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1840 O DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE Ana Paula Fernandes Teixeira Mestre em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES. Docente do Curso de Direito das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros-FIPMoc. Graduada em Direito pela UNIMONTES. E-mail: [email protected]. RESUMO A discussão que se inicia com a crise da razão moderna e a crise da ciência repercute também sobre o direito, sendo importante analisar os fenômenos jurídicos a partir desse marco que se dá em torno da dimensão da pós-modernidade. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre os desafios e contradições enfrentados pela pedagogia criminal no con- texto atual, aqui denominado de pós-modernidade, buscando situar o direito penal no momento histórico em que se vive. Para tanto, no plano metodológico, utiliza-se de revisão bibliográfica, isso porque, partindo da análise das condições históricas pós-modernas, é possível delinear alguns elementos teóricos que veem desafiando os conflitos normativos e factuais das ciências jurídicas. Como resultados, pode-se verificar que a vulnerabilidade do sujeito da pós-moder- nidade e a crise geral civilizacional aparecem como combustíveis para a inserção desse sujeito na criminalidade. Consequentemente, a insegurança, também como mercadoria no capitalismo pós-moderno, faz com que o sujeito passe a ver no outro, naquele que comete um crime, um sujeito perigoso, o que aumenta a sensação de insegurança na sociedade. Assim, conclui-se que se recorre ao direito penal como meio eficaz de controle do crime, crescendo o apoio popular a legislações penais mais rígidas, o que lhe confere ares de legitimidade. É nesse contexto que práticas criminais autoritárias e severas são facilmente adotadas. Desse modo, o trabalho pro- cura identificar sintomas sociais e culturais que ajudariam na compreensão do direito penal e do discurso da emergência evidenciado no fenômeno da criminalidade contemporânea. Palavras-chave: Pós-modernidade. Criminalidade. Legislação penal emergencial. Direito pe- nal simbólico. INTRODUÇÃO Atualmente, o mundo ocidental está passando por uma transição paradigmática, social e epistemológica que pode ser denominada de “pós-modernidade”. Essa atual conjuntura pós- moderna, por sua vez, está desencadeando uma mudança paradigmática também no mundo ju- rídico. O mundo moderno, de certeza e ordem, tem sido substituído por medos, individualismo

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Page 1: O DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE · 2020. 7. 23. · 1840 O DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE Ana Paula Fernandes Teixeira Mestre em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES. Docente

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O DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE

Ana Paula Fernandes Teixeira

Mestre em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES. Docente do Curso de Direito das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros-FIPMoc. Graduada em Direito pela

UNIMONTES.E-mail: [email protected].

RESUMO

A discussão que se inicia com a crise da razão moderna e a crise da ciência repercute também sobre o direito, sendo importante analisar os fenômenos jurídicos a partir desse marco que se dá em torno da dimensão da pós-modernidade. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo refl etir sobre os desafi os e contradições enfrentados pela pedagogia criminal no con-texto atual, aqui denominado de pós-modernidade, buscando situar o direito penal no momento histórico em que se vive. Para tanto, no plano metodológico, utiliza-se de revisão bibliográfi ca, isso porque, partindo da análise das condições históricas pós-modernas, é possível delinear alguns elementos teóricos que veem desafi ando os confl itos normativos e factuais das ciências jurídicas. Como resultados, pode-se verifi car que a vulnerabilidade do sujeito da pós-moder-nidade e a crise geral civilizacional aparecem como combustíveis para a inserção desse sujeito na criminalidade. Consequentemente, a insegurança, também como mercadoria no capitalismo pós-moderno, faz com que o sujeito passe a ver no outro, naquele que comete um crime, um sujeito perigoso, o que aumenta a sensação de insegurança na sociedade. Assim, conclui-se que se recorre ao direito penal como meio efi caz de controle do crime, crescendo o apoio popular a legislações penais mais rígidas, o que lhe confere ares de legitimidade. É nesse contexto que práticas criminais autoritárias e severas são facilmente adotadas. Desse modo, o trabalho pro-cura identifi car sintomas sociais e culturais que ajudariam na compreensão do direito penal e do discurso da emergência evidenciado no fenômeno da criminalidade contemporânea.

