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O DIREITO DE DEFESA EM
MOÇAMBIQUE*
“Nunca ande pelo caminho
já traçado, pois ele conduz
somente até onde os outros
já foram”.
Alexandre
Gaham Bell
Em primeiro lugar queremos agradecer à
Ordem dos Advogados de Moçambique, na pessoa
do Digníssimo Bastonário Dr. Tomás Timbane,
pelo convite que nos foi endereçado para apresentar
o tema o “direito de defesa em Moçambique” e,
simultaneamente, pela oportunidade de podermos
partilhar com os presentes algumas reflexões
pessoais sobre um tema tão candente e tão
importante como é este.
A apresentação do referido tema perante tão
magna assembleia é sem dúvidas um privilégio.
Mas igualmente, e pelas mesmas razões, uma tarefa
difícil e polémica. Conscientes desse facto,
apresentamo-nos perante vós com objectivos
modestos que não são mais do que, através desta
apresentação, provocar o pretendido debate.
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Julgamos que as conclusões e recomendações
colectivas saídas desse debate é que constituirão a
essência utilitária do tema em questão. Esta nossa
tarefa torna-se ainda mais espinhosa se
considerarmos que esta apresentação constitui o
“pontapé de saída” das apresentações e
intervenções que serão feitas ao longo destes dois
dias de duração do II Congresso para a Justiça.
Como reza uma frase muito usada neste tipo de
eventos “ o custa mais a fazer é a primeira
intervenção”.
O tema “o direito de defesa em Moçambique”
está enquadrado no 1º painel que se subordina ao
grande tema de “a efectividade dos direitos dos
cidadãos”. Neste contexto, é legitimo entender que
a intenção dos organizadores seria a de propiciar
uma abordagem que fosse para além da mera
descrição teórico-formal da previsão legal do
direito de defesa em Moçambique. Falar sobre a
efectividade dos direitos dos cidadãos obriga-nos a
ir muito para além do indispensável quadro teórico-
legal e embrenharmo-nos fundo na realidade
prática do exercício efectivo e pleno dos direitos
pelos cidadãos - in casu do direito de defesa.
Ninguém ignora que, também na área da
administração da justiça, a nossa realidade não é
pródiga em matéria de justaposição entre a previsão
formal dos direitos dos cidadãos e a sua
efectividade.
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O princípio que está na base do direito de
defesa é um conceito antigo na história da
humanidade. No Evangelho de São João, Capítulo
7, Versículo 51, encontramos a seguinte pergunta: “
Porventura condena a nossa lei um homem sem
primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?”.
Já no direito romano, o conceito foi condensado no
aforismo latino nemo inauditus damnari potest
(ninguém deve ser condenado sem ser ouvido).
Na ordem jurídica moçambicana o direito de
defesa têm uma dimensão constitucional. A norma
contida no artigo no artigo 62º/1 da Constituição da
República de Moçambique (CRM) determina que o
Estado moçambicano garante aos arguidos o
DIREITO DE DEFESA e garante ainda os
correlatos direitos à assistência jurídica e ao
patrocínio judiciário.
O primeiro aspecto que queremos destacar
prende-se com a formulação, que reputamos
infeliz, do legislador constituinte moçambicano ao
usar a restritiva expressão “arguido” para designar
o beneficiário do direito de defesa. Esta opção
terminológica pode induzir à errada interpretação
de que a dignidade constitucional do direito de
defesa está apenas circunscrita à posição do
arguido no processo penal. Parece-nos que norma
constitucional acima referida carecia de melhor
técnica legislativa para expressar convenientemente
o seu sentido decisivo. Não tendo sido assim,
impõe-se um exercício de interpretação extensiva
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que amplie o seu alcance e lhe dê a devida
profundidade. Neste sentido, é nosso entendimento
que o legislador constituinte quis, ainda que
expressando-se de forma imperfeita, estender a
garantia constitucional do direito de defesa a todos
os cidadãos. Abrangendo igualmente todos os tipos
de processos - judiciais e não judiciais – nos âmbito
dos quais o cidadão seja acusado de um delito
passível de aplicação de uma sanção jurídica de
qualquer natureza.
