o discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no brasil - reflexões a partir das...

20
O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil: reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu Abili Lázaro Castro de Lima* "[...] Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso ..." P ierre Bourdieu escreveu Homo Academicus1, um livro que é con- siderado um cânone acerca da reflexão do discurso científico no . contexto universitário. Bourdieu procede a uma análise do campo universitário e a troca de capital simbólico entre os agentes que nele atuam. Suas reflexões são incrivelmente atuais e elas nos estimulam e nos inspiram a refletir sobre o contexto dos cursos jurídicos no Brasil, sobretudo, na forma de como o discurso jurídico é construído pelo corpo docente e de que maneira ele atua na estruturação do poder no campo universitário. Antes de procedermos a esta análise, torna-se necessário fazer um resgate de algumas categorias teóricas, as quais serão essenciais Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Professor da disciplina Direito e Sociedade no curso de graduação em direito e de Sociologia do Direito e Direito e Sociedade no programa de pós-graduação em direito da UFPR. Avaliador do INEP. Tutor do Programa de Educação Tutorial do Curso de Direito da UFPR. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas, 19 a. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 41. BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1984.

Upload: sociologia-do-direito

Post on 30-Jul-2015

139 views

Category:

Documents


19 download

DESCRIPTION

O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil: reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu“in” FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Direito e discurso: discursos do direito. Florianópolis, ed. Fundação Boiteux, p. 105-122.

TRANSCRIPT

Page 1: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O discurso jurídico no contexto doscursos de direito no Brasil:

reflexões a partir das teorizaçõesde Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima*

"[...] Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamentoda gente se forma mais forte do que o poder do lugar.

Viver é muito perigoso ..."

Pierre Bourdieu escreveu Homo Academicus1, um livro que é con-siderado um cânone acerca da reflexão do discurso científico no

.

contexto universitário. Bourdieu procede a uma análise do campouniversitário e a troca de capital simbólico entre os agentes que neleatuam. Suas reflexões são incrivelmente atuais e elas nos estimulame nos inspiram a refletir sobre o contexto dos cursos jurídicos noBrasil, sobretudo, na forma de como o discurso jurídico é construídopelo corpo docente e de que maneira ele atua na estruturação dopoder no campo universitário.

Antes de procedermos a esta análise, torna-se necessário fazerum resgate de algumas categorias teóricas, as quais serão essenciais

Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Professor da disciplina Direito e Sociedade no cursode graduação em direito e de Sociologia do Direito e Direito e Sociedade no programa depós-graduação em direito da UFPR. Avaliador do INEP. Tutor do Programa de EducaçãoTutorial do Curso de Direito da UFPR.ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas, 19 a. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001, p. 41.BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1984.

Page 2: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

para a melhor compreensão das teorizações de Pierre Bourdieu, bemcomo para a reflexão dentro da seara dos cursos jurídicos no Brasil.

O alicerce teórico de Pierre Bourdieu foi erigido sobre três pila-res: Durkheim que estabeleceu o objeto da Sociologia e o estudo dasociedade a partir de uma ciência objetiva; Marx na compreensão dadominação que ocorre na sociedade e Weber nos seus estudos sobreação social e legitimidade no âmbito social.3

O universo epistemológico-conceitual de Bourdieu é construí-do ao longo da produção da sua obra. Iremos analisar as categoriasespaço social, campo social, habitus e capital.

Iniciaremos o resgate conceituai a partir da categoria espaçosocial4:

"O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupossão ali distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatís-ticas de acordo com os dois princípios de diferenciação que, em sociedadesmais desenvolvidas, [...], são, sem dúvida, os mais eficientes - o capitaleconómico e o cultural. Segue-se que os agentes têm tanto mais emcomum quanto mais próximos estejam nessas duas dimensões, e tantomenos quanto mais distantes estejam nelas. As distâncias espaciai§ nopapel equivalem a distâncias sociais. [...]".5

O espaço social, esclarece Louis Pinto, é / /vo espaço dos estilosde vida' é uma unidade de análise requerida pelo estudo dos gostosindividuais (socialmente condicionados): pode-se relacioná-lo, con-forme as necessidades do trabalho empírico, seja como espaço das

* Para uma compreensão mais aprofundada das influências destes três autores, indicamosa leitura da obra BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude e PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo, 4a . ed., Petrópolis: Vozes, 2004.

4 Acerca das classes sociais no contexto do espaço social, esclarece Pierre Bourdieu, no livroRazões práticas, Campinas: Papirus, 1996, p. 26-27:"[...] Assim, a diferença (o que expresso aofalar do espaço social) existe, e persiste. É necessário, portanto, aceitar ou afirmar a existênciade classes? Não. As classes sociais não existem (ainda que o trabalho político orientado pelateoria de Marx possa ter contribuído, em alguns casos, para torná-las existentes, ao menosatravés das instâncias de mobilização e dos representantes). O que existe é um espaço social,um espaço de diferenças, no qual as classes existem de algum modo em estado virtual,pontilhadas, não como um dado, mas como algo que se trata de fazer".

5 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas, p. 19.

