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VANESSA DURÃES PRUDÊNCIO O DESENCANTO DA ERA COLLOR SOB O OLHAR DA BANDA LEGIÃO URBANA (1989 – 1992) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES MONTES CLAROS/MG Abril/2015

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VANESSA DURÃES PRUDÊNCIO

O DESENCANTO DA ERA COLLOR SOB O OLHAR DA BANDA LEGIÃO URBANA (1989 – 1992)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES

MONTES CLAROS/MG Abril/2015

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VANESSA DURÃES PRUDÊNCIO

O DESENCANTO DA ERA COLLOR SOB O OLHAR DA BANDA LEGIÃO URBANA (1989 – 1992)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História.

Área de concentração: História Social.

Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e Gênero.

Orientador: Prof. Dr. Alysson Luiz Freitas de Jesus.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES MONTES CLAROS/MG

Abril/2015

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P971d

Prudêncio, Vanessa Durães. O desencanto da era Collor sob o olhar da banda Legião Urbana (1989-1992) [manuscrito] / Vanessa Durães Prudêncio. – Montes Claros, 2015. 137 f. : il. Bibliografia: f. 132-137. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2015. Orientador: Prof. Dr. Alysson Luiz Freitas de Jesus. 1. Collor. 2. Legião Urbana. 3. Representações. 4. Performance. 5. Política. 6. Música. I. Jesus, Alysson Luiz Freitas de. II. Universidade Estadual de Montes Claros. III. Título.

Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge

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Ao meu pai, pelas primeiras lições de história, por sua inteligência intuitiva para as questões políticas e por despertar em mim o interesse pela profissão historiador.

In memorian.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho é fruto do meu esforço, intelectual e humano, e resultado palpável

de parte do meu exercício acadêmico. Agradeço à FAPEMIG pelo financiamento que me

proporcionou dedicação exclusiva à pesquisa. À Professora Dra. Regina Célia Lima Caleiro,

pelas contribuições na banca de qualificação e pelas conversas de corredor que sempre

acrescentaram muito na minha vida acadêmica e nos trabalhos que produzi. Ao Professor Dr.

Alessandro de Almeida, pelas contribuições na qualificação, sem as quais o trabalho que aqui

apresento não seria o mesmo, pelos livros emprestados e sugestões de leitura e,

principalmente, por ter com suas aulas, ainda no ensino médio, provocado ainda mais o meu

interesse pela História. Agradeço-o ainda por concordar gentilmente em fazer parte desta

banca avaliativa.

À professora Anete Marília Pereira, que concordou gentilmente em orientar

esta pesquisa, mas que por justas razões agora se dedica às pesquisas de outro Programa de

Pós-Graduação. À professora Dra. Carla Anastasia, pela indicação de leituras, por ser sempre

acessível e pelas aulas enriquecedoras que me permitiram vislumbrar futuros projetos e me

despertaram interesse ainda maior pela história política. Ao professor Dr. César Henrique de

Queiroz Porto, pela condução de minha primeira pesquisa na graduação e pela atenção sempre

demonstrada para comigo e meu objeto de estudo. Ao professor Dr. Marcos Edson Cardoso

Filho, irmão de coração, pela ajuda imprescindível na minha vida acadêmica, pelo

empréstimo de livros e pela dedicação na leitura e nos comentários de outros textos que já

produzi. Agradeço-o ainda por aceitar ser membro da banca avaliativa e pelo profissionalismo

na leitura, avaliação e comentários deste texto.

Meu especial agradecimento ao professor Dr. Alysson Luiz Freitas, cuja

seriedade e competência, enquanto orientador e professor, foram fundamentais para a

conclusão desta pesquisa. Agradeço-o pela paciência, pelo direcionamento, pelos comentários

preciosos na banca de qualificação, por sempre acreditar no potencial da minha pesquisa e por

tornar a elaboração desta um processo conjunto e agradável. Agradeço-o também pelo modelo

de docência e pesquisa que agora serve de parâmetro para a minha carreira.

Agradeço a Tio Araújo, Tia Mê, Lu e Henrique, por terem se tornado minha

“família adotiva” e pelo suporte humano e familiar nos momentos de desamparo. Às amigas

Funny e Sol, cada qual com sua amizade singular e indispensável, por me incentivarem nessa

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caminhada e pelo cuidado quando mais preciso. Aos colegas, que se tornaram amigos, ou

vice-versa: Luana Balieiro, Diego Braga, Rodolpho Bastos, pelos diálogos enriquecedores,

pela troca de conhecimento e pelos momentos de lazer. Ao amigo escritor Pablo Diassi, pelo

exemplo de pesquisador e pelo entusiasmo acadêmico que me serve de estímulo. A todos os

professores e colegas do Mestrado por compartilharem comigo as dificuldades e vitórias deste

processo que agora se encerra. Aos primeiros, sem exceção, agradeço ainda por serem, cada

qual do seu modo, exemplos de professores/pesquisadores. À Universidade Estadual de

Montes Claros por ter se tornado a minha segunda casa e por me impulsionar, durante os

últimos nove anos, a crescer profissional, pessoal e academicamente.

Agradeço imensamente às minhas irmãs, Valéria, Gisele, e minha sobrinha

Ana Clara, por serem minha verdadeira e única família. A elas dedico a minha realização

pessoal e profissional, materializada nas páginas desta pesquisa. Agradeço, principalmente,

aos meus pais, Wagner e Augusta (in memorian), cujas lições de dignidade e nobreza estarão

comigo para sempre, guardadas em meu coração. A eles dedico todas as minhas vitórias e

lamento imensamente não tê-los como espectadores das conquistas que tenho alcançado. Por

fim, esperando trazer alguma contribuição para a produção acadêmica de nosso Programa,

agradeço aos leitores deste trabalho, por se interessarem pelo tema e se disporem a lê-lo e

avaliá-lo, o que colabora para que meu esforço não seja esquecido.

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“Hoje sabemos que cada obra de arte é sui generis, e deve ser respeitada e

julgada segundo os critérios que ela mesma impõe” (Antônio Cícero)

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RESUMO

O presente trabalho busca analisar a conjuntura social, política e cultural do período entre as eleições presidenciais de 1989 e o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello (1989-1992) – que conveniamos chamar de Era Collor – a partir das referências contidas no álbum “V” (1991) da banda Legião Urbana. O objetivo é compreender como a eleição e as medidas econômicas controversas do primeiro presidente brasileiro eleito democraticamente após o regime militar, repercutiram na produção cultural daquele momento. A obra da Legião Urbana, sendo um elemento cultural que integra a realidade, fornece um viés específico acerca da situação sócio-política do período e retrata como a sucessão de acontecimentos reverberou no cotidiano de parte da população jovem. Dessa maneira, pautados teórica e metodologicamente pelos conceitos de representação, no sentido apresentado por Roger Chartier (2002), e performance, na acepção de autores como Simon Frith (1996) e Thomas Turino (2008), pretendemos compreender até que ponto essas canções dialogam com o cenário nacional, observando letra, música e performance. Investigamos, também, como o domínio dos bens simbólicos culturais corresponde com a realidade política e muito diz sobre ela. PALAVRAS-CHAVE: Collor, Legião Urbana, representação, performance, política, música.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the social, political and cultural period between the presidential election of 1989 and the impeachment of President Fernando Collor de Mello (1989-1992) – otherwise known as Collor Age – from references contained in the album “V” (1991) by Legião Urbana band. The purpose is to understand how the election and the controversial economic measures of the first Brazilian democratically elected president after the military regime, affected the cultural production of that period. The work of Legião Urbana, with a cultural element that composes reality, provides a specific bias to the socio-political situation of period and portrays the succession of events and their impact on young people's daily lives. Thus, theoretically and methodologically guided by the concepts of representation in the sense presented by Roger Chartier (2002), and performance within the meaning of authors such as Simon Frith (1996) and Thomas Turino (2008), we aim to understand the extent to which these songs provide a dialogue with the national situation, observing lyrics, music and performance. We also investigate how the field of cultural symbolic products interacts with political reality and how much it says about it. KEYWORDS: Collor, Legião Urbana, representation, performance, politics, music.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11

CAPÍTULO I: INDÚSTRIA CULTURAL E JUVENTUDE ................................... 22

1.1. As Perspectivas da Indústria Cultural .............................................................. 23

1.1.1. A Indústria Fonográfica no Brasil ............................................................... 32

1.2. Conjuntura política e social brasileira: Do Golpe de 1964 à distensão ............ 36

1.2.1. A Ditadura Militar ......................................................................................... 36

1.2.2. A Canção de Protesto .................................................................................... 39

1.2.3. Da redemocratização ao fim do Governo Sarney: o surgimento do “encanto” .................................................................................................................

43

1.3. A banda Legião Urbana .................................................................................... 47

1.3.1. Antecedentes do rock nacional ...................................................................... 47

1.3.2. Formação, influências e trajetória ................................................................. 50

1.3.3. O álbum “V” (1991): aspectos gerais ............................................................ 59

CAPÍTULO II : POLÍTICA E MÍDIA: ONDE AS DUAS SE ENCONTRAM ....... 63

2.1. A Presidência Fernando Collor de Mello ......................................................... 64

2.1.1. O Breve Governo: o programa neoliberal, as ações monetárias e o impeachment ............................................................................................................

65

2.2. História e Mídia ................................................................................................ 72 2.2.1. A relação da Legião Urbana com a mídia ..................................................... 73 2.2.2. Collor e Mídia: a campanha, a influência da publicidade na figura de

Collor, e o confronto do mito versus o ser humano ................................................ 79

2.3. O álbum “V” (1991): referências medievais e subjetividade............................ 86

CAPÍTULO III: MUSICALIDADE E PERFORMANCE: A IMPORTÂNCIA DO AGIR E A MÚSICA COMO PRÁTICA COLETIVA ................................................

94

3.1. Uma discussão sobre os aspectos da performance ........................................... 94

3.2. Metal Contra as Nuvens: a repercussão social e o desencanto com o governo Collor .......................................................................................................................

107

3.3. O Teatro dos Vampiros: uma análise da canção de 1991 ................................ 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 123

ANEXOS ..........................................................................................................................

128

5.1. Anexo 1: Documento de censura da canção “Faroeste Caboclo” .................... 128

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5.2. Anexo 2: LEGIÃO URBANA. V. EMI Music Brasil, 1991. 1 disco (49:50 min). Capa e Contracapa .........................................................................................

129

5.3. Anexo 3: Capa da Revista “Veja” de 23 de março de 1988 ............................. 131

ARTIGOS DE JORNAL ................................................................................................ 132

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 132

FILMES E DOCUMENTÁRIOS .................................................................................. 136

FONTES .......................................................................................................................... 136

WEBSITES ...................................................................................................................... 137

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INTRODUÇÃO

A música, sobretudo a chamada “música popular”, ocupa no Brasil um lugar privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e regiões que formam o nosso grande mosaico nacional. Além disso, a música tem sido (...) a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais. (...) Portanto, arrisco dizer que o Brasil, sem dúvida uma das grandes usinas sonoras do planeta, é um lugar privilegiado não apenas para ouvir música, mas também para pensar a música. (NAPOLITANO, 2005, p. 07)

A década de 1980 foi para o Brasil um período de rupturas e transformações

profundas no cenário político. Depois de mais de duas décadas de Regime Militar (1964-

1985), a ditadura foi sendo aos poucos dissolvida pelo governo do presidente Ernesto Geisel

(1974-1979), dissolução potencializada pela “abertura lenta e gradual” do presidente João

Figueiredo (1979-1985). Ambos os presidentes, eleitos de maneira indireta, “afrouxaram” o

rigor militar dos anos anteriores permitindo que o governo democrático fosse restabelecido de

maneira gradativa.

Sob esse cenário, no começo da década de 1980, que o letrista e líder da banda

Legião Urbana, Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo, começou a se aproximar e se

interessar por política não partidária, mas cotidiana, vinculada ao social. Como jornalista,

publica artigos sobre política, experiência que mais tarde veio a enriquecer suas composições

e sua visão dos panoramas e acontecimentos nacionais retratados nas letras. Foi quando todas,

em suas palavras, as ilusões juvenis, “de querer salvar o mundo, ser o bastião da verdade,

acabaram” (RUSSO, 1988 Apud ASSAD, 2000, p. 62).

A partir de 1984 a democracia foi reintroduzida paulatinamente no país.

Mantiveram-se, no entanto, algumas características comuns à Ditadura Militar, sendo que o

retorno às eleições diretas aconteceu somente em 1989. Nesse momento, diante de uma

conjuntura política, econômica e também social desanimadora, embora com vistas à mudança

devido à reconstrução da democracia, a figura de Collor surgiu como uma injeção de

esperança no país que, depois de décadas sem a possibilidade de escolher seus próprios

presidentes e sob um regime autoritário, teve no candidato uma expectativa de mudança.

Nordestino, embora de classe alta, de boa aparência, esportista, com discurso moderno e

inovador, além de cercado do mais especializado aparato de marketing, Fernando Collor de

Mello, o “caçador de marajás”, foi recebido com grande entusiasmo pelo eleitor

desacostumado a escolher seus representantes.

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A mídia teve papel crucial na formação e divulgação da imagem do candidato,

já que a publicidade em torno dele levou à sua popularização e, consequentemente, facilitou

sua vitória nas urnas. Segundo Maria Cândida Galvão Flores (2008), “ele procurou impor uma

imagem de si mesmo que captasse e fixasse a atenção da sociedade brasileira” (2008, p.09).

Com a finalidade de atrair a atenção dos eleitores das mais diversas classes e setores do país,

ele reuniu uma série de aspectos que supostamente atenderia às expectativas de todas as

classes sociais e profissionais. Foi delineada então, a figura do performer político – e cuja

imagem também é associada à de um “messias”, já que a campanha era toda pautada na

imagem: postura, vestimentas, expressão corporal, discurso. Assim:

O apelo da campanha era basicamente emocional, buscando estabelecer processos de projeção, ou seja, identificação dos eleitores com o candidato, uma vez que as propostas de Collor de Mello eram fruto de pesquisa junto à sociedade para que ele soubesse o que os eleitores esperavam de um futuro presidente (FLORES, 2008, p.10).

Quase trinta anos após a última eleição direta que escolheu Jânio Quadros

(1961) presidente do Brasil, Collor foi eleito democraticamente, após uma eleição de dois

turnos, conforme estabelecia a Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 19881,

quando concorreu com o candidato do PT (Partido dos Trabalhadores), Luís Inácio Lula da

Silva, em uma disputa equilibrada do ponto de vista da soma de votos. Seu discurso jovem e

arrojado foi determinante para a vitória e sua eleição um marco da história política do país.

Sua proposta inovadora de instaurar um novo modelo de governo no país, e que incluía

promessas de combate à corrupção e inflação, deixou o povo brasileiro esperançoso quanto

aos rumos que o Brasil tomaria.

Assim que assumiu o poder, iniciou-se um plano de estabilização econômica, o

Plano Collor, que marcaria definitivamente seu governo. As medidas do Plano Collor

incluíam a mudança da moeda vigente, o congelamento de valores nas poupanças e contas

corrente, e surpreendeu negativamente a população: “O Collor não dizia que era o Lula que ia

mexer na poupança do povo? Eu, que tenho tudo, fiquei puto! Imagine quem passou a vida

economizando!” (RUSSO, 1990 Apud ASSAD, 2000, p.107). Entretanto, depois de curto

período governando, período esse marcado pela instabilidade econômica a despeito das

radicais medidas, além de inúmeras denúncias de corrupção direcionadas ao secretariado e ao

próprio presidente, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a

1 Título IV – Da Organização dos Poderes, Capítulo II – Do Poder Executivo, Sessão I – Do Presidente e do Vice-Presidente da República, Art. 77.

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fundo essas denúncias. Com o desenrolar das investigações, o processo de impeachment do

presidente ganhou força e tornou-se inevitável.

Diante de imensa impopularidade, resultado dos sucessivos escândalos

decorrentes das investigações, na tentativa de retomar o controle da situação e reconquistar o

apoio popular, Collor convocou a população a sair às ruas, em um comunicado oficial

veiculado na televisão no dia 13 de agosto de 1992, utilizando as cores verde e amarela em

sinal de apoio ao governo. Em vez disso, no dia 16 de agosto, os “caras pintadas”, formados

principalmente por jovens de diversas idades e classes sociais de várias partes do país, foram

às ruas protestar contra a corrupção num episódio que ficou conhecido como “Domingo

Negro”. Essa situação, embora utilizada pelos partidos de oposição e pelos sindicatos para

angariar apoio e popularidade, foi de uma extensão totalmente diferente:

Os jovens não aparentavam optar entre esquerda e direita, ou entre este ou aquele partido político. Parecia naquele instante existir um sentimento maior, abrangendo um movimento dito pela ética na política, mostrando uma população cansada pela sucessão de escândalos (SANTOS, 2008, p. 205)

Em 02 de dezembro de 1992, o Senado aprovou o impeachment de Collor que

foi julgado pela justiça comum por crime de responsabilidade. Em 29 de dezembro, durante

sessão do Superior Tribunal Federal (STF) e depois de várias tentativas da defesa de adiar o

julgamento, o advogado do presidente leu a sua carta de renúncia, provavelmente numa última

tentativa de não ter seus direitos políticos cassados e sua inelegibilidade decretada. Porém,

mesmo tendo renunciado ao cargo, Fernando Collor de Mello foi julgado inelegível durante

oito anos.

Inserido nesse panorama, o álbum “V” (1991) da banda Legião Urbana, objeto

de nossa análise, foi lançado com canções que circundam o cotidiano juvenil no período

tratado. Este álbum, segundo Renato Russo, foi “feito em cima da crise do Collor, era o disco

da lama” (RUSSO, 1993 Apud ASSAD, 2000, p. 62). No final da década de 1970, a futura

Legião Urbana, então com outros integrantes, chamava-se Aborto Elétrico. Pioneira do rock

da cidade de Brasília, o Aborto Elétrico tinha Renato, então Manfredini Júnior,

posteriormente Russo, como principal integrante (vocalista, compositor e letrista) e o único

que também faria parte da Legião Urbana.

O Aborto Elétrico ficou conhecido por suas músicas agressivas e com

inspiração punk ainda mais evidente que na Legião Urbana. Nesse mesmo período foi escrita

a primeira composição de Renato Russo que se tornou uma máxima para o jovem daquela

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época. “A primeira letra escrita por Renato seria transformada em hino dessa geração, dita

‘Coca-Cola’” (DAPIEVE, 2000, p. 49). A canção “Geração Coca-cola” entrou no primeiro

disco da Legião Urbana, em 1985.

A Legião Urbana tal como ficou conhecida nacionalmente, foi formada por

volta de 1982, por iniciativa de Renato Russo que convidara Marcelo Bonfá, baterista, para

um novo projeto musical, onde, “(...) com um no baixo e outro na bateria, eles convidariam

músicos, sobretudo guitarristas (...) para experiências diversas” (DAPIEVE, 2000, p. 60). O

projeto não funcionou, e após a passagem de alguns músicos, a Legião Urbana chegou à

formação final com Renato, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha, que mais

tarde deixaria a banda. Destacando-se no cenário do rock brasileiro, o grupo alcançou status

no mercado fonográfico, e com isso adquiriu conotação messiânica, tal qual o presidente

Collor, sendo intitulado pelos fãs como “Religião Urbana”. Característica comum às

expressões culturais de massa, muitos artistas passam a ser considerados verdadeiros gurus e,

segundo Umberto Eco, “(...) desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias

históricas, tem cabido às ideologias religiosas” (2004, p. 43). Sobre isso, Walter Benjamin

explica que a “(...) obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico” (1994, p.

171) que é reconhecido e absorvido pelo público.

A música popular brasileira dos anos 1960 e 1970 é considerada crítica e

engajada, tanto pelos críticos especializados como pelo cidadão comum. A geração que

atravessou o período de Ditadura Militar e, através da música, lutou pela liberdade de

expressão e criação artística é amplamente reconhecida e, mais tarde, passa a ser comparada

com a geração seguinte que, a partir da década de 1980, utilizou de uma forma diferente de

fazer música popular no Brasil. Segundo João Pinto Furtado (1997):

Diferentemente de seus pares dos anos sessenta e setenta, os produtores e consumidores das representações culturais dos anos oitenta e noventa não seriam portadores das grandes certezas que aqueles outros tinham. Seus valores e universo existencial trazem, embora anunciem nas entrelinhas um programa de ação imediata, a marca de uma relativa indeterminação. (1997, p. 140)

Assim, “ao longo dos anos oitenta (...) já tinha se tornado lugar-comum no

Brasil a afirmativa de que a própria década de 1980 tinha sido, sob todos os aspectos, a

década perdida” (FURTADO, 1997, p. 125). E continua dizendo que “(...) a atividade

econômica, a participação política, os movimentos sociais e a produção cultural eram, nessa

perspectiva (...), vistos sob o pejorativo enfoque de involução” (FURTADO, 1997, p. 125).

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Nesse mesmo sentido, Renato Russo ironizou ao tratar os jovens de sua própria época como

“nossa grande geração perdida”, em referência às críticas a que eram sujeitos.

Visando contrariar essas críticas, algumas bandas de rock, nesse caso

específico a Legião Urbana, através de suas letras e performances contestadoras, expuseram

os anseios da juventude de sua época, somando rebeldia e crítica política e social. Marcos

Napolitano (2006) explica que:

A MPB, o samba e o rock acabaram formando uma espécie de frente ampla contra a ditadura, cada qual desenvolvendo um tipo de crítica, atitude e crônica social que forneciam referências diversas para a idéia de resistência cultural. A MPB com suas letras engajadas e elaboradas (...) e o rock com seu apelo a novos comportamentos e liberdades para o jovem das grandes cidades. (2006, p. 111-112)

Orientada inevitavelmente pelo mercado fonográfico e, devido a isso, visando à

obtenção de lucro, os artistas da época, principalmente do rock, possivelmente utilizaram de

suas posições notórias para, além de divulgar sua música, explorar temáticas com vistas à

conscientização do público consumidor. Para Luciano Carneiro Alves (2002), essa música

“(...) não deixa de ser uma manifestação legítima apenas porque é produzida na esfera da

indústria cultural” (2002, p. 26). Em suma, no contexto aqui apresentado e para a análise aqui

proposta, a indústria cultural representaria o principal meio para a veiculação de um ideal.

Na obra “Indústria Cultural e Sociedade”, Theodor Adorno (2002) diz que “(...)

os talentos pertencem à indústria muito antes que esta os apresente; ou não se adaptariam tão

prontamente” (ADORNO, 2002, p. 10). Considerando a visão adorniana, embora não

concordando totalmente com ela, podemos perceber que antes de atingir o sucesso a Legião

Urbana fazia parte de um sistema social que, tempos depois e de dentro dele, viria a lançar

opiniões e críticas. Dessa maneira, a fórmula por eles utilizada para alcançar o

reconhecimento em âmbito nacional já estaria previamente “aprovada” e seria aceita pela

juventude, a qual os próprios integrantes faziam parte, sabendo então o que produzir.

Sob as perspectivas da Indústria Cultural e a intenção de atingir um público, a

banda procurava contestar os problemas político-sociais adequando-se às necessidades

ideológica e musical dos jovens. Devemos ponderar, entretanto, que ao tornar-se parte do

sistema cultural industrializado a Legião Urbana precisou adaptar-se àquele meio, o que não

implica na necessidade de atender integralmente às exigências do mercado em detrimento dos

ideais e da liberdade de produção da banda.

Partindo dos pressupostos apresentados, esta pesquisa se propõe a

compreender, por meio da análise dos aspectos políticos, históricos, sociais e culturais

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contidos nas canções do álbum “V” (1991) da Legião Urbana, como o curto período entre a

ascensão e o declínio do primeiro presidente eleito democraticamente no Brasil após quase

três décadas sem eleições diretas, reverberou no cotidiano do cidadão brasileiro, sobretudo os

jovens. Pretendemos, também, investigar como o domínio dos bens simbólicos culturais

integra a realidade política. Sem entrar no mérito da política eletiva e partidária, a Legião

Urbana logrou assumir uma função de discursar e criticar em nome de determinada parcela da

população jovem brasileira, por via da identificação. A esse respeito, Renato Russo explica:

Acho que a função do artista está mais ligada a pão e circo. Mesmo que sejam pão e circo emotivos, uma coisa que vá te alimentar psiquicamente. Entendo que o artista não deve se envolver em política partidária. Faço uma política diferente: falo de coisa que interfere na minha vida. Em outra época, talvez não estivesse falando Que País É Este? Para mim, vai ser muito fácil fazer uma música para alguém que perdeu o emprego, porque estou vendo isso, tenho muitos amigos nessa situação. São coisas que me tocam emocionalmente. Chego, então, nesses assuntos ligados à política do Estado através da emoção. Simplesmente, fui tocado pelos fatos, e isso filtra nas músicas, embora eu não tenha nenhum plano e não entenda de política. (RUSSO, 1988 Apud ASSAD, 2000, p. 196).

Sendo um período relevante para a história política do país, a Era Collor (1989-

1992) desperta grande interesse no universo da pesquisa acadêmica. Entendemos como “Era

Collor” o período que vai do surgimento do político Fernando Collor de Mello enquanto

candidato às eleições presidenciais de 1989, abrangendo sua campanha midiática, sua vitória

nas urnas, seu reduzido período de governo, até a sua retirada do poder em 1992. São

conhecidos inúmeros trabalhos que analisam esse breve espaço de tempo através de fontes

diversas, como periódicos (jornais, revistas, etc.), telejornais, materiais de campanha eleitoral,

dentre outras fontes, apontando geralmente para o viés jornalístico e de marketing tão

recorrentes em se tratando de Collor. Entretanto, são escassas as pesquisas voltadas para a

análise da produção cultural desse período, ficando a maior parte delas restritas às esferas

econômica e política.

Iniciado com o trabalho monográfico da Graduação em História, trabalho

limitado à compreensão do período de transição democrática no Brasil (década de 1980) por

meio das canções do primeiro álbum da banda, o “Legião Urbana” (1985), a presente pesquisa

dá continuidade aos estudos sobre a história política nacional recente, utilizando

especificamente da produção cultural como fonte de análise e entendimento. A monografia

permitiu ampliar o panorama de pesquisa e através dela foi possível vislumbrar novas

vertentes para estudos posteriores. Da mesma maneira, o fazemos a fim de compreender como

a realidade política e social influencia a produção de bens simbólicos.

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Sandra Jatahy Pesavento (2008), em “História & História Cultural”, explica

que com a Escola dos Annales “houve (...) uma verdadeira dilatação do campo de trabalho do

historiador, tanto no que diz respeito a atores quanto a temas ou objetos” (2008, p. 31-32). A

partir de então, a História Cultural se firmou enquanto ciência propondo “(...) decifrar a

realidade do passado por meio de suas representações, tentando chegar àquelas formas,

discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo” (2008,

p. 42).

Dentro da História Cultural, um dos mais importantes conceitos para o

historiador/investigador é o da representação, que foi incorporado à História no início do

século XX, devido às mutações do trabalho histórico, com a necessidade de se desvincular

dos métodos sociológicos e geográficos de pesquisa, e, por consequência, às “(...) tentativas

para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando nas meadas das relações e das tensões

que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (...)” (CHARTIER, 1991, p. 177).

Pesavento (2008) coloca que:

As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade (2008, p. 39).

Carlo Ginzburg (2006) define que o termo representação exprime ambigüidade,

já que “por um lado (...) faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausência;

por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença” (GINZBURG,

2006, p. 85). Em concordância, Pesavento (2008) explica que “a idéia central é, pois, a da

substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença” (2008, p. 40), e

conclui que “a força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir

reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de

verossimilhança e de credibilidade, e não de verdade” (2008, p. 41). Chartier (2002) reforça

essa idéia ao dizer que a relação dessa representação é “entendida como relação entre uma

imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga” (2002,

p. 184). Dessa maneira, as representações não detêm a capacidade de substituir o real, não

constituindo, assim, em verdades inquestionáveis.

