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O DIREITO À IGUALDADE NO SISTEMA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DO TRABALHADOR RURAL BRASILEIRO. ASPECTOS DE UMA POLÍTICA DE REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA NÃO ASSUMIDA THE EQUALITY RIGHT IN THE SOCIAL SECURITY SYSTEM OF BRAZILIAN RURAL WORKER’S CLASS. A POLICY OF INCOME DISTRIBUTION NOT COGNIZED YET Arthur Laércio Homci da Costa Silva[1] RESUMO O presente artigo objetiva discutir o fundamento do Sistema de Previdência Social brasileiro, especificamente destinado ao trabalhador rural, a partir de indagações ao modelo posto, visualizando esse sistema a partir de uma política de redistribuição de renda que garanta o direito à igualdade, já sendo implantada pelo Estado, embora ainda não reconhecida legislativamente. PALAVRAS-CHAVES: PREVIDÊNCIA SOCIAL; TRABALHADORES RURAIS; DIREITOS FUNDAMENTAIS; AÇÕES AFIRMATIVAS; INCLUSÃO SOCIAL. ABSTRACT This article has the object of discussing the basis of the Brazilian social security system, especifically destined to the rural worker's class, questioning the existent model, visualizing this system form a policy of income distribution that really assures the right to equality, already being implanted by the state, although not legally recognized yet. KEYWORDS: SOCIAL SECURITY; RURAL WORKERS; FUNDAMENTAL RIGHTS; PUBLIC POLICIES; AFFIRMATIVE ACTIONS; SOCIAL INCLUSION. 1. INTRODUÇÃO: A IGUALDADE EM LINHAS GERAIS Os direitos fundamentais[2] constituem-se como arcabouço estruturante da proposta de Estado brasileira, expressando-se primordialmente por meio da dignidade da pessoa humana e da igualdade concreta entre os indivíduos. A igualdade é pressuposto para a realização de todos os demais direitos fundamentais consagrados no Estado brasileiro, com finalidades sociais preestabelecidas. Em breve digressão histórica não datada[3] , pode-se perceber que esta igualdade, encarada como direito fundamental elementar, assumiu, no decorrer do tempo, diversas configurações. 432

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O DIREITO À IGUALDADE NO SISTEMA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DO TRABALHADOR RURAL BRASILEIRO. ASPECTOS DE UMA POLÍTICA DE

REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA NÃO ASSUMIDA

THE EQUALITY RIGHT IN THE SOCIAL SECURITY SYSTEM OF BRAZILIAN RURAL WORKER’S CLASS. A POLICY OF INCOME

DISTRIBUTION NOT COGNIZED YET

Arthur Laércio Homci da Costa Silva[1]

RESUMO

O presente artigo objetiva discutir o fundamento do Sistema de Previdência Social brasileiro, especificamente destinado ao trabalhador rural, a partir de indagações ao modelo posto, visualizando esse sistema a partir de uma política de redistribuição de renda que garanta o direito à igualdade, já sendo implantada pelo Estado, embora ainda não reconhecida legislativamente.

PALAVRAS-CHAVES: PREVIDÊNCIA SOCIAL; TRABALHADORES RURAIS; DIREITOS FUNDAMENTAIS; AÇÕES AFIRMATIVAS; INCLUSÃO SOCIAL.

ABSTRACT

This article has the object of discussing the basis of the Brazilian social security system, especifically destined to the rural worker's class, questioning the existent model, visualizing this system form a policy of income distribution that really assures the right to equality, already being implanted by the state, although not legally recognized yet.

KEYWORDS: SOCIAL SECURITY; RURAL WORKERS; FUNDAMENTAL RIGHTS; PUBLIC POLICIES; AFFIRMATIVE ACTIONS; SOCIAL INCLUSION.

1. INTRODUÇÃO: A IGUALDADE EM LINHAS GERAIS

Os direitos fundamentais[2] constituem-se como arcabouço estruturante da proposta de Estado brasileira, expressando-se primordialmente por meio da dignidade da pessoa humana e da igualdade concreta entre os indivíduos. A igualdade é pressuposto para a realização de todos os demais direitos fundamentais consagrados no Estado brasileiro, com finalidades sociais preestabelecidas.