106

Page 3: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

posições sociais, seja com um subespaço como o dos gostos culinários,o dos gostos vestimentários etc.". 6

Pierre Bourdieu define campo social, dizendo que "os camposse apresentam como espaços estruturados de posições (ou postos),cujas propriedades dependem de sua posição nestes espaços e quepodem ser analisados independentemente das características de seusocupantes (em parte determinadas por elas)". 7

Neste sentido, complementa Louis Pinto:"[...] a noção de campocontém nada mais que uma recomendação formal para tratar relacio-nalmente os indivíduos considerados, ou seja, como posições redutí-veis a seus traços distintivos, mas isso só vale para o conhecimentoconcreto de casos singulares se for complementado pela análise domodo específico de autonomia próprio do campo em questão". 8

Analisando a estrutura e a dinâmica do campo social, vamos veri-ficar que ele não se restringe a um locus de convivência, onde os agen-tes têm uma posição. O campo é um espaço de lutas, onde os agentesencontram-se, constantemente, medindo forças. Portanto, no campo,há constantemente um embate de poderes entre os agentes que neleparticipam, o que caracteriza do espaço conflitivo, de tensões e de riva-lidade. Tal perspectiva foi muito bem sintetizada por Louis Pinto:

"[...] O campo não é uma coexistência de indivíduos ou posições, masum lugar de forças e um lugar de conflito. Sua autonomia é o desafiosupremo, e é quanto a esse desafio que os agentes se dividem: a oposi-ção entre o artista e o burguês, a arte e o dinheiro, tende a repetir-se nocampo literário. Esses grupos rivais querem ambos obter reconhecimentoliterário, mas nem por isso diferem radicalmente quanto a suas hierar-quias: quem pretende destacar-se como artista puro só pode fazê-lo emdetrimento do sucesso comercial; inversamente, a busca de riqueza e dafama pressupõe e induz a renúncia à pureza estética (o mesmo se podedizer com relação a outros espaços, como o espaço das grandes escolas).É preciso escolher: não se pode acumular todo tipo de lucro".9

6 PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo sodal, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000, p. 96.BOURDIEU, Pierre. Questions de sodologie, Paris: Lês Editions de Minuit, 1984, p. 113.

1 PINTO, Louis. op. cit., p. 84.9 PINTO, Louis. op. cit., p. 85.

107

Page 4: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

Em resumo, para concluirmos a compreensão da categoria "cam-po social", valemo-nos mais uma vez de Louis Pinto que assevera:

"O campo é a lei que torna concebível a ordem da coexistência de umamultiplicidade: os rivais num determinado campo (literário, religioso etc.)não são tão dessemelhantes que não se possa descobrir o número finito depontos em torno do qual se situem todos os pontos enumeráveis, os quaisestão ligados entre si por um número finito de afinidades e oposições(passíveis, é verdade, de serem indefinidamente especificadas)".10

Passaremos agora a analisar a categoria habitus, o qual é assimdefinido por Bourdieu:

"[...] O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz ascaracterísticas intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo devida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas,de bens, de práticas.Assim como as posições das quais são produto, os habitus são diferen-ciados, mas são também diferenciadores. Distintos, distinguidos, elessão também operadores de distinções: põem em prática princípios dediferenciação diferentes ou utilizam diferenciadamente os princípiosde diferenciação comuns.Os habitus princípios geradores de práticas distintas e distintivas - oque o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporteque pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e suamaneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou dasatividades correspondentes do empresário industrial; mas são tambémesquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios devisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o que ébom e mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgaretc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo com-portamento ou o mesmo bem pode ser distinto para um, pretensiosoou ostentatório para outro e vulgar para um terceiro.Mas o essencial é que, ao serem percebidas por meio dessas categoriassociais de percepção, desses princípios de visão e de divisão, as diferen-ças nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas tornam-sediferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem. As dife-

10 PINTO, Louis. op. cit, p. 97.

108

Page 5: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

renças associadas a posições diferentes, isto é, os bens, as práticas e so-bretudo as maneiras, funcionam, em cada sociedade, como as diferençasconstitutivas de sistemas simbólicos, como o conjunto de fonemas deuma língua ou o conjunto de traços distintivos e separações diferenciaisconstitutivas de um sistema mítico, isto é, como signos distintivos". ^

Patrice Bonnewitz elucida com clareza a categoria habitus:

"[...] o habitus é um sistema de disposições duradouras adquirido pelo in-divíduo durante o processo de socialização. As disposições são atitudes,inclinações para perceber, sentir, fazer e pensar, interiorizadas pelosindivíduos em razão de suas condições objetivas de existência, e quefuncionam então como princípios inconscientes de ação, percepção ereflexão. A interiorização constitui um mecanismo essencial da socia-lização, na medida em que os comportamentos e valores apreendidossão considerados como óbvios, como naturais, como quase instintivos;a interiorização permite agir sem ser obrigado a lembrar-se explicita-mente das regras que é preciso observar e agir".12

Passaremos agora para a compreensão da categoria capital, a qualé sintetizada e apresentada com limpide^ por Patrice Bonnewitz:

"À primeira análise, a noção de capital está ligada à abordagem econó-mica. A analogia se explica pelas propriedades reconhecidas do capital:ele se acumula por meio de operações de investimento, transmite-sepela herança, permite extrair lucros segundo a oportunidade que o seudetentor tiver de operar as aplicações mais rentáveis. Estas caracte-rísticas fazem dele um conceito heurístico se, como faz Bourdieu, seuuso não é limitado apenas à área económica. Efetivamente, é possíveldistinguir quatro tipos de capital:- O capital económico, que é constituído pelos diferentes fatores de pro-dução (terras, fábricas, trabalho) e pelo conjunto dos bens económicos:renda, património, bens materiais.- O capital cultural, que corresponde ao conjunto das qualificações inte-lectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família.

1 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas, p. 21-22.12 BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu, Petrópolis: Vozes,

2003, p. 77.