Ao discorrer sobre essa temática, Francisco Falcon (2000), em “História e

Representação”, explica que, por se tratar de um termo cercado de controvérsia e imprecisão

conceitual, surgem diferentes maneiras de se abordar as representações. Na historiografia

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atual, um dos mais importantes e usuais fragmentos da representação consiste nas chamadas

“representações sociais”. As representações sociais são partes de um amplo sistema simbólico

que integra uma coletividade cultural. Dessa maneira, o imaginário social constitui:

Uma força reguladora da vida coletiva, que, ao definir lugares e hierarquias, direitos e deveres, constitui um elemento decisivo de controle dessa mesma vida coletiva, aí incluído o exercício do poder. (...) os “imaginários sociais” não devem ser lidos como simples expressões “imaginárias” de forças e interesses que lhes são “externos”, é evidente que eles são também um dos lugares dos conflitos sociais e, por conseqüência, igualmente alvos de tais conflitos. (FALCON, 2000, p. 53).

Para o estudo das representações sociais, sua identificação, análise e

interpretação “(...) em termos de significações, estruturas, manifestações simbólicas e

funções” (FALCON, 2000, p. 52), Falcon (2000) define o que seria uma abordagem de cunho

textual:

No caso das abordagens textuais, os imaginários sociais constituem “representações” cujos sentidos devem ser apreendidos nos textos dos próprios imaginários. Nesse caso, explicá-los e compreendê-los já não é mais uma operação destinada a reduzi-los às suas determinações “não-imaginárias”, mas, pelo contrário, é a tentativa de perceber de que modo tais imaginários “constituem” a própria realidade, incluindo o social. (FALCON, 2000, p. 52)

Roger Chartier (2002) explica, a respeito da investigação das representações de

cunho textual, que deve-se considerar os contrastes existentes no ato da leitura, ou seja, de

que maneira aquilo que está escrito é entendido e absorvido por quem lê.

Contrastes (...) entre as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes grupos de leitores investem na prática de ler. De tais determinações, que regulam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que não dispõem dos mesmos utensílios intelectuais e que não entretêm uma mesma relação com o escrito. (CHARTIER, 2002, p. 179)

Aplicando tal perspectiva à análise do elemento textual da canção, percebemos

que, muito além de representar um pensamento comum de alguns jovens da época, as canções

podem ser lidas de diversas maneiras. É importante vislumbrar que a obra musical enquanto

objeto de pesquisa, engloba características de quem a produz, sendo essas características

diretamente relacionadas ao histórico do artista (contexto, história de vida, influências), e

recebe novo sentido ao atingir o público a quem é dirigida. Em outras palavras, a

interpretação da obra deve reputar o que é produzido (a mensagem que se deseja passar) com

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aquilo que é absorvido, já que a obra pode, muitas vezes, ser “re-significada” de acordo com o

entendimento de cada consumidor.

A representação é um conceito ambíguo, por vezes contraditório e, em suma,

subjetivo, constituindo “(...) um recurso essencial para uma história das apropriações”

(CHARTIER, 2002, p. 179). Chartier (2002) explica que “a apropriação (...) visa uma história

social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas

nas práticas específicas que as produzem” (2002, p. 180). Ou seja, a representação seria uma

via interpretativa do real, que por sua vez, através da apropriação de sentido, torna-se

subjetivamente explicável.

Nesse sentido, Clifford Geertz (1989), em “A Interpretação das Culturas”,

afirma que a cultura é uma rede de significados e, assim, sua análise surge “(...) não como

uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura

do significado” (1989, p. 15). Para Geertz (1989), toda pesquisa cujo objeto é a cultura, ou

algum elemento cultural, é analítica e interpretativa. “A análise é, portanto, escolher entre as

estruturas de significação (...) e determinar sua base social e sua importância” (GEERTZ,

1989, p. 19). Sendo assim, a análise da canção, enquanto um elemento cultural, faz-se da

mesma maneira, e embora utilize aspectos historiográficos e científicos, segue uma lógica

subjetiva de interpretação.

Para esta pesquisa, entendemos que as canções da Legião Urbana são

representações daquele período, no sentido apresentado por Pesavento (2008), e “(...) que o

historiador visualiza como fontes ou documentos para sua pesquisa, porque os vê como

registro de significado para as questões que levanta” (2008, p. 42). Procuramos compreender

de que maneira essas representações se inserem e dialogam com o cenário nacional do

período supracitado e até que ponto podem ser entendidas como uma fração do pensamento

que permeava a população jovem do período. Entendemos que a vibração daqueles dias, o

clima melancólico trazido pelas múltiplas crises somadas ao medo do retorno à ditadura,

comum em uma democracia recém restaurada, serviu de inspiração para a composição das

canções do disco. Em entrevista, Renato Russo confessa que essa melancolia o ajudava na

hora de compor:

Não que eu escreva melhor quando estou melancólico, mas eu encontro sobre o que escrever. Mesmo que seja uma música positiva como Quase Sem Querer, sempre vem da necessidade de resolver alguma coisa que não está resolvida. (RUSSO, 1990 Apud ASSAD, 2000, p. 167)

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Optamos por dividir o presente trabalho em três capítulos. No Capítulo I,

intitulado “Indústria Cultural, Juventude e Ditadura”, discutimos as perspectivas da indústria

cultural e suas implicações no meio juvenil tendo como metodologia a análise de autores

como Theodor Adorno (2002), Umberto Eco (2004), Walter Benjamin (1994), John B.

Thompson (2002), João Pinto Furtado (1997) e Marcos Napolitano (2005, 2006), esses

últimos que discorrem sobre a música popular brasileira entre as décadas de 1960 e 1990, e a

cultura de massas no Brasil entre as décadas de 1950 e 1980 respectivamente.

Com o propósito de entender o trajeto político nacional, ainda no primeiro

capítulo, analisamos autores que tratam da política brasileira durante a ditadura militar como

Maria Helena Moreira Alves (2005), Jorge Ferreira (2003), Francisco Carlos Teixeira da Silva

(2003), José Murilo de Carvalho (2014) e Boris Fausto (2013). Além disso, visando

compreender a relação entre a música e o cenário político nesse mesmo período, analisamos

brevemente a canção de protesto dos anos de governo ditatorial, por tratar-se de um período

de importante produção para a música popular, além de abrir caminho para o entendimento da

produção musical das décadas de 1980 e 1990. Utilizamos as explanações de José Ramos

Tinhorão (1998) que trabalha a identidade cultural brasileira, Marcelo Ridenti (2000, 2003) e

seus estudos sobre a cultura brasileira a partir da década de 1960, dentre outros. No último

tópico do capítulo, apresentamos um histórico da banda Legião Urbana, em que discutimos

sua formação, suas influências e, por último, a produção e algumas linhas gerais a respeito do

disco que utilizamos na nossa análise, o Álbum “V” (1991).

No Capítulo II, “Política e Mídia: onde as duas se encontram”, visando traçar

um histórico do político Fernando Collor de Mello, sua atuação, campanha, interações

políticas e midiáticas e seu programa de governo, analisamos autores como Bolívar

Lamounier (1990), José Murilo de Carvalho (2014) e Mário Sérgio Conti (1999), além de

bibliografia complementar que trata da história política brasileira. Ao trabalhar a campanha à

presidência de 1989, analisamos autores como John B. Thompson (2002), Norberto Bobbio

(1998) e Olga Tavares (1998), já que partimos do princípio de que Collor era a síntese do mito

político que por vezes era “humanizado”. Para dar sustentação ao nosso trabalho de

investigação e entendimento das letras, através de uma leitura subjetiva, como sugerida por

Clifford Geertz (1989), utilizamos o conceito de representação a partir de autores como Roger

Chartier (1996) e Carlo Ginzburg (2006).

Trazemos ainda neste capítulo uma discussão a respeito da relação entre os

dois principais personagens do nosso trabalho, Collor e Legião Urbana, com os meios de

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comunicação de massa, para, na seqüência, examinar as canções com conteúdo subjetivo e

representações medievais. Utilizamos das explicações de Jacques Le Goff (1994) para

compreender as referências ao universo do imaginário medieval que o disco apresenta. A

intenção, além de investigar essas referências e habituar o leitor com a linguagem da obra,

inserindo-o no mundo medievalesco criado neste álbum, é abrir caminho para o terceiro e

último capítulo, onde analisamos as canções com representações da Era Collor, que aparecem

romanceadas em referências medievais e∕ou subjetivas.

Além da análise do elemento textual da canção, avaliamos aspectos

concernentes à performance, de que trata autores como Simon Frith (1996) e Thomas Turino

(2008), no Capítulo III deste trabalho, intitulado “Musicalidade e Performance: a importância

do agir e a música como prática coletiva”. Tendo em vista a riqueza e a multiplicidade de

aspectos que compõem uma canção, todos eles relevantes para a compreensão da maneira na

qual a música se liga a seu contexto de produção e muito diz sobre ele, analisamos neste

capítulo as canções “Teatro dos Vampiros”, que apresenta o cotidiano do jovem brasileiro

perante a crise, e “Metal Contra as Nuvens”, que analisa aspectos concernentes à política do

governo Collor e seus reflexos na sociedade. Pretendemos aferir elementos que retratem de

que maneira surge o desencanto com o breve governo Collor, este que por sua vez também

apresenta aspectos de performance política, brevemente pincelada neste terceiro capítulo.

Ao longo de todo o trabalho, para complementar nossa análise, fazemos um

cruzamento dessas canções e da bibliografia estudada com outras fontes como artigos de

jornais e revistas, entrevistas e vídeos, tendo em vista a importância de confrontar a

bibliografia tradicional, as canções e as inúmeras fontes disponíveis para investigação. Todas

as referências utilizadas aqui, dialogam entre si e são complementares, o que serve para

reforçar a importância de um trabalho histórico que utiliza fontes não tradicionais.

Sabendo que o estudo de um período tão singular para a história política e

social do país não deve se restringir a um único elemento, nesse caso o cultural, apoiamo-nos

no exame da bibliografia pertinente ao nosso objeto como base para a proposta aqui

apresentada. Apesar da utilização de novas fontes de pesquisa, é indispensável a

fundamentação historiográfica, sobretudo em se tratando de um período cuja maior parte dos

trabalhos tem cunho jornalístico e sociológico. Não obstante exerça uma função central como

fonte de pesquisa e tenha se tornado agente histórica e produtora de acontecimentos, a mídia

ainda constitui uma fonte não única de entendimento dos períodos históricos, como também

ocorre com outras fontes, e depende, assim, de análise criteriosa por parte do historiador.

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CAPÍTULO I

INDÚSTRIA CULTURAL, JUVENTUDE E DITADURA

Para este capítulo, optamos por partir de três eixos fundamentais ao se utilizar

componentes culturais, no caso a música, como fonte para o estudo da história, a saber: a

Indústria Cultural, o contexto histórico e as influências recebidas pelo artista. Em primeiro

lugar, discutimos as diferentes perspectivas da Indústria Cultural, seguindo uma análise da

Indústria Fonográfica brasileira, visando compreender em qual medida o objeto de nosso

estudo encontra-se situado em um panorama mercadológico. Em seguida, fazemos um

histórico nacional, passando pela Ditadura Militar com foco na redemocratização e no

governo José Sarney, para esclarecer as etapas do desenvolvimento político brasileiro que

culminaram com as eleições presidenciais de 1989, objetivando situar o que constitui o

terceiro ponto fundamental deste capítulo, a formação da banda e a produção do Álbum “V”

(1991), cujas canções escolhidas serão analisadas nos Capítulos II e III. O propósito é colocar

em paralelo as influências que os artistas da banda receberam, sobretudo Renato Russo

principal compositor e letrista, com a conjuntura em que a obra está inserida, ponderando as

possíveis interferências que um artista sofre ao se tornar produto de uma gravadora, no cerne

do mercado cultural.

Sobre esse último ponto, Renato Ortiz (2000) diz que:

A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz, fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômica, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada, mediada pela técnica e pelas leis de mercado. (ORTIZ in DIAS, 2000, p. 12)

O conceito de indústria cultural, termo sugerido por Theodor Adorno (2002)

em substituição à expressão “cultura de massas”, envolve uma enorme variação de definições,

sendo alvo de críticas e, ao mesmo tempo, sendo equivocadamente explorado. Não se pode,

portanto, reduzir a indústria cultural a uma mera difusora de produtos culturais para as massas

consideradas passivas e totalmente receptivas. Um dos objetivos desse primeiro capítulo é

apresentar uma discussão acerca das principais definições de indústria cultural e discutir a sua

participação no meio social e suas implicações na formação de mentalidades e

posicionamentos, críticos ou não.

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1.1. AS PERSPECTIVAS DA INDÚSTRIA CULTURAL

Em “O que é Indústria Cultural”, Teixeira Coelho (1980) explica que ela surge

concomitantemente ao aparecimento e crescimento da sociedade capitalista moderna - século

XIX - sendo considerada parte do “(...) fenômeno da industrialização” (1980, p. 10) e,

consequentemente, objeto de consumo da sociedade. Segundo Adorno (2002), indústria

cultural e capitalismo estão intimamente ligados e, no caso da primeira, “o seu

desenvolvimento progressivo fluía necessariamente das leis gerais do capital” (ADORNO,

2002, p. 24). Nesse contexto, os produtos da indústria cultural são produzidos e difundidos

amplamente. Por esse motivo, são comparados a outros bens de consumo devido ao “(...) uso

crescente da máquina e a submissão do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a

exploração do trabalhador; a divisão do trabalho.” (COELHO, 1980, p. 10).

João Pinto Furtado (1997) define que:

(...) conceber a plena possibilidade de produção da Obra de Arte no interior da Indústria Cultural traduz a necessidade contemporânea de re-significar o próprio conceito de Arte, no âmbito da sociedade de massa, de modo a expandir sua fruição para além das elites que tradicionalmente tinham acesso exclusivo a este consumo até o século XIX. (FURTADO, 1997, p. 124)

Para Theodor Adorno (2002), filósofo e sociólogo alemão e um dos expoentes

da Escola de Frankfurt2, os produtos da indústria cultural são fabricados e empacotados em

larga escala, não apresentando função ou qualquer propósito, sobretudo social. Inserido num

contexto econômico voltado para o mercado, o público consumidor desses produtos culturais

estaria, portanto, demonstrando “(...) o caráter repressivo da sociedade que se auto aliena”

(ADORNO, 2002, p. 09). Adorno conceitua a indústria cultural como algo “estandardizado” e

marcado pela “pseudo individualidade”, visão pessimista que demonstra um desgosto

explícito por tais manifestações comerciais da cultura e, principalmente, da música,

consideradas “(...) a realização mais perfeita da ideologia do capitalismo monopolista:

indústria travestida em arte” (NAPOLITANO, 2005, p. 21).

Mesmo com o seu “azedume intelectual”, como define Marcos Napolitano

(2005, p. 21), e sua critica claramente oposicionista, Adorno (2002) trouxe grande

contribuição para os estudos em torno da música popular e da arte comercial. Em se tratando

da juventude, Adorno (2002) explica que, mesmo sem pretensão clara de consumir tais 2 Vertente de estudos sobre a cultura surgida na Alemanha no século XIX. (N.A.)

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produtos, podemos estar certos de que essa parcela da população estaria pronta para tal. Essa

predisposição para o consumo significaria, na visão adorniana3, quase imediatamente, em

“(...) posturas de aceitação da ordem social” (THOMPSON, 2002, p. 07), o que resultaria em

uma massa dócil, sem identidade ou posicionamento crítico. Ele sugere ainda que a indústria,

perante o conformismo dos consumidores, adapta-se às necessidades lançadas por ela mesma

e define a procura pelos produtos, sendo que o consumidor acaba por se satisfazer com a

mesmice produzida em série.

Para João Pinto Furtado (1997), essa teoria destaca:

(...) o problema do individualismo que, supostamente, emerge como característico das sociedades industriais e pós-industriais, e ao qual estão associados problemas correlatos como os da supressão da cultura tradicional, seja ela popular ou erudita, e o suposto da degeneração do pensamento crítico. (FURTADO, 1997, p. 124)

Em suma, para a Escola de Frankfurt, a evolução da arte e sua apropriação pelo

setor econômico, leva à banalização da mesma e, consequentemente, seu consumo por uma

massa despreparada, perdendo, assim, sua autenticidade. No entanto, em “A obra de arte na

era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin (1994), em uma explicação mais

ponderada, expõe que:

A massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova em relação à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de participação. O fato de que esse modo tenha se apresentado inicialmente sob uma forma desacreditada não deve induzir em erro o observador. (BENJAMIN, 1994, p. 192)

Benjamin (1994) explica ainda que, embora “democratize” o acesso aos bens

culturais, a reprodutibilidade faz com que a obra de arte perca um elemento único de sua

existência enquanto obra original, elemento esse chamado por ele de aura. Para ele, apenas o

objeto primeiro, a obra original, traz consigo essa “existência única” que detém uma carga

histórica capaz de demonstrar as transformações sofridas por ela ao longo do tempo. Essa

história da obra de arte “(...) constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma

tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual

e idêntico a si mesmo” (BENJAMIN, 1994, p. 167). A obra industrialmente reproduzida – ou

ressignificada – pode, no entanto possibilitar o surgimento de uma nova categoria de arte.

3 Utilizamos ao longo do trabalho a expressão “adorniano” para se referir ao estudo construído por Theodor Adorno acerca da Indústria Cultural e suas proposições. (N.A.)

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Apesar disso, para Benjamin (1994), a cultura de massas seria, em resumo, ao

contrário da visão adorniana de que a indústria cultural destrói a identidade e originalidade da

obra, capaz de contribuir para a politização e para moldar o senso crítico do cidadão comum

que, a partir de então, teria acesso ilimitado aos produtos culturais eruditos podendo,

inclusive, contribuir com participação ativa na sua produção. Benjamin (1994) considera,

ainda, a possibilidade de se produzir obra de arte do interior da indústria, o que tentamos

demonstrar com nossa investigação.

Transportando essa visão para os dias atuais, podemos perceber que, em partes,

a teoria frankfurtiana se aplica, sem generalidades. Existem, claro, várias exceções. Para o

presente trabalho, partimos do pressuposto de que, mesmo existindo a massa passiva e o

artista envolto nas propostas da arte industrializada, a produção cultural pode ser o resultado

da troca de informações e da relação entre quem produz e quem consome arte, e entre a

“cultura superior” e a “cultura popular”, não significando que uma se impõe sobre a outra.

Um artista poderia, portanto, numa formulação dialética, mesmo de dentro da indústria, sendo

orientado por ela e para ela, produzir, por exemplo, música engajada e com conteúdo crítico,

que seria consumida por uma parcela “pensante” e crítica da sociedade a qual a obra se dirige.

Em contrapartida, Umberto Eco (2004) questiona se a produção industrial se

adapta às necessidades surgidas naturalmente no mercado e buscadas livremente pelos

consumidores ou, pelo contrário, define essas necessidades a fim de orientar a procura. Para

ele, a cultura de massas, ou os artistas da indústria cultural, como qualquer outro produto da

economia industrial, “estão sujeitos à lei da ‘oferta e da procura’” (ECO, 2004, p. 40). Ao

formular uma definição do que seria a cultura de massas, semelhante a Theodor Adorno

(2002), Umberto Eco (2004) associa o desenvolvimento dessa cultura ao crescimento da

industrialização. Eco (2004) ainda explica que, o consumo de produtos culturais, acontece

quando a cultura burguesa da época de seu surgimento começa a ser assimilada pelo

proletariado que, por sua vez, passa a manter as expressões burguesas em seu meio,

respeitando os limites de suas possibilidades de produção autônoma e adequando à sua

condição social específica. A esse respeito, Eco (2004) ainda discorre que, a cultura de

massas:

Nasce numa sociedade em que toda a massa de cidadãos se vê participando, com direitos iguais, da vida pública, dos consumos, da fruição das comunicações; nasce inevitavelmente em qualquer sociedade de tipo industrial. (ECO, 2004, p. 44)

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Em conformidade, José Adriano Fenerick (2008), ao associar Indústria Cultural

e globalização, diz que existe uma “relação intrínseca (...) entre o enfraquecimento da classe

operária (em seu sentido clássico) e o advento dos novos meios de comunicação”

(FENERICK, 2008, p. 125). Para ele, a globalização ocorre quando, com o enfraquecimento

dessa classe operária, a expansão do capitalismo deixa de ser entravada pelas organizações

trabalhistas com tendências ideológicas socialistas. Como consequência da expansão

capitalista, as grandes empresas multinacionais expandem-se com facilidade formando

“gigantescos e poderosos oligopólios da informação e do entretenimento” (FENERICK, 2008,

p. 127). Ou seja, é quando surge a Indústria Cultural de abrangência global. É o que Pierre

Bourdieu (1992) chama de “bens simbólicos”, quando é atribuído valor mercantil a um objeto

artístico ou cultural, objeto esse que passa a ser tratado como mercadoria (BOURDIEU, 1992,

p. 103).

Refutando a ideia desenvolvida por Adorno, Umberto Eco (2004) explica que,

para os críticos “apocalípticos”, ou seja, para aqueles que compartilham das explicações

adornianas de cultura de massas, os produtos da indústria cultural:

Feitos para o entretenimento e o lazer, são estudados para empenharem unicamente o nível superficial da nossa atenção. De saída, viciam a nossa atitude, e por isso, mesmo uma sinfonia, ouvida através de um disco ou do rádio, será fruída do modo mais epidérmico, como indicação de um motivo assobiável, e não como um organismo estético a ser penetrado em profundidade, mediante uma atenção exclusiva e fiel. (ECO, 2004, p. 41)

Ou seja, a indústria reduz as obras musicais clássicas a produtos de consumo já

que acabam se tornando trilhas sonoras cotidianas, usadas para “(...) ritmar sua atividade

através de uma ‘música de uso’ para ser consumida a nível superficial” (ECO, 2004, p. 59).

Entretanto, Eco (2004) mantém uma postura crítica ponderada, expondo os

dois lados da questão, para não cair no extremo de conceituação genérica e inapropriada que o

mesmo critica como insuficiente para definir a ampla discussão em torno da cultura de

massas. Para ele, tanto os “apocalípticos”, que criticam a industrialização da cultura, quanto

os “integrados”, que defendem a livre produção e o livre acesso aos bens culturais, cometem

equívocos. Ambos se valem de argumentos extremados e sem bases sólidas para defender sua

visão de cultura e acabam entrando em contradição. De acordo com Eco (2004):

O apocalíptico não só reduz os consumidores àquele fetiche indiferenciado que é o homem-massa, mas (...) reduz, ele próprio, a fetiche o produto de massa. E ao invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer dele emergirem as características estruturais, nega-o em bloco. Quando o analisa, trai então uma

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estranha propensão emotiva e manifesta um irresoluto complexo de amor-ódio – fazendo nascer a suspeita de que a primeira e mais ilustre vítima do produto de massa seja, justamente, o seu crítico virtuoso. (...) Como a manifestação, a duras penas mascarada, de uma paixão frustrada, de um amor traído. (ECO, 2004, p. 19)

O apocalíptico torna-se, assim, vítima de seus próprios ódios. A apropriação

pelo proletariado e a ressignificação da cultura burguesa pela massa trabalhadora, não é

reconhecida como uma nova vertente da “cultura superior”, mas entendida como uma

“subcultura” distinta daquela que lhe deu origem. “O erro dos apocalípticos-aristocráticos é

pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial

(...)” (ECO, 2004, p. 49).

Analisando os críticos integrados, Eco (2004) observa, em sua maioria, a

construção de discursos simplistas “sem nenhuma perspectiva crítica e não raro ligados aos

interesses dos produtores” (ECO, 2004, p.43), salvo algumas exceções. Numa visão otimista e

apaixonada, esses críticos entendem que:

Uma homogeneização do gosto contribuiria, no fundo, para eliminar, a certos níveis, as diferenças de casta, para unificar as sensibilidades nacionais, e desenvolveria funções de descongestionamento anticolonialista em muitas partes do globo. (ECO, 2004, p. 47)

Eco (2004) considera que o maior erro dos críticos favoráveis à cultura de

massas é justamente o otimismo exacerbado, tornando as formulações, do mesmo modo que

ocorre com os apocalípticos, extremadas. Nas duas situações corre-se o risco de deixar a

“paixão” transbordar, ultrapassando a sensatez científica. Por fim, todas as manifestações

culturais dentro de uma sociedade de massa, de economia capitalista industrial, são passíveis

ao consumo “e a melhor prova disso é que as próprias críticas à cultura de massa, veiculadas

através de livros de grande tiragem, jornais e revistas, tornaram-se perfeitos produtos de uma

cultura de massa (...)” (ECO, 2004, p. 47-48).

Para alguns teóricos, a cultura industrializada, sobretudo o cinema comercial,

além de relacionar-se com o meio social, às vezes de forma negativa, é, em determinados

momentos, apropriada politicamente como método para persuasão da massa. Nesse sentido,

Walter Benjamin (1994), ao discorrer sobre a obra de arte enquanto instrumento de marketing

político, diz que o fascismo apropriou-se do cinema na tentativa de estabilizar a economia e

proteger os interesses nacionais o que, como consequência, “(...) aliviou temporariamente a

crise” (BENJAMIN, 1994, p. 172). A utilização da indústria cultural como via para a

divulgação de estratégias políticas pode ser visto no cinema hollywoodiano, por exemplo, que

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é frequentemente explorado como divulgador dos modos de vida norte-americanos. Talvez

por esse motivo a mídia como um todo recebe críticas e acusações, sendo apontada como

“manipuladora” das massas que, aparentemente, não têm qualquer posicionamento ou

resistência.

Em “Geração Coca-Cola”4, por exemplo, a Legião Urbana explora essa

temática ao citar os “enlatados dos USA”, em que podemos aferir ainda, além da referência

aos vários produtos industrializados e ao predomínio da cultura norte-americana sobre a dos

países subdesenvolvidos, uma crítica à intervenção nos países latino-americanos, comum

naquele período, que culminou, inclusive, com o apoio dos Estados Unidos aos golpes

militares em diversos países da América Latina.

De maneira semelhante, Adorno (2002) criticava a forma como o nazismo

alemão, financiado pelo capitalismo em plena ascensão, utilizava da mídia para legitimar seus

ideais e consolidar sua política. Há de se considerar, primordialmente, que o contexto

histórico-geográfico de produção da obra de Adorno influencia diretamente no resultado final

da mesma. Alemão de origem judaica, Adorno viu-se obrigado a emigrar para os Estados

Unidos com a ascensão do nacional-socialismo de Hitler por volta de década de 1930, época

de efervescência da cultura de massa americana, e sofreu com as perseguições nazistas sendo

por isso declaradamente contra tal regime. Intelectual europeu de gosto sofisticado, para ele

era difícil entender a produção em larga escala de bens culturais e a ampla aceitação da

cultura de massas pela população. Assim, os posicionamentos em suas obras refletem parte de

sua experiência pessoal.

John B. Thompson (2002a), na obra “A Mídia e a Modernidade”, desenvolve

uma argumentação que vai de encontro às proposições de Theodor Adorno e, dessa forma,

tenta desconstruir parte do que propôs a Escola de Frankfurt, considerando as teorias

frankfurtianas retrógradas e, consequentemente, obsoletas. Para Thompson (2002a), a

comunicação é “um tipo distinto de atividade social que envolve a produção, a transmissão e a

recepção de formas simbólicas e implica a utilização de recursos de vários tipos”

(THOMPSON, 2002a, p. 25). Seus estudos tentam mostrar que os consumidores não seriam

totalmente passivos ou sem identidade. Assim, Thompson (2002a) associa a comunicação às

ações em sociedade e, para os estudos em torno dela, pondera que “se comunicação é uma

forma de ação, a análise da comunicação deve se basear, pelo menos em parte, na análise da

4 In: LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1986. (37:09 min). Faixa 06 (02:22 min).

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ação e na consideração do seu caráter socialmente contextualizado” (THOMPSON, 2002a, p.

20).