Em nossa opinião, o direito de defesa é
também corolário do princípio da tutela
jurisdicional efectiva consagrado no artigo 71º da
Constituição moçambicana. Porquanto, uma
verdadeira tutela jurisdicional efectiva pressupõe
sempre a existência do direito de defesa, do direito
à igualdade de tratamento e à igualdade de armas,
do direito do cidadão ver o respectivo caso
apreciado por um juiz imparcial, do direito ao
recurso e do direito à presunção de inocência, entre
outros.
Nesta linha, usando como respaldo, por um
lado a norma constitucional que regula
directamente o direito de defesa e por outro o
princípio da tutela jurisdicional efectiva, podemos
dizer com segurança que a Constituição
moçambicana, bem como a legislação infra
constitucional que a concretiza, asseguram aos
cidadãos um amplo direito de defesa.
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Com efeito, tal como em Moçambique,
hodiernamente a maior parte das Constituições dos
países que se definem como Estados de Direito
consagram de forma directa ou indirecta este
princípio do amplo e pleno direito de defesa. A
título de meramente ilustrativo referimos os
comandos contidos no artigo 5º da Constituição
Federal brasileira e no artigo 32º da Constituição da
República portuguesa.
Entretanto, e como atrás tivemos a ocasião de
sublinhar, mais do que a apresentação da matriz
teórico-legal do direito defesa em Moçambique,
importa ir mais longe - e mais fundo - e apresentar
uma reflexão sobre a efectividade do gozo deste
direito pelos cidadãos.
Para tanto, e para análise da efectividade do
exercício do direito de defesa em Moçambique,
escolhemos 5 factores que em nosso modesto
entender influenciam na qualidade do exercício
efectivo do direito de defesa.
A saber:
1. A (in)dependência do poder judicial.
2. A (des) igualdade de armas no processo
penal.
3. A corrupção nos tribunais.
4. O (des)respeito pela prerrogativas
funcionais do Advogado.
5. A defesa dos cidadãos feita por não
Advogados.
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I. A (in) dependência do poder judicial:
De acordo com os princípios democráticos
vertidos na Constituição da República de
Moçambique, o poder judicial deve ser
independente - e interdependente - dos demais
poderes do Estado, com particular realce para os
poderes executivo e legislativo (art. 134º CRM).
Cá entre nós, é quase pacífica a posição de que a
nossa Constituição atribui um excesso de poderes
ao Presidente da República, na sua qualidade de
Chefe do Estado, para nomear os principais
titulares do topo da pirâmide dos órgãos de
administração da justiça. O Chefe do Estado têm, à
luz da Constituição moçambicana, poderes para
nomear o Presidente e o Vice-Presidente do
Tribunal Supremo; o Presidente do Conselho
Constitucional e o Presidente do Tribunal
Administrativo. Têm também poderes para nomear,
exonerar e demitir o Procurador-Geral da
República e o Vice Procurador-Geral. Nomeia
ainda os Juízes do Tribunal Supremo, os Juízes do
Tribunal Administrativo e os Procuradores-Gerais
Adjuntos (ouvidos os respectivos Conselhos
Superiores).
Com efeito, estes superpoderes do Chefe do
Estado (não se olvide que o Presidente da
República é na nossa realidade política,
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simultaneamente, o Presidente do partido político
mais votado) vulnerabilizam o poder judicial; quer
no que diz respeito à pretendida independência,
quer ainda no que toca à desejada
interdependência. Na medida em que este
mecanismo constitucional permite que possam ser
nomeados titulares de cargos permeáveis à
influência política ou, porventura, eivados de um
sentimento de gratidão para com quem os nomeou,
ambos aspectos que podem condicionar a sua
actuação independente nos cargos para que foram
nomeados.