Palavras-chave: Pós-modernidade. Criminalidade. Legislação penal emergencial. Direito pe-nal simbólico.

INTRODUÇÃO

Atualmente, o mundo ocidental está passando por uma transição paradigmática, social e epistemológica que pode ser denominada de “pós-modernidade”. Essa atual conjuntura pós-moderna, por sua vez, está desencadeando uma mudança paradigmática também no mundo ju-rídico. O mundo moderno, de certeza e ordem, tem sido substituído por medos, individualismo

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e incertezas.O processo de modernização, que se iniciou na Europa do século XVII, buscava expli-

car o mundo a partir da razão. Contudo, alguns autores identifi cam alguns postulados de ruptura com essa racionalidade moderna, o que acaba gerando um processo de desencantamento do mundo. Essa discussão que se inicia com a crise da razão moderna e a crise da ciência repercute também sobre o direito, sendo importante analisar os fenômenos jurídicos a partir desse marco que se dá em torno da dimensão da pós-modernidade.

Do ponto de vista científi co, o desafi o é repensar a ciência do direito na sua dimensão interdisciplinar e as contradições vivenciadas na transição do direito moderno para uma ciência do direito pós-moderna, diante do surgimento de diferentes relações sócio-econômico-políticas que revelam a emergência do estudo da criminalidade no contexto pós-moderno.

Na medida em que há lacunas no estudo científi co do direito do na atualidade, é im-portante iniciar uma discussão sobre a pós-modernidade, sem a intenção de esgotar o intenso debate travado na literatura por aqueles que a defi nem como marco epistemológico, mas par-tindo da construção teórica de autores que entendem que ela está posta. De qualquer forma, o objetivo específi co do presente trabalho é analisar de um ponto de vista crítico as infl uências da pós-modernidade no âmbito do direito penal e não de dar conta da discussão científi ca sobre o signifi cado da pós-modernidade. Até mesmo porque o “debate pós-moderno” realizado pelos intelectuais tem provocado pouco consenso, confusão e muita discórdia.

Inicialmente, é importante esclarecer as bases históricas que envolvem o conceito de pós-modernidade, bem como identifi car o seu referencial teórico, além de entender seus sinto-mas no mundo de hoje. Para tanto, recorrer-se-á a Perry Anderson, que faz uma reconstrução histórica das origens da pós-modernidade e resgata autores como Lyotard e Jameson, passando também pela análise de autores como Boaventura de Souza Santos, Alain Touraine e Bauman.

Dessa forma, será possível tecer uma rede teórica que sustente a análise das infl uências da pós-modernidade e desses seus contornos no âmbito do direito penal e no discurso puniti-vista do Estado contemporâneo, que ganha ares de legítimo ao contar com o apoio midiático e, consequentemente, popular.

CONTORNOS DA PÓS-MODERNIDADE NO DEBATE CIENTÍFICO CONTEMPO-RÂNEO

Originariamente, o termo ‘pós-modernidade’, de acordo com os relatos históricos de Anderson (1999), está ligado ao movimento estético e à apreensão arquitetônica, passando a ser analisado, também, no contexto dos fenômenos sociais, refl etindo uma mudança geral na condição humana.

Não se pode ignorar que há animado debate literário sobre a pós-modernidade, pois esta pode representar uma nova dimensão histórica e social que se inaugura com a perda de rumo do projeto iluminista da modernidade, mas também pode se ligar a uma representação vazia, já que o projeto da modernidade ainda não teria se esgotado e ainda deve ser realizado.

Assim, há uma construção teórica da pós-modernidade, de modo que há autores que, como Bauman (2008), afi rmam a vivência de um novo tempo, caracterizado pela liquidez e pela

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insegurança. Contudo, na mesma perspectiva, há aqueles que entendem que a modernidade é um projeto incompleto e que ainda não se esgotou.