A ideia de massa, nas explicações de Thompson (2002a), possui um equívoco

conceitual, já que se refere a uma totalidade e homogeneidade de pensamentos inexistentes,

reduzindo o seu significado a uma questão de quantidade (THOMPSON, 2002a, p. 30). O

importante, desse modo, seria definir a comunicação de massa não como a quantidade de

consumidores atingidos e sim a disponibilidade e acessibilidade das produções culturais para

a sociedade. Toda a discussão adorniana acerca da indústria cultural sugere, segundo

Thompson (2002a), uma falsa visão de que a massa é composta de uma enorme quantidade de

personagens sem autonomia, passivos, desprovidos de autenticidade e que aceita os produtos

lançados na mídia de forma acrítica. Quanto ao termo comunicação, tem-se a ideia de uma

constante troca de informações, presente, por exemplo, nos diálogos. Porém, referindo-se à

“comunicação de massa”, trata-se de um processo de transmissão simbólica (THOMPSON,

2002a, p. 31) onde os consumidores e os produtores “não são parceiros de um processo de

intercâmbio comunicativo recíproco” (THOMPSON, 2002a, p. 31).

Thompson (2002a) entende que a expressão “comunicação de massa”, nos dias

de hoje, não é mais tão adequada, devendo sua utilização ser cercada de todos os cuidados. A

explicação para isso seria a significativa mudança nos meios de comunicação e nas formas de

produção cultural, sendo mais apropriado, assim, o uso do termo “mídia”, para evitar duplas

interpretações. A definição de comunicação de massa, na explicação de Thompson (2002a),

em concordância, nesse aspecto, com as teorias expostas anteriormente, “implica a

mercantilização das formas simbólicas no sentido de que os objetos produzidos pelas

instituições da mídia passam por um processo de valorização econômica” (THOMPSON,

2002a, p. 33). Thompson (2002a) conclui que “o desenvolvimento dos meios de comunicação

se entrelaçou de maneira complexa com um número de outros processos de desenvolvimento

que, considerados em sua totalidade, se constituíram naquilo que hoje chamamos de

‘modernidade’” (THOMPSON, 2002a, p. 12). A mídia seria, portanto, um recurso inerente a

toda e qualquer sociedade dita moderna.

A visão apresentada por Thompson (2002a) assemelha-se em conteúdo com as

propostas da Escola Progressista-Evolucionista5, sobre a qual discorre Waldenyr Caldas

(1986), e que consideram o fenômeno da cultura de massas democrático e pluralista

(CALDAS, 1986, p. 38). Nessa perspectiva, tal qual na visão dos críticos integrados de que 5 Vertente de estudos sobre a cultura, sobretudo industrial, que contrapõe à Escola de Frankfurt. Essa é uma definição de Waldenyr Caldas em Cultura de massa e política de comunicações (Global, 1986). (N.A.)

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trata Umberto Eco (2004), a difusão em grande escala de bens culturais, ao contrário das

ideias que alguns críticos apresentam, possibilitaria a “elevação dos padrões educacionais, o

aumento da riqueza e do lazer” (CALDAS, 1986, p. 39). Em resumo, os antifrankfurtianos da

Escola Progressista-Evolucionista acreditam que a sociedade de massa:

(...) é o resultado do pluralismo e da democracia. O capitalismo industrial moderno propicia, naturalmente, a integração social e elimina o caráter subserviente a que a população estaria submetida, segundo a Escola de Frankfurt. E mais do que isso, elimina, através da industrialização da produção em grande escala e barata, o monopólio que a classe dominante sempre teve da alta cultura. (CALDAS, 1986, p. 39)

As explicações do campo cultural, no caso específico da música, expõem que,

antes do período de larga industrialização, a apreciação da música chamada erudita estava

restrita às camadas mais economicamente favorecidas da sociedade. Com o advento do rádio,

principalmente, a assimilação da “cultura superior” pelas camadas “inferiores”, de que trata

Umberto Eco (2004), foi possibilitada e popularizada. Segundo Asa Briggs e Peter Burke

(2004), “(...) o rádio trouxe mais barulho para o mundo, inclusive música ambiente, não

apreciada por pessoas que sentem que a música deve ser ouvida com atenção” (BRIGGS;

BURKE, 2004, p. 169). Do mesmo modo, o rádio no Brasil, sobretudo na década de 1950,

servia para transmitir canções a um público cada vez maior e, até as músicas clássicas, eram

utilizadas como pano de fundo para a atividade diária de negras, pobres e empregadas

domésticas (NAPOLITANO, 2006, p. 14).

Para muitos críticos da massificação da cultura musical, o principal problema

desse tipo de manifestação é a banalização de obras que deveriam receber melhor apreciação.

Marcos Napolitano (2005) defende que a canção também ajuda a pensar a sociedade e a

história (2005, p. 11), não devendo receber a atenção simplista de trilha sonora banal utilizada

como passatempo nos momentos de ócio ou nas atividades rotineiras. Da mesma forma

podemos justificar o estudo de toda e qualquer manifestação cultural, pois, segundo José Luiz

dos Santos (2007), “a principal vantagem em estudá-las é por contribuírem para o

entendimento dos processos por que passam as sociedades contemporâneas” (SANTOS, 2007,

p. 26).

Vale ressaltar que consideramos tais teorias, embora não aplicáveis em sua

integridade, de suma importância para o entendimento não somente da arte enquanto

reprodutível industrialmente, mas da sociedade e, principalmente, da juventude como

consumidora de produtos culturais “enlatados”. O acesso aos produtos culturais pela massa

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trabalhadora, até então restrita à parcela social com nível econômico mais elevado, representa

uma grande evolução na difusão das artes, mesmo que, para a massa, algumas vezes, isso não

resulte em erudição e sim em puro entretenimento. A indústria cultural e suas inúmeras

características seriam, portanto, uma via para o entendimento desse meio social, através do

estudo da representatividade desses produtos e da recepção dos mesmos pela massa

consumidora. Esse processo de integração, mesmo que díspar, entre o produtor e o

consumidor, pode ser de grande valia para os estudos do meio social e, nesse caso, juvenil, já

que, algumas vezes, representa o pensamento predominante em determinada parcela da

sociedade e em determinado tempo e espaço.

Com o crescimento das produções musicais em série, decorrente da

apropriação de costumes musicais burgueses pelas camadas populares, surge o conhecido

embate entre “erudito” e “popular” que, além de conflitar “níveis de refinamento” de dois

blocos sociais, explicitam as próprias tensões sociais e lutas culturais da sociedade

(NAPOLITANO, 2005, p. 14). Em tal debate pode estar a explicação para o “desgosto” de

Adorno (2002) pela “cultura popular”, a quem preferiu chamar de “Indústria Cultural”, haja

vista sua suposta “inferioridade” perante a cultura erudita, embora, para ele, mesmo uma obra

clássica se reproduzida para o consumo massificado, perderia sua essência.

Na música não é diferente. Críticos e defensores de música popular e música

erudita travam um embate constante há vários séculos. Para os críticos eruditos, no momento

de sua criação, “a música popular trabalhava com os restos da música erudita e, sobretudo no

plano harmônico-melódico, era simplória e repetitiva” (NAPOLITANO, 2005, p. 15). Dessa

forma:

Mais do que um produto alienado e alienante, servido para o deleite fácil de massas musicalmente burras e politicamente perigosas, a história da música popular do século XX revela um rico processo de luta e conflito estético e ideológico. Neste processo, os vários elementos que formam a música popular foram tema de discussões (formais e informais), alvo de políticas culturais (estatais ou não), foco de apreciações e apropriações diferentes, objeto de formatações tecnológicas e comerciais (NAPOLITANO, 2005,p. 18).

O debate em torno da divisão “popular” e “erudito”, mérito não assumido por

este trabalho, seja na música, no teatro ou em qualquer outra manifestação artística, mostra as

diferentes visões e conceitos em torno da cultura como um todo. No entanto, partimos do

mesmo ponto de vista de Marcos Napolitano (2007), quando o mesmo diz que a música

popular representa “uma espécie de repertório de memória coletiva” (NAPOLITANO, 2007,

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p. 05). Podemos concluir que a cultura, em seus mais diferentes aspectos, representa muitas

vezes o embate político-social e financeiro existente entre as camadas da sociedade. Sobre a

relação entre o nosso objeto, a Legião Urbana, e o mercado fonográfico, trabalhamos com

maiores detalhes no item 1.3. deste capítulo.

1.1.1. A Indústria Fonográfica no Brasil

A indústria fonográfica faz parte de um aparato midiático que inclui outras

formas e veículos de comunicação. Com a formação de grandes conglomerados do

entretenimento, muitas vezes uma mesma empresa responsável por grandes estúdios e

gravadoras, também detém produção cinematográfica e de aparelhos eletrônicos para a

reprodução dessas mídias. Sob essa ótica, sabe-se que “o entretenimento passou a ser digital e

global, simultaneamente, num sistema interligado” (FENERICK, 2008, p. 129). Nas últimas

décadas do século XX, insere-se à produção de produtos culturais os mesmos preceitos das

grandes indústrias de outros segmentos, haja vista o contexto de globalização. Segundo José

Adriano Fenerick (2008):

No plano do gerenciamento dos negócios desses grandes conglomerados empresariais da música, a receita que vem sendo adotada não difere em nada da aplicada por empresas de outros setores em tempos de globalização: investimento em alta tecnologia, demissão de funcionários, otimização dos lucros em função do barateamento dos custos de produção, etc. (FENERICK, 2008, p. 129)

Nessa mesma linha, Márcia Tosta Dias (2000) conclui que, com o

desenvolvimento dos métodos de produção fonográfica:

O que se observa nesse final de século é a definitiva fragmentação do processo produtivo na grande indústria fonográfica, no qual serão terceirizadas, principalmente, as etapas de gravação, fabricação e distribuição física do produto, ficando nas mãos das transnacionais o trabalho com artistas e repertório, marketing e difusão. As grandes empresas transformam-se em escritórios de gerenciamento de produto e elaboração de estratégias de mercado. (DIAS, 2000, p. 17)

Dessa maneira, a música, no cerne da indústria cultural, é considerada e

trabalhada como um produto, passando pelas etapas de produção e distribuição da mesma

maneira que itens de outros segmentos, objetivando a venda e os lucros. Inseridos em uma

conjuntura global de mercado, a indústria fonográfica no Brasil tem características próprias

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devido aos costumes, a carga cultural e as relações sociais específicas. Trata-se de um

mercado de dimensões e características globais, com especificidades locais.

No âmbito da indústria cultural globalizada, os limites entre o nacional e o

internacional tornam-se mal delineados, ou seja, as “regras” que definem o mercado em

outros países, muitas vezes são as mesmas para o mercado nacional, observando, porém, as

especificidades de cada local. Local e global então se desenvolvem em mútua contribuição.

Os processos de globalização não implicam necessariamente em uma homogeneização da

cultura mundial, com o consequente desaparecimento das culturas locais. Para Fenerick

(2008), ao contrário, poderia haver, assim, uma valorização dessas últimas “que seriam

difundidas pelo mundo (...) criando um diálogo entre o local e o global” (FENERICK, 2008,

p.126). Em conformidade, Dias (2000) explica que “se a lógica do modo de produção é

global, sua disseminação pelo mundo vai tomando e fazendo uso de referências e interesses

locais” (DIAS, 2000, p. 38).

Com a expansão capitalista, e consequentemente da indústria do

entretenimento, os meios de comunicação passam a ocupar espaço na vida cotidiana. Nesse

caso, em concordância com Dias (2000), sabe-se que:

Meios como a televisão, reprodutores musicais, cinema, computadores e rádios tornaram-se, de certa maneira, elementos básicos da vida social, adquirindo, frequentemente, status próximo ao dos “gêneros de primeira necessidade”, e não só de entretenimento e lazer. A telenovela, as séries televisivas, o telejornal, a publicidade, os hits, os pop stars e de tal forma as produções cinematográficas e seus subprodutos, entranham-se na vida, no cotidiano do cidadão comum e do mundo que lhe são, muitas vezes, considerados como elementos “naturais”. Essa relação de naturalidade que se estabelece entre consumidores e produtos é resultado da sutileza e da sofisticação alcançados pelos media, seu modo de produção e difusão. (DIAS, 2000, p. 20)

Em contraste com outras mídias, a música possui uma característica que a

diferencia das demais. Ela pode existir e ser veiculada individualmente, enquanto música,

através do rádio ou aparelhos eletrônicos, e pode ainda extrapolar esses limites, sendo

veiculada através de telenovelas, filmes, propagandas, teatro, etc. A música interage com as

demais mídias e essa capacidade de interação faz com que ela seja ainda mais presente na

vida das pessoas. Essa característica, importante para fundamentar a análise aqui proposta,

demonstra a “onipresença” da música no cotidiano. Além de seu consumo em separado, a

música acaba tornando-se um produto a ser consumido em conjunto com outras mídias,

ampliando assim seu alcance.

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No Brasil, a indústria fonográfica apresentou significativa expansão a partir da

década de 1960, quando a produção musical passou por um fértil período, onde podemos

destacar grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, e o

movimento da Jovem Guarda6. Nas décadas seguintes, o crescimento foi vertiginoso, tanto da

produção quanto das vendas. Esse período coincide com os anos de governo militar onde,

embora permeados pela censura, o setor fonográfico se dilatou, em conjunto com outros

segmentos que movimentavam a economia nacional. Sob o mesmo ponto de vista, Dias

(2000) conclui que, “se a interferência da censura foi drástica do ponto de vista da criação

artística, economicamente, a indústria do disco parece não ter sentido seus efeitos” (DIAS,

2000, p. 58). Uma das vias para essa expansão do mercado fonográfico nacional, em termos

econômicos, foi a venda e divulgação de artistas estrangeiros, ou de artistas nacionais que

cantavam em inglês sob pseudônimos estrangeiros, o que, no entanto, não contribuiu para o

crescimento da música popular brasileira, em termos de produção e valorização dos artistas

nacionais, esses últimos fortemente limitados pela censura.

Na década de 1970, o mercado de discos, nos moldes internacionais, tornou-se

uma realidade no Brasil. Os padrões de produção, com todas as etapas que iam desde a

concepção do produto até a distribuição, divulgação e comercialização, já eram rigorosamente

seguidos. Grandes empresas multinacionais já tinham suas sedes ou parceiros aqui instalados,

é o caso da EMI-Odeon, atual EMI Music, gravadora que viria a mais tarde produzir os álbuns

da banda Legião Urbana.

Acompanhando as oscilações da economia nacional, a partir do início da

década de 1980, os números expressivos de vendagens, tanto de artistas nacionais como

internacionais no Brasil, tiveram gradativo recuo. Conforme Dias (2000), “na década de 1980,

os números do mercado fonográfico retratam a inconstância e a incerteza da vida econômica

nacional” (DIAS, 2000, p. 77). Por volta de 1986, o mercado musical brasileiro apresenta

melhora não muito expressiva, que se mantém até o final da década quando, devido à

desestabilização dos índices de inflação, seguida da eleição do presidente Fernando Collor de

Mello e suas políticas econômicas controversas, volta a apresentar inconsistência.

Fenerick (2008) ilustra que:

O desequilíbrio econômico do país, com sucessivos planos governamentais que não obtiveram êxito – o Plano Cruzado (1986) e os Planos Collor I e II (1990 e 1992 respectivamente) – associado à instabilidade política que

6 A Jovem Guarda foi uma das primeiras manifestações do rock nacional e tem como expoente o cantor Roberto Carlos, à época um dos maiores vendedores de discos da indústria fonográfica brasileira. (N.A.)

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culminaria com o impeachment do presidente Fernando Collor, jogou a indústria fonográfica nacional na mais grave crise que o setor já havia presenciado. (FENERICK, 2008, p. 131)

Essa crise se arrasta até meados de 1994 quando, com a economia

relativamente estável devido ao Plano Real do governo do presidente Itamar Franco, o

mercado de discos se recupera, impulsionado pela “popularização de uma nova tecnologia: o

compactdisc (CD)” (FENERICK, 2008, p. 131).

Percebemos aqui que, além de fazer parte de um amplo sistema mercadológico,

que inclui outras mídias, a indústria fonográfica está intimamente ligada a outros veículos de

entretenimento e informação, presente de maneira constante no cinema, na publicidade, nas

novelas, no teatro, etc. Além disso, as oscilações do mercado fonográfico brasileiro do seu

surgimento até a década de 1990, em termos econômicos, acompanhavam as oscilações da

economia nacional, sendo, em certa medida, um termômetro das mudanças nesse campo.

Sobre o nosso objeto de pesquisa, entendemos que as oscilações na venda dos

discos também acompanham o mercado financeiro e fonográfico. Seus discos de maiores

vendagens são aqueles lançados antes do ano de 1990, quando o mercado entra em recessão e

consequentemente diminuem as vendas. Nesse começo de década é lançado o Álbum “V”

(1991), cujas vendas são, até hoje, inferiores aos outros discos da carreira da banda. Na

carreira da Legião Urbana, esse disco encontra-se no hiato entre os dois momentos em que o

mercado fonográfico está em alta. Da mesma maneira, os álbuns pós-1994, quando a

economia volta a crescer e se estabilizar e o mercado de vendas de discos é reaquecido,

também melhoram em vendas. Não somente pelo crescimento natural do mercado fonográfico

em consonância com a economia nacional, mas também devido à morte do líder da banda,

Renato Russo, o que impulsiona os fãs a comprarem e desperta o interesse de novos ouvintes.

A respeito da relação das grandes gravadoras com os artistas, Renato Russo

declarou em determinada ocasião, na década de 1980 quando a produção do rock brasileiro

estava aquecida:

O que eu sinto é que as pessoas não vêem exatamente o que está acontecendo e picham o rock brasileiro, mas, de certa forma, o rock brasileiro está dando uma força para as gravadoras, está fazendo circular o capital, que é uma coisa muito importante. (...) No Brasil, é justamente o sucesso de artistas dentro de uma determinada gravadora que abre caminho para outros artistas que têm propostas que não são tão comerciais. (RUSSO, 1985 Apud ASSAD, 2000, p. 115).

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Para a nossa proposta, a discussão em torno da indústria fonográfica é

importante à medida que os artistas analisados dela fazem parte. Como integrantes do cast7 de

uma grande gravadora, a EMI Music, a Legião Urbana encontrava-se no interior de um

mercado e, teoricamente, deveria adaptar-se a ele atendendo suas exigências. Partimos do

princípio que, embora o mercado fonográfico tenha um molde e uma lógica a serem seguidos,

devemos ponderar a possibilidade de múltiplas influências na obra, além daquelas pertinentes

à gravadora e ao público. Tratam-se das influências que o artista traz consigo e as

interferências sociais e políticas relativas ao panorama histórico onde o artista e, mais

precisamente, o disco se encontram inseridos. É o que procuramos levantar nos tópicos

seguintes.

1.2. CONJUNTURA POLÍTICA E SOCIAL BRASILEIRA: DO GO LPE DE 1964 À

DISTENSÃO

1.2.1. A Ditadura Militar

O período compreendido entre 1964 e 1985 no Brasil, ficou marcado pelo fim

de um governo democrático e o início de um governo militar repressivo que durou mais de

duas décadas. A crise que desencadeara o Golpe tivera origem em problemas de ordem

política iniciados nos primeiros anos da década de 1960. Devido a esses problemas, o então

presidente Jânio Quadros (1961) não resistiu às pressões e abandou o cargo – em um episódio

de renúncia que marcou a história política do país – preenchido em seguida por João Goulart e

que deu lugar mais tarde ao militarismo.

Somou-se às questões internas a influência internacional, que contribuiu,

sobremaneira, para o processo de militarização do governo brasileiro, haja vista que o mundo

à época estava “bipolarizado” pela disputa conhecida como Guerra Fria. A Guerra Fria

consistia em um conflito não declarado onde os Estados Unidos, potência capitalista, se

opunham às pretensões políticas comunistas da União Soviética (URSS), que tem na atual

Rússia a principal herdeira. Como pretexto para intervir nos países da América Latina, os

7 Do inglês: elenco. Expressão utilizada para definir o corpo de artistas que fazem parte de determinada gravadora. (N.A.)

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Estados Unidos utilizaram a suposta “ameaça comunista” soviética para legitimar sua

intervenção e os golpes apoiados por eles.

Nesse contexto, a Ditadura Militar no Brasil foi instituída no ano de 1964 tendo

como marco fundamental os inúmeros Atos Institucionais. O AI-2, por exemplo, decretado

em outubro de 1965 durante o governo do general Humberto de Alencar Castelo Branco

(1964-1967), reafirmava a suposta necessidade de um estado rígido diante da ameaça do

“inimigo interno”, em referência ao hipotético golpe comunista. As principais medidas

adotadas pretendiam, sobretudo, fortalecer o Executivo em detrimento do Judiciário e do

Legislativo, além de estabelecer um rígido controle sobre a representação política. Com o AI-

2, a oposição foi significativamente desarticulada e foram lançadas as bases da

institucionalização do Estado sob novas estruturas nos moldes militares.

O ano de 1965 é emblemático, já que permitiu que se firmasse o Aparato

Repressivo desse novo estado. No álbum “As Quatro Estações”8, a Legião Urbana, na canção

“1965 (Duas Tribos)”, cujo título possivelmente faz referência à divisão entre militares e

apoiadores do governo e oposição e população civil, critica e expõe os acontecimentos que

marcaram aquele ano. Alguns trechos dessa canção servem para ilustrar o que havia

desenrolado no cenário político do país, sob o prisma da representação de Chartier (2002).

Logo em sua introdução, a canção chama a atenção para o momento inicial

daquele governo, na sequência do golpe, onde a situação não parecia bem clara. O cidadão

que assistia a tudo não sabia os reais motivos daquele golpe político nem as consequências

que aquilo viria a ter: “Vou passar / Quero ver / Volta aqui / Vem você / Como foi / Nem

sentiu Se era falso ou fevereiro / Temos paz / Temos tempo / Chegou a hora / E agora é

aqui!”. Questões referentes à censura e à tortura também são colocadas. Ao dizer “Cortaram

meus braços / Cortaram minhas mãos / Cortaram minhas pernas”, entendemos uma dupla

referência: à tortura sofrida pelos presos políticos, essas frases são então tomadas no sentido

literal, e à censura, sendo as frases metáforas para retratar as liberdades individuais cerceadas

pelo AI-2. Em seguida, refere-se ao uso de ambas, censura e tortura, que atingia também o

cidadão comum, mesmo que, naquele momento, o emprego da violência ainda não fosse

generalizado: “Podia ser meu pai / Podia ser meu irmão”. E encerra esse trecho criticando a

propaganda do governo que, em busca de apoio popular, tentava ocultar seu caráter

repressivo: “Não se esqueça / Temos sorte / E agora é aqui”.

8 LEGIAO URBANA. As Quatro Estações. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1989. (46:27 min).

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Em outro momento da canção a questão da tortura e da violência policial é

novamente colocada e, mais uma vez, em contraste com a propaganda do governo e o modelo

de desenvolvimento econômico que vinha sendo implantado. “Mataram o menino / Tinha

arma de verdade / Tinha arma nenhuma / Tinha arma de brinquedo”: aqui o cidadão

desarmado em oposição à polícia repressora e armada. “Eu tenho autorama / Eu tenho Hanna-

Barbera / Eu tenho pera, uva e maçã / Eu tenho Guanabara / E modelos Revell”: aqui o acesso

a produtos caros nas figuras do “autorama” e dos “modelos Revell”9, e o consumo de itens

como “pera, uva e maçã”, considerados caros.

Percebemos que questões concernentes à repressão, censura e violência policial

eram maquiadas pela política do desenvolvimento econômico do país e, por conseguinte, da

população, propagandeada pelo governo. A canção em debate, é elucidativa quanto ao assunto

já que, de maneira subjetiva, relata aspectos da vida cotidiana combinados com aqueles da

vida política e econômica a que o cidadão não tinha pleno esclarecimento, embora deles

fizesse parte.

Por volta do ano de 1978 iniciou-se uma significativa dissolução do apoio à

ditadura militar e a volta progressiva da democracia. O governo do então presidente João

Figueiredo (1979-1985) propôs uma abertura “lenta, gradual e segura”, com uma série de

fases de liberalização, sempre dentro dos parâmetros militares impostos inicialmente. Nesse

mesmo período, as mobilizações sociais, como as greves sindicais em favor da democracia

foram significativamente acentuadas, exercendo forte pressão política. O fim da Ditadura

Militar era iminente.

Segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva (2003), “um dos principais pontos

da agenda de Figueiredo era a anistia, item fundamental para a retomada do processo político

da abertura, cada vez mais sob risco de ultrapassagem do governo pelo movimento popular”

(2003, p. 269). Em 1979 foi aprovada a lei de Anistia, que concedia indulto aos presos e

exilados acusados de crimes políticos, estratégia para “calar” a opinião pública que, cada vez

mais, se posicionava contra o governo ditatorial. A partir de 1984 a democracia foi

reintroduzida paulatinamente no país, mantendo algumas características comuns à Ditadura

Militar, com o retorno às eleições diretas somente em 1989, quando Fernando Collor de Melo

foi eleito presidente. No tópico 1.2.3., examinamos o período final do militarismo e o retorno

à democracia, bem como as agitações daquele período que consistem nas bases de formação

dos integrantes e da banda Legião Urbana.

9Empresa norte-americana de brinquedos que fabricavam miniaturas de carros, aviões, barcos, entre outros, e eram muito consumidos no Brasil pelas classes mais abastadas. (N.A.)

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1.2.2. A Canção de Protesto

E, no entanto, em algum lugar e de algum modo, a música mantém com a política um vínculo operante e nem sempre visível: é que ela atua, pela própria marca do seu gesto, na vida individual e coletiva, enlaçando representações sociais a forças psíquicas. (WISNIK, 2000, p. 114)

Sob o cenário apresentado, a juventude das décadas de 1960 e 1970 ficou

fortemente marcada pelo engajamento político e, no caso da juventude artística musical, pelas

músicas de protesto ao regime autoritário. Grandes nomes da Música Popular Brasileira

(MPB), como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Caetano Veloso, sofreram com

a censura e a retaliação por parte dos militares. Napolitano explica que “como os artistas,

jornalistas e intelectuais foram os únicos atores sociais que mantiveram algum espaço de

liberdade de expressão após o golpe, a nova onda autoritária, pós AI-5, recaiu com especial

vigor sobre eles” (NAPOLITANO, 2006, p. 100).

Ainda assim, foram diversas as produções com conteúdo desafiador, que

expunham o sentimento de indignação da população daqueles anos. A arte engajada por eles

construída e difundida teve como cenário, não único, mas talvez principal, os conhecidos

“Festivais da Canção” que apresentavam as novidades musicais do período e reuniam os

jovens engajados em torno da mesma causa. Em 1968, por exemplo, o Festival da Canção da

Rede Globo apresentaria aquela que ficou conhecida como “hino” de resistência dos anos de

ditadura: “Pra não dizer que não falei das flores”, escrita e interpretada por Geraldo Vandré,

que chegou a ter sua execução proibida. Em seus versos, Geraldo Vandré criticava a opressão

dos quartéis militares: “Há soldados armados / Amados ou não / Quase todos perdidos / De

armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam / Uma antiga lição / De morrer pela pátria / E viver

sem razão”. Além disso, expunha as estratégias pacíficas de luta contra o regime, as quais

criticava, o que fica implícito no próprio título da canção e no trecho: “Pelos campos há fome

/ Em grandes plantações / Pelas ruas marchando / Indecisos cordões / Ainda fazem da flor /

Seu mais forte refrão / E acreditam nas flores / Vencendo o canhão”.

Marcelo Ridenti (2003) expõe que, apesar da repressão:

Após o golpe de 1964, os artistas não tardaram a organizar protestos contra a ditadura em seus espetáculos. Ainda mais porque setores populares foram duramente reprimidos e suas organizações praticamente inviabilizadas, restando condições melhores de organização política especialmente nas camadas médias intelectualizadas, por exemplo, entre estudantes, profissionais liberais e artistas. Esse período testemunharia uma superpolitização da cultura, indissociável do fechamento dos canais de

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representação política, de modo que muitos buscavam participar da política inserindo-se em manifestações artísticas. (RIDENTI, 2003, p. 143)

Não somente no campo musical, mas em diversos ramos artísticos, como no

teatro e no cinema, uma das principais características era a forma como esses artistas

produziam suas obras, muitas vezes de maneira tragicômica, teatral ou metafórica, a fim de

burlar o sistema de censura e repressão e demonstrar a resistência dessa parte da sociedade.