Em breve digressão histórica não datada[3], pode-se perceber que esta igualdade, encarada como direito fundamental elementar, assumiu, no decorrer do tempo, diversas configurações.

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Inicialmente, o direito à igualdade assumiu a feição meramente formal do pós-revoluções burguesas, a qual pode ser resumida pelo jargão constitucionalmente consagrado no Brasil (art. 5º, caput, CF/1988) de que "todos são iguais perante a lei", a impedir que o Estado estabeleça qualquer distinção entre os seus cidadãos. Em suma, havia uma igualdade de condições, até então não traduzida por uma igualdade de oportunidades (GOMES, 2000).

Com o passar do tempo, tornou-se palpável a percepção de que o direito à igualdade de direitos, em sua versão negativa (impedir a discriminação pelo Estado) não era suficiente para contemplar os grupos menos favorecidos, de modo que a igualdade tomou novos contornos, no sentido de propiciar oportunidades aos grupos vulneráveis existentes em determinada sociedade, para a fruição dos direitos sociais que vinham sendo implementados pelo Estado (DRAY, 1999, apud GOMES, 2000).

Desta maneira, a concepção de igualdade passou por um desenvolvimento, partindo da concepção estática e negativa, a uma igualdade de feição dinâmica e positiva, no sentido de fomentar oportunidades paritárias entre todos os seguimentos da sociedade. A igualdade passou a ser considerada tanto como meio para o alcance de uma dignidade mínima entre os cidadãos, tal como fim em si mesmo, estabilizando as pretensões comunitárias.

Da evolução procedida na configuração do direito à igualdade surgiu a idéia das políticas públicas[4] de inclusão social[5], a serem implementadas pelo Estado e pela sociedade para concretizar o direito à igualdade material, neutralizando os efeitos das desigualdades fáticas existentes no seio de determinada sociedade (ROCHA, 1996), por meio da promoção de "desigualdades includentes", em favor dos grupos desfavorecidos da sociedade.

Neste passo, a promoção de políticas de inclusão social significa - além da erradicação das desigualdades - a busca a respostas concretas às demandas da sociedade, a partir da implementação, dentre outros, de direitos fundamentais de caráter social, de forma diferenciada aos grupos considerados vulneráveis (BRITO FILHO, 2002).

Na medida da estreita relação entre as políticas de inclusão social (como meios de busca à igualdade material) e os direitos sociais, percebe-se que estes últimos jamais podem prestar-se a fundamentar desigualdades excludentes, cabendo ao Estado (mas não somente a este), no plano de sua atuação positiva, implementar medidas de materialização da igualdade, tendo em conta que os objetivos sociais estão sempre subordinados aos princípios (neste caso a igualdade) que os fundamentam.

Estabelecidas tais idéias básicas, o presente artigo objetiva discutir a possibilidade de compreensão do sistema de Previdência Social brasileiro destinado ao trabalhador rural como uma política pública de redistribuição de renda, em descompasso com o teor securitário que caracteriza dos sistemas previdenciários modernos. Esta análise só será viável a partir da visualização do direito à igualdade como pano de fundo para garantir uma redistribuição de renda.

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2. O DIREITO À PREVIDÊNCIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A POSIÇÃO DO TRABALHADOR RURAL

O direito à previdência social foi consagrado no texto constitucional de 1988 como um direito fundamental.[6] Nos mesmos moldes, a Declaração Universal dos Direitos Humanos[7] também consagrou o direito à previdência como um direito fundamental.[8] Por outra, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[9] também reconhece um direito à previdência como direito fundamental.[10]

Como se pode perceber, há forte consenso normativo em proclamar o direito à previdência social como direito fundamental. A Constituição Federal de 1988 especificou a configuração fundamental do direito à previdência no título relativo à ordem social (art. 193 e seguintes), garantindo um capítulo genérico à seguridade social e uma seção específica à previdência social.[11]

Além da questão normativa, há outras razões para que o direito à previdência seja encarado com direito fundamental, ratificando os termos da Constituição Federal.

O direito à previdência decorre, ao menos no Estado brasileiro, de outro direito fundamental: o direito ao trabalho, que, "pelo seu conteúdo genérico, desdobra-se em uma série de outros" (BRITO FILHO, 2004, p. 47), entre os quais o direito à previdência social.

Por outra, cabe assinalar que o direito à previdência possui como finalidade essencial garantir um mínimo de dignidade aos trabalhadores e dependentes, em momentos denominados de risco, como a morte, doença, gravidez, velhice, prisão, quando o exercício do direito ao trabalho fique, por alguma das razões acima, prejudicado.

Por isso, pode-se compreender, em linhas básicas, a disposição do texto constitucional, consagrando o direito à previdência como um direito fundamental, ainda que o sistema normativo (legislação infraconstitucional) brasileiro, neste ponto, objetive contrariar esta disposição, por meio de uma estrutura previdenciária calcado num modelo contributivo mal estruturado, que acaba maculando a imagem do trabalhador rural, como o grande "vilão" da previdência social brasileira.

O Estado brasileiro estabeleceu, entre os objetivos do Poder Público no campo previdenciário, a "uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais" (art. 194, inciso II).

Entretanto, a concretização desta igualdade propugnada pela Constituição Federal, no tratamento previdenciário dos trabalhadores rurais e urbanos, depende da avaliação de diversos fatores, que merecem atenção pontuada.

Uma disposição preliminar demonstra quão complexo é o problema.

Os trabalhadores rurais obtiveram uma inclusão tardia no sistema previdenciário brasileiro, cabendo aqui expor a idéia de Clóvis Zimmermann, a fim de sintetizar tal posição[12]:

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No Brasil, a inclusão dos trabalhadores rurais no sistema previdenciário foi tardia em relação às outras categorias profissionais e a inclusão das mulheres rurais trabalhadoras ocorreu ainda muito mais tarde, principalmente pelo fato do benefício somente ser restituído após o reconhecimento enquanto trabalhadoras rurais. (ZIMMERMANN, 2005)

O que se pôde perceber no passado, e ainda é perceptível no presente, é que a legislação infraconstitucional não acompanhou a Constituição Federal no tocante à implementação do direito à previdência como um direito fundamental. Tal divergência tem influência direta nas políticas públicas previdenciárias, que nem sempre estão direcionadas à inclusão dos grupos menos favorecidos, por meio de um sistema de redistribuição de renda bem definido.

Embora haja quem diga que o direito à previdência social, no que se resume aos trabalhadores rurais, possui um caráter de universalização[13], o que se pode constatar na prática é que este sistema previdenciário é incompleto, gerando exclusão social e insegurança ao trabalhador.

Acerca da atual conjuntura da previdência social no Brasil, dados de 2007/2008 evidenciam que os trabalhadores rurais brasileiros representam 18,27% da População Economicamente Ativa (PEA), e os benefícios a eles concedidos acumulam 19,94% do total de gastos da Previdência Social (com benefícios). Em contrapartida, os trabalhadores rurais são responsáveis por apenas 3,04% do total de arrecadações do Regime Geral de Previdência Social.[14]

Tais dados, preliminarmente levantados, são suficientes para embasar importantes objeções ao sistema contributivo que é proclamado no Brasil: Os trabalhadores rurais estão inseridos no sistema previdenciário nacional no mesmo patamar de igualdade dos trabalhadores urbanos ou recebem um tratamento diferenciado? Este tratamento é favorável ou desfavorável?

As respostas a estas questões são fundamentais para uma visualização concreta da possibilidade do desenvolvimento de políticas públicas na seara previdenciária, no intuito de promover a inclusão social dos trabalhadores rurais, mediante uma redistribuição de renda. Mas não é só.

Algumas questões ainda precisam ser respondidas: já existem políticas públicas especificamente direcionadas aos trabalhadores rurais em prática dentro do sistema previdenciário brasileiro? Eis outra questão que merece análise, tendo em conta algumas diferenciações feitas em relação aos trabalhadores rurais no sistema de previdência, que os colocam, em tese, em uma situação de vantagem jurídica em relação aos trabalhadores urbanos.[15]

Desde já, evidencia-se que o objetivo do presente artigo passa distante da busca por respostas às indagações até então formuladas. O que se pretende é deixar claro que há uma série de contradições entre o tratamento destinado aos trabalhadores rurais no sistema de Previdência Social brasileiro, que evidenciam que o tratamento dado a este grupo configura-se numa importante política pública de redistribuição de

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renda, que embora venha sendo executada pelo Estado, não é por este assumida como tal. Como direito fundamental que deve ser garantido pelo Estado, o direito à previdência deve ir além de um mero sistema contributivo, que mais se preocupa com o seu controle atuarial e financeiro. No Brasil, isso parece evidente em termos constitucionais, embora não o seja na realidade da legislação infraconstitucional.

3. O PAPEL DA CONSTITUIÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA

A Constituição de um Estado, para que obtenha êxito, necessariamente há de estar conectada à realidade na qual foi proposta. Isso de maneira alguma quer dizer que a Constituição deva reduzir-se a uma mera comentadora da realidade. Pelo contrário, a Constituição é elemento de coercibilidade para a efetivação das pretensões da sociedade, estabelecidas em um determinado contexto, que não podem ser abandonadas "ao sabor do vento". Entre a norma[16] e a realidade deve haver uma relação de coordenação. (HESSE, 1991).

A vontade da Constituição (HESSE, 1991) reside exatamente no respeito às suas proposições, sem limitações ocorrentes ao talante das relações dominantes de poder.

A Constituição Federal, ao proclamar direitos sociais, busca força em seus próprios preceitos para determinar a realização de seus ditames, influenciando a realidade (sociedade) positivamente, para o cumprimento dos seus desideratos. "A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade" (HESSE, 1991, p. 14). Em outras palavras: "A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas, elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas" (HESSE, 1991, p. 15).

Assim sendo, a Constituição tem sim a possibilidade de impor tarefas à sociedade, desde que devidamente concatenada à realidade na qual está inserida. Mais: a Constituição necessita de formas de oxigenação, a fim de ser devidamente amoldada a situações específicas, não perdendo o seu caráter geral. Conforme aduz Hesse:

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas [normas programáticas (CANOTILHO, 1997)] forem efetivamente realizadas, e existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se poder identificar a vontade de concretizar essa ordem (HESSE, 1991, p. 19).

O desafio, então, é determinar como a Constituição poderá impor tarefas; nas palavras do autor, como a Norma Máxima poderá impor a sua vontade. Isso depende da normatividade que o texto constitucional alcança em determinado contexto,

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a partir da consciência acerca de determinados fatores, devidamente explicitados por Hesse:

a) valor de uma ordem normativa inquebrável;

b) compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos;

c) compreensão de que essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana.

É necessário, portanto, que a sociedade tenha plena consciência dos valores constitucionais, a fim de que a ordem instituída pela Lei Maior seja inquebrável e defendida por todos.

Faz imperioso, por outro lado, que essa ordem seja compreendida dentro de um contexto fático, no qual as expectativas da sociedade, proclamadas no texto constitucional, não sejam abandonadas por influências que contrariem os termos da Lei Maior.

Por fim, a vontade da sociedade é fundamental para que a vontade da Constituição possa prevalecer, a partir da idéia concreta de respeito a uma Norma calcada nos interesses gerais da sociedade, convergindo para a garantia dos direitos fundamentais.

Esta base argumentativa apresentada por Konrad Hesse amolda-se perfeitamente à percepção de garantia irrestrita dos direitos fundamentais, especialmente os de caráter social, que necessitam da compreensão, por parte da sociedade, da sua função primordial de garantir a igualdade material entre os cidadãos.

Portanto, se o direito à previdência consta no texto constitucional como direito fundamental, esta designação foi fruto da vontade política da sociedade em determinado momento, e esta vontade política, agora traduzida na vontade da Constituição, não pode ser abandonada em razão de fatores reais de poder (economia, preconceito, controle financeiro do sistema, etc.), devendo ser defendida pelo Estado e pela sociedade.

Cabe, portanto, uma reafirmação do sistema previdenciário brasileiro, visualizando as suas incompletudes e vislumbrando as possíveis alterações necessárias para que este se preste ao fim de também garantir o mínimo de dignidade[17] aos trabalhadores rurais (e seus dependentes) que se encontram em situação de risco, num claro e assumido modelo de previdência que privilegie a redistribuição de renda, em detrimento da assunção e um sistema de seguro individualista, que de social só possui o nome, e nada mais.

4. RETORNANDO À QUESTÃO DA IGUALDADE

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Conforme ficou estabelecido preliminarmente na introdução, a idéia de políticas públicas direcionadas surgiu a partir do desenvolvimento da configuração do direito à igualdade, encarado de forma positiva, a fomentar a atuação do Estado e da sociedade em sua aplicação concreta. Na medida em que a igualdade deixou de ser percebida apenas como um direito de "não intervenção" do Estado, passando a ser visualizada como uma política a ser fomentada, as políticas públicas de inclusão social começaram a ganhar corpo.

Essa diferença entre o direito negativo à igualdade e um direito positivo à igualdade ganha força nas palavras de Ronald Dworkin (Levando os Direitos à Sério), que estabelece a distinção entre a igualdade como "tratamento igual" (equal tratment) da igualdade como "tratamento como igual" (tratment as equal). Em suas palavras, o "tratamento igual" nada mais é do que um "direito a uma igual distribuição de alguma oportunidade, recurso ou encargo" (DWORKIN, 2002, p. 349).

Já o "tratamento como igual" é um "direito, não de receber a mesma distribuição de algum encargo ou benefício, mas de ser tratado com o mesmo respeito e consideração que qualquer outra pessoa" (DWORKIN, 2002, p. 350).

Nesse sentido, arremata o autor:

O direito de um indivíduo de ser tratado como igual significa que sua perda potencial deve ser tratada como uma questão que merece consideração. Mas essa perda pode, não obstante isso, ser compensada pelo ganho da comunidade como um todo. (DWORKIN, 2002, p. 351).

Nestas palavras, Dworkin estabelece-se uma distinção que é crucial para a possibilidade de argumentação em favor das políticas discriminatórias de inclusão social. A partir de então, inicia-se a discussão acerca dos parâmetros para a compreensão das vantagens de uma política discriminatória positiva:

Em determinadas circunstâncias uma política que coloca muitos indivíduos em desvantagem pode, mesmo assim, ser justificada porque dá melhores condições à comunidade como um todo.

(...)

Há dois sentidos em que se pode afirmar que uma comunidade está melhor como um todo (...). O sentido utilitarista, ou seja, porque o nível médio ou coletivo de bem-estar comunitário aumentou, apesar de o bem-estar de alguns indivíduos ter diminuído; o sentido ideal, ou seja, porque é mais justo, ou, de algum outro modo mais próximo de uma sociedade ideal, quer o bem-estar seja ou não aumentado. (DWOKIN, 2002, p. 357-358).

Essas idéias de Ronald Dworkin são elementares para a discussão acerca das políticas públicas especificamente direcionadas. Aliás, trazendo esta fundamentação

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dworkiana para a situação analisada no presente artigo, pode-se chegar a afirmar, sem maiores problemas, que a assunção de uma política de redistribuição de renda em favor dos trabalhadores rurais, por meio de um sistema previdenciário, é sim uma ação afirmativa, já que distingue esse grupo dentro de um âmbito específico (Previdência Social) para garantir-lhe melhores condições de tratamento, por conta da desigualdade fática que lhes é inerente em relação aos segurados urbanos.

5. AS AÇÕES AFIRMATIVAS NA PREVIDÊNCIA SOCIAL

No Brasil, Joaquim Barbosa Gomes, a partir da idéia de igualdade como política, traçada previamente por Dworkin, descreve as ações afirmativas como políticas sociais, que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material (GOMES, 2000, p. 3):

As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. (GOMES, 2000, p. 3)

As ações afirmativas têm o condão, em determinado contexto, de promover transformações sociais, a partir do proporcionamento de uma igualdade de recursos e oportunidades entre os membros de uma sociedade. As ações afirmativas são meios para garantir esta igualdade de oportunidades. Não são fins em si mesmo, vez que a finalidade destas discriminações positivas é justamente proporcionar a igualdade de recursos àqueles grupos menos favorecidos na sociedade. Essas políticas de focalização (SEN, 2000) são instrumentos para a concretização da igualdade.

A idéia de desigualar um determinado grupo juridicamente para lhe proporcionar uma igualdade fática é bem sintetizada nos dizeres de Carmén Lúcia Antunes Rocha:

"Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático." (ROCHA, 1996).

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Conforme previamente estabelecido, os direitos sociais estão intimamente ligados à idéia de ações afirmativas, pois é por meio de políticas públicas direcionadas nas suas áreas que se objetiva desenvolver estas discriminações positivas.

Conforme dispõe Ingo Wolfgang Sarlet:

Os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui o seu objeto. Conforme assinala José Eduardo Faria (FARIA, 2000): "os direitos sociais não configuram um direito à igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósito compensatório" (SARLET, 2007, p. 302).

Aliás, firme-se que estes direitos sociais (humanos) devem dar fundamento à idéia de igualdade material, por meio da inclusão social, jamais podendo ser afirmados como meios para a exclusão, para a desigualdade.

As políticas públicas previdenciárias a serem possivelmente desenvolvidas têm o condão de induzir a transformações sociais profundas, mediante a garantia do direito à dignidade aos trabalhadores rurais, que deixam a posição secundária na qual se encontram e passam a ser encarados como marco fundamental do desenvolvimento social e econômico brasileiro.

As eventuais ações afirmativas (sempre como instrumentos de políticas públicas) objetivam, neste campo, acabar com a má imagem disposta em desfavor dos trabalhadores rurais, que são encarados como os responsáveis pelos prejuízos da previdência social, em razão da baixa contributividade. A clarificação destas políticas públicas especificamente direcionadas poderá deixar cristalina qual a proposta do Estado brasileiro, por meio do sistema de previdência, em relação aos trabalhadores rurais.

Ademais, a possibilidade de crescimento social e econômico deste grupo, e do contexto no qual ele está inserido, fica mais concreta, ante a facilitação do acesso ao sistema de previdência.

Postos esses pontos de análise, há de se constatar que a idéia de políticas públicas no campo da previdência social é amplamente viável, se amoldada a partir de estudos concretos e específicos, que levem em consideração a vulnerabilidade dos trabalhadores rurais.

6. CONCLUSÕES

Como se pode perceber, o presente artigo apresenta mais indagações do que respostas ao tema proposto. Entretanto, vale frisar que é exatamente esse o seu intento: o de chamar atenção para um problema que vem sendo relegado pelos doutrinadores e cientistas que se ocupam com o Sistema Previdenciário brasileiro.

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A partir das propostas até aqui trazidas, algumas conclusões são possíveis, embora se reconheça que muitas outras questões ainda precisam ser amadurecidas, inclusive as tratadas no presente trabalho:

1) É cabível o debate acerca da possibilidade de desenvolvimento de políticas públicas especificamente direcionadas (inclusive de ações afirmativas) na seara do direito à previdência, para garantir a inclusão social e a igualização material do trabalhador rural brasileiro;

2) O sistema previdenciário brasileiro, embora normativamente calcado em bases contributivas, funciona na prática como um sistema solidarista, beirando a assistencialidade, o que macula a imagem do trabalhador rural como provocador dos prejuízos financeiros previdenciários;

3) As desigualdades jurídicas já implementadas em favor dos trabalhadores rurais brasileiros, no que tange aos serviços da previdência social, constituem-se em um avanço significativo para a inclusão social do grupo, mas ainda não suficientes para garantir a igualização aceitável destes em seus contextos;

4) O direito à previdência, tal como disposto no texto constitucional, é direito fundamental, de caráter social, de modo que o Estado tem o dever de promover-lhe integralmente, inclusive com discriminações positivas tendentes a minorar as desigualdades fáticas entre os trabalhadores rurais e os demais sujeitos de convivência contextualizada;

5) A legislação infraconstitucional brasileira não reconhece o direito à previdência como direito fundamental.

6) Há, na atualidade brasileira, uma verdadeira política de redistribuição de renda, operada por meio do Sistema previdenciário, que não é reconhecida legislativamente pelo Estado, maculando a imagem do trabalhador rural perante a Previdência Social nacional.

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[1] Bolsista-CAPES do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direitos Humanos do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará - UFPA.

[2] Nesta proposta, são sinônimos os termos direitos fundamentais ou direitos humanos.

[3] Ressalte-se que o caminhar histórico, mesmo do direito à igualdade, não foi igual em todos os contextos. Ademais, a explanação histórica aqui exposta tem o condão de demonstrar a evolução do conceito de igualdade, e não as razões que levaram a tanto.

[4] Políticas de focalização (SEN, 2000), políticas especificamente direcionadas.

[5] Importante destacar que a idéia de inclusão/exclusão social aqui proposta está ligada ao conceito de igualdade/desigualdade material. O debate desenvolve-se mais precisamente no campo sócio-econômico. A igualdade/desigualdade material pela inclusão/exclusão social é descrita por meio de um sistema hierarquizado que não afasta por completo os grupos porventura desprivilegiados; pelo contrário, estes são fundamentais em um determinado processo, mas assumem uma posição subalterna neste sistema de hierarquia (SANTOS, 2006).

[6] Art. 6º: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

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[7] Celebrada pela Resolução nº. 217, durante a 3ª Assembléia Geral da ONU, em Paris, França, em 10.12.1948.

[8] Art. 25. I) "Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle."

[9] Adotado pela Resolução n.2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 226, de 12.12.1991. Assinado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992. Entrou em vigor no Brasil em 24.2.1992. Promulgado pelo Decreto n.º 591, de 6.7.1992

[10] "Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social" (art. 9º).

[11] Cabe aqui estabelecer a diferenciação entre os termos seguridade social e previdência social, existente no Direito brasileiro: a Seguridade Social é gênero, da qual são espécies a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde. "A Previdência Social vai abranger, em suma, a cobertura de contingências decorrentes de saúde, invalidez, velhice, desemprego, morte e proteção à maternidade, mediante contribuição [?], concedendo aposentadorias, pensões etc." (MARTINS, 2004).

[12] Tendo em conta que o objetivo central do presente trabalho é discutir a possibilidade das ações afirmativas no campo do direito à previdência, e não apenas analisar a previdência do trabalhador rural brasileiro.

[13] Clóvis Zimmermann arremata seu artigo com a seguinte posição, sobre a qual cabe discussão: "A previdência rural brasileira é inovadora ao universalizar o acesso da população rural brasileira ao benefício, sem que os beneficiários necessitem provar uma contribuição, mas apenas o exercício da atividade agrícola, aproximando-se assim do modelo beveridgiano. Indiretamente, no entanto, a previdência rural arrecada uma contribuição advinda da porcentagem sobre o valor da produção comercializada. Mesmo assim, essa porcentagem não consegue e nem deve financiar todos os gastos com a aposentadoria dos segurados especiais por idade no âmbito rural." (ZIMMERMANN, 2005).

[14] Todos os dados apresentados foram levantados a partir do cruzamento de dados obtidos no Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa - IBGE (www.ibge.gov.br) e no Ministério da Previdência Social - MPS (www.mps.gov.br). Acessados em 04 nov. 2008.

[15] Apenas a título de exemplo das diferenciações feitas em relação aos requisitos para a utilização do sistema de previdência pelos trabalhadores rurais, vale citar o disposto no art. 195, §8º da CF/1988. O tempo de contribuição para a aposentadoria do trabalhador rural em reduzido em cinco anos, de acordo com o art. 48, §1º da Lei nº. 8.213/1991.

[16] Aqui em sentido genérico.

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[17] Vale estabelecer que, para a presente proposta, a dignidade pode ser encarada como um valor moral, a mover a atuação do indivíduo inserido em uma coletividade, bem como uma força material de concretização dos direitos mínimos (SARLET, 2006), variáveis de acordo com o contexto de implementação.

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