109

Page 6: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

Esse capital pode existir de três formas: em estado incorporado, comodisposição duradoura do corpo (por exemplo, a facilidade de expres-são em público); em estado objetivo, como bem cultural (a posse dequadros, de obras); em estado institucionalizado, isto é, socialmentesancionado por instituições (como os títulos académicos).- O capital social, que se define essencialmente como o conjunto dasrelações sociais de que dispõe um indivíduo ou grupo. A detençãodeste capital implica um trabalho de instauração e manutenção dasrelações, isto é, um trabalho de sociabilidade, convites recíprocos,lazer em comum, etc.- O capital simbólico, que corresponde a um conjunto de rituais (comoas boas maneiras ou o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimen-to. Afinal, apenas o crédito e a autoridade conferem a um agenteo reconhecimento e a posse das três outras formas de capital. Elepermite compreender que as múltiplas manifestações do códigode honra e das regras de boa conduta não são apenas exigênciasdo controle social, mas são constitutivas de vantagens sociais comconsequências efetivas".'13

Para esclarecer a relação existente entre as categorias capital,habitus e campo, são elucidativas as lições de Louis Pinto:

"Ora, a noção de capital é um instrumento muito sensível simulta-neamente aos dois principais espaços nocionais que são próprios dasociologia de Pierre Bourdieu: o espaço do habitus e o espaço do cam-po. Por um lado, o capital estabelece uma relação entre o habitus e ocampo agindo como um poder que permite dominar um conjunto depotencialidades objetivas: por outro, ele existe segundo graus de objeti-vação que variam de modo contínuo, desde o saber incorporado numatécnica até a obra que lhe dá a forma de uma coisa, porém esperandoser apropriada por agentes determinados e dispostos a tanto, isto é,dotados de disposições afins. A maneira pela qual o habitus é solicita-do depende, pois, das propriedades locais do campo em questão: é ocampo que encerra uma definição das posições legítimas e pertinentes,bem como uma definição de suas alternativas imanentes a partir dasquais se podem deduzir as formas mais singulares de satisfação e de

13 BONNEWITZ, Patrice. op. cit., p. 53-54.

110

Page 7: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

recompensa que ele oferece. Vale dizer que existe uma pluralidade decampos que comanda uma pluralidade de economias".14

Tendo sido feito o resgate conceituai das principais categoriasbourdieusiana, procederemos a uma análise do campo universi-tário, procurando contextualizá-la com a realidade dos cursos deDireito no Brasil.

O sistema de educação é definido por Bourdieu "[...] comoo conjunto de mecanismos institucionais ou habituais pelos quaisse encontra assegurada a transmissão entre as gerações da culturaherdada do passado (isto é, a informação acumulada), as teoriasclássicas tendem a dissociar a reprodução cultural de sua funçãode reprodução social, isto é, a ignorar o efeito próprio das relaçõessimbólicas na reprodução das relações de força".15

O campo universitário foi definido por Bourdieu nos seguin-tes termos:

.

"[...] De fato, como o campo social tomado inteiramente, o campo uni-versitário é o lugar de uma luta de classificação que, trabalhando paraconservar ou transformar o estado daj"elação de forças entre os dife-rentes critérios e entre os diferentes poderes que ele designa, contribuipara fazer a classificação tal qual ele talvez aproveita objetivamentenum momento dado no tempo; mas a representação que os agentes sefazem classificar e a força e a orientação das estratégias que eles podemcolocá-la em prática para mante-la ou subvertê-la dependendo da suaposição das classificações objetivas".16

A ação pedagógica, dentro do contexto educacional, atua pormeio do trabalho pedagógico que produz um habitus^7, ou seja, es-

14 PINTO, Louis. op. cit, p. 136.15 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria

do sistema de ensino, 2. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 25.16 BOURDIEU, Pierre. Hamo Academicus,p. 30-31.17 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude., op. cit., p. 170-171: "[...] o habitus - esse

princípio gerador e unificador das condutas e das opiniões que é também o seu princípioexplicativo, já que tende a reproduzir em cada momento de uma biografia escolar ou inte-lectual o sistema das condições objetivas de que ele é o produto".

111

Page 8: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

tabelece um conjunto de práticas a serem observadas e obedecidase que acabam sendo internalizadas pelos agentes.18

Resgatando o que vimos anteriormente acerca da categoria habi-tus, a ação pedagógica, por meio do trabalho pedagógico, estabelecena convivência universitária, a aceitação de comportamentos e devalores, que são interiorizados de forma óbvia e natural, sem que osagentes percebam que o fazem.

No âmbito dos cursos jurídicos, podemos constatar tal realidade,por exemplo, quando verificamos o habitus disseminado da infalibi-lidade do professor e do caráter soberano de sua autoridade que nãoadmite contestação ou mesmo na forma reverenciai como os alunosreferem-se aos professores (utilizando-se formas de tratamento taiscomo "senhor" ou "doutor").'

Todavia, parece-nos que o "evidente distanciamento" entre osagentes (professor e alunos) é uma forma de comportamento (habitus)bastante comum dentro das práticas da ação pedagógica nos cursosjurídicos. Ele ocorre não só pela maneira como os professores estãovestidos (costume e gravata)19, mas também pela posição da mesadestinada ao professor, normalmente sobre um estrado, situando-a

18 Neste sentido, BOURDIEU, Pierre e PASSERON, JeanClaude, op. cit., p. 44;"[...] a AP (açãopedagógica) implica o trabalho pedagógico (TP) como trabalho de inculcação que devedurar o bastante para produzir uma formação durável, isto é, um habitus como produto dainteriorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessaçãoda AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado".