Com o uso recorrente de pseudônimos, o meio artístico seguiu com seus protestos e passou

suas mensagens de resistência para a população.

Até nos dias atuais, as produções da época deixaram marcas. São lembradas

como o retrato de uma população que, mesmo sem entender perfeitamente o que se passava,

lutou de forma latente e, na maioria das vezes, pacífica. Os jovens daquele período são

sempre lembrados como participantes ativos na política brasileira, principalmente devido ao

movimento estudantil ter alcançado notoriedade à época. Por esse motivo, uma das vertentes

musicais predominantes daquele período10, a MPB, “(...) tornou-se sinônimo de música

comprometida com a realidade brasileira, crítica ao regime militar e de alta qualidade

estética” (NAPOLITANO, 2006, p. 57).

Da parcela intelectual da juventude, o meio universitário, saíram os principais

líderes estudantis, que estavam à frente do processo de resistência às arbitrariedades do

governo. Os estudantes desempenharam papel fundamental nesse processo, “(...) atacando

injustiças particularmente gritantes em universidades” (ALVES, 2005, p. 143). Podia-se

perceber ainda que esse papel era acentuado pela participação dos artistas que utilizavam de

suas posições e seu espaço na imprensa, mesmo restrito, para permear os ideais por todo o

país. As produções musicais tornaram-se hinos e abriram espaço para outras novidades que

viriam em seguida. Nesse clima de repressão, censura e privação da liberdade, crescia uma

geração que despontaria no meio musical nas próximas décadas.

Por volta do final de 1967 e início de 1968, surge um movimento que

englobava vários ramos das artes: a Tropicália. Embora suas raízes venham de antes desse

ano, esse movimento, chamado também de Tropicalismo, torna-se conhecido “a partir de um

“manifesto” despretensioso de Nelson Motta no jornal “Última Hora” do Rio de Janeiro,

intitulado “Cruzada Tropicalista”” (NAPOLITANO, 2006, 63). Tendo a música como

principal expoente, são considerados precursores do estilo compositores como Caetano

Veloso e as canções “Alegria Alegria” e “Tropicália”, o cineasta Glauber Rocha e o filme

“Terra em Transe”, dentre outros. 10 Predominante na mídia e no cenário musical e difundido entre a classe média principalmente. (N.A.)

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A Tropicália consiste em uma vertente artística multifacetada voltada para a

valorização da “estética” nacional e, conforme ressalta Napolitano (2006), “não deve ser

confundido com um movimento coeso, no qual todos os artistas identificados como

tropicalistas partilharam dos mesmos valores estéticos e políticos” (NAPOLITANO, 2006, p.

65). O ponto de encontro desse movimento é a ideia de se ressaltar os valores e elementos

nacionais em detrimento daqueles importados consistindo, portanto, em um

pensamento/engajamento diferente da esquerda nacionalista tradicional, que pensava em

superar os males “dos nossos arcaísmos (não só estéticos, mas sobretudo socioeconômicos)”

(NAPOLITANO, 2006, p. 65).

Os tropicalistas apresentavam uma imagem menos sisuda que de outros artistas

da MPB, utilizavam roupas coloridas e chamativas e, em geral, no caso da música, as letras

continham uma forma de protesto menos aparente. A estética musical da canção era recheada

de elementos e referências às manifestações culturais brasileiras, numa forma particular de

nacionalismo, com letras que mesclavam crítica, típico cotidiano juvenil e deboche. Segundo

Christopher Dunn (2008):

Os tropicalistas criticavam certas formas de nacionalismo cultural, entre elas o nacionalismo conservador do regime e o visceral anti-imperialismo da oposição de esquerda. Eles também satirizavam emblemas da brasilidade e rejeitavam fórmulas prescritivas para produzir uma cultura nacional “autêntica”. (DUNN, 2008, p. 95)

Na década de 1970, alguns novos estilos surgem para, juntamente com a

tradicional MPB que naquele momento “perdera” grandes nomes para o exílio, dar sequência

à cena musical nacional de protesto. É o caso do rock, cujo principal nome era Raul Seixas e

sua crítica ao milagre econômico e aos valores sociais, bem como o conjunto Secos &

Molhados, que mesclava “o melhor da poesia da MPB com a ousadia cênica e o clima

instrumental do rock anglo-americano” (NAPOLITANO, 2006, p. 88).

A partir de meados da década de 1980, geração que lutara contra o governo

militar experimentaria a liberdade política, social e artística que tanto buscaram. Em

contraposição, os que nasceram no período de ditadura, estariam, naquele momento, saindo da

adolescência e chegariam, portanto, na fase adulta com o governo democrático restabelecido.

Por esse motivo, muitas críticas viriam a ser lançadas quando do surgimento de novas

tendências musicais e culturais, produzidas pela geração que não teria contribuído para o fim

do governo repressor, apesar de, ainda na década de 1980, serem percebidas algumas

características inerentes ao período ditatorial.

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Em oposição à imagem engajada e participativa atribuída aos jovens dos anos

de ditadura (1960 e 1970), a geração dos anos 1980 foi duramente criticada e comparada à dos

anos anteriores. Comparações essas que os apontavam, dentre outros termos, como

despolitizados e passivos politicamente. No campo da música, os mesmos artistas que lutaram

contra a ditadura, agora resistiam às novas tendências musicais emergentes. Da mesma forma

o faziam parte do público consumidor, acostumado a ouvir determinado estilo musical e,

agora, com a renovação estilística trazida pelos novos anos e pelas novas tendências, também

resistiam em aceitar tamanha novidade, o que demonstra o tradicionalismo da sociedade.

Visando contrariar tais críticas, algumas bandas de rock, nesse caso específico

a Legião Urbana, através de suas letras contestadoras, expuseram os anseios da juventude de

sua época, somando rebeldia e crítica política e social. Napolitano (2006), explica que:

A MPB, o samba e o rock acabaram formando uma espécie de frente ampla contra a ditadura, cada qual desenvolvendo um tipo de crítica, atitude e crônica social que forneciam referências diversas para a idéia de resistência cultural. A MPB com suas letras engajadas e elaboradas (...) e o rock com seu apelo a novos comportamentos e liberdades para o jovem das grandes cidades. (NAPOLITANO, 2006, p. 111-112)

Essa geração pós-ditadura foi taxada de alienada. Cresceu durante o período da

censura militar e era vista como destituída de um discurso político próprio, vivendo à sombra

de um passado que não conheceram pessoalmente, ou não participaram ativamente das

tentativas de mudança. A empatia e o discurso engajado da Legião Urbana, numa nova forma

de debate político voltado para a juventude, é representativo e importante para entendermos o

Brasil da época.

Com seu estilo híbrido e facilmente absorvido no meio juvenil, a Legião

Urbana desenvolve sua obra pautada na linguagem jovem engajada e comum, tentando passar

ao público uma noção de que eles, mesmo fazendo parte de todo aquele sistema, da mesma

forma, sentiam-se insatisfeitos. Com o cenário político e social pós-ditadura, as críticas, a

instabilidade política, as incertezas e o descontentamento da população, os jovens e

adolescentes assimilaram rapidamente a Legião Urbana, já que estavam em busca de

representação.

O rock da década de 1980, como um todo, superou essas críticas e deixou

marcada a época, alterando, dessa forma, pelo menos em parte, a visão de passividade daquela

juventude. Esperava-se daqueles jovens, uma postura parecida com o que se via nos anos de

ditadura, mas há de se considerar que, em outros tempos, sob outro governo, e diferentes

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influências, tal postura haveria de ser diferente. A partir daquele período, a identidade do rock

nacional seria modificada, e seu legado pode ser percebido ainda hoje.

Na obra “Indústria Cultural e Sociedade”, Theodor Adorno (2002) diz que “(...)

os talentos pertencem à indústria muito antes que esta os apresente; ou não se adaptariam tão

prontamente” (ADORNO, 2002, p. 10). Considerando a visão adorniana, embora não

concordando totalmente com ela, podemos perceber que, antes de atingir o sucesso, a Legião

Urbana fazia parte de um sistema social que, tempos depois e de dentro dele, viria a lançar

opiniões e críticas. Dessa maneira, a fórmula por eles utilizada para alcançar o

reconhecimento em âmbito nacional, já estaria previamente “aprovada” e seria aceita pela

sociedade, especificamente pela juventude, da qual os próprios integrantes faziam parte,

sabendo, então, o que produzir.

Sob as perspectivas da Indústria Cultural e a intenção de atingir um público,

levando sua poética a todo o Brasil, a banda procurava, considerando os ideais

revolucionários do punk, contestar os problemas político-sociais adequando-se às

necessidades ideológica e musical dos jovens que a assistiam. Devemos ponderar, entretanto,

que, ao tornar-se parte do sistema cultural industrializado, a Legião Urbana precisou adaptar-

se àquele meio, o que não implica na necessidade de atender integralmente às exigências do

mercado. Suas composições chamam a atenção pelo conteúdo apurado, servindo, assim, de

fonte de entendimento dos anseios e aspirações dos jovens daquela época.

1.2.3. Da redemocratização ao fim do Governo Sarney: o surgimento do “encanto”

Entre o governo militar e o retorno à democracia é que surge a Legião Urbana.

As bases de sua formação encontram-se ancoradas nesse momento de disputas, instabilidade

política e agitação social. A década de 1980 é quando a banda desponta no cenário musical

nacional, além de ser o pano de fundo para grande parte de sua produção. Em toda

discografia, as referências a esse período são nítidas e recorrentes. Assim, consideramos

indispensável o estudo dos principais eventos que, entendemos, foram marcantes para a

formação dos membros do grupo. É nas décadas de 1970 e 1980 que reside o conjunto de

valores e influências recebidas por eles.

Os anos de redemocratização, em especial, sendo aqueles que antecedem ao

álbum “V” (1991), têm importância para além da formação dos integrantes de banda. O

período final de ditadura militar, com a reintrodução gradativa da democracia, trata-se, na

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nossa análise, do momento em que emergiu o “encanto”. É quando a sociedade civil, os

setores profissionais e até mesmo os partidos, com a iminência do retorno à política

democrática participativa, vislumbram melhorias em todos os planos sociais. Naquele

momento, a oposição se articulou de maneira diferente e segundo Boris Fausto (2013):

Os tempos de uma oposição unida tinham passado. As suas diferentes tendências ficaram juntas enquanto existia um inimigo comum todo-poderoso. À medida que o regime autoritário foi se abrindo, as diferenças ideológicas e pessoais começaram a emergir. (FAUSTO, 2013, p. 411)

No ano de 1983, surgiu a campanha das “Diretas Já” que pedia pelo retorno às

eleições diretas democráticas e se materializou em passeatas e protestos nas grandes cidades

do país. Para José Murilo de Carvalho (2014), em “Cidadania no Brasil: o longo caminho”, a

campanha das “Diretas Já” foi “a maior mobilização popular da história do país”

(CARVALHO, 2014, p. 192). Embora o movimento tenha sido iniciado pelo Partido dos

Trabalhadores (PT), criado em 1980 após aprovação da Nova Lei Orgânica dos Partidos que

extinguiu os antigos MDB e ARENA, ele cresceu de maneira a extrapolar os interesses

partidários, tendo ampla adesão em todos os setores da sociedade.

Daí para a frente, o movimento pelas diretas foi além das organizações partidárias, convertendo-se em uma quase unanimidade nacional. Milhões de pessoas encheram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, com um entusiasmo raramente visto no país. (FAUSTO, 2013, p. 433)

A pressão popular chegou ao Congresso, e uma emenda que pedia o retorno às

eleições diretas foi apresentada pelo deputado Dante de Oliveira do Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB) do Mato Grosso, sendo votada em 25 de abril de 1984.

Embora determinante na formulação da Emenda, que recebeu o nome do seu autor, a opinião

pública e a campanha das “Diretas Já” não foram suficientes para a sua aprovação e as

eleições seguintes foram decididas por um Colégio Eleitoral.

Nesse momento, nasce o que conveniamos chamar de encanto. Trata-se da

expectativa quanto ao retorno à democracia, gerada na sociedade civil devido às novas

concessões democráticas e à iminência do fim da ditadura. Esse sentimento, entendemos,

articula-se a partir da Campanha das “Diretas Já”, onde é levado às ruas em forma de

protestos, e cujas reivindicações seriam “oficializadas” através da Emenda Dante de Oliveira.

Além disso, o “encanto” diz respeito às esperanças de melhorias em todas as áreas sociais.

Conforme Boris Fausto (2013):

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A campanha das “diretas já” expressava ao mesmo tempo a vitalidade da manifestação popular e a dificuldade dos partidos para exprimir reivindicações. A população punha todas as suas esperanças nas diretas: a expectativa de uma representação autêntica, mas também a resolução de muitos problemas (salário baixo, segurança, inflação) que apenas a eleição direta de um presidente da República não poderia solucionar. (FAUSTO, 2013, p. 433)

Com a emenda não aprovada, as expectativas se transferem para o candidato

da oposição Tancredo Neves que, segundo Olga Tavares (1998), “foi ungido ao posto de

Salvador da Pátria” (TAVARES, 1998, p. 14). Conhecido por ser um opositor moderado da

Ditadura Militar, Neves conseguiu manter ainda assim certo prestígio junto às camadas

militares superiores. Governador de Minas Gerais, experiente e conhecido como uma figura

política íntegra e conciliadora, Tancredo Neves foi o candidato à presidência pelo PMDB e

conquistou forte apoio popular, tendo José Sarney como candidato a vice-presidente. Para

reafirmar sua popularidade, embora a eleição fosse indireta, “Tancredo apareceu na televisão

e nos comícios, reforçando seu prestígio e a pressão popular favorável à sua candidatura”

(FAUSTO, 2013, p. 435). Eleito pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, Tancredo

Neves não chega a ser empossado, haja vista que foi acometido por uma doença grave e

internado às pressas na véspera da posse, prevista para o dia 15 de março do mesmo ano. Por

esse motivo, o vice José Sarney foi empossado presidente, a princípio em caráter provisório e,

com a morte de Neves no dia 21 de abril, em caráter definitivo.

A morte de Tancredo causou grande comoção no país, com ampla veiculação

em todos os meios de comunicação, especialmente a tevê. Como em diversos momentos da

história política nacional, a mídia exerceu aqui a função, além de divulgar o acontecimento,

de torná-lo um “espetáculo”. Com a ajuda da mídia, a morte de Tancredo causou um abalo

ainda maior. Seu velório e o cortejo até o cemitério, que tiveram “caráter de Via Sacra”

(TAVARES, 1998, p. 14), foram televisionados por praticamente todos os canais e mostraram

pessoas de todas as classes emocionadas, reproduzindo o mesmo discurso de esperanças

ceifadas e dúvidas quanto ao futuro da nação. Mesmo não tendo sido eleito por vias diretas e

democráticas, a população brasileira depositou na figura de Tancredo a expectativa de um

retorno definitivo à democracia plena. Por mais esse motivo, a década de 1980 foi uma

sucessão de expectativas alimentadas e frustradas.

O governo José Sarney foi marcado pela política econômica visando o controle

da inflação e pelas oscilações nesse mesmo mercado. Foi quando surgiu o Plano Cruzado,

onde a moeda brasileira da época, o cruzeiro, foi substituída. Tal plano consistia, além da

substituição do cruzeiro por uma moeda forte, no congelamento dos preços e das taxas de

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câmbio por tempo indeterminado, e dos aluguéis por um ano. Nesse momento, o clima de

otimismo era intenso e o presidente, antes visto com restrição, passa a ser considerado um

governante firme:

O congelamento de preços teve um profundo eco na população, que não podia acompanhar os complicados meandros da economia e preferia acreditar nos atos de vontade de um dirigente visto agora como corajoso. Foi a época da ocupação de supermercados em nome do povo e da vigilância comovente, mas inútil, dos fiscais do Sarney. Um clima de otimismo ilimitado se instalou no país. (FAUSTO, 2013, p. 444)

Durante o governo Sarney foi promulgada a Constituição de 1988, ainda hoje

em vigor no país, elaborada por uma Assembléia Nacional Constituinte, que trabalhou durante

cerca de um ano na redação da mesma com a ajuda de especialistas e setores organizados e

representativos da sociedade (CARVALHO, 2014, p. 202). A Constituição de 1988 formaliza

as conquistas em todos os âmbitos da sociedade, sobretudo político e social. Na esfera

política, é a responsável por ditar os parâmetros que conduziram as eleições do ano seguinte,

como o direito ao pluralismo político, presente já no Art. 1º. A Constituição traz ainda a

garantia aos direitos humanos básicos, considerados invioláveis, assegurando a livre

manifestação do pensamento, inclusive político e artístico ambos censurados durante a

ditadura, e garantindo o não uso de tortura ou tratamento desumano. Ela representa a mais

importante conquista por direitos do cidadão brasileiro nas últimas décadas.

As diretrizes para as eleições de 1989, quando Fernando Collor de Mello foi

eleito presidente, estão dispostas ao longo de todo o texto. No Título II – Dos Direitos e

Garantias Fundamentais, Capítulo IV – Dos Direitos Políticos, por exemplo, encontram-se

assegurados o direito ao voto direto e secreto, e ainda as especificações para o exercício do

voto e para a elegibilidade. Outras disposições de grande importância para os pleitos eleitorais

são descritas, como a eleição em dois turnos11, além do Ato das Disposições Transitórias,

promulgado para solucionar situações imediatas concernentes ao fim da ditadura militar,

como a garantia constitucional da concessão da anistia aos perseguidos políticos.

Retomaremos alguns pontos da Constituição de 1988 ao longo do trabalho.

Por fim, embora o governo Sarney tenha apresentado claros avanços quando

colocado em paralelo com os governos anteriores, os anseios da população não foram

atendidos. Chega-se então a um momento de oscilação das expectativas, onde a decepção com

o primeiro governo pós democratização divide espaço com a esperança em relação às eleições

11 No caso da eleição para presidente de 1989, ver: Capítulo II – Do Poder Executivo, Seção I – Do Presidente e do Vice-Presidente da República. Art. 77.

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diretas que aconteceriam. É quando surgiu o “messias” Fernando Collor de Mello que, para

Olga Tavares (1998), “percebeu essa lacuna no ideal coletivo e assumiu as responsabilidades

que Tancredo Neves não pudera cumprir” (TAVARES, 1998, p. 14). José Murilo de Carvalho

(2014) descreve esse momento da seguinte forma:

Seguindo a velha tradição nacional de esperar que a solução dos problemas venha de figuras messiânicas, as expectativas populares se dirigiram para um dos candidatos à eleição presidencial de 1989 que exibia essa característica. Fernando Collor, embora vinculado às elites políticas mais tradicionais do país, apresentou-se como um messias salvador desvinculado dos vícios dos velhos políticos. (CARVALHO, 2014, p.205)

Construída toda a expectativa democrática nesses últimos anos da década de

1980, chegamos ao primeiro processo eleitoral direto para presidente após a ditadura militar,

eleição essa que consideramos o auge do “encanto”. Dadas as bases sociais, políticas e

históricas da Legião Urbana, partimos para uma análise mais de perto de seu surgimento e

desenvolvimento. No tópico a seguir, tratamos das influências musicais da banda, haja vista

que o cenário político nacional já foi apresentado, bem como da vida e obra da mesma,

passando pelos primeiros discos que abrem caminho para o álbum de nosso trabalho.

1.3. A BANDA LEGIÃO URBANA

1.3.1. Antecedentes do rock nacional

Como toda grande novidade musical, o rock’n roll para a juventude norte-

americana da década de 1950 (ALVES, 2002, p. 30), logo no início, chamou a atenção pela

renovação estilística, alcançada através da mistura de tendências negras, herdadas do rhythm

and blues (R&B), e brancas, buscadas no pop e na música country, e pela fácil aceitação no

mercado consumidor jovem. O rock traz consigo o elemento que consideramos mais

importante para a análise aqui sugerida, características contestadoras que, segundo Alves,

nem sempre são apresentadas “(...) da mesma forma, podendo estar nas letras, músicas,

comportamentos ou em nada disso” (ALVES, 2002, p. 26).

A década de 1950 é de fundamental importância para entender o

desenvolvimento do rock. Nesse período, a economia mundial estava em plena ascensão,

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sobretudo nos Estados Unidos (EUA). Esse contexto de prosperidade econômica foi um dos

fatores mais importantes para o aparecimento do rock’n roll norte-americano e sua rápida

aceitação no mercado fonográfico. A juventude, principal consumidora desses produtos

culturais, “(...) representava agora uma massa concentrada de poder de compra”

(HOBSBAWM, 2008, p. 322), motivo pelo qual o rock foi absorvido e veiculado

amplamente.

Sobre a mudança nos costumes e mentalidades no século XX, Eric Hobsbawm

(2008) explica que o desenvolvimento e a acessibilidade à educação, sobretudo de nível

superior, aconteceu como uma tendência mundial no pós Segunda Guerra Mundial12, quando

as novas demandas sociais exigiram uma maior atenção do governo para as questões

educacionais. Com isso:

A consequência mais imediata e direta foi uma inevitável tensão entre essa massa de estudantes, em sua maioria de primeira geração, despejada nas universidades e instituições que não estavam física, organizacional e intelectualmente preparadas para tal influxo. (...) O ressentimento contra um tipo de autoridade, a universidade, ampliava-se facilmente para o ressentimento contra qualquer autoridade e, portanto (no Ocidente), inclinava os estudantes para a esquerda. (HOBSBAWM, 2008, p. 295)

Dessa maneira, o jovem surgiu no cenário mundial como participante ativo e

engajado, assimilando o produto rock’n roll facilmente. Hobsbawm (2008) define ainda que:

A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos. (HOBSBAWM, 2008, p. 323)

Em concordância, José Ramos Tinhorão (1998) em “História Social da Música

Popular Brasileira” explica que:

Essa produção diversificada (...) iria sofrer, no entanto, um drástico corte quando da entrada no mercado, a partir da década de 1950, das novas camadas filhas da explosão demográfica ocorrida no período de guerra (...), levou a indústria de bens de consumo a configurar um novo perfil de comprador: o jovem. (TINHORÃO, 1998, p. 332)

Em suma, o surgimento do estilo rock’n roll:

(...) como uma das faces do inconformismo desses jovens de classe média dos países mais ricos do mundo capitalista foi a adesão, na área da música popular, a um ritmo negro-americano que expressava sua marginalidade

12 A Segunda Guerra Mundial acontece no período de 1929 a 1945, quando se inicia a chamada Guerra Fria. (N.A.)

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dentro da mesma sociedade posta em questão, foi sob a inspiração dessa música – o rhythm and blues transformado em rock’n roll pelos brancos revoltados – que se instituiu (...) o padrão sonoro destinado a configurar uma música particular do inconformismo jovem. (TINHORÃO, 1998, p. 333)

Assim como outros estilos musicais que se configuram como produtos no

interior do mercado fonográfico, o rock surgiu numa conjuntura de ebulição do sistema

econômico capitalista. Para Luciano Carneiro Alves (2002), o rock:

Deve ser entendido como prática cultural engendrada num contexto de relações de produção capitalista, no qual a cultura é medida pela indústria cultural e possui características de mercadoria cultural (...) Foi enquanto mercadoria cultural que ele aportou no Brasil (...) não demorando muito para desencadear práticas culturais (ALVES, 2002, p. 35).

Chegando ao Brasil, o rock adaptou-se à realidade local, ganhou adeptos e

desenvolveu sua identidade, mesmo sob as perspectivas da indústria cultural, e, da mesma

forma, introduziu “(...) novos modos de falar, novos estilemas, novos esquemas perceptivos”

(ECO, 2004, p. 48). Além de suas características originais, o rock agrega valores nacionais e,

cantado principalmente em português, o rock brasileiro se diferencia do rock mundial.

Em meados da década de 1970, o rock produzido no Brasil já era uma

realidade. Um de seus maiores ícones, Raul Seixas, utilizava das perspectivas do rock clássico

ao produzir sua música e expor seus pensamentos: a crítica às convenções sociais. Em “Ouro

de Tolo”, por exemplo, Raul Seixas dizia que “devia estar feliz por ter conseguido comprar

um Corcel 1973”13, carro que, na época, era o “sonho de consumo” de grande parte da

sociedade. Napolitano explica que “para o jovem com mentalidade crítica que vivia no início

dos anos 1970 restavam três opções: (...) a clandestinidade da guerrilha ou o chamado

desbunde e a busca de uma vida “fora” da sociedade estabelecida” (NAPOLITANO, 2006, p.

83). O “desbunde”, então, seria o caso de Raul Seixas e seu ideal de sociedade alternativa.

Em contrapartida, o punk surgido na Inglaterra em meados da década de 1970,

apareceu como uma via de contestação, não aos costumes tradicionais, mas à falta de

empregos e às dificuldades econômicas dos jovens. O punk trazia, também, e assim como o

rock, características simplistas de puro entretenimento além daquelas de contestação. O punk

inglês também foi apropriado pela juventude brasileira no final da mesma década. O punk é,

também, uma vertente do rock, com uma identidade diferenciada que se justifica pelo

contexto e local em que foi gestado. À época de seu surgimento, tal movimento objetivava,

principalmente, protestar contra o governo, a estagnação política e social e a falta de

13 In: SEIXAS, Raul. Krig-Ha, Bandolo! Rio de Janeiro: Philips, 1973. (28:52 min). Faixa 11 (2:51 min).

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empregos. Não somente protestar, mas visando, também, o entretenimento, com harmonias

simples e poucos acordes, a música punk com ares urbanos de rebeldia conquistou adeptos

pela facilidade como era produzida.

Diferente do rock dos anos 1950, que surgiu numa época de crescimento do

poder de compra do consumidor jovem, o punk apareceu num momento em que a juventude

não dispunha dos privilégios econômicos para consumir os produtos culturais da época. O

punk, enquanto movimento social, apareceu como uma resposta a essa situação. “A economia

britânica estava em dificuldades na medida em que o desemprego aumentava e a violência

explodia nos guetos” (FRIEDLANDER, 2008, p. 351). Surgiram, dessa forma, os protestos

em forma de músicas, das figuras “estranhas” com vestimentas rasgadas e aparências

chocantes que gritavam o seu inconformismo com a situação.

Com o passar do tempo, a visão acerca do punk foi modificada, dando lugar à

figura caricata e estereotipada de roupas rasgadas, cabelo colorido e postura “anarquista”, não

no sentido político, mas no sentido de infringir leis e promover o caos. Até os dias de hoje,

punks e skinheads14 são comparados e confundidos. Ambos são vistos como neonazistas, em

referência ao nazismo alemão e suas práticas segregacionistas e de repúdio às minorias. O

punk da década de 1970, apesar da aparência diferente e das atitudes explosivas, mantinha

certa distância do que se conhece e se entende por punk hoje.

De suma importância na formação musical dos integrantes da Legião Urbana,

essas tendências musicais e comportamentais orientaram a trajetória da banda. O objetivo do

presente tópico é discutir essas influências, sua importância e presença na obra da banda, haja

vista que constituem em pontos essenciais para o entendimento da obra em si.

1.3.2. Formação, influências e trajetória

O punk chegou ao Brasil, através de algumas revistas e discos, e foi logo

assimilado passando a fazer parte do rock dos anos 1980. Bandas brasileiras aderiram à causa

punk e utilizaram do estilo, seja na maneira de se vestir e comportar ou na maneira de fazer

música, tocar e cantar, sendo sempre importante ponderar o contexto, já que o punk nacional

“(...) não é uma cópia do punk de fora, mas uma identificação adaptada à realidade local”

14 Grupos neonazistas favoráveis ao regime segregacionista racial. Existem representantes dos skinheads em todo o mundo que, em sua maioria, utilizam da violência contra negros, imigrantes, homossexuais, prostitutas e outras minorias. (N.A.)

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(BIVAR, 2001, p. 94). Como qualquer outra vertente musical/artística recém-introduzida em

uma localidade diferente, o punk acabou por agregar valores e ideais nacionais, e se tornou

um movimento diferente daquele surgido na Inglaterra, embora com princípios parecidos.