Segundo Anderson (1999), o pós-modernismo surgiu, mas nunca suplantou completamente o moderno, inaugurando uma série de novos caminhos para praticar a cultura e a política. O autor, colocando o pós-moderno como a lógica cultural do capitalismo, ou seja, baseando sua concepção como um novo estágio do desenvolvimento capitalista, aponta que sua origem se dá no início dos anos 70, refl etindo uma ruptura contemporânea com o modelo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra. Em resposta, surge um novo regime de acumulação fl exível, à medida que o capital aumentava sua margem de manobra. O que muda de forma signifi cativa, entretanto, é a autonomia dos mercados fi nanceiros dentro da lógica capitalista, violando a soberania dos governos nacionais, o que acaba provocando uma instabilidade sistêmica sem precedentes.

Por outro lado, Anderson (1999) também aponta que o capital global está, agora, mais integrado do que nunca e, de forma alguma isso acompanha uma ruptura na história do capitalismo. Não há nenhuma ruptura crítica, entretanto, observava-se uma degradação paulatina do próprio modernismo à medida em que se acomoda os circuitos capitalistas no pós-guerra.

Além dos aspectos econômicos, uma segunda condição para as origens do pós-modernismo se relaciona com a evolução da tecnologia e com invenções que transformam a vida urbana, como o rádio, o cinema, o arranha-céu, o avião e a televisão. A invenção desta mudou tudo, pois “foi o primeiro avanço tecnológico de importância histórica mundial do pós-guerra. Com a TV dava-se um salto qualitativo no poder das comunicações de massa” (ANDERSON, 1999, p. 104).

Por fi m, pontua o autor que:

O triunfo universal do capital signifi ca mais do que simplesmente uma derrota para todas aquelas forças outrora dispostas contra ele, embora seja isso também. Seu sentido mais profundo está no cancelamento das alternativas políticas. A modernidade chega ao fi m, como observa Jameson, ao perder todo contrário. A possibilidade de outras ordens sociais era um horizonte essencial do modernismo. Uma vez desaparecido esse horizonte, surge em seu lugar algo como o pós-modernismo (ANDERSON, 1999, p. 108).

Dessa forma, o pós-modernismo teria surgido da combinação de uma ordem dominante

desclassifi cada, uma tecnologia mediatizada e uma política sem nuances, quando o capitalismo entra em uma nova fase histórica iniciada no pós-guerra. Talvez sejam essas as condições para o pós-moderno, mas também é necessário investigar os seus contornos e as mudanças culturais provocadas por elas.

Nesse sentido, Santos (1996, p. 102) explica que as sociedades capitalistas passam por transformações profundas sem que, no entanto, deixem de ser capitalistas e, neste contexto, se pode fazer uma conclusão segura de que os excessos do capitalismo, por um lado, esgotaram o projeto da modernidade e, por outro lado, isso se deu de tal modo que o capitalismo se alimenta desse esgotamento e se perpetua nele. “O vazio que ele produz é tão global que não

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pode ser preenchido no contexto do paradigma da modernidade”.Santos (1996) ainda explica que afi rmar que o projeto da modernidade se esgotou

signifi ca que se cumpriu com excessos irreparáveis, mas são esses excessos que constituem a contemporaneidade e é deles que se deve partir para imaginar o futuro. Assim, pondera o autor que a relação entre o moderno e o pós-moderno não se dá com uma ruptura total, nem com uma linear continuidade, pois há momentos de ruptura e momentos de continuidade.

Além disso, Santos (1996, p. 102) entende que:

A ideia moderna da racionalidade global da vida social e pessoal acabou por se desintegrar numa miríade de mini-racionalidades ao serviço de uma irracionalidade global inabarcável e incontrolável. É possível reinventar as mini-racionalidades da vida de modo a que elas deixem de ser partes de um todo e passagem a ser totalidades presentes em múltiplas partes. É esta a lógica de uma possível pós-modernidade de resistência.

