o direito penal do inimigo e sua incompatibilidade com o estado democrático de direito

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Page 1: O Direito Penal do Inimigo e sua Incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito

Revista de Crítica Jurídica Periódico quadrimestral de crítica ao direito

vol. 1 – maio-agosto/2009 – ISSN 1984-9400 O Direito Penal do Inimigo e sua Incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito - Autor: Ronny Aparecido Alves Almeida

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O Direito Penal do Inimigo e sua Incompatibilidade com o Estado

Democrático de Direito

Autor: Ronny Aparecido Alves Almeida Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal

Advogado

A teoria do Direito Penal do Inimigo foi formulada pelo doutrinador alemão

Günther Jakobs a partir de 1985 como forma de combater a criminalidade e dar mais liberdade ao

Estado em sua ação preventiva.

A referida teoria está baseada em alguns pilares, que podemos sintetizar em

três: 1. garantir uma punição antecipada ao inimigo; 2. permitir uma desproporção da pena em

relação ao delito cometido e, nesse sentido, limitar as garantias processuais; 3. permitir a criação de

leis penais severas especialmente para o que ele convencionou chamar de “clientela”.

Ao se referir à clientela, o ilustre doutrinador denominou assim aqueles

criminosos contumazes, tais como traficantes de drogas, terroristas, homem bomba, criminosos

organizados, entre outros. A partir desse conceito, Jakobs define o inimigo como alguém que não

pode ser considerado um cidadão, não pode ter os mesmos direitos que um cidadão tem ao infringir

o direito.

Daí que, para termos uma correta compreensão da teoria do inimigo, necessário

se faz perceber a distinção entre inimigo e cidadão. Segundo Jakobs, o cidadão deve ser submetido

a um julgamento adequado, seguindo todas as regras e garantias que o regime democrático

determina, enquanto que o inimigo deve ser submetido a um julgamento sumário, rígido, pois

representa o mal, um perigo ao Estado.

A teoria do escritor alemão preconiza que o inimigo deve ser posto sob a tutela

permanente do Estado, deve perder o “status” de cidadão. Ele não é capaz de voltar a viver em

sociedade, de se adaptar à vida sob o manto estatal e respeitar o direito.

O pensamento de Jakobs vai ao encontro dos mais aviltados, apressados que,

diante do “iminente mal”, exigem uma punição severa e rápida.

Os episódios de 11 de setembro de 2001, em que terroristas destruíram

milhares de vidas, incentivaram e deram muita força à teoria do inimigo. Nesse diapasão,

recordemos que os Estados Unidos aprovaram leis que permitiram que o governo realizasse

diversos procedimentos investigatórios que feriam diversas garantias naturais inerentes a todo o

cidadão, entre elas a intimidade. Entretanto, em nome da punição ao inimigo número 1 do mundo,

abriu-se a possibilidade de a polícia governamental invadir a vida privada em busca desse inimigo

do Estado.

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Outro exemplo americano que ilustra magnificamente esse pensamento é a

prisão americana de Guantánamo, em que se mantém presos diversos “inimigos” sem um

embasamento jurídico adequado, em que não se garante os procedimentos processuais admitidos em

todos os países democráticos, um verdadeiro limbo jurídico.

Temos ainda o caso da Inglaterra, que editou diversas leis antiterroristas que

foram declaradas inconstitucionais pela justiça inglesa.

No Brasil, a mídia e a opinião pública são sempre muito críticas aos

procedimentos processuais penais. Exigem uma punição aos criminosos, não sem razão, posto que

nosso Poder Judiciário não está devidamente estruturado para receber tantas ações quanto tem

recebido diariamente. Entretanto, a solução não é simplesmente abreviar os procedimentos legais,

diminuindo as garantias processuais e principiológicas, mas injetar recursos e ampliar o número de

julgadores.

O risco que se corre na aplicação da teoria do direito penal do inimigo é que a

prática, ao menos no Brasil, nem sempre é fiel à teoria. Registre-se que a teoria, por si só, já é

bastante rígida e desmerecedora de aplausos, sob o ponto de vista do cumprimento das garantias.

Admitir esse pensamento em nosso país significa quase a condenação sumária do réu inimigo, em

um sistema que apresenta deficiências, que tem uma grande influência da mídia que busca sempre

abreviar os procedimentos e exige a condenação de quem quer que seja como forma de afastar a

impunidade.

Nem sempre a rapidez e a própria punição em si representam a justiça. Não se

pode associar, sem uma análise mais aprofundada, a ampla condenação do criminoso ao conceito de

justiça sem o respeito aos princípios e garantias constitucionais e legais, nem se pode permitir ao

Estado fazer qualquer coisa nessa busca pela condenação permitindo-o utilizar expedientes

excepcionais como a interceptação telefônica, hoje amplamente deferida pelo Judiciário, invasão de

escritórios de advocacia, num flagrante desrespeito ao direito de defesa, prisões cautelares em

demasia etc. Esses já são sintomas da teoria do direito penal do inimigo, em que há uma supressão

de garantias em nome da punição do criminoso, em nome da segurança do Estado.

A punição do criminoso e a segurança do Estado são de fato muito relevantes,

mas não podem ser alcançadas a todo custo, sob pena de ferir a mais lídima Justiça, aquela que

tanto buscamos e, nessa mesma esteira, devemos sopesar que a justa condenação só pode ser

alcançada seguindo os princípios amplamente consagrados no mundo democrático.

Não podemos admitir que a legalidade, nos seus aspectos material e formal, o

devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, sejam suprimidos sob qualquer argumento.

São garantias que levaram séculos para serem consolidados e, especialmente em nosso país,

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demoraram ainda mais para serem elevados à condição de princípios.

Grande responsabilidade tem o Poder Judiciário, especialmente as cortes

superiores, em defender nossos princípios e garantias processuais constitucionais penais, de maneira

a impedir que leis contrárias ao nosso sistema venham a ser aplicadas.

Pode-se afirmar: há grande semelhança entre os conceitos do direito penal do

inimigo e a doutrina alemã nazista. Os objetivos são os mesmos: segregar os maus e proteger os

bons.

Essa é uma teoria ultrapassada, perdida no tempo, que deve ser combatida

pelos estudiosos, acadêmicos, profissionais, sob pena de admitirmos o regime de exceção em pleno

vigor da democracia.

Referências Bibliográficas

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1 ed., São Paulo: Edipro, 2000; BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 8 ed. ver. E atual., São Paulo: Saraiva, 2005. GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou inimigos do direito penal). Revista Jurídica Unicoc, Ano II, n.º2, 2005. ISSN 1807-023X. GOMES, Luiz Flávio. Muñoz Conde e o Direito Penal do inimigo. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 826, 7 out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7399>. Acesso em: 02 abr. 2009. JAKOBS, Günter e CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed., São Paulo: Atlas, 2004; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1992, Vol. II.