A cidade de Brasília - DF, num contexto muito específico, era culturalmente

diversa do restante do país. Geograficamente isolada dos grandes centros como Rio de Janeiro

e São Paulo, Brasília era considerada uma cidade entediante, com poucas opções de lazer e

cultura. Por se tratar de uma cidade recentemente construída, grande parte da população era

adulta, e as gerações mais novas dispunham de poucas opções. Além daqueles nascidos ali,

uma minoria e sem muita tradição já que a maioria dos moradores eram funcionários públicos

transferidos de outros estados, a cidade também recebia um grande número de estrangeiros. É

o caso de André Pretorius, filho do embaixador da África do Sul no Brasil, guitarrista e um

dos fundadores do Aborto Elétrico.

Dessa forma, aquela geração das décadas de 1970 e 1980, estava num período

de transição não somente política e, segundo Arthur Dapieve (2000), “isolados do resto do

país, e ao mesmo tempo tão perto do exterior, morando numa cidade entediante, sem opções

de lazer, aqueles garotos foram gestando uma cultura própria” (DAPIEVE, 2000, p. 37). Os

adeptos do movimento punk em Brasília eram, em sua maioria, jovens de classe média e com

acesso às novidades internacionais. As primeiras bandas de punk rock brasiliense foram o

Aborto Elétrico e a Blitx 64, consideradas o ponto de partida para o rock de Brasília que

conhecemos. A música punk inglesa seria a principal inspiração dessa geração de jovens

músicos. As canções pouco elaboradas e tocadas com poucos acordes, as letras de protesto

contra o governo ou a sociedade, o canto gritado e barulhento, a estética chocante e os

comportamentos, tanto no palco como na vida cotidiana, são algumas delas.

No final da década de 1970, o Aborto Elétrico tinha Renato, então Manfredini

Júnior, posteriormente Russo, como principal integrante (vocalista, compositor e letrista) e o

único que também faria parte da Legião Urbana. A banda ficou conhecida por suas músicas

agressivas e com inspiração punk ainda mais evidente que na Legião Urbana. Nesse mesmo

período seria escrita a primeira composição de Renato Russo que se tornou uma máxima para

o jovem daquela época: “a primeira letra escrita por Renato seria transformada em hino dessa

geração, dita “Coca-Cola” (DAPIEVE, 2000, P. 49). A canção “Geração Coca-Cola” entraria

no primeiro disco da Legião Urbana, em 1985. Do Aborto Elétrico também surgiu outra

banda conhecida do rock de Brasília: o Capital Inicial, que inclusive gravou músicas de

autoria de Renato Russo, algumas em parceria com os outros integrantes.

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Do Aborto Elétrico faziam parte, além de Renato e André Pretorius, Fernando

(Fê) Lemos, futuro baterista do Capital Inicial. André Pretorius só participou dos ensaios e da

primeira apresentação da banda, como guitarrista e vocalista, em janeiro de 1980, já que,

naquele mesmo ano, retornaria à África do Sul. Com a sua saída, Renato assumiu a guitarra e

o vocal e Flávio Lemos, irmão de Fê Lemos, assumiu o baixo. Após a mudança, a banda

passou por um fértil período criativo, cujas canções entraram para o repertório e foram

gravadas nos futuros discos da Legião Urbana, como “Metrópole” e “Música Urbana 2”,

ambas do álbum “Dois” (1986), e do Capital Inicial, como é o caso da canção “Veraneio

Vascaína”. As canções possuíam temática que circundavam o cotidiano do jovem brasiliense

do final da ditadura.

O Aborto Elétrico dera o impulso inicial para o rock de Brasília, fazia shows

sem cobrar entrada por questões ideológicas, já que se inspirava no punk inglês, influenciou

muitas outras bandas, mas durou pouco tempo, chegando ao fim em 1981. Após o fim da

banda, Renato Russo seguiu curta carreira solo sob o pseudônimo de “Trovador Solitário”,

tocando baladas de inspiração folk e abrindo shows de bandas como a Plebe Rude e o Capital

Inicial, ambas brasilienses adeptas do punk rock. “Ele usava um banquinho e um violão, não

para fazer bossa nova, e sim para dar vazão à sua porção Bob Dylan (...)” (DAPIEVE, 2000,

p. 59). Durante esse período de liberdade criativa, Renato Russo pôde compor livremente e

pôde experimentar uma mistura com outros estilos diferentes do punk, sendo que algumas

canções desse período tornaram-se famosas com o grupo Legião Urbana, como é o caso de

“Eduardo e Mônica”15 e “Faroeste Caboclo”16.

No caso da Legião Urbana, o ponto de encontro com o estilo punk seria as

canções com estética simples, do ponto de vista harmônico-melódico, ou seja, poucos

acordes, batidas e ritmos parecidos em várias canções, um instrumental que se tornou

característico e serve, inclusive, para identificar a banda. Podemos citar também alguns

aspectos concernentes à performance, de que trataremos no terceiro capítulo, como postura

rebelde nas apresentações, nas letras e no canto, embora Renato Russo se preocupasse com

questões de afinação, diferente do punk. A banda seria a soma da simplicidade punk com

doses de erudição. Somam-se ainda características do rock clássico e do folk, com suas

batidas típicas de violão.

Renato Russo (1989) sintetiza que:

15 In: LEGIÃO URBANA. Dois. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1986 (47 min). Faixa 04 (04:30 min). 16 In: LEGIÃO URBANA. Que País é Este? (197801987). Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1987. (35:52 min). Faixa 07 (09:02 min).

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(...) a Legião Urbana usou o mesmo discurso punk no início. Uma coisa totalmente niilista, destrutiva e anarquista, mas que, no fundo, estava falando que queria paz e harmonia no mundo. Aconteceu que, na nossa cabeça, as pessoas dos anos 1960 tinham falado disso da maneira mais clara possível, através de flores e de amor. Não deu certo; então, vamos falar de outra maneira, mais dura. Mas ficou do punk um certo ranço negativista, porque muita gente que ia aos shows ou curtia o movimento não entendia o espírito da catarse que é aquilo. Pintava, como em todo, um monte de boçais e patetas que usavam toda aquela virulência para despejar agressividade contra outras pessoas. (RUSSO, 1989 Apud ASSAD, 2000, p. 202)

Devemos considerar que o punk influenciou a banda quando de seu surgimento

e ao longo da década de 1980 principalmente. A partir do quarto disco, “As Quatro Estações”,

lançado em 1989, a Legião Urbana sofre algumas mudanças, lançando mão de músicas mais

elaboradas, tanto nas letras, com temáticas mais subjetivas, quanto nas canções, agora com

harmonias e instrumentais um pouco diferentes daqueles de influência punk. O punk se tornou

uma das bases da banda, o que não significa dizer que essa influência esteja evidente em todo

o conjunto da obra, nem tão pouco que se restrinja aos primeiros discos, embora seja mais

acentuada no início da carreira. Assim, consideramos os três primeiros discos, “Legião

Urbana” (1985), “Dois” (1986) e “Que País É Este? (1978-1987)” (1987), mais

representativos em se tratando da temática agressiva e das canções com conteúdo rebelde de

inspiração punk.

A Legião Urbana tal como ficou conhecida nacionalmente, formou-se por volta

de 1982, por iniciativa de Renato Russo que convidara Marcelo Bonfá, baterista, para um

novo projeto musical, onde, “(...) com um no baixo e outro na bateria, eles convidariam

músicos, sobretudo guitarristas, agora que Brasília estava cheia deles, para experiências

diversas” (DAPIEVE, 2000, p. 60). O projeto não funcionou, e após a passagem de alguns

músicos, chegou à formação final com Renato, Bonfá e Dado Villa-Lobos. Nos primeiros

meses, alguns baixistas chegaram a participar da banda, mas não se adaptaram, já que,

segundo os próprios integrantes costumavam dizer, tocavam com uma desenvoltura técnica

superior ao que pretendiam para o estilo do grupo.

As primeiras apresentações aconteceram em festivais de bandas iniciantes na

cidade de Brasília, e desde o começo se destacou pelas letras bem elaboradas, sobretudo.

Alguns meses depois, começaram a se apresentar em outras cidades, sendo a primeira das

apresentações em Patos de Minas (MG), e em seguida nas cidades de São Paulo (SP) e Rio de

Janeiro (RJ). Em 1983, outro integrante passaria a fazer parte da banda: o baixista Renato

Rocha, conhecido como Negrete, mesma época em que Jorge Davidson, diretor artístico da

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gravadora EMI-Odeon, se interessara pelo trabalho deles, mais especificamente o trabalho do

alter ego Trovador Solitário, que descobrira através de uma fita demo. A fita havia sido

entregue pelos integrantes do Paralamas do Sucesso, considerados seus os padrinhos

artísticos.

O LP de estreia, Legião Urbana, gravado em 1984 e lançado nos primeiros

dias do mês de janeiro de 1985, contém 11 canções de cunho principalmente político, social e

cultural, onde existe, também, uma confluência de temas ligados às problemáticas jovens.

“Embora houvesse uma bela canção de amor em Legião Urbana, “Ainda é cedo”, o disco era

majoritariamente político, no sentindo amplo” (DAPIEVE, 2000, p. 75). Em algumas

situações – entrevistas, programas de televisão, Renato Russo defendia que certas questões

políticas fugiam à sua alçada. A música seria, para ele, a única maneira de expressar seus

sentimentos em relação ao país e expor o seu descontentamento:

Eu não gosto muito de falar de política, não. O máximo que posso fazer é pegar uma música no baú, uma música de dez anos atrás, e ficar cantando e reclamando. O que é que eu vou fazer? Virar político, deputado (...)? Mas eu não entendo dessas coisas, eu não gosto de falar dessas coisas. A gente fala disso porque afeta a nossa vida pessoal diretamente (...). (RUSSO, 1987 Apud ASSAD, 2000, p. 195-196).

Para ele, a discussão de política existe ao passo que se relaciona com o

cotidiano, não incluindo dessa forma uma política sectária, ligada a partidos. Nesse sentido e

na nossa análise, a “atividade política” de Renato Russo coaduna com o que explana Hannah

Arendt (2004) em “A condição humana” onde, sendo político e social esferas correlatas, ação

e discurso políticos não se dissociam e tornam-se atividades que compõem um mesmo corpus.

Renato Russo se manifesta e age politicamente através do discurso já que, “nenhuma outra

atividade humana precisa tanto do discurso quanto a ação” (ARENDT, 2004, p.192). Destarte,

numa formulação dialética e de troca, sua contribuição política ocorre através do discurso

presente nas letras, que assumem uma função ativa à medida que se mistura às atividades

rotineiras: retratando-as e fazendo parte delas.

Assim, as canções do disco reproduzem muito do pensamento comum de

jovens e adolescentes daquela época. “As canções tinham ritmo, harmonia e melodia de fácil

assimilação, e eram – todas – complementadas por letras que destoavam das trivialidades e

irreverências juvenis de certos grupos de rock” (VASCO; GUIMA, 1996, p. 10). Abrindo o

primeiro disco da Legião Urbana, a canção “Será” – cujo nome exprime questionamento –

relata as angústias e tensões do crescimento e da entrada na fase adulta, situação muito

comum para jovens e adolescentes. Com instrumental punk, a letra, questiona o porvir e

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manifesta a rebeldia jovem para/com o mundo. “Será” é uma canção de referências punks

marcantes e, embora tenha forte conotação política, podemos identificar, também, alusão “(...)

a uma relação amorosa em conflito” (ALVES, 2002, p. 115). No entanto, essa questão

amorosa é sobrepujada, sendo predominante “(...) a representação de uma relação conflituosa

com o mundo e não apenas entre duas pessoas” (ALVES, 2002, p. 116).

Uma das canções mais famosas desse disco, “Geração Coca-Cola” é um relato

jovem dos últimos anos de ditadura militar, chamada de “revolução”, baseado na experiência

dos integrantes da banda, filhos dela. Convergindo aspectos direcionados às questões política

e social, a canção traz uma exposição claramente crítica em relação à conjuntura do país.

Desse modo, diferencia-se das canções que eram comuns até então no cenário musical, já que

devido à censura, grande parte delas apresentava crítica e descontentamento latentes. Na

última parte da canção, por exemplo, é narrada a trajetória desses “filhos da revolução”:

“Depois de vinte anos na escola / Não é difícil aprender / Todas as manhas do seu jogo sujo /

Não é assim que tem que ser”17. Nessas frases, percebemos uma referência, através do uso dos

termos “escola” e “dever de casa”, às “lições”18 aprendidas com o período ditatorial.

“Vamos fazer nosso dever de casa / Ai então vocês vão ver / Suas crianças

derrubando reis / Fazer comédia no cinema com as suas leis”. Nas duas últimas estrofes,

observamos forte referência à possível participação ou militância política, sendo que a frase

“suas crianças derrubando reis” remete à ascensão da juventude no ambiente político. O

trecho encerra com uma ironia, onde “fazer comédia no cinema com as suas leis” alude à

indústria cultural enquanto disseminadora de ideais.

Cada canção, estrategicamente posicionada, acabou por narrar situações

comuns aos jovens daquele período. O próprio Renato Russo descrevera que a disposição das

canções no disco obedecia a uma lógica pensada por ele, ou seja, não estão dispostas

aleatoriamente. “Estava tudo amarrado na cabeça de Renato, inclusive o final reflexivo com

“Por Enquanto” (...)” (DAPIEVE, 2000, p. 76). Não sem razão, “Será”, canção rebelde e que

exprime dúvidas comuns aos jovens e adolescentes, abre o LP de estreia da banda, finalizado,

em contrapartida, pela melancólica “Por Enquanto”. A mensagem geral transmitida pelo disco

haja vista que as canções seguem uma lógica parecida e transitam por uma mesma temática é

a de que os jovens do período de transição, na figura dos próprios integrantes da banda,

17 In: LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1985 (37:09 min). Faixa 06 (02:22 min) 18 Entendemos como lições o tradicionalismo. A educação do período é conhecida pelo rigor e moralismo, inerentes à classe militar da época, já que visava à “manutenção da ordem” e ao “enquadramento” da população nos moldes militares. (N.A.)

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entendiam o que se passava no país e desiludidos com o porvir cobravam mudanças e atitudes

do governo e da própria sociedade.

Os dois discos seguintes ao disco de entrada, também apresentavam as mesmas

temáticas convergentes: crítica política e problemática jovem. Devido à boa aceitação do

primeiro disco, a gravadora pretendia que o segundo álbum, “Dois” (1986), fosse uma

continuação dele, onde o material restante do Trovador Solitário e do Aborto Elétrico, que

ficara de fora do primeiro seria então gravado. Por exigência da banda, o segundo álbum foi

lançado com músicas novas, tornando-se quase um álbum duplo, com exceção de “Eduardo &

Mônica”, balada de inspiração folk da época do Trovador Solitário e uma das canções mais

famosas do disco. Mais introspectivo que o primeiro, o álbum traz as incertezas da transição

da fase jovem para a adulta em “Tempo Perdido” e ficam por conta das críticas políticas e

sociais as canções “Fábrica”, que denuncia a exploração de trabalhadores nas indústrias, e

“Índios”, que também exprimia desilusão quanto ao porvir ao dizer que “o futuro não é mais

como era antigamente”.

O terceiro disco, “Que País É Este? (1978-1987)” (1987), completa a fase punk

da banda e retoma as músicas do Aborto Elétrico e do Trovador Solitário que foram excluídas

dos dois primeiros álbuns. Trata-se, portanto, de um álbum quase completamente político.

Uma das canções mais famosas, “Faroeste Caboclo”, foi uma de suas maiores surpresas.

Apesar de familiar para o público que assistia aos shows, não era conhecida em escala

nacional nem veiculada em rádios até aquele momento. A surpresa está na censura19,

estipulada em 17 de novembro de 1987, que restringia sua veiculação, exigindo a edição de

partes consideradas inapropriadas. Além disso, embora censurada, foi amplamente tocada nas

rádios, mesmo se tratando de uma canção de longos nove minutos. Em 2013 foi adaptada para

o cinema20, ultrapassando a marca de 1 milhão de espectadores21.

A música título, escrita em 1978, apesar de também ser tocada nos shows

desde o começo da banda, conforme explica o texto não assinado do encarte, “nunca havia

sido gravada antes, porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no

país, tornando-se a música então totalmente obsoleta”22. Ainda hoje, quase quarenta anos

depois, a música é considerada atual. Mais de dez anos depois, em 1999, o disco ultrapassou a

19 Anexo 1. 20 FAROESTE Caboclo. Direção: René Sampaio. Rio de Janeiro: Gávea Filmes, 2013. 1 filme (105 min). 21 Fonte Portal G1. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/06/filme-faroeste-caboclo-ultrapassa-1-milhao-de-especadores.html. Acesso em: 13/02/2014. 22 In: LEGIÃO URBANA. Que País É Este? (1978-1987). Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1987. (35:52 min).

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marca de 1 milhão de cópias vendidas, segundo estatística da Associação Brasileira de

Produtores de Discos (ABPD)23.

O disco seguinte, “As Quatro Estações” (1989), marca uma nova fase, agora

sem o baixista Renato Rocha, que deixou a banda no ano anterior em meio às gravações do

mesmo. O disco traz uma mudança de concepção e, segundo Renato Russo (1990), trata de

espiritualidade, diferente dos três primeiros.

Sei que, a princípio, parece que não mudamos muito, mas a proposta agora é mais branda. Nós não estamos falando de religião, estamos falando do lado espiritual do ser humano. Não estamos falando que Deus existe ou não existe. O disco não lida com a questão da existência de Deus, e sim com a ideia de Deus. (RUSSO, 1990 Apud ASSAD, 2000, p. 209)

São claras as referências bíblicas, em “Monte Castelo” e “Sete Cidades”, por

exemplo, e com temáticas subjetivas como em “Há Tempos”, cuja passagem “e há tempos o

encanto está ausente” exprime, como em outros momentos da banda, desilusão em relação ao

futuro. Apesar disso, o disco traz uma das canções mais importantes em conteúdo de crítica

política de toda a obra: “1965 (Duas Tribos)”, já trabalhada neste capítulo. Há ainda uma

canção que, embora escrita em 1985, acabara sendo associada à morte precoce e quase

pública de Cazuza, vítima da AIDS: “Feedback Song For A Dying Friend”. Para Dapieve, a

canção “antecipava o pesadelo da aids” (2000, p. 113) do próprio Renato Russo que pela

primeira vez deixava clara a sua homossexualidade na canção “Meninos e Meninas”.

O processo de produção e gravação desse disco foi considerado pela banda o

mais difícil, até aquele momento. Foi gestado em um período de grande agitação na vida

pessoal dos membros. Muito embora o disco fosse “incrivelmente sereno para ter sido gerado

em tempos tão turbulentos” (DAPIEVE, 2000, p. 111), trazia ainda uma música que se

tornaria uma das mais populares do grupo “Pais e Filhos”. Lançado com uma distância de

quase dois anos do último disco, “As Quatro Estações” foi bem recebido, pela crítica e pelo

público. No final de 1990, Renato confirmou as suspeitas de que teria HIV, confirmação não

divulgada ao público. Assim, o quinto álbum da banda, o “V” (1991) objeto de nossa

pesquisa, viria com a missão de superar o anterior, considerado o melhor até então, e seria

ainda, gestado por um Renato Russo agora aidético.

Os álbuns seguintes, sobretudo “O Descobrimento do Brasil” (1993) com seu

ar bucólico, reposicionaram a Legião Urbana no mercado fonográfico nacional. Em outras

palavras, ao conquistarem um melhor desempenho em vendas, deram um novo impulso à 23 Fonte ABPD. Disponível em: http://abpd.org.br/certificados_interna.asp?sArtista=Legi%E3o%20Urbana. Acesso em 13/02/2014.

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carreira da banda. Com “O Descobrimento do Brasil” (1993), que carrega um dos maiores

sucessos da carreira e um dos únicos a serem gravados como videoclipe, a canção

“Perfeição”, a banda fez uma ampla divulgação na mídia, a despeito da relação conturbada

com os meios de comunicação, incluindo participações nos principais programas da época,

como o talk show “Jô Soares Onze e Meia”, da emissora SBT.

As últimas canções gravadas pelo grupo, entre janeiro e junho de 1996, deram

origem ao disco “A Tempestade” (1996), lançado no mês que antecedeu à morte do vocalista

Renato Russo, e “Uma Outra Estação” (1997), este último lançado postumamente. O primeiro

é conhecido como o disco que retrata o sofrimento dos últimos meses de vida de Renato

Russo, com graves problemas de saúde agravados pela AIDS. A canção “A Via Láctea”24 é a

descrição do sofrimento causado pela doença, associado à depressão e ao isolamento auto

imposto:

Mas, não me diga isso ∕ Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira ∕ E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima ∕ Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida ∕ Ou fingir estar sempre bem, ver a leveza das coisas com humor ∕ Mas não me diga isso, é só hoje e isso passará ∕ Só me deixe aqui quieto, isso basta ∕ Amanhã é um outro dia, não é? ∕ Eu nem sei por que me sinto assim ∕ Vem de repente um anjo triste perto de mim ∕ E essa febre que não passa e meu sorriso sem graça ∕ Não me dê atenção, mas obrigado por pensar em mim.

O segundo é a reunião de algumas canções que ficaram de fora de “A

Tempestade” (1996) na edição final, portanto carrega o mesmo ar sombrio e depressivo.

Ambos tiveram bom desempenho em vendas, sobretudo devido à comoção com a morte de

Renato Russo em outubro de 1996, que impulsionou, ainda, a procura pelos primeiros álbuns.

Com isso, o álbum “V” (1991) permaneceu preso em um hiato, entre os primeiros e

estrondosos discos, e os três últimos, amplamente divulgados por ocasião da morte precoce do

vocalista. Embora elogiado pela crítica, o disco recebeu uma difícil missão de repetir o

sucesso dos outros trabalhos, missão essa dificultada pelas oscilações comuns à economia e

ao mercado fonográfico.

24 LEGIÃO URBANA. A Tempestade. Rio de Janeiro, EMI Musica Brasil, 1996. (60:07 min). Faixa 05 (04:40 min).

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1.3.3. O álbum “V” (1991): aspectos gerais.

Havia (...) um grande grupo (...) que desejava e esperava uma música com valores musicais e letras diferentes, assim como canções que enfatizassem melodia, harmonia e ritmos mais intricados e letras com menos fanfarronice e mais substância. (...) Mais do que nunca, histórias alegóricas eram costuradas com estranhos e, algumas vezes, ameaçadores personagens imaginários. (FRIEDLANDER, 2008, p. 343-344)

O trecho supracitado é uma breve referência do historiador da música Paul

Friedlander (2008) para definir a tendência do rock progressivo. Trata-se de uma vertente do

rock, surgida na década de 1970, cujos principais representantes são bandas como Pink Floyd,

Genesis e Yes e que se caracteriza por certo refinamento, em termos de harmonia e melodia,

onde são incorporados instrumentos/elementos de música erudita. As guitarras apresentam

solos mais sofisticados e as canções, em geral longas, possuem maior parte instrumental para

uma melhor “exploração das possibilidades sonoras” (ALVES, 2005, p. 63). Destaca-se

também um ponto importante nessa primeira geração do rock progressivo:

O privilégio à parte musical foi uma característica advinda de um ponto em comum entre vários nomes do rock progressivo, a formação em música erudita, o que ajuda a explicar também sua preocupação em obter respaldo para este estilo de massas. (ALVES, 2005, p. 63)

O álbum que escolhemos analisar neste trabalho, o “V” (1991)25, ficou

conhecido como a obra progressiva da Legião Urbana. Recheado de referências medievais,

dos nomes das canções às alegorias nelas contidas, apresenta uma sonoridade diferente

daquela que o público estava acostumado. A esse respeito, diz Renato Russo (1991): “Se você

quiser uma definição para o disco, pode dizer que ele é mitológico, medieval” (1991 Apud

ASSAD, 2000, p. 267). Os nomes de algumas canções aparecem com referências apoiadas no

imaginário medieval. São elas: “Metal Contra as Nuvens”, “A Ordem dos Templários”, “A

Montanha Mágica” e “O Teatro dos Vampiros”. Ele marca a ruptura definitiva com a

sonoridade punk e com a década de 1980. Marca também uma nova época do mercado

fonográfico brasileiro que tentava se reerguer após uma década de altos e baixos.

Assim como os álbuns anteriores e os que viriam depois, incluindo os discos ao

vivo, as coletâneas, as edições comemorativas e o trabalho solo do Renato Russo, a gravadora

responsável pelo “V” foi a atual EMI Music Brasil, braço brasileiro do grupo britânico EMI.

Trata-se de uma empresa multinacional fundada na década de 1930 e uma das cinco maiores

25 Anexo 2.

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empresas do mercado fonográfico mundial (FENERICK, 2008, p. 129) na década de 1990. O

selo “Odeon”, adquirido pela EMI na década de 1970, foi utilizado no Brasil sob a alcunha de

EMI-Odeon até meados da década de 1990, quando chegou ao fim dando lugar ao nome EMI

Music Brasil. Por esse motivo, os álbuns da Legião Urbana, quando lançados, utilizavam o

selo EMI-Odeon. Atualmente, foi comprada pelas empresas Universal e Sony26, mantendo,

porém, o selo EMI, conhecido e prestigiado no mercado fonográfico mundial.

As canções contidas no disco foram escritas durante o ano de 1991, gravadas

nos meses de setembro de outubro, e o álbum lançado em dezembro do mesmo ano. O

período em questão é imediatamente subsequente à descoberta da AIDS por Renato Russo, e

o segundo ano do conturbado governo do presidente Fernando Collor de Mello. Esse foi o

primeiro trabalho da banda a ser lançado diretamente em CD (compact disc), logo na primeira

edição, embora também tenha sido lançada a versão em vinil. A tecnologia do CD já estava

presente no mercado norte-americano desde o começo da década de 1980, todavia, chegou ao

Brasil no final da mesma década dividindo espaço com os LPS (vinil), e só ganhou

notoriedade e se tornou popular após 1994, acompanhando as mudanças econômicas do país e

do mercado musical com a implantação do Plano Real.

Na esfera da indústria fonográfica nacional, o momento de lançamento do

disco é considerado crítico. Dando sequência às variantes que acometeram o mercado musical

na década de 1980, a década de 1990 é iniciada “em meio à mais grave crise que o setor já

assistiu” (DIAS, 2000, p. 105). Os números apresentados pelo setor indicam que a aquisição

pelo público era inferior aos anos anteriores. De acordo com Márcia Tosta Dias (2000):

Nesse contexto, de 76.686 milhões de unidades vendidas em 1989, retrocede-se para 45.225 milhões em 1990, mantendo-se os mesmo índices em 1991, com 45.130 unidades. Mas números menores ainda apareceriam. Apesar das expectativas de melhorias alimentadas pelos executivos do setor, o balanço final de 1992 aponta 30.958 milhões de unidades. (DIAS, 2000, p. 105)

Dessa forma, o disco, embora bem recebido pela crítica, teve vendagem abaixo

do esperado e inferior aos outros trabalhos do grupo, o que se relaciona diretamente ao

contexto de crise. Soma-se à crise, a mudança de estilo que, para o público acostumado à

rebeldia punk inicial da banda, significou certo desânimo: o disco foi classificado como

“depressivo”. Talvez pela veia progressiva, anunciada no encarte do mesmo pela frase não

assinada: “Bem vindos aos anos setenta!”. Para Renato Russo, o compositor de todas as letras

26 Fonte Revista Exame. Disponível em: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/universal-e-consorcio-liderado-por-sony-compram-emi-por-us-4-1-bi/. Acesso em: 13/02/2014.

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nele contidas, com exceção de “Love Song”, esse era o melhor álbum, com as melhores letras.

Assim o classificava:

O “V” é um disco de transição, porque eu comecei a fazer análise. Não tenho mais aquele angst27de jogar tudo nas letras. Sei lá. É a primeira vez que eu tenho certeza de que as letras são boas, mas eu não sei se gosto. Antes, eu gostava, mas não sabia se estava bom. (RUSSO, 1992 Apud ASSAD, 2000, p. 267)

Talvez o baixo retorno tenha acontecido pela insuficiente divulgação e pela

turnê interrompida pela metade, em novembro de 1992. No mês seguinte, foi lançado o álbum

duplo “Música para Acampamentos”, para recuperar o investimento na turnê não concluída e

compensar os fãs. O disco era uma compilação de hits ao vivo com algumas canções tocadas

em estúdio, e incluía uma até então não gravada, “A canção do senhor da guerra”. No mesmo

ano de 1992, antes da turnê, o grupo chegou a gravar o programa “Acústico MTV”, que só foi

lançado em CD em 1999. Para Dapieve (2000), talvez essa tenha sido a única forma de

divulgação do disco (2000, p. 137), já que foram tocadas muitas canções dele e durante todo o

show Renato Russo “propagandeava” e pedia que os fãs comprassem o CD.