Mas como resistir se não podemos viver juntos? Touraine (1997), também partindo da análise da dimensão da pós-modernidade ou de uma “modernidade tardia”, denuncia uma crise geral do sujeito na sociedade contemporânea. Para além de uma crise política, econômica e moral, sua perspectiva se enquadra numa crise geral civilizacional.

Touraine (1997) explica que, com a globalização, nó estamos cada vez mais próximos. No entanto, isso não signifi ca que estejamos, de fato, juntos. Usamos as mesmas coisas, mas não nos comunicamos de fato uns com os outros. Essa seria a principal característica da moder-nidade tardia ou pós-modernidade.

Aqui, partindo da obra de Perry Anderson, é possível estabelecer um diálogo com Alain Touraine, na medida em que aquele afi rma que o capitalismo avançado, em sua perspectiva econômica, evidencia as preferencias individuais por moda e gratifi cações de consumo em per-pétua mudança, desprezando o sujeito, que está centrado nas digressões erráticas do desejo e do hedonismo amoral do mercado.

Desse modo, na atualidade, pode-se notar a pouca autonomia dos indivíduos que foram reduzidos a consumidores da nova cultura. A consciência de cidadania enfraquece-se porque muitos indivíduos se sentem mais consumidores do que cidadãos. Portanto, sem o cidadão, a cultura da democracia se torna vítima do consumismo e do sistema fi nanceiro ou de qualquer dominação antidemocrática. A situação de descontrole social atual é fruto da ação de homens e mulheres que colocam o interesse fi nanceiro e pessoal acima de tudo, pessoas que não desen-volveram a noção de sujeitos (TOURAINE, 1997).

Retomando o mesmo ponto realçado por Perry Anderson, Touraine (1997) também des-taca a importância dos meios de comunicação neste cenário e como eles ocupam um espaço crescente na vida contemporânea. Dentre eles, a televisão ocupa um lugar central. Até porque, hoje só se fala em globalização ou de exclusão, de concentração do capital ou da capacidade de difundir mensagens e formas de consumo.

Bauman (2008, p. 70-71), tratando especifi camente da sociedade de consumo como um dos sintomas da pós-modernidade, esclarece que:

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Se a cultura consumista é o modo peculiar pelo qual os membros de uma sociedade de consumidores pensam em seus comportamentos ou pelo qual se comportam “de for-ma irrefl etida” – ou, em outras palavras, sem pensar no que consideram ser seu objeto de vida e o que acreditam ser os meios corretos de alcançá-lo, sobre como separam as coisas e os atos relevantes para esse fi m das coisas e atos que descartam como irrele-vantes, acerca de o que os excita e o que os deixa sem entusiasmo ou indiferentes, o que os atrai e o que os repele, o que os estimula a agir e o que os incita a fugir, o que desejam, o que temem e em que ponto temores e desejos se equilibram mutuamente -, então a sociedade de consumidores representa um conjunto peculiar de condições existenciais em que é elevada a probabilidade de que a maioria dos homens e das mulheres venham a abraçar a cultura consumista em vez de qualquer outra, e de que na maior parte do tempo obedeçam aos preceitos dela com máxima dedicação. [...] A “sociedade de consumo”, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que pro-move, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumista, e rejeita todas as opções culturais alternativas.

Assim, Bauman (2008) afi rma que hoje se vive em uma sociedade de consumidores e que se deve seguir suas regras. Assim, nessa forma líquida, diluída da sociedade contemporânea, as relações sociais estão atreladas às relações de consumo. É nesse sentido que o autor explica que todos são consumidores e mercadorias de consumo, o que produz em qualquer lugar, pessoas descontextualizadas e despreocupadas com os interesses coletivos. Por isso é importante avaliar como o consumidor enfrenta as suas frustações na sociedade de consumo.

E nesse cenário alguns questionamentos tomam forma. Portanto, após a análise, ainda que inicial, da conjuntura pós-moderna, deve-se procurar entender como isso infl uência e repercute no direito, especialmente o penal.

PÓS-MODERNIDADE E SUAS INFLUÊNCIAS NO DIREITO PENAL

Em décadas recentes, os regimes penais em todo o mundo têm experimentado um processo de expansão contrário ao projeto de modernização e desenvolvimento vislumbrado pela ciência penal clássica construída no contexto do iluminismo. É preciso entender se há refl exos da condição pós-moderna nisso.

Costa (2010), interpretando a Teoria das Linhas Abissais de Boaventura de Sousa Santos, confi rma que o Direito Penal vive hoje um momento de transição, marcado por uma tendência expansionista. Tal tendência possui aspectos como a criação de novos bens jurídico-penais, a ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, a fl exibilização das regras de imputação e a relativização dos princípios político-criminais garantidores.

A vulnerabilidade do sujeito da pós-modernidade, inserido nessa forma líquida e diluída da sociedade contemporânea, descrita por Zygmunt Bauman, atrelada à crise geral civilizacional posta por Alain Touraine, é combustível para a inserção desse sujeito na criminalidade.

Na medida em que o sujeito se encontra imerso em uma sociedade de consumo, passa a ver no outro, naquele que comete um crime, naquele que toma o que é seu, um sujeito perigoso, um inimigo, o que incrementa, consequentemente, a sensação de insegurança na sociedade pós-moderna. A insegurança é também mercadoria no capitalismo avançado e, como consequência disto, ganha força o discurso por um direito penal mais amplo e severo, o

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que conta com o apoio popular. Contudo, a atual concepção da fi nalidade do Direito Penal, caracterizada pelas concep-

ções garantistas, encontra-se distante da percepção da realidade, já que uma verifi cação da his-tória mostra que o Direito Penal serviu (e continua servindo) de instrumento de exclusão social, afastando os sujeitos uns dos outros.

Seus mecanismos, por permitirem interferências das mais variadas ordens (e aqui se pretende incluir o apelo midiático e a opinião pública),

[...] o que deveria ser visto como qualidade, por propiciarem o processo de diálogo entre direito e sociedade, acabaram se transformando em instrumentos de grupos he-gemônicos. Estes interesses excludentes estabelecem-se desde o processo legislativo, olvidando os da grande parcela de excluídos, aos quais se faz sobrar, tão só, a submis-são à lei (BIANCHINI, 2009, p. 19).

Gomes (2016), ao aproximar as dimensões da opinião pública e da mídia com a produção legislativa penal, explica que há uma relação direta entre as atitudes punitivistas e o contato com os meios de comunicação que dedicam especial atenção à criminalidade, sobretudo se tais meios dispensam tratamento sensacionalista e preconizam severidade diante da prática de crimes.

De acordo com Pastana (2013, p. 78), há uma “estigmatização dos agentes e grupos envolvidos, reforçando e legitimando um quadro de exclusão social e instaurando novas formas de relações de poder”.

Sob tais circunstâncias, Bianchini (2009, p. 08) diz que,

No lugar de se perquirir acerca das causas da violência, para (bem) combate-las, a busca tem se limitado à satisfação de um desejo de vingança contra aquele que ofen-deu a sociedade ao praticar (ou ao ser acusado de praticar) um crime. A pena (e o direito penal) tem se prestado muito bem a tal (des)função.

Pastana (2007, p. 34-42) constata a “adoção, pelos recentes governos democráticos bra-sileiros, de uma política penal de exceção contrária às noções de democracia e cidadania e que coloca novamente a questão social como um caso de polícia” e acrescenta que:

Tal onipresença penal demanda reformas institucionais apresentadas como tentativas de dar conta do suposto aumento da criminalidade violenta e do sentimento de inse-gurança que se verifi ca no âmago da sociedade civil. A pressão da opinião pública, amplifi cada pelos meios de comunicação de massa, aponta para o aumento do contro-le penal, tendo como paradigma preferencial o fortalecimento e a severidade no trato com o crime e o encarceramento em massa das classes subalternas.

Todos esses fatores identifi cados na pós-modernidade considerados em conjunto con-vergem para a compreensão que identifi ca a prática do crime somente pelos “desclassifi cados”, o que resulta praticamente na criminalização da pobreza (BAUMAN, 1999).

No que se refere aos confl itos sociais, em virtude desse viés controlador, cria-se um círculo vicioso que produz um aumento exponencial da insegurança da população frente à

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violência e que legitima o aumento da repressão, ainda que de forma autoritária. Sem alterar os ritos democráticos o controle se expande através da edição interminável de leis penais incriminando novas condutas e do tratamento cada vez mais severo destinado ao infrator. Esse controle violento e discriminatório, de forma ambígua, passa a ser simultaneamente bombeiro e incendiário. No mesmo movimento, ele incentiva a desconfi ança, desqualifi ca qualquer solução que não seja a jurídica e apresenta seu único remédio: mais segregação e restrição de liberdade (PASTANA, 2007).

Nota-se, então, uma confusão entre as soluções para a criminalidade com as reações frente a este problema. Isso porque, a sociedade, diante da violência, mostra-se frágil, insegura e vulnerável. Dessa forma, acaba por apoiar ações policiais repressivas, o que leva a uma “legi-timação” do discurso punitivista e autoritário. Tal fenômeno faz com que o apoio da população, em relação ao rigor da repressão da criminalidade, acabe se confundido com um sentimento geral de vingança.

Adorno (1996, p. 21) afi rma que o medo do crime e a fragilidade do Estado em ve-lar pela segurança dos cidadãos e proteger-lhes os bens de consumo, materiais e simbólicos, convergem “para um único e mesmo propósito: o de punir mais, com maior efi ciência e maior exemplaridade” e questiona “por que o desejo obsessivo de punir, de punir mais e sempre com maior intensidade?”

Rocha (2002) explica que o Direito, como instrumento de controle social, visa realizar fi nalidades práticas e mostra-se variável de acordo com a conveniência da política social adota-do pelo Estado. A opção política faz nascer um discurso institucional de justifi cação que preten-de harmonizar os mecanismos de proteção aos valores tidos como mais importantes, ensejando, ainda, o nascimento de um contradiscurso, que exerce a crítica desses valores e denuncia a ilegitimidade do exercício do poder.

Nesse sentido, observa-se que a função desejável e a real fi nalidade do direito penal são, frequentemente, encobertas por processos dissimulados, caracterizando o que parte dos teóricos chamam de “função simbólica” do Direito Penal ou de “populismo penal legislativo”.

Zaffaroni (2012, p. 13) afi rma que:

Como em qualquer emergência, à medida que a situação vai se tornando insusten-tável, começa a operar-se a evasão mediante mecanismos negadores que, em nosso caso, aparentam conservar a antiga segurança, embora reconheçam-se problemas que costumam ser deixados de lado, através de uma delimitação discursiva arbitrária que evita confrontar a crise.

O que se quer salientar é a necessidade de manter uma perspectiva crítica da realidade social, cujo sentido, como lembram Iamamoto e Carvalho (2001, p. 19), é “tirar as fantasias que encobrem os grilhões para que se possam livrar deles, libertando os elos que aprisionam o pleno desenvolvimento dos indivíduos sociais”. Isso signifi ca, portanto, entender que a cultura pós-moderna pode ser um instrumento ideológico do capital para legitimar as novas formas de acumulação, para obscurecer tais confl itos e para diluir toda e qualquer perspectiva de transformação social.

Dessa forma, é possível identifi car a ampliação de práticas e políticas criminais

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autoritárias no direito penal contemporâneo como um dos refl exos da pós-modernidade. Isso porque, a conjuntura pós-moderna atual está profundamente ligada à necessidade de conter aqueles que não se ajustam nessa sociedade de consumo. Com isso, há uma tendência, a fi m de assegurar a continuidade desse capitalismo avançado, de se reprimir as classes perigosas, aplacando o sentimento de insegurança e vingança daqueles que vivem inseridos na sociedade de consumo e que seguem suas regras.

Todavia, não se pode deixar de ressaltar que, como expõe Hallsworth (2012, p. 186), há teóricos que “afi rmam que a mudança penal contemporânea não é pós-moderna e que o discurso da pós-modernidade não é apropriado para compreender as atuais mudanças penais”, no sentido de que nada mudou numa alegada ordem penal pós-moderna em comparação à ordem moderna.

De qualquer modo, não há como negar que as mudanças econômicas recentes infl uenciam as relações sociais e prejudicam os projetos característicos da modernidade iniciada com o iluminismo, e que essas mudanças, consequentemente, provocam uma crise nos regimes penais em todo o mundo e exigem um repensar a ciência jurídica penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diversas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais iniciadas nos anos 70, tais como a autonomia dos mercados fi nanceiros, as mudanças no contorno da soberania dos Estados nacionais, a acumulação fl exível, o poder da mídia televisiva, a sociedade de consumo, a crise geral do sujeito e as práticas penais legitimamente repressivas, refl etem uma ruptura contemporânea com o modelo de desenvolvimento capitalista do pós 2º Guerra Mundial, o que, para alguns teóricos, caracterizaria a pós-modernidade.

Nesse contexto, procurou-se, inicialmente, analisar as origens e os sintomas da pós-modernidade que, para os teóricos que a aceitam, surge com o esgotamento do projeto iluminista de modernidade inaugurado na Europa do século XVII. Assim, buscou-se no arcabouço teórico de Perry Anderson, Boaventura de Souza Santos, Alain Touraine e Zygmunt Bauman os fundamentos para sustentar a análise. Isso para tentar entender se a tendência contemporânea de um direito penal expansionista também é um refl exo da conjuntura pós-moderna e do capitalismo avançado.

Assim, foi possível verifi car que a vulnerabilidade do sujeito da pós-modernidade e a crise geral civilizacional aparecem como combustíveis para a inserção desse sujeito na criminalidade. Consequentemente, a insegurança, também como mercadoria no capitalismo pós-moderno, faz com que o sujeito passe a ver no outro, naquele que comete um crime, um sujeito perigoso, o que aumenta a sensação de insegurança na sociedade pós-moderna.

Hoje, quando uma nova utopia se faz necessária, percebe-se que o fenômeno da criminalidade e a sensação de insegurança geram uma disseminação do medo e da violência, ressaltado pelas notícias veiculadas pela televisão e grandes mídias. Dessa forma, recorre-se ao direito penal como meio efi caz de controle do crime, crescendo o apoio popular a legislações penais mais rígidas, o que lhe confere ares de legitimidade.

É nesse contexto que práticas criminais autoritárias e severas ganham legitimidade. O

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discurso político adotado é punitivo e é frequente a discussão sobre a redução da maioridade pe-nal, sobre a criminalização dos movimentos sociais, sobre a instituição da pena de morte, sobre a prisão perpétua, sobre o aumento das penas dos crimes já existentes, isto é, sobre medidas pu-nitivas mais severas para aqueles que não superam suas frustações na sociedade de consumo.

Por fi m, ressalta-se que este trabalho se trata de um esboço, pois ainda há a necessidade de aprofundar a concepção do direito penal na pós-modernidade. Não há aqui o objetivo de esgotar a temática, mas a tentativa de identifi car sintomas sociais e culturais que ajudariam a compreender o direito penal e o discurso da emergência evidenciado no fenômeno da crimina-lidade contemporânea.

REFERÊNCIAS

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BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BIANCHINI, Alice. Política Criminal, Direito de punir do Estado e fi nalidades do Direito Penal, 2009. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp Rede LFG.

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GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal legislativo: a tragédia que não assusta as sociedades de massas. Salvador: Juspodivum, 2016.

HALLSWORTH, Simon. A questão da punição pós-moderna. In: CANÊDO, Carlos; FONSE-CA, David S. (ORG.). Ambivalência, contradição e volatilidade no sistema penal. São Paulo: Editora UFMG, 2012, p. 185-209.

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