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1 O DIREITO DE DEFESA EM MOÇAMBIQUE* Nunca ande pelo caminho já traçado, pois ele conduz somente até onde os outros já foram”. Alexandre Gaham Bell Em primeiro lugar queremos agradecer à Ordem dos Advogados de Moçambique, na pessoa do Digníssimo Bastonário Dr. Tomás Timbane, pelo convite que nos foi endereçado para apresentar o tema o “direito de defesa em Moçambiquee, simultaneamente, pela oportunidade de podermos partilhar com os presentes algumas reflexões pessoais sobre um tema tão candente e tão importante como é este. A apresentação do referido tema perante tão magna assembleia é sem dúvidas um privilégio. Mas igualmente, e pelas mesmas razões, uma tarefa difícil e polémica. Conscientes desse facto, apresentamo-nos perante vós com objectivos modestos que não são mais do que, através desta apresentação, provocar o pretendido debate.

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O DIREITO DE DEFESA EM

MOÇAMBIQUE*

“Nunca ande pelo caminho

já traçado, pois ele conduz

somente até onde os outros

já foram”.

Alexandre

Gaham Bell

Em primeiro lugar queremos agradecer à

Ordem dos Advogados de Moçambique, na pessoa

do Digníssimo Bastonário Dr. Tomás Timbane,

pelo convite que nos foi endereçado para apresentar

o tema o “direito de defesa em Moçambique” e,

simultaneamente, pela oportunidade de podermos

partilhar com os presentes algumas reflexões

pessoais sobre um tema tão candente e tão

importante como é este.

A apresentação do referido tema perante tão

magna assembleia é sem dúvidas um privilégio.

Mas igualmente, e pelas mesmas razões, uma tarefa

difícil e polémica. Conscientes desse facto,

apresentamo-nos perante vós com objectivos

modestos que não são mais do que, através desta

apresentação, provocar o pretendido debate.

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Julgamos que as conclusões e recomendações

colectivas saídas desse debate é que constituirão a

essência utilitária do tema em questão. Esta nossa

tarefa torna-se ainda mais espinhosa se

considerarmos que esta apresentação constitui o

“pontapé de saída” das apresentações e

intervenções que serão feitas ao longo destes dois

dias de duração do II Congresso para a Justiça.

Como reza uma frase muito usada neste tipo de

eventos “ o custa mais a fazer é a primeira

intervenção”.

O tema “o direito de defesa em Moçambique”

está enquadrado no 1º painel que se subordina ao

grande tema de “a efectividade dos direitos dos

cidadãos”. Neste contexto, é legitimo entender que

a intenção dos organizadores seria a de propiciar

uma abordagem que fosse para além da mera

descrição teórico-formal da previsão legal do

direito de defesa em Moçambique. Falar sobre a

efectividade dos direitos dos cidadãos obriga-nos a

ir muito para além do indispensável quadro teórico-

legal e embrenharmo-nos fundo na realidade

prática do exercício efectivo e pleno dos direitos

pelos cidadãos - in casu do direito de defesa.

Ninguém ignora que, também na área da

administração da justiça, a nossa realidade não é

pródiga em matéria de justaposição entre a previsão

formal dos direitos dos cidadãos e a sua

efectividade.

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O princípio que está na base do direito de

defesa é um conceito antigo na história da

humanidade. No Evangelho de São João, Capítulo

7, Versículo 51, encontramos a seguinte pergunta: “

Porventura condena a nossa lei um homem sem

primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?”.

Já no direito romano, o conceito foi condensado no

aforismo latino nemo inauditus damnari potest

(ninguém deve ser condenado sem ser ouvido).

Na ordem jurídica moçambicana o direito de

defesa têm uma dimensão constitucional. A norma

contida no artigo no artigo 62º/1 da Constituição da

República de Moçambique (CRM) determina que o

Estado moçambicano garante aos arguidos o

DIREITO DE DEFESA e garante ainda os

correlatos direitos à assistência jurídica e ao

patrocínio judiciário.

O primeiro aspecto que queremos destacar

prende-se com a formulação, que reputamos

infeliz, do legislador constituinte moçambicano ao

usar a restritiva expressão “arguido” para designar

o beneficiário do direito de defesa. Esta opção

terminológica pode induzir à errada interpretação

de que a dignidade constitucional do direito de

defesa está apenas circunscrita à posição do

arguido no processo penal. Parece-nos que norma

constitucional acima referida carecia de melhor

técnica legislativa para expressar convenientemente

o seu sentido decisivo. Não tendo sido assim,

impõe-se um exercício de interpretação extensiva

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que amplie o seu alcance e lhe dê a devida

profundidade. Neste sentido, é nosso entendimento

que o legislador constituinte quis, ainda que

expressando-se de forma imperfeita, estender a

garantia constitucional do direito de defesa a todos

os cidadãos. Abrangendo igualmente todos os tipos

de processos - judiciais e não judiciais – nos âmbito

dos quais o cidadão seja acusado de um delito

passível de aplicação de uma sanção jurídica de

qualquer natureza.

Em nossa opinião, o direito de defesa é

também corolário do princípio da tutela

jurisdicional efectiva consagrado no artigo 71º da

Constituição moçambicana. Porquanto, uma

verdadeira tutela jurisdicional efectiva pressupõe

sempre a existência do direito de defesa, do direito

à igualdade de tratamento e à igualdade de armas,

do direito do cidadão ver o respectivo caso

apreciado por um juiz imparcial, do direito ao

recurso e do direito à presunção de inocência, entre

outros.

Nesta linha, usando como respaldo, por um

lado a norma constitucional que regula

directamente o direito de defesa e por outro o

princípio da tutela jurisdicional efectiva, podemos

dizer com segurança que a Constituição

moçambicana, bem como a legislação infra

constitucional que a concretiza, asseguram aos

cidadãos um amplo direito de defesa.

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Com efeito, tal como em Moçambique,

hodiernamente a maior parte das Constituições dos

países que se definem como Estados de Direito

consagram de forma directa ou indirecta este

princípio do amplo e pleno direito de defesa. A

título de meramente ilustrativo referimos os

comandos contidos no artigo 5º da Constituição

Federal brasileira e no artigo 32º da Constituição da

República portuguesa.

Entretanto, e como atrás tivemos a ocasião de

sublinhar, mais do que a apresentação da matriz

teórico-legal do direito defesa em Moçambique,

importa ir mais longe - e mais fundo - e apresentar

uma reflexão sobre a efectividade do gozo deste

direito pelos cidadãos.

Para tanto, e para análise da efectividade do

exercício do direito de defesa em Moçambique,

escolhemos 5 factores que em nosso modesto

entender influenciam na qualidade do exercício

efectivo do direito de defesa.

A saber:

1. A (in)dependência do poder judicial.

2. A (des) igualdade de armas no processo

penal.

3. A corrupção nos tribunais.

4. O (des)respeito pela prerrogativas

funcionais do Advogado.

5. A defesa dos cidadãos feita por não

Advogados.

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I. A (in) dependência do poder judicial:

De acordo com os princípios democráticos

vertidos na Constituição da República de

Moçambique, o poder judicial deve ser

independente - e interdependente - dos demais

poderes do Estado, com particular realce para os

poderes executivo e legislativo (art. 134º CRM).

Cá entre nós, é quase pacífica a posição de que a

nossa Constituição atribui um excesso de poderes

ao Presidente da República, na sua qualidade de

Chefe do Estado, para nomear os principais

titulares do topo da pirâmide dos órgãos de

administração da justiça. O Chefe do Estado têm, à

luz da Constituição moçambicana, poderes para

nomear o Presidente e o Vice-Presidente do

Tribunal Supremo; o Presidente do Conselho

Constitucional e o Presidente do Tribunal

Administrativo. Têm também poderes para nomear,

exonerar e demitir o Procurador-Geral da

República e o Vice Procurador-Geral. Nomeia

ainda os Juízes do Tribunal Supremo, os Juízes do

Tribunal Administrativo e os Procuradores-Gerais

Adjuntos (ouvidos os respectivos Conselhos

Superiores).

Com efeito, estes superpoderes do Chefe do

Estado (não se olvide que o Presidente da

República é na nossa realidade política,

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simultaneamente, o Presidente do partido político

mais votado) vulnerabilizam o poder judicial; quer

no que diz respeito à pretendida independência,

quer ainda no que toca à desejada

interdependência. Na medida em que este

mecanismo constitucional permite que possam ser

nomeados titulares de cargos permeáveis à

influência política ou, porventura, eivados de um

sentimento de gratidão para com quem os nomeou,

ambos aspectos que podem condicionar a sua

actuação independente nos cargos para que foram

nomeados.

A este mesmo respeito, relembramos duas das

principais recomendações finais do I Congresso

para a Justiça que prescreviam o seguinte:

“Urge a inclusão no texto constitucional de

comandos normativos relacionadas com a

selecção dos candidatos a titulares dos órgãos

da administração da justiça, os quais devem

ser eleitos entre os seus pares com recurso a

critérios de transparência.

“Evitar a promiscuidade entre poder judicial e

outros poderes externos (v.g. Governo,

Assembleia da República, Comunicação

social, partidos políticos, sociedade)”.

Estas contribuições colectivas produzidas por

aquele referido Congresso revelam claramente a

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percepção de em Moçambique há interferências do

poder político no poder judicial - as quais

assumem-se como obstáculos à independência

deste último. Delas também se infere que as

referidas influências manifestam-se através da

selecção e nomeação dos candidatos a titulares de

órgão da adminsistração da justiça, que é feita sem

obediência a critérios de transparência, de mérito e

de democracia.

Por outro lado, em Moçambique quem aprova os

orçamentos dos tribunais é a Assembleia da

República que é, naturalmente, um órgão de

soberania de natureza política. Normalmente, o

Orçamentos Gerais do Estado aprovados - ano após

ano - não reflectem prioridade na concessão de

meios financeiros suficientes ao poder judicial para

que este realize o seu trabalho com eficácia. Como

sabemos das regras de experiência de vida, é

possível controlar ou condicionar o fluxo e a

efectividade de resultados de qualquer entidade

concedendo-lhe poderes formais; mas, e em

paralelo, permitindo a existência de restrições a

nível dos meios financeiros necessários para a

materialização eficaz desses mesmos poderes.

Aliás, sobre este mesmo assunto o alerta já foi

dado pelo anterior Presidente do Tribunal Supremo,

numa cerimónia de abertura do ano judicial não

muito distante, onde propôs que o cálculo do

orçamento dos tribunais deveria ser retirado da

disponibilidade do poder politico e passar a ser

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objectivamente fixado em termos percentuais

mínimos na Constituição da República.

Em Adição, este posicionamento também foi

enfatizado numa das recomendações finais do I

Congresso para a Justiça que determinava o

seguinte: “Urge a inclusão no texto constitucional

de dispositivos que estabeleçam um mínimo

percentual do Orçamento do Estado que deve ser

adjudicado ao poder judicial. Esta solução

contribuirá para uma maior e desejável

independência funcional do poder judicial em

relação aos poderes executivo e legislativo”.

Julgamos que as vicissitudes atrás evidenciadas

provocam uma situação de desnivelamento nas

relações reais de poder entre os poderes do Estado

e contribuem para gerar um poder politico forte -

forte demais em nossa opinião - e um poder judicial

fraco – fraco demais em nosso entender.

Stephen Covey defende que o ciclo de

progressão da maturidade da pessoas e das

instituições inicia na dependência, passa para a

independência e só evoluindo é que pode alcançar

aquilo que considera a fase suprema da maturidade

que é a da interdependência. Para Covey só pode

ser interdependente quem já passou pela fase da

independência e evoluiu. Para o mesmo autor não

pode ser interdependente quem ainda é dependente.

Parece-nos um raciocínio brilhante e lógico, na

medida em que não se pode almejar atingir um

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estado de interdependência ( em que o paradigma é

a colaboração, a sinergia, a ideia de “ nós em

conjunto podemos realizar coisas grandiosas”)

enquanto nem sequer se atingiu a independência

(cujo padrão comportamental associa-se à livre

escolha, à possibilidade de decidir de acordo com

as mesmas escolhas sem ajuda ou influência de

outrem).

Ora, os problemas de independência do poder

judicial tem reflexos negativos evidentes no

execício do direito de defesa dos cidadãos. Basta

pensarmos numa situação em o poder político

esteja directa ou indirectamente interessado em que

um cidadão que preste contas à justiça seja

castigado. Neste tipo de caso, o exercício do direito

de defesa do cidadão em causa poderá vir a ser

severamente prejudicado pela permeabilidade a

pressões politicas que o tribunal onde o cidadão é

julgado vier a revelar.

Nestes termos, julgamos que não será possível

garantir um efectivo e permanente exercício do

direito de defesa em Moçambique enquanto o

poder judicial não for efectivamente independente.

II. A (des) igualdade de armas no processo

penal.

No processo penal moçambicano, e na

consequente prática judicial, existe um

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desnivelamento acentuado entre os poderes

concedidos à defesa do Réu e os atribuídos à sua

acusação. A estrutura inquisitória do nosso

processo penal contribui de sobremaneira para que

este desequilíbrio ocorra.

A prática demonstra que acusar um cidadão é

considerada uma actividade mais importante do

que a sua defesa. O poder de acusar agiganta-se em

relação ao direito do acusado de defender-se. Na

tramitação do processo penal, o Procurador da

Republica está normalmente dotado de mais meios,

mais poderes e mais prerrogativas processuais do

que o Advogado. Neste combate jurídico desleal,

verifica-se uma desigualdade de armas muito

acentuada em desfavor do Réu e seu defensor,

reduzindo as possibilidades reais do exercício

pleno do direito de defesa por parte do cidadão

visado.

Só para dar um exemplo, o Código do Processo

Penal moçambicano define que a fase da instrução

preparatória é secreta. Contudo, tal secretismo é

normalmente exercido contra o arguido e seu

defensor, que na maior parte das vezes são

impedidos de consultar os elementos trazidos aos

autos. Nesta fase processual, nem o arguido e nem

o seu advogado podem iniciar a preparação da

defesa a uma eventual acusação; pois, em regra

desconhecem os elementos que constam do

processo e que servirão de base à mesma. A

acusação parte com uma vantagem considerável

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sobre a defesa, vantagem essa obtida a partir de um

secretismo que julgamos ser contrário à

Constituição, por violar exactamente as regras do

Direito de Defesa nela consagradas.

Na nossa opinião, o direito de defesa

reconhecido ao arguido não pode ser entendido

como passível de ser exercido apenas em algumas

fases do processo penal e proibido noutras. Um

amplo e pleno direito de defesa deve ser exercido

em todas as fases do processo. Para nós, o

indiciado não deve ficar à escuras, impedido de

tomar conhecimento dos elementos que contra si

são secretamente recolhidos pela investigação,

aguardando cegamente que termine a instrução

preparatória do processo para tomar conhecimento

da matéria indiciária que contra ele foi recolhida.

Soma-se isto as más práticas processuais de

alguns Juízes criminais que desnivelam ainda mais

os pratos da balança. Por exemplo, vezes há em que

os requerimentos formulados pela defesa ficam

durante muito tempo sem qualquer despacho ou

acção da parte dos referido Juízes, em prejuízo do

direito de defesa que é constitucionalmente

reconhecido aos arguidos. Verifica-se também que

nestes casos há muito maior diligência e celeridade

do Juiz em atender os actos processuais

promovidos pelos Procuradores da República do

que os solicitados pelo Advogado do Réu.

Constata-se, por vezes, que os requerimentos e

promoções dos Procuradores merecem maior

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consideração, são despachados e executados pelos

Juízes em prazos muito mais curtos do que os

requerimentos dos Advogados.

Neste cenário, o exercício de um amplo e

pleno direito de defesa do Réu ficará condicionado

pela desigualdade de armas entre o representante da

acusação e o representante da defesa e pelas más

práticas judiciais.

Por isso, em bom rigor, não se pode falar de

um processo justo e equitativo e nem de um amplo

e pleno exercício do direito de defesa quando

ocorram no processo acentuadas desigualdades de

armas entre quem acusa o Réu e quem o defende.

III. A corrupção nos tribunais.

Temos assumidamente um problema sério de

corrupção nos tribunais moçambicanos.

Aliás, quer a Ordem dos Advogados, quer o

Procurador Geral da República cessante, quer ainda

o novo Presidente do Tribunal Supremo, jvieram

publicamente reconhecer a existência do fenómeno

da corrupção nos tribunais e pugnar pela urgência

do seu combate.

A este propósito, a conclusão do I Congresso

para a Justiça foi a seguinte: “A conclusão geral do

debate indica que o combate efectivo contra a

corrupção no judiciário ainda não descolou das

palavras e promessas das lideranças políticas do

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Estado e das magistraturas. Ou seja, há alguma

crítica discursiva contra a corrupção, porém, não

estão a ser postos em prática mecanismos

exequíveis, eficientes e transparentes de combate

ao fenómeno no judiciário”.

É escusado referir aqui os efeitos nefastos da

corrupção. Seria igualmente redundante lembrar

que estendida ao sistema judicial tais efeitos são

ainda piores e mais perversos. Porquanto,

inutilizam a última linha de combate à corrupção

que qualquer Estado de Direito dispõe - que são os

tribunais.

Não obstante, queremos clarificar que quando

falamos de corrupção nos tribunais não estamos

apenas a referir-nos à corrupção que envolva tão-

somente a participação de Juízes e demais

funcionários judiciais – aliás tal nem seria possível,

pois para haver corruptos tem de haver corruptores.

Quando nos referimos à corrupção nos tribunais,

estendemo-la ao envolvimento das partes, dos

advogados, dos Procuradores da República, da

Policia, entre outros. Denominamo-la de

especificamente de corrupção nos tribunais, porque

é nos tribunais que os processos são julgados e

decididos e onde normalmente o fenómeno assume

uma dimensão decisiva.

Assim, é fácil de perceber que alguém que presta

contas à justiça e que tenha o azar (não muito raro)

de ter de se defender num processo judicial

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contaminado pela corrupção, certamente não

conseguirá exercer eficazmente o seu direito de

defesa.

Por tudo isto, a corrupção nos tribunais é para

nós um factor que impede o exercício efectivo do

direito de defesa em Moçambique.

IV. O desrespeito pela prerrogativas funcionais

do Advogado.

Para exercer o seu direito de defesa o cidadão

deve ser representado por um profissional - que

normalmente deveria ser um Advogado - a quem a

lei confere determinadas prerrogativas funcionais

que lhe permitem assegurar a efectividade do

exercício pleno e amplo de defesa pelo seu

constituinte. Logo, estas prerrogativas funcionais

não devem ser vistas como meros privilégios,

honrarias e obsequiosidades do próprios

Advogados. Devem ser entendidas como garantias

concedidas aos cidadão por aqueles representados.

É sob esse prisma que o artigo 63º/1 da nossa

Constituição preceitua que “O Estado assegura a

quem exerce o mandato judicial, as imunidades

necessárias ao seu exercício e regula o patrocínio

forense como elemento essencial à administração

da justiça”.

A título de exemplo, para a garantia do

exercício do patrocínio judiciário sem

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condicionalismos ou restrições impostas por outros

actores da Administração da Justiça, a lei

moçambicana estabelece expressamente a

inexistência de hierarquia ou subordinação entre os

Advogados, Procuradores e Juízes (artigo 59º/1

EOAM). Uma outra perrogativa funcional do

Advogado, que também visa garantir a efectividade

do exercício do direito de defesa do cidadão por ele

representado, é o direito de reclamação contra

qualquer prática ilícita limitante da actuação, do

Advogado. Esta prerrogativa funcional materializa-

se através da obrigatoriedade de acesso

incondicional do Advogado à acta das audiências

ou das diligências judiciaispara lavrar por escrito a

competente reclamação, que para todos efeitos

deve ser havida como uma arguição de nulidade.

Por isso, e para isso, a lei proíbe de forma expressa

e taxativa que tal acesso do Advogado à acta seja

por qualquer forma vedado (art. 60º, nº 1, 2 e 3

EOAM).

Creio que com estes 2 exemplos torna-se mais

fácil perceber que as a ideia de que prerrogativas

funcionais do Advogado não visam privilegiá-lo

pessoalmente; mas antes - e sobretudo - conceder-

lhe poderes para que este possa garantir ao seu

constituinte o exercício efectivo do direito de

defesa que lhe assiste.

Se por um lado a nossa legislação garante

teoricamente ao Advogado perrogativas funcionais

que lhe permitem cumprir com o seu múnus

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profissional, na prática as coisas tendem a

acontecer de forma diferente.

Em Moçambique, o Advogado ainda é visto

como uma mistura de ovelha-negra e parente pobre

dos órgãos de administração da justiça. São

frequentes as reclamações de Advogados contra

actuações dos actores estatais da administração da

justiça que condicionam ou mesmo amputam as

suas prerrogativas funcionais, em prejuízo

manifesto dos direitos dos cidadãos representados.

Não são raras as vezes que o Advogado é

impedido de conferenciar com o seu constituinte

detido em estabelecimento policial, com a mera

alegação de que “o advogado deve intervir apenas

nos tribunais”.

Já nos tribunais, começa a despontar uma certa

tendência, felizmente ainda minoritária, de não se

reconhecerem as prerrogativas funcionais dos

Advogados como legítimas. Por isso, existem

vários casos de desrespeito destas prerrogativas.

Não é estranho para muitos de nós o relato de casos

nos quais certos Juízes impedem os Advogados de,

na defesa dos seus constituites, expressarem-se

livremente. Outros recusam o acesso dos

Advogados às actas de audiências para lavrarem as

reclamações que julgarem convenientes, sob a

alegação de impertinência. Casos há em que na

batalha pelo respeito dessas prerrogativas

funcionais os Advogados são expulsos da sala de

audiências. E tudo isso quando o pior não acontece:

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e o pior é o Advogado ser preso, em exercício de

funções, por exigir o respeito pelas suas

prerrogativas funcionais e, consequentemente, pelo

amplo e pleno direito de defesa que assiste ao seu

constituinte.

Sempre que ocorram agressões às

prerrogativas profissionais do Advogados é

imperioso reflectirmos sobre as respostas às

seguintes perguntas: (i) Em última instancia, quem

fica lesado com estas práticas desrespeitosas: o

Advogado ou o cidadão por ele representado? (ii)

Nos casos em que isso aconteça, pode ainda falar-

se de um efectivo exercício do direito de defesa?

Ora, da mesma maneira que a independência, a

inamovibilidade e a irresponsabilidade dos Juízes,

bem como a autonomia do Ministério Público, não

são questionáveis, precisamente porque são

entendidas como garantias da sociedade; as

prerrogativas funcionais dos Advogados também

não deveriam sê-lo, por configurarem garantias dos

cidadãos que prestam contas à justiça ou que

clamam por justiça.

Sintetizando: diremos que qualquer situação de

desrespeito pelas prerrogativas funcionais dos

Advogados limita, condiciona ou amputa o

exercício pleno e amplo do direito de defesa do

cidadão por ele representado.

V. O exercício da defesa por não Advogados.

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Uma das reminiscências do modelo de justiça

popular adoptado logo após a independência

nacional é a prática de actos próprios da profissão

por não advogados.

Talvez seja útil lembrar que um pouco antes da

independência nacional, ainda durante o Governo

de Transição, foi proibido o exercício da

Advocacia livre e independente em Moçambique.

Em consequência, os Advogados que na altura

existiam abandonaram o País, maioritáriamente

com destino à ex-colónia, para poderem continuar a

exercer a sua profissão.

Em substituição, função da defesa foi

acometida a cidadãos voluntariosos mas

despreparados; que não tinham licenciatura em

Direito e que para exercerem a função da defesa de

cidadãos eram submetidos a uma formação prática

de curtíssima duração. Estes técnicos

subordinavam-se ao Governo e eram congregados

num organismo estatal que se encarregava de

organizar esse serviço revolucionário de apoio

judiciário.

Mais tarde, e para agravar a situação, foi

encerrada por razões políticas a única Faculdade de

Direito existente no País: A Faculdade de Direito

da Universidade Eduardo Mondlane.

Mais tarde ainda, mas não tarde demais, já no

contexto das mudanças operadas pela Constituição

da República de 1990 que previa a criação de um

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Estado de Direito e de um modelo de justiça

respeitador dos direitos, liberdades e garantias

individuais dos cidadãos, em Setembro de 1994 foi

criada a Ordem dos Advogados de Moçambique.

Em 1996, esta Ordem iniciou a inscrição

obrigatória e o licenciamento dos primeiros

Advogados.

Entretanto, para garantir que não houvessem

situações de falta de operadores para garantir o

patrocínio judiciário, foi estabelecido no Estatuto

da Ordem dos Advogados de Moçambique um

mecanismo paralelo no qual técnicos e assistentes

jurídicos vinculados ao Estado exerciam funções

em igualdade de condições com os Advogados.

Esta realidade perdura até aos dias de hoje. Em

quase toda a extensão do território nacional,

técnicos e assistentes jurídicos do Instituto de

Patrocínio e Assistência Judiciária (IPAJ) exercem

a sua profissão em igualdade de condições com os

Advogados. Aliás, doutra forma não poderia ser,

visto que – fruto dos condicionalismos e das

opções políticas atrás descritas – o país conta com

cerca de 1.200 Advogados para servir uma

população de 23.000.000 de moçambicanos.

Por outro lado, é preciso destacar que mais

recentemente já há técnicos do IPAJ licenciados em

Direito. Alguns destes inscreveram-se no Exame

Nacional de Acesso da Ordem dos Advogados de

Moçambique e passaram, tendo obtido a qualidade

de Advogados.

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Todavia, ainda assim, grande parte dos

técnicos que prestam o patrocínio judiciário em

Moçambique não são Advogados e a maioria destes

nem sequer possui uma licenciatura em Direito.

Esta situação tem como corolário a fraca e

deficiente qualidade da assistência jurídica e

judiciária prestada aos cidadãos.

É exactamente por causa da má qualidade da

assistência jurídica e judiciária prestada aos

cidadãos, sobretudo aos mais pobres, que não se

pode falar, também neste domínio, de um efectivo

exercício do direito de defesa.

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Para análise da (in)efectividade do exercício

do direito de defesa em Moçambique reflectimos

apenas sobre estes 5 factores, dadas as limitações

de tempo de que dispomos. Pois, com certeza que

existem mais factores que contribuem para

inefectividade do exercício do exercício deste

direito no nosso país.

Aqui chegados, pode-se perguntar se não

existem situações concretas em que um

determinado cidadão exercite efectivamente o

direito de defesa? Diremos taxativamente que

certamente existem!

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Mas, a ocorrência de tais situações depende da

conjugação de um conjunto de circunstâncias

favoráveis que ainda são de difícil cumulação.

Porém, o que preocupa não é só a quantidade de

casos em que estas condicionantes ao exercício

efectivo do direito de defesa ocorrem; mas também

a imprevisibilidade sobre onde, quando e como as

descritas situações podem acontecer.

Em síntese: a nosso ver não pode haver

efectividade do exercício do direito de defesa em

Moçambique enquanto este depender de um

aparelho de justiça que não é independente, que

esteja manchado pela corrupção, que tolere

situações de desrespeito pela perrogativas

funcionais dos Advogados, que permite que os

defensores dos cidadãos manejem “armas”

manifestamente inferiores àquelas que são usadas

pela acusação e, por último mas não menos

importante, onde o patrocínio judiciário dos

cidadãos é maioritariamente assegurado por não

Advogados.

Terminamos esta apresentação com uma frase

de Albert EINSTEIN que diz o seguinte:

“Os problemas significativos que

enfrentamos não podem ser

resolvidos no mesmo nível de

pensamento em que estávamos

quando os criamos”.

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Muito Obrigado.

Maputo, a 19 de Novembro de 2014.

*Gilberto Correia.

Advogado

Bastonário da Ordem dos Advogados de

Moçambique (2008-2013)