Com 10 canções dispostas de maneira a quase representar uma continuidade, o

álbum apresenta algumas principais temáticas que convergem entre si, sendo que circulam por

todo o disco as alegorias medievais. A primeira, que se divide, seria o difícil momento pessoal

do Renato Russo e sua relação com as drogas, representada nas canções “A Montanha

Mágica” e “L’Age D’or”, haja vista que ele havia passado por um processo de desintoxicação,

estava sem utilizar drogas e álcool e em tratamento contra o vírus HIV. A segunda temática,

subjetiva e que se integra à primeira, inclui o amor, os rompimentos e a dificuldade dos

relacionamentos e pode ser percebida nas alegres “Sereníssima” e “O mundo anda tão

complicado” e na depressiva “Vento no Litoral”, escrita para expressar as dores do fim de um

relacionamento em conflito vivido por ele. Por fim, a terceira temática, imprescindível para o

nosso trabalho, consiste em fragmentos que relatam o breve governo do presidente Collor, sob

a ótica da banda, nas canções “Metal contra as nuvens” e “Teatro dos Vampiros”.

Em síntese, trata-se de um disco coeso, cuja disposição das canções forma o

que Arthur Dapieve conceitua como “ópera-rock”28 (2000, 131). As referências medievais

fazem parte, além da influência do rock progressivo, de um gosto particular do Renato Russo

(1991) que disse ter “fascinação por aquelas histórias de cavaleiros da távola redonda”

27Angst, do alemão, em tradução livre: ansiedade. (N.A.) 28 “Ópera-rock”: é um gênero do rock apresentado geralmente em forma de narrativa e cujas canções estão unidas por um enredo. Muito presente nas obras de rock progressivo da década de 1970. (N.A.)

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(RUSSO, 1991 Apud ASSAD, 2000, p. 267). Tais referências contribuem para que as canções

sejam entendidas como “românticas” ou “depressivas”. Em entrevista ao jornalista Alexandre

Matias29, em 21 de maio de 1994, ao ser questionado sobre qual o disco da Legião era seu

preferido, respondeu:

O "V", que eu acho o disco mais difícil. (...) O problema é que o disco falava de coisas que as pessoas não estavam querendo ouvir na hora. Foi quando estourou a axé music, a gente veio na contramão. Mas o disco tem as melhores letras, de longe. Consegui falar tudo o que eu queria. Mas as pessoas não queriam ouvir aquilo. (RUSSO, 1994)

Aqui, Renato Russo aponta outra possibilidade, além das supracitadas, para o

disco não ter gerado o retorno financeiro dos outros trabalhos da discografia. Entendemos ter

sido uma soma de todos esses fatores: mudança de estilo e referências, baixa no mercado

fonográfico nacional, pouca divulgação, interrupção da turnê e surgimento de outros estilos de

sucesso no mercado musical. Sobre as canções, consideradas complexas haja vista a mistura

de elementos e diferentes referências, e que também retratam toda a complexidade vivida por

Renato Russo em sua vida pessoal, Dapieve (2000) diz que “embora as letras estivessem

firmemente ancoradas na realidade do país e na vida pessoal de Renato, o ouvinte pôde fruí-

las sem ter consciência disso” (DAPIEVE, 2000, p.127). É importante ressaltar que, para o

presente trabalho, a análise será feita, apoiada na bibliografia pertinente, a partir do ponto de

vista particular do historiador, não do ouvinte.

As representações, conforme conceito de Chartier (2002), contidas no íntimo

das obras de arte e dos elementos culturais produzidos em determinado tempo e espaço, são

tomadas pelos historiadores da cultura como fonte histórica. A obra em análise, embora

apresente temáticas convergentes, contém canções que ilustram o cenário político e social do

breve governo Collor. A ideia aqui é analisar e debater a essência histórica dessas canções,

numa perspectiva interpretativa. É o que fazemos nos capítulos seguintes.

29 Fonte: Jornal Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u18180.shtml. Acesso em: 13/02/2014.

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CAPÍTULO II

POLÍTICA E MÍDIA: ONDE AS DUAS SE ENCONTRAM

Na política, os mitos sempre se perpetuaram de modo a fazer com que a humanidade elaborasse constantes releituras de suas existências, para que a realidade não fosse obliterada. (...) O mito político permite que se alcance o imaginário de um povo, que se revelem as situações de crise (e todas as suas implicações, as expectativas, as fantasias), e que se mostre o impacto que ele provoca nos grupos, assim como possíveis reações. (TAVARES, 1998, p. 26-28) O isolamento pessoal da maioria dos líderes políticos do passado foi cada vez mais sendo substituído por esse novo tipo de intimidade midiática, através da qual os políticos podiam se mostrar não apenas como líderes, mas também como seres humanos, (...) Em síntese, os líderes políticos adquiriram a capacidade de se apresentarem como um de nós. (THOMPSON, 2002b, p. 69)

Os trechos acima citados se relacionam diretamente com algumas das

principais discussões deste segundo capítulo. No primeiro deles, Olga Tavares (1998) explica

a função de um mito político, numa descrição análoga à de Norberto Bobbio (1998), onde o

mito assume a função de atender às expectativas, causando uma reação do povo sobre ele com

características religiosas, sendo que isso acontece particularmente nas situações de crises ou

mudanças repentinas no campo político-social. A autora usa dessa explanação para justificar a

projeção de Collor como um “messias”, análise que ela desenvolve ao longo do texto. O

segundo trecho, do sociólogo e estudioso das mídias John B. Thompson (2002b), é ainda mais

importante para nosso trabalho já que confronta mídia e política. Para ele, o líder político é

muitas vezes “humanizado”, através da interação midiática, aproximando-se dessa maneira do

eleitor∕cidadão.

No primeiro tópico deste capítulo, apresentamos uma análise do breve governo

Collor, onde discutimos suas principais características, plano de governo e por fim o processo

de impeachment. No segundo, procuramos discorrer brevemente sobre a relação da Legião

Urbana com a mídia. Procuramos ainda, ao analisar a campanha e a relação de Collor com a

imprensa, dosar as duas explicações supracitadas tendo em vista que, para nossa análise, a

figura política de Fernando Collor de Mello assumiu características de mito, quando é

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recebido como possível “salvador da pátria”, ao passo que, através da cobertura midiática, do

discurso de defesa dos “descamisados” dentre outros, foi humanizado e aproximado do

eleitor. Por fim, no terceiro e último tópico, analisamos algumas representações contidas no

álbum “V”, a saber, as representações medievais, que aparecem em alguns momentos como

ilustração, devido à veia progressiva do disco, e outros como metáfora para as questões

cotidianas; e as representações subjetivas, que surgem para ilustrar o momento pessoal do

líder da banda.

2.1. A PRESIDÊNCIA FERNANDO COLLOR DE MELO

Fernando Collor de Mello veio de uma família intimamente ligada à política e

cujos membros tradicionalmente ocuparam cargos políticos eletivos ou não. Seu avô, Lindolfo

Collor, foi deputado federal pelo Estado de Alagoas e primeiro Ministro do Trabalho,

Indústria e Comércio, entre 1930 e 1932, durante o governo de Getúlio Vargas. Seu pai,

Arnon Affonso de Farias Mello, foi governador do estado de Alagoas (1951-1956) e senador

pelo mesmo Estado (1963-1983), além de ter atuado também como jornalista e ter sido um

empresário reconhecido do ramo da comunicação. As Organizações Arnon de Mello, maior

grupo de TV, rádio e jornais de Alagoas, e também de expressiva importância nas regiões

norte-nordeste, são de propriedade de sua família, conhecida como uma das mais tradicionais

da classe média alta nordestina.

Em 1986 foi eleito governador do Estado de Alagoas pelo PMDB (Partido do

Movimento Democrático Brasileiro) e passou a buscar visibilidade em âmbito nacional,

apesar de ter um histórico político controverso. De maneira geral, Collor assumia uma postura

onde buscava demonstrar ser um político forte, e ao mesmo tempo aberto ao diálogo com

todas as classes, setores e sindicatos, e inovador ao apresentar propostas, sobretudo

econômicas, que representariam um novo modelo de atuação política naquele momento.

Atuou como governador até maio de 1989 quando entrou em campanha para a presidência da

República pelo partido recém fundado, o PRN (Partido da Renovação Nacional).

Enquanto candidato à presidência, Collor apareceu como o conciliador das

expectativas. É o candidato cuja configuração encontra-se no cerne de uma complexa crise,

onde as aspirações parecem incompatíveis. Surge como um símbolo que, dialeticamente,

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atenderia de operários a empresários. Embora as eleições de 1989 dispusessem de um

candidato representante da classe trabalhadora, Luiz Inácio Lula da Silva, candidato pelo PT

(Partido dos Trabalhadores), com o discurso de defesa dos “descamisados” Collor conseguiu

angariar o apoio de parte da população pobre. Embora abreviado, o governo Collor de Mello é

significativo para a história política nacional recente e o ano de 1989, especialmente,

representaria o fim de um ciclo e, se analisado sob uma ótica onde os períodos históricos são

divididos a partir de eventos em detrimento das datas, representaria ainda a transição entre o

fim da década de 1980 e o começo antecipado da década de 1990. Partimos agora para uma

análise sistemática do curto governo.

2.1.1. O Breve Governo: o programa neoliberal, as ações monetárias e o impeachment

Depois de acirrada campanha que durou cerca de seis meses, Fernando Collor

de Mello foi eleito presidente num pleito com dois turnos, tendo obtido aproximadamente

43% dos votos contra 38% do segundo colocado Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Collor foi

empossado em 15 de março de 1990, à época com 40 anos, e logo em seguida anunciou um

plano de estabilização econômica, visando controlar a inflação. O pacote de medidas, que

recebeu inicialmente o nome de Plano Brasil Novo e ficou conhecido como Plano Collor,

tinha como principal decisão, além da mudança da moeda do Cruzado Novo para o Cruzeiro e

do congelamento de preços e salários, o bloqueio de valores nas contas correntes e cadernetas

de poupança. Ficou determinado o valor máximo de 1.250 dólares e, acima disso, os valores

foram confiscados e seriam devolvidos no prazo de até dezoito meses.

Este conjunto de medidas que recebeu o nome de Plano Collor foi, talvez, o mais significativo ato performático do presidente e de seu governo, uma vez que se tornou o centro absoluto, para não dizer o único ponto relevante da agenda política de 1990. E tão surpreendente quanto o teor das medidas deste plano econômico foi a fraca reação à radicalidade das mesmas. (FLORES, 2008, p. 144-145)

O “herói-salvador” Collor de Mello, não por acaso, usara seu nome para

(re)batizar o plano e, segundo Maria Cândida Galvão Flores (2002), talvez fosse essa uma

maneira de marcar aquele programa econômico com o que considerava ser uma de suas

melhores características: a eficiência (2008, p.146). O que se pretendia era acalmar a

população e transmitir uma idéia de controle sobre a situação monetária do país. Talvez por

esse motivo, e haja vista que Collor insistia em vender uma imagem respeitosa e competente

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de si, a apresentação do documento contendo o plano econômico ao Congresso foi feita pelo

próprio presidente, acompanhado de seus ministros, num performático “cortejo” televisionado

que atravessou a pé a Praça dos Três Poderes em Brasília.

Com a execução do Plano Collor, que objetivava reduzir o fluxo interno de

dinheiro e por consequência estabilizar a hiperinflação, o governo passou a interferir

deliberadamente na propriedade privada do cidadão ficando tais medidas no interior de

quaisquer discussões a respeito daquele período. Mesmo exercendo uma marcante intervenção

na economia, o governo Collor apresenta muitas características do dito neoliberalismo30.

Trata-se, em resumo, de um conjunto de diretrizes e reformas do campo econômico, que após

o Consenso de Washington (1989)31 passou a reger parte dos mercados financeiros

internacionais. Dentre as principais mudanças sugeridas após o Consenso estão a abertura dos

mercados, o livre comércio e as privatizações com a consequente redução da participação do

estado nas decisões econômicas, ficando o intervencionismo estatal restrito às ações de caráter

urgente. A agenda neoliberal de Collor foi uma maneira de tentar adequar-se às tendências

mundiais e às exigências das empresas.

Além disso, Collor buscou mostrar-se aberto ao diálogo com as classes

trabalhadora e empresarial, sem se declarar como parte da esquerda ou direita onde, para

Flores (2008), “a mensagem neoliberal de Collor de Mello apelava aos empresários, que

procuravam um candidato comprometido com a redução do papel do Estado na economia”

(FLORES, 2008, p.13). Seu posicionamento, no entanto, gerou críticas por parte dos

parlamentares e partidários de oposição: “O senador e ex-ministro do Planejamento Roberto

Campos disse que ‘o presidente Fernando Collor reza uma missa liberal, mas escolheu

sacerdotes partidários do dirigismo estatal’” (FLORES, 2008, p. 149).

Faziam parte da agenda neoliberal de Collor, as propostas de estado mínimo

com a redução dos gastos públicos, a partir, por exemplo, das privatizações, da extinção de

ministérios, autarquias e “mordomias” do funcionalismo público, da punição e afastamento de

30 Sobre neoliberalismo, ler: ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (orgs). Pós-neoliberalismo: As políticas sociais e o estado democrático. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1995. 31 Trata-se de uma reunião realizada em Washington, capital dos EUA, sob a organização do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial, e influência do governo norte-americano. O objetivo era definir propostas de reforma para a superação da crise da hiperinflação que atingiu diversos países do mundo, sobretudo da América Latina, durante a década de 1980. (N.A.)

Sobre Consenso de Washington ler: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A crise da América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal? In: XVIII Encontro Nacional de Economia da Associação Nacional de Centros de Pós-Graduação em Economia (ANPEC). V. 21, n 1, p. 3-24. Rio de Janeiro: ANPEC, 1991. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/papers/1991/91-acriseamericalatina.pdf. Acesso em: 11/12/2014.

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maus funcionários ou aqueles que comprovadamente tivessem causado algum dano ao fisco,

sendo essas últimas medidas o que o próprio Collor caracterizou como “saneamento moral”.

O objetivo de tais medidas, teoricamente, seria fechar o ano com déficit público zero. Outra

característica amplamente utilizada durante a campanha e breve governo, e que também faz

parte das medidas em relação ao funcionalismo público, foi a chamada “caça aos marajás”32.

É difícil saber se a imagem do “caçador de marajás” teve alguma inspiração no debate econômico trazido pela ascensão ideológica do consenso neoliberal, em torno da necessidade de racionalizar e otimizar o serviço público como requisito para um Estado mínimo ou, especialmente enxugar a folha de pagamentos como requisito para obter o equilíbrio receita-despesa. Se teve, certamente extrapolou, no imaginário popular, assumindo conotações inauditas de luta contra a corrupção, o empreguismo, o apadrinhamento e, daí, indo mais além, para a imagem do jovem forte, perseverante, aguerrido, ao final quase guindado à condição de paladino da luta contra toda injustiça. (FLORES, 2008, p.99)

Logo que entrou em vigor, o Plano Collor foi duramente criticado por

diferentes setores. Com o passar dos meses, as críticas se avolumaram. Sobre o plano em

questão, Boris Fausto (2013) assim explica:

Pela surpresa e por seu alcance, a medida traumatizou a população brasileira durante anos. (...) A medida extrema, acompanhada de congelamento de preços e salários, do corte de gastos públicos e da elevação de alguns impostos, não produziu os resultados esperados. Ao final de 1990, já era claro que a inflação retomava impulso. (FAUSTO, 2013, p. 474)

O Plano Collor falhou gradativamente, e aos poucos surgiram as críticas da

imprensa ao antes elogiado novo estilo de governo. Com menos de um ano de mandato, em

janeiro de 1991, foi lançado o Plano Collor II, que tentou dar novo fôlego ao primeiro fazendo

um novo congelamento de preços e alterando as taxas de juros. Em poucos meses, a inflação

voltou a apresentar sinais de descontrole. A questão financeira tornou-se um dos principais

pontos da presidência Collor de Mello, afinal, trata-se de apropriação material e que causa

certo incômodo à memória do brasileiro. Em entrevista ao Jornal do Brasil, o sociólogo Darcy

Ribeiro assim define a eleição de Collor:

O Collor primeiro me assustou. Eu não esperava a vitória dele, foi uma vitória assim meio espantosa. Segundo, este governo é de um nordestino claro que de uma família da nobreza nordestina que é muito pior que os ricos em qualquer país do mundo. Os ricos do nordeste são gente dura, perversa, pervertida, é uma gente muito ruim. Apesar disso, supõe-se uma certa solidariedade, muitos deles dão solidariedade muito grande para o povo do nordeste. Um nordestino jovem, o que é uma coisa muito simpática, voltado

32 Marajás: Parcela de funcionários públicos que recebiam altos salários e/ou privilégios do governo. (N.A.)

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para a gente mais pobre, descamisados, como ele chamava, uma coisa meio peronista, ou pés-descalços. De repente, ele opta pelos ricos. Quer dizer, o eleito dos pobres opta pelos ricos. (RIBEIRO In: FLORES, 2008, p.134)

Nesse momento, os mais diferentes setores políticos e da sociedade civil

apresentaram sinais de desgaste e insatisfação com o então governo. Olga Tavares, na obra

“Fernando Collor: O discurso messiânico”, diz que:

A trajetória messiânica de Collor atendeu aos três períodos sugeridos por Girardet (1986, p.66): o apelo, o poder e a glória, e o martírio. O primeiro período apresentou um jovem governador que se descobre diante de um grande destino, a partir de uma decisão política - a Caça aos Marajás – que o destacou diante do país inteiro. O segundo período colocou o jovem governador em constante evidência, confrontando-o com grandes nomes da política nacional na mais aguardada disputa presidencial das últimas três décadas, fazendo-o vencedor do pleito e legitimando-o como o pioneiro da “Nova Era”; O terceiro período identificou o jovem presidente com tudo aquilo que ele negava no primeiro período e que provocou o seu afastamento e o desprezo dos seus eleitores. (TAVARES, 1998, p.28-29)

O processo de “satanização” ou de martírio, definido por Olga Tavares (1998),

iniciou-se principalmente com as denúncias apresentadas por Pedro Collor e publicadas na

Revista Veja, em 05 de maio de 1992. Segundo tais denúncias, inúmeras transações

financeiras de altos valores e compras de empresas no exterior por Paulo César Farias,

tesoureiro da campanha de Collor, poderiam comprometer tanto o próprio tesoureiro como

levar ao impeachment do presidente. Porém a própria Veja dizia que a briga entre Pedro

Collor e PC Farias tinha tudo para ser uma mera “disputa provinciana” cujos estilhaços

poderiam acertar o presidente, que não seria o alvo.

Nas publicações seguintes, o discurso mudou e Veja passou a afirmar que PC

Farias era o intermediário dessa disputa cujo alvo era o presidente Collor. A briga seria

resultado de inúmeras pendências no ramo dos negócios, política e família, incluindo uma

longa disputa em torno do mercado editorial alagoano. Com isso, surgiu pela primeira vez a

possibilidade de instauração de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), haja vista que

as denúncias começaram a sair do campo pessoal e de negócios e entraram na esfera política e

de governo, sendo agregada às denúncias iniciais a possibilidade de crimes de corrupção. Nas

diversas constituições que já estiveram em vigor no Brasil, as CPIs são dispostas de diferentes

maneiras, tanto no que diz respeito à sua composição, quanto às atribuições e prazos a serem

seguidos. Na Constituição de 1988, ainda em vigor, as CPIs são definidas da seguinte forma:

As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos

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das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço dos membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (§ 3º - Art. 58)

A respeito das CPIs, Fábio Wanderley Reis, no livro “Reforma Política no

Brasil” diz que:

A avaliação a ser feita do instrumento representado pelas comissões parlamentares de inquérito e do papel que têm cumprido na vida política brasileira é equívoca. Em princípio, elas certamente podem trazer contribuições positivas e importantes na exposição pública de conduta imprópria em áreas variadas e no seu eventual esclarecimento. Contudo, dada precisamente a publicidade que tende a cercá-las, que é afim às próprias razões de que existam, a atuação das CPIs se vê exposta também às complicações e dificuldades que, do ponto de vista do ideal democrático, envolvem a operação da “opinião pública” e as relações entre maiorias e minorias. (2007, p. 91)

Por ocasião da CPI contra o então presidente Collor, instaurada em maio de

1992, tendo como presidente Benito Gama (PFL-Bahia) e como relator o senador Amir Lando

(PMDB-Rondônia), o apelo popular, e mesmo político, foi acompanhado pela mídia através

principalmente de revistas como Veja e Isto É, e da Rede Globo de Televisão com notícias

diárias no Jornal Nacional. Entre a primeira denúncia, a abertura da CPI e a aprovação do

processo de impeachment, os acontecimentos se desenrolaram rapidamente. No meio político,

a oposição era desvelada. Deputados, governadores e senadores cada vez mais evitaram se

aproximar do presidente ou manifestar qualquer apoio. Assim:

Em julho de 1992, a pressão sobre o governo Collor de Mello aumentou de forma substancial, principalmente contra a pessoa do presidente. A ideia do impeachment foi rapidamente se cristalizando, quer entre os políticos, quer no meio empresarial, da mesma forma que nos sindicatos, e na sociedade em geral. A mídia conseguiu mobilizar os meios estudantis e o povo em geral. (...) Enquanto isso, as pressões se faziam em todos os sentidos e direções, particularmente sobre os governadores, políticos, juízes e procuradores. Poucos se dispunham a defender o presidente, apesar do Ministério Público ter declarado não ter provas suficientes para solicitar o impeachment. (FLORES, 2008, p. 183)

Desde sua posse como presidente, Fernando Collor de Mello dispunha do apoio

da minoria da representação nacional, apesar de eleito com 42,75% dos votos válidos. No

momento da diplomação como presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), “dirigentes

do PDT, PT, PCB, PC do B, e da esquerda do PMDB em reunião no Rio de Janeiro

anunciaram sua oposição ao futuro governo Collor. A Comissão Executiva do PMDB, reunida

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em Brasília, também decidiu opor-se a Collor de Mello” (FLORES, 2008, p. 114). Parte dessa

oposição, que desempenhou um papel primordial no processo que levou ao impeachment, se

devia às eleições municipais ocorridas em 1988 onde esses mesmos partidos, que também

faziam oposição ao presidente José Sarney, ganharam a maioria das prefeituras:

Em 1988 realizaram-se eleições municipais no Brasil onde saíram vitoriosos, na maioria das grandes cidades, os partidos de oposição, com destaque para o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista. A partir destas eleições o PT e o PDT, somados, passaram a governar quase um quarto de toda a população brasileira na esfera municipal, fortalecendo-se bastante. (SANTOS, 2008, p. 45)

Com o desenrolar das investigações, após inúmeras votações, depoimentos,

escândalos, a popularidade de Collor sofreu queda vertiginosa e, proporcionalmente,

aumentou a indignação e a campanha midiática que pedia seu impeachment. O auge da

indignação popular se deu em agosto de 1992 quando, durante discurso no Palácio do

Planalto, Collor convocou a população a sair às ruas no domingo seguinte, dia 16, em apoio

ao governo vestindo verde e amarelo. Nessa ocasião, aconteceu o movimento chamado “Caras

Pintadas”, que pode ser considerado um dos movimentos populares mais importantes da

década de 1990 no Brasil, onde:

Os jovens não aparentavam optar entre esquerda e direita, ou entre este ou aquele partido político. Parecia naquele instante existir um sentimento maior, abrangendo um movimento dito pela ética na política, mostrando uma população cansada pela sucessão de escândalos. (SANTOS, 2008, p. 205)

Além da oposição já presente após as eleições municipais, outra eleição

aumentou ainda mais o número de opositores: o pleito que elegeu governadores, deputados e

senadores em 1990. Com as medidas econômicas que causaram grande impacto negativo,

sobretudo na classe média, o descontentamento da sociedade e da classe política continuou a

crescer. Os partidos de oposição e as lideranças sindicais, que já se manifestavam contra o

presidente desde o momento da campanha, aproveitaram a impopularidade do mesmo com a

sucessão de escândalos para incentivar os movimentos populares e angariar apoio. Sobre a

oposição, José Murilo de Carvalho (2014) reforça que:

As eleições diretas, aguardadas como salvação nacional, resultaram na escolha de um presidente despreparado, autoritário, messiânico e sem apoio político no Congresso. Fernando Collor concorreu por um partido, o PRN, sem nenhuma representatividade, criado que fora para apoiar sua candidatura. Mesmo depois da posse do novo presidente, esse partido tinha 5% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Era, portanto, incapaz de dar

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qualquer sustentação política ao presidente. A vitória nas urnas ficou desde o início comprometida pela falta de condições de governabilidade. (CARVALHO, 2014, p. 206)

Em obra lançada em março de 2007, o agora senador e ex-presidente Fernando

Collor de Mello tenta esclarecer algumas questões que, para ele, teriam ficado em aberto. Um

dos pontos que ele chama atenção é a fragilidade do seu governo decorrente da numerosa

oposição. “Nas eleições de 1990, no 1º ano de meu governo, numa Câmara então já com 503

deputados, o PRN (...) logrou conquistar 40 cadeiras e o PST, que integrou minha coligação

no pleito presidencial, apenas duas. Juntos, somavam 8,4% do total” (COLLOR, 2007, p.13).

Apesar de controverso e parcial, ele levanta a discussão em torno dos interesses políticos por

trás desse decurso tão atribulado.

Com toda a repercussão do caso Collor, a campanha em favor da saída do

presidente recebeu ainda o auxílio de dois outros importantes órgãos: a Associação Brasileira

de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em agosto de 1992,

O relatório da CPI acabou associando o presidente Collor aos crimes de corrupção passiva e prevaricação, o que levou o assunto a ser discutido no plenário da Câmara, decorrendo daí o pedido de impeachment, aliás, já antecipadamente requerido pelos presidentes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). (FLORES, 2008, p. 187)

Em 23 de setembro de 1992, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou o

pedido do então presidente da Câmara, deputado Ibsen Pinheiro (PMDB), de que a tramitação

do pedido de impeachment acontecesse mediante voto aberto, contrariando o mandato de

segurança impetrado por Collor que pedia pelo voto secreto. Ou seja, mediante a pressão

popular e a impossibilidade de votar secretamente, intensificaram ainda mais as discussões e

embates na esfera pública governista. A estratégia da defesa estava desmanchada e os

parlamentares votantes acuados pela repercussão e pressão do povo.

A partir de setembro, quando Collor foi denunciado por crime de

responsabilidade, os acontecimentos aceleraram para a sua saída. Após isso, em pouco mais

de dois meses, o processo tramitou em todas as esferas, passaria por todos os debates e

votações. Em outubro do mesmo ano, Collor foi afastado assumindo interinamente o seu vice,

Itamar Franco. Em 29 de dezembro, com menos de três anos de governo, ele apresentou sua

carta de renúncia, após inúmeras manobras da defesa e tentativas de protelar o julgamento,

numa última tentativa de não ter seus direitos políticos cassados. Porém, com a aprovação do

impeachment no mesmo dia, tornou-se inelegível por oito anos.

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Para tentar evitar sua condenação pelo Congresso, Fernando Collor renunciou momentos após ter começado o seu julgamento político no Senado federal. Entretanto os senadores deram continuidade ao processo iniciado na Câmara dos Deputados e ele foi condenado, em 29 de dezembro de 1992, a perda do mandato presidencial, a inelegibilidade e a inabilitação para o exercício de quaisquer cargos públicos por oito anos. (DE SOUZA, 2008, p. 104).

Após cumprir a quarentena política, ele se elegeu senador pelo estado do

Alagoas em 2007 com 550.725 votos, ou seja, 44,04% dos votos válidos, pelo PRTB (Partido

Renovador Trabalhista Brasileiro), legenda criada por ele. Apresentado o governo e suas

características, bem como as razões para o fim precoce de seu mandato, no próximo tópico

iniciamos uma discussão acerca da campanha pela presidência, enfatizando a conexão de

Collor com a mídia e a publicidade, e a relação do mito versus o ser humano. O debate a

seguir se relaciona com os próximos tópicos, onde discutimos a ligação da Legião Urbana

com a mídia e partimos para a análise das canções. Além disso, abre caminho para o terceiro e

último capítulo deste trabalho.

2.2. HISTÓRIA E MÍDIA

A maneira como os líderes políticos se apresentam diante dos outros foi moldada pela mudança nas formas de publicidade criadas pela mídia. (...) Agora os líderes políticos podem dirigir-se a seus sujeitos como se fossem pessoas da família ou amigos. (THOMPSON, 2002b, p. 68-69)

A frase acima diz respeito às mudanças ocorridas no campo político, mais

especificamente na relação do líder político com a população, possibilitadas pelo surgimento e

a popularização dos meios de comunicação, conforme apresentado no primeiro capítulo,

quando tratamos da Indústria Cultural. A partir do advento do rádio, e mais tarde com a

popularização da TV, a relação do líder∕candidato com o eleitor, ganhou uma proximidade

quase íntima, e assuntos de ordem pessoal ganharam a atenção da sociedade. Com isso,

aumentou o interesse pelas escolhas e atitudes pessoais desses atores políticos, em detrimento

de suas habilidades em seu campo de atuação. Temos então uma visibilidade maior do que se

via no passado. Essa situação colabora para o que chamamos de “humanização”33 do ator

33 No sentido de tornar humano. (N.A.)

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político, que ocorre à medida que o mesmo através da publicidade ganha espaço na vida do

eleitor, e à medida que sua vida pessoal passa a ser acompanhada e analisada. O processo de

humanização é resultado, ainda, da mudança de visão do povo para o líder, quando o segundo

passa a ser visto como parte do primeiro.

Esse processo coexiste com outra característica de muitos agentes políticos: a

“mitificação” ou “messianismo”. Comum em períodos de transição, o messianismo está

presente em diversos momentos da história do Brasil, país sabidamente de maioria cristã.

Trata-se da representação simbólica do ator político como uma figura messiânica salvadora.

Essas representações, na acepção de Chartier (2002) anteriormente discutida neste trabalho,

podem surgir a partir da expectativa popular e podem ser ou não utilizadas pelo ator político.

No caso que analisamos, o messianismo aparece tanto como expectativa popular (social), no

sentido de aguardar um messias salvador, quanto objeto de publicidade (política), no sentido

de ser utilizado em campanha da maneira como era esperado pelo povo.

Não obstante o messianismo ocorra em relação aos atores políticos,

encontramos ainda traços de mitificação em figuras ou personalidades ligadas à cultura, nesse

caso, à música. Ao apresentar a relação da Legião Urbana com a mídia, no tópico a seguir,

ressaltamos o relacionamento da mesma com o público, quando recebe ares de messianismo.

A inconstante ligação da banda com os meios de comunicação, que passa por momentos

turbulentos, será apresentada e, na sequencia, partimos para uma explicação mais detalhada

sobre os dois temas citados anteriormente: messianismo e humanização dos atores políticos.

Nesse último tópico, trabalhamos a campanha de Collor e seu relacionamento com os meios

de comunicação de massa, amplamente utilizados por ele. A intenção desta parte da pesquisa

é apresentar os dois principais personagens de nosso trabalho e suas respectivas conexões com

a mídia, a fim de confrontar os dois tipos de vínculo e estabelecer pontos de encontro (ou

desencontro) entre eles.

2.2.1. A relação da Legião Urbana com a mídia

Podemos dizer que o primeiro contato relevante dos membros da Legião

Urbana com a mídia se deu a partir de revistas e periódicos de música importados que eles,

principalmente Renato Russo, tiveram acesso durante a segunda metade da década de 1970.

Através da Cultura Inglesa, escola de idiomas onde Renato Russo era professor de inglês –

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embora cursando Jornalismo – eles conseguiam ler os mais novos exemplares de revistas e

jornais estrangeiros de música, e graças a isso foram talvez os primeiros jovens de Brasília a

terem contato com o punk rock inglês.

Ainda na graduação, Renato Russo desenvolveu um gosto particular pelo

jornalismo político, gosto esse que mais tarde fora convertido em desilusão. Desde a

adolescência, Renato Russo teve uma relação de amor-ódio com a imprensa. Optou por cursar

jornalismo em meio a uma ditadura e se interessou particularmente por jornalismo político,

chegando a se sindicalizar mesmo antes de formar e escrever alguns textos nessa área. Dessa

experiência, declarou: “todas as minhas ilusões, de querer salvar o mundo, ser o bastião da

verdade, acabaram ali” (RUSSO, 1988 Apud ASSAD, 2000, p.62). Concluiu o curso de

jornalismo normalmente, embora nunca tenha buscado o diploma. Apesar de jovem quando a

censura atuava de maneira mais rígida, se declarou em diversas ocasiões como defensor da

liberdade.

Durante toda a carreira, a banda atravessou períodos de relacionamento bom e

ruim com a imprensa e em algumas ocasiões se recusavam a dar entrevistas e participar de

programas de televisão. Alguns posicionamentos da imprensa em relação à banda causavam

certo incômodo aos integrantes, da mesma maneira que a atitude dos fãs nas apresentações ao

vivo, principalmente em turnês longas. Entre 1987 e 1988, após o final da turnê de shows e

divulgação do álbum “Dois” (1986), a banda passou por um longo período sem fazer

apresentações ao vivo e aparições na TV. A justificativa era o desgaste que os shows da

última turnê causaram e a reação eufórica dos fãs que muitas vezes se convertia em agressão.

Renato Russo chegou a dizer, sobre o hiato que a banda estava passando sem fazer shows, que

a visão messiânica – ou mítica – que os fãs tinham e, como conseqüência sua reação eufórica

e descontrolada, afetavam sua vida pessoal:

Pirei por causa dessa ideia de mito, e parei. Eles [os companheiros de Legião] sabem como é que eu fiquei. Eu estava vendo tudo isso como uma coisa perigosa para mim. Não aceito que as pessoas tenham direito sobre minha vida neste sentido. Isso danou minha cabeça; cria uma aura muito pesada para a banda e afeta a todos. Na época, não tive como verbalizar o que sentia para a banda, e mergulhei em muito álcool e muita droga. Nunca mais isso vai acontecer. (RUSSO, 1987 Apud ASSAD, 2000, p. 171).

As entrevistas foram gradativamente retomadas em 1988, após o lançamento

do terceiro álbum, “Que País É Este? (1978-1987)”. Em entrevista ao jornalista Hagamenon

Brito do jornal “A Tarde” de Salvador (BA), o afastamento da mídia entra em questão:

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[Entrevistador]: Sem fazer shows e televisão, vocês venderam bastante (650 mil cópias) e houve uma volta triunfante. Foi surpreendente para vocês esse carinho tão grande por parte do público?

[Renato Russo]: Ah, sim, claro. A gente tava morrendo de medo pois achávamos que a galera podia não estar mais muito ligada na gente. Foi meio arriscado de nossa parte, mas isso só fez com que a nossa volta fosse algo legal. É super gratificante. Isso provou que não precisamos ficar aparecendo o tempo todo pra que as pessoas fiquem ligadas na gente. Agora estamos de volta, fazendo shows mais espaçados, mas nada de retiros tão radicais.34

No trecho acima, fica clara a intenção da banda de não aparecer com

freqüência na mídia e, embora estivessem retomando a agenda de shows por causa da

divulgação do novo álbum, também demonstra que não pretendiam fazer uma turnê tão longa

quanto as anteriores.

Em contraste com a figura política midiática de Collor, a Legião Urbana optava

por se resguardar da mídia a maior parte do tempo – e isso incluía suas vidas pessoais, e

aparecer somente nos momentos de necessidade contratual, haja vista que faziam parte do

cast de uma das maiores gravadoras do país e precisavam cumprir as agendas de divulgação

dos trabalhos. Em 1990, quando estavam em turnê com o álbum “As Quatro Estações”

(1989), mais uma vez a banda chegou a um momento de desgaste, emocional no caso de

Renato Russo e seu problema de vício em drogas, álcool e remédios. Mais tarde, Renato

Russo (1995) declarou que: “A turnê do Quatro Estações foi barra. O Collor tirou nosso

dinheiro e pegamos um ano e meio de estrada. Tudo que era química possível eu consumia”

(RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 260).

Nos anos seguintes, a postura da banda em relação à imprensa segue a mesma,

e em diversas oportunidades, Renato Russo tenta opinar sobre o papel da mídia e sua

influência na vida das pessoas. Ao ser questionado sobre a influência da mídia, ele chega a

dizer que “não dá pra acreditar na grande mídia, e tem pessoas completamente servis que

acreditam em tudo que lêem” (RUSSO, 1996 Apud ASSAD, 2000, p. 169). A declaração

demonstra a insatisfação do líder da banda com a mídia sensacionalista, sobretudo no que diz

respeito às matérias que os envolvem. A recorrência de desentendimentos, de declarações

distorcidas, fez com que ele declarasse: “não vale a pena dar entrevistas. Eles [jornais,

revistas] não entendem a gente” (RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000, p. 91). Embora

estivessem no meio artístico de massa e atendessem às necessidades de mercado e às

34 RUSSO, Renato. Entrevista ao Jornal A Tarde. Salvador, 26 de fevereiro de 1987. In: VASCO, Júlio; GUIMA, Renato (Org.). CONVERSAÇÕES com Renato Russo. Campo Grande, MS. Letra Livre, 1996.

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exigências da gravadora, a banda dispunha de certa liberdade artística que permitia que eles

optassem por manter-se razoavelmente longe da grande mídia.

Sobre a curiosidade do público em relação à vida pessoal dos integrantes da

banda, ele diz:

É preciso distinguir entre informação e sensacionalismo. Toda a informação que você quiser sobre a Legião Urbana está nos discos. Claro que existe uma curiosidade. Eu mesmo gosto de saber como é a vida do Axl Rose, mas não deixo isso dominar a minha vida. E nós vivemos numa sociedade em que não existe diferença entre a nossa vida e a das outras pessoas.35

Essa declaração assemelha-se com o que diz Thompson (2002b) ao discutir

sobre a transformação da visibilidade. Ao dizer que “não existe diferença entre a nossa vida e

a vida das outras pessoas”, Renato Russo corrobora com as teorias de comunicação de massa,

que explicam que a distância entre as pessoas diminuem conforme os meios de comunicação

se desenvolvem. Nesse sentido, as personalidades (políticas, inclusive) tornam-se acessíveis,

de maneira simbólica, e as diferenças entre cidadãos comuns e essas personalidades se

dissolvem através das interações midiáticas. Isso significa que, principalmente para o público,

os integrantes da banda eram como um deles.

Assim como acontece no mundo político – a exemplo de Collor, na música

seus principais atores ganham ares de “messianismo”, no sentido de receberem do público

uma conotação religiosa. Esse era outro ponto sempre levantado pelos membros da banda e

por jornalistas quando os entrevistavam. O termo “Religião Urbana”, inclusive, surgiu pela

identificação religiosa dos fãs com a banda. Devido a isso, era comum que as apresentações

ao vivo saíssem do controle por causa da platéia eufórica. Isso alimentava a relação de amor-

ódio com a imprensa, já que esses episódios eram quase sempre noticiados de maneira

sensacionalista. Bourdieu (1992) diz que “o sistema das instâncias de conservação e

consagração cultural cumpre, no interior do sistema de produção e circulação de bens

simbólicos, uma função homóloga à da Igreja” (BOURDIEU, 1992, p. 120).

Sobre o possível messianismo que cercava a banda, Renato Russo (1988) dizia:

O maior perigo é para o público. Um belo dia ele vai descobrir que seu ídolo tem pés de barro. É uma coisa muito dolorosa porque messias não existem. Eu expresso o que eu penso e o que eu sinto. Só. Quando eu falo essas

35 RUSSO, Renato. Entrevista ao jornal O Globo. São Paulo: 1º de julho de 1992. In: VASCO, Júlio; GUIMA, Renato (Org.). CONVERSAÇÕES com Renato Russo. Campo Grande, MS. Letra Livre, 1996.

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coisas, não é para mudar a cabeça de ninguém. (RUSSO, 1988 Apud ASSAD, 2000, p. 169)

Em outra ocasião, Renato Russo (1989), que costumava a ser visto pelos fãs

como um guru, completou:

Essa estória de ser guru é uma coisa que já me acompanha há algum tempo, talvez por causa do conteúdo das letras. Desde que a gente começou, as pessoas observam que os fãs têm uma postura reverencial, que eu teria uma postura messiânica nos shows. As pessoas falam muito isso. Eu não me vejo como um messias ou um guru – longe disso – mas falo de coisas que as pessoas também estão sentindo. Embora tenha escrito Que País é Este em 1978, há dez anos, as coisas realmente não mudaram. Então, é como se a gente fosse um termômetro do que acontece. E, por termos sorte de nos expressar através dos meios de comunicação de massa – falando do dia-a-dia, do meio em que você vive, o meio urbano, a sociedade atual – isso vai bater muito mais nas pessoas. (RUSSO, 1989 Apud ASSAD, 2000, p. 117)

O relacionamento da banda com a imprensa acabava por se restringir aos

períodos de divulgação dos trabalhos. Muitas vezes, as críticas lançadas pelos veículos de

imprensa aos trabalhos do grupo causavam uma reação negativa deles, já que era comum que

fossem feitas por jornalistas não especializados. Algumas declarações de Renato Russo

servem para ilustrar essa discussão: “(...) é chato saber que aquilo que deu tanto trabalho vai

ser julgado por um cara que ouve três segundos de cada faixa, para dizer é assim ou assado”

(RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 65); “A maioria dos jornalistas não pode falar de rock

porque não entende nada do assunto” (RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 64). Essas

declarações exemplificam a aversão aos jornalistas que criticavam o trabalho da banda. Sobre

o álbum que ilustra a nossa pesquisa, ele declarou: “As maiores críticas negativas foram para

o disco V. Nisso, eu incluo músicas que são as minhas favoritas, como Metal Contra as

Nuvens, Teatro dos Vampiros e Vento no Litoral” (RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000, p. 65).

Após o lançamento do álbum “V” (1991), tendo a turnê de divulgação sido

interrompida pela metade em 1992, a banda opta por uma divulgação não tradicional do

trabalho, para além das entrevistas e participações em rádios e TV que já não eram

recorrentes. Decidiram então lançar uma coletânea chamada “Música para acampamentos”,

para “compensar” a turnê precocemente encerrada, e gravaram uma participação no programa

“Acústico MTV”, participação só lançada em CD em 1999. Talvez a gravação do acústico

tenha sido a única forma de divulgação desse disco. A banda perdera o interesse em fazer

apresentações ou grandes turnês ao vivo após um show no Estádio Mané Garrincha, em

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Brasília (DF) na turnê de 1989, quando foi necessária forte intervenção policial para conter o

descontrole da platéia. Renato Russo (1993) em determinada ocasião explicou:

Não dou mais shows: a situação de violência e agressão que existe em qualquer concentração popular na qual seja necessária a presença de policiais, não dá. Morro de vontade. Mas morro de paranóia. (RUSSO, 1993 Apud ASSAD, 2000, p. 239)

E completou em outra ocasião:

Não gosto de show porque é uma responsabilidade muito grande. Trabalhamos com uma equipe de, no mínimo, trinta pessoas. O público tem uma relação afetiva muito intensa e não podemos, simplesmente, fazer qualquer coisa. Além disso, é uma apresentação muito cara, porque não trabalhamos com patrocínio. Faz parte da política da banda. Não queremos nos apresentar com um baita letreiro de cigarro ou refrigerante atrás. (RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000, p.239)

Nessa última declaração, entra ainda a questão dos patrocínios. A banda não

queria ser vista como um produto, embora declarassem em diferentes ocasiões que faziam um

trabalho visando o ganho financeiro. Um ano antes de sua morte, em uma de suas últimas

declarações a respeito de shows, Renato Russo (1995) coloca sua situação pessoal, com a

depressão e o vício, como um dos problemas que o impedia de fazer shows: “A gente

pretende voltar a tocar assim que passarem todos esses meus problemas. Mas estou me

tratando com remédios e fazendo análise” (RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 240).

A relação Legião Urbana com a mídia, desde o começo da banda, passou por

diversas oscilações. Ao mesmo tempo em que dependiam da mídia para divulgar seu trabalho,

não se privavam de tecer críticas ou passar longos períodos sem darem entrevistas,

aparecerem em programas de TV. Mesmo com os convites freqüentes e a pressão dos fãs por

shows, a opção era por concentrar nos trabalhos em estúdio. Na declaração a seguir, Renato

Russo (1995) resume o posicionamento da banda durante toda a carreira.

Por exemplo: eu faço menos shows do que as pessoas gostariam, eu faço menos televisão do que as pessoas gostariam, porque eu prefiro concentrar tudo no meu trabalho de compositor, de músico. E deixar, então, a coisa rolar. Eu prefiro que as pessoas interajam com as músicas, ao invés de elas projetarem na minha pessoa o que elas percebem das canções. (...) Eu acho que tem que ter uma separação ai. (...) Tem que separar o trabalho. Com isso eu tomo um certo cuidado, inclusive para me preservar e preservar o público. (RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 269)

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Em síntese, e em oposição à relação do presidente Collor com a mídia

conforme veremos a seguir, a relação da banda era cuidadosa, acontecia conforme fosse

necessário para a manutenção do trabalho e rompia-se conforme atrapalhasse a liberdade de

criação ou extrapolasse a privacidade dos seus membros. A banda optou, em toda sua

trajetória, por manter a discrição e certo distanciamento da mídia que considerava

sensacionalista e exploradora, já que tinha uma política um pouco diferente das bandas que

atuavam por marketing. Em contraste, veremos a seguir a figura performática de Fernando

Collor de Mello, que encontrou na grande mídia um vasto campo de atuação política.

2.2.2. Collor e Mídia: a campanha, a influência da publicidade na figura de Collor, e o

confronto do mito versus o ser humano

Foi em maio de 1989 quando Fernando Collor de Mello deixou o seu cargo de

governador do estado de Alagoas e se lançou oficialmente como candidato à Presidência da

República. Naquele momento, o governador Collor de Mello já era uma figura nacionalmente

conhecida graças, em parte, à publicidade em torno do que viria a ser o carro-chefe de sua

campanha: a caça aos marajás. Collor tinha um longo relacionamento com a imprensa, fruto

de sua atuação como jornalista e como superintendente nas Organizações Arnon de Mello. A

construção da figura honesta e corajosa começou bem antes do início da campanha oficial.

Em março de 1988, Collor estampou a capa da Revista Veja, cujo título era “Collor de Mello:

O caçador de marajás” 36, onde a imagem de messias começava ser delineada.

À primeira vista nada de anormal, isto é, tratava-se de uma capa de revista como outra qualquer, sobretudo, para o observador mais desavisado. No entanto, tal capa estava repleta de táticas e técnicas próprias da comunicação profissional e carregavam consigo um farto capital simbólico. Tratava-se, na verdade, de uma forma de discurso, um discurso cuidadosamente elaborado com o objetivo de chamar a atenção do leitor. (SANTOS, 2008, p. 36)

A reportagem em questão cita a atuação dele como governador e seu tão falado

compromisso em “enxugar” os gastos com o funcionalismo público cercado de privilégios.

Dentre inúmeras frases de impacto, a reportagem destaca as ações de Collor tratando-o como

se pertencesse a um lugar diferente dos políticos da época. “Essa foi sua obra e esse é o seu

36 Anexo 3.

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segredo”37, essa frase encerra um enunciado que o coloca como o político preocupado com a

moralidade. Esse tipo de publicidade foi responsável pela “campanha antecipada” de Collor,

aquela que antecedeu à campanha oficial e que teve o objetivo de torná-lo um político de

nome conhecido em todo país.

A campanha foi pensada para tentar entender os desejos da população e

delinear sua imagem para que atendesse a esses anseios. Ele foi assessorado por profissionais

especializados da área de marketing político, e através de uma pesquisa de opinião

encomendada ao Instituto de Pesquisa Vox Populli de Belo Horizonte, ainda em 1988, foi

sendo montado o perfil de candidato ideal. O Instituto de pesquisa em questão tinha como um

dos sócios o empresário e cientista político Marcos Coimbra, primo distante e amigo de

Collor. As principais características que resultaram da pesquisa apontavam o interesse popular

por um candidato:

Enérgico, corajoso, com ímpeto para tirar o Brasil do subdesenvolvimento e não ligado à política tradicional. O problema mais grave apontado era a corrupção, do qual os altos salários de uma parcela do funcionalismo público (marajaísmo) era um elemento. Na análise elaborada por Marcos Coimbra, também haviam considerações sobre o ímpeto e energia para tirar o Brasil do subdesenvolvimento, não entrar no jogo tradicional da política, não pertencer ao sistema e ter um passado limpo. (DE SOUZA, 2008, p. 39)

Naquele mesmo ano, a Constituinte escolhida para elaborar a nova

Constituição, definira fixar o mandato presidencial em cinco anos38. Apesar de se posicionar

contra, Collor foi indiretamente beneficiado com a decisão, já que pôde dispor de mais tempo

para tornar-se nacionalmente conhecido e garantir que se lançaria oficialmente como

candidato. O ano de 1988 foi fundamental para alçá-lo ao posto de mito salvador. Foi quando

pôde mostrar sua veia performática. Desde que foi eleito governador, era no palanque que

Collor encontrava seu melhor lugar de atuação: “As falas, as imagens de Collor de Mello

sinalizavam as representações de um governo que assim se queria conhecido e aceito pelos

brasileiros” (FLORES, 2008, p. 16). Collor era o verdadeiro performer político39.

Collor foi o candidato com melhor repertório teórico, ou melhor assessorado,

no momento de elaborar e organizar a sua campanha seguindo uma lógica de mercado e

37 VEJA. Collor de Mello: o caçador de marajás. São Paulo: Editora Abril, 23 de março de 1988. nº 12. ano 20. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_23031988.shtml. Acesso em: 18/11/2014. 38 Tal redação foi alterada pela Emenda Constitucional nº 16 de 1997, quando o mandato presidencial volta a ter quatro anos e o presidente torna-se reelegível por mais quatro anos. Ver: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. (N.A.) 39 No terceiro capítulo, trabalhamos o conceito de performance que, sendo uma expressão polissêmica carregada de múltiplos sentidos, pode ser utilizada em diferentes campos (como o político) sem perder significação. (N.A.)

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marketing político. Foi talvez o único, naquele momento, a absorver as demandas sociais e

transformá-las em discurso ou plano de governo. Seguindo essa lógica, parece evidente pensar

que sua campanha foi bastante eficiente no sentido de perceber os “(...) fatores determinantes

de uma ansiedade social generalizada” (TAVARES, 1998, p.46). Ou seja, em tese,

conseguiram converter desejos (sociais) em propostas (políticas). Em resumo, “o processo de

elaboração da imagem do candidato pautava-se no princípio do atendimento das demandas

dos consumidores do mercado de imagens políticas, reduzindo ou quebrando possíveis linhas

de resistência” (FLORES, 2008, p. 89).

Embora com histórico controverso, sua campanha apresentou um candidato

jovem, ao contrário da maior parte dos políticos atuantes naquele período, que pilotava caças

da FAB (Força Aérea Brasileira), praticava esportes, era contrário às drogas e andava de Jet

ski. Para atender aos apontamentos da pesquisa Vox Populli, a campanha mostrou uma veia

virtuosa e de passado limpo do candidato, apresentando sua relação com a família – o avô

principalmente, embora não fosse exatamente o político não tradicional e de histórico

honesto. Ele ainda se mostrou opositor ao governo do presidente José Sarney, que no

momento apresentava alta rejeição e alta porcentagem de avaliação ruim ou péssima pelo

eleitorado, sendo inclusive o único governador a discordar da fixação do mandato presidencial

de cinco anos, motivo pelo qual rompeu com o PMDB.

Collor se aproximou de líderes religiosos, como pastores evangélicos,

temerosos de que a política de Lula fosse comunista e ateia, e também da figura de Frei

Damião, líder religioso nordestino e uma espécie de sucessor do Padre Cícero, visando

angariar apoio dos chamados “descamisados” ou “pés descalços”. Para Olga Tavares (1998) ,

Collor conseguiu sempre interligar moral e religião (1998, p.29), o que integra sua

configuração de mito político, bem como sua veia humanizada. Nesse mesmo sentido e na

explicação de Norberto Bobbio (1998), o mito político deve ser visto como um fenômeno

coletivo e não como teoria (1998, p. 757). Na nossa análise, ao reunir diferentes apoios, tentar

atender diferentes expectativas, de diferentes classes, religiões e regiões do país, Collor

tornou-se então um mito político, na acepção de fenômeno coletivo defendida por Bobbio

(1998). Ainda discorrendo sobre o mito, Bobbio (1998) acrescenta que:

As narrações míticas, produto de conflitos inconscientes ligados a situações de crise social — no duplo sentido de mudança potencialmente favorável ou desfavorável ao grupo agente — assumem, dessa forma, caráter político, isto é, evoluem num contexto e usam uma linguagem política, objetivando a ação política. (BOBBIO, 1998, p. 761)

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Em resumo, o surgimento da figura mítica no campo político se dá em razão,

principalmente, do contexto de crise e transformação. No caso de Collor, o momento político

que o Brasil atravessava, somando a desilusão com a morte de Tancredo Neves e a

expectativa das primeiras eleições diretas, possibilitou que seu discurso persuadisse o eleitor.

De acordo com Maria Cândida Galvão Flores (2008):

O apelo da campanha era basicamente emocional, buscando estabelecer processos de projeção, ou seja, identificação dos eleitores com o candidato, uma vez que as propostas de Collor de Mello eram fruto de pesquisa junto à sociedade para que ele soubesse o que os eleitores esperavam de um futuro presidente. (FLORES, 2008, p.10)

Ao passo que mostrava uma figura mítica, objeto de admiração e depósito para

as expectativas de mudança, sua campanha também buscou em alguns momentos

“humanizar” o candidato, torná-lo real e tangível para o eleitor. A busca pelo apoio dos

líderes religiosos e o voto dos descamisados são partes desse processo de humanização e, ao

mesmo tempo, integram a figura mítico-religiosa. Acrescentamos ainda o discurso de

“homem de fé”, que atinge o imaginário do eleitor brasileiro majoritariamente cristão. Collor

também se mostrou próximo ao eleitor ao se dirigir diretamente a ele em seus discursos, numa

tentativa de torná-lo aliado. Para o eleitor, esse tipo de discurso pode torná-lo parte do povo,

mas através de uma retórica que se assemelha ao discurso religioso da salvação (TAVARES,

1998, p.65), assume características de liderança. Ou seja, embora com pretensões de se

equiparar ao povo∕eleitor, ele ainda está em uma posição de condutor (pastor) do eleitorado

(rebanho) e das mudanças que o país viria a sofrer. A participação do povo se restringe ao

voto.

Ainda que visto como um possível salvador, Collor acrescentou à sua

performance as caminhadas matinais vestindo uma camiseta com mensagem de combate às

drogas, com o objetivo de expor sua veia esportista, jovem e preocupada com a saúde. Ao

referir-se em toda oportunidade ao seu avô Lindolfo Collor, ex-ministro do Trabalho de

Vargas, e demonstrar irrestrita admiração à sua memória, bem como demonstrar apego e

respeito aos valores familiares, Collor se mostrava o candidato mais humano e de família. Isso

associado à imagem de candidato forte e preparado para enfrentar as mazelas do país.

Segundo José Murilo de Carvalho (2014), Collor “representou um papel de campeão da

moralidade e da renovação da política nacional” (CARVALHO, 2014, p. 205).

Cada passo da vida dele era acompanhado pelas emissoras de rádio e televisão,

fotos e entrevistas estampavam capas de revistas e todos os seus passos viravam notícia.

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Talvez, e principalmente, por esse motivo, Collor tornou-se um candidato próximo ao

eleitorado, chegando a ser considerado quase como uma pessoa amiga, um membro da

família. Essa proximidade foi possível graças à transformação da visibilidade de que trata

John B. Thompson em “O Escândalo Político” (2002b). Trata-se do desenvolvimento dos

meios de comunicação, que permitem que as pessoas interajam de uma maneira que antes só

era praticável face a face. Com isso, é possível que um indivíduo, nesse caso político, tenha

com o eleitor uma proximidade típica das interações pessoais. Em outras palavras:

Essas novas formas de interação midiática envolvem o emprego de um meio técnico (...) que possibilita a transmissão da informação e do conteúdo simbólico às pessoas que não partilham o mesmo local espaço-temporal. (...) As pessoas podem agora interagir com outras que se localizam em contextos espaço-temporais distantes; a interação pode ser estendida através do espaço e tempo (como, por exemplo, com a troca de cartas que são fisicamente transportadas de um lugar a outro), ou ela pode ser estendida através do espaço com um grau mínimo de demora temporal (como em algumas formas de comunicação eletrônica). (THOMPSON, 2002b, p. 63)

Para Thompson (2002b), os meios de comunicação permitem que os líderes

políticos se apresentem como um de nós (2002, p. 69). Nos seus discursos, Collor opta, por

exemplo, por chamar o eleitor de “minha gente” o que, na análise de Olga Tavares (1998),

servia para, além de se aproximar do público, demonstrar uma relação implícita de poder,

onde ele (o salvador) assume a responsabilidade de iniciar um novo tempo (1998, p.80). Para

o cidadão médio, essa relação implícita de poder não está visível. O eleitor, em sua maioria,

não percebe que essa interação com o ator político é uma interação “virtual”, onde eleitor e

candidato não dividem um mesmo lugar: físico e de poder. Em síntese, no discurso dele,

“’Minha gente’ aproxima e distancia: Collor não faz parte da mesma realidade de sua gente”

(TAVARES, 1998, p. 80).

Pouco mais que um simples processo de humanização, de exposição de um

candidato do povo (e para ele), o que ocorre é o que conveniamos chamar de “humanização

sintética”40. Nesse caso, embora busque aproximar o cidadão votante, essa tentativa de

mostrá-lo como um candidato popular carrega consigo – e subentendidos – alguns signos de

distanciamento entre eles. Ainda que humanizado, o mito salvador ainda predomina nos

discursos, nas falas, nas propagandas e na visão popular, aquela com a qual o povo se

identifica apesar do distanciamento. É o herói forte e eficiente, embora humano. Esses

40 Optamos por acrescentar a expressão “sintética”, no sentido de artificial, haja vista o caráter simulado e com vistas à persuasão do eleitor presentes nesse processo. (N.A.)

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antagonismos, integrantes da figura e da fala de Collor, ficam cada vez mais evidentes ao

longo da campanha.

Após o primeiro turno em 15 de novembro de 1989, quando nenhum dos

candidatos logrou conquistar a maioria dos votos, Collor passou a se apresentar cada vez mais

como porta-voz do povo brasileiro e das mudanças almejadas. A disputa pela presidência

ganha ares de luta do “bem” contra o “mal”, na intenção de mexer cada vez mais com o

imaginário cristão do eleitorado. Ele seria o representante do bem, dos interesses do povo, o

candidato corajoso. Os opositores seriam os representantes do mal: José Sarney, Lula e os

marajás. Assim:

O messianismo necessita de uma força opositora que reforce sua ação salvadora. O herói-protagonista sempre tem um vilão-antagonista, que dá o tom para o confronto. Fernando Collor tinha essas forças opositoras apocalípticas, das quais ele se aproveitou em seus discursos: o dragão (inflação); a Babilônia (a república de José Sarney); a besta (os marajás e, depois, o candidato Lula); o Cordeiro (ele próprio) seguido dos justos (minha gente); e a visão do mundo novo, da nova Jerusalém (o Brasil Novo). (TAVARES, 1998, p. 84)

Nesse sentido, Collor passou cada vez mais a associar o candidato Lula, seu

oponente no segundo turno, ao comunismo, gerando o medo de que a política de Lula fosse

atéia ou anti-cristã. Em suas aparições na televisão “a classe média ouvia com atenção o

discurso moralizador de combate à corrupção de Collor, e mostrava-se temerosa do

esquerdismo do PT, num tempo em que o discurso anticomunista do regime militar não estava

de todo disperso” (FLORES, 2008, p. 219). Dessa maneira, Collor foi se mantendo no

primeiro lugar, já que havia sido vitorioso em números de voto no primeiro turno, e galgando

sua vitória nas urnas.

Além do discurso moralizante-cristão, das inúmeras acusações contra o

candidato da oposição, “Collor partiu para uma campanha espetacular, em que o adversário

principal foi satanizado como líder das forças do atraso, do mal supremo e da falta de ética”

(FLORES, 2008, p. 220). Em muitos dos seus discursos, Collor acusava Lula de pretender

intervir nas contas e poupanças dos cidadãos, como uma ação comunista, o que mais tarde

viria a ser uma das mais importantes medidas do Plano Brasil Novo. Para garantir o apoio do

empresariado, Collor apegou-se ao discurso de liberdade empresarial, tipicamente neoliberal,

onde seria reduzido o papel intervencionista do estado.

Enquanto Collor conquistou o apoio do empresariado, dos meios de

comunicação, da classe média, de líderes religiosos, de setores da Igreja Católica, que se

dividia entre os dois candidatos, e parte do eleitorado conservador da época, Lula era apoiado

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pela classe artística e intelectual, pelos sindicatos e movimentos sociais organizados. Com o

dia da eleição próximo, a diferença entre os dois candidatos era cada vez menor segundo as

pesquisas. Lula crescia nas intenções de voto, na mesma proporção que cresciam as

acusações, chegando, no último debate, aos ataques à sua vida pessoal “(...) quando Lula foi

acusado de ter abandonado uma filha que tivera fora do casamento, num clima típico de

gênero sensacionalista da tevê” (FLORES, 2008, p. 220). Essa teria sido uma das últimas

cartadas de Collor para desacreditar o adversário perante o eleitor.

Este episódio seria o que John B. Thompson (2002b) define como “escândalo

político”. Geralmente, um escândalo político ocorre quando acontecimentos da vida pessoal

de uma figura política destacada vêm à tona, em sua maioria trazidos por seus opositores.

Caracteriza-se, grosso modo, por algo fundamentalmente pessoal ou, muitas vezes, de cunho

sexual, que causa o julgamento da sociedade por tratar-se na maioria dos casos de alguma

“transgressão moral”. No caso supracitado, a divulgação de um possível escândalo (não

confirmado) objetivava minar a confiança do povo no candidato da oposição. No caso em

questão, o escândalo surge ainda na campanha, não durante um mandato, o que é mais

recorrente. Em resumo, “o escândalo é um trunfo nas mãos do opositor que somente terá a

ganhar, em uma próxima eleição, se houver algum prejuízo para a reputação de alguém”

(THOMPSON, 2002b, p. 128).

Em 17 de dezembro de 1989, realizou-se o segundo turno das eleições, quando

Collor foi eleito com cerca de 35 milhões de votos (53% dos votos válidos) contra 31 milhões

(47% dos votos válidos) do candidato Lula. A influência da mídia em um pleito eleitoral

atingiu um patamar ainda não visto até aquele momento e, embora com uma pequena

diferença, foi decisiva para a vitória de Collor. Mais tarde, no momento que vai das denúncias

ao impeachment, a mídia voltou a exercer um papel importante, conforme já discutimos

anteriormente. É inequívoca a idéia de que os meios de comunicação, no caso estudado, foram

determinantes e exerceram marcante influência em todos os momentos: da pré-campanha ao

fim do governo. O período em questão ilustra o tão discutido protagonismo da mídia nos

movimentos e transformações políticas. O caso brasileiro é um bom exemplo de como

funciona o jogo político midiático.

No tópico a seguir, partimos para o exame do álbum “V”, com foco nas

canções que apresentam referências medievais e subjetivas. Fazemos uma análise geral dessas

canções, com foco nos trechos mais relevantes e nas representações mais marcantes. O

propósito é que o leitor se familiarize com a linguagem do disco e comece a mergulhar nesse

universo medieval criado pela banda. Apresentados esses primeiros aspectos, já no último

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capítulo, analisamos as duas principais canções para a nossa discussão sobre o governo

Collor: “Metal Contra as Nuvens” e “Teatro dos Vampiros”, esta última que, de acordo com o

próprio Renato Russo, trata-se de uma canção que inicialmente deveria falar, coincidência ou

não, sobre a TV. Ambas possuem, através dessas representações medievalescas, metáforas

que remetem ao momento conceituado como Era Collor. De maneira alegórica e fantástica,

vemos ilustrados importantes fragmentos que nos permitem entender como esse percurso

desordenado repercutiu no dia a dia do brasileiro e, ainda, como a produção cultural se

apropria dos momentos e dos cenários onde ela está inserida.

2.3. O ÁLBUM “V”: REFERÊNCIAS MEDIEVAIS E SUBJETIVI DADE

No primeiro capítulo, optamos por apresentar o álbum “V” em seus aspectos

gerais, concernentes ao lançamento, divulgação e vendas, além de algumas linhas sobre as

representações que encontramos nele. Neste capítulo, analisamos algumas das temáticas que

convergem no disco: as referências medievais e a subjetividade. Em alguns momentos, essas

duas temáticas se misturam, parecendo tratar-se de uma mesma coisa. As referências

medievais, por exemplo, aparecem em todo o disco, misturado às outras temáticas e, em

alguns casos, como representações ou metáforas para os problemas pessoais, integrando a

linguagem rebuscada e medievalesca do álbum. A outra temática, subjetiva, inclui o difícil

momento pessoal do Renato Russo e sua relação com o vício, e aborda também o amor, os

rompimentos e a dificuldade dos relacionamentos.

Há ainda uma terceira temática, de que tratamos no terceiro e último capítulo

deste trabalho: as representações do Governo Collor. São fragmentos que remetem de maneira

específica ao período trabalhado em nossa pesquisa, e que têm forte conotação de crítica

política e social. Estão presentes nas canções “Teatro dos Vampiros” (social) e “Metal Contra

as Nuvens” (política e social). Essas representações se misturam com as primeiras, sendo

muitas vezes confundidas. Em concordância com Arthur Dapieve (2000), “embora as letras

estivessem firmemente ancoradas na realidade do país e na vida pessoal de Renato, o ouvinte

pôde fruí-la sem ter consciência disso” (DAPIEVE, 2000, p. 127). Por essa razão, optamos

por examinar o disco do ponto vista particular do pesquisador, não do ouvinte. Tais canções

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serão analisadas sob a perspectiva das representações de Roger Chartier (2002). Ao analisá-

las retomamos o exame das representações medievais, que nesse caso surgem como alegorias

do período em questão.

Para iniciarmos, decidimos por apontar as representações do universo medieval

presentes na obra: das letras, passando pelos títulos, à sonoridade das canções. Antes da

análise desses aspectos, conceituamos, de modo genérico, o imaginário medieval e o

imaginário cristão, importantes para a percepção dessas representações no interior da obra. Ao

definir imaginário, Jacques Le Goff (1994) explica:

Em primeiro lugar, a representação. Este vocábulo, de uma grande generalidade, engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida. A representação está ligada ao processo de abstração. A representação de uma catedral é a idéia de catedral. O imaginário pertence ao campo da representação mas ocupa nele a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transporta em imagem do espírito mas criadora, poética no sentido etimológico da palavra. (...) Mas o imaginário, embora ocupando apenas uma fração do território da representação, vai mais além dele. A fantasia – no sentido forte da palavra – arrasta o imaginário para lá da representação, que é apenas intelectual. (LE GOFF, 1994, p. 12)

Muitas vezes, imaginário significa a presença de ícones ou imagens, o que o

difere do estudo de representações ou ideologias, por exemplo, que circulam pelo campo do

intelecto, do abstrato. No imaginário medieval, existe a recorrência de figuras sobrenaturais,

mas não se restringe às figuras com referências cristãs, já que não está restrito ao cristianismo.

Integram o imaginário medieval europeu, figuras fabulosas e míticas comuns à cultura

ocidental cristã e também oriental, como no caso do dragão. O imaginário cristão, integrante

do imaginário medieval, apresenta figuras relacionadas às escrituras bíblicas, como figuras

apocalípticas, mas em muitos momentos é adverso à idéia de maravilhoso, se atendo ao lado

miraculoso bíblico. São comuns, em ambos os casos, embora com uma abordagem um pouco

diferente, a alusão à magia, que no caso cristão se confunde com o miraculoso e o diabólico.

Imaginário medieval (maravilhoso) e cristão (miraculoso) são dois panoramas

complementares, mas não se restringem um ao outro. Um aspecto do imaginário∕maravilhoso,

é que ele evoluiu com o passar dos séculos e com as mudanças das práticas religiosas. O

imaginário secular (medieval) e o imaginário cristão evoluem e se modificam, em outras

palavras, “as concepções e utilizações do maravilhoso modificaram-se com o cristianismo e

com a nova sociedade dos séculos XII e XIII” (LE GOFF, 1994, p. 24). Além de criaturas

maravilhosas, há na linguagem medieval referências a personagens dos contos e fábulas

medievais como cavaleiros e ainda os objetos utilizados por eles e tudo ligado a esse universo,

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como espadas, armaduras, escudos, brasões, ou situações e locais que remetem a eles, como

batalha, guerra, floresta, dentre outros. Essas imagens cavaleirescas seriam símbolos de força

e domínio.

No caso da floresta, ela representa para o homem medieval, além de um local

de caça, o local onde estão abrigados seus maiores temores: como a solidão e as figuras

imaginárias. Por outro lado, “a floresta está no coração da aventura cavaleiresca” (LE GOFF,

1994, p. 94), é o cenário do desenrolar das fábulas medievais onde o homem medieval pôde

demonstrar toda a sua bravura, ao enfrentar aquele local que causa espanto e admiração. Isto

posto, partimos para a análise das representações medievais no interior do disco “V”.

A canção de abertura do disco, “Love Song”, é escrita em português arcaico e

foi retirada de uma cantiga do século XIII de autoria de Nuno Fernandes Torneol41, com

créditos devidos no encarte; é a única do disco cuja letra não foi escrita por Renato Russo,

letrista de todas as outras canções. Com duração de 1:17 minutos, apresenta um arranjo

instrumental de cordas que faz alusão aos instrumentos de cordas medievais. Renato Russo,

inclusive, mantinha um gosto desvelado por histórias e referências medievais, motivo pelo

qual assumiu, entre o fim da banda Aborto Elétrico e a formação da Legião Urbana, o alter

ego de Trovador Solitário.

O disco traz ainda duas canções instrumentais, “A Ordem dos Templários” e

“Come Share My Life”. A primeira, que sucede “Metal Contra as Nuvens” e antecede a

melancólica “A Montanha Mágica”, aparece como uma música de transição entre um final

agradável e positivo da música anterior e a canção seguinte que ilustra a conturbada relação e

os difíceis efeitos do uso de drogas. Nessa canção, a representação medieval está no título,

que faz referência à ordem militar-cristã européia que surgiu por volta do século XI, como

resultado das primeiras Cruzadas. A segunda, “Come Share My Life”, fecha o disco que foi

classificado por Arthur Dapieve como “ópera-rock” (2000, 131). De melodia simples e

aprazível, tem como propósito dar encerramento ao álbum, já que segue à música com

melodia mais agitada e que mais destoa das outras: “L’Age D’or”.

Integram ainda as canções com referências medievais aquelas que serão

analisadas por conterem representações da Era Collor: “O Teatro dos Vampiros” e “Metal

Contra as Nuvens”. A primeira, referindo-se diretamente ao imaginário medieval, com a

figura fantasiosa do vampiro e a segunda com representações ao longo de toda a letra (dragão,

41 Apesar das poucas referências a respeito, sabe-se que Nuno Fernandes Torneol foi um trovador português que escrevia cantigas de amor no século XIII (carece de fontes, provavelmente na região de divisa entre Portugal e Espanha). Sobre compositores medievais ler: http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=107. Acesso em: 03/11/2014. (N.A.)

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espada, brasão, castelo, princesa, dentre outras), ambas receberão a análise devida no terceiro

capítulo. Em todo o disco, são recorrentes ainda referências bíblicas e cristãs, como na canção

“L’Age D’or” que diz: “Jesus foi traído com um beijo, Davi teve um grande amigo” e na

estrofe seguinte: “Eu vi uma serpente entrando no jardim”. Todas essas referências cristãs

podem ser entendidas como parte da linguagem medievalesca da obra, haja vista que a Idade

Média é marcada pelo “cristianismo dominador, que é simultaneamente uma religião e uma

ideologia e que mantém, portanto, uma relação muito complexa com o mundo feudal

contestando-o e justificando-o ao mesmo tempo” (LE GOFF, 1994, p. 38).

A segunda temática do disco, subjetiva, que inclui os conflitos amorosos, pode

ser percebida nas alegres “Sereníssima” e “O mundo anda tão complicado” e na depressiva

“Vento no Litoral”, escrita para expressar as dores do fim de um relacionamento em conflito

vivido por ele. Nessa última, que narra uma caminhada solitária na praia, a desilusão de uma

relação fracassada se expressa em diversos trechos, como: “Dos nossos planos é que tenho

mais saudade / Quando olhávamos juntos na mesma direção / Aonde está você agora além de

aqui dentro de mim?”. Já no trecho seguinte fica implícita a esperança em um momento futuro

melhor.

Agimos certo sem querer / Foi só o tempo que errou / Vai ser difícil sem você / Porque você está comigo o tempo todo / E quando vejo o mar existe algo que diz / Que a vida continua e se entregar é uma bobagem / Já que você não está aqui / O que posso fazer / É cuidar de mim.

A canção encerra com uma frase curiosa, que diz “olha só o que achei: cavalos-

marinhos”. Diz-se dessa frase, que a referência aos cavalos-marinhos é feita pois, na natureza,

a reprodução desses animais acontece com o macho desempenhando o papel da fêmea, ou

seja, carregando os ovos. Seria uma metáfora para o relacionamento amoroso homossexual

mal sucedido. E por fim, repete a estrofe que sugere uma vontade implícita de esquecer e

superar o passado amoroso: “Sei que faço isso para esquecer ∕ Eu deixo a onda me acertar ∕ E

o vento vai levando tudo embora”.

Sobre a “melancolia” que circula quase todas as canções do disco, classificado

pela crítica e pelos fãs como triste e∕ou depressivo, há uma explicação que talvez seja a mais

plausível: as letras foram escritas após Renato Russo começar a fazer análise e o disco

gravado quando ele estava passando por um período de desintoxicação, ou seja, quando ele

estava “limpo”. Embora não fosse o compositor de todas as melodias, é o compositor

principal e o letrista de todas elas. Algumas canções, melodias, eram entregues prontas para

que Renato compusesse a letra. Assim, “nem toda melancolia da banda, entretanto, vinha do

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letrista. ‘O Bonfas [se referindo ao baterista, Marcelo Bonfá] me traz umas melodias dessas e

eu que levo a fama de deprimido!’, brincava, em algumas ocasiões” (DAPIEVE, 2000, p.

125). Apesar disso, em diversas ocasiões Renato Russo confessou ser melancólico:

É claro que, como pessoa, eu sou meio melancólico. Se outro artista – o Cazuza, por exemplo – pegasse o material de As Quatro Estações, por certo sairia algo mais para cima. Em tudo o que fazemos, por mais alegre que seja, tem sempre uma correnteza sob a superfície aparentemente calma. É o meu jeito, mas, à medida em que eu vou mudando, isso vai mudar também. (RUSSO, 1989 Apud ASSAD, 2000, p. 167).

“Sereníssima”, sexta música do disco, é conhecida como uma das canções de

melodia mais agitada. Ainda que a letra circule pelos conflitos nos relacionamentos amorosos,

apresenta alguns trechos que aludem ao momento particular do Renato Russo. Por exemplo:

“consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade ∕ tudo está perdido, mas existem

possibilidades”, que diz respeito ao tratamento psicoterápico que naquele momento o

mantinha equilibrado, após longo período de instabilidade psicológica.

Já “O mundo anda tão complicado”, a música mais pedida em shows de acordo

com a banda, é a única canção verdadeiramente de amor do disco. É a música que causa maior

identificação sentimental do público, já que conta uma pequena história comum a muitos

casais. É uma história de amor que se encerra de maneira poética e que reforça a identificação

do público, já que se coloca no lugar dele: “Quero ouvir uma canção de amor ∕ Que fale da

minha situação ∕ De quem deixou a segurança do seu mundo por amor ∕ Por amor”. Para

Renato Russo, esta é uma canção estrategicamente colocada para tornar o disco mais leve e

para suavizar a vibração depressiva da maior parte das músicas: “a única saída era aquela

coisa d’O Mundo Anda Tão Complicado, mas eu tenho essa pessoa que gosta de mim”42.

Em “A Montanha Mágica”, canção homônima ao clássico da literatura mundial

do romancista alemão Thomas Mann43, o envolvimento de Renato Russo com as drogas fica

evidente, bem como outros problemas de ordem pessoal, como a depressão. Com instrumental

de composição de Dado Villa-Lobos, a letra foi escrita por Renato Russo sob uma perspectiva

do “eu”, onde estão confrontadas diferentes crises: do tempo, das drogas, da depressão. Nesse

sentido, a letra pode ser cotejada com a obra de Thomas Mann, haja vista que esta última

apresenta, sob uma perspectiva de grupo, uma sociedade em crise. Cada qual com seu grau de

42 RUSSO, 1994. In FRÓES, Marcelo. Renato Russo Entrevistas MTV. Rio de Janeiro: MTV, 2006. (143 minutos). 43 Ver: MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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subjetividade e diferentes alcances, ambas as obras falam de transição, superação e

amadurecimento.

Alguns trechos da música ilustram a relação com o tempo e percebemos certo

grau de abstração, onde o tempo parece ser medido de maneira diferente, não por minutos ou

horas, talvez por não ser mais percebido assim: “Sou meu próprio líder, ando em círculos /

Me equilibro entre dias e noites”. Levantamos a hipótese de que isso ocorra devido à

internação de Renato Russo em 1990, quando ele teria passado alguns dias alheio, sem se dar

conta da passagem do tempo. Com a internação, veio a descoberta da AIDS, só confirmada ao

público anos mais tarde. É um momento de grande instabilidade para a banda.

Essa relação com o tempo presente na música dialoga com o romance de

mesmo nome, onde o tempo é apresentado numa perspectiva particular. De modo grosseiro, a

maneira como o tempo é tratado na obra faz pensar em como vida e morte coexistem

cotidianamente. O tempo ali é, talvez, o tempo à espera da morte. Sendo o cenário do

romance um sanatório que trata de tuberculosos, podemos ainda comparar com a situação do

compositor Renato Russo, internado para tratar o vício em drogas e álcool. Talvez por isso, o

tempo de internação do mesmo foi um período “sabático”, tal qual na obra literária, quando

pôde refletir sobre todos os temas que podem ser percebidos na canção: crise, tempo, drogas,

depressão.

No trecho “Minha papoula da Índia / Minha flor da Tailândia / És o que tenho

de suave / E me fazes tão mal”, percebemos uma alusão ao uso de drogas, cuja representação

está na figura da Papoula, já que se trata de uma planta com substâncias alucinógenas que dão

origem ao ópio e à heroína. Percebemos ainda uma perturbação, onde a droga é ao mesmo

tempo “suave” e nociva, talvez ainda numa referência ao processo de desintoxicação que ele

havia passado. Ainda possivelmente sobre a desintoxicação e a descoberta da AIDS, temos o

seguinte trecho: “Existe um descontrole, que corrompe e cresce / Pode até ser, mas estou

pronto pra mais uma / O que é que desvirtua e ensina? ∕ O que fizemos de nossas próprias

vidas?”. O trecho citado demonstra, na nossa análise, o momento em que o narrador se dá

conta de sua condição: Viciado? Depressivo? Aidético? Ou solitário? Talvez fosse ele a

síntese de todas essas condições.

Sobre os conflitos psicológicos, encontramos ainda o seguinte trecho: “A

felicidade mora aqui comigo até segunda ordem / Um outro agora vive minha vida / Sei o que

ele sonha, pensa e sente”. Esse trecho pode ser alusivo tanto à condição depressiva quanto à

condição de usuário de drogas. Por volta dos 4:15 minutos de música, temos a seguinte

estrofe:

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O mecanismo da amizade / A matemática dos amantes / Agora só artesanato / O resto são escombros / Mas é claro que não vamos lhe fazer mal / Nem é por isso que estamos aqui / Cada criança com seu próprio canivete / Cada líder com seu próprio 38.

Em nossa análise, esse trecho ilustra a solidão do narrador: sem amizade, sem

amantes, com a companhia do “artesanato” que talvez apareça apenas como uma alegoria para

outro hobbie ou atividade integrante da reabilitação. As duas frases que se seguem parecem

representar a fala de uma segunda – e talvez terceira – pessoa direcionada a ele, e são

completadas por outras duas frases que simbolizam violência. Na versão de estúdio (álbum

“V”), essa estrofe é acompanhada por um detalhe no mínimo curioso: enquanto é cantado, o

mesmo trecho é repetido ao fundo, como um eco, só que tocado ao contrário. A partir disso,

algumas conjecturas são levantadas: Seria esse eco uma representação dos “fantasmas” (vício,

depressão) que circulavam a vida dele? Ou, no caso das segunda e terceira frases, a fala de

outras pessoas ecoando no seu pensamento? Por fim, a canção é encerrada com um novo

fôlego para continuar vivendo: “Chega: vou mudar a minha vida! / Deixa o copo encher até a

borda / Que eu quero um dia de sol num copo d’água”. Vemos então que esse encerramento

parece ser o final de uma crise pela internação, quando o narrador retoma a disposição para

superar o vício, a doença e mudar de vida.

No álbum “Música Para Acampamentos”, lançado em 1992 após a interrupção

da turnê do “V”, essa canção ganha mais 2 minutos. Ela se diferencia da versão de estúdio por

conter, na introdução e no final, trechos de canções de outros artistas. Na introdução, ele canta

um trecho da canção “You’ve Lost That Loving Feeling”44 do dueto norte-americano

“Righteous Brothers”. Já no final, ele canta trechos das canções: “Jealous Guy”45, de John

Lennon, e “Ticket to Ride”46, dos Beatles. Nessa última, ele modifica o gênero, e o

personagem principal, aquele que abandona o narrador, antes uma mulher, passa a ser um

homem. Em comum, as três canções falam de relacionamentos rompidos e∕ou mal sucedidos.

Além da relação conturbada com as drogas, havia também alguns fragmentos de sofrimento

amoroso. Ao incorporar essas canções, não à toa, Renato Russo retoma o tema de “Vento no

Litoral” e volta a falar de corações partidos.

Enfim apresentadas as referências medievais e subjetivas, chegamos à terceira

e última parte da pesquisa. O objetivo principal do Capítulo III, intitulado “Musicalidade e

44 Em tradução livre: Você perdeu aquele sentimento adorável. (N.A.) 45 Em tradução livre: Rapaz ciumento. (N.A.) 46 Em tradução livre: Passagem para ir embora. (N.A.)

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Performance: a importância do agir e a música como prática coletiva”, é analisar as

referências à Era Collor presentes nas canções “Metal Contra as Nuvens” e “O Teatro dos

Vampiros”. Para tal, utilizamos as versões em estúdios e ao vivo gravadas em CD das

referidas canções. Antes disso, fazemos uma discussão em torno da performance, musical e

política, analisando autores como Simon Frith (1996) e Thomas Turino (2008), a fim de

expandir nossa análise para além do elemento textual e objetivando, no caso da performance

política, demonstrar como Collor era um verdadeiro performer. Faremos então uma análise

que leva em consideração todos os outros elementos integrantes da canção. Haja vista tratar-

se de um universo rico, diversificado e que não se limita à letra, nos aventuramos por sair do

lugar-comum de muitos trabalhos na área de história e que utilizam a música como fonte

primária.

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CAPÍTULO III

MUