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  • NASCER E CRESCERrevista do hospital de crianas maria piaano 2011, vol XX, n. 4

    276 perspectivas actuais em biotica current perspectives in bioethics

    O direito sade na Unio Europeia em perspectiva diacrnica: elementos para uma

    genealogia do artigo 35. da CDFUE

    RESUMOO objectivo primacial deste artigo consiste em traar rapi-

    damente a genealogia histrica do artigo 35 da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, captando -a na confl uncia de trs veios relevantes do processo europeu de integrao: os que concernem respectivamente sade, aos direitos humanos e socialidade. Assim, nesta PARTE I, logo que as consideraes introdutrias estejam concludas, arriscaremos um vislumbre do horizonte de compreenso a assumir no que toca s relaes entre sade, justia e direito, partindo do reconhecimento da importncia da sade como bem humano fundamental com uma mirade de signifi cados e valncias (e, por conseguinte, nu-clear para diversos tipos de discursos epistmicos, bem como de sistemas e prticas sociais) exporemos algumas das mais provocantes questes que coloca, considerando -as como pro-blemas de justia, carentes de alguma forma de interveno ju-rdica. Para encerrarmos, enfi m, com a caracterizao sumria do direito da sade e, particularmente, do direito sade, ambos considerados em termos muito genricos, tal como derivam dos contemporneos standards de direito internacional, transnacio-nal e comparado.

    Palavras -chave: Sade; cuidados de sade; bem; tipos de justia; direito da sade; direito sade; Carta dos Direitos Fun-damentais da Unio Europeia; artigo 35 CDFUE; polticas da sade; polticas sociais; direitos humanos e fundamentais.

    Nascer e Crescer 2011; 20(4): 276-282

    INTRODUO

    DOKTOR: Die Natur, Wozzeck! Der Mensch ist frei! In dem Mens-chen verklrt sich die Individualitt zur Freiheit! () Es gibt eine Revolution in der Wissenschaft: ()

    WOZZECK: Sehn Sie, Herr Doktor, manchmal hat man so nen Charakter, so ne Struktur; aber mit der Natur ists was anders. Sehn Sie, mit der Natur das ist so wie soll ich denn sagen zum Beispiel: Wenn die Natur

    DOKTOR: Wozzeck, Er philosophiert wieder! Was? Wenn die Natur

    WOZZECK: Wenn die Natur aus ist, wenn die Welt so fi nster wird, dass man mit den Hnden an ihr herumtappen muss, dass man meint, sie verrinnt wie Spinnengewebe.

    ALBAN BERG, Wozzeck (pera em trs actos), Acto I, Cena 4

    (a partir do drama Woyzeck, de Georg Bchner)

    Num momento em que a Unio Europeia enfrenta uma das mais graves crises de sempre cujas consequncias, tanto no plano da existncia individual, como no da vida colectiva, con-tendem gravemente com a sade de todos e cada um mas em que, curiosamente, se acaba de dar um signifi cativo passo na clarifi cao e estabelecimento de um mercado europeu de prestao de cuidados de sade (graas publicao da chama-da directiva dos cuidados transfronteirios), afi gura -se -nos per-tinente tentar contribuir, ainda que de modo modesto, para um esclarecimento da situao jurdica dos cidados da UE, nesta matria, expondo a um pblico mais amplo e numa linguagem convenientemente adaptada (sem sacrifcio excessivo do rigor acadmico), as razes genealgicas daquela que legitimamente se pode considerar a primacial referncia normativa da Unio em sede de direito sade: o artigo 35 da Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia (CDFUE).

    Julgamos no exagerar, quando alvitramos que a sade se acha condenada a ocupar um lugar fulcral nos grandes deba-tes pblicos dos prximos anos. O alargamento do campo do possvel na sequncia das descobertas cientfi cas e dos avan-os tcnicos tornou imperiosa a discusso, negociao, mas tambm descoberta e constituio de uma gramtica jurdica bsica da sade, pela qual se determinem em dilogo desig-nadamente com as intencionalidades tica, poltica e econmica e consideradas as respectivas objectivaes institucionais as arenas modais da prtica humana no sector: desde o domnio do permitido, esfera do necessrio e do devido.

    Para os juristas, o desafi o maior, tambm nesta sede, con-siste hoje em pensar e realizar o direito, tomando por referncia as coordenadas axiolgicas, epistemolgicas, antropolgicas, econmicas, polticas e sociais do horizonte civilizacional em que o mesmo se inscreve, sem incorrer no erro de nelas diluir completamente a autonomia de sentido do projecto humano da juridicidade.

    Lus A. M. Menezes do Vale1

    __________

    1 Mestre em Direito, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

  • NASCER E CRESCERrevista do hospital de crianas maria pia

    ano 2011, vol XX, n. 4

    277perspectivas actuais em biotica current perspectives in bioethics

    Contudo, numa poca em que a sociedade se tornou invi-svel, perfi lam -se -nos, sem dvida, muitas difi culdades na inter-pretao daquelas referncias.

    Desde logo, damo -nos conta que uma noo demasiado socializada, burocratizada, autoritria, paternalista e mecanicista (biomdica) da interveno sobre a sade traduzida poltico--juridicamente na polcia sanitria e no imprio do dever, nas exigncias de sade pblica e na tutela colectiva da sade in-dividual (por razes polticas, morais, religiosas) mais do que genuinamente aprendida da histria e seus exemplos (que os houve!), tem sido objecto de alguma efabulao mistifi cadora, alm de retoricamente esgrimida para legitimar uma alternativa baseada nos mritos sociais alegadamente irrestritos da livre escolha, da concorrncia, do pluralismo institucional ou da fl exi-bilidade gestionria que todos concordaro serem tropos fun-damentais da hegemnica narrativa contempornea.

    No que devamos ignorar o passado e que as lies pro-vindas da refl exo fi losfi ca e da expresso artstica se no de-vam manter, quais sentinelas, advertindo -nos para os monstros gerados tanto pelo sono, como pela hiperactividade, de um certo tipo de razo: desde os perigos do totalitarismo estatal a uma no-mocrtica disciplina da vida e dos pactos fusticos do progresso e da engenharia pessoal e social indiferena moral e abulia da piedade e compaixo produzidas pela tica categrica e pelo direito lgico -formal ou teoreticamente puro. Felizmente, obras como as de M. Weber e T. Adorno, G. Lukacs e A. Honneth, mas tambm de Kafka, Huxley e Orwell, fazem parte da nossa conscincia colectiva, vigiando -nos criticamente. Afi nal de con-tas, todas nos ensinam que o homem e o seu mundo tm uma densidade que o mdico do Wozzeck de Berg parecia revelar -se incapaz de compreender.

    Do que se trata, no entanto, precisamente de reconhe-cer que, ao contrrio do que poderamos ser induzidos a pen-sar, nem a regulao da sade desapareceu (tendendo antes a assumir contornos mais insidiosos e ocultos e a processar -se de modo arbitrrio e descontnuo ao sabor dos poderes e com fundamento em interesses no necessariamente valiosos), nem a pretendida superao da modernidade sinnimo de benos infi nitas e promessas redentoras.

    Com efeito, sob a agenda da liberdade individual esconde--se tambm um discurso desconstrutor que desvaloriza a im-portncia social e pblica da sade e a transforma em questo de mera justia comutativa, e s nessa perspectiva regulada. O que, conquanto parcialmente compreensvel e tolervel (v.g. no tocante a algumas decises existenciais, relativas aos aspectos mais privados da sade e sem consequncias ominosas para os demais), levanta todavia muitos problemas luz do prprio ethos bitico que hoje nos obriga a pensar de novo, em comum, a nossa relao com os outros seres fi nitos, num mundo limitado nas suas possibilidades e recursos.

    exactamente em nome dessas exigncias que escolhe-mos centrar -nos sobretudo nos problemas de justia distributiva e social, jussubjectivaamente traduzidos no reconhecimento de direitos positivos sade. Decidimo -nos, portanto, a contrariar um pouco o discurso imperante, que, ao idolatrar a (desregra-

    da) liberdade de concorrncia(1) e de escolha(2,3), est longe de o fazer sempre em nome da emancipao humana, no raro con-tribuindo, ao invs, para formas mais rebuadas e tirnicas de domnio e explorao pondo assim em cheque o fl orescimento pessoal (e o desenvolvimento econmico, poltico e social sus-tentvel que o mesmo pressupe, demanda e potencia)(4).

    Basta pensar no papel que o complexo industrial da maqui-naria de sade, o emprio das seguradoras e os conglomerados empresariais de proviso de sade e medicamentos (hospitais e farmacuticas) desempenha na construo e modelao da pr-pria realidade que habitamos, para perceber do arrojo necess-rio para uma confi ta contra o discurso politicamente correcto do afl orado libertarismo que remete para o lixo da histria, como atvica cantilena de medocre frugalidade, prpria de algum so-cialismo utpico, os apelos: moderao universal (o clssico mederi grego, to caro aos juristas)(5), ao respeito pela autorida-de dos profi ssionais, s solues de cooperao e solidarieda-de fundamental entre ricos e pobres, doentes e saudveis, nati-vos de umas e outras regies, padecentes de umas e de outras doenas. Quando, na verdade, a despeito do consenso quanto pujana econmica dos sistemas econmico -sociais dinmicos, (baseados nas liberdades econmicas), os melhores resultados internacionais em matria de sade continuam a ser obtidos por sistemas baseados em esquemas e solues de solidariedade que institucionalizam (ou atravs da prestao directa ou de uma proviso substancial e substanciosamente regulada) a igualdade, enquanto cumprem com as suas especfi cas atribuies sociais; ao mesmo tempo que a generalidade dos pases mais avana-dos admite, contrita, a irracionalidade de uma proviso ditada pela tirania das pequenas decises da microeconomia: no drama da Ubertherapie participam activamente os empresrios, fi tando o lucro, os investidores, especulando sobre ttulos de seguros ou tradicionais aces societrias, os cuidadores receosos (na defensiva) e os cidados transformados em consumidores. O re-sultado o ret