A este mesmo respeito, relembramos duas das
principais recomendações finais do I Congresso
para a Justiça que prescreviam o seguinte:
“Urge a inclusão no texto constitucional de
comandos normativos relacionadas com a
selecção dos candidatos a titulares dos órgãos
da administração da justiça, os quais devem
ser eleitos entre os seus pares com recurso a
critérios de transparência.
“Evitar a promiscuidade entre poder judicial e
outros poderes externos (v.g. Governo,
Assembleia da República, Comunicação
social, partidos políticos, sociedade)”.
Estas contribuições colectivas produzidas por
aquele referido Congresso revelam claramente a
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percepção de em Moçambique há interferências do
poder político no poder judicial - as quais
assumem-se como obstáculos à independência
deste último. Delas também se infere que as
referidas influências manifestam-se através da
selecção e nomeação dos candidatos a titulares de
órgão da adminsistração da justiça, que é feita sem
obediência a critérios de transparência, de mérito e
de democracia.
Por outro lado, em Moçambique quem aprova os
orçamentos dos tribunais é a Assembleia da
República que é, naturalmente, um órgão de
soberania de natureza política. Normalmente, o
Orçamentos Gerais do Estado aprovados - ano após
ano - não reflectem prioridade na concessão de
meios financeiros suficientes ao poder judicial para
que este realize o seu trabalho com eficácia. Como
sabemos das regras de experiência de vida, é
possível controlar ou condicionar o fluxo e a
efectividade de resultados de qualquer entidade
concedendo-lhe poderes formais; mas, e em
paralelo, permitindo a existência de restrições a
nível dos meios financeiros necessários para a
materialização eficaz desses mesmos poderes.
Aliás, sobre este mesmo assunto o alerta já foi
dado pelo anterior Presidente do Tribunal Supremo,
numa cerimónia de abertura do ano judicial não
muito distante, onde propôs que o cálculo do
orçamento dos tribunais deveria ser retirado da
disponibilidade do poder politico e passar a ser
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objectivamente fixado em termos percentuais
mínimos na Constituição da República.
Em Adição, este posicionamento também foi
enfatizado numa das recomendações finais do I
Congresso para a Justiça que determinava o
seguinte: “Urge a inclusão no texto constitucional
de dispositivos que estabeleçam um mínimo
percentual do Orçamento do Estado que deve ser
adjudicado ao poder judicial. Esta solução
contribuirá para uma maior e desejável
independência funcional do poder judicial em
relação aos poderes executivo e legislativo”.
Julgamos que as vicissitudes atrás evidenciadas
provocam uma situação de desnivelamento nas
relações reais de poder entre os poderes do Estado
e contribuem para gerar um poder politico forte -
forte demais em nossa opinião - e um poder judicial
fraco – fraco demais em nosso entender.
Stephen Covey defende que o ciclo de
progressão da maturidade da pessoas e das
instituições inicia na dependência, passa para a
independência e só evoluindo é que pode alcançar
aquilo que considera a fase suprema da maturidade
que é a da interdependência. Para Covey só pode
ser interdependente quem já passou pela fase da
independência e evoluiu. Para o mesmo autor não
pode ser interdependente quem ainda é dependente.
Parece-nos um raciocínio brilhante e lógico, na
medida em que não se pode almejar atingir um
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estado de interdependência ( em que o paradigma é
a colaboração, a sinergia, a ideia de “ nós em
conjunto podemos realizar coisas grandiosas”)
enquanto nem sequer se atingiu a independência
(cujo padrão comportamental associa-se à livre
escolha, à possibilidade de decidir de acordo com
as mesmas escolhas sem ajuda ou influência de
outrem).
Ora, os problemas de independência do poder
judicial tem reflexos negativos evidentes no
execício do direito de defesa dos cidadãos. Basta
pensarmos numa situação em o poder político
esteja directa ou indirectamente interessado em que
um cidadão que preste contas à justiça seja
castigado. Neste tipo de caso, o exercício do direito
de defesa do cidadão em causa poderá vir a ser
severamente prejudicado pela permeabilidade a
pressões politicas que o tribunal onde o cidadão é
julgado vier a revelar.
Nestes termos, julgamos que não será possível
garantir um efectivo e permanente exercício do
direito de defesa em Moçambique enquanto o
poder judicial não for efectivamente independente.
II. A (des) igualdade de armas no processo
penal.
No processo penal moçambicano, e na
consequente prática judicial, existe um
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desnivelamento acentuado entre os poderes
concedidos à defesa do Réu e os atribuídos à sua
acusação. A estrutura inquisitória do nosso
processo penal contribui de sobremaneira para que
este desequilíbrio ocorra.
A prática demonstra que acusar um cidadão é
considerada uma actividade mais importante do
que a sua defesa. O poder de acusar agiganta-se em
relação ao direito do acusado de defender-se. Na
tramitação do processo penal, o Procurador da
Republica está normalmente dotado de mais meios,
mais poderes e mais prerrogativas processuais do
que o Advogado. Neste combate jurídico desleal,
verifica-se uma desigualdade de armas muito
acentuada em desfavor do Réu e seu defensor,
reduzindo as possibilidades reais do exercício
pleno do direito de defesa por parte do cidadão
visado.
Só para dar um exemplo, o Código do Processo
Penal moçambicano define que a fase da instrução
preparatória é secreta. Contudo, tal secretismo é
normalmente exercido contra o arguido e seu
defensor, que na maior parte das vezes são
impedidos de consultar os elementos trazidos aos
autos. Nesta fase processual, nem o arguido e nem
o seu advogado podem iniciar a preparação da
defesa a uma eventual acusação; pois, em regra
desconhecem os elementos que constam do
processo e que servirão de base à mesma. A
acusação parte com uma vantagem considerável
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sobre a defesa, vantagem essa obtida a partir de um
secretismo que julgamos ser contrário à
Constituição, por violar exactamente as regras do
Direito de Defesa nela consagradas.
Na nossa opinião, o direito de defesa
reconhecido ao arguido não pode ser entendido
como passível de ser exercido apenas em algumas
fases do processo penal e proibido noutras. Um
amplo e pleno direito de defesa deve ser exercido
em todas as fases do processo. Para nós, o
indiciado não deve ficar à escuras, impedido de
tomar conhecimento dos elementos que contra si
são secretamente recolhidos pela investigação,
aguardando cegamente que termine a instrução
preparatória do processo para tomar conhecimento
da matéria indiciária que contra ele foi recolhida.
Soma-se isto as más práticas processuais de
alguns Juízes criminais que desnivelam ainda mais
os pratos da balança. Por exemplo, vezes há em que
os requerimentos formulados pela defesa ficam
durante muito tempo sem qualquer despacho ou
acção da parte dos referido Juízes, em prejuízo do
direito de defesa que é constitucionalmente
reconhecido aos arguidos. Verifica-se também que
nestes casos há muito maior diligência e celeridade
do Juiz em atender os actos processuais
promovidos pelos Procuradores da República do
que os solicitados pelo Advogado do Réu.
Constata-se, por vezes, que os requerimentos e
promoções dos Procuradores merecem maior
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consideração, são despachados e executados pelos
Juízes em prazos muito mais curtos do que os
requerimentos dos Advogados.
Neste cenário, o exercício de um amplo e
pleno direito de defesa do Réu ficará condicionado
pela desigualdade de armas entre o representante da
acusação e o representante da defesa e pelas más
práticas judiciais.
Por isso, em bom rigor, não se pode falar de
um processo justo e equitativo e nem de um amplo
e pleno exercício do direito de defesa quando
ocorram no processo acentuadas desigualdades de
armas entre quem acusa o Réu e quem o defende.
III. A corrupção nos tribunais.
Temos assumidamente um problema sério de
corrupção nos tribunais moçambicanos.
Aliás, quer a Ordem dos Advogados, quer o
Procurador Geral da República cessante, quer ainda
o novo Presidente do Tribunal Supremo, jvieram
publicamente reconhecer a existência do fenómeno
da corrupção nos tribunais e pugnar pela urgência
do seu combate.
A este propósito, a conclusão do I Congresso
para a Justiça foi a seguinte: “A conclusão geral do
debate indica que o combate efectivo contra a
corrupção no judiciário ainda não descolou das
palavras e promessas das lideranças políticas do
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Estado e das magistraturas. Ou seja, há alguma
crítica discursiva contra a corrupção, porém, não
estão a ser postos em prática mecanismos
exequíveis, eficientes e transparentes de combate
ao fenómeno no judiciário”.
É escusado referir aqui os efeitos nefastos da
corrupção. Seria igualmente redundante lembrar
que estendida ao sistema judicial tais efeitos são
ainda piores e mais perversos. Porquanto,
inutilizam a última linha de combate à corrupção
que qualquer Estado de Direito dispõe - que são os
tribunais.
Não obstante, queremos clarificar que quando
falamos de corrupção nos tribunais não estamos
apenas a referir-nos à corrupção que envolva tão-
somente a participação de Juízes e demais
funcionários judiciais – aliás tal nem seria possível,
pois para haver corruptos tem de haver corruptores.
Quando nos referimos à corrupção nos tribunais,
estendemo-la ao envolvimento das partes, dos
advogados, dos Procuradores da República, da
Policia, entre outros. Denominamo-la de
especificamente de corrupção nos tribunais, porque
é nos tribunais que os processos são julgados e
decididos e onde normalmente o fenómeno assume
uma dimensão decisiva.
Assim, é fácil de perceber que alguém que presta
contas à justiça e que tenha o azar (não muito raro)
de ter de se defender num processo judicial
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contaminado pela corrupção, certamente não
conseguirá exercer eficazmente o seu direito de
defesa.
Por tudo isto, a corrupção nos tribunais é para
nós um factor que impede o exercício efectivo do
direito de defesa em Moçambique.
IV. O desrespeito pela prerrogativas funcionais
do Advogado.
Para exercer o seu direito de defesa o cidadão
deve ser representado por um profissional - que
normalmente deveria ser um Advogado - a quem a
lei confere determinadas prerrogativas funcionais
que lhe permitem assegurar a efectividade do
exercício pleno e amplo de defesa pelo seu
constituinte. Logo, estas prerrogativas funcionais
não devem ser vistas como meros privilégios,
honrarias e obsequiosidades do próprios
Advogados. Devem ser entendidas como garantias
concedidas aos cidadão por aqueles representados.
É sob esse prisma que o artigo 63º/1 da nossa
Constituição preceitua que “O Estado assegura a
quem exerce o mandato judicial, as imunidades
necessárias ao seu exercício e regula o patrocínio
forense como elemento essencial à administração
da justiça”.
A título de exemplo, para a garantia do
exercício do patrocínio judiciário sem
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condicionalismos ou restrições impostas por outros
actores da Administração da Justiça, a lei
moçambicana estabelece expressamente a
inexistência de hierarquia ou subordinação entre os
Advogados, Procuradores e Juízes (artigo 59º/1
EOAM). Uma outra perrogativa funcional do
Advogado, que também visa garantir a efectividade
do exercício do direito de defesa do cidadão por ele
representado, é o direito de reclamação contra
qualquer prática ilícita limitante da actuação, do
Advogado. Esta prerrogativa funcional materializa-
se através da obrigatoriedade de acesso
incondicional do Advogado à acta das audiências
ou das diligências judiciaispara lavrar por escrito a
competente reclamação, que para todos efeitos
deve ser havida como uma arguição de nulidade.
Por isso, e para isso, a lei proíbe de forma expressa
e taxativa que tal acesso do Advogado à acta seja
por qualquer forma vedado (art. 60º, nº 1, 2 e 3
EOAM).
Creio que com estes 2 exemplos torna-se mais
fácil perceber que as a ideia de que prerrogativas
funcionais do Advogado não visam privilegiá-lo
pessoalmente; mas antes - e sobretudo - conceder-
lhe poderes para que este possa garantir ao seu
constituinte o exercício efectivo do direito de
defesa que lhe assiste.
Se por um lado a nossa legislação garante
teoricamente ao Advogado perrogativas funcionais
que lhe permitem cumprir com o seu múnus
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profissional, na prática as coisas tendem a
acontecer de forma diferente.
Em Moçambique, o Advogado ainda é visto
como uma mistura de ovelha-negra e parente pobre
dos órgãos de administração da justiça. São
frequentes as reclamações de Advogados contra
actuações dos actores estatais da administração da
justiça que condicionam ou mesmo amputam as
suas prerrogativas funcionais, em prejuízo
manifesto dos direitos dos cidadãos representados.
Não são raras as vezes que o Advogado é
impedido de conferenciar com o seu constituinte
detido em estabelecimento policial, com a mera
alegação de que “o advogado deve intervir apenas
nos tribunais”.
Já nos tribunais, começa a despontar uma certa
tendência, felizmente ainda minoritária, de não se
reconhecerem as prerrogativas funcionais dos
Advogados como legítimas. Por isso, existem
vários casos de desrespeito destas prerrogativas.
Não é estranho para muitos de nós o relato de casos
nos quais certos Juízes impedem os Advogados de,
na defesa dos seus constituites, expressarem-se
livremente. Outros recusam o acesso dos
Advogados às actas de audiências para lavrarem as
reclamações que julgarem convenientes, sob a
alegação de impertinência. Casos há em que na
batalha pelo respeito dessas prerrogativas
funcionais os Advogados são expulsos da sala de
audiências. E tudo isso quando o pior não acontece:
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e o pior é o Advogado ser preso, em exercício de
funções, por exigir o respeito pelas suas
prerrogativas funcionais e, consequentemente, pelo
amplo e pleno direito de defesa que assiste ao seu
constituinte.
Sempre que ocorram agressões às
prerrogativas profissionais do Advogados é
imperioso reflectirmos sobre as respostas às
seguintes perguntas: (i) Em última instancia, quem
fica lesado com estas práticas desrespeitosas: o
Advogado ou o cidadão por ele representado? (ii)
Nos casos em que isso aconteça, pode ainda falar-
se de um efectivo exercício do direito de defesa?
Ora, da mesma maneira que a independência, a
inamovibilidade e a irresponsabilidade dos Juízes,
bem como a autonomia do Ministério Público, não
são questionáveis, precisamente porque são
entendidas como garantias da sociedade; as
prerrogativas funcionais dos Advogados também
não deveriam sê-lo, por configurarem garantias dos
cidadãos que prestam contas à justiça ou que
clamam por justiça.
Sintetizando: diremos que qualquer situação de
desrespeito pelas prerrogativas funcionais dos
Advogados limita, condiciona ou amputa o
exercício pleno e amplo do direito de defesa do
cidadão por ele representado.
V. O exercício da defesa por não Advogados.
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Uma das reminiscências do modelo de justiça
popular adoptado logo após a independência
nacional é a prática de actos próprios da profissão
por não advogados.
Talvez seja útil lembrar que um pouco antes da
independência nacional, ainda durante o Governo
de Transição, foi proibido o exercício da
Advocacia livre e independente em Moçambique.
Em consequência, os Advogados que na altura
existiam abandonaram o País, maioritáriamente
com destino à ex-colónia, para poderem continuar a
exercer a sua profissão.
Em substituição, função da defesa foi
acometida a cidadãos voluntariosos mas
despreparados; que não tinham licenciatura em
Direito e que para exercerem a função da defesa de
cidadãos eram submetidos a uma formação prática
de curtíssima duração. Estes técnicos
subordinavam-se ao Governo e eram congregados
num organismo estatal que se encarregava de
organizar esse serviço revolucionário de apoio
judiciário.
Mais tarde, e para agravar a situação, foi
encerrada por razões políticas a única Faculdade de
Direito existente no País: A Faculdade de Direito
da Universidade Eduardo Mondlane.
Mais tarde ainda, mas não tarde demais, já no
contexto das mudanças operadas pela Constituição
da República de 1990 que previa a criação de um
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Estado de Direito e de um modelo de justiça
respeitador dos direitos, liberdades e garantias
individuais dos cidadãos, em Setembro de 1994 foi
criada a Ordem dos Advogados de Moçambique.
Em 1996, esta Ordem iniciou a inscrição
obrigatória e o licenciamento dos primeiros
Advogados.
Entretanto, para garantir que não houvessem
situações de falta de operadores para garantir o
patrocínio judiciário, foi estabelecido no Estatuto
da Ordem dos Advogados de Moçambique um
mecanismo paralelo no qual técnicos e assistentes
jurídicos vinculados ao Estado exerciam funções
em igualdade de condições com os Advogados.
Esta realidade perdura até aos dias de hoje. Em
quase toda a extensão do território nacional,
técnicos e assistentes jurídicos do Instituto de
Patrocínio e Assistência Judiciária (IPAJ) exercem
a sua profissão em igualdade de condições com os
Advogados. Aliás, doutra forma não poderia ser,
visto que – fruto dos condicionalismos e das
opções políticas atrás descritas – o país conta com
cerca de 1.200 Advogados para servir uma
população de 23.000.000 de moçambicanos.
Por outro lado, é preciso destacar que mais
recentemente já há técnicos do IPAJ licenciados em
Direito. Alguns destes inscreveram-se no Exame
Nacional de Acesso da Ordem dos Advogados de
Moçambique e passaram, tendo obtido a qualidade
de Advogados.
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Todavia, ainda assim, grande parte dos
técnicos que prestam o patrocínio judiciário em
Moçambique não são Advogados e a maioria destes
nem sequer possui uma licenciatura em Direito.
Esta situação tem como corolário a fraca e
deficiente qualidade da assistência jurídica e
judiciária prestada aos cidadãos.
É exactamente por causa da má qualidade da
assistência jurídica e judiciária prestada aos
cidadãos, sobretudo aos mais pobres, que não se
pode falar, também neste domínio, de um efectivo
exercício do direito de defesa.
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Para análise da (in)efectividade do exercício
do direito de defesa em Moçambique reflectimos
apenas sobre estes 5 factores, dadas as limitações
de tempo de que dispomos. Pois, com certeza que
existem mais factores que contribuem para
inefectividade do exercício do exercício deste
direito no nosso país.
Aqui chegados, pode-se perguntar se não
existem situações concretas em que um
determinado cidadão exercite efectivamente o
direito de defesa? Diremos taxativamente que
certamente existem!
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Mas, a ocorrência de tais situações depende da
conjugação de um conjunto de circunstâncias
favoráveis que ainda são de difícil cumulação.
Porém, o que preocupa não é só a quantidade de
casos em que estas condicionantes ao exercício
efectivo do direito de defesa ocorrem; mas também
a imprevisibilidade sobre onde, quando e como as
descritas situações podem acontecer.
Em síntese: a nosso ver não pode haver
efectividade do exercício do direito de defesa em
Moçambique enquanto este depender de um
aparelho de justiça que não é independente, que
esteja manchado pela corrupção, que tolere
situações de desrespeito pela perrogativas
funcionais dos Advogados, que permite que os
defensores dos cidadãos manejem “armas”
manifestamente inferiores àquelas que são usadas
pela acusação e, por último mas não menos
importante, onde o patrocínio judiciário dos
cidadãos é maioritariamente assegurado por não
Advogados.
Terminamos esta apresentação com uma frase
de Albert EINSTEIN que diz o seguinte:
“Os problemas significativos que
enfrentamos não podem ser
resolvidos no mesmo nível de
pensamento em que estávamos
quando os criamos”.
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Muito Obrigado.
Maputo, a 19 de Novembro de 2014.
*Gilberto Correia.
Advogado
Bastonário da Ordem dos Advogados de
Moçambique (2008-2013)