Atingidos pelo fogo, apenas

uma das lentes estaladas tinha alguma utilidade. Procurando o horizonte, como um pitata na proa

do navio, avistou movimento ao fundo da planície. Havia camiões, tanques e tendas – um

acampamento militar temporário. Alertada pelas torres em chamas no dia anterior, faróis de

dissidência, a administração regional havia estabelecido uma base rival durante a noite para as

operações de contra-ataque. Encontravam-se ali pelo menos quinhentos soldados. Embora não

fosse um número superior ao de reclusos, estes estavam possuiam muito menos armas; tudo o que

tinham conseguido reunir eram três metralhadoras pesadas, vários cartuchos de munição, um

sortimento de espingardas e pistolas. O Gulag 57 estava pois completamente exposto a armas de

longo alcance, e a cerca de arame farpado também não os podia proteger de tanques armados.

Depois de completar a sua desanimadora avaliação, Leo baixou os binóculos, entregando-os a

Lazar.

Um grupo de reclusos havia-se reunido no telhado. Desde a destruição das torres, aquele

tornara-se o lugar com maior visibilidade do campo. Para além de Lazar e Georgi, estavam

também os outros dois lideres e os seus apoiantes mais próximos: dez homens ao todo. O líder

vory perguntou a Leo:

— Você é um deles. O que é que irão fazer? Irão negociar?

— Sim, mas não se pode confiar em nada do que disserem.

O jovem condenado avançou um passo:

— Então e o Discurso? Já não estamos sob o regime de Estaline. O nosso país mudou!

Podemos apresentar o nosso caso.

Estávamos a ser tratados de forma injusta. Muitas das nossas penas deviam ser

revistas. Devíamos ser libertados!

224

Page 225: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Esse discurso pode obrigá-los a negociar seriamente. Contudo, estamos muito longe

de Moscovo. A administração de Kolyma pode ter decidido lidar com esta insurreição em

segredo, para impedir que Moscovo se envolva com uma atitude moderada.

— Querem matar-nos?

— Este motim é uma ameaça à sua forma de vida.

Em baixo, um recluso gritou:

— Estão a ligar!

Os reclusos precipitaram-se para a escada, apinhando-se, na pressa de descer. Leo foi o

último a descer; não podia caminhar muito depressa, pois dobrar as pernas causava-lhe uma

intensa dor em ambos os joelhos, sempre que esticava a pele ferida. Quando alcançou o fundo da

escada suava e ofegava. Restabeleceu-se e seguiu os outros.

Um transmissor de rádio era o único meio de comunicação entre os vários campos e o

quartel-general administrativo de Magadan. Um dos reclusos com um conhecimento rudimentar

do equipamento, encarregara-se do aparelho. Com os auscultadores nos ouvidos repetia as

palavras que conseguia ouvir:

— O director regional Able Prezent… quer falar com quer que seja responsável.

Sem mais demoras o jovem líder apossou-se do microfone, lançando-se numa explosão

retórica:

— O Gulag 57 está nas mãos dos reclusos! Insurgimo-nos contra os guardas!

Espancavam-nos e matavam-nos conforme lhes dava na veneta! Isso acabou-se…

Leo disse:

— Mencione que os guardas estão vivos.

Os homens fizeram sinal a Leo que se afastasse, inchados pela sua própria importância.

— Acolhemos com agrado o discurso do nosso líder Khrushchev. Em seu nome,

solicitamos que as sentenças de todos os reclusos sejam revistas. Queremos que seja concedida

a liberdade àqueles que deveriam ser livres. Queremos que aqueles que agiram erradamente

sejam tratados humanamente. Exigimos isto em nome dos nossos antepassados revolucionários.

Essa causa gloriosa foi corrompida pelos nossos crimes. Nós somos os verdadeiros herdeiros da

revolução! Exigimos um pedido de desculpas! E mandem-nos comida, boa comida, e não papas

diluídas de condenado!

Incapaz de esconder a sua incredulidade, Leo abanou a cabeça, comentando:

225

Page 226: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Se quiser que toda a gente morra, peça caviar e prostitutas. Se quiser viver, diga-lhes

que os guardas estão vivos.

O homem acrescentou, irritadiço:

— Devo dizer-lhe que os guardas estão vivos. Estão a ser tratados com condições

humanas, muito melhor tratados do que alguma vez nos trataram a nós. E conservar-se-ão vivos

desde que não sejamos atacados! Se nos atacarem, tomámos as precauções necessárias para

garantir que não há-de ficar um só guarda com vida!

A voz na rádio crepitou na resposta, palavras que o homem repetiu:

— Ele solicita alguma prova de que estão vivos. Depois disso, ouvirá as suas

exigências.

Leo aproximou-se de Lazar, pedindo-lhe como a voz da razão:

— Devem mandar os guardas feridos. Sem cuidados médicos, irão morrer.

O líder vory, sentindo-se defraudado por estar a ser posto de lado, interpôs:

— Não lhes devemos dar nada. É um sinal de fraqueza.

Leo objectou:

— Quando aqueles guardas morrerem por causa dos ferimentos não terão qualquer

utilidade. Desta forma, ainda valem alguma coisa.

O vory resmungou:

— E você há-de querer ir no mesmo camião que os levará daqui para fora, não é

verdade?

Adivinhara exactamente qual a intenção de Leo. Leo assentiu:

— Sim.

Lazar sussurrou ao ouvido de Georgi, palavras que este anunciou com uma nota de

surpresa:

— … E eu quero ir com ele.

Toda a gente se virou para Lazar. Ele prosseguiu, sussurando a Georgi:

— Antes de morrer, gostava de ver a minha mulher e o meu filho. Leo arrancou-mos.

Ele é a única pessoa que nos pode voltar a juntar.

#

226

Page 227: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O camião de carga foi carregado com os guardas mais gravemente feridos, seis ao todo,

nenhum dos quais iria sobreviver mais vinte e quatro horas sem cuidados médicos. Levantados

com tábuas de madeira, macas improvisadas, Leo assistiu à transferência do último guarda dos

barracões. Assim que o depositaram, estavam prontos para partir.

Prestes a partir, Leo avistou o relógio do último guarda. Era um relógio barato, de folha

de ouro, e pouco notável; só que era o relógio de Timur. Não havia dúvida; Tinha visto aquele

relógio milhares de vezes. Timur contara-lhe que o pai lho ofererçera, dizendo tratar-se de uma

herança de família, apesar de não ter qualquer valor. Agachando-se, Leo correu com a ponta do

dedo ao longo do vidro rachado. Olhou para o oficial ferido. Os olhos do homem estavam

nervosos. Compreendeu a sua significância. Leo perguntou:

— Tirou isto ao meu amigo?

O oficial nada disse.

— Isto pertencia ao meu amigo.

Leo sentiu a raiva subir-lhe no corpo.

— Era o relógio dele.

O oficial começou a tremer. Leo bateu no relógio com a ponta dos dedos, comentando:

— Vai ter de mo devolver.

Leo começou a tentar desapertar o relógio barato. Enquanto o fazia, levantou a perna,

pressionando o joelho contra o peito sangrento e ferido do homem. Leo apertou com força o

peito do guarda, comentando:

— Sabe... este relógio é uma herança de familia...e agora pertence à esposa de Timur...e

os filhos deles...os seus dois filhos...dois filhos maravilhosos...dois rapazes

maravilhosos...pertence-lhes porque você assassinou o pai deles...assassinou o meu amigo...um

homem de quem eu gostava muito.

O oficial começou a sangrar da boca e do nariz, os braços a baterem frouxamente na

perna de Leo, tentando afastá-la. Mas Leo manteve o joelho firme, mantendo a pressão no seu

peito ferido. A dor no joelho ferido fê-lo lacrimejar. Não eram lágrimas por Timur. Era ódio,

vigança, a força que o fez empurrar com maior e maior ímpeto. O tecido das calças de Leo estava

ensopado com o sangue do oficial.

A presilha do relógio soltou-se do pulso frouxo do oficial. Os outros cinco homens que

se encontravam nas traseiras do camião olhavam para Leo, aterrorizados. Passou diante deles,

gritando para os reclusos no chão:

227

Page 228: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Um destes oficiais está morto. Temos espaço para mais um.

Enquanto descarregavam o corpo, um evento que nenhum dos reclusos questionou, Leo

examinou o relógio, questionando-se quando fora a última vez que matara uma pessoa. Matara

muita gente durante a sua carreira como soldado e, indirectamente, matara muita mais, durante a

sua carreira como oficial do MGB. No entanto, isso tinha sido há muitos anos atrás. Quando a

raiva começou a esmorecer, sentiu-se fraco, não por arrependimento ou vergonha, mas por

cansaço quando o mais poderoso dos estimulantes – a vingança – lhe abandonou o corpo. Essa

profundidade de raiva era o que Fraera sentia em relação a ele.

Leo espreitou para o guarda ferido que caminhava em direcção ao camião, o substituto do

oficial que acabara de matar. O braço vinha enrolado em ligaduras sangrentas. Qualquer coisa

não estava bem. O homem estava nervoso. Talvez tivesse estado envolvido no assassínio de

Timur. Leo estendeu a mão, parando-o; agarrou nas ligaduras e puxou-as, revelando um longo

corte superficial que se estendia do cotovelo até à mão, auto-infligido. O mesmo se passara com

os ferimentos na cabeça. O homem murmurou:

— Por favor...

Se fosse apanhado, seria fuzilado. Se os reclusos achassem que estavam a explorar a sua

bondade, uma bondade que nunca mostraram, a inteira operação corria perigo. Depois da

execução de mais um guarda, Leo hesitou apenas brevemente antes de permitir que subisse para o

camião.

Lazar, falando através de Georgi, dirigia-se aos outros reclusos, explicando aos seus

seguidores as razões por que partia:

— Não espero viver muito mais tempo. Estou demasiado fraco para lutar. Agradeço-vos

por me deixarem ir para casa.

O jovem líder respondeu:

— Lazar, ajudou muitos homens. Ajudou-me a mim, também. Ganhou o direito a este

pedido.

Os outros reclusos concordaram.

Leo aproximou-se de Lazar, avaliando o seu aspecto:

— Temos de nos vestir de guardas.

Leo, Lazar e Georgi despiram os uniformes de três guardas mortos. Vestiram-se

apressadamente, temendo que os reclusos mudassem de ideias. Leo ocupou o lugar do condutor,

Georgi sentou-se no meio, e Lazar a seu lado. Os reclusos abriram os portões.

228

Page 229: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Subitamente o jovem líder bateu com a mão na porta do camião. Leo preparava-se para

acelerar, se fosse necessário. Mas o homem disse:

— Concordaram aceitar os feridos como sinal de boa fé. Boa sorte, Lazar; espero que

encontres a tua mulher e o teu filho.

Afastou-se do camião. Leo engrenou o veiculo, passando diante dos destroços das duas

torres de vigia, atravesando os portões do perímetro, e seguiu para a auto-estrada, dirigindo-se

directamente ao acampamento militar no outro extremo da planície.

#

O operador de rádio veio a correr tão depressa quanto podia até aos portões. Os reclusos

observavam o camião a seguir para a autoestrada. Ofegante, o operador exclamou:

— Já partiram? Mas ainda não dissemos nada ao comandante regional. Não lhe

dissemos que estamos a mandar os doentes e os feridos.

O jovem líder comentou:

— Não lhes vamos dizer. Não podemos fazer uma revolução com homens que querem

fugir. Temos de usar Lazar como lição. Os outros têm de compreender que não têm outra

escolha senão lutar. Se os soldados abrirem fogo sobre os seus próprios guardas feridos, que

seja.

229

Page 230: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Leo conduzia devagar, guiando ao longo da auto-estrada, em direcção ao acampamento

temporário. Faltavam dois quilómetros para lá chegar, quando, a meio caminho entre os campos

rivais, avistou uma única baforada de fumo no horizonte.

A imagem desapareceu, envolta numa nuvem de pó. Uma explosão desencavou a

autoestrada, apenas a poucos metros diante do camião. Terra, gelo e estilhaços atingiram o vidro

da frente. Leo guinou o volante, desviando-se da cratera. O pneu da direita deslizou no asfalto.

O camião quase capotou, vibrando à medida que atravessavam o fumo. Segurou bem no volante

e tornou a endireitar o camião, regressando ao meio da autoestrada com uma derrapagem. Leo

olhou pelos espelhos retrovisores, fitando espantado a porção de asfalto levantada.

Uma outra baforada de fumo no horizonte, depois uma segunda e uma terceira, eram tiros

de morteiro disparados subsequentemente. Leo bateu com o pé no pedal do acelerador. O

camião avançou com um impulso brusco, tentando acelerar sob uma possível trajectória,

explorando a pequena margem de tempo entre o disparo e o impacto. O motor rosnou;

lentamente ganhavam velocidade. Só agora Lazar e Georgi se viraram para Leo procurando uma

explicação. Antes que pudessem dizer o que fosse, a primeira bomba aterrou mesmo atrás deles –

tão próxima que a traseira do camião se ergueu no ar. Durante uma fracção de segundo, só os

pneus da frente tocavam a estrada. Leo não era já capaz de ver nada, com excepção da estrada, a

cabine inclinada para o chão, para o asfalto. Durante um momento, convenceu-se de que o

camião ia virar e aterrar de capota para baixo, mas a traseira voltou a assentar no chão com um

solavanco, atirando-os para fora dos assentos. Leo debatia-se ao volante, tentando readquirir o

controlo da viatura; a segunda omba aterrou ao largo, falhando a estrada, aspergindo o camião

com pedaços de terra e gelo, estilhaçando a janela lateral.

Leo guinou para a planície, saindo da estrada, no momento em que uma terceira bomba

aterrava – um tiro perfeito, detonando exactamente no lugar onde antes se encontrava o camião.

O asfalto rasgou-se, os destroços saltaram pelos ares.

230

Page 231: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

À medida que avançavam aos tombos pelo terreno gelado e irregular da tundra, Georgi

gritou:

— Por que estão a disparar?

— Os vossos camaradas mentiram! Não avisaram que estávamos a seguir para lá.

NPelos espelhos retrovisores, Leo viu os guardas feridos, confusos, em pânico,

ensaguentados, espreitando para a paisagem, tentando perceber por que estavam debaixo de fogo.

Com o cotovelo, partiu o que restava da janela lateral, pôs a cabeça de fora e gritou-lhes:

— Os vossos uniformes! Acenem com eles!

Dois dos guardas despiram os casacos, acenando-os como bandeiras.

No horizonte surgiram mais quatro baforadas de fumo.

Como não podia andar mais depressa no terreno da tundra, Leo foi obrigado a segurar

firme o camião e a manter a esperança. Fechando os olhos, imaginou a trajectória arqueada das

bombas no ar, subindo rapidamente, e depois descendendo assobiantes na sua direcção. O tempo

parecia estender-se – um segundo tornava-se um minuto – e depois ecoavam as explosões.

Leo abriu os olhos: o camião mantinha-se na trajectória acidentada. Espreitando pelo

espelho, avistou quatro colunas de pó elevando-se atrás do camião. Leo sorriu:

— Estamos sob o seu alcance!

Bateu no volante com alívio:

— Estamos demasiado próximos.

Mas depressa o alívio se desvaneceu. Adiante, na fronteira do acampamento temporário,

dois tanques rodavam os canhões em sua direcção.

O tanque mais próximo disparou, uma explosão alaranjada. O corpo de Leo retesou-se

involutariamente, o ar foi-lhe sugado dos pulmões. Mas não houve explosão – na paisagem

avistada da janela lateral viu que a bomba havia trespassado a lona do camião, saindo pelo outro

lado. O disparador não cometeria o mesmo erro duas vezes, dirigindo a próxima bomba para a

cabine metálica, onde detonaria sem sombra de dúvida. Leo carregou no travão. O camião

parou. Abriu a porta, trepou para o tejadilho da cabine, despiu o casaco do uniforme, acenando,

gritando:

— Sou um de vós!

Em simultaneo, ambos os tanques avançaram bruscamente para diante, à medida que as

lagartas crepitavam pela tundra. Leo deixou-se ficar no cimo do tejadilho, acenando com o

uniforme de um lado para o outro. A menos de cem metros, um dos tanques estacou. Abriu-se a

231

Page 232: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

escotilha. O operador do tanque espreitou para fora, a metralhadora pronta para disparar. Gritou:

— Quem é você?

— Sou guarda. Trago oficiais feridos nas traseiras.

— Porque é que não transmitiram?

— Os reclusos disseram-nos que tinham transmitido. Disseram-nos que tinham falado

convosco. Enganaram-nos! Enganaram-vos! Queriam que matassem os vossos próprios

homens.

O segundo tanque circulou as traseiras do camião, de canhão apontado directamente para

os ocupantes. Os guardas feridos mostraram os uniformes. A escotilha do segundo tanque abriu-

se, o operador gritou:

— Tudo certo!

#

Chegado ao perímetro do acampamento militar temporário, Leo parou o camião. Os

homens feridos foram descarregados, levados para uma tenda médica. Depois de se ter

desembarcado o último homem, Leo ia ligar o motor e seguir pela autoestrada, de volta ao porto

de Magadan. A traseira do camião estava vazia. Estavam prontos para partir. Georgi bateu-lhe

no braço. Um soldado aproximava-se:

— Você é o oficial responsável?

Leo não hesitou em emitir um rápido acordo:

— Sim.

— O director deseja falar consigo. Acompanhe-me.

Leo indicou a Lazar e Georgi para ficarem no camião.

O centro de comando estava acomodado sob um toldo protector da neve. Os oficiais

superiores vigiavam a planície com binóculos. Havia mapas da região espalhados, plantas do

campo. Um homem macilento, com um ar doente, veio cumprimentá-lo:

— Foi você quem conduziu o camião?

— Sim,senhor.

— O meu nome é Able Prezent. Já nos conhecemos?

232

Page 233: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo não tinha maneira de saber se todos os oficiais não conheceriam Prezent nesta ou

naquela altura, mas era improvável que se lembrasse de todos os guardas:

— Brevemente,sim senhor.

Apertaram as mãos.

— Queira desculpar por ter disparado contra si. Mas, uma vez que não houve

comunicação, fomos obrigados a considerá-lo uma ameaça.

Leo não precisava de fingir a sua indignação:

— Os reclusos mentiram-nos. Disseram-nos que tinham falado consigo.

— Em breve vão receber o pago.

— Se servir de alguma coisa, posso detalhar as defesas dos reclusos. Posso marcar as

suas posições…

Os reclusos não tinham quaisquer defesas, mas Leo achou prudente mostrar-se útil.

Contudo, o director regional abanou a cabeça:

— Isso não será necessário.

Consultou o relógio.

— Acompanhe-me.

Leo não teve outra opção se não segui-lo.

Saindo de debaixo do toldo, Able Prezent ergueu os olhos para o céu. Leo copiou a

direcção do seu olhar. O céu estava vazio. Dali a nada, Leo distinguiu um fragor. Prezent

explicou:

— Nunca nos passou pela ideia negociar. Arriscamo-nos a uma anarquia se cedermos

às exigências deles. Todos os campos iriam iniciar a sua própria revolução. A desobediência

tem de ser punida severamente. Não interessa o que eles dizem em Moscovo; nós aqui não nos

podemos dar ao luxo de amolecer. As consequências seriam catastróficas.

O fragor nos céus tornou-se mais forte até um avião bramir por sobre a planície, voando

baixo, os números na barriga de aço visíveis à medida que lhes passava mesmo por cima da

cabeça, endireitando o curso em direcção ao Gulag 57. Era um Tupolev TU-4, um antigo

bombardeiro de reserva concebido a partir dos aviões fortificados norte-americanos – quatro

motores a hélice, quarenta metros de envergadura de asa, e uma grossa estrutura cilíndrica

prateada. Na aproximação directa, a escotilha inferior abriu-se. Iam bombardear a base.

Antes que Leo tivesse oportunidade de questionar muito a decisão, uma bomba

rectangular caiu da escotilha, abrindo-se de imediato um para-quedas. O TU-4 ascendeu com

233

Page 234: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

uma curva, ganhando rapidamente altitude para sobrevoar a montanha, enquanto a bomba

permaneceu a oscilar no céu, balançando no pára-quedas, perfeitamente posicionada, guiada para

o centro do campo. Depois, desapareceu de vista, aterrando; o pára-quedas espalhou-se pelo

telhado dos barracões. Porém não se deu uma explosão, nem uma lumaréu: qualquer coisa tinha

corrido mal. A bomba não detonara. Aliviado, Leo mirou o director regional, esperando vê-lo

furioso. Em vez disso, parecia envaidecido:

— Eles pediram comida. Portanto, nós mandámos um caixote repleto de comida que

não vêem há anos: fruta em lata, carnes, enchidos. Vão comer que nem uns porcos. Só que

acrescentámos mais qualquer coisinha…

— A comida está envenenada? Vão dá-la primeiro aos guardas.

— A comida foi cortada com uma toxina. Daqui a seis horas caem incoscientes. Daqui

a dez horas estarão mortos. Não importa que a testem primeiro nos guardas. Não dá sintomas

imediatos. Daqui a oito horas vamos invadir o campo, e injectar o antídoto aos guardas; os

rebeldes morrerão. Mesmo que nem todos os reclusos comam, a maior parte há-de comer e o

número de reclusos vai decair bastante. Temos de resolver esta revolução antes que Moscovo e

os espiões deles comecem a interferir.

Aquele era o homem que tinha ordenado a morte de Timur. Contendo a raiva, Leo notou:

— Um excelente plano, senhor.

Prezent assentiu, sorrindo com a sua ingenuidade mortífera. Ele também pensou o

mesmo.

Depois de ter sido dispensado, Leo atravessou o quartel-general de comando,

encaminhando-se para o camião. Alcançou a cabine, trepou lá para dentro, sentindo a mesma

raiva que sentira quando vira o relógio de Timur. Espreitou pela janela estilhaçada em direcção a

Able Prezent. Tinham de partir agora. Era a sua única oportunidade. Toda a gente estava

preocupada com o avião. Contudo, não era capaz de partir. Não era capaz de deixar que Prezent

ficasse impune. Abriu a porta da cabine. Georgi agarrou-lhe no braço.

— Onde é que vai?

— Tenho de resolver um assunto.

Georgi abanou a cabeça.

— Temos de partir agora, enquanto estão distraídos.

— Isto não demora.

234

Page 235: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Que assunto é esse que tem de resolver?

— Isso é problema meu.

— E também nosso.

— Aquele homem merece morrer.

Leo libertou o braço. Mas Lazar inclinou-se para ele, segurando-lhe no braço, indicando

que queria falar. Leo baixou a orelha, Lazar murmurou:

— Como deve saber…as pessoas não têm sempre o que merecem…

A sua indignação extinguiu-se. Leo baixou a cabeça, aceitando aquela verdade. Não

tinha vindo ali para se vingar. Tinha vindo por causa de Zoya. Timur tinha morrido por causa de

Zoya. Tinham de partir agora. Able Prezent ficaria impune por homicídio.

235

Page 236: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

A sombra da montanha, do alto projectada, envolvia o Gulag 57, estendendendo-se sobre

a planície, propagando-se em direcção ao acampamento militar temporário. Able Prezent

verificou o relógio: a toxina devia estar a surtir efeito; os reclusos deviam estar a perder a

consciência. Tinham-no programado cuidadosamente. À noite, ninguém no campo iria achar

estranho os reclusos estarem cansados. Antes que se levantassem suspeitas, as tropas terrestres

iriam avançar inobservadas, cortar a cerca de arame e recuperar o controlo. Os reclusos seriam

mortos, salvo uma pequena amostra simbólica de cerca de cem para evitar acusações de um

massacre. A notícia do sucesso espalhar-se-ia pela região. Todos os outros campos receberiam a

clara mensagem de que a revolta falhara e de que os gulags estavam ali para ficar, que não eram

coisa do passado – que faziam parte do futuro, que fariam sempre parte do futuro de todos.

— Desculpe, senhor?

Um guarda sujo estacara diante dele.

— Vim no camião do Gulag 57. Fui um dos oficiais feridos que libertaram.

O braço do homem estava ligado. Able sorriu, condescendente:

— Porque é que não está na tenda médica?

— Fingi que estava ferido para embarcar no camião. O meu ferimento não é grave. O

doutor diz que posso apresentar-me ao serviço.

— Não precisa de se precisa de se preocupar com os seus camaradas. Vamos mandar

ajuda brevemente.

Able preparava-se pra se afastar. O homem persistiu:

— Senhor, não era sobre eles que lhe queria falar. Era sobre os homens que coduziam o

camião. Tenho de lhe dizer uma coisa…

236

Page 237: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Leo seguia pela autoestrada à noite, guiado pelo ténue facho dos faróis; avançava,

apertando o volante e espreitando para a escuridão. Apenas a adrenalina continha uma exaustão

total. Atravessar a planicie em direcção a Magadan fora possível pela monótona simplicidade da

descida, e apenas uma ponte estreita de madeira lhes causara algumas dificuldades. Agora, pela

primeira vez, as luzes de Magadan surgiam no sopé das colinas na fronteira do vasto mar negro.

A pista de aterragem situava-se a norte do porto, a cerca de uma hora de distância, no máximo.

Ouviu-se um fragor. Por cima da sua posição, surgiu, suspenso no céu, um foguete

luminoso alaranjado, silvando com uma luz fosfórica. Na fronteira da cidade lançou-se um

segundo foguete luminoso, depois um terceiro e um quarto – estrelas alaranjadas ao longo da

autoestrada. Leo carregou no travão.

— Estão à nossa procura.

Desligou os faróis. Inclinou-se para fora na janela partida e olhou para trás. Ao longe,

avistou vários conjuntos de faróis, serpenteando pela montanha abaixo:

— Vêm de ambas as direcções. Vou ter que sair da estrada.

Georgi abanou a cabeça:

— Não.

— Se ficarmos na autoestrada encontram-nos em poucos minutos.

— Fora da estrada, quanto tempo? Precisa de mais tempo.

Georgi tinha razão – não teriam muito tempo. Georgi dirigiu-se a Lazar:

— Resignei-me que nunca sairia de Kolyma. Resignei-me a esse facto há muito tempo

atrás.

Lazar abanou a cabeça. Georgi, porém, o homem que lhe servia de voz, mostrava-se

mais determinado:

— Se não te tivesse defendido, terias morrido há muito tempo atrás.

Lazar continuou a abanar a cabeça, recusando-se a considerar a ideia. Georgi pousou

uma mão nos ombros de Lazar:

237

Page 238: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Por uma vez, ouve-me, Lazar. Eu nunca iria contigo para Moscovo. Deixa-me fazer

isto.

Os olhos de Lazar estavam vermelhos. Murmurou qualquer coisa a Georgi, palavras que

desta vez não se ouviram em voz alta, palavras que eram só para ele.

Entretanto foi lançada uma segunda onda de feixes luminosos, enchendo o céu acima da

autoestrada de luz, à medida que se aproximavam. Leo saiu do camião; Lazar seguiu-o. Georgi

sentou-se ao volante. Pela janela partida, gritou a Leo:

— Leva-o para casa, chequista.

— Prometo.

Desconfortável ao volante, Georgi arrancou, em direcção a Magadan.

Prosseguindo a pé, Leo e Lazar seguiram aos tropeços no escuro, caminhando sobre um

terreno gelado e irregular em direcção às luzes chamejantes da pista de aterragem. Georgi tinha

razão. O terreno era tão irregular que o camião teria ficado atolado em poucos minutos. Leo

sentiu as pernas serem atingidas por espasmos de dor, fazendo-o a cair. Lazar ajudou-o a

levantar-se, segurando-o. De braços à volta dos ombros um do outro, pareciam um par

extremamente bizarro.

Um renovado bombardeamento de foguetes alteou-se no céu, ardendo com uma luz

brilhante, olhos de ciclope concentrados na autoestrada. Ouviram-se disparos. Leo e Lazar

estacaram e deram meia volta. O camião tinha sido encontrado. Acelarava em direcção à

barreira da estrada. Ouviram-se mais disparos pesados. Bruscamente, o camião parecia guinar

para a esquerda e direita, fora de controlo, continuando por curto tempo a seguir a autoestrada até

ser ruidosamente sacudido e rolar para o lado. Lazar fitou o local onde o camião ficara. Tinha

perdido uma parte de si – tinha perdido a sua voz.

As autoridades encontrariam apenas um corpo. E iriam rapidamente alargar as buscas.

Leo observou:

— Não temos muito tempo.

Aproximando-se do perímetro da pista, Leo deteve-se, estudando as primitivas

instalações. Encontravam-se três aviões estacionados. O único que poderia fazer a viagem

através da União Soviética era o bimotor Ilyushin 11-12. Leo observou:

— Este é o nosso avião. Vamos caminhar até ao Ilyushin, o avião maior – mas vamos

devagar, como se não houvesse nada de errado, como se fosse normal estarmos aqui.

238

Page 239: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Saíram para a área aberta. Havia por ali uma mão cheia de tripulação e soldados. Não

havia patrulha, nem uma clima de urgência. Leo bateu na porta do avião. Tinham-lhe prometido

que estariam prontos para descolar a qualquer momento. Como havia sempre uma hipótese de a

fuga poder sofrer atrasos, Panin assegurara que estaria sempre alguém a bordo, fosse a que horas

fosse que aparecessem.

Leo bateu outra vez, sentindo uma impaciência frenética avultar-se dentro dele a cada

segundo que passava. Finalmente a porta abriu-se. Um jovem, que não aparentava ter mais de

vinte anos, espreitou para fora. Estaria certamente a dormitar. Um ténue cheiro a álcool repassou

da cabine. Leo disse:

— Está às ordens de Frol Panin?

O jovem esfregou os olhos.

— Exactamente.

— Temos de regressar a Moscovo.

— Deviam ser três.

— Houve umas mudanças. Temos de partir já.

Semp esperar por resposta, Leo subiu para o avião, ajudou Lazar a entrar, e fechou a

porta. O jovem parecia desconcertado.

— Não podemos voar.

— Por que não?

— O piloto e o co-piloto não estão aqui.

— Onde estão eles?

— A jantar.

— Estão a quê?

— Estavam com fome.

— Onde é que eles estão?

— Na cidade. Não devem demorar mais de trinta minutos a chegar aqui.

Leo estimava que tinham cerca de cinco mintos, no máximo. Concentrou-se no jovem:

— Como é que se chama?

— Konstantin.

— O avião está pronto para voar?

— Se tivéssemos um piloto.

— Quantas vezes já pilotou?

239

Page 240: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Este avião? Nunca.

— Mas é piloto?

— Estou a aprender. Já pilotei aviões mais pequenos. Vi-os pilotar este avião cerca de

dez vezes ao todo.

— Konstantin, ouve-me com atenção. Vão matar-nos; vão matar-te a ti também, se não

descolarmos imediatamente. Podemos morrer aqui ou podes tentar pilotar este avião. Não

julgues que te estou a ameçar. Estas são as nossas opções.

O jovem fitou a cabine. Leo segurou-o:

— Eu acredito em ti. Sei que és capaz. Prepara o avião.

Leo ocupou o assento do co-piloto; diante de si, estendia-se um painel de contadores e

botões. Os seus conhecimentos de aviação eram bastante rudimentares. As mãos de Konstantin

tremiam.

— Vou ligar o motor.

As hélices vibraram e começaram a girar. Leo espreitou pela janela. Tinham atraído as

atenções dos soldados. Os oficiais encaminhavam-se na sua direcção.

O avião rolou na pista para a posição. O rádio crepitou, mas antes que a torre de controlo

pudesse comunicar com eles, Leo desligou-o. Era melhor o jovem piloto não ouvir as suas

ameaças. Lazar, sentado atrás, deu uma palmadinha no ombro de Leo, apontando para o lado de

fora da janela. Os soldados corriam atrás do avião, de armas em riste.

— Konstantin, temos de descolar.

O avião começou a acelerar.

Os soldados corriam depressa, paralelamente à cabine. Assim que o avião ganhou

velocidade, deixando-os para trás, começaram a disparar, ricocheteando o motor. O avião

ganhava velocidade, preparava-se para descolar. Iam conseguir escapar. Leo ergueu os olhos

para o céu. O bombardeiro Tupolev TU-4 descia em direcção a eles.

O jovem piloto abanou a cabeça, desacelerando. Leo disse:

— Não desacelere. É a única hipótese que temos!

— Que hipótese!

— Temos de descolar!

— Vamos despenhar-nos! Não vamos conseguir passar por cima do bombardeiro!

— Voe na direcção do Tupolev. Eles hão-de ascender. Faça-o!

Estavam a aproximar-se do fim da pista.

240

Page 241: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O Ilyushin descolou; agora seguia numa rota de colisão aérea com o bombardeiro. Ou o

Tupolev abandonava a descida, ou ambos os aviões colidiam. Konstantin gritou:

— Não se estão a desviar! Temos de aterrar!

Leo agarrou na mão de Konstantin, mantendo o curso com firmeza; se aterrassem,

seriam apanhados e fuzilados. Não tinham nada a perder. Mas a tripulação do bombardeiro

tinha.

O Tupolev guinou para cima, uma ascenção abrupta, no momento em que o Ilyushin

voou por debaixo dele; o estabilizador raspou a barriga do bombardeiro quando os dois aviões

passaram um pelo outro. Diante deles, pela primeira vez, havia um céu aberto. Konstantin

sorriu; o sorriso perplexo de um homem que não conseguia bem acreditar que estava vivo.

Leo saiu do seu assento e juntou-se a Lazar nas traseiras. Magadan não era mais que uma

colecção de luzes numa vasta escuridão. Aquele era o mundo para onde Leo banira Lazar – um

terreno inóspito que tinha sido a sua casa durante os últimos sete anos.

241

Page 242: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Moscovo

No mesmo dia

RSentada na cama de Elena, Raisa contemplava-a enquanto dormia. Desde a visita de

Fraera, as interrogações de Elena tinham-se tornado mais assertivas, como se sentisse que a

situação mudara. As promessas de que o regresso de Zoya estava imininete já não lhe bastavam.

Tinha-se tornado imune às promessas, contentando-se com elas durante uma hora ou duas, antes

de o seu efeito desvanecer e se tornar a instalar uma profunda desconfiança.

O telefone tocou. Raisa saiu apressadamente do quarto, correndo para o auscultador:

— Estou?

— Raisa, é Frol Panin. Contactámos Leo via rádio. O avião está a caminho. Estará na

cidade em menos de cinco horas. Lazar está com ele.

— Já contactou Fraera?

— Acendeu-se uma vela numa janela designada em vários edificios governamentais,

incluindo o Lubyanka. Foi o sinal acordado. Agora estamos à espera de receber instruções

para a troca. Quer esperar Leo no aeroporto?

— Com certeza.

— Vou mandar um carro quando o avião estiver próximo. Está quase, Raisa. Estamos

quase a tê-la.

Raisa pousou o auscultador. Porém, permaneceu junto ao telefone, reflectindo naquelas

palavras.

Estamos quase a tê-la.

Panin falava da captura de Fraera: tinha pouco interesse na sua filha. Apesar de aquele

homem ser bastante atrativo, Raisa concordava com a avaliação de Leo relativamente ao seu

carácter: havia nele algo de frio.

Elena estava parada no corredor. Raisa estendeu-lhe a mão. Elena aproximou-se,

aceitando a mão. Depois de a guiar até à cozinha, Raisa sentou-a à mesa. Aqueceu leite no

242

Page 243: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

fogão, despejando numa caneca. Colocou depois a caneca diante de Elena. A pequena assoprou

o liquido antes de perguntar:

— Zoya vem para casa hoje à noite?

— Sim. Vem.

Elena pegou na caneca e deu um sorvo satisfeito.

Já não havia tempo para considerar a oferta de Fraera. Raisa já não acreditava no plano

de Leo. Depois de a ter conhecido, depois de ter visto a raiva que a consomia, não fazia sentido

entregar Zoya a Leo e torná-lo um herói. Conseguiria com essa troca de detidos tudo o que

Fraera resolvera que ele nunca haveria de ter: uma filha, felicidade, decência e a família reunida.

Quando devolvesse Lazar à liberdade, provaria o seu valor a Zoya. Tal premissa estava errada.

E, tipicamenye, a crença de Leo nela era ingénua. Zoya corria perigo. Não era Leo quem a devia

salvar.

Raisa abriu uma gaveta, retirando de dentro uma vela vermelha comprida. Colocou-a no

peitoril da janela, de maneira a ser vista na rua em baixo, acendeu um fosfóro e deu fogo ao

pavio. Elena perguntou:

— O que estás a fazer?

— Estou a acender uma vela para Zoya encontrar o caminho de regresso a casa.

Raisa espreitou para a rua. A vela estava acesa. O sinal estava dado. Aceitaria a oferta

de Fraera. Deixaria Leo.

243

Page 244: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Malysh estava sentado na borda do canal, ouvindo a água do esgoto correr. Dois meses

antes, tal gesto faria todo o sentido. Era horrível e brutal e ele sabia o lugar que ele ocupava.

Agora sentia-se confuso. Alguém gostava dele, não por ele saber usar uma faca ou roubar, não

por ele ser útil, alguém gostava dele porque…não sabia ao certo porquê. Porque gostava Zoya

dele? Nunca tinham gostado dele antes. Não fazia sentido. Salvara-lhe a vida sem motivo

nenhum. Quando confrontada com uma oportunidade de escapar e de se libertar dos raptores, não

só a recusou, como arriscou a vida por ele.

Fraera aproximou-se, sentando-se a seu lado, as pernas balançando lado a lado como dois

amigos sentados na margem de um rio, só que em lugar de haver peixes e folhas caídas passando

diante deles, o lixo da cidade corria-lhes sob os pés. Fraera perguntou:

— Por que te escondes aqui?

Malysh queria ficar em silêncio, petulante; mas era um insulto imperdoável não

responder, por isso murmurou:

— Não me sinto bem.

Para sua surpresa, Fraera riu-se.

— Dois meses antes terias matado aquela rapariga, sem segundos pensamentos.

Com um ar sério, Fraera pousou-lhe uma mão no ombro:

— Preciso de saber se irás fazer tudo o que eu te disser, sem questionar.

— Nunca lhe desobedeci.

— Nunca discordaste de nada do que te mandei fazer.

Malysh não podia contestar: era verdade, nunca tivera uma opinião contrária, até agora.

Juntara-o com Zoya para o testar. Tinha fabricado aquela relação entre Zoya e ele, a fim de

compará-la com a relação deles os dois.

— Malysh, quando estive presa, ouvi uma história, contada por um detido checheno. É

de um épico Nartiano, sobre um herói chamado Soslan. Era costume dos Narts vingar não

apenas as ofensas cometidas contra eles, mas todas aquelas cometidas contra a sua familia a

antecessores, fosse qual fosse a antiguidade do crime. Não havia perdão. As rixas duravam

centenas de anos. Soslan passou uma vida inteira em busca de vingança. Quando fores mais

velho, Malysh, vais precisar de um novo nome. Eu gostava que fosse Soslan.

244

Page 245: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Embora o seu tom de voz não tivesse mudado, permanecendo brando e contudo sério,

Malysh sentiu perigo. Fraera ergueu-se.

— Vem comigo.

Malysh seguiu Fraera por entre os túneis e câmaras até à cela de Zoya. Destrancou a

porta. Zoya estava encostada a um canto, após tê-los ouvido aproximar-se. Procurou a

confirmação nos olhos de Malysh de que algo não estava bem. Fraera pegou no pulso de Zoya,

puxando-a para a porta. Confuso, Malysh não sabia se havia de obedecer ou protestar. Antes que

pudesse decidir-se, Fraera bateu a porta atrás de si: fechando-o lá dentro. Deu um salto,

agarrando-se às barras, ao mesmo tempo que espreitava para fora: indefeso.

— Zoya!

Zoya foi levada.

245

Page 246: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Depois de ter atravessado a União Soviética de lés a lés, desde a costa do Pacífico à

capital, o contador de combustível do Ilyushin estava no limite inferior. Tinham uma só hipótese

de aterragem. Abatera-se sobre eles uma tempestade: o avião penetrava através de furiosas

nuvens negras. Lazar estava nas traseiras, mordiscando biscoitos com o lado bom da boca. Leo

estava atado na caderia do co-piloto, tentando evitar que a confiança de Konstantin derrocasse.

Voando em direcção à pista de aterragem militar de Stupino, nos arrabaldes de Moscovo, o avião

preparou-se para a descida. Com a voz tomada de pânico, Konstantin declarou:

— Já devia de conseguir ver as luzes!

Quando atravessaram a base da nuvem, em lugar de as luzes se estenderem ao longe,

surgiram directamente de debaixo deles. O avião estava demasiado alto. Em pânico, Konstantin

guinou para uma descida mais acentuada: uma inclinação catastrófica. Corrigiu-a

freneticamente, ao mesmo tempo que endireitava a máquina, mergulhando o avião para a pista de

aterragem. As rodas embateram no solo com estrondo, girando brevemente antes de se partirem;

os tocos rasparam ao longo do asfalto, abrindo o avião, como se estivesse lhe abrissem o fecho de

correr. A ponta de uma asa embateu no chão, virando o avião estirpado sobre o estômago

rasgado cento e oitenta graus, arremessando-o para fora da pista; as hélices ficaram a rodar na

lama.

Entorpecido, com a testa a sangrar, Leo tirou o cinto de segurança, ergueu-se, e abriu a

porta do coquepite, surgindo diante de si uma cabine rasgada ao meio. Lazar sobrevivera por

acaso, sentado no lado oposto aos estragos; em seu redor o revestimento do avião formava uma

auréola intacta. O jovem piloto, ocupando ainda o seu assento, começou a rir-se, berros histéricos

de felicidade – quase num estado de loucura –, ao mesmo tempo que a chuva que penetrava

através da janela partida lhe escorria rosto abaixo.

Não pareceu a Leo que o avião se pudesse incendiar: não tinha combustivel e a chuva era

intensa, ensopando os motores fumegantes. Como era seguro deixar o piloto para trás, ajudou

Lazar a trepar para fora do ventre destroçado do avião, escalando por entre os escombros,

Servindo-se da asa para descer até ao terreno lamacento. Os veículos de emergência vieram

246

Page 247: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

rapidamente na sua direcção, os paramedicos aproximaram-se. Leo fez sinal de que não era

necessária assistência médica, respondendo por ambos.

— Estamos bem.

Agora, era ele a voz de Lazar. Frol Panin desceu da sua limusine executiva; um guarda

movendo-se em perfeita sincronzação, abriu um chapéu-de-chuva por cima dele. Ofereceu a mão

a Lazar:

— O meu nome é Frol Panin. Peço desculpa por não ter organizado a sua liberdade

mais convenientemente. Os actos cometidos pela sua esposa impossibilitaram uma libertação

oficial. Venha, temos de nos apressar. Podemos falar no carro.

No assento traseiro da limusine Zil, Lazar estudou os suaves estofos de couro, e os

painéis de nogueira com um fascinio infantil. Havia cubos de gelo num pequeno balde de prata.

Havia uma taça com fruta fresca. Lazar serviu-se de uma laranja, cortando-a nas mãos,

apertando-a. Panin ignorou educadamente o seu comportamento; o espanto de um condenado

rodeado de coisas luxuosas. Entregou um mapa de Moscovo a Leo.

— Foi tudo o que recebemos de Fraera.

Leo examinou o mapa. Um lugar central marcado com um crucifixo de tinta:

— O que há neste local?

— Não conseguimos encontrar nada. Podemos apenas presumir tratar-se de um ponto

de encontro.

— Duvido.

O carro pôs-se em movimento.

— Onde está Raisa?

— Falei com ela esta tarde. Disse-me que esperaria pelo carro. Mas quando o carro

chegou, encontrámos os seus pais tomando conta de Elena. Raisa tinha saído.

Alarmado, Leo inclinou-se para diante no assento:

— Tinha saído? Devia estar a ser protegida por escolta.

— Não podemos proteger alguém que não quer ser protegido.

— Não sabeis onde ela está?

— Sinto muito, Leo.

Leo recostou-se no assento. Não tinha qualquer dúvida de que Fraera estava envolvida

no desaparecimento de Raisa.

247

Page 248: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

Eram duas da madrugada quando alcançaram o centro da cidade. O contraste com a

paisagem desolada de Kolyma era tão marcante que Leo se sentiu agoniado pela desorientação,

uma sensação exacerbada pela privação do sono e uma ansiedade sonora. Pararam no meio da

Moskvoretskaya Naberezhnaya, a rua principal que corria ao longo do rio Moskva, no ponto

marcado no mapa. O motorista desceu do carro, puxando a arma. O guarda-costas de Panin

juntou-se-lhe. Os dois oficiais controlaram a área, regressaram depois para junto do carro e

abriram a porta de trás.

— Não há aqui nada!

Leo saiu para a chuva; chovia tão intensamente que ficou ensopado numa questão de

segundos. A rua estava vazia. Deveriam esperar? Fechou os olhos. Conseguia ouvir a chuva

escoar-se na sarjeta. Agachou-se. A tampa encontrava-se debaixo do carro.

— Avance com o carro!

A limusine avançou, expondo a tampa. Leo abriu-a, afastando-a para o lado. Os guardas

encontravam-se um de cada lado, de armas puxadas. O poço era fundo. Não se encontrava

ninguém na escada.

Leo regressou ao carro:

— Tem por aí lanternas?

Panin assentiu:

— Na mala.

Leo abriu a mala, verificou as lanternas e entregou uma a Lazar.

Depois, tomou a dianteira e desceu em primeiro lugar, agarrando-se às escadas, ao

mesmo tempo que a recordação arrepiante da pele arrancada das mãos e a dor em tempo real que

sentia nos joelhos lhe afogavam o espírito. Folhas de chuva derramavam-se na borda do poço,

salpicando-lhe as mãos, o pescoço e o rosto. Lazar seguiu-o. Panin gritou do alto:

— Boa sorte.

Leo questionou-se como é que os iriam seguir. Assim que ambos se encontraram abaixo

do nivel da rua, fecharam a tampa da sarjeta; ouviu-se o retinir metálico da tampa, pondo fim aos

jorros de água da chuva e à luz da rua. Na escuridão negra como fuligem estacaram e ligaram as

lanternas, antes de prosseguirem a descida.

248

Page 249: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Assim que alcançou o fundo da escada, Leo observou o túnel principal. Estava repleto de

uma torrente de água branca, torvilhante. A chuva intensa causara uma inundação. Em lugar de

um canal modesto e imundo, serpenteavam pela cidade cascadas de água estrepitantes. Sem saber

ao certo se era possível avançar, Leo foi obrigado a presumir a existência de algum tipo de

caminho. Não o conseguia ver, mas tinha de lá estar. Para testar a sua teoria, dependurou-se,

explorando hesitantemente o chão com a bota. O passadiço estreito estava submerso em água.

Leo gritou a Lazar, projectando a voz acima do barulho:

— Não se afaste da parede!

Lazar desceu, guiado por Leo. Encostados à parede, os dois homens rodaram com as

luzes em todas as direcções, procurando algum tipo de instrucção. Ao longe, a cerca de cem

metros mais adiante no túnel, havia um único globo de luz laranja.

Começaram a encaminhar-se para a luz, forçados a transpor o estreito passadiço. O nível

da água no túnel subia, salpicando em redor dos joelhos. Cada passo requeria uma concentração

feroz. A poucos metros de distância, Leo viu uma lanterna fixa à parede acima dos umbrais de

uma porta. Raspou a grossa camada de lodo que forrava as paredes e abriu-a. A água entrou pelo

vão, descendo um lanço de escadas de cimento, seguindo depois para câmaras subterrâneas.

Entraram apressadamente, fechando a porta atrás deles e detendo a entrada da água – aliviados

por terem deixado o perigoso passadiço para trás.

No interior da estreita escada espiralada o ar estava húmido e quente. Desceram em

silêncio, ao mesmo tempo que o barulho das suas respirações ecoava na câmara fechada. Cerca

de cinquenta passos depois, depararam-se com outra porta. Leo empurrou com força o aço, ao

mesmo tempo que as dobradiças rangiam. Não fedia a esgotos, não se ouvia água a correr,

apenas silêncio. Leo voltou-se para Lazar:

— Fique aqui.

Leo entrou num novo túnel, explorando-o com a lanterna. As paredes estavam secas.

Embateu com o pé num trilho: encontravam-se num túnel de metropolitano.

Como uma alvorada subterrânea, surgiu uma suave luz amarela, emanando de uma

antiquada lanterna mineira, uma chama tremeluzente de gás na mão de um homem. Vinha

sozinho; possuía uma compleição grotescamente musculosa, tatuagens estendidas ao longo das

mãos e do pescoço.

— Não se mexa.

249

Page 250: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O vory revistou-o. Satisfeito, revistou Lazar. Quando terminou, fechou a porta de aço

que conduzia aos esgotos, e trancou-a. Deu meia volta, indicando a direcção na qual começariam

a caminhar. Avançaram, Leo na dianteira; Lazar mesmo atrás dele, o vory atrás, comentando, à

medida que seguiam:

— Esta linha de metropolitano não está nos mapas. Depois de ter ficado pronta, os

operários foram executados, de maneira a que a sua existência pudesse permanecer um segredo.

Chama-se spetztunnel, e vai do Kremlin a Ramenkoye, uma cidade subterrânea a cerca de

cinquenta quilómetros daqui. Os comboios são de metal reluzente; são polidos todos os dias. Se

o Ocidente nos atacar, os nossos líderes descem até aqui, sentam-se em almofadas de seda

enquanto Moscovo arde.

Passada alguma distância, o vory parou de andar.

— Aqui.

Havia uma parede metálica na parede. Leo abriu-a, alumiando a escada de cimento

acima, grato por tornarem a subir.

— Espere!

O vory trocou a sua lanterna pelas suas. Depois da troca, penetraram na câmara. O vory

fechou a porta atrás deles. Segundos depois ouviu-se um som sibilante: a fechadura foi

inutilizada com ácido. Niguém os podia seguir.

Alagados em suor, alcançaram o topo dos degraus, onde encontraran uma porta

destrancada, saindo para a estação de metropolitano de Taganskaya. Leo saiu para a estação, no

meio da Praça Taganskaya, um importante encontracamento; exasperado, tentava descortinar o

que fazer a seguir. Lazar ergueu o braço, apontando na direcção do rio, a cerca de duzentos

metros. Estava uma mulher parada no meio da ponte Bolshoy Krasnokholmskiy.

Leo apressou-se; Lazar acompanhou-o. Quando alcançaram a margem do rio, sem a

protecção dos edifícios, o vento reduplicou a força, açoitando chuva. A ponte era um arco de

cimento rígido e, em baixo, rodopiando, o Moskva estava tumultuoso com a chuvada daquela

noite. A mulher permaneceu no meio da ponte, esperando-os, com a chuva a sovar-lhe o casaco.

Quando se aproximou, Leo reconheceu o casaco. Era seu.

Raisa baixou o capuz.

Leo correu ao seu encontro, e, quando a alcançou, segurou-lhe nas mãos, confuso pelas

emoções, sentindo um misto de preocupação e alívio. Raisa soltou as mãos das suas.

250

Page 251: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Por que não me contaste o que se passou com Zoya? Ela segurou uma faca por cima

de ti. E tu disseste-me que não se passava nada. Mentiste-me sobre uma coisa dessas? O que

tínhamos nós prometido? Que não haveria mais mentiras! Não haveria mais segredos! Nós

prometemos Leo!

O alivio foi-lhe imediatamente sugado do espírito.

— Raisa, eu entrei em pânico. Queria uma hipótese para endireitar as coisas antes de te

contar.

— Tiveste tantas hipóteses de me contar.

— Depois de saíres do hospital, estava a preparar-me para ir para Kolyma. Tu ainda

estavas fraca.

— Leo, não sou eu a fraca. És tu! Tu foste fraco e vaidoso. O propósito de tudo isto

não é tornares-te num herói. O propósito de tudo isto é o que é melhor para Zoya e Elena.

Encontrei-me com Fraera. Veio procurar-me. Posso dizer-te o seguinte: ela nunca irá entregar-

te Zoya. Nem pensar! Isso nunca irá acontecer.

A sul da ponte apareceram os faróis de um carro, fachos de luz nublados pela chuva

forte. O carro acelerou na direcção deles; Leo foi obrigado a levantar a mão, para proteger os

olhos dos pontentes faróis. O carro travou. As portas abriram-se. O condutor era um vory.

Fraera desceu do assento ao lado do condutor, indiferente à chuva. Olhou para Leo e depois para

Raisa, antes de concentrar a sua atenção em Lazar, o marido.

Lazar aproximou-se dela, inseguro, manifestamente chocado, apesar dos avisos de Leo

acerca da sua transformação. Estacaram diante um do outro. Explorando a sua aparência, tocou-

lhe no lado do rosto, sentindo a forma do maxilar ferido. Ele piscou os olhos de dor, mas ela não

se afastou. Disse então:

— Sofreste.

Leo observou Lazar enquanto ele proferia as palavras:

— Temos…um filho?

— O nosso filho está morto. A tua mulher está morta. Não temos nada.

Um tiro, uma centelha de luz – Lazar caiu de joelhos, agarrado ao estômago.

Com uma reacção institiva, Leo correu ao seu encontro, segurando-o quando ia a cair. A

camisa estava vermelha de sangue. Os dentes estavam vermelhos de sangue. Desconcertado,

Leo voltou-se, erguendo os olhos para Fraera:

— Porquê?

251

Page 252: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Não há lugar para ele.

Fraera ergueu a arma, disparando de novo.

Houve um silêncio. Leo não conseguia sequer ouvir o barulho do comboio. Uma

campainha soava-lhe nos ouvidos. Fraera tinha disparado sobre Lazar. Olhando para baixo para

o corpo de Lazar, deitado nos seus braços, viu que o homem que ele traira, e salvara, o homem

que lhe salvara a vida, estava morto. Lentamente, Leo baixou-lhe o corpo, deitando-o na rua e

fechando-lhe os olhos.

Fraera agarrou Leo pela camisa:

— Vai para a frente do carro.

Acenou com a arma para Raisa:

— Tu também!

Leo ergueu-se e subiu para o assento do condutor. Raisa sentou-se no assento ao lado.

Zoya estava no banco de trás, de pulsos e tornozelos atados. Estava amordaçada; os olhos

aterrorizados. O carro tinha sido modificado. Havia uma grade entre eles. Raisa e Leo

encostaram as mãos ao ferro simultaneamente.

— Zoya!

Zoya encostou o rosto ao outro lado, suplicando por socorro através da mordaça. Os seus

dedos tocaram-se. Leo abanou freneticamente a grade, mas estava bem segura.

A porta de trás abriu-se: Fraera inclinou-se para o interior, agarrou em Zoya e puxou-a

para fora do carro. Leo dava voltas, tentando abrir a porta. Estava trancada. Não podia ser

aberta por dentro. Raisa tentou abrir a porta do seu lado, mas sem sucesso. Fraera e o vory

carregaram Zoya para a mala. O vory pegou num saco de grão e abriu-o, enquando Fraera

enfiava Zoya lá dentro.

Leo virou-se, apontando as botas directamente à janela lateral. Dava coices, como um

burro, mas as solas ricocheteacam no vidro. Pontapeou-o uma e outra vez, as botas a

ricochetearem, o vidro a permanecer intacto. Raisa gritou:

— Leo!

Leo passou para o lado do carro onde se encontrava Raisa, mais próximo do rio. O vory

e Fraera carregavam o saco; Zoya debatia-se para se soltar, contorcendo-se, aos pontapés, lutando

pela sua vida. O vory esbofeteou-a, acabando com a sua resistência tempo suficiente para enfiá-

la no saco e fechá-lo. Os dois levantaram então o saco. Verificaram o peso. Zoya, incosciente,

252

Page 253: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

foi içada para o parapeito da ponte. Leo tinha o rosto encostado ao vidro enquanto observava o

saco a ser atirado da ponte. Vislumbrou-o cair, e depois desapareceu, mergulhando no rio.

Fraera empoleirou-se no tejadilho do carro, agachando-se, com o rosto próximo do vidro

da frente, o olhar em chamas, absorvendo a sua dor, como um gato lambendo natas. Explodindo

em raiva, Leo socou o vidro da frente, batendo em vão com os punhos, encarcerado atrás do vidro

à prova de bala. Fraera observava, deliciando-se com a sua impotência; depois saltou de cima do

carro e montou-se nas traseiras de uma mota. Leo nem havia sequer reparado que as duas

motorozidas tinham estacionado ao lado deles.

Encarcerado no carro, Leo arrancou a ignição, expondo os fios. Depois de fazer a

ligação, mergulhou o pé no acelerador, e ligou o motor; seguiu em perseguição de Fraera. Raisa

gritou:

— Leo! Zoya!

Leo não estava a perseguir Fraera. Quando alcançou suficiente velocidade, guinou

violentamente para a esquerda, em direcção à barricada. O carro embateu na na berma da ponte,

abrindo um rombo na carroçaria. Com o motor a fumegar, as rodas a girar no passeio, Leo virou-

se para a mulher. Raisa tinha-se cortado na cabeça, mas já não se encontrava no assento, tinha

trepado pelo lado destruído do carro. Leo seguiu atrás dela cambaleante, até alcançarem o local

onde tinham deixado cair Zoya.

Raisa saltou primeiro; Leo logo atrás. Enquanto caía, viu Raisa entrar na água, pouco

antes de as suas pernas quebrarem a sua superfície. Debaixo de água, a corrente puxava-os para

baixo. Enquanto era puxado para o fundo, resistiu ao impulso de regressar à superficie e nadou

em direcção ao fundo, com a força da corrente, onde Zoya poderia estar. Não sabia a

profundidade do rio; dava aos pés e às mais com maior força, ao mesmo tempo que lhe

começavam a arder os pulmões, dificultando-lhe a descida. As mãos tocaram no fundo, lama

grossa. Olhou em roda, sem conseguir ver nada. A água estava negra. Quando voltou a

ascender, tentou procurar, andando à roda, mas era inútil: não conseguia ver nada. Desesperado

por ar, foi forçado a regressar à superfície; tossiu. Olhando em roda, descobriu que a ponte

encontrava-se já ao longe atrás de si.

Leo inspirou fundo, preparando-se para tornar a mergulhar, quando ouviu os gritos de

Raisa:

— Zoya!

Era um grito impotente, um lamento desconsolado: na voz já lhe pesava o luto.

253

Page 254: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Cinco meses mais tarde

254

Page 255: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Moscovo

20 de Outubro

Filipp partiu o pão, estudando a forma como a massa ainda quente se rasgava, esticando-a

brevemente antes de a rasgar em tiras desiguais. Tirou um pedaço e pô-lo na língua, mastigando-o

devagar. O pão estava perfeito, o que significava que a fornada estava perfeita. Quis saciar-se,

espalhando uma grossa camada de manteiga, que iria amolecer e derreter. Porém, não conseguiu

engolir o mais pequeno bocado. Parado diante do caixote do lixo, cuspiu a pegajosa bola de

masa. O desperdício de comida horrorizava-o, mas não teve outra escolha. Apesar de ser padeiro,

e um dos melhores na cidade, Filipp, um homem de quarenta e sete anos apenas podia consumir

líquidos. Era atormentado por úlceras no estômago, persistentes e incuráveis, há uns dez anos.

Os intestinos estavam marcados por crateras repletas de ácido – as cicatrizes ocultas deixadas

pelo regime de Estaline, testemunho das noites passadas em claro com a preocupação de ter sido

demasiado duro com os homens e mulheres seus subalternos. Era apaixonado, um perfecionista.

Quando se cometiam erros, perdia as estribeiras. Os trabalhadores insatisfeitos podiam ter escrito

um relatório, acusando-o de ser burguês, de possuir tendências elitistas. E mesmo hoje, essa

recordação queimava-lhe as tripas. Encaminhou-se apressadamente para a sua mesa, onde

misturou uma solução de giz; engoliu a água branca, com um sabor nauseabundo, recordando-se a

si próprio que tais preocupações pertenciam ao passado. Já não havia detenções à meia-noite. A

sua família estava segura e ele não denunciara ninguém. Tinha a consciência tranquila. O preço

tinha sido as paredes do seu estômago. No cômputo geral, esse preço, mesmo para um padeiro e

amante de comer, o preço não era demasiado alto.