19 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude., op. cit., p. 136: "[...] Forçado a ilustrara qualidade de sua função e da cultura que ele comunica pela qualidade de sua maneirapessoal de comunicá-la, o professor deve ser dotado pela instituição de atributos simbólicosda autoridade ligada a seu cargo (a começar pela "farda do discurso' que é para o professoro que o avental ou o jaleco branco é para o cozinheiro, para o cabeleireiro, para o garçomdo café ou para o enfermeiro), para poder dar à elegância de renunciar ostensivamenteàs proteções mais visíveis da instituição acentuando os aspectos da tarefa que, como osgestos do cirurgião, do solista ou do acrobata, são os mais indicados a manifestar simbo-licamente a qualidade única do executante e da execução: as façanhas mais tipicamentecarismáticas, como a acrobacia verbal, a alusão hermética, as referências desconcertantesou a obscuridade peremptória assim como as receitas técnicas que lhes servem de suporteou de substituto, como a dissimulação das fontes, a introdução de gracejos preparadosou o evitar das expressões comprometedoras, devem sua eficácia simbólica à situação deautoridade que lhe confere a instituição. E se a instituição tolera e encoraja tão fortementeo jogo com os auxiliares ou mesmo com os regulamentos institucionais, é porque a açãopedagógica deve sempre transmitir, além de um conteúdo, a afirmação do valor desseconteúdo e que porque não há melhor meio para consegui-lo que o de desviar em favorda coisa comunicada o prestígio que a maneira insubstituível de comunicá-la proporcionaao autor intercambiável da comunicação".

112

Page 9: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

acima do nível das mesas dos alunos. Da mesma forma, constituium habitus a prática da "aula conferência" 20, onde não é permitidaqualquer interrupção na elocução do professor.

Entendo oportuno reproduzir algumas reflexões de Bourdieua este respeito, as quais poderiam ser perfeitamente utilizadas nocenário dos cursos jurídicos brasileiros:

"Entre todas as técnicas de distanciamento de que a instituição dotaos seus agentes, a linguagem do magistério é a mais eficaz e a maissutil: por oposição às distâncias inscritas no espaço ou garantidas peloregulamento, a distância que as palavras criam parece nada dever àinstituição. O verbo magisterial, atributo estatutário que deve à insti-tuição a maioria de seus efeitos, já que ele jamais seria dissociado darelação de autoridade escolar em que se manifesta, pode aparecer comoqualidade própria da pessoa quando outra coisa não faz do que desviarem benefício do funcionário uma vantagem de função. O professortradicional pôde abandonar o arminho e a toga, e ele pode mesmogostar de descer de seu estrado a fim de misturar-se à multidão, masnão pode abdicar de sua proteção última, o uso professoral de umalíngua professoral. Se não há nada de que ele não possa falar, luta declasses ou incesto, é que sua situaçãíf, sua pessoa e sua personagemimplicam na (sic) "neutralização' de seus propósitos; é que também alinguagem pode não ser mais, em última análise, um instrumento de

20 Neste particular, são valiosas as lições de BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude.,op. cit., p. 133, as quais caem como uma luva nos panorama dos cursos jurídicos brasileiros:"A relação com a linguagem e com o conhecimento que está implicado no primado outor-gado à palavra e à manipulação erudita das palavras constitui, para o corpo professoral, omeio mais económico, porque o mais conforme à sua formação passada, de adaptar-se àscondições institucionais do exercício da profissão e, em particular, à morfologia do espaçopedagógico e à estrutura social do público: vDuas vezes por semana, durante uma hora, oprofessor deve comparecer diante de um auditório formado ao acaso, composto frequente-mente de duas aulas sucessivas, de pessoas completamente diferentes. Ele deve falar, sempreocupar-se com as necessidades específicas dos alunos, sem estar informado do que elessabem, do que eles não sabem [...]. As longas deduções científicas que exigem que se tenhaseguido toda uma série de raciocínios devem ser afastadas [...]. Abertos a todos, transforma-dos no teatro de uma espécie de concorrência cujo fito é atrair e reter o público, o que sãoos cursos superiores assim entendidos? Brilhantes exposições, 'recitações' à maneira dosdeclamadores da decadência romana [...]. Essa porta que bate, que durante toda a aula nãocessa de abrir-se e de fechar-se, esse vaivém perpétuo, esse ar desocupado dos ouvintes, otom do professor quase nunca didático, às vezes declamatório, essa habilidade de buscaros lugares-comuns sonoros que não trazem nada de novo, mas que fazem infalivelmenteluzir os sinais do assentimento, tudo isso parece estranho e singular".

113

Page 10: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

fascínio cuja função principal é atestar e impor a autoridade pedagógicada comunicação e do conteúao comunicado.[...] É toda a lógica de uma instituição escolar baseada sobre um tra-balho pedagógico de tipo tradicional e que garante até o extremo, "ainfalibilidade' do "mestre', que se exprime na ideologia professoralda 'nulidade' dos estudantes, essa mistura de exigência suprema e deindulgência desabusada que inclina o professor a supor todos os fra-cassos da comunicação, por inesperados que sejam como constitutivosde uma relação que implica por essência a má recepção das melhoresmensagens pelos piores receptores.[...] Os estudantes são tanto menos levados a interromper o monólogoprofessoral quanto menos compreendam que a resignação estatutá-ria à compreensão aproximativa é simultaneamente o produto e acondição de sua adaptação ao sistema escolar: já que se supõe queeles devem compreender, já que eles devem ter compreendido, nãopodem alcançar a ideia de que têm um direito de compreender, edevem por isso se contentar em rebaixar seu nível de exigências emmatéria de compreensão".21

É importante ressaltar que o exercício do trabalho pedagógiconão precisa recorrer à repressão externa e, em particular, à coerçãofísica - ele é um substituto à coerção física.22 Isto significa que o pro-fessor não precisa se valer das sanções previstas nos regulamentosda instituição de ensino ou no regimento do curso de direito parafazer valer suas prerrogativas. Para tanto, ele se utilizará da violênciasimbólica23, cuja técnica de imposição é substituir "a 'maneira forte'pela 'maneira suave' (métodos não diretivos, diálogo, participação,

21 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. op. cit., p. 123-125.22 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. op. cit., p. 47." Acerca da compreensão da categoria "violência simbólica", ela foi concebida nos seguintes

termos: BOURDIEU, Pierre, Razões práticas, p. 177: "A violência simbólica é essa violênciaque extorque submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em 'expecta-tivas coletivas', em crenças socialmente inculcadas. Como uma teoria da magia, a teoriada violência simbólica apóia-se em uma teoria da crença ou, melhor, em uma teoria daprodução da crença, do trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotadosde esquemas de percepção e de avaliação que lhes farão perceber as injunções inscritas emuma situação, ou em um discurso, e obedecê-las". BOURDIEU, Pierre e PASSERON, JeanClaude., op. cit., p. 13: "Compreende-se que o termo de violência simbólica que diz expressa-mente a ruptura com todas as representações espontâneas e as concepções espontaneístasda ação pedagógica como ação não-violenta, seja imposto para significar a unidade teóricade todas as ações caracterizadas pelo duplo arbitrário da imposição simbólica".

114

Page 11: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

relações humanas, etc.)", ou seja, adotam-se formas ''dissimuladas" deimpor a dominação dos agentes.24

Neste sentido, leciona Pierre Bourdieu:

"A "maneira suave' pode ser o único meio eficaz de exercer o poder deposições mais ou menos tolerantes relativas à manifestação explícitae brutal do arbitrário. Se acontece que se possa acreditar hoje na pos-sibilidade de uma AP (ação pedagógica) sem obrigação nem sanção épelo efeito de um etnocentrismo que leva a não perceber como tais assanções do modo de imposição da AP (ação pedagógica) característicade nossas sociedades: cumular os alunos afeição, como fazem as pro-fessoras americanas, através do uso de diminutivos e dos qualitativosafetuosos, através do apelo insistente à compreensão afetiva, etc., éencontrar-se dotado desse instrumento de repressão sutil que constituia retração de afeição, técnica pedagógica que não é menos arbitráriaque os castigos corporais ou a repreensão infamante".25

Para ilustrar tal reflexão, poderíamos conceber a manifestaçãoda violência simbólica, onde ficariam dissimulados os argumentosde autoridade do professor, quando o mesmo se recusaria a ministrara disciplina para as turmas com número reduzido de alunos, comoo fazem os demais professores, aduzindo que constituiria em si um"privilégio" os alunos terem aulas com o docente, em função dojseurenome e/ou prestígio académico e/ou profissional.

Procederemos agora, a uma análise mais específica do campouniversitário, centrada nos cursos jurídicos brasileiros, a fim de ve-rificarmos as tensões e as lutas que neles ocorrem.

Iniciaremos nossa reflexão a partir do livro Homo Academicus,no qual Pierre Bourdieu assevera:

"O campo universitário é obtido e se mantém através da ocupação deposições permitindo dominar outras posições e seus ocupantes, comotodas as instituições encarregadas de controlar o acesso ao corpo, [...]esse poder sobre as instâncias de reprodução do corpo universitário

24 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, jean Claude., op. cit., p. 4725 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude., op. cit., p. 31.

115

Page 12: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

assegura aos seus detentores uma autoridade estatutária, tipo de umatributo de função que é muito mais ligado à posição hierárquica doque às propriedades extraordinárias da obra ou da pessoa e que seexerce não somente sobre o público à rotação rápida dos estudantes,mas também sobre a clientela dos candidatos ao doutorado, ao interiorda qual se recrutam geralmente os assistentes e que é colocado numarelação de dependência difusa e prolongada".26

Como percebemos, Bourdieu destaca que no campo universitárioocorre constantemente a luta dos seus agentes, in casu, dos professo-res, no sentido de conquistar posições e defendê-las27 e, ao mesmotempo, procura-se estabelecer um controle de acesso ao corpo docen-te, bem como no ingresso nos cursos de pós-graduação, estabelecendoquem dentre os doutorandos será seu assistente, peculiaridade que,obviamente, visa garantir a ausência de preocupação no futuro comrelação a uma possível concorrência, a qual colocaria em risco asposições conquistadas dentro do campo universitário.

Desta forma, fica mais fácil compreender, a razão pela qual, nocontexto de alguns cursos de direito no Brasil, é disseminada a prá-tica de indicar, reiteradamente, os mesmos membros das bancas dosprocessos seletivos para ingresso na carreira docente ou para ingressono mestrado e no doutorado (ocorrendo uma ''rotação" quase queimperceptível para dissimular uma suposta alternância).

Adicione-se ainda, que a escolha dos professores para compor asbancas não segue muitas vezes o critério da competência académica,didática ou científica, mas, ao contrário, ela é realizada consoante ocompartilhamento do mesmo habitus, que reproduz, eternamente,

26 BOURDIEU, Pierre. Hamo Academicus, p. 112-113.27 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 25-26: "[...] toda a tomada de posição sobre o

mundo social se ordena e se organiza a partir de uma posição determinada neste mundo,quer dizer do ponto de vista da conservação e do aumento do poder associado a estaposição. É assim que, num universo que, tanto que o campo universitário, depende des-sa mesma realidade da representação que fazem os seus agentes, os quais podem tirarpartido da pluralidade de princípios de hierarquização e de fraco grau de objetivaçãodo capital simbólico por tentar impor sua visão e de modificar, à medida do seu podersimbólico, sua posição no espaço modificando a representação que os outros atores (eeles mesmos) poder ter dessa posição".

116

Page 13: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

a indicação do afilhado28 pelo padrinho29, muitas vezes atrelada apráticas de nepotismo30, bem como expressa a relação de compadrioou da amizade fraterna que os torna todos uma verdadeira "família".Constatamos também, nesta linha de raciocínio, que não é mera coin-cidência que a presidência das bancas é, muitas vezes, confiada a umprofessor que devota fidelidade servil àquele que o indicou.

E tudo isso é justificado em nome da "tradição"31 que precisaser protegida, mas que na verdade, trata-se de proteger o habitus e asposições conquistadas no campo universitário, bem como "eliminar"qualquer agente ou concorrência 32 que possa colocá-los em risco.

28 Não é estéril lembrar, que muitas vezes a indicação do afilhado pelo padrinho acabaresultando num "tiro no pé", conforme muito bem destacaram BOURDIEU, Pierre ePASSERON, Jean Claude. op. cit., p. 211: "[...] Assim, todas as normas universitárias,tanto as que presidem a seleção dos estudantes ou à cooptação dos docentes, quanto asque regem a produção dos cursos, das teses ou mesmo dos trabalhos com pretensão cien-tífica, tendem sempre a favorecer o sucesso, ao menos no seio da instituição, de um tipomodal de homem e de obra definidos por uma dupla negação, isto é, pelo brilhantismosem originalidade e a gravidade sem peso científico, ou se se deseja, o "pedantismo daligeireza" e a "coqueteria da erudição".

29 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 124-126: "O bom êxito de uma carreira uni-versitária passa pela "escolha' de um padrinho poderoso, que não é necessariamenteo mais famoso nem mesmo o mais competente tecnicamente [...]". "[...] as afinidadesintelectuais entre os grandes padrinhos e seus clientes são muito menos evidentes queas afinidades sociais que os unem". "[...] O padrinho é escolhido por mais que ele nãoescolha; na estima dos seus alunos que, sem ser para tanto os discípulos, lhe concedemcontudo uma forma de reconhecimento intelectual, contribui para fazer sua estima- como ele contribui para fazer a sua".

30 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 80: "Isso que se revela através da lógica social dorecrutamento do corpo, é também o direito de ser admitido da maneira melhor disfarçada,e talvez a mais categoricamente exigida: o nepotismo não é somente uma estratégia dereprodução destinada a conservar a linha de posse de uma posição rara; é uma maneira deconservar qualquer coisa de mais essencial, que funda mesmo a existência do grupo, querdizer a adesão ao arbitrário cultural que é o fundamento mesmo do grupo". No mesmosentido, encontramos a nota de rodapé 25, in BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 79:"No caso do direito, os candidatos ao concurso de agregação se recrutam entre um universodos familiares, dos que preparam sua tese, incumbidos de concursos complementares,assistentes, quer dizer entre as pessoas que se fazem conhecer".

31 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude, p. 213: "[...] Porque o sistema de ensinotradicional consegue dar a ilusão de que sua ação de inculcação é inteiramente responsávelpela produção do habitus cultivado ou, por uma contradição aparente, que essa ação sódeve sua eficácia diferencial às aptidões inatas dos que a ela são submetidos, e que é porconseguinte independente de todas as determinações de classe, embora nada mais façado que confirmar e reforçar um habitus de classe que, constituído fora da Escola, está noprincípio de todas as aquisições escolares, tal sistema contribui de maneira insubstituívelpara perpetuar a estrutura das relações de classe e ao mesmo tempo para legitimá-la aodissimular que as hierarquias escolares que se produz reproduzem hierarquias sociais".

32 Acerca das condições do "jogo da concorrência", vide BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus,p. 117-118.

117

Page 14: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

Por este motivo torna-se mais fácil compreender porque certosnomes de professores sempre são cotados para serem dirigentesde cargos administrativos nos cursos de direito.33 Neste aspecto,Bourdieu adiciona outros fatores, dentre eles a peculiaridade que aconquista de capital universitário leva tempo, motivo pelo qual o pro-fessor que não tem um certo tempo de carreira não tem legitimidadepara postular cargos desta natureza34, o que leva a desprestigiar osprofessores mais jovens, tanto na idade, quanto na carreira docente.

É por este motivo que Bourdieu constata que na medicina e nodireito ocorre "a predominância do poder universitário, fundadosobre o acúmulo de posições permitindo controlar outras posiçõese seus ocupantes, é tão afirmado que os pesquisadores puros, querdizer os fundamentalistas, aparecem como um pouco 'deslocados' ese encontram devolvidos numa outra ordem, àquela das faculdadesde ciências, ou eles são além disso menos reconhecidos, salvo exceçõesque os científicos puros".35

Segundo Pierre Bourdieu, o campo universitário é organizadoconforme dois princípios de hierarquização antagónicos: 1) a hie-rarquia social, segundo o capital herdado e o capital económico epolítico atualmente detido (legitimação propriamente temporal=epolítica) e 2) a hierarquia cultural, segundo o capital de autoridadecientífica ou de notoriedade cultural (esta fundada sobre a autonomiada ordem científica e intelectual).36

Como vimos anteriormente, Bourdieu distingue quatro tipos decapital: o económico, o cultural, o social e o simbólico. Neste momen-to, torna-se oportuno analisar as trocas simbólicas de capital dentrodo campo universitário, priorizando a análise no âmbito dos cursosjurídicos brasileiros, enfatizando o capital simbólico, que segundoBourdieu corresponde a "[...] todas as estratégias visando a acumular

33 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 128:"[...] o poder universitário não pode ser acu-mulado e mantido que ao preço de um gasto constante, e importante, de tempo - a aquisiçãoe o exercício de um poder administrativo no campo universitário [...] tende a comprometerde fato a acumulação de um capital de autoridade científica e reciprocamente".

34 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 116: "De fato que a acumulação de capital universitárioleva tempo (é o que se vê no fato de que o capital detido está intimamente ligado à idade), asdistâncias, neste espaço, se medem em tempo, em saltos temporais, em diferenças de idade".

35 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 99.36 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 70.

118

Page 15: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

o crédito ou empreender o crédito dos outros (calúnias, denegrimen-to, difamação, elogios, críticas, nos diferentes sensos, etc.)".37

Ao refletir-se sobre os cursos de direito no Brasil, percebe-se,de forma acentuada, esta dupla hierarquização onde convivem ahierarquia do capital económico e o capital cultural.

Primeiramente, vamos perceber que o ingresso e o prestígio nacarreira docente está via de regra diretamente ligado ao prestígioprofissional do professor: ele é um renomado advogado, juiz oupromotor ou decorre do prestígio financeiro na captação de clientese de vultosos honorários para patrocínio de causas ou de elaboraçãode pareceres. Todavia, fica em segundo plano a competência didáticae o compromisso das obrigações académicas do professor.

Em segundo lugar, podemos encontrar também uma situaçãona qual o professor que apresenta um déficit de capital cultural e,para compensá-lo, vale-se do capital económico para buscar o pres-tígio que lhe falta no campo universitário. Por exemplo, ele poderápatrocinar a reforma das instalações do curso de direito ou praticarfilantropia beneficiando membros do corpo discente, neste caso,buscando angariar capital social.

«

Em terceiro lugar, poderíamos compreender o capital simbólicoauferido, quando certos professores detêm o privilégio de somenteministrarem aulas nas turmas de mestrado e doutorado, não minis-trando aulas nas turmas da graduação ou, se o fizerem, ministrarãoaulas apenas para uma turma, sendo contemplados com os melhoresdias e horários da grade horária, preferencialmente pela manhã, deforma a facilitar a sua adequação aos seus compromissos profissionaisfora do curso de direito. Instaura-se, com bastante frequência, umaverdadeira "troca de favores" entre os dirigentes dos órgãos adminis-trativos do curso de direito e alguns membros do corpo docente, cujospedidos dessa natureza são atendidos consoante a possibilidade deno futuro serem contemplados com o atendimento de outros pedidosde natureza profissional, estranhos ao contexto académico.

Tal panorama foi assim refletido por Bourdieu:

37 BOURDIEU, Pierre. Homo Academias, p. 41.

119

Page 16: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

"[...] se a Escola detém simultaneamente uma função técnica de pro-dução e de comprovação das capacidades e uma função social de con-servação e de consagração do poder e dos privilégios, compreende-seque as sociedades modernas forneçam ao sistema de ensino múltiplasocasiões de exercer seu poder de converter vantagens sociais em van-tagens escolares, elas mesmas reconversíveis em vantagens sociais,porque tal permite que se apresentem as preliminares escolares, porconseguinte implicitamente sociais, como pré-requisitos técnicos doexercício de uma profissão".38

Em quarto lugar, fica melhor elucidada a razão pela qual algunsprofessores perpetuam-se nos cargos administrativos dos cursos dedireito, visando a aquisição de capital simbólico, naquilo que Bour-dieu já afirmava que: "A oferta de tempo que implique à participaçãoaos ritos, às cerimónias, às reuniões, às representações, é tambéma condição mais rigorosamente necessária da acumulação de certaforma particular de capital simbólico que é uma forma particular dehonorabilidade universitária" ?^

Em quinto lugar, podemos constatar a manifestação do capitalsimbólico, quando determinados professores nos cursos de direito,muitas vezes detentores de cargos administrativos, manifestamelogios ou críticas a outros membros do corpo docente, valendo-sede um suposto "princípio de autoridade" auto-investida, os quaisse arvoram a "abençoar" ou "amaldiçoar" os membros do corpodocente, classificando-os como "amigos" ou "inimigos", estabelecen-do a partir daí a competência e o prestígio académico e didático docorpo docente, totalmente divorciada com o real comprometimentoacadémico e com a efetiva produção científica dos professores.40

Obviamente, nossa pretensão não visava uma análise exaustivado discurso jurídico no contexto dos cursos jurídicos no Brasil, emface dos limites que se impõem para a elaboração de um artigo. Con-tudo, temos convicção de que trouxemos, através das teorizações de

8 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. op. cit., p. 175.39 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, p. 129.40 Reportamo-nos ao conceito de capital simbólico expresso na nota de rodapé 37, a qual

reflete tal perspectiva.

120

Page 17: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Abili Lázaro Castro de Lima

Pierre Bourdieu, muitos elementos importantes para reflexão sobretal panorama que certamente estimularão novas reflexões, este sim,o verdadeiro propósito deste artigo.

Neste particular, é significativo destacar a importância e a ne-cessidade da Sociologia, conforme o fez Pierre Bourdieu, na aulainaugural proferida no Collège de France em 23.04.85:

"[...] Se os que têm algo a ver com a ordem estabelecida, seja lá o quefor, não gostam nem um pouco da sociologia, é porque ela introduzuma liberdade em relação à adesão primária que faz com que a própriaconformidade assuma um ar de heresia ou de ironia".41

-

Se por um lado, as reflexões constantes no presente trabalhoevidenciam um panorama pouco otimista, por outro lado nos aju-dam, enquanto agentes do campo universitário, a compreender ofuncionamento do campo universitário jurídico no Brasil, auxilian-do-nos na nossa atuação e na construção de estratégias para rompere superar os aspectos negativos da estruturação do poder, visandobuscar novos horizontes mais auspiciosos, com a efetiva valorizaçãodas competências académica, didática e científica.42

41 BOURDIEU, Pierre. Lições de Aula, 2a. ed., São Paulo: Ática, 2003, p. 60.^ Nosso propósito é produzir uma reflexão sobre o tema, fundada em argumentos científicos,

consoante os ensinamentos de Pierre Bourdieu constantes na aula inaugural proferida noCollège de France que anteriormente fizemos referência, publicada no Brasil sob o títuloLições de Aula, 2a. ed., São Paulo: Ática, 2003, p. 13,14; 25: "[...] Sem dúvida, o sociólogonão é mais o árbitro imparcial ou o espectador divino, o único a dizer onde está a verdade- ou, para falar em termos do senso comum, que tem razão -, e isso leva a identificar aobjetividade a uma distribuição equitativa dos erros e das razões. Mas o sociólogo é aqueleque se esforça por dizer a verdade das lutas que têm como objeto - entre outras coisas - averdade. Por exemplo: em lugar de estabelecer uma divisão entre aqueles que afirmam eaqueles que negam a existência de uma classe, de uma região ou de uma nação, trabalhano sentido de estabelecer a lógica específica dessa luta, e de determinar, através de umaanálise do estado da relação de forças e dos mecanismos de sua transformação, as chancesdos diferentes campos. Cabe-lhe construir um modelo verdadeiro das lutas pela imposiçãoda representação verdadeira da realidade, que contribuem para fazer a realidade tal comose apresenta ao registro" [...] "Se há uma verdade, é que a verdade é um resultado de lutas;mas essa luta só pode conduzir à verdade quando obedece a uma lógica tal que não se podetriunfar sobre os adversários sem empregar contra eles as armas da ciência, contribuindoassim para o progresso da verdade científica".

121

Page 18: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

O DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL...

Referências bibliográficas

BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de PierreBourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003.

BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude. A reprodução:elementos para uma teoria do sistema de ensino, 2a. ed., Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1982.

BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Lês Éditions deMinuit, 1984.

BOURDIEU, Pierre. Lições de Aula. T. ed., São Paulo: Ática, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Questions de Sociologie. Paris: Lês Éditions deMinuit, 1984.

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Campinas: Ed. Papirus, 1996.

BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude e PASSERON,Jean-Claude. Ofício de sociólogo, 4a. ed., Petrópolis: Vozes, 2004.

PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro:Ed.FGV,2000.

122

Page 19: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

Ricardo Marcelo Fonseca(Organizador)

DIREITO E DISCURSODISCURSOS DO DIREITO

Abili Lázaro Castro de LimaAndré Macedo Duarte

Celso Luiz LudwigCésar António Serbena

Estefânia Maria de Queiroz BarbozaJosé António Peres Gediel

Katya KozickiLuís Fernando Lopes Pereira

Oswaldo Giacoia JúniorRicardo Marcelo FonsecaVera Karam de Chueiri

F U N D A Ç Ã O

BOITEUXFlorianópolis

2006

Page 20: O discurso jurídico no contexto dos cursos de direito no Brasil - reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu

© Fundação José Arthur Boiteux - Universidade Federal de Santa Catarina

Ficha Catalográfica

D598 Direito e discurso discursos do direito / Ricardo Marcelo Fonseca(organizador). - Florianópolis : Fundação Boiteux, 2006.200p.; 23cm.

Inclui bibliografiaISBN: 85-87995-76-6

1. Direito - Discursos, ensaios, conferências. 2. Análise do Discurso.I. Fonseca, Ricardo Marcelo.

CDU: 34 (042.5)

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX

PresidenteVice-PresidenteSecretária-GeralSecretário AdjuntoTesoureiro GeralTesoureiro AdjuntoOrador

Conselho Editorial

Capa

Pprojeto gráficoe Diagramação

Revisão

Prof. Orides MezzarobaProf. Ubaldo César BalthazarProf. Leilane M. Zavarizi da RosaProf. José Isaac PilatiProf. Aires José RoverProf. Carlos Araújo LeonettiProf. Luiz Otávio Pimentel

Prof. Aires José RoverProf. António Carlos WolkmerProf. Arno Dal Ri JúniorProf. José Rubens Morato LeiteProf. Mário Lange de S. ThiagoProf. Orides MezzarobaProf. Luís Carlos Cancellier de OlivoProf. Luiz Otávio Pimentel

Fernando C. Santos Jr.sobre detalhe da pintura "O Grito"do norueguês Edvard Munch

Studio S Diagramação & Arte Visual(48) 3025-3070 - www.studios.com.br

Dos autores

Endereço UFSC-CCJ-2° andar-Sala 216Campus Universitário - TrindadeCEP 88040-900 - Florianópolis - SC - BrasilTel/Fax: (48) 3233-0390E-mail: [email protected]: www.funjab.ufsc.br