A água de giz acalmou-lhe os intestinos, e ele censurou-se a si mesmo por estar a

rebuscar no passado. O futuro era radiante. O Estado estava a reconhecer o seu talento. A

padaria estava a crescer, ocupando o edifício inteiro. Antes disso, Estava limitado a dois andares,

e o andar de cima fora destinado a uma Fábrica de Botões, um disfarce de um ministério secreto

do governo. Esta situar-se por cima da padaria nunca lhe parecera bem: as salas estavam cheias

de pó de farinha e sobreaquecidas com o calor dos fornos. Na verdade, queria-os fora dalo

255

Page 256: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

porque precisava de espaço. Além do mais, nunca lhe agradara o aspecto das pessoas que ali

trabalhavam. Os seus uniformes e conduta fechada agravavam-lhes o estômago.

Encaminhou-se para a escada comum e espreitou para o andar de cima. Os antigos

ocupantes tinham passado os dois últimos dias a esvaziar os armários e a retirar a mobília do

escritório. Quando alcançou o patamar, deteve-se à porta, reparando na série de pesados

cadeados. Tentou a maçaneta. A porta abriu-se com um clique. Empurrou a porta e estudou o

espaço sombrio. As salas estavam vazias. Encorajado, penetrou nas suas novas instalações.

Enquanto tacteava em busca do interruptor da luz, divisou um homem encostado à parede do

fundo.

Leo levantou a cabeça, piscando os olhos à claridade da lâmpada do tecto. O padeiro, um

homem magro como um arame, surgiu no seu campo de visão. A garganta de Leo estava seca.

Tossiu, ergueu-se, escovou a roupa com as mãos e observou os oficiais angustiados do

departamento de homicidios. Os dossiês confidenciais, provas dos crimes que ele e Timur

haviam resolvido, tinham sido retirados. Estavam a ser incinerados; todos os vestígios do

trabalho que ele tinha feito nos últimos três anos iam ser destruído. O padeiro, cujo nome ele

desconhecia, estava ali parado de forma estranha – o embaraço de um homem compassivo

testemunhando o infortúnio de um outro cidadão. Leo disse:

— Três anos que nos cruzámos nas escadas e nunca lhe perguntei o seu nome. Não

queria…

— Preocupar-me?

— Tê-lo-ia preocupado?

— Honestamente, sim.

— O meu nome é Leo.

O padeiro ofereceu-lhe a mão. Leo apertou-a.

— O meu nome é Filipp. Três anos, e nunca lhe ofereci um pão.

Ao deixar o seu gabinete pela última vez, Leo olhou para trás, antes de fechar a porta.

Seguiu Filip pelas escadas, sentindo uma espécie terrível de delírio; chegados ao andar de baixo,

aquele ofereceu-lhe um pão redondo – ainda quente, a crosta dourada. Abriu o pão, mordendo-o.

Filipp estudou a sua reacção cuidadosamente. Quando compreendeu que o outro esperava uma

opinião sua, Leo acabou de mastigar e disse:

— É o melhor pão que já alguma vez comi.

E era verdade. Filipp sorriu de alegria. Encorajado, perguntou:

256

Page 257: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— O que faziam ali em cima? Porquê todo aquele secretismo?

Antes que Leo tivesse uma oportunidade de responder, a questão foi retirada:

— Não faça caso. Não devia meter o nariz onde não sou chamado.

De pão na boca, Leo despediu com um gesto de mão as suas reservas:

— Estava encarregue de uma divisão especial da milícia, um departamento de

homicídios.

Filipp permaneceu em silêncio. Não compreendia. Leo acrescentou:

— Investigámos assassínios.

— Havia muito trabalho?

Leo assentiu com um leve gesto de cabeça:

— Mais do que pode pensar.

Leo aceitou mais um pão para levar para casa, para além daquele que ainda tinha na mão,

e voltou-se para sair. Filipp chamou, tentanto despedir-se com uma nota positiva:

— Aqui faz muito calor no Verão. Deve estar contente por se mudar para outro local?

Leo baixou os olhos, estudando o padrão das pegadas de farinha:

— O departamento não se vai mudar. Foi fechado.

— Então e o senhor?

Leo ergueu os olhos:

— Vou para o KGB.

257

Page 258: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

O Instituto Serbsky era um edifício de tamanho modesto, com varandas de aço

recurvadas em torno das janelas dos andares superiores, assemelhando-se mais a um atractivo

bloco de apartamentos do que a um hospital. Raisa estacou, como era seu costume fazer chegada

àquele ponto, a cinquenta metros de distância. Baixou os olhos para Elena, a seu lado, segurando-

lhe na mão. Estava desmedidamente pálida, como se lhe desbotasse o corpo. Tinha perdido peso

e estava doente com tanta regularidade que a doença se tornara no seu estado habitual. Notando

que o cachecol de Elena se soltara, Raisa agachou-se, tornando a enrolá-lo, ao mesmo tempo que

lhe dizia, num estado de agitação:

— Podemos ir para casa. Podemos ir para casa a qualquer altura.

Elena permaneceu em silêncio, de rosto inexpressivo, como se já não fosse uma menina

real, mas apenas uma réplica criada com pele de papel de seda e dois olhos verdes de pedra, que

não emitiam energia própria. Ou seria ao contrário? Seria Raisa a réplica, agitando-se e cuidando

numa imitação das coisas que uma mãe real faria?

Raisa beijou Elena na face e, não obtendo resposta, sentiu um nó formar-se-lhe no

estômago. Não tinha resistência àquela indiferença, uma indiferença que começara quando ela se

ajoelhara, com os olhos cheios de lágrimas, e lhe sussurrara ao ouvido:

Zoya está morta.

Esperava uma explosão de dor, mas Elena não tivera reacção. Passados cinco meses,

ainda não tinha reagido, pelo menos num sentido comum, exteriorizado.

Raisa ergueu-se, viu se vinha carros, e atravessou a rua, aproximando-se da entrada

principal. O Instituto Serbsky era uma medida desesperada, mas ela estava desesperada. O amor

não as ia salvar. O amor simplesmente não bastava.

No interior – pavimentos de pedra, paredes despidas – enfermeiras ataviadas de

uniformes ligeiros empurravam carrinhos de ferro equipados com correias de couro. As portas

estavam aferrolhadas. As janelas fechadas a barras. Não havia duvida de que a reputação do

258

Page 259: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

instituto como o principal centro psiquiátrico da cidade era mais um ponto de notoriedade do que

de aprovação. Tratava-se de um centro de tratamento para dissidentes; os oponentes políticos

davam ali entrada para comas induzidos por insulina e as ultimas terapias pirógénicas e de

choque. Era um lugar bizarro para se procurar ajuda para uma menina de sete anos.

Nas suas discussões, Leo opusera-se várias vezes a que procurassem ajuda psiquiátrica.

Muitas das pessoas que ele prendera por crimes políticos tinham sido enviadas para um

psikhushka, um hospital como aquele. Embora Leo concordasse, como de facto tinha de o fazer,

que poderiam haver bons médicos integrados num sistema brutal, não acreditava que o risco de

procurar um desses homens e mulheres garantia o potencial ganho com a sua opinião

especializada. Uma pessoa declarar-se doente era o equivalente a colocar-se à margem da

sociedade, um lugar que qualquer pai ou guardião não quer para o seu filho. Contudo, a sua

postura assemelhava-se menos a cautela e mais a uma teimosia obtinada – uma determinação

cega em ser aquele que salvaria a família, ainda que esta se estivesse a desfazer nas suas mãos.

Raisa não era médica, mas compreendia que a doença de Elena era tão ameaçadora como um

alimento físico. Estava a morrer. Era simplista pensar que o problema acabaria simplesmente

por passar.

A mulher atrás do balcão ergueu os olhos, reconhecendo-as das visitas anteriores.

— Estou aqui para ver o Doutor Stavsky.

Tinha precisado de dois meses para conseguir uma consulta com Stavsky; para tal tivera

de agir nas costas de Leo, e falar com amigos e colegas. Apesar de ter passado toda a sua carreira

a tratar dissidentes, com tudo o que tal implicava, Stavsky acreditava no valor da psiquiatria para

além da esfera política e desaprovava os excessos de tratamentos punitivos. Movia-se pelo desejo

de curar e concordara em examinar Elena sem fazer um registo oficial. Raisa confiava nele, tanto

quanto uma pessoa perdida no mar poria a sua fé numa tábua de madeira à deriva. Não tinha

grande escolha.

Chegadas ao andar de cima, o Doutor Stavsky mandou-as entrar e agachou-se diante de

Elena:

— Elena? — Como estás?

Elena não respondeu.

— Lembras-te do meu nome?

Elena não respondeu. Stavsky ergueu-se, dirigindo-se a Raisa com um sussurro:

— Esta semana?

259

Page 260: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Nenhuma mudança, nem uma palavra.

Stavsky encaminhou Elena para a balança.

— Por favor descalça os sapatos.

Elena não respondeu. Raisa ajoelhou-se, descalçou-lhe os sapatos e guiou Elena até à

balança. Stavsky espreitou para o mostrador, notando o peso. Bateu com a caneta no bloco-

notas, correndo com os olhos ao longo dos números acumulados nas passadas semanas. Deu um

passo à retaguarda, espreitando para cima da secretária. Raisa avançou para ajudar Elena a descer

da balança, mas Stavsky deteve-a, indicando-lhe que deixasse Elena onde estava. Esperaram.

Elena permaneceu em cima da balança, de rosto voltado para a parede, sem fazer um movimento.

Dois minutos converteram-se sem cinco, e cinco em dez, e Elena continuava sem se mexer.

Finalmente, Stavsky fez sinal a Raisa para ajudar Elena a descer da balança.

De lágrimas nos olhos, Raisa acabou de atar os atacadores dos seus sapatos e ergueu-se,

fazendo menção de colocar uma questão quando se deparou com Stavsky ao telefone. Desligou,

colocando o bloco em cima da mesa. Ela não sabia como nem porquê, mas sabia que tinha sido

traída. Antes que pudesse reagir, o médico disse-lhe:

— A senhora veio procurar a minha ajuda. A minha opinião é que Elena precisa de ser

vigiada de forma profissional, a tempo inteiro.

Dois auxiliares masculinos entraram na divisão, fechando a porta atrás deles, como uma

armadilha fechando com estrépito. Raisa envolveu Elena com os braços. Stavsky aproximou-se

devagar:

— Tratei de tudo para ela ser admitida num hospital na cidade de Kazan. Conheço o

pessoal do hospital muito bem.

Raisa abanou a cabeça, tanto em sinal de incrdulidade, como de repúdio à sua proposta:

— Já não lhe cabe só a si, Raisa. A decisão foi tomada no interesse desta menina. A

senhora não é mãe dela. O Estado designou-a sua guardiã. O Estado está a tirar-lhe a guarda.

— Doutor…

Cuspiu a palavra com desdém:

— Não a vai levar.

Stavsky aproximou-se, murmurando:

— Vou dizer a Elena que ela vai com estes enfermeiros para Kazan. Vou dizer-lhe que

não a voltará a ver. Tenho a certeza de que não irá reagir. Vai sair desta sala, com aqueles

260

Page 261: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

dois estranhos e nem sequer vai olhar para trás. Se ela fizer isso, acreditará então que não a

pode ajudar?

— Recuso-me a aceitar esse teste.

Stavsky ignorou Raisa e agachou-se, falando devagar e com clareza:

— Elena, vais ser levada para um hospital especial. Irão tentar ajudar-te a melhorar. É

possível que nunca mais voltes a ver Raisa. Mas tenho a certeza de que irão cuidar bem de ti.

Aqueles senhores ali irão ajudar-te. Se não quiseres ir, se preferires ficar, se preferirees ficar

com Raisa, só precisas de o dizer. Só precisas de dizer que não. Elena? Estás a ouvir-me? Só

precisas de dizer que não.

Elena não respondeu.

261

Page 262: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Inessa, a viúva de Timur, abriu a porta da entrada, recuando alguns passos. Leo entrou

no apartamento, já sem esperar, como esperara durante vários meses depois de regressar de

Kolyma, que Timur fosse aparecer da cozinha, explicando que não tinha sido morto, que

sobrevivera e conseguira regressar a casa. Tinha sido muito feliz ali, rodeado pela sua família.

Era um homem extremamente doméstico, difícil de separar da sua casa. Contudo, a designação

de alojamento era um processo despiedado. De acordo com os cálculos do sistema, a morte de

Timur significava, quase de modo inquestionável, que a família precisava de menos espaço.

Além do mais, o moderno apartamento era um benefício do seu emprego. Inessa trabalhava

numa fábrica de têxteis, e os homens e mulheres com quem ela trabalhava contentavam-se com

condições de vida bastante mais modestas. Valendo-se da sua influência, Leo lutara para manter

a família onde estava, solicitando a intervenção de Frol Panin. Sentindo-se porventura de alguma

forma responsável pela morte de Timur, Panin concordara. Para surpresa de Leo, Inessa sentira-

se tentada pela perspectiva de se mudar. Todas as divisões estavam impregnadas de memórias

dele. E todas essas memórias deixavam-na desalentada. E só cedeu quando Leo lhe mostrou os

blocos de apartamentos para onde a família se iria mudar, com uma única divisão, casas de banho

partilhadas, paredes finas, e apenas por causa dos filhos. Se estivesse sozinha, ter-se-ia mudado

no mesmo dia.

Leo abraçou Inessa. Quando se separaram, ela aceitou o pão que ele lhe ofereceu.

— De onde veio isto?

— Da padaria debaixo dos nossos escritórios.

— Timur nunca trouxe pão para casa.

— As pessoas que trabalham lá tinham demasiado medo de falar connosco.

— E agora já não?

— Não. Agora já não.

Como o movimento de uma sombra, a tristeza perpassou o rosto de Inessa.

262

Page 263: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Os seus dois filhos, Efim, de dez anos, e Vadim, de oito, vieram a correr do quarto para o

cumprimentar. Embora Timur tivesse morrido enquanto estava ao serviço de Leo, os filhos não

lhe guardavam rancor. Pelo contrário, ficavam contentes quando os visitava. Compreendiam que

Leo era muito amigo de Timur, e que o pai também lhe tinha grande estima. Ainda assim, para

Leo, o seu afecto era um prazer frágil, pois sabia que iria um dia acabar. Ainda não sabiam os

detalhes do que se passara. Não sabiam que o pai tinha morrido enquanto tentava corrigir os

erros do passado de Leo.

Inessa correu com a mão pelo cabelo de Efim, à medida que o pequeno falava com

grande excitação dos trabalhos da escola, das equipas desportivas em que jogava. Como era o

filho mais velho, seria ele a herdar o relógio de Timur quando fizesse dezoito anos. Leo tinha

mandado substituir o vidro rachado e o mecanismo interior, que guardara, incapaz de os deitar

fora; ocasionalmente, pegava neles e pousava-os sobre a palma da mão. Inessa não decidira ainda

que história iria contar a Efim acerca das origens do relógio; não sabia se havia de prolongar a

mentira de se tratar de uma valiosa herança de família. Essa decisão teria de ficar para outro dia.

Dirigindo-se a Leo, disse:

— Vai comer connosco?

Leo sentia-se confortável ali. Era amado. Abanou a cabeça:

— Tenho de ir para casa.

#

Quando chegou ao apartamento, descobriu que Raisa e Elena não estavam em casa. Os

seguranças de serviço disseram-lhe que as duas tinham saído para a escola de manhã, não tendo

notado nada fora de vulgar. Sem saber dos seus planos, não fazia ideia do que Raisa estaria a

fazer àquela hora da noite com Elena. Não tinham levado roupas, nem malas. Ligou aos pais,

que também não lhe deram respostas. O seu medo não era Fraera estar envolvida. O assassínio

de Zoya constituira o seu derradeiro acto de vingança contra o pessoal da Segurança Estatal.

Depois de uma ausência de cinco meses, duvidava que Fraera fosse regressar. Não era

necessário. Leo fora magodo exactamente da forma que desejava.

Quando ouviu o barulho de alguém a aproximar-se correu para a entrada e abriu a porta

de rompante. Raisa avançou cambaleante, agarrando-se à ombreira da porta, como embriagada.

Leo tomou-a em peso nos braços. Prescrutou o corredor. Estava vazio.

263

Page 264: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Onde está Elena?

— Ela…foi-se embora.

Dizendo isto, rolou os olhos, deixou cair a cabeça. Leo pegou nela ao colo e levou-a para

o quarto de banho; pô-la debaixo do duche e abriu a água fria.

— Por que estás embriagada?

Raisa arquejou, despertando abruptamente pelo choque da água:

— Não estou embriagada…estou drogada.

Leo fechou a água, desviou-lhe o cabelo dos olhos e ajudou-a a sentar-se na borda da

banheira. Os seus olhos, injectados de sangue, já não estavam a rolar e a fechar-se. Olhou

fixamente para as poças de água que se formavam em torno dos sapatos, já sem a fala indistinta:

— Eu sabia que não ias concordar.

— Levaste-a ao médico?

— Leo, quando uma pessoa que amamos está doente, procuramos ajuda. Ele disse que

não seria oficial, que não haveria papelada.

— Onde é que foste?

— Serbsky.

Quando ouviu o nome – Serbsky –, Leo ficou paralisado. Muitos dos homens e mulheres

que ele prendera tinham sido mandados para lá a fim de serem tratados. Raisa começou a chorar:

— Leo, ele mandou-a embora.

Uma incompreensão muda, e depois raiva, encheram o peito de Leo:

— Qual é o nome do médico?

Raisa abanou a cabeça:

— Não a podes salvar, Leo.

— Como se chama o médico?

— Não a podes salvar, Leo!

Leo ergueu a mão, levando-a atrás, pronto para lhe desferir uma bofetada.

Abruptamente, para desviar a raiva, arrancou o espelho da parede e estilhaçou-o na pia. Os cacos

cortaram-lhe a pele, de onde escorreu sangue, linhas vermelhas enrolando-se-lhe à volta dos

pulsos, pelos braços abaixo. Leo deixou-se cair no chão; em seu torno pedaços de vidro

ensanguentados.

Raisa pegou numa toalha e, sentando-se junto a ele, pressionou-a contra a mão ferida:

264

Page 265: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Pensas que não lutei, Leo? Pensas que não tentei impedi-los de a levarem? Mas eles

sedaram-me. Quando acordei, Elena tinha desaparecido.

Leo ponderou sobre a derrota. Estava completa. As suas esperanças de ter uma família

tinham sido destruídas. Falhara em salvar a vida de Zoya e falhara em persuadir Elena de que

valia a pena viver. Três anos de honestidade e confiança entre ele e Raisa tinham sido apagados.

Mentira-lhe, e essa mentira ficaria para sempre gravada pelas calamidades que se lhe sucederam.

Não tinha zanga a Raisa por ela ter aceite a oferta de Fraera, por ter concordado em deixá-lo. Ela

dissera que não passara de uma manobra táctica, uma tentativa desesperada de salvar Zoya.

Tomou a seu cargo o bem-estar da família. Cometera apenas o erro de esperar demasiado tempo.

A simulação de três anos chegara ao fim. Ele não era pai, nem marido e decerto nenhum

herói. Ia integrar a KGB. Raisa ia deixá-lo. Que mais podia fazer? Não haveria nada entre eles,

salvo a sensação de perda. Receberia todos os dias a confirmação de que Fraera estava certa

acerca dele: ele era um homem de Estado. Tinha mudado; mas, mais importante ainda, tinha

voltado ao que era. Notou:

— Houve uma altura em que pensei que tínhamos uma hipótese.

Raisa assentiu:

Eu também.

265

Page 266: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Leo não sabia ao certo quanto tempo tinha passado. Não se tinham mexido – Raisa

estava a seu lado, os dois sentados no chão, encostados à banheira, enquanto a torneira pingava

atrás deles, até Stephan e Anna chegarem. Preocupados pelo nervosismo que Leo mostrara

anteriormente ao telefone, os seus pais entraram no apartamento, descobrindo os dois ali

sentados, o sangue, o espelho partido:

— O que aconteceu?

Leo ergueu os olhos:

— Levaram Elena.

Nem Stephan nem Anna disseram uma palavra. Stephan ajudou Raisa a levantar-se,

enrolando-lhe uma toalha, e depois guiou-a até à cozinha. Anna levou Leo para o quarto, onde

lhe examinou o corte. Limpou-lhe a ferida, sussurando, comportando-se tal qual como quando

ele era pequeno e se magoava. Quando terminou, sentou-se a seu lado. Ele beijou-a na face,

ergueu-se e dirigiu-se à cozinha, estendendo a mão para Raisa:

— Preciso da tua ajuda.

#

Frol Panin era o mais influente aliado de Leo, mas não estava disponível, pois

encontrava-se fora da cidade. Embora não fossem amigos, três anos antes o Major Grachev

apoiara a proposta de Leo na criação de um departamento de homicidios. O major tinha sido o

seu chefe directo durante os primeiros dois anos, até Grachev sair do posto, dando lugar a Panin.

Desde essa altura, Leo não voltara a ver o major muitas vezes. Contudo, Grachev, um defensor

da mudança, acreditava que a única maneira de governar era corrigindo os erros, procurar admitir

e redireccionar, moderadamente, os erros perpretados pelo Estado.

Com Raisa a seu lado, Leo bateu à porta do apartamento de Grachev, medindo

institivamente o tamanho do corredor comunal. Era tarde, mas não podiam esperar até ao dia

seguinte, por temerem que os seus esforços perdessem força e se tornasse a instalar-se-lhes no

266

Page 267: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

espírito um esmagador desalento. A porta abriu-se. Acostumado a ver o major no seu pristino

uniforme, foi para ele um choque encontrá-lo enjorcado, os óculos manchados de dedadas, o

cabelo desgrenhado. Habitualmente formal e contido, abraçou Leo afectuosamente, como se

voltasse a encontrar um irmão perdido. Esboçou uma vénia carinhosa a Raisa:

— Entrem!

No interior, havia caixas espalhadas pelo chão, artigos por empacotar. Leo perguntou:

— Vai mudar-se?

Grachev abanou a cabeça:

— Não, estou a ser mudado. Para fora da cidade, um lugar longe daqui; nem lhe sei

dizer para onde, sinceramente não sei. Eles disseram-me; mas nunca tinha ouvido falar do lugar.

Julgo que é algures no Norte; Um sítio frio e escuro no Norte, só para tornar o ponto ainda

mais claro.

As frases saiam-lhe atabalhoadamente uma depois da outra. Leo tentou levá-lo a

concentrar-se:

— Que ponto é esse?

— Que já não sou um homem favorecido, que já não sirvo para o trabalho, qualquer

trabalho, ao que parece, salvo gerir um pequeno gabinete numa cidade de província. Recorda-

se deste castigo, Leo? Raisa? Exílio. Vocês passaram por isso.

Raisa perguntou:

— Onde está a sua esposa?

— Deixou-me.

Evitando as condolências, Grachev acrescentou:

— Por mútuo acordo. Temos um filho. Ele tem ambições. A minha transferência iria

arruinar as suas hipóteses. Temos de ser práticos.

Grachev enfiou as mãos nos bolsos, dizendo com uma peculiar jocosidade:

— Se vieram pedir a minha ajuda, temo que a minha situação se tenha deteriorado.

Raisa lançou um olhar a Leo: perguntava-lhe com os olhos se valeria a pena explicar-lhe

o problema que os troxera ali. Grachev percebeu a sua reacção:

— Mas, não seja por isso, falem comigo; mesmo que não vos possa ajudar, será uma

conversa entre amigos com opiniões idênticas.

Sentindo-se constrangida, Raisa corou:

— Peço desculpa.

267

Page 268: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Ora essa.

Raisa explicou rapidamente:

— Elena, a nossa filha adoptiva, foi-nos tirada; enviaram-na para um hospital

psiquiátrico em Kazan. Nunca se conseguiu recuperar do assassínio da irmã. Levei-a a um

médico que concordou vê-la oficiosamente.

Grachev abanou a cabeça, entrecortando-a:

— Nada é oficioso.

Raisa ficou tensa:

— O doutor prometeu que não faria registos do tratamento. E eu, nesciamente, acreditei

nele. Como ela não reagia ao tratamento…

— Ele internou-a para se proteger a si próprio?

Raisa assentiu. Grachev reflectiu, antes de acrescentar, como uma reflexão tardia:

— Temo que nenhum de nós irá alguma vez recuperar do assassínio de Zoya.

Surpreendido pelo comentário, Leo procurou uma explicação:

— Nenhum de nós? Não compreendo.

— Queira desculpar-me. É injusto comparar as consquências mais vastas com a dor que

deve sentir.

— Que consequências vastas?

— Não precisamos de abordar esse assunto agora. Vieram aqui para ajudar Elena…

Leo interrompeu-o:

— Não, diga-me, peço-lhe. Que consequências vastas?

O major empoleirou-se em cima de uma caixa. Olhou para Raisa e depois para Leo:

— A morte de Zoya mudou tudo.

Leo fitava-o inexpressivo. Grachev prosseguiu:

— Assassinaram uma menina para castigar um eis oficial da Segurança do Estado;

execturam e perseguiram quinze ou mais oficiais reformados, muitos foram torturados. Estes

acontecimentos abalaram as autoridades. Tinham soltado esta vory dos Gulags. Como se

chama ela?

Leo e Raisa retorquiram em simultâneo:

— Fraera.

— Quem mais é que libertaram? Muitas centenas de milhares de reclusos vêm para

casa; como é que se irá governar se apenas uma pequena parte deles se comportar desta forma?

268

Page 269: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

A vingança dessa mulher pode despoletar uma reacção em cadeia que irá culminar no colapso

das regras e ordem? Isso poderia levar-nos a uma segunda guerra civil. O nosso país seria

devassado em dois. Este é o novo medo. Já forma tomadas medidas para impedir que tal

aconteça.

— Que medidas?

— Insinuou-se uma atmosfera de laxismo na nossa sociedade. Sabia que há por aí

escritores a escrever prosa satírica? Dudintsev escreveu um romance: Nem só de Pão vive o

Homem. O Estado e os oficiais são ridicularizados abertamente, em letras impressas. Que se

irá seguir? Permitimos que as pessoas criticassem. Permitimos que as pessoas se opusessem ao

regime. Permitimos que as pessoas se vinguem. Uma autoridade que em tempos foi forte,

parece subitamente frágil.

— Houve reprimendas idênticas no resto do país?

— Quando falei de consequências mais vastas, não estava apenas a referir-me a

incidentes no nosso país. Houve reprimendas em todos os territórios dominados pela União

Soviética. Veja o que se passou na Polónia. O discurso de Khrushchev desencadeou motins.

Está a levantar-se um sentimento anti-soviético em toda a Europa do leste: Hungria,

Checoslováquia, Jugoslávia…

Leo ficou chocado:

— O discurso chegou a outros paises?

— Os americanos têm-no. Imprimiram-no nos jornais. Converteu-se numa arma contra

nós. Entende-se que nos auto-infligimos um terrível golpe. Como continuamos a revolução

global, confessando estes actos sanguinários contra o nosso próprio povo? Quem se juntaria à

nossa causa? Quem quereria ser nosso camarada?

O major deteve-se, limpando o suor da testa. Leo e Raisa estavam agora agachados

diante dele, como duas crianças cativadas por uma história. Depois prosseguiu:

— Depois do assassínio de Zoya, toda a gente que defendia uma reforma, incluindo eu,

foi silenciada. Até Khrushchev foi forçado a retirar muitas das críticas que fizera no discurso.

— Não sabia disso.

— Estava em sofrimento, Leo. Enterrou a sua filha. Enterrou o seu colega. Não estava

a prestar atenção ao mundo à sua volta. Enquanto estava de luto, foi escrito um discurso

revisto.

— Revisto, como?

269

Page 270: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Cortaram o reconhecimento de execuções sumárias e prática de tortura. Este

documento foi publicado um mês depois da morte de Zoya. Não estou a dizer que a vingança de

Fraera tenha sido o único factor a contribuir para tal. Mas esses assassínios foram importantes.

Ilustraram a opinião dos tradicionalistas. Khrushchev não teve escolha: uma ressolução do

Comité Central reescreveu o discurso. Estaline deixou de ser um assassino: simplesmente

cometeu erros. O sistema não estava em falta. A haver erros menores, era apenas os erros de

Estaline. O núcleo Leninista está são. Era o Discurso Secreto, sem segredos.

Enquanto o seu espirito assimilava estes factos, Leo notou:

— Fecharam-nos o departamento por não termos sido capazes de impedir estes

assassinios.

— Não; isso é uma desculpa. Nunca aprovaram o departamento de homicídios. Nunca

gostaram que eu o tivesse ajudado a criar. O seu departamenro fazia parte da insidiosa cultura

de permissividade. Leo, avançamos demasiado depressa. As liberdades ganham-se devagar, aos

poucos – tem que se lutar por elas. As forças que desejam a mudança, incluindo eu, marcharam

demasiado longe e demasiado depressa. Fomos arrogantes. Demos um passo maior do que a

perna. Substimamos aqueles que querem proteger e preservar o poder tal qual ele era.

— Ordenaram-me que tornasse a integrar o KGB.

— Isso é um simbolo poderoso. O agente reformado do MGB reintegrado nas estruturas

de poder tradicionais. Estão a usá-lo. Tem de deixar que o usem. Se fosse a si, Leo, seria muito

cuidadoso. Não julgue que eles terão um comportamento mais simpático do que Estaline. O seu

espírito continua vivo, não numa pessoa, mas difuso, em muitas. É mais difícil de ver, mas não

se iluda: está lá.

#

Depois de sair do apartamento, Leo segurou nas mãos de Raisa:

— Estive cego.

270

Page 271: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Dacha Blizhnya

Kuntsevo

20 quilómetros a oeste de Moscovo

21 de Outubro

Aquela era a segunda visita de Frol Panin à Dacha de Blizhnya, uma das antigas

residências de Estaline, que agora podia ser usada como refúgio pelas familias da elite

governamental. Decidira-se que a residência não devia ser fechada ou transformada num museu.

A dacha devia estar sempre repleta de crianças a brincar, de pessoal a cozinhar e a elite

governamental enterrada em cadeiras de couro rangentes, cubos de gelo a tilintar nos copos

enquanto se sorviam as bebidas. Após a morte de Estaline, descobrira-se que o armário das

bebidas continha garrafas imitando alcool, chá fraco em lugar de whisky, água em lugar de vodca,

de maneira a Estaline permanecer sóbrio enquanto os seus ministros perdiam o controlo das

línguas. Tinha-se esvaziado as garrafas desta imitação de alcool. Já não era necessária. Os

tempos eram outros. Pernoitar ali já não era um teste ao qual se poderia não sobreviver.

Depois de ter comido sem grande apetite um menu de cinco pratos, depenicando os

quatro tipos de carne em sangue, ignorando três vinhos, os deveres sociais de Frol haviam

chegado ao fim por aquela noite. Trepou as escadas, ouvindo o rumor da chuva forte.

Desabotou a camisa e entrou na sua suite. Os filhos mais novos encontravam-se no quarto ao

lado; uma criada tratara de os deitar. A mulher estava a despir-se; pedira licença para se retirar

logo após o jantar, tal como se esperava das mulheres, permitindo que os maridos encetassem

assuntos mais pesados, um costume penoso, dado que a maioria estava embriagada e não tinha

nada para dizer. Assim que entrou na sala e fechou a porta atrás de si sentiu-se aliviado. A noite

estava enfim terminada. Detestava vir para ali, especialmente com os seus filhos. Na sua

opinião, a dacha era um lugar onde as pessoas perdiam as suas vidas. Por muitas crianças que

agora brincasem no terreno, por soantes que fossem as suas risadas – os fantasmas não

desapareciam. Apagou as luzes da sala de estar, encaminhando-se para o quarto de dormir, ao

mesmo tempo que chamava a mulher:

— Nina?

271

Page 272: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nina estava sentada na berma da cama. A seu lado, sentado, encontrava-se Leo.

Ensopado pela chuva, as calças manchadas de lama, a mão envolta em ligaduras e as ligaduras

também ensopadas. A água suja que lhe pingava das roupas tinha formado uma nódoa escura nos

lençóis. No rosto de Leo, Frol observou uma quietude vítrea que camuflava uma imensa força

cinética no seu interior, uma raiva tremenda borbulhando sob uma fina película de vidro.

Frol avaliou-a depressa:

— Porque não me sento eu a seu lado, Leo, em vez da minha mulher?

Sem esperar por uma resposta, Frol fez sinal à mulher para se aproximar. Nina ergeu-se

com gestos hesitantes, movendo-se lentamente. Leo não a deteve. Murmurou a Frol:

— O que se passa?

Frol respondeu, assegurando-se de que Leo também o ouvia:

— Tens de compreender que Leo sofreu um choque terrível. Está desgostoso e não

consegue pensar racionalmente. Invadir uma dacha pode levar à sua execução. Vou fazer todos

os possíveis para que isso não aconteça.

Fez uma pausa, dirigindo-se a Leo directamente:

— Importa-se que a minha mulher vá ver dos miúdos?

Os olhos de Leo refulgiram:

— Os seus filhos estão bem. É preciso descaramento para me perguntar isso.

— Tem razão, Leo. Peço desculpa.

— A sua mulher fica aqui.

— Muito bem.

Nina sentou-se numa cadeira a um canto. Frol continuou:

— Veio aqui por causa de Elena, suponho? Podia ter ido ao meu escritório, ter marcado

uma hora; eu teria tratado da sua libertação. Não tive nada a ver com a sua entrada no

hospital. Fiqei consternado quando soube. O médico agiu por sua conta, de forma

completamente desnecessária. Acchou ele que estava a tomar a atitude mais correcta.

Frol fez uma pausa:

— Porque não pedimos algumas bebidas?

Leo esvaziou os bolsos:

— Não constituo uma ameaça para si. Não trouxe uma arma. Se chamar os guardas,

irão prender-me.

272

Page 273: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nina ergueu-se com menção de gritar. Frol fez-lhe sinal para que ficasse calada.

Perguntou:

— Então diga-me, Leo, o que quer?

— Fraera trabalhava para si?

— Não.

Frol sentou-se a seu lado:

— Estávamos a trabalhar juntos.

#

Leo esperara que Panin o fosse negar; mas não havia motivo para mentir. Impotente,

Leo podia fazer tão pouco com a verdade como com uma negação. Panin ergueu-se, despiu o

casaco do fato e desabotoou alguns botões da camisa.

— Fraera procurou-me. Na altura, não sabia quem ela era. Não conhecia qualquer vory

em Moscovo. Foram sempre irrelevantes. Ela arrombou o meu apartamento e ficou à espera que

eu chegasse. Sabia tudo sobre ti. Mais do que isso, sabia da luta no partido entre os

tradicionalistas e os reformistas. Porpôs-me que trabalhássemos juntos; disse-me que tínhamos

objectivos comuns. Receberia a liberdade necessária para se vingar das pessoas envolvidas na

sua prisão. Em troca, poderíamos explorar uma série de assassínios, usá-los nos nossos

intentos, para criar uma sensação de medo.

— Ela nuna se importou com Lazar?

Panin abanou a cabeça:

— Para ela Lazar era alguém da sua vida passada, nada mais. Não passava de um

pretexto. Ela queria que fosse para o Gulag como castigo, para o obrigar a ver o mundo para

onde mandara tantas pesssoas. Do nosso ponto vista, precisávamos que estivesse fora do

caminho. O departamento de homicídios era a único que investigava de modo independente.

Fraera precisava de ter liberdade de acção. Depois de Timur e você partirem, podia matar

quem quisesse.

— O KGB nunca a procurou?

— Certificámo-nos de que nunca a encalçavam.

— Os oficiais que nomeou para gerir o departamento de homicidios na minha ausência?

273

Page 274: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Eram homens nossos, faziam o que lhes dizíamos. Leo, você esteve a pontos de

impedir o assassinio do Partriarca. Esse assassínio era uma parte fulcral do nosso plano. A sua

morte chocou todo o regime. Se tivesse ficado na cidade, Fraera seria obrigada a matá-lo. Por

razões suas, não o queria fazer. Preferia mandá-lo embora, estender o seu castigo em algo

bastante mais horrível.

— E você cnocordou?

Panin parecia confuso com a declaração do óbvio:

— Sim. Concordei. Afastei o major Grachev e ocupei a posição de seu conselheiro mais

próximo, de maneira a ajudá-lo a tomar as decisões certas, as decisões que queríamos que

tomasse. Tratei da papelada que lhe permitiu entrar no Gulag 57.

— Você e Fraera planearam tudo isso com um ano de antecedência?

— Ela já o planeva há bastante mais tempo. Estávamos à espera do momento certo.

Quando ouvi falar do discurso de Khrushchev, soube que esse momento chegara. As mudanças

estavam a ir longe demais.

Leo ergueu-se, aproximando-se de Nina. Preocupado, Panin também se ergeu, tenso.

Leo pousou-lhe uma mão no ombro:

— Não era assim que costumávamos interrogar os nossos suspeitos? Na presença de

uma pessoa amada, as implicações claras, se o suspeito não desse a resposta correcta, a pessoa

amada seria castigada?

— Estou a responder às suas perguntas, Leo.

— Você autorizou o assassínio de homens e mulheres que serviram o Estado?

— Muitos deles eram eles próprios assassinos. Na minha posição, teriam feito o mesmo.

— Que posição é essa?

— Leo, estas reformas precipitadas, mais do que os crimes de Estaline, mais ainda do

que o Ocidente, constituem a maior ameaça à nossa nação. Os assassínios cometidos por

Fraera eram uma ilustração do futuro. Os milhões de pessoas que nós, como Partido no

governo, injustiçámos iam revoltar-se, tal como os reclusos a bordo do Stary Bolshevik se

revoltaram, tal como fizeram no gulag; essas cenas repetir-se-iam em todas as cidades, em todas

as províncias. Você não reparou, Leo, mas estamos a travar uma batalha silenciosa pela

sobrevivência do nosso país. Não tem nada que ver com o facto de Estaline ter ido ou não

274

Page 275: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

demasiado longe. Foi longe demais. Claro que foi. mas não podemos mudar o passado. E a

nossa autoridade é baseada no passado. Temos de nos comportar, como sempre nos

comportámos: com um regime de ferro. Não podemos admitir erros e esperar que os nossos

cidadãos nos amem na mesma. É pouco provável que alguma vez sejamos amados; portanto

temos de ser temidos. Se temer algo durante tempo suficiente, com profundidade suficiente, esse

sentimento pode confundir-se com amor.

Leo retirou a mão do ombro de Nina.

— Já alcançou o que pretendia. O Discurso Secreto foi retirado. Já não precisa de

Fraera. Deixe-me ficar com ela. Dê-me a vingança, tal como a deu a ela. Não deve sentir

remorsos em traí-la. Traiu toda a gente.

— Leo, compreendo que não tenha razões para confiar em mim. Mas este é o conselho

que lhe dou: esqueça Fraera. Esqueça que ela existe. Não se preocupe que eu trato de que

deixem Elena sair do hospital. Você e Raisa podem sair da cidade, ir viver para longe de todas

estas memórias. Eu arranjo-lhe outro trabalho. O que quiser.

Leo encarou Panin, olhos nos olhos:

— Ela ainda trabalha para si?

— Sim.

— A fazer o quê?

— Aquele discurso enfraqueceu-nos, tanto na esfera nacional como internacional. Em

resposta, precisamos de uma verdadeira demonstração da nossa força. Por essa razão, estamos

a fabricar uma revolta no estrangeiro, em partes do Bloco Soviético; pequenas revoltas

simbólicas, que iremos esmagar implcavelmente. O KGB estabeleceu uma série de células

estrangeiras para estimular a desordem, espalhadas pela Europa do leste. Fraera chefia uma

dessas células.

— Onde?

— Ouça o meu conselho, Leo; não pode ganhar esta luta.

— Onde está ela?

— Não a pode derrotar. É uma mulher brilhante.

— Como é que ela me pode prejudicar mais?

— Ouça, Leo, a sua filha, Zoya, está viva.

275

Page 276: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Europa do leste, zona controlada pela União Soviética

Hungria

Budapeste

22 de Outubro

Zoya caminhava tão depressa quanto podia, a caminho da Operehaz, o ponto de entrega

da carga ilícita. Os seus bolsos estavam a transbordar de balas, cem tiros ao todo; todas as pontas

tinham uma cruz entalhada, para que, ao entrar no corpo, esta se esquartejasse. Embora estivesse

uma noite fria, sentia o rosto quente e afogueado. Envergava um sobretudo que lhe chegava aos

joelhos, apertado na cintura, um barrete preto atravessado na testa, parecia ter mais de catorze

anos; parecia mais uma estudante húngara do que uma órfã russa. Empapada em suor, arrancou o

barrete da cabeça e enfiou-o no bolso, por cima das balas, abafando a sua cantinela delatadora.

Quando alcançou a alameda principal de Sztalin ut, não muito longe da Operehaz, Zoya

deteve-se, certificando-se de que ninguém a seguia. De supresa, alguém lhe agarrou nos ombros.

Quando se viu rodeada por um grupo de homens, convenceu-se de que eram da Polícia Secreta

hungara. Depois, começaram a rir-se. Um dos homens beijou-lhe o rosto, ao mesmo tempo que

lhe enfiava uma folha de papel na mão. Era uma espécie de poster. Os homens falavam em

rápidas explosões. Estava na cidade apenas há quatro meses e só conseguia apanhar meia dúzia

de frases húngaras. A julgar pelas suas roupas, os homens eram estudantes ou artesões, e não

oficiais; portanto, descontraiu. Ainda assim, tinha de ser cuidadosa: se se apercebessem de que

era russa, nunca se sabe como poderiam reagir. Sorriu, docilemente, esperando que a julgassem

envergonhada e a deixassem ir. De qualquer forma, não pareciam muito interessados nela;

estavam a desenrolar outro poster e a colá-lo na montra de uma loja. Zoya afastou-se,

apressando-se para o seu destino.

Quando alcançou a Operehaz, depois de subir as escadas de pedra, escondeu-se atrás dos

pilares, longe da vista da rua. Verificou o relógio, um presente de Fraera. Chegara demasiado

cedo e, por isso, ocultou-se nas sombras nervosamente, à espera que o seu contacto aparecessse.

Esta era a primeira tarefa que fazia sozinha. Normalmente, trabalhava com Malysh. Eles eram

uma equipa, uma parceria forjada em Moscovo cinco meses antes.

276

Page 277: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Tendo sido levada da sua cela naquela noite, Zoya julgara que Fraera a iria executar para

punir Leo. Confrontada com a morte, como lhe sucedera apenas dias antes, Zoya descobriu que

morrer já não lhe era indiferente. Queria viver e por isso gritara:

— Malysh!

Fraera depositou-a no chão:

— Por que chamas por ele?

— Porque....gosto dele.

Fraera sorrira então; um sorriso que em breve se converteu numa risada, lentamente de

início, tornando-se depois mais soante, ao mesmo tempo que o outro vory ria atrás dela, um coro

de gozo. Zoya corara; ardia-lhe o rosto de vergonha. Humilhada, correra para Fraera, de braços

levantados, punhos cerrados. Antes que a pudesse atingir, Fraera agarrara-lhe na mão:

— Vou dar-te uma hipótese; uma única hipótese. Se falhares, mato-te. Se sucederes,

convertes-te num de nós. Tu e Malysh podem ficar juntos.

Depois de ser conduzida até meio da ponte Bolshoy Krasnokholmskiy, essa noite correra

exactamente como Fraera previra. Leo e Raisa estavam à espera na ponte. Ensopados em chuva,

tinham entrado para a frente do carro. Zoya vira o rosto de Raisa enrugar-se pela agonia,

separada dela por uma grade de ferro. Nesse momento, sentira dúvidas. Mas era demasiado tarde

para mudar de ideias. Fincou as mãos na grade e despediu-se da sua vida infeliz: essa decisão

exigia que deixasse a irmã para trás. Fingira resistir quando fora arrastada para fora do carro. Na

mala, onde não a viam, entrara voluntariamente para dentro do saco. Uma vez lá dentro, Malysh

já a esperava.

O saco tinha sido carregado para a beira da ponte, enquanto Zoya continuava a fingir que

lutava, até que o vory a atingira, de modo totalmente inesperado. Ela desmaiara. O saco fora

fechado. Na escuridão, Malysh envolvera-a com os braços, segurando-a, enquanto caíam.

Brevemente suspensos no ar, nos braços um do outro, na escuridão – tinham embatido na água.

Os pesos de ferro tinham levado o saco directamente para o fundo. O tecido encerado e à

prova de água envolvera-os num minuto de ar. O ferro bateu com estrondo no leito do rio,

tobando Malysh e Zoya para o lado. Malysh, trabalhando às cegas, abrira a sua faca e cortara o

saco. Assim que se abriu uma nesga no tecido, o saco encheu-se num instante de água gelada.

Malysh ajudou então Zoya a sair. De mãos dadas, nadaram de volta á superfície, emergindo.

Nadaram até à margem, onde observaram os últimos momentos na ponte, quando Leo e Raisa

saltaram, acreditando erradamente que a iam salvar.

277

Page 278: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Nadaram então contra a corrente rio acima, e içaram-se para cima das pedras altas da

margem. Quando alcançaram o cais, reuniram-se a Fraera, vendo-a saborear os gritos

desesperados de Raisa e Leo à distância, ouvindo o seu sofrimento por uma criança que julgavam

perdida.

#

Havia um homem vagueando ao fundo das escadas da Operehaz. Zoya emergiu do seu

esconderijo. O homem olhou para cima e para baixo da Stalinzi ut, antes de se encaminhar na sua

direcção. O seu silêncio demonstrava que não sabia russo. Zoya esvaziou os bolsos, enchendo-

lhe o saco com as balas alteradas. Ele pegou numa, puxou de uma arma e carregou a câmara. A

bala cabia perfeitamente. Encheu as outras câmaras, enquanto Zoya continuava a passar as balas

dos seus bolsos para o seu saco. Assim que terminou, escondeu a arma, inclinou a cabeça em

sinal de agradecimento, e desceu rapidamente as escadas. Zoya contou até vinte antes de se

tornar a pôr a caminho de casa.

Ainda lhe era estranho considerar aquela cidade a sua casa. Cinco meses antes, Zoya

nada sabia da Hungria, salvo que era um fiel aliado da União Soviética, parte de uma irmandade

de nações, um estado da linha da frente na revolução global. Fraera corrigira a propaganda

escolar, explicando-lhe que a Hungria nunca tivera escolha. Depois de ter sido libertada das

forças fascistas, fora ocupada e submetida ao regime soviético. A Hungria era uma nação

soberana, sem soberania. O líder de há muitos anos, Matyas Rakosi, tinha sido designado por

Estaline e imitara o mestre com afinco, torturando e executando cidadãos. Criara a AVH – a

Polícia Secreta Húngara – moldada a partir da Polícia Secreta Soviética. A língua era diferente

mas o terror era o mesmo. Depois da morte de Estaline, começara a luta pela reforma,

electrificada por sonhos de independência. Zoya era uma estrangeira ali, uma forasteira, e porém,

nunca desde a morte dos pais se sentira tão em casa, num país que, tal como ela, fora adoptado

contra a sua vontade.

Aliviada por a noite estar quase a terminar e por já não ter de carregar balas nos bolsos,

Zoya desceu a Nagymezo ut a balançar. Adiante, reunira-se uma pequena multidão. No meio,

encontravam-se os mesmos homens com que se deparara anteriormente, sentados nos ombros uns

dos outros, a fim de transformarem toda a altura de um poste da luz num poste de totem em

cartazes de texto. Uma mulher na multidão reparou que Zoya se aproximava. A mulher, cerca de

278

Page 279: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

trinta anos, robusta e atarracada, estava embriagada – as faces rubras. Estava embrulhada numa

bandeira húngara, como um imenso xaile. Zoya olhou para o poste da luz e tirou o mesmo cartaz

amarrotado do bolso, como que a dizer – Eu sei, eu sei! Não contente com este gesto, a mulher

puxou-a para a multidão, falando com entusiasmo, sem que Zoya percebesse uma palavra. A

mulher começou a dançar e a cantar. Os outros juntaram-se-lhe; todos eles sabiam a letra da

canção, menos Zoya. Podia apenas rir e sorrir, na esperança de que acabassem por a deixar partir.

Desejosa de sair dali antes que notassem que não dizia palavra, tentou destrinçar-se dos afectos

da estranha. Mas a mulher já não estava enrubescida de felicidade. Uma carrinha tinha virado

para a alameda principal e acelerava na direcção deles. Estacou com uma derrapagem de pneus.

Do seu interior saltaram dois oficiais do AVH.

A multidão estreitou fileiras em volta do poste da luz, como se este fosse um território a

defender. Um dos oficiais arrancou com um puxão a bandeira na qual Zoya estava embrulhada,

erguendo-a no ar com desdém. Só agora Zoya reparava que o martelo e foice comunistas haviam

sido cortados; no meio do tecido havia um buraco. Como não compreendia palavra do que ele

dizia, o oficial do AVH soava como um cão a ladrar. Revistou os bolsos de Zoya, enfurecido pelo

seu silêncio. Como não encontrou nada para além do seu barrete, atirou-lho de volta. Uma única

bala presa no tecido caiu no pavimento da rua.

O oficial pegou na bala, fitando-a nos olhos. Antes que ele pudesse falar, a mulher

embriagada estendeu a mão e arrancou-lhe o barrete das mãos, colocando-o orgulhosamente na

cabeça. Ficava-lhe demasiado pequeno, dando-lhe um ar ridículo. O oficial dirigiu-se à mulher;

Zoya não precisava de falar húngaro para perceber que ele lhe perguntava se este lhe pertencia. A

mulher assentiu. O oficial ergueu a bala diante do rosto da mulher. Se aquilo também lhe

pertencia, deve ele ter perguntado. Em resposta, ela cuspiu-lhe na cara. Enquanto o oficial

limpava a gota de cuspo do rosto, a mulher lançou a Zoya um olhar rápido: corre!

Zoya correu, metendo por uma rua transversal. A meio da corrida, voltou-se, espreitando

por cima do ombro. Divisou o oficial do AVH esboçar um murro, que encaixou no lado do rosto

da mulher. Como se o murro tivesse sido encaixado no seu próprio rosto, as pernas de Zoya

desmoronaram-se e ela caiu – rojando com as mãos pelo chão. Voltou-se de barriga para cima, e,

olhando por cima das pontas dos sapatos, viu a mulher a cair. Um homem saltou para diante,

agarrando o oficial. Um segundo homem juntou-se à rixa. Pondo-se de pé de repente, Zoya

lançou-se em nova corrida, alcançando desta vez a rua transversal. Já longe da vista, não parou

de correr. Tinha de procurar ajuda. Fraera saberia decerto o que fazer.

279

Page 280: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Fraera e o seu bando ocupavam vários apartamentos no interior de um pátio nas traseiras

da Rakoczi ut. Os apartamentos, que se alcançavam por uma passagem estreita, não podiam ser

vistos ou espiados a partir da rua principal. Quando os alcançou, Zoya parou de correr. Ninguém

a seguia. No corredor escuro, aliviada por estar longe da rua, sentiu uma mão pousar-lhe no

ombro. Era Malysh. Os dois abraçaram-se. Ele perguntou-lhe:

— Estás bem?

Ela abanou a cabeça.

Depois, entraram no pátio. Havia seis andares de apartamentos. Os apartamentos de

Fraera, espalhados por vários andares, tinham, cada um deles, uma função diferente. Havia uma

pequena tipografia, que produzia panfletos e cartazes a preto e branco. Noutro apartamento,

encontravam-se provisões de armas e munições. Um terceiro apartamento servia de local de

encontro, para comer, dormir e planear. Quando entrou no apartamento comunal, Zoya ficou

surpreendida com o número de pessoas – muito mais do que o habitual – que ali se encontravam

reunidas. Num dos cantos, encontravam-se homens e mulheres húngaros, a maioria dos seus

vinte anos, entregues a um debate apaixonado. No outro canto, achavam-se os membros do vory.

A maior parte deles não tinha empreendido a viagem de Moscovo para Budapeste, e havia ficado

para trás, preferindo a constância do submundo do crime. Não compreendiam o acordo que

Fraera tinha feito com Panin. Nem eram capazes de conceber uma vida longe da Rússia. Apenas

um pequeno número dos seus apoiantes mais ferverosos a havia seguido, em parte por lealdade,

mas sobretudo por saberem que mais nenhum bando em Moscovo os queria. De quinze, para

além de Malysh, apenas tinham ficado quatro.

Fraera estava no meio da sala, entre os dois grupos, ouvindo-os ainda que falassem em

húngaro, sensível à linguagem corporal e aos gestos. Avistou Zoya de imediato, e apercebeu-se

da sua agitação.

— O que aconteceu?

Zoya explicou. Os olhos de Fraera incendiaram-se, voltou-se e dirigiu-se ao seu tradutor,

um estudante húngaro, chamado Zsolt Polgar:

— Reúnam o máximo de bandeiras húngaras que conseguirem. Cortem a foice e o

martelo, deixando um buraco no meio. É o símbolo por que esperávamos!

Fraera não tinha interesse na mulher que arriscara a própria vida para salvar Zoya.

Transtornada, Zoya saiu do apartamento. Lá fora, encostou-se ao parapeito da varanda. Malysh

280

Page 281: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

juntou-se a ela. Acendeu um cigarro, um hábito que copiara dos outros vory. Ela tirou-lhe o

cigarro dos lábios, esmagando-o com o pé:

— Ficas a cheirar mal.

Arrependeu-se das suas palavras. O fumo fazia com que cheirasse mal: fazia com que

ficasse a cheirar como todos os outros vory. Mas não fora sua intenção embaraçá-lo. Magoado,

Malysh afastou-se do parapeito, recuando ressentido para o interior do apartamento. Precisava de

se lembrar que ele não era a como a irmã mais nova, em quem ela podia mandar.

Ao lembrar-se de Elena, a culpa apertou-lhe a garganta como uma mão. Repisara a sua

decisão vezes sem conta – se não se tivesse juntado a Fraera, teria sido morta. E, no entanto, a

verdade é que queria ir-se embora dali, fugir, e se tivesse tido uma oportunidade, se Fraera lhe

tivesse dado a escolher entre ir para casa ou partir com ela - teria deixado a irmã mais nova para

trás na mesma.

— Estás zangada?

Abismada, deu de caras com Fraera. Embora vivessem juntas há cinco meses, Fraera

permanecia intimidante e inacessível, mais como uma fonte de energia do que uma pessoa. Zoya

recompôs-se:

— A mulher da bandeira salvou-me. É possível que vá morrer por minha causa.

— Zoya, tens de estar preparada…muitas pessoas inocentes estão prestes a perder as

suas vidas.

281

Page 282: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Fraera desceu as escadas e abandonou o pátio, certificando-se de que ninguém a vira. Era

noite tardia. As ruas estavam vazias. Não havia rasto dos oficiais do AVH que Zoya descrevera.

Fraera pôs-se a caminho, detendo-se frequentemente com uma brusquidão calculada, voltando-se

para se certificar de que ninguém a seguia. Não confiava em ninguém: nem tão pouco nos seus

apoiantes. Os trabalhadores, estudantes e representantes dos diversos movimentos clandestinos

de resistência anti-soviética eram indulgentes e pouco práticos; estavam mais preocupados com

debates teóricos irrelevantes, disputando hierarquias. Seria fácil ao AVH infiltrar-se nas suas

fileiras. Estavam demasiado absortos em si mesmos, para notar os sinais, colocando-os a todos

em perigo. Apesar de Fraera estar ao serviço de Panin, o AVH nada sabia das suas operações. Se

fosse apanhada, seria fuzilada. Ninguém, para além dos conspiradores de Moscovo, estava a par

dos planos para desencadear uma revolta. Se os seus apoiantes dissidentes descobrissem que

trabalhava em simultâneo com os ministros soviéticos, matá-la-iam.

Dobrando-se, Fraera apanhou um panfleto que tremulava sobre uma sarjeta – uma cópia

dos dezasseis pontos revistos, dezasseis exigências de mudança. Os pontos tinham sido

formulados na tarde da véspera, num encontro apinhado de gente, na Universidade Tecnológica.

Como não podia passar por estudante, Fraera tinha ficado à porta. Quando soube que a intenção

do encontro era debater se os estudantes deviam deixar a DISZ, a organização do partido

comunista do campus, como forma de protesto contra os governantes soviéticos, condenou a sua

falta de ambição, encorajando os estudantes sues conhecidos a desviar a discussão para assuntos

mais arrojados. Fraera trabalhara desta forma nos últimos quatro meses, fazendo pressão,

oferecendo apoio material e atiçando ressentimentos contra a ocupação, o melhor que podia.

Embora a raiva fosse real e profunda, tivera de lutar para converter esse sentimento em algo mais

substancial – acção directa. Sozinha, não podia fazer mais do que isso. O seu papel era

profissionalizar a dissidência amadora. Na véspera, os seus esforços haviam, enfim, surtido

282

Page 283: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

efeito. Com uma determinação e clareza que haviam surpreendido Fraera, os estudantes tinham

condensado o debate em dezasseis pontos:

Exigimos a retirada de todas as tropas soviéticas, de acordo com a declaração do

tratado de paz.

Tal exigência surgira em quarto lugar nas notas sujas e sarrabiscadas à mão trazidas da

sala. Fraera apressara-se a regressar ao seu apartamento para transcrever as notas, fazendo-lhes

uma emenda: colocou a exigência da retirada das tropas soviéticas no topo da lista. Em poucas

horas os elementos do seu bando começaram a entregar cópias revistas em todas as esquinas, a

par de alguns extractos mais provocadores do Discurso Secreto.

Para além dos poucos vory que restavam do seu bando, o seu cúmplice mais próximo era

Zsolt Polgar, um estudante de engenharia, que ela conhecera num bar clandestino frequentado por

revolucionários, situado na cave de uma fábrica; os tectos baixos permaneciam sempre

encobertos pela espessa névoa de cigarros baratos. Fraera achara a população local extremamente

ambiciosa. Zsolt – filho de um próspero diplomata húngaro, destinado ao poder e dinheiro, desde

que se conformasse com a ocupação soviética e encontrasse o seu lugar nela – falava

fluentemente russo e húngaro e tornou-se rapidamente o seu mais valioso intermediário.

Mimava-o, dormia com ele, seduzia-o com histórias da sua impiedade. Apreciava as suas

habilidades, elogiava-o como libertário e revolucionário. Na realidade, considerava-o pouco mais

do que um jovem rebelde, insurgindo-se contra o pai, a quem desprezava por ser um servil

conciliador soviético. Apesar desta sua motivação, era um rapaz intrépido e idealista, fácil de

manipular. Sugerira que se fizesse uma demonstração de apoio aos dezasseis pontos – uma ideia

inspiradora. Na verdade, a ideia tinha sido reproduzida um pouco por toda a cidade, e Fraera

perguntou-se se tal seria obra das outras células de Panin. De qualquer modo, disso resultara que

no dia seguinte se iniciassem duas marchas à mesma hora, uma de cada lado da cidade, reunindo-

se na praça Palffy. Tinham havido anteriores demonstrações de dessassossego na capital, mas

nenhuma delas conduzira a nada. Fraera sabia que só quando as pessoas se encontrassem lado a

lado, alimentando-se mutuamente, haveria alguma hipótese de o baixo-ventre da raiva se

converter, como uma crisálida numa borboleta, de uma obediência amarga numa violência

gloriosa.

283

Page 284: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Quando alcançou o Hotel Astoria, situado a vários quarteirões dos apartamentos, Fraera

estacou um momento para observar as ruas transversais antes de erguer os olhos para a janela do

último andar. Junto da última janela, no canto, brilhava uma vela vermelha, o curioso sinal que

ela ideara. Naquele contexto, significava que deveria subir. Encaminhou-se para as traseiras do

hotel, atravessou as cozinhas desertas, e subiu ao último andar, dirigindo-se para o quarto ao

fundo do corredor. Bateu à porta. Um guarda abriu-a, de arma desembainhada. Atrás dele,

encontrava-se um segundo guarda. Entrou na suíte, sendo revistada antes de a encaminharem

para a próxima porta. Sentado a uma mesa, olhando para lá da janela, como um poeta

contemplativo, estava Frol Panin.

Uma aliança com Panin, ou qualquer outro homem como ele, nunca fizera parte dos

planos de Fraera. Ao chegar a Moscovo tinha improvisado, reconhecendo que a menos que se

desse por satisfeita com enterrar uma faca nas costas de Leo, iria precisar de ajuda.

Semelhantemente, Budapest nunca fizera parte dos seus planos. Era mais um improviso. Com a

ilusão da morte de Zoya, as suas aspirações iniciais – arruinar as esperanças de felicidade de Leo

– tinham sido alcançadas. Leo fora torturado da mesma maneira que ela o tinha sido: a perda de

um filho fora paga com a perda de uma filha. Ele estava desfeito, obrigado a viver com o

sofrimento e a culpa, sem que lhe fosse sequer permitido o fogo da justa indignação, que a ajudou

a ultrapassar essas mesmas emoções. Perpetada a vingança, vira-se confrontada com a decisão do

que fazer a seguir. Tornara-se claro que não podia desembaraçar-se de Panin e dissolver-se no

anonimato. Se lhe deixasse de ser útil, ordenaria a sua morte. Talvez pudesse escapar, mas ainda

que conseguisse fugir para outro país, antevia uma vida de saúde e de tranquilo envelhecimento.

Não tinha qualquer interesse nisso. Portanto, quando soube das suas operações internacionais,

das suas tentativas para causar distúrbios no interior do Bloco Soviético, oferecera-se a si e aos

seus homens como voluntários. Panin mostrara-se céptico de início, mas Fraera chamou-lhe a

atenção sobre o facto de provavelmente constituir um agitador bastante mais convicente contra a

União Soviética do que os leais agentes do KGB que ele usava.

Panin ergueu-se, oferencendo-lhe a mão – um gesto formal que ela considerava absurdo.

No entanto, apertou-a. Ele sorriu:

— Voei até cá para acompanhar os progressos. As nossas tropas estão em posição na

fronteira. Estão lá já há algum tempo. No entanto, não têm nada para fazer.

— Vai ter a sua revolta.

— Tem de acontecer agora. Não me serve de nada se acontecer daqui a um ano.

284

Page 285: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Estamos quase lá.

— As minhas outras células têm bastante mais sucesso do que a sua. Na Polónia, por

exemplo…

— Os motins que instigou em Poznan foram esmagados sem grande desmoralização

para Khrushchev. Não tiveram o impacto que pretendia, caso contrário não estaria tão

interessado em Budapeste.

Panin assentiu, admirando o talento de Fraera para sopesar com exactidão as situações.

Ela tinha razão. Os planos de Khrushchev para reduzir o exécito convencional não tinham sido

afectados. Constituiam uma plataforma central das suas reformas. Na opinião de Khrushchev a

União Soviética já não precisava de tantos tanques e tropas. Em vez disso, possuíam um

dissuassor nuclear. Além do mais, estavam a construir um sistema de lançamento de misseis

experimental que requeria um punhado de engenheiros e cientistas, não milhões de soldados.

Panin considerava esta política de uma imprudência da mais perigosa espécie. Para além das

insuficiências dos mísseis, Khrushchev equivocava-se fundamentalmente acerca da importância

das forças militares, tal como se equivocara acerca do impacto do seu Discurso Secreto. As

forças militares existiam não apenas para os protegerem de agressores externos, o seu propósito

era garantir a coesão da União Soviética. O que agregava as nações do Bloco Soviético não era a

ideologia, mas os tanques, as tropas e os aviões. Os cortes que propusera, aliados à incauta

sabotagem infligida pelo seu Discurso estava a colocar a nação em risco. Para o impedir, Panin e

os seus aliados defendiam que não só deviam manter o tamanho do exécito convencional, como o

deviam alargar e rearmar. Deviam aumentar o investimento, não diminui-lo. Um distúrbio em

Budapeste, ou, na realidade, em qualquer outra cidade periférica do leste da Europa, iria

demonstrar que toda a fábrica da revolução dependia da força do exército convencional e não

apenas do arsenal nuclear. Muitos milhões de homens armados com espingardas eram uteis em

recordar à população, em casa e no exterior, quem mandava.

Panin disse:

— Que novidades me traz?

Fraera entregou-lhe o panfleto impresso com os dezasseis pontos:

— Vai haver uma demonstração amanhã.

Panin mirou a folha de papel:

— O que diz aí?

285

Page 286: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— A primeira exigência é que as tropas soviéticas deixem o país. É um grito de

liberdade.

— E podemos retraçar a inspiração ao discurso?

— Certamente.

— Excelente.

— A demonstração não será suficiente.

— De que mais precisa?

— De uma garantia de que irá disparar sobre a multidão.

Panin pousou o panfleto sobre a secretária:

— Vou ver o que posso fazer.

— Tem de ter êxito. Apesar de tudo por que estas pessoas passaram, das prisões, das

execuções, não se tornarão violentos a não ser que sejam provocados. Não são como…

— Nós?

Fraera fazia menção de sair, mas hesitou à porta, voltando-se para encarar Panin:

— Mais alguma coisa?

Panin abanou a cabeça:

— Não. É só.

286

Page 287: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

União Soviética

Fronteira da Hungria

Cidade de Beregzasz

23 de Outubro

O comboio estava apinhado de soldados soviéticos; conversas ásperas entrecruzavam a

carruagem. Estavam a ser mobilizados para a revoltada planeada, da qual nada sabiam. Não se

sentia ansiedade ou temor, o seu espírito jovial contrastava incisivamente com Leo e Raisa, os

únicos civis a bordo.

Quando Leo soube que Zoya estava viva, sentiu um alívio mesclado de dor. Incrédulo,

ouvira a explicação de Panin: o reconto dos acontecimentos na ponte, incluindo a simulação

calculada e a cooperação consentida de Zoya com uma mulher que tinha por único objectivo fazer

Leo sofrer. Zoya estava viva. Era um milagre; mas era um milagre cruel; porventura a boa

notícia mais cruel que Leo alguma vez tivera.

Aquando da explicação dos acontecimentos a Raisa, notara nela a mesma passagem de

um sentimento de alívio a angústia. Ajoelhara-se diante dela, pedindo desculpa repetidamente.

Era ele o responsável. Ela era obrigada a sofrer por o amar. Raisa controlara a sua resposta,

concentrando-se nos detalhes do que acontecera, o que estes revelavam sobre o estado de espírito

de Zoya, e de que forma iriam trazer a filha de volta a casa.

Raisa não teve dificuldades em reconhecer que Panin os traira. Compreendia a lógica da

cooperação de Fraera com ele, para poder alcançar a sua vingança em Moscovo. Contudo, as

tentativas de Panin para iniciar revoltas dentro do Bloco Soviético era uma manobra política de

um cinismo imenso, condenando milhares de pessoas à morte para consolidar a posição dos

radicais do Kremlin. Raisa não compreendia em que medida isso poderia apelar a Fraera. Estava

a tomar o partido dos Estalinistas, homens e mulheres a quem pouco importava a sua prisão ou a

perda da sua criança, ou, na realidade, a perda de qualquer criança. Já a deserção de Zoya, se era

a forma correcta de a encarar, a deserção de uma família disfuncional para outra, surpreendia-a

menos. Não tinha dificuldades em imaginar o apelo intoxicante que Fraera teria sobre uma

adolescente infeliz.

Leo não tentara dissuadi-la de o acompanhar a Budapeste. Pelo contrário: precisava

dela. Raisa tinha mais hipóteses de chegar a Zoya. Perguntara-lhe se estariam preparados para

287

Page 288: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

usar a força se Zoya se recusasse a voltar para casa, confrotando-o com a sórdida perpesctiva de

ter de raptar a própria filha.

Como nem Leo nem Raisa falavam húngaro, Frol Panin tratou que fossem acompanhados

por Karoly Teglas, um homem de quarenta e cinco anos. Karoly trabalhara como agente secreto

em Budapeste. Húngaro de nascimento, tinha sido recrutado pelo KGB depois da guerra,

servindo sob o odiado líder Rakosi, tal como Leo servira sob Estaline. Karoly tinha estado

recentemente em Moscovo, a título temporário, a fim de os aconselhar sobre a crescente crise na

Hungria. Concordara regressar, como guia e tradutor, acompanhando Leo e Raisa.

Quando regressou do quarto de banho, Karoly limpou as mãos às calças, sentando-se no

assento oposto ao de Leo e Raisa. Era um sujeito pançudo, de rosto rechonchudo e envergava uns

óculos redondos; na sua aparência não se encontrava qualquer linha direita. Com aquela colecção

de curvas, à primeira vista, não aparentava ser um agente; tinha um ar definitivamente pacífico.

O comboio abrandou ao aproximar-se da cidade de Beregzasz, do lado da fronteira

pesadamente fortificada soviética. Raisa inclinou-se para diante, dirigindo-se a Karoly, sem

rodeios:

— Porque é que Panin permitiu que fossemos a Budapeste, tendo Fraera a trabalhar

para ele?

Karoly encolheu os ombros:

— Terá de lhe perguntar a ele as suas razões. Não me cabe a mim dizer. Se quiser

voltar para trás, é consigo. Não sou eu que comando os seus movimentos.

Raisa recostou-se no assento. Karoly olhou pela janela, comentando:

— As tropas não estão a atravessar a fronteira. Daqui para a frente, comportamo-nos

como civis. Temos de nos misturar. Para onde vamos, os russos não são amados.

Dirgiu-se a Raisa:

— Não irão fazer distinção entre si e o seu marido. Tanto importa que você seja uma

professora e ele seja um oficial. São ambos igualmente odiados.

Raisa espinhou-se com estas palavras condescendentes:

— Eu sei o que é o ódio.

— Faremos o resto do percurso de carro.

#

288

Page 289: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Na fronteira, Karoy entregou os papéis. Olhou para trás, observando Leo e Raisa a

conversar, sentados no banco de trás do carro. Ambos atentavam cuidadosamente em não olhar

para ele, pois denunciariam que estavam a debater até que ponto podiam confiar nele. O mais

sensato seria não confiar nele de todo. As suas ordens eram simples: devia atrasar a chegada de

Leo e Raisa à cidade, até a revolta ter começado. Depois de Fraera ter servido o seu propósito,

Leo, um homem conhecido pela sua imensa tenacidade e zelo, um assassino treinado, poderia ter

a sua vingança.

289

Page 290: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Europa do Leste, área controlada pela União Soviética

Hungria

Budapeste

No mesmo dia

Alegre, Zoya segurou com força na mão de Malysh, pois não queria soltá-la entre as

centenas de pessoas que convergiam para a Praça do Parlamento, vindas de todas as ruas e

encruzilhadas. Depois de ter passado muitos anos a romantizar a morte, certa de que era a única

resposta para a sua solidão, agora sentia-se entusiasmada, como se devesse ao mundo uma

desculpa, gritando – Estou viva!

A marcha excedera grandemente as expectativas de qualquer pessoa. A massa já não se

compunha apenas de estudantes e dissidentes; parecia que a cidade inteira se reunia na praça,

atraídos dos seus apartamentos, escritórios, fábricas, incapazes de resistir à atracção gravitica, que

aumentava de cada vez que se juntava uma pessoa. Zoya compreendia a importância do local

escolhido. Um parlamento devia ser o centro do poder, um lugar onde o destino de uma nação

era debatido e decidido. Na realidade, o edifício era irrelevante, uma fachada ornamental da

autoridade soviética.

O sol pusera-se. Contudo, a noite não diminuía a excitação. Cada vez chegavam mais

pessoas, indiferentes aos hábitos de prudência e cautela, o fluxo continuava, apesar de a Praça se

encontrar já cheia; os que chegavam obrigavam a multidão a apertar-se. Longe de ser

claustrofóbica, a atmosfera era afectuosa. Sem se conhecerem, as pessoas falavam, riam e

abraçavam-se. Zoya nunca tinha estado no meio de uma reunião pública como aquela. Em

Moscovo, era obrigada a estar presente nas celebraçãos do Dia de Maio, mas aquilo era diferente.

Não era a escala. Era a desordem, a ausência de autoridade. Não havia oficiais nas esquinas.

Não passavam formações de tanques. Não se ouvia o estalar das botas militares, ao passarem por

entre filas de crianças escolhidas para acenarem com bandeiras. Tratava-se de um protesto

destemido, de um acto de desafio, em que toda a gente podia fazer o que que entedesse, cantar,

bater palmas, entoar hinos:

Russkik haza! Russkik haza! Russkik haza!

290

Page 291: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Centenas de pessoas batiam com os pés num ritmo de três; Zoya juntou-se-lhes, de

punhos cerrados, desferindo murros no ar, invadida por uma indignação que era, tendo em conta a

sua nacionalidade, absurda.

Russos para casa!

Não lhe preocupava que fosse russa. A sua casa era ali, entre as pessoas que haviam

sofrido como ela, e que compreendiam a opressão como ela.

Como era mais baixa do que os homens e mulheres em seu redor, Zoya teve de se pôr de

bicos de pés. Subitamente, sentiu duas mãos agarrarem-na pela cintura e levantá-la no ar,

assentando-a em cima de uns ombros, permitindo-lhe uma vista sobre a praça inteira. A multidão

era maior do que julgara; estendia-se até ao edificio do parlamento e ao rio por detrás deste.

Havia pessoas espalhadas pelas ruas e relvados, linhas do eléctrico, trepando a pilares e estátuas.

Sem aviso, as luzes do parlamento apagaram-se, mergulhando a praça nas trevas. Entre a massa,

instalou-se a confusão. Nas ruas laterais havia luz. Deveria ser uma forma de os combater, uma

tentativa de os afastar, quebrar a sua determinação com as trevas como se estas fossem uma arma.

Soaram gritos de regozijo: Zoya viu uma torcha a arder, um jornal enrolado. Rapidamente,

emergiram mais pontos de fogo, torchas improvisadas. Fariam a sua própria luz! Fraera entregou

a Zoya uma cópia de jornal diário Um Povo Livre. Um vory pegou fogo à ponta, virando

lentamente o jornal, até a chama se espalhar. Zoya segurou-o acima da cabeça; as chamas

coloriam-se de azul esverdeado pela tinta. Brandiu-o de um lado para o outro, e um milhar de

torchas ardentes brandiu também.

Quando Fraera a tornou a pousar no chão, Zoya, ruborizada pela emoção, aproximou-se

e beijou-a no rosto. Fraera ficou petrificada. Embora os pés de Zoya estivessem já assentes no

chão, as mãos de Fraera continuavam em torno da sua cintura, sem a deixar. Zoya esperou,

sustendo a respiração, temendo ter cometido um erro terrível. No escuro, não conseguia ver a

reacção de Fraera, até um homem ali perto acender um jornal. A luz vermelha bruxuleante

revelou a expressão de Fraera, abalada, como se tivesse visto um fantasma.

#

291

Page 292: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Fraera sentiu o beijo demorar-se-lhe no rosto, queimando-o como um ferro em brasa.

Empurrou Zoya para o lado, tocando no sítio onde ela a beijara. Fora um erro pôr Zoya em cima

dos ombros. Inconscientemente, permitira o regresso de Anisya, da pesso que ela era, uma

mulher e uma esposa. Carinho, afecto – características que exorcisara insinuavam-se-lhe agora

no espírito. Puxou a faca, levou a lâmina à face e enterrou-a na carne, arrancando a pele,

raspando os restos do beijo. Sentiu-se de imediato aliviada; limpou a ponta da faca e gardou-a.

Depois de se recompor, fitou os telhados dos edifícios circundantes, furiosa com Panin

por não ter conseguido posicionar os atiradores. Zsolt Pagar seguiu-lhe o olhar e perguntou:

— Que procuras?

— Onde está o AVH?

Zolt retorquiu:

— Preocupa-te que não estejamos seguros?

Fraera ocultou um sorriso desdenhoso pela sua ingenuidade, e respondeu:

— Não há ninguém contra quem lutar.

— Os estudantes estão na estação de rádio, a tentar transmitir os dezasseis pontos.

Consta que a administração da rádio não está disposta a permiti-lo. O AVH está a proteger o

edifício para garantir que permanece sob controlo soviético.

Fraera sorriu:

— É isso! É lá que vamos fazer a nossa luta!

Abrindo caminho à cotovelada por entre a multidão, Fraera afastou-se da pacífica

reunião, sufocada pela sua passividade. Longe da Praça do Parlamento, o estado de espírito

mudara. Ao longo do Muzeum Korut, em direcção ao Nemzeti Muzeum, as pessoas corriam num

caos de direcções, algumas assustadas, outras carregando lajes, pedras do pavimento que tinham

arrancado. O centro da sua actividade era a estação de rádio, situada na Brody Sandor ut, uma

rua estreita que corria junto ao museu. Qualquer que fosse o protesto pacifico que ali se formara,

tinha evoluído para um turba violenta – as janelas da estação de rádio haviam sido estilhaçadas,

os cacos de vidro na rua quebravam-se debaixo dos pés como poças de água congeladas. No

meio da rua encontrava-se uma carrinha virada ao contrário, as rodas a girarem, a frente

amachucada. Atiravam-se pedras. As portas da estação de rádio mantinham-se, no entanto,

fechadas e seguras.

Zsolt foi inquirir as pessoas ali próximas, e voltou-se para Fraera, passando de húngaro

para russo, falando com voz abafada:

292

Page 293: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Os estudantes exigiram que lessem os dezasseis pontos. A mulher que gere a

estação…

Fraera interrompeu-o:

— Quem é ela?

— Benke, uma comunista leal; mas, ao que parece, não é muito inteligente. Propôs um

acordo. Não podiam ter acesso à estação, mas dava-lhes uma carrinha de transmissão móvel. A

carrinha chegou. Os estudantes leram os pontos.

Fraera já se lhe adiantara:

— Era um truque?

— A carrinha não estava a transmitir. Pelo contrário, a estação estava a transmitir

ordens para as pessoas dispersarem, condenando a desordem. Os estudantes viraram a carrinha

ao contrário e espetaram-na contra as portas. Agora querem a estação e nada mais; dizem que

é a estação nacional e lhes pertence a eles, não aos soviéticos.

Fraera olhou em redor, avaliando a força da turba:

— Onde está o AVH?

— Lá dentro.

Fraera olhou para cima. Nas janelas dos andares de cima emergiram figuras – oficiais.

Ouviu-se um sibilo, colunas de fumo romperam do interior da rua. Gás lacrimogénico emergia

serpenteante de latas de aço, como génios vingativos saídos de uma lâmpada, crescendo em forma

e tamanho, ascendendo. Fraera mandou os seus homens recuarem, certificando-se de que Zoya e

Malysh estavam bem; recuaram, trepando por cima dos parapeitos, em direcção ao museu, à

medida que o gás os perseguia, atapeteando a relva como um nevoeiro matinal. Quando

alcançaram o cimo dos degraus do museu, voltaram-se. Espirais brancas giravam-lhes em volta

dos tornozelos; mas não constituiam perigo. A maior parte do gás lacrimogenico afunilara pela

rua, sendo regurgitado na rua principal. Do nevoeiro químico emergiram homens e mulheres,

caindo de joelhos, vomitando.

À medida que o gás se dissipava, Fraera aproximou-se, observando a rua vazia.

Prevalecia uma quietude obscura. A multidão dispersara. O tumulto fora extinto. Raisa abanou

a cabeça. Aquela era a sua única oportunidade. Se aquela noite terminasse sem um incidente

sério, as autoridades recuperariam a iniciativa, o controlo seria reafirmado. Fraera caminhou em

direcção à estação.

— Sigam-me.

293

Page 294: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O gás ainda não dispersara por completo, mas Fraera não estava disposta a esperar;

trepou os parapeitos, caminhou até ao meio da rua, ao mesmo tempo que as colunas de gás a

abraçavam. Tapou a boca e o nariz com a mão. Começou a tossir quase imediatamente; mas

prosseguiu, cambaleando em direcção à entrada da estação de rádio, de olhos lacrimejantes.

Zoya agarrou Malysh por um braço:

— Temos de a seguir!

Malysh rasgou a camisa, improvisando uma máscara para si e outra para Zoya. Treparam

o parapeito e entraram na rua; os dois alcançaram Fraera. Entretanto, o gás subia, circulava

através das janelas partidas da estação de rádio, tornando a rua um lugar onde se respirava melhor

e obrigando as figuras a retroceder das janelas. Lentamente, a multidão reuniu-se em volta do

núcleo de Zoya, Malysh e Fraera. Os vory juntaram-se-lhes com barras de ferro. Alcançaram as

portas e tentaram arrombá-las com as barras de ferro.

Zoya ergueu os olhos para cima. Os oficiais do AVH encontravam-se às janelas, desta

feita armados com carabinas. Agarrou Malysh, correu para diante e encostou-se à parede. Uma

salva de tiros resoou. As pessoas na rua baixaram-se, inclinando-se, incapazes de acreditar que

estavam a disparar sobre elas, ao mesmo tempo que se certificavam quem tinha sido atingido.

Ninguém ficara ferido. Os tiros tinham sido disparados por cima das suas cabeças, atingindo as

paredes do edifício em frente. A sua intenção fora assustá-los, precisamente no instante em que

as portas da frente da estação se abriam.

Inchados de determinação, os oficiais do AVH irromperam pelas portas, de espingardas

em riste, uma unidade de infantaria romana protegendo a estação de rádio. Os oficiais dividiram-

se em duas linhas, de costas encostadas – uma das linhas subia a rua e a outra descia, repartindo a

turba em duas. Avançaram com as baionetas firmadas na ponta das espingardas. Malysh e Zoya

estavam a ser empurrados para trás, em direcção ao museu, à medida que os oficiais lhes

apontavam as baionetas. Zoya olhou para menina que estava a seu lado; teria talvez oito anos.

Longe de parecer assustada, sorria triunfante para Zoya, engachando os seus braços no dela.

Ficariam juntas. Gritou para os oficiais, chamando-lhes nomes. Inspirada pela coragen daquela

menina, Zoya dobrou-se, apanhou uma pedra não muito maior do que a palma da sua mão e

atirou-a, atingindo o oficial numa das faces. Exultante, sorria ainda quando ele virou a

espingarda na sua direcção.

294

Page 295: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Houve um clarão. As pernas de Zoya dobraram-se; caiu. Sem saber ao certo se tinha

sido atingida, virou-se para o lado, fitando os olhos da menina que lhe dera o braço. A bala tinha

atingido a menina no pescoço.

Os oficiais continuaram a avançar. Zoya não se conseguia mexer, incapaz de sair dali.

Os oficiais estavam quase em cima dela. Tinha de se levantar. Matá-la-iam. Contudo, não era

capaz de deixar aquela menina para trás. Fraera agachou-se, ergueu a menina nos seus braços, e

desceu a rua com ela ao colo. Malysh ajudou Zoya a levantar-se, e os dois correram. Atrás deles,

os oficiais detiveram a marcha, mantendo a posição.

Fraera pousou a menina, gritando com uma raiva crua, como se fosse sua mãe, como se

amasse aquela menina. Zoya ficou recuada, observando os homens e as mulheres ajoelharem-se

junto da jovem vitima, atraídos pelos gritos de Fraera. Seria aquele desgosto uma representação?

Antes que Zoya pudesse pensar mais sobre isso, Fraera ergeu-se, desembainhou uma arma e

disparou sobre a linha de oficiais. Era o sinal por que o seu bando esperara. De ambos os lados

da rua, puxaram das armas, abrindo fogo. A formação de oficiais começou a quebrar, a recuar

para a estação, já sem a certeza de serem capazes de mantero o controlo. Os oficiais tinham

presumido, como homens lutando contra bestas, que eram os únicos armados. Sob ataque,

Apressaram-se a recuar para a segurança da estação de rádio.

Zoya ficou junto do corpo da menina, fitando os seus olhos sem vida. Fraera puxou-a

para o lado, oferecendo-lhe uma arma:

— Agora luta.

Zoya retorquiu:

— Eu mateia-a.

Fraera esbofeteou-lhe o rosto:

— Nada de culpa. Só raiva. Foram eles que a mataram. O que é que pretendes fazer?

Chorar como uma criança? Passaste a vida inteira a chorar! É tempo de agir!

Zoya pegou na arma e avançou para a estação de rádio, apontando para as figuras à

janela, e, gritando, puxou o gatilho e disparou todos os seis tiros.

295

Page 296: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

24 de Outubro

Madrugada e Zoya não dormira. Os seus sentidos, longe de estarem entorpecidos pela

fatiga, pareciam intensificados; recolhia com os olhos todos os detalhes das coisas que a

rodeavam. A seu lado amontoava-se inexplicavelmente até à altura dos joelhos uma pilha de

canecas de café partidas, sobre a sarjeta; centenas de cacos em monte como se marcassem uma

campa. Em frente, os restos de uma fogueira composta inteiramente de livros queimados,

exemplares de Marx e Lenine, saqueados de livrarias. Flocos de cinza cinzenta ascendiam ao

céu, como neve caindo no sentido inverso. Faltavam pedras no pavimento, que tinham sido

arrebatadas do chão para servir de mísseis; falhas nos dentes da rua. Era como se a própria

cidade tivesse entrado numa luta, e Zoya tivesse lutado a seu lado. As suas roupas cheiravam a

fumo: as pontas dos dedos estavam negras, a língua tinha um sabor metálico. Os ouvidos

zuniam-lhe. Debaixo da sua camisa, encostada ao estômago, estava a sua arma.

A estação de rádio tinha caído pouco antes da alvorada: fumo berrando das janelas. As

portas de madeira foram, enfim, derrubadas. A resistência no interior tinha enfraquecido, à

medida que o ataque no exterior se consolodara, com um fornecimento de armas, carabinas da

academia militar, disparadas por cadetes da própria academia. Fraera encontrara Zoya e Malysh e

ordenara-lhes que não tomassem parte no ataque ao edifício. Não queria que fossem apanhados

numa batalha campal, lutando em corredores repletos de fumo onde os oficiais desesperados do

AVH se escondiam atrás das portas. Dera-lhes um objectivo diferente:

Encontrem Estaline

#

Quando chegaram ao fim da Gorkii fasor, uma rua que conduzia ao principal parque da

cidade, o Varosliget, Malysh e Zoya ficaram chocados com a ausência do seu principal

ornamento. No meio da Praça dos Heróis, a imensa estátua de Estaline – um colosso de bronze

da altura de quatro homens, com um bigode do comprimento de um braço - tinha desaparecido.

296

Page 297: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

O pedestal ainda ali estava, mas já não tinha a estátua em cima. Malysh e Zoya aproximaram-se

do monumento mutilado. Tudo o que restava era duas botas de aço: o Generalissimo tinha sido

cortado pela altura dos joelhos; um suporte de aço retorcido emergia da bota direita. O corpo e a

cabeça tinham desaparecido; a estátua tinha sido assassinada e o cadáver roubado. Sobre o

pedestal encontravam-se dois homens atarefados a tentar fixar a bandeira húngara modificada na

bota oca de Estaline.

Zoya soltou uma risada. Apontou para o espaço onde antes se encontrava Estaline:

— Está morto! Está morto! O filho da mãe está morto! Está…

Malysh precipitou-se sobre ela, tapando-lhe bruscamente a boca com a mão. Tinha

gritado em russo. Os dois homens sobre o pedestal detiveram-se e voltaram-se, olhando para

baixo. Malysh ergeu o braço, socando o ar:

— Russkik Haza!

Os homens acenaram com indiferença, distraídos quando a sua bandeira caiu.

Malysh afastou Zoya, sussurrando-lhe:

— Não te esqueça de quem somos.

Em resposta, Zoya beijou-o nos lábios – um beijo súbito e rápido, improvisado num

momento inesperado. Afastou-se, e antes que ele pudesse reagir, ou dizer alguma coisa, fingiu

que não se passara nada, apontando para os riscos fundos no pavimento:

— Foi nesta direcção que arrastaram o corpo!

Começou a andar, com o coração aos pulos no peito, seguindo as marcas deixadas pelo

bronze nas pedras da calçada:

— Devem-na ter puxado com uma carrinha ou um camião.

Malysh não respondeu. Sem conseguir continuar a fingir-se serena, Zoya deteve-se,

dando meia volta:

— Estás aborrecido?

Ele abanou a cabeça. Zoya sentia as faces a arder.

Mudou de assunto, apontando para os riscos:

— Vamos fazer uma corrida. O primeiro a chegar ao corpo de Estaline, ganha!

Quando eu contar até três…

Antes que proferisse um único número, antes largaram a correr, trapaceando em perfeita

sincronização.

297

Page 298: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Malysh arrancou à frente, mas deteve-se quando perdeu o rasto dos riscos no pavimento;

foi obrigado a voltar para trás, procurando vestígios da direcção em que o cadáver de bronze

havia sido arrastado. Detiveram-se os dois no primeiro cruzamento, de cabeça em baixo, como

cães de caça, circulando os possíveis pontos de viragem. Zoya encontrou o rasto e começou a

segui-lo; Malysh ia agora atrás dela. Dirigiam-se para sul e viraram em direcção à Praça Blaha

Lujza, um vasto cruzamento, alinhado de lojas.

Adiante avistaram o corpo de bronze, tão grande como e longo como um eléctrico,

deitado de barriga para baixo. Assim viram a meta, ambos aceleraram, correndo depressa. Zoya

tinha poupado mais forças, pois controlara o ritmo, explorando o anterior equivoco de Malysh da

distância que teriam de correr. Estava à sua frente, mas não por muito, por isso esticou o corpo

para diante, tocando com as pontas dos dedos na perna de Estaline. Ofegante e sorridente, deitou

um olhar a Malysh, descobrindo-o verdadeiramente aborrecido. Detestava perder; por isso

tentava pensar numa qualquer razão para anular a corrida, de maneira a inverter a sua vitória; ela

conseguia ver as desculpas a borbulharem-ne na cabeça.

Para selar a vitória, Zoya trepou à estátua; os sapatos rasos escorregavam na superfície

lisa das coxas de Estaline; enfiou os pés nas pregas de imitação do seu casaco e içou-se. No topo,

descobriu que Estaline não tinha cabeça; tinham-lhe cortado o pescoço, decapitando-o cruamente.

Caminhou ao longo da linha das suas costas, passo a passo, cuidadosamente, como um trapezista

numa corda. Malysh ficou parado na rua, de mãos nos bolsos. Ela sorriu-lhe, esperando vê-lo

corar, ou que ainda estivesse amuado. Contudo, ele devolveu-lhe o sorriso. Uma onda de prazer

explodiu-lhe no peito, e na sua mente executou piruetas festivas ao longo da espinha de Estaline.

Quando alcançou o pescoço de bronze, correu com os dedos pela quina áspera onde a

cabeça parecia ter sido rachada, esmagada e serrada. Pôs-se de pé, de mãos nas ancas, como um

ar conquistador de assassino gigante, vigiando a praça. No lado oposto, próximo da Jozsef Korut

reunira-se uma pequena multidão. As they moved she caught a glimpse of Stalin’s head. Upright,

supported on the remains of his zigzag neck, he seemed to be staring at her, stupefied at his

humiliation. A hole had been smashed in his forehead, buckling his hairline, out of which

protruded a street sign: 15KM. The truck that had dragged the statue into the district had also

dragged the head from the body. There were chains still attached. Zoya lowered herself to the

street, peeking into the Stalin’s dark stomach – hollow and black and cold, just as she suspected –

before hurrying to the assembled crowd.

Malysh caught up with her, grabbing her hand:

- Let’s go back.

298

Page 299: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- Not yet.

Zoya pulled free, passing through the crowd, walking straight up to Stalin’s face and

spitting at his huge, smooth eye. After having run so fast Zoya’s mouth was dry and very little

spit came out. It didn’t matter. There was laughter. Pleased, she was ready to leave. But before

she could retreat Zoya was lifted up and placed on top of Stalin’s head, mounted on his bronze

fringe. A discussion broke out in the crowd. They addressed her directly. Without any idea what

they were saying she nodded. Two men hurried to the truck, talking to the driver while another

man handed her the newly modified Hungarian flag. The truck started its engine, slowly driving

forward – the slack chains running from the back of the truck to Stalin’s head, rising up from the

street. As soon as the chains were taut the head shifted position, rotating round, as though it were

coming to life. Zoya grabbed the protruding 15KM sign, steadying herself. Everyone was talking

at once: she understood they were asking if she was okay. She nodded. They signalled to the

driver. He accelerated. Stalin’s head lurched forward, bumping over the tramlines.

Concentrating, trying to figure out how to stop the giant head from bucking her off, she

quickly came to terms with how to distribute her weight, her feet wide, riding the crest of Stalin’s

hair, hands clasped around the protruding street sign. Zoya gained confidence, standing up

straight. Spotting Malysh’s concerned face she smiled, trying to reassure him, ushering him

forward, wanting him to join her but he refused, crossing his arms, staying back, annoyed at her

recklessness. Ignoring his grumpiness, she played to the crowd, pointing forward like an empress

atop her chariot. The truck was moving at steady pace: Stalin’s head dragged at walking speed,

the Hungarian flag lank behind her, trailing along the ground. She gestured to the driver – faster.

The truck accelerated. Sparks crackled from the bottom of Stalin’s jaw. Zoya’s hair was

flapping and picking up enough speed, the flag began to flap as well, spreading out behind her. In

that second, she became an emblem of their defiance, Stalin’s head under her feet, the new

Hungarian flag sweeping out. She looked around hoping to see admiration in the crowd’s eyes,

hoping a camera might capture this moment.

Her audience had disappeared.

At the end of Joszef Korut there was a tank, turret pointed directly at them, caterpillar

tracks grinding over the street, advancing at speed. The truck braked. The chains fell slack.

Stalin’s head stopped so suddenly it flipped forward, nose hitting the street, throwing Zoya off.

Dazed, winded, she lay sprawled in the middle of the square.

Malysh grabbed her. She sat up, seeing the tank rolling straight towards them, only a

couple of hundred meters away. Leaning on Malysh she stood up, staggering away. Trying to find

cover, they hurried towards the nearest shop. She looked back. The tank fired: a burst of yellow, a

299

Page 300: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

whistling noise. The shell hit the street – a cloud of smoke, fragments of stone, streaks of fire.

Zoya and Malysh were smashed down.

Appearing out of the cloud, Stalin’s giant head appeared, blasted off the ground and

swinging like a ball at the end of a chain, arching straight towards them, as if taking revenge for

its desecration. Zoya pushed Malysh flat just as Stalin’s head passed over, his jagged neck only

centimetres above them before crashing through the shop window, showering them with glass.

Where the head travelled, the truck followed, dragged by the chains, flipped over onto its back,

rotating round, crunching into the street, the driver hanging upside down.

Before they could get up, the tank appeared out of the smoke, a metallic monster, its

turret aimed directly at them. They crawled backwards until they reached the devastated

pharmacy window. There was nowhere to go, no way to escape. But the tank didn’t fire. The

hatch was opened. A soldier appeared, taking up control of the mounted machine gun. Zoya

fumbled for her handgun. It was gone. As the soldier spun the machine gun towards them a bullet

struck his jaw. More bullets struck the tank, fired from every side of the square. Under

bombardment the dead soldier was pulled down into the compartment.

Two men ran at the tank arms raised high, holding glass bottles, a rag burning in each.

They tossed them inside, filling the tank with fire.

Malysh grabbed Zoya:

- We have to go.

For once, Zoya didn’t disagree.

300

Page 301: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Europa do Leste, zona controlada pela União Soviética

Hungria

Periferia de Budapeste

Montanhas Buda

27 de Outubro

Leo começava a ficar cada vez mais frustrado com a aparente falta de pressa do seu guia.

Avançavam muito lentamente. Tinham demorado dois dias a percorrer os mil quilómetros que

distavam da fronteira húngara, e porém, três dias a percorrer os restantes trezentos quilómetros

até Budapeste. Karoly só começou a andar um pouco mais depressa quando ouviu a rádio

anunciar que se estavam a levantar tumultos em Budapeste. Quando inquirido, Karoly não lhes

deu mais do que uma tradução dos relatos da rádio – agitações civis sem importância

perpetradas por bandos de fascistas. Era impossível avaliar a escala dos tumultos a partir destas

palavras. As transmissões de rádio eram censuradas, e decerto minimizariam a disrupção.

Contudo, o facto de se estar a pedir aos agitadores para regressarem às suas casas, sugeria que as

autoridades já não detinham o controlo da situação. Com informação insuficiente, Karoly decidiu

que era demasiado perigoso entrar na cidade directamente, e optou por tomar uma rota circular,

evitando várias barricadas do exército soviético. Rodearam o distrito residencial de Buda,

contornando o centro, os edifícios cívicos e a sede comunicta – pontos críticos de uma

sublevação.

Era de manhã quando Karoly estacionou o carro no miradouro das montanha Buda, a

várias centenas de metros acima da cidade. As ruas adjacentes estavam desertas. No sopé das

montanhas, o Danúbio atravessava a cidade, dividindo-a em duas metades – Buda e Peste.

Enquanto a metade de Buda permanecia bastante sossegada, no outro lado do rio ouvia-se o

estrondo de tiros. Ténues espirais de fumo erguiam-se de vários edifícios. Leo perguntou:

— As tropas soviéticas já entraranm na cidade? A sublevação foi derrotada?

Karoly encolheu os ombros:

— Não sei que foi a evolução da sublevação nem da resposta soviética.

Raisa voltou-se para Karoly:

— Você é de cá. Trata-se dos seus compatriotas. Panin usa ambos para causar uma

disputa política. Como é que pode trabalhar para ele?

301

Page 302: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Karoly abespinhou-se:

— Os meus compatriotas deviam era esquecer esses sonhos de liberdade. Só servirão

para nos matarem a todos. Se isto arreda esses agitadores, melhor para os restantes de nós…

Pense o que pensar de mim, eu só desejo viver em paz.

Karoly abandonou o carro e começou a descer a colina:

— Primeiro, vamos para o meu apartamento.

O apartamento de Karoly era perto, no Hunyadi Janos Ut, mesmo abaixo do castelo, nas

encostas com vista sobre o Danúbio. Subindo as escadas para o último andar, Leo perguntou:

— Vive sozinho?

— Vivo com o meu filho.

Karoly não mencionara anteriormente nada acerca da sua família e, sem dizer mais nada,

entrou no apartamento, percorrendo as várias divisões. Por fim, chamou:

— Victor?

Karoly esperara encontrar o filho em casa. Raisa perguntou:

— Que idade tem o seu filho?

— Tem vinte e três.

Raisa propôs:

— Deve haver uma explicação simples para onde possa estar.

Leo acrescentou:

— Qual é a ocupação dele?

— Juntou-se ao AVH.

Leo e Raisa permaneceram em silêncio, compreendendo tardiamente a apreensão do seu

guia. Karoly pôs-se a olhar pela janela, falando mais para consigo próprio do que para eles:

— Não há motivo de preocupação. O AVH deve ter convocado todos os oficiais à sede

no início da revolta. Deve lá estar, de certeza.

O apartamento estava abastecido de comida, parafina, velas e diversas armas. Karoly

trazia uma pistola consigo desde que tinham atravessado a fronteira. Sugeriu que Leo e Raisa lhe

seguissem o exemplo, uma vez que o facto de não estarem armados não lhes garantia que fossem

ser tratados como não combatentes. Leo escolheu a TT-33, uma pistola de fabrico soviético,

delgada e robusta. Raisa segurou-a nas mãos relutantemente. Concentrando-se no perigo que

Fraera constituía, obrigou-se a familiarizar-se com a arma.

302

Page 303: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Saíram do apartamento, descendo a encosta, com a intenção de atravessar o Danúbio e

entrar no outro lado da cidade onde provavelmente Zoya estaria a trabalhar ao lado de Fraera, no

centro da revolta. Quando atravessaram Szena ter, meteram caminho através das fortificações

improvisadas da praça. Havia jovens sentados nas soleiras das portas, fumando, e pilhas de

bombas de gasolina de fabrico caseiro. Os eléctricos tinham sido derrubados, impedindo a

passagem. Do cimo dos telhados, os atiradores seguiam-lhes os movimentos. Tentando não

levantar suspeitas, os três caminharam devagar, afastando-se em direcção ao rio.

Karoly conduziu-os através da Margit-hid, uma ponte larga que também ligava com uma

pequena ilha no meio do Danúbio. Chegados a meio, Karoly fez-lhes bruscamente sinal para

parar. Abaixou-se, apontando para a ponte em frente. Encontravam-se lá tanques estacionados.

Vislumbraram também artilharia pesada em torno da Praça do Parlamento. As tropas soviéticas

estavam evidentemente empenhadas, mas, a julgar pelas fortificações insurgentes, não detinham o

controlo. Exposto de todos os lados, Karoly baixou-se, apressando-se. Leo e Raisa seguiram-no,

recebendo nos rostos o vento frio, ficando bastante aliviados quando alcançaram finalmente a

outra margem.

A cidade era um estado esquizofrénico, nem era uma zona de guerra nem nada próximo

da normalidade, mas ambas as coisas em simultâneo, alternando entre as duas coisas em curtas

distâncias. Não se encontravam longe da Praça do Parlamento. Zoya podia estar em qualquer

lado. Leo tinha trazido duas fotografias, uma de Zoya, um retrato que a família tinha tirado junta

recentemente. Tinha um ar deprimido e miserável, pálida de ódio. A outra era uma fotografia

tirada por Fraera durante o cativeiro. Mudara tanto que a fotografia era praticamente inútil.

Karoly mostrou-a aos trauseuntes; todos se mostraram disponíveis para ajudar. Havia, sem

dúvida, muitas famílias a fazer exactamente o mesmo, procurando familiares desaparecidos. As

fotografias foram devolvidas com um abanar de cabeça de escusa.

Continuaram a caminhar para diante, metendo por uma rua estreita onde não havia o

menor sinal de luta. Era o meio da manhã e havia um pequeno café aberto. Os clientes sorviam

café como se não se passasse nada fora do comum. O único sinal de que havia qualquer

anormalidade eram os jornais amontoados nas sarjetas, panfletos impressos em massa. Leo

inclinou-se, apanhando um maço de papéis finos, limpando-lhes a sujidade. No topo havia um

selo, um emblema – um crucifixo ortodoxo. Por baixo deste, o texto estava em húngaro; porém,

Leo reconheceu o nome: Nikita Sergeyevich Khrushchev. Aquilo era trabalho de Fraera.

Excitado com a confirmação da sua presença na cidade, levou o panfleto a Karoly.

303

Page 304: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Karoly estava parado, com os olhos fixos num ponto distante. Leo seguiu-lhe o olhar até

ao fim da rua, que abria para um pequeno parque. Aí, havia uma única árvore sem folhas. A luz

do sol enchia o espaço aberto, contrastando com as sombras de onde se encontravam. Enquanto

adaptava os olhos, Leo focou-se no tronco da árvore. Este parecia estar a balouçar.

Karoly largou a correr. Leo e Raisa seguiram-no, passando a correr diante do café e

atraindo a atenção daqueles sentados à janela. Quando alcançaram o fim da rua, na fronteira da

luz do sol, detiveram-se. No ramo mais grosso da árvore estava dependurado o corpo de um

homem, de cabeça para baixo. Os pés estavam atados com corda. Os braços oscilavam para trás

e para a frente como um macabro espanta espíritos. Sob o corpo tinha-se acendido uma fogueira.

A cabeça estava queimada, sem cabelo: a pele, carne e feições irreconhecíveis. Tinham-no

despido, mas apenas da cintura para cima; terem-lhe deixado as calças era de certa forma de uma

modéstia incongruente com a barbárie do seu assassínio. O fogo tinha-lhe queimado os ombros e

enegrecido o tronco. A pele intacta revelava a idade do homem. Era um jovem. O uniforme,

casaco, camisa e chapéu encontravam-se nas cinzas abaixo. Tinha sido queimado vivo com o

uniforme vestido. Leo conseguia ouvir a voz de Fraera, como se esta lhe sussurrasse ao ouvido:

Foi disto que te falei

O homem era um membro do AVH, a Polícia Secreta Húngara.

Quando se voltou, Leo viu Karoly agarrado à cabeça, como se tivesse o cabelo infestado

de piolhos, murmurando:

— Não sei…

Karoly aproximou-se, estendendo a mão para tocar no rosto carbonizado, antes de se

afastar, circundando o corpo:

— Não sei…

Voltou-se para Leo:

— Como é que posso saber se é o meu filho?

Caiu de joelhos sobre o fogo apagado, fazendo levantar uma nuvem de cinza. Reuniu-se

uma multidão, observando a cena. Leo virou-se para ver as suas expressões – hostilidade, raiva

perante aquela ostentação de pesar mostrada para com o inimigo, raiva por verem a sua justiça

censurada. Leo baixou-se ao lado de Karoly, pondo um braço à sua volta:

— Temos de ir.

304

Page 305: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Sou o pai dele. Devia saber.

— Não é o seu filho. O seu filho está vivo. Vamos encontrá-lo. Temos de ir.

— Sim, está vivo. Não está?

Leo ajudou Karoly a levantar-se. Mas a multidão não lhes abria passo.

Leo viu a mão de Raisa aproximar-se da arma, escondida na parte de cima das calças.

Ela tinha razão. Estavam em perigo. Muitos na multidão começaram a falar – um dos homens

tinha uma alça de balas da grossura de um dedo pendurada à volta do pescoço. Tinham um ar

acusatório. Ainda de lágrimas nos olhos, Karoly mostrou as fotografias de Zoya e Fraera. Assim

que viu as fotografias, o homem que trazia as balas descontraiu-se, pousando uma mão no ombro

de Karoly. Falaram ao mesmo tempo. A multidão começou a abrir-se. Karoly despedi-se do

homem armado até aos dentes. Depois de todos se terem afastado, murmurou a Leo e Raisa:

— A sua filha acaba de nos salvar a vida.

— Aquele homem viu-a?

— Lutando próximo do cinema Corvin.

— Que mais lhe disse ele?

Karoly fez uma pausa:

— Que devia estar orgulhoso dela. Matou muitos russos.

305

Page 306: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Raisa correu com homens, mulheres e crianças à ilharga, todos eles em pânico,

intercruzando posições. Um velho caiu por terra. Uma mulher tentou ajudá-lo, puxando-lhe pelo

casaco, tentando tirá-lo da estrada. O carro blindado ou não o viu ou não se importou:

preparavam-se para passar por cima do casal como se este fosse entulho. Raisa primeiro hesitou;

mas depois correu para trás e empurrou o homem para fora do caminho no momento em que o

tanque passava, triturando o pavimento – as lagartas estavam tão próximas que Raisa sentiu uma

torrente de ar metálico.

Raisa vigiou a rua. Não conseguia avistar Leo nem Karoly, mas não deviam estar longe.

Meteu por uma rua lateral ao calhas e acabou por se deter, incapaz de continuar a correr.

Esperou, recuperando o fôlego. Explorara a confusão criada pelo carro blindado, para conseguir

o que queria: separar-se de Leo e Karoly. Podia agora procurar Zoya sozinha.

A ideia ocorrera-lhe em Moscovo, mais ou menos logo que soube que Zoya estava viva.

Zoya conseguia imaginar uma vida só com Raisa. Ela mesma o dissera. Mas não conseguia

imaginar uma vida com Leo. Não lhe parecia que no decorrer daqueles cinco meses essa posição

tivesse mudado. Quando muito, a sua posição arreigara-se ainda mais. No comboio a caminho

da Hungria a sua ressolução fortalecera, ao observar Karoly e Leo juntos – dois eis agentes,

desconfiados um do outro, e porém, ligados mutuamente como membros de uma sociedade

secreta. Zoya iria perguntar: dois agentes do KGB para me salvar? Teria náuseas dessa ideia.

Como a compreendiam mal; fora exactamente esse sentimento que Fraera explorara sem

escrúpulos, mostrando empatia para com o isolamento que Zoya sentia.

De acordo com as testemunhas, Zoya já se tinha envolvido na luta. Podia ter matado

pessoas. Tal ideia fê-la sentir-se agoniada e esperava apenas que não fosse verdade. De qualquer

modo, era óbvio que salvar Zoya dependeria de quebrar a sua solidariedade para com aquele

conflito. Quando à ideia de Leo de a levar à força, Raisa não estava convencida de que Zoya não

fosse capaz de lhe acertar um tiro no coração.

Raisa duvidava que Leo aceitasse que o seu desaparecimento fosse deliberado. Karoly

talvez fosse capaz de adivinhar as suas verdadeiras intenções. Leo iria negar. Aquele atraso

306

Page 307: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

conferira-lhe uma pequena vantagem. Karoly fornecera-lhes um mapa da cidade, marcando o seu

apartamento, no caso de se separarem. Julgava encontrar-se algures nas proximidades de Stahly

ut. Precisava agora de se encaminhar para sul, evitando as rotas mais evidentes, em direcção ao

cinema Corvin, onde Zoya tinha sido avistada.

Avançou devagar, por se ver obrigada a manter o mapa escondido, e alcançou o Ulloi Ut.

Aquele distrito tinha sido palco de escaramuças intensas: havia cápsulas de projécteis de carros

blindados espalhados pela calçada. Toda aquela devastação indicava a presença de Fraera.

Apesar do tamanho da rua, não se viam muitas pessoas; figuras dardejando entre portas e depois

nada – uma calma fantasmagórica para uma via pública tão importante. Prosseguiu, hesitante,

junto aos edifícios e deteve-se para apanhar um tijolo partido, preparando-se para se enfiar no vão

de uma porta ou partir uma janela e meter-se por ela, caso precisasse de se proteger. Quando

passou com os dedos pelo tijolo, notou que a base estava viscosa. Perplexa, olhou para o chão,

vendo então que a rua estava coberta por uma qualquer viscosidade.

A rua estava atapeteada, em toda a largura, por um tecido. Era seda; rolos e rolos de seda

preciosa. Porém estava molhada, ensopada numa espuma de sabão. Desorientada, Raisa avançou

devagar, ao mesmo tempo que as solas lisas dos seus sapatos deslizavam nesta e naquela

direcção. Só conseguia avançar, mantendo uma mão na parede. Como se tivesse tropeçado num

alarme, ecoaram gritos nas janelas acima. Havia pessoas em ambos os lados, nas janelas, no

telhado; todas elas estavam armadas até aos dentes. Quando ouviu um barulho, sentindo as

vibrações, Raisa deu meia volta. Um tanque circulava na rua, vigiando ambas as direcções, antes

de começar a rolar na sua direcção, girando as lagartas e acelerando. Todos quantos estavam às

janelas e no telhado desapareceram, recuando para longe da vista. Era uma armadilha. E ela

estava no meio dela.

Num esforço para sair da rua, Raisa correu ao longo da seda molhada, caiu, pôs-se de pé

rapidamente e alcançou a loja mais próxima. A porta estava trancada. O tanque aproximava-se

cada vez mais pela retaguarda. Ela era a única pessoa na rua. Raisa levou o tijolo atrás e partiu

com ele a janela; à sua volta caíram grandes estilhaços. Trepou lá para dentro no momento em

que o tanque alcançava o inicio da seda espumosa. Raisa olhou para trás, convencida de que o

tanque iria atravessar aquele tosco obstáculo facilmente. Mas guinou de imediato para o lado,

perdendo a aderência, mastigando a seda escorregadia. Não tinha tracção, nem controlo. Raisa

ergueu os olhos para o cimo do telhado e viu as pessoas reunirem-se – uma salva de bombas de

gasolina caiu com estrondo em torno do tanque, cobrindo-o de fogo. O tanque virou o canhão em

307

Page 308: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

direcção aos telhados do edifício, disparando um projéctil. Incapaz de controlar a sua posição, o

projéctil falhou, ascendendo ao céu.

Raisa enfiou-se rapidamente mais para o interior da loja. As paredes começaram a vibrar.

Deu meia volta. Pelas janelas estilhaçadas divisou o tanque virando na sua direcção. Mergulhou

para o chão quando o tanque derrubou a parede fronteira da loja; o canhão trespassava o tecto

acima de si, as paredes desmoronavam. O tanque imolizou-se, entalado entre os destroços.

Entre fumo e pó, Raisa soergueu-se e cambaleou até aos fundos da loja destruída, mas,

assim que alcançou as escadas, ouviu os insurgentes descerem dos telhados na sua direcção.

Encurralada entre o tanque e as pessoas que vinham a descer, escondeu-se atrás do balcão da loja,

abrigando-se do inevitável tiroteio, ao mesmo tempo que puxava da sua arma. Espreitando por

cima do balcão, avistou um soldado soviético abrir a escotilha do tanque.

Os insurgentes apareceram no andar de baixo. Raisa avistou uma metralhadora

empunhada por um jovem que usava uma boina. A mulher empunhou a pistola, apontando-a à

altura do soldado russo, pronta a disparar.

A jovem era Zoya.

Raisa ergueu-se. Em reacção ao seu movimento, Zoya deu meia volta, apontando-lhe a

arma. Estavam cara a cara, depois de seis meses, rodeadas por um turbilhão de pó e fumo dos

tijolos. A metralhadora decaiu nas mãos de Zoya como se se tivesse tornado demasiado pesada.

Ficou emudecida, boquiaberta. Ao fundo, o soldado russo, de rosto sujo, que provavelmente não

teria mais de vinte anos, explorou a oportunidade. Apontou a arma para Zoya. Raisa apontou-lhe

instintivamente a sua TT-33, puxou o gatilho e disparou vários tiros, atingindo o jovem na cabeça

com um deles.

Incrédula com o que acabara de fazer, Raisa fitou o corpo do soldado, de arma ainda em

riste. Recompôs-se logo depois, consciente de que não tinha muito tempo, e olhou para trás para

Zoya. Avançou, pegando nas mãos da filha:

— Zoya, temos de ir. Por favor confia em mim; dantes confiavas em mim, confia de

novo.

Vendo o conflito nos olhos de Zoya, sentiu-se satisfeita – havia esperança.

Fraera apareceu no fundo das escadas.

Raisa puxou Zoya para o lado, erguendo a arma. Apanhada de surpresa, Fraera não se

defendeu. Raisa podia atingi-la facilmente. Porém, hesitou. Nesse momento, sentiu o cano de

uma arma encostar-se-lhe nas costas. Zoya apontava-lhe a arma ao coração.

308

Page 309: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Depois de passar várias horas à procura de Raisa, temendo que pudesse estar ferida, Leo

compreendeu finalmente que Raisa devia tê-lo deixado para puder encontrar Zoya. Não

acreditava que Zoya fosse para casa com ele. Começou a correr para a tentar alcançar, e alcançou

o cinema Corvin, o lugar onde Zoya tinha sido avistada. O cinema era um edifício oval

defensível, situado ao fundo da rua, ligado a um caminho pedestre que tinha sido bloqueado e

fortificado. Um combatente aproximou-se. Karoly tinha ficado para trás, incapaz de o

acompanhar. Sem o seu tradutor, Leo foi salvo do inquérito pela chegada de um tanque soviético

T-34, que tinha sido tomado pelos insurgentes; do canhão pendia uma bandeira húngara. Os

combatentes rodearam-no, jubilantes. Atravessando a multidão, Leo ergueu a fotografia de Zoya.

Depois de examinar a fotografia, um dos homens apontou para a alameda.

Leo encaminhou-se para lá, largando novamente a correr. A alameda estava vazia.

Deteve-se, inclinando-se sobre o pavimento – a rua inteira estava coberta de seda rasgada.

Alguns dos pedaços de seda estavam completamente queimados, consomindo-se, ao passo que

outros estavam ensopados. Avistou o lugar onde o tanque com o qual se cruzara antes virara para

derrubar a fronte de uma loja. Os corpos de quatro soldados soviéticos estavam apinhados no

chão. Nenhum deles teria mais de vinte anos.

Não havia mais ninguém por perto.

309

Page 310: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Raisa fechou os olhos, concentrando-se nos ruídos provenientes das salas adjacentes:

pessoas a correr, aos gritos, objectos a serem arrastados pelo chão, ordens berradas em russo e

hungaro. Homens e mulheres feridos gritavam de dor. Uma das divisões adjacentes estava a ser

usada no tratamento tosco de ferimentos ocorridos na luta. Outra das divisões servia de refeitório

ao bando de insurgentes de Fraera – o cheiro de antisépticos mesclava-se com os cheiros da

comida, de carne frita e gordura animal.

Escoltada do tanque sob a mira das armas, Raisa mal se apercebera para onde estava a ser

conduzida, focando-se inteiramente em Zoya, que marchava à frente, caminhando a passos largos

como um soldado, de arma deitada por cima do ombro. Quando alcançaram o bloco de

apartmentos afastado da rua, entrando por uma passagem, Raisa tinha sido levada para o andar de

cima, empurrada para uma pequena sala, que tinha sido esvaziada à pressa e convertida numa cela

provisória.

Raisa abriu os olhos. As paredes começaram a vibrar; caía pó do tecto. Por perto passava

artilharia pesada. Espreitou através da pequena janela. Havia rixas na rua em baixo. Mesmo por

cima da sua cabeça ouvia-se o som dos pés a calcar os ladrilhos, atiradores a ocuparem as suas

posições. Raisa agachou-se junto à parede mais afastada da janela, exausta, de mãos nos ouvidos.

Pensou em Zoya. Pensou no jovem soldado soviético que matara. Por fim, permitiu-se chorar.

Ao ouvir passos à porta e uma chave a ser enfiada na fechadura, Raisa ergueu-se. Fraera

entrou. Enquanto antes, em Moscovo, parecia imperturbada e dominante, agora tinha um ar

cansado, tensa pelas pressões daquela operação.

— Quer dizer que me encontrou.

As mãos de Raisa tremiam de raiva:

— Vim por Zoya.

— Onde está Leo?

— Vim sozinha.

— Estás a mentir. Mas não tarda iremos encontrá-lo. Esta cidade não é grande.

310

Page 311: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Deixe Zoya ir.

— Fala como se eu a tivesse roubado. Quando, na verdade, a salvei de si.

— Sejam quais forem os problemas da nossa família, nós amamo-la. O mesmo não se

pode dizer de si.

Fraera pareceu quase nem reparar na observação:

— Zoya quis juntar-se a mim; por isso, permiti. É livre de fazer o que entender. Se

quisere ir para casa consigo, pode ir. Não irei impedi-la.

— É fácil ganhar o favor de uma criança permitindo-lhe fazer o que lhe apetece e

dizendo-lhe o que quer ouvir. Dar-lhe uma metralhadora; dizer-lhe que é uma revolucionária.

É uma mentira sedutora. Não acredito que a ame por isso.

— Nem lhe pedi que o fizesse. Já você e Leo, exigem amor. E a verdade é que era

extremamente infeliz quando vivia com vocês, enquanto que comigo é feliz.

Por cima do ombro de Fraera, ao fundo do corredor, Raisa conseguia ver os homens

feridos espalhados sobre as mesas da cozinha. Não havia médicos, quase nenhum equipamento,

apenas trapos ensanguentados e panelas de água quente.

— Se ficarem aqui, vão morrer. Zoya vai morrer consigo.

Fraera abanou a cabeça.

— A preocupação pelo seu bem estar não é prova de que é mãe. A verdade é que não é

mais mãe dela do que eu.

#

Raisa despertou. O quarto estava escuro e frio, e ela tremia, puxando para si o fino

cobertor. Era noite. A cidade estava em silêncio. Não esperava dormir, mas assim que se

deitara, tinham-se-lhe fechado os olhos. Havia um prato de carne e batatas no chão; tinha sido ali

depositado enquanto dormia. Estendeu a mão, puxando o prato para si. Só então notou que a

porta estava aberta.

Levantou-se e aproximou-se da porta, espreitando para o corredor. Estava vazio. Para

escapar bastava-lhe sair do apartamento, descer as escadas e sair para a rua. Seria possível que

Zoya tivesse aberto a porta e partido o cadeado, na esperança que Raisa escapasse, querendo

ajudá-la ao mesmo tempo que encobria o seu envolvimento? A iniciativa demonstrava resguardo

e habilidade, e porém, baseava-se numa falsa suposição. Raisa não estava ali para escapar:

311

Page 312: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Estava ali para levar Zoya para casa. Zoya compreenderia isso. Aquela atitute circunspecta era

inconsistente com o seu carácter, que era destemido e arrojado.

Perturbada, Raisa afastou-se da porta. Uma figura vaga apareceu no vão da porta; a

figura de um rapaz jovem. Sussurrou:

— Porque é que não foge?

— Não me vou embora sem Zoya.

Deu um salto para frente, enrolando uma perna à volta da dela, puxando-a e obrigando-a

a prostrar-se no chão, ao mesmo tempo que ele sufocava com a mão o seu grito de surpresa.

Estava deitada de costas, imobilizada. Raisa sentiu uma faca encostada à garganta. Murmurou:

— Devia ter fugido.

Ela repetiu, falando por entre os seus dedos:

— Não me vou embora sem Zoya.

Quando mencionou o nome dela, sentiu o corpo do rapaz retesar-se, a lâmina a

pressionar-lhe o pescoço. Raisa perguntou:

— Tu…gostas dela?

O rapaz mudou imediatamente de posição. Afrouxou a mão que tinha em cima da sua

boca. Ela tinha razão. Tudo aquilo era por causa de Zoya: o rapaz temia perdê-la. Raisa disse-

lhe:

— Ouve-me…ela está em perigo. E tu também…vem connosco.

— Ela não é vossa filha!

— Tens razão. — Ela não é minha filha. Mas eu gosto muito dela. E se tu também

gostas, vais encontrar uma maneira de a tirar daqui. Ouves a diferença entre a minha voz e a

voz de Fraera, não ouves? Percebes que eu me preocupo com ela? E sabes bem que ela não quer

saber.

O rapaz afastou a faca do seu pescoço. Parecia indeciso. Raisa adivinhou-lhe os

pensamentos:

— Volta para casa connosco. É por tua causa que ela está feliz, não é por causa de

Fraera.

O rapaz ergueu-se, correu para fora do quarto, fechou a porta e voltou a abri-la.

Lembrando-se que o cadeado estava partido, murmurou:

— Finja que está a tentar fugir. Se não eles matam-me.

O rapaz desapareceu. Raisa gritou:

312

Page 313: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

— Espera!

O rapaz reapareceu no vão da porta:

— Como é que te chamas?

Ele hesitou:

— Malysh.

313

Page 314: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

28 de Outubro

Leo contou pelo menos trinta tanques, uma coluna avançando ao longo da alameda

principal para a cidade. Um destacamento daquelas dimensões, mobilizado às seis da manhã,

significava que estava iminente uma invasão soviética. Os tanques estavam a tomar pontos

estratégicos na cidade. A revolta estava prestes a ser extinta.

Leo correu rapidamente colina abaixo, regressando ao apartamento de Karoly. Subiu as

escadas, dois degraus de uma vez; alcançou o último andar e abriu a porta. Karoly estava sentado

à mesa, segurando um panfleto na mão. Leo explicou:

— Os soviéticos mobilizaram mais de trinta tanques. Estão a entrar na cidade. Temos

de encontrar Zoya e Raisa imediatamente.

Karoly entregou-lhe o panfleto. Impaciente, Leo deitou uma vista de olhos ao papel. No

topo havia uma fotografia. Era Leo. Karoly traduziu o texto:

— Este homem é um espião soviético. Está disfarçado como um de nós. Informem o seu

paradeiro ao posto revolucionário mais próximo.

Leo pousou o panfelto.

— Se Fraera está à minha procura é sinal de que Raisa foi capturada.

Karoly comentou:

— Já não é seguro sair à rua, Leo.

Leo abriu a porta, pronto para sair:

— Ninguém se irá preocupar com um espião russo quando há tanques soviéticos em

todas as esquinas.

A porta do apartamento em frente estava aberta de par em par. Um pedaço do rosto do

vizinho estava visível. Olharam-se nos olhos. Depois, o vizinho fechou a porta.

Leo tinha sido denunciado.

314

Page 315: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

No mesmo dia

Dois vory entraram na divisão onde se encontrava Raisa, agarraram-na pelos braços e

levaram-na pelo corredor, sairam pela porta da frente, até à varanda. O pátio em baixo estava

apinhado de gente. Fraera encontrava-se no meio. Assim que viu Raisa chegar, fez sinal aos seus

homens para se afastarem. Estes desviaram-se, revelando Leo e Karoly de joelhos, de braços

atados à frente, como escravos para venda. Zoya estava no meio da multidão de observadores.

Leo levantou-se. Foram-lhe apontadas pistolas. Fraera fez sinal para as baixarem:

— Deixem-no falar.

— Não temos muito tempo, Fraera. Estão mais de trinta T-34 às portas da cidade neste

momento. Os soviéticos vão esmagar esta resistência. Vão matar todos os homens, mulheres e

crianças que segurem uma arma. É impossível vencer.

— Eu discordo.

— Frol Panin está a rir-se de si. Esta revolta é uma falácia. Não é o futuro da Hungria

que está aqui em causa. Estão a aproveitar-se de vós.

— Maxim, tu vês tudo ao contrário. Não é Panin quem se está a aproveitar de mim. Sou

eu quem se está a aproveitar dele. Nunca teria conseguido fazer isto sozinha. A minha vingança

teria ficado terminada em Moscovo. Em vez de me vingar apenas dos homens e mulheres

envolvidos na minha prisão, como planeei inicialmente, ele ofereceu-me uma oportunidade de

me vingar do Estado que destruiu a minha vida e me tirou o filho. Aqui, estou a prejudicar a

Rússia.

— Não, não está. As forças soviéticas podem perder centenas de tanques e centenas de

soldados; isso não fará qualquer diferença. Isso não os preocupa.

— Panin submestimou a profundidade do ódio que existe aqui.

— O ódio não basta.

Fraera desviou a sua atenção para Karoly:

— É o tradutor dele? An appointment arranged by Frol Panin? - Yes.

- You have instructions to kill me?

315

Page 316: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Karoly hesitated briefly:

- Either myself, or Leo was supposed to kill you. Once the uprising began.

Leo was shocked. Fraera shook her head dismissively:

- Did you not realize your true purpose Leo? You are an unwitting assassin.

- I didn’t know.

- Panin’s doesn’t understand. I didn’t start this uprising. All I did was to encourage it.

You could kill me. It wouldn’t make any difference.

Leo turned to Zoya. She had a gun over her shoulder, grenades on her belt. The boy

who’d murdered the Patriarch was beside her. He was holding her hand.

- If you fight, you will die.

Fraera addressed Zoya:

- Zoya? What do you say?

Zoya punched the air with her gun:

- We fight!

316

Page 317: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Though Raisa wanted to talk, Leo’s body language was set against it. He’d not spoken

since being manhandled into the cell. On the other side of the room, Karoly lay sprawled on the

bedding, his eyes closed. His leg had been injured during his capture. Breaking the silence, Raisa

said:

- Leo, I’m sorry.

Leo looked up at her:

- I made one mistake, Raisa. I should’ve told you about Zoya. I should’ve told you about

her holding the knife over me.

Still lying down, his eyes closed, Karoly interjected:

- The daughter we’re trying to rescue, she stands over you with a knife?

Karoly opened an eye, looking at Raisa, then at Leo.

Leo lowered his voice, trying to cut Karoly out the conversation:

- The only way we’re going to escape is if we trust each other.

Raisa nodded. Leo asked:

- Do you have any idea how we’re going to get Zoya out of here?

- Yes. She’s in love.

Leo pulled back in surprise.

- In love with who?

- A vory, he’s young – the same age as her, his name is Malysh.

- That boy is a murderer. I watched him kill the patriarch. He decapitated a seventy-year

old man with a length of wire.

Karoly opened another eye:

- They sound like a good match.

Raisa took hold of Leo’s h- 6ands:

- Malysh might be our only hope.

317

Page 318: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Zoya lay at the crumbling edge of the house. Damaged by shellfire, the entire front had

collapsed. Flat on her stomach, with the rifle stretched out before her, Zoya’s eye was pressed up

against the scope. There were two tanks at the mouth of the Kossuth-hid, the bridge near

Parliament, no doubt waiting for orders to advance into the city as Leo had predicted. Leo – she’d

been sure she’d never see him again.

She needed to pee. Checking on the tanks, seeing no movement, she couldn’t wait any

longer. Leaving her rifle, she examined the remains of the bedroom. Since the entire front of the

house had fallen down the room was exposed. The wardrobe offered the only privacy without

going too far from her post. She slipped inside and shut the doors, squatting. She felt guilty about

dabbing dry with the sleeve of a coat, an odd sensation considering she was about to shoot a man.

She’d fired her gun on numerous occasions and it was possible she’d already killed although she

hadn’t seen anyone die or fall down. Without warning, grabbing a nearby shoe, she threw up,

filling the shoe to the heel.

She stepped out the wardrobe, shutting the doors. The rifle was as she’d left it, lying

across the bricks. Shaking, she slowly returned to her position. A Soviet soldier was staggering

towards the two tanks. Zoya lined up the injured officer in her crosshairs. She couldn’t see his

face, only his back, uniform, his bleeding arm – his curly brown hair. The other officers might

come to his aid. Fraera had taught her that these were the officers to shoot, the real prize, before

finishing off the injured man.

The wounded soldier fell ten paces from the tank unable to go any further. Hands

trembling, Zoya moved the crosshairs towards the hatch, waiting to see if they’d take the bait.

The tank came to life, edging forward, moving as close to the wounded man as possible. They

were going to save him. The hatch opened. A soldier cautiously lifted the steel lid, peering out,

waiting to see if he’d be shot, ready to duck back down. After a pause, he climbed out, hurrying

to the aid of his injured comrade. Zoya had the man in her sights. If she didn’t pull the trigger he

would help his comrade back into the tank then they would advance into the city and kill more

innocent families and what good would her guilt be then? She was here to fight. They were the

enemy. They’d killed children and mothers and fathers.

318

Page 319: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

A hand pushed the gun down. It was Malysh. He lay beside her, their faces close

together. He took hold of her rifle, checking on the tanks. She peered over the rubble. The tanks

were moving again. But they weren’t advancing into the city: they were heading in the opposite

direction, back across the bridge. Zoya asked:

- Where are they going?

Malysh shook his head:

- I don’t know.

319

Page 320: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Leo examined the room, searching for a way out. Engrossed in his study of the door, the

window, the floorboards, he noticed the relative quiet. The sound of explosions and gunfire had

stopped. There were footsteps outside the cell. The door opened. Fraera strode in.

- Listen!

A radio in the adjacent room had been turned up to full volume. The presenter was

speaking Hungarian. Leo turned to Karoly. He listened for several seconds. Impatient, Fraera

called out:

- Translate!

Karoly glanced up at Leo:

- A ceasefire has been declared. Soviet forces are pulling out of the city.

320

Page 321: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Sensing Leo’s scepticism, Fraera insisted on a victory tour. They set out, Raisa and

Karoly included. Surrounded by insurgents and the remains of her gang, Leo counted only four

vory excluding Fraera and Malysh, far fewer than there had been in Moscow. Some might have

been killed. Others must have abandoned her cause: the life of revolutionary was not the life of a

professional criminal. Fraera didn’t seem to care, leading them down the central thoroughfare of

Sztalin ut as proudly as if she were marching on Stalin’s tomb. Raisa was beside Leo, Karoly just

behind, dragging his injured leg. Through the ring of armed men, Leo caught glimpses of Zoya

orbiting the group. She walked beside Malysh. Though Zoya ignored Leo completely, from time

to time Malysh would flick a hostile glance in his direction. Raisa was correct. They were in love.

Leo didn’t see how a Hungarian triumph was even a theoretical possibility. He’d

observed the insurgents armed with bricks and petrol-filled bottles. They fought fearlessly,

fighting for the very ground on which they stood. But as a former soldier he observed no strategy.

Leaderless, their campaign was haphazard and improvised. In contrast, the Red Army was the

most powerful military force in the world, numerically and technologically. Panin and his co-

conspirators intended to keep it that way. Their reason for precipitating this conflict was to

politically outflank those who wished to cull the military. The loss of Hungary would never be

tolerated, no matter how bloody the conflict became. Yet pacing the streets Leo was forced to

accept that there was no longer any Soviet presence in the city. There was no sign of tanks or

troops. Many of the Hungarian fighters had abandoned their positions.

Fraera stopped walking. They’d arrived at an office, a medium sized, unremarkable

building. There was a commotion at the front doors, a great number of people entering and

exiting. Karoly dragged himself forward, catching up with Leo:

- This is the headquarters of the AVH.

Leo replied:

- Your son?

- This is where he works. But I have already checked. The officers must have fled as soon

as the uprising began.

Fraera noticed their exchange. She moved through the line of her men, asking:

321

Page 322: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- You’re familiar with this building? It is the home of the Hungarian Secret Police.

They’ve abandonded it and are now hiding somewhere. But we will find them.

Karoly managed to conceal his concerns. Fraera continued:

- Now that the city is free, the building is open to the public. The secrets held here are

secrets no longer.

Most of the insurgents remained outside. The building was too busy to accommodate the

entire gang. Fraera lead a smaller group through the doors, entering an internal courtyard. Sheets

of paper, typed and stamped, the bureaucracy of terror, fluttered down from the balconies. It was

dusk. Electricity was spotty. To compensate, candles were lit, spread across the balconies and

floors. The offices were filled with citizens searching through secret files. Reading by

candlelight, men and women thumbed through the information stored about them. Watching

many of them cry, Leo didn’t need the documents translated. The files contained the names of

family and friends who’d denounced them, the words spoken against them. Like a hundred

mirrors dropped on the floor, all around he saw faith in mankind shattering. Fraera whispered:

- Downstairs.

Whereas the offices had been crowded with readers, the stairs leading to the basement

were empty. Taking a candle each they descended. The air was damp and cold. Just as Leo knew

the words in those files, he knew what they’d find downstairs – the cells where suspects had been

questioned and tortured.

Water dripped onto cracked concrete floors. All the cell doors had been opened. In the

first, there was a table and two chairs. In the second, there was nothing except for a drain in the

centre of the room. Leo watched Zoya’s face, desperate to pick her up and carry her out of this

place. She took hold of Malysh’s hand. Leo scrunched his fingers into a tight fist, wondering how

long Fraera would make them stay down here. To his surprise, Fraera, apparently fearless,

seemed shaken by this place. He thought upon the tortures she must have gone through after her

arrest. She looked at Leo:

- Let’s drink… to the end of all this.

#

Taking place in the courtyard of her apartment complex, Fraera intended to host the first

victory celebration. Open to all, she provided crates of alcohol, spirits, liqueurs and champagne –

the preserve of the elite, drinks many had never tasted before, secreted away for exactly this

moment. Leo noted these preparations: proof that she always believed victory was possible. To

322

Page 323: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

offset the cold, a fire was built in the centre of the courtyard with timber stacked as tall as a man,

flames reaching high into the night sky. Crude effigies of Stalin and his Hungarian equivilent,

Rakosi, were dressed in uniforms stripped from the corpses of Soviet soldiers. Leo noted that

Fraera photographed the flaming figures, standing on the top floor balcony, taking care over the

shots before putting her camera away. As the uniforms turned to ash, a cygany band arrived

clutching hand-painted instruments. After a timid start, as if worried that their violins would draw

a barrage of Soviet shells, they gradually forgot their anxieties. The music became louder and

faster and the fighters began to dance.

Leo and Raisa were sat back from the party, under armed guard, spectators as Zoya

became drunk, sipping champagne, her cheeks turning red. Fraera did not drink anything herself,

always in control. Catching Leo’s eye, she joined them.

- You can dance if you want.

Leo asked:

- You’ve won. What are you going to do with us now?

- The truth is, I haven’t decided.

Zoya was trying to persuade Malysh to dance. Unsuccessful, she grabbed Malysh’s hand,

pulling him into the ring of people dancing around the fire. Though she’d seen him clamber up

drainpipes, nimble as a cat, he was awkward. Zoya whispered:

- Pretend it’s just you and me.

Under the pretense that they were alone, they spun around the fire, the world becoming a

blur, the fire hot on their faces, dancing faster and faster until the music stopped and everyone

clapped. But for them the world continued to spin and they had only each other to hold onto.

323

Page 324: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

30th OCTOBER

The fire had burnt down to a mound of red embers and charred stubs. The cygany band

was no longer playing and the revellers had returned home, those who hadn’t passed out. Malysh

and Zoya were curled up under a blanket, close to the remains of the fire. Karoly was humming

an indistinguishable tune, drunk after having pleaded for alcohol to numb the pain of his leg. As

energetic as if she’d rested the entire night, Fraera declared:

- Why should we sleep in cramped apartments?

Forced to take part in Fraera’s expedition, they left the courtyard, crossing the Danube,

tredding wearily towards their destination – the ministerial villas on the lush Buda slopes. Malysh

and Zoya accompanied them, along with the vory and her Hungarian interpreter. From the top of

Rose Hills, they watched dawn rise on the city. Fraera observed:

- For the first time in over ten years, they will wake up to freedom.

Arriving at a gated villa with high walls, there were, remarkably, guards stationed at the

perimeter. Fraera turned to her interpreter:

- Tell them to go home. Tell them this is now the property of the people.

The translator approached the gate, repeating her words in Hungarian. Perhaps having

watched the fighting the guards had already come to a similar decision. They were protecting the

privileges of a fallen regime. They lifted up the gate, took their things and left. The interpreter

returned, excited:

- The guards say this villa belonged to Rakosi up until he was forced into exile.

Slurring his words, Karoly approached Leo, remarking:

- The play-place of my former boss, the once glorious leader of my country. This is where

we used to phone him and asked: do you want us to piss in the suspect’s mouth, sir? Do you want

to listen while we do it? Yes, he would say, I want to hear it all.

They entered the immaculately landscaped grounds.

Fraera was smoking a hand-rolled cigarette. From the smell Leo guessed it contained

stimulants. Amphetamines would explain how she maintained her ferocious energy levels. Her

eyes appeared completely black, pupils that were like puddles of oil. Leo had used her drug

during the all-night arrests and interrogations he’d performed as an officer of the MGB. It would

324

Page 325: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

exacerbate aggression. It would make reasoning impossible, skewing her mind towards violence

while sealing every decision in unshakeable confidence.

With the keys from the security guard’s hut, Fraera ran up the stairs, unlocked the door

and threw them wide open. She bowed to Malysh and Zoya:

- A new couple should have a new home!

Malysh blushed. Zoya smiled, entering the house, her exclamation of amazement echoing

around the grand reception hall:

- There’s a pool!

The swimming pool was covered in a protective plastic sheet, spotted with dead-leaves.

Zoya dipped her finger in the water.

- It’s cold.

The heaters had stopped working. The teak chairs had been stacked in the corner. A

deflated brightly coloured beach ball was nudged this way and that by the wind.

Inside the house, luxury had decayed. The kitchen was covered with dust, unused since

Rakosi was forced to leave Hungary, exiled to the Soviet Union after the Secret Speech. Built to

the highest specification, the appliances were foreign. Crystal and fine porcelain filled the

cupboards. Bottles of French wine were unopened. Fascinated by the contents of the fridge, trying

to identify items turned patchy with mould, Leo and Zoya chanced across each other. Side by

side, it was the closest they’d been since his capture.

- Zoya…

Before he could finish, Fraera called out:

- Zoya!

Zoya ran off, obeying the call of her new master.

Following behind, entering the living room, Leo came face to face with Stalin. A vast oil

portrait hung from the wall, staring down, a god keeping watch over his subjects. Fraera drew a

knife, offering it to Zoya:

- There’s no one to denounce you now.

Knife in hand, Zoya stepped up onto a chair, her eyes coming level to Stalin’s neck. In

the perfect position to mutiliate his face she did nothing. Fraera called out:

- Gauge out his eyes! Blind him! Shave off his moustache!

Zoya stepped down, offering the knife to Fraera:

- I don’t… feel like it.

Fraera’s mood switched from elation to irritation.

325

Page 326: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- You don’t feel like it? Anger doesn’t come and go. Anger isn’t fickle. Anger isn’t like

love. It isn’t something you feel one minute but not the next. Anger stays with you forever. He

murdered your parents.

Zoya raised her voice in reply:

- I don’t want to think about that all the time!

Fraera slapped Zoya. Leo stepped forward. Fraera drew her gun, pointing it at Leo’s chest

but continuing to speak to Zoya:

- You forget your parents? Is it that easy? Malysh, you must be some kisser, you’ve

turned her brain.

Fraera walked towards him, grabbing Malysh and kissing him. He struggled but she held

him fast. Finished, she pulled back:

- Nice, but I’m still angry.

She fired a shot between Stalin’s eyes. She fired another and another, emptying her gun

into the oil portrait, the canvas shaking with each bullet. No bullets left, the trigger clicked

against the chamber. Fraera threw gun at his face, the weapon bouncing off, clattering to the

ground. She wiped her brow before laughing:

- Bedtime…

Loaded with innuendo, she pushed Zoya and Malysh together.

#

Startled, Leo woke, shaken by one of the vory:

- We’re leaving.

Without any explanation Leo, Raisa and Karoly were rushed to their feet. They’d been

locked in the marble bathroom, using towels to make a bed. They can’t have snatched more than

a couple of hours of sleep. Fraera was outside by the gate. Malysh and Zoya were beside her,

everyone exhausted, except for Fraera, jittery with chemical energy. She pointed downhill,

towards the centre of town:

- Word is that they have found the missing AVH officers. They’ve been hiding in the

Communist Party headquarters all along.

Karoly’s expression changed. His exhaustion disappeared.

It took an hour to descend the hills and return across the river, approaching Republic

Square where the Communist headquarters were located. There was gunfire and smoke. The

326

Page 327: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

headquarters was under siege. Tanks under insurgent control shelled the outer walls. Two trucks

were on fire. Windows were smashed: chunks of concrete and brick were falling to the ground.

Fraera advanced into the square, taking cover behind a statue as bullets whistled

overhead, fired from the rooftops. Trapped in the crossfire they waited. Abruptly the gunfire

stopped. A man with a handmade white flag stepped out from the headquarters, petitioning for his

life. He was shot. As he collapsed, the foremost insurgents rushed forward, storming the

premises.

In the safety of the lull, Fraera led them from behind the statue, across the square. A

crowd of fighters gathered at the entrance beside the smouldering trucks. Fraera joined them, Leo

and the others around her. Under the truck were the blackened bodies of soldiers. The crowd

waited for the captured AVH officers to be fed out to them. Leo observed that not all of the crowd

were fighters: there were photographers and members of the international press, cameras hanging

around their neck. Leo turned to see Karoly. His earlier expression of hope that he might find his

son had transformed into dread, longing for his son to be anywhere but here.

The first of the AVH officers was pulled out, a young man. He raised his hands. He was

shot. A second man was pulled out. Leo didn’t understand what he was saying but it was obvious

the man was pleading for his life. He was shot. A third officer ran out and seeing his dead friends

on the ground tried to run back into the building. Leo saw Karoly step forward. This young man

was his son.

Infuriated at his attempt to run from justice, the fighters grabbed the officer, beating him

as he clung to the doors. Karoly pushed forward, shrugging Leo off, breaking through the fighters

and wrapping his arms around his son. Startled by the reunion, his son was crying, hoping

somehow that his father could protect him. Karoly was shouting at the mob. They were together,

father and son, for less than a couple of seconds before Karoly was pulled away, pinned down,

forced to watch as his son’s uniform was ripped off, buttons popping, the shirt shredded. The boy

was turned upside down, rope lashed around his ankles, carried towards the trees in the square.

Leo turned to Fraera, to petition for the boy’s life, only to see Zoya had already grabbed

hold of her arms, saying:

- Stop them. Please.

Fraera crouched down, as a parent might when explaining the world to a child:

- This is anger.

Karoly broke free, staggering lamely after his son, weeping as he saw him strung up,

hanging upside down from the tree, still alive – his face bright red, veins bulging. Karoly grabbed

327

Page 328: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

his son’s shoulders, supporting his weight only for the butt of a rifle to be smashed in his face. He

fell backwards. Petrol was poured over his son.

Moving quickly Leo strode up to one of the vory, a man distracted by the execution. He

punched him in the throat, winding him, taking his rifle. Dropping to one knee, Leo lined up a

shot through the crowd. He’d get one chance, one shot. The petrol was lit. The son was on fire,

shaking, screaming. Shutting down his emotions, Leo closed an eye, waiting for the crowd to

part, waiting for a gap. He fired. The bullet struck the son in the head. Still burning, his body now

hung still. The fighters turned, regarding Leo. Fraera already had a gun pointed at him:

- Put it down.

Leo dropped the rifle.

Karoly got up, clutching his son’s body, trying to smother the flames, as if he could still

be saved. He was now burning, the skin of his hands bubbling red. He didn’t care, holding on to

his son even as his own clothes caught alight. The fighters watched the man grieve and burn, no

longer boisterous in their hate. Leo wanted to call out for someone to help, to do something.

Finally a middle-aged man raised his gun and shot Karoly in the back of the head. His body fell

on top of the fire, underneath his son. As they burned together, many in the crowd were already

hastening away.

328

Page 329: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Back in the apartment, among the hung-over vory and joyous Hungarian students, Malysh

tried to find some space, retreating to the kitchen, making a bed under the table. He took hold of

Zoya’s hands. As if rescued from a freezing sea she couldn’t stop shaking. When Fraera entered

the room he could feel Zoya’s body stiffen. Fraera had a gun in one hand and a bottle of

champagne in the other. She crouched down, her eyes bloodshot, her lips cracked:

- There’s a party in one of the squares tonight, thousands of people will be there.

Farmers from the country are bringing in food. Pigs will be roasted whole.

Malysh replied:

- Zoya isn’t feeling well.

Fraera reached out, touching Zoya’s forehead.

- There will be no police, no State, just the citizens of a free nation, and all of us without

fear.

As soon as she left the room Zoya began to shake again, having contained her emotions

during their conversation. The soldiers who lay on the streets, bodies coated in lime, were

uniforms more than they were men, symbols of an invading force. The dead Hungarians, flowers

thrown over their graves, were symbols of a noble resistance. Everyone, dead or alive, was a

symbol of something. Yet Karoly had been first and foremost a father and the officer strung up

had been his son.

Malysh whispered to Zoya:

- We’re going to run away, tonight. I don’t know where we’ll go. But we’ll survive. I’m

good at surviving: it’s the only thing I am good at, except maybe killing.

Zoya considered for a moment, asking:

- Fraera?

- We can’t tell her. We wait until everyone is at the party and then we go. What do you

say? Will you come with me?

#

329

Page 330: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Zoya drifted in and out of sleep. In her dreams she imagined the place where they’d live,

somewhere far away, a remote farm, in a free country, hidden by forests. They didn’t have much

land: just enough to fed themselves. There was a river, not too wide or fast or deep, where they

swam and fished. She opened her eyes. The apartment was dark. Unsure how long she’d been

asleep, she looked at Malysh. He raised a finger to his lips. She noticed the bundle he’d prepared

and guessed that it contained clothes, food and money. He must have readied it while she was

sleeping. Leaving the kitchen, they saw no one in the main room. Everyone was at the party.

They hurried out, down the stairs, into the courtyard. Zoya lingered, remembering Leo and Raisa,

locked in the top floor apartment.

A voice called out from the dark passage way:

- They’ll be touched when I tell them how you hesitated, sparing them a thought, before

running away.

Fraera stepped out from the shadows. Quick-witted, Zoya lied:

- We’re coming to the party.

- So what’s in the bundle?

Fraera shook her head:

- You might have gotten away with it. Except that earlier today, when I touched your

brow Zoya, I asked myself… why did Malysh flinch?

Malysh stepped forward:

- You don’t need us anymore.

Zoya added:

- You talk about freedom. Then allow us to go.

Fraera nodded:

- Freedoms are fought for. I will give you that chance. Draw blood and I’ll let you both

go – a single graze, a cut, a knick, nothing more. Spill a drip of blood.

Malysh hesitated, unsure. Fraera began walking towards them.

- You can’t cut me without a knife.

Malysh drew his knife, ushering Zoya back. Unarmed, Fraera continued walking towards

them. Malysh crouched low, ready to strike. Fraera sighed:

- Malysh, I thought you understood to never fall in love. Relationships are a weakness.

Look at how nervous you are. Why? Because there’s too much at stake, her life and your life –

your dream of being together, it makes you fearful.

Malysh attacked. Fraera sidestepped his blade, grabbing his wrist and punching him in

the face. He fell to the ground, the knife now in her hand. She stood over him:

330

Page 331: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- You’re such a disappointment to me.

#

Leo turned to the door. Malysh entered first, Zoya followed, a knife pressed against her

neck. Fraera lowered the blade, pushing Zoya inside.

- They’re all yours. I wouldn’t get too excited. I caught them trying to run off together,

happy to leave you behind without so much as a goodbye.

Raisa stepped forward:

- You just don’t get it. Nothing you say makes any difference to the way we feel about

Zoya.

Fraera retorted with mock sincerity:

- That does seem to be true. No matter what Zoya does, whether she holds a knife over

your bed, whether she runs away, pretends to be dead, you still believe there’s a chance she’ll

love you. It’s a kind of sentimental fanaticism. You’re right: there’s nothing I can say. However,

there might be something I can say which will change you way you feel about Malysh.

She paused:

- Raisa, he is your son.

331

Page 332: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Leo waited for Raisa to dismiss the notion. During the Great Patriotic War she’d suffered

a miscarriage. She’d nearly died. But there was no son, let alone that son being Malysh. When

Raisa finally spoke her voice was subdued:

- My son is dead.

Fraera turned to Leo, smug with secrets, gesturing with her knife:

- Raisa led you to believe she suffered a miscarriage. In fact, she gave birth to a son.

Conceived during the war, soldiers rewarded for risking their lives, allowed to take whomever

they pleased and they took her, over and over producing a bastard child of the Soviet army.

Raped by her country, what an appropriate son he is.

Fraera redirected her words towards Raisa:

- Do you even know which soldier was the father?

Raisa’s words were washed out, drained, but they were steady and calm:

- I didn’t care who the father was. The child was mine, not his. I swore I would love him

even though they’d been conceived in the most hateful circumstances.

- Except that you then abandoned the boy in an orphanage.

- I was sick. I was homeless. I had nothing. I couldn’t feed myself.

Raisa had not yet made eye contact with Malsyh. Fraera shook her head in disgust:

- I would never have given up my child, no matter how dire my circumstances. They had

to take my son from me while I was sleeping.

Raisa seemed exhausted, unable to defend herself:

- I vowed to go back. Once I was well, once the war was over, once I had a home.

- When you returned to the orphanage they told you that your son had died. And like a

fool, you believed them. Typhus, they told you?

- Yes.

- Having had some experience of the lies told by orphanages, I double-checked their

story. A typhus epidemic killed a large number of children. However, many survived by running

332

Page 333: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

away. Those escapees had been covered up as fatalities. What do children that run away from

orphanages become? They become pickpockets in train stations.

His past rewritten with every word, Malysh reacted for the first time:

- When I stole money from you, in the station that time?

Fraera nodded:

- I’d been looking for you for over two months. I wanted you to believe our meeting was

accidental. I had planned to use you in my revenge against the woman who’d fallen in love with

the man I hated. However, I grew fond of you. I quickly came to see you as a son. I adapted my

plans. I would keep you as my own. In the same way, I grew fond of Zoya and decided to keep her

by my side. Today both of you threw that love away. With only the thinnest of provocations, you

drew a knife on me. The irony is that had you refused to draw that knife, I would’ve allowed both

of you to go free.

Fraera moved to the door, pausing, turning back to face Leo:

- You always wanted a family Leo. Now you have one. You’re welcome to it. They are a

crueller revenge than anything I could have imagined.

333

Page 334: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Raisa turned and faced the room. Malysh was standing before her, his chest and arms

covered in tattoos. His expression was cautious, defensive, guarded against denial or disinterest.

Zoya spoke first:

- It doesn’t matter if he’s your son. Because he’s not, not really, not any more, you gave

him up, which means you’re not his mother. And I’m not your daughter. There’s nothing to talk

about. We’re not a family.

Malysh touched her arm. Zoya understood it as a reproach:

- But she’s not your mother.

Zoya was close to tears:

- We can still escape. You promised me.

Malysh nodded:

- Let me talk to Raisa, okay?

Malysh stepped towards Raisa:

- I don’t care either way. I just want to know.

His question was brash, full of swagger, child-like in its attempt to conceal the

vulnerability. Raisa asked:

- What was your name, before you were called Malysh?

- At the orphanage I was called Feliks. But the orphanage gave me that name. They

renamed everyone, names they could remember. I don’t know my real name.

- How old are you?

Malysh counted on his fingers:

- I’m fourteen years old. Or I might be thirteen. I don’t know when I was born.

- What do you remember of your orphanage?

- There was a tree in the courtyard. We used to play in it.

- Where was it located?

- The orphanage? It was near Leningrad, not in the town, in the country. Was that the

place, with the tree in the courtyard? Was that where you took your son?

Raisa nodded:

334

Page 335: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- Yes it was.

Raisa moved closer to Malysh. She asked:

- What did the orphanage tell you about your parents?

- They told me that my parents were dead. I was never waiting for you. You’ve always

been dead to me.

Zoya added by way of conclusion:

- There’s nothing more to talk about.

Awkwardness followed. Zoya guided Malysh into the far corner, sitting him down. Raisa

and Leo remained standing near the window. Leo didn’t press for answers, allowing Raisa to take

her time. Finally, she whispered:

- Leo, I gave up my child. It is the greatest shame in my life. I never told you, I never told

anyone. I never wanted to speak about it again.

- You don’t have to justify that to me.

Leo paused.

- Malysh…?

Raisa lowered her voice even further:

- Fraera was right. There was a typhus epidemic. Many children had died. But when I

went back my son was still there. He was dying. He didn’t recognise me. He didn’t know who I

was. I stayed with him until he died. Leo, Malysh is not my son.

Regaining her composure, she continued:

- Fraera must have gone back, looking for my son in 1953 or 1954, when she was

released. The records would have been shambolic. There was no way she could have found the

truth about my son. She wouldn’t have known I was there when he died. She found someone close

in age to him: maybe she planned to use him against me. Maybe she didn’t because she did love

Malysh. Maybe she didn’t because she couldn’t be sure I’d believe her lie.

- It’s nothing more than a desperate attempt to hurt us?

- And him.

Leo considered:

- Then why not tell Malysh the truth? Why were you so circumspect? Fraera is playing

with him too.

- What will the truth sound like? He might not take it as a matter of fact. He might feel

that I’m rejecting him, making up reasons why he couldn’t be my son. Leo, if he wants me to love

him… I can do that.

335

Page 336: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

#

With her characteristic knack for manipulation, Fraera brought a single, oversize plate of

hot stew. There was no option but to sit around, cross-legged, eating together. Zoya refused, at

first, to join in, remaining apart. However, the food was turning cold and heat being its sole

redeeming quality, reluctantly, she joined in, eating with them side by side, metal forks clattering

as they spiked chunks of vegetable and meat. Malysh asked:

- Zoya told me that you’re a teacher.

Raisa nodded:

- Yes.

- I can’t read or write. I’d like to, though.

- I’ll help you learn, if you want.

Zoya shook her head:

- I can teach you. You don’t need her.

#

Leo awoke, shivering. It was early in the morning. He and Raisa were huddled on one

side of the room – Malysh and Zoya on the other side. No breakthroughs had been made. When

Raisa tried to talk to Malysh, Zoya became upset. When Leo tried to talk to Zoya, she’d ignore

him altogether. They’d told her about Elena, softening the specifics, explaining that she

desperately needed her older sister to come home. Crying, Zoya had pretended that she hadn’t

heard a word, talking to Malysh about their dream of living alone.

Fraera had been absent. Their food had been brought to them by an insurgent. Leo had

noticed a change in his behaviour. A solemnity had fallen across the apartment. There were no

more drunk cheers, no more celebrations.

Standing up, Leo approached the small window. He rubbed a patch of condensation from

the glass. Outside, snow was falling. What should have sealed the impression of a city at peace,

clean white and tranquil, made Leo uneasy. He could see no children playing, no snowball fights.

There was no excitement, no delight. There was no one on the streets at all.

336

Page 337: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

4th NOVEMBER

Somewhere in the sky above the apartment a faint whining noise climaxed in a high-

pitched boom. A jet plane had flown overhead. Leo sat bolt upright. The room was dark. Raisa

woke immediately, asking:

- What is it?

Before Leo could answer, explosions sounded out across the city, several in rapid

sequence, in many locations. In an instant Raisa, Malysh and Zoya were up, by his side, peering

out the window. Addressing them Leo said:

- They’re back.

There was panic in the adjacent rooms, footsteps on the roof, insurgents caught off guard,

scrambling into position. Leo could see a tank on the street, its turret pointed directly at the

rooftop snipers.

- Move away!

Shooing the others to the far side of the room, there was a split second of stillness, then

an explosion. Knocked off their feet, the roof collapsed, the back wall fell away, beams tumbling

down. Only a small portion of the room remained, closed by the sloping wreckage. Leo covered

his face with the bottom of his shirt, struggling to breathe, checking on the others.

Raisa grabbed the remains of a smashed timber beam, battering at the door. Leo joined

her, trying to break out. Malysh called out:

- This way!

There was a gap ripped through the base of the wall into the adjoining room. Flat on the

their stomach, with the danger of the roof collapsing completely, they crawled through to the next

room, tunnelling out of the debris, reaching the corridor. There were no guards, no vory. The

apartment was empty. Opening the door to the courtyard balcony they saw occupants fleeing their

homes, many huddled, unable to decide whether to brave the streets or whether they were safer

staying where they were.

Malysh bolted back inside. Leo shouted:

- Malysh!

337

Page 338: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

He quickly returned, holding a belt of ammunition, grenades and a gun. Raisa tried to

disarm him, shaking her head:

- They’ll kill you.

- They’ll kill us anyway.

- I don’t want you to take them.

- If we’re going to get out the city, we need them.

Raisa looked to Leo. He said:

- Give me the gun.

Malysh reluctantly handed him the gun. A nearby explosion ended the debate:

- We don’t have much time.

Leo looked up at the dark sky. He could hear the drone of jet engines. He hurried them

towards the stairs. There was no sign of any vory: he reasoned they must be fighting or they’d

fled. Reaching the bottom of the stairs, moving through the terrified crowd, towards the

passageway:

- Maxim!

Leo turned, looking up. Fraera was standing on the roof, machinegun in her arms.

Trapped in the middle of the courtyard they had no chance of reaching the passageway before she

gunned them down. He called out:

- It’s over Fraera! This was a fight you could never win!

- Maxim, I’ve already won!

- Look around you!

- I didn’t win it with a gun. I won it with this.

Around her neck was a camera, the same one he’d seen her with before.

- Panin was always going to use the full force of his army. I wanted him to. I want him to

smash this city to rubble and fill it with dead citizens! I want the world to see the true nature of

our country. No more secrets! No one is ever going to believe in the benevolence of our

motherland again! I’m here to kill the lie. That’s my revenge.

- Let us go.

- Maxim, you still don’t understand. I could’ve killed you a hundred times. Your life is

more of a punishment than death. Go back to Moscow, the four of you, with a son wanted for

murder, in love with a hate-filled daughter, a younger sister in a mental hospital. Just try and be

a family.

Leo separated from the group:

- Fraera, I am sorry for what I did to you.

338

Page 339: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- The truth is Maxim… the truth is, Leo… I was nothing until I hated you.

Leo turned around, facing the passageway, expecting a bullet in the back. No bullets were

fired. At the exit onto the street he paused, looking back. Fraera was gone. 27 de Junho

339

Page 340: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Inside the remains of an abandoned café, table clothes wrapped around his hands to

protect himself from the glass, Leo lay flat, waiting for the tanks to pass. Through his stomach he

could feel the vibrations. He lifted his head, peering out of the broken window. There were three

tanks, their turrets swivelling from side to side, examining the buildings – searching out targets.

The Red Army was no longer deploying isolated units of clumsy, vulnerable T-34s. These were

the larger, heavily armoured T-54s. From what Leo had seen so far, the Soviet strategy had

changed. Deployed in columns, they responded with disproportionate force – a single bullet fired

at them would be answered with several T-54s turning and levelling the entire building, top floor

to bottom. They moved on only after the devastation was complete.

In a city under siege, it had taken two hours to travel less than one kilometre. They were

forced to seek refuge at almost every junction. It was dawn and no longer sheltered by darkness

their progress had slowed yet further, trapped in a city being systematically destroyed. Staying

indoors was no longer any guarantee of safety. The tanks were equipped with armour piercing

shells that travelled three rooms deep before detonating in the very centre of houses causing the

structure to collapse.

Witnessing the display of military might, Leo could only speculate as to whether the

initial failure to regain control had been deliberate. Not only did it undercut the moderate position

of restraint, it illustrated the ineffectiveness of the older armour, defeated by a mere mob. Now

the latest hardware strutted on the streets of Budapest like a military propaganda reel. A Moscow

audience could draw only one conclusion: plans to scale back the conventional army were flawed.

More money was needed, not less, more weapons development – the strength of the Union

depended upon it.

Out of the corner of his eye Leo saw a flicker of bright orange, startling among the grey

stone rubble and grey morning light. Three young men across the street were readying Molotov

cocktails. Leo tried to get their attention, waving at them. Petrol bombs wouldn’t work since the

cooling units on the T-54s didn’t suffer from the same weakness as the T-34s. They were fighting

an entirely different generation of weapons. Their crude devices were useless. One of the men

saw him and misunderstanding his wave, made a defiant fist.

340

Page 341: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

The three men stood up, running at the rear tank – they threw the bombs, perfect shots, all

three hitting their target, covering the rear of the T-54 with burning fuel. Flames soared tall. They

fled, glancing over their shoulders, expecting an explosion that would never come. The tank turret

turned. The fire roaring on its armour was irrelevant. The men increased their pace, running to

shelter. Leo ducked. The tank fired. The café shook, the remaining glass shards in the window

fell to the ground, smashing all around. Dust and smoke rolled in through the window. Shielded

by the cloud, Leo pulled back, coughing, crawling through the smashed crockery to the kitchen

where Raisa, Zoya and Malysh were crouched behind the steel units:

- The streets are impassable.

Pointing to the roof, Malysh remarked:

- What about the roofs? They’re all linked. We can crawl across them.

Leo considered:

- If they see us, or hear us, they will still fire. Up there it will be much harder to escape.

We’d be trapped.

Raisa remarked:

- We’re trapped down here.

On the top floor landing there were two windows: one viewed onto the main boulevard,

the other onto a narrow backstreet, not large enough for a T-54. Leo opened the back window,

studying the climb. There was no drainpipe, no foothold, no easy way of reaching the roof.

Malysh tapped his leg:

- Let me look.

Leo allowed Malysh onto the ledge. Briefly assessing the gap he jumped up, his legs

dangling as he hung from the edge. Leo moved to support him but he said:

- I’m okay.

He pulled himself up, swinging a foot onto the edge, then the other foot. He said:

- Zoya next.

Raisa glanced down at the drop, some fifteen metres:

- Wait.

Raisa picked up the table clothes that Leo had tied around his hands, knotting them

together. She wrapped them round Zoya’s waist. Zoya was annoyed:

- I survived for months without you.

Raisa kissed her on the cheek, commenting:

- Which is why it would be particularly embarrassing if you died now.

Zoya suppressed a smile, squashing it into a frown.

341

Page 342: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Standing on the window ledge Leo lifted her up. She took hold of the roof:

- You have to let go so I can swing my legs!

Reluctantly Leo let go, watching as she swung her leg up onto the roof. Malysh caught

her, pulling her up. The tablecloth safety cord was at full stretch.

- I’m up.

Raisa released the cloths, allowing Zoya to pull up her improvised safety-line. Raisa was

next. Leo was the last to make the climb.

The roof rose to a narrow band, Malysh and Zoya were straddled on the ridge. Raisa was

behind, forming a single file. Clambering up, Leo’s feet slipped on the tiles, dislodging one – it

rattled down the roof before falling off the edge. There was a pause before the tile could be heard

smashing on the backstreet. The four of them froze, remaining flat against the roof. If a tile fell on

the other side, onto the boulevard, their position would be given away to the patrolling tanks.

Leo took in the view. Across the city, smoke rose in thick lines. Rooftops were smashed.

There were gaps where buildings had once stood. Overhead, fighter jets – MIGs – raced low over

the city, dropping into attack position, strafing targets. Even on the roof they were exposed. Leo

commented:

- We need to hurry.

Crawling on all fours, bypassing the dangers below, they were, at last, able to make

progress.

Up ahead the houses came to an end: they’d reached the end of the block. Malysh

commented:

- We have to climb down, cross the street, and then climb back up on the other side.

The tiles began to rattle. Leo moved to the edge of the roof, peering down at the main

boulevard. Four tanks were passing directly underneath. One by one they turned off the

boulevard. To Leo’s dismay the fourth tank stopped. It seemed to be guarding the crossroads.

They were going to have to sneak around it.

About to climb back up to report the bad news, Leo caught sight of movement in the

apartment window directly below him. He craned his neck over the edge, watching as two women

hung the modified Hungarian flag, the flag with hammer and sickle cut out, from the top floor

window. Leo checked on the tank. It had seen the protestors. Leo bolted up the roof, gesturing to

the others:

- Move! Now!

Frantic, they scrambled as far from the boulevard as they could.

342

Page 343: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

The tank fired. The section of roof behind them mushroomed into the air, debris

showering down. The shockwave caused all the tiles to slide. Malysh, closest to the edge, lost his

foothold, slipping down, everything giving way beneath him. Zoya threw him the end of the

tablecloth. He caught it just as the matrix of tiles avalanched off the roof, taking him with them.

As Malysh fell Zoya was pulled down, trying to grab onto something and finding

nothing. Leo reached out, missing her hand but snatching the trail of tablecloths. He managed to

steady them: the three of them in a chain, Zoya on the edge, Malysh hanging off. If the tank saw

Malysh it would fire, killing them all. Leo heaved the sheets up. Raisa reached down:

- Give me your hand!

Grabbing Malysh’s hand, she pulled him up, the two of them lying side-by-side. Leo

rolled over to the edge, glancing down at the tank. The turret was swinging towards them.

Leo cried out:

- Up!

Getting to their feet, they ran back across the roof, towards the collapsed apartment on

the other side. Leo heard the boom of tank fire. The shell impacted behind them, at the spot where

Malysh had slipped – the corner of the building. All four of them were thrown up and forward,

landing on their hands and knees. Ears ringing, coughing in the dust, they studied the devastation

in front and now behind them: two gapping holes as if a giant monster had taken bites out of the

building.

Leo surveyed the shelled out apartment in front of them. The first shell had hit high,

causing the roof to crumble and fall, compressing the top floor with the floor below. They could

climb down through the splintered roof beams. He took the lead, hoping the tank presumed them

dead. Reaching the layer of ceiling that had crashed down, he saw the dust-covered hand of the

woman who’d hung the flag. No time to linger, he searched for a way out. The stairway was at

the back. He pulled at the remains of a door, trying to get access, but it was filled with rubble.

At the front of the damaged apartment, looking out at the boulevard, Raisa said:

- They’re coming around!

The tank was returning. Trapped, they had nowhere to hide, nowhere to run.

Leo doubled his efforts, trying to clear the stairs, the only way out. Zoya and Raisa joined

him. Malysh was gone. He’d fled, saved himself – a vory to the end. Leo looked over his

shoulder. The tank was taking up position directly outside, lining up a third shot. It would fire

again and again, until both houses were rubble. Boxed into the shelled out apartment, brick walls

either side, the stairway blocked, the only chance of escape was to jump down to the street below.

343

Page 344: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Leo grabbed Zoya and Raisa, running straight towards the tank. At the edge he stopped.

Malysh had already scampered down the broken building onto the street. He was making a line

for the tank. There was a grenade in his hand.

Malysh pulled the pin, nimbly scaling the front of the tank, clambering up onto the turret.

The tank lifted the gun sharply towards the sky, an attempt to stop him from reaching the

opening. But Malysh was too quick, wrapping his legs around the gunbarrel, pushing his way up.

The hatch opened, an officer was going to shoot Malysh before he could drop the grenade.

Leo drew his gun, firing at the emerging officer, bullets pinging off the armour. The

officer was forced to retreat, closing the hatch. Malysh reached the end of the turret, dropping the

grenade down. He let go, falling to the street.

The grenade exploded, a fraction later, the shell inside the turret exploded, a much larger

blast – the force ripping through the tank. Malysh was picked off his feet and slammed down onto

the street. Smoke rose from the tank. Leo waited, gun pointed. No one emerged from inside the

tank.

Zoya had already climbed down the building, rushing forward, helping Malysh up. She

smiled. Catching up with Zoya, Leo said:

- We need to get off the…

Before he finished, Malysh’s shirt turned dark red, a stain forming in the centre.

Leo dropped to his knees, ripping open Malysh’s shirt. There was a cut as long as his

thumb, a slash across his stomach, a black line – two bloody lips. Checking the boy’s back, Leo

could find no exit wound.

344

Page 345: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

With Malysh in his arms, Leo rushed into the Second Medical Clinic, Zoya and Raisa by

his side. They’d run here, along the streets, risking the patrolling tanks. Several turrets had

tracked them but none had opened fire. The hospital entrance was filled with injured people,

some leaning on friends and family, others lying on the floor. There was blood on the walls.

There was blood on the floor. Searching for a doctor or nurse, Leo saw a flutter of a white coat.

He pushed forward. The doctor was surrounded by patients, unable to give each more than a

couple of seconds of his time, examining the wounds, issuing orders as to where they needed be

sent, ushering only the most needy into the hospital. The rest remained in the corridor. Leo waited

in the circle for the doctor’s judgement. Without even glancing at Leo the doctor touched

Malysh’s face, feeling his brow. The boy’s breathing had become faint. His skin was pale. Leo

had used Malysh’s shirt to press agains the wound, material now soaked with blood. Removing

the dripping shirt, Leo watched as the doctor leaned close. His fingers touched the lip of the gash,

opening it – black blood seeping out. As Leo had done, he checked the boy’s back, finding no

exit wound. For the first time the doctor glanced at Leo. He said nothing, giving an almost

impercitable shake of the head. With that, he moved on.

Zoya grabbed Leo’s arm:

- Why aren’t they helping him?

Leo, a soldier, had seen injuries like this before. The blood was black: shrapnel had

penetrated Malysh’s liver. On the battlefield there was no hope of survival. Conditions in this

hospital were little better than that. There was nothing they could do. Helpless, Leo looked at

Raisa, then at Zoya.

- Why aren’t they treating him!

She barged through the crowd, grabbing the doctor’s arm, attempting to pull him back

towards Malysh. The other people scolded her. But she wouldn’t let go until eventually she was

pushed back. Zoya tumbled to the floor, lost in among their legs. Raisa lifted Zoya off the

hospital floor.

- Why aren’t they helping him?

345

Page 346: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

Raisa said nothing. Zoya began to cry, putting her hands on Malysh’s face. She stared up

at Leo, her eyes red, imploring:

- Please, Leo, please, I’ll do anything you want, I’ll be your daughter, I’ll be happy, I’ll

be anything, please, don’t let him die.

Malysh’s lips moved. Leo lowered his head:

- Outside…

Leo carried Malysh to the entrance, through the blood-soaked arrivals, out the main

doors. He walked away from the reception, finding a place where they could be alone. In the

flowerbeds, where all the plants had died back, Leo sat down, propping Malysh against his legs.

Zoya sat beside him, holding his hand. Raisa remained standing:

- Maybe I can find something for the pain?

Leo looked up, shaking his head. Twelve days into the conflict, he knew there’d be

nothing left in the clinic.

Malysh seemed calm, sleepy, his eyes shutting and opening. He regarded Raisa:

- I know that… Fraera lied… I know… you’re not… really… my mother.

Raisa sat beside him:

- I would’ve wanted nothing more than to be your mother.

- I would have liked to… have been your son.

Malysh shut his eyes, turning his head, resting it against Zoya who lay beside him, her

head close to his as if they were both about to go to sleep. She wrapped her arm around him,

whispering:

- Did I tell you about the farm we’re going to live on?

Malysh didn’t reply. He didn’t open his eyes.

- It’s very pretty. There’s a forest. And a river, in the summer, we swim… We’re going to

be very happy together.

346

Page 347: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Standing on the remains of the roof Fraera was no longer holding a gun but a camera,

photographing the destruction: images that would soon be printed around the world. If this, her

last reel of film didn’t survive, another would. She’d already accumulated many hundreds of

photographs, smuggling them out of the city these past couple of days – images of dead citizens,

buildings destroyed – sending them in batches, to be published for years to come under the title:

source anonymous.

Perhaps for the first time since her son had been taken from her nearly seven years ago

she was truly alone, no Malysh by her side, no men ready when she called. The gang that she’d

spent years putting together had broken apart. The few remaining vory had fled. The band of

insurgents had been broken. In the first wave of attacks this morning many had died. She’d

photographed their bodies. Zsolt Pagar, her translator, had remained by her side. She’d been

wrong about him. He’d died for his cause. As he laid dying, she’d photographed him with

particular care.

She had only three photographs left. In the distance a fighter jet circled, coming towards

her. She raised the camera, bringing the jet into focus. The MIG dropped into an attack position.

Tiles around her began to shatter. She waited until the jet was almost directly overhead. As the

roof exploded, fragments of slate burning into her arms and face, she had no doubt her last

photograph would be her greatest of all.

347

Page 348: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

TWO WEEKS LATER

348

Page 349: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SOVIET UNION

MOSCOW

19th NOVEMBER

His first day at work: Leo’s hands were covered in flour and his face was hot from the

ovens. Taking out a batch of newly baked loaves, he heard Filipp call out:

- Leo, you have a visitor.

An immaculate Frol Panin entered the bakery. He surveyed the premises with

condescending good humour. Leo observed:

- No request we can’t accommodate: rye with coriander seeds, or sweetened with honey

rather than sugar. Kosher, or oil-free…

He took one of the still-warm loaves, breaking it, offering it to Panin. He accepted, taking

a bite. The man who’d betrayed him, who’d collaborated with his enemies, showed no

embarrassment, no guilt or shame.

- It’s very good.

Panin put the bread down, dusting the flour off his fingers:

- Leo, no one is going back to Stalinism. There will be no more mass arrests. The camps

are closing. Interrogation cells are being ripped out. These changes are in progress. They will

continue. But they must happen in secret, without any admission of wrongdoing. We must go

forward without looking back.

Despite everything, Leo couldn’t help but admire him. He could have arranged for Leo to

have never made it out of Budapest. Yet Panin weighed up every decision on a purely practical

basis. He did nothing out of malice or spite. Leo was an irrelevancy and so he’d been allowed to

live.

- Frol Panin, what do you want from me? You won.

- In fact, I would argue, we all won.

- No, I lost a long time ago. I’m just trying not to lose anymore.

- Leo, whatever you may think of me, it was always for the greater good.

Leo said nothing. Panin added:

- I want you to work for me. We need men like you.

349

Page 350: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- Men like me?

Leo let the phrase hang before asking:

- You’re going to re-open the homicide department?

- No, we’re not ready for that yet.

- Until you are, I’ll be here.

Panin gave a small nod of his head.

- I hope, one day, I can be of some help to you.

It was an apology, of sorts, a secret apology. Leo accepted the gesture:

- There is one thing you could help me with.

350

Page 351: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

At the reception to the Moscow Conservatory, Leo asked for Piotr Orlov, one of the

country’s most promising young composers. He was directed to a rehearsal room. Orlov, in his

late twenties, opened the door, remarking brusquely:

- Yes?

- My name is Leo Demidov. Frol Panin said you could help.

Hearing Panin’s name the composer immediately became more amiable.

The rehearsal room was small. There was a music stand, an upright piano. Orlov was

holding his violin by the neck. His bow was on the stand, along with a stub of wax.

- What can I do for you?

Leo opened his folder, taking out a single sheet of paper, a hole burnt through the middle.

The hole had been burnt seven years ago using a candle in Lazar’s church. As the paper had

turned black, Leo had impulsively changed his mind. He’d placed it on the stone floor, stamping

out the flames. The charred music – all that remained of the arrested composer’s work – had been

stored in Lazar’s file.

Orlov stepped up to the stand, examining the few surviving notes. Leo commented:

- I can’t read music so I don’t know whether there’s even enough to get a sense of the

whole piece. I just wanted to hear it played aloud.

Orlov raised his violin to his chin, picked up his bow and began to play. Leo didn’t know

anything about music but he knew this was good.

It took him a moment to realise that there was no way Orlov could play for so long with

only the few notes he’d been given. Eventually Orlov stopped:

- This is very popular, one of the most successful recent compositions.

- You must be mistaken. The composer is dead. He died before it was performed.

Orlov was puzzled.

- It was performed last week. The composer is alive.

#

351

Page 352: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

In the hallway of an exclusive apartment block Leo knocked on the door. There was a

long delay before a middle-aged man opened the door, evidently a servant, dressed in a neat black

uniform.

- Can I help you?

- I’m here to see Robert Meshik.

- Do you have an appointment?

- No.

- I’m afraid he won’t see anyone without an appointment.

Leo handed over the burnt sheet of music.

- Show him this. He’ll see me.

Reluctantly, the man obeyed.

- Wait here.

Some minutes later the man returned, without the music.

- Please follow me.

Leo followed him through the expensively furnished apartment, arriving at a studio. The

composer Robert Meshik was standing by the window, holding the single burned sheet of music.

Addressing his servant he said:

- You may leave us.

The man left. Leo remarked:

- You have done well for yourself.

Meshik smiled:

- In some ways I’m relieved. I have been waiting for this moment for many years, for

someone to appear, with the evidence, and announce me a fraud.

Leo asked:

- You knew the real composer?

- Kirill, yes, we were friends. We were best friends. We would practise together. I was

jealous of him. He was a genius. I am not.

Leo asked:

- You denounced him?

- No, never, I loved him. That is the truth. You have no reason to believe me. When he

was arrested, of course, I did nothing. I said nothing. He and his music tutor were sent to a

labour camp. After Stalin died I tried to find them. I was told that they had both perished. I wept.

I grieved. I had the idea to copy one of Kirill’s pieces, as a memorial to him. They’d been lost but

352

Page 353: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

I’d heard him play them many times. They were in my blood. I made some minor changes. The

composition was a success. Since then I have copied every piece I could remember, making

minor variations, taking all the credit for them, enjoying all the perks. You see Kirill had no

family. He had no one. No one knew his music except his teacher. And me.

- There was one other person.

- Who?

- The wife of a priest.

The composer asked:

- Are you going to arrest me?

Leo shook his head.

- I don’t the authority to arrest you.

Berlov sighed:

- Then tomorrow, first thing, I tell the world the truth.

Leo walked across the room, staring out the window at the falling snow:

- What will you say? That the State murdered a genius and you stole his music? Who will

love you for that confession? Who wants to hear it?

- What would you have me do?

- Play on.

353

Page 354: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

SAME DAY

Dressed in her nightclothes, Zoya appeared at the door to the kitchen. Raisa, tidying up

after dinner, said:

- I don’t know where Leo is. I’ll be through in a second to read. Is Elena in bed?

- Yes.

Elena had returned from the hospital, rejuvenated by the miracle of Zoya being alive.

Zoya had wept with guilt at the sight of her sister. Elena was dangerously thin. Zoya understood

that her little sister would not have survived much longer. Elena hadn’t questioned events,

overwhelmed with happiness, indifferent to the details of what had happened or why. Her family

was alive.

Sensing that Zoya was lingering, Raisa approached, kneeling down before her:

- What is it?

There was the sound of a key in the front door. Leo entered, red-faced and rushed.

- I’m sorry…

Raisa smiled:

- You’re in time to read to the girls.

Zoya shook her head:

- Can I talk to you first?

- Of course.

Leo entered the kitchen, pulling up two chairs, sitting beside Zoya.

- What’s wrong?

- I’ve always told Elena everything. Since I got back she’s been so happy, I don’t want to

spoil that. I don’t want to tell her what happened. I don’t want to tell her the turth. But I know I

should.

Zoya began to cry.

- If I tell her the truth, will she forgive me?

Leo put an arm around Zoya.

- She loves you very much.

Zoya looked up at Leo, then at Raisa:

354

Page 355: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

- But will she forgive me?

All three of them turned to the doorway. Elena was standing in her nightgown. She’d

only been home for a week and already she’d transformed, gaining weight, colour returning to her

skin.

- What’s going on?

- Elena, I have something to tell you.

Leo stood up:

- Before you do, why don’t I tell you a bedtimestory? I’ve made one up, so, you have to

promise to be nice about it.

Elena smiled.

Zoya wiped away her tears and took hold of Leo’s hand. 30 de Junho

355

Page 356: O DISCURSO SECRETO - visionvox.com.br...de ser uma massa sólida para se converter numa nuvem de pó que tudo devorava. Pedaços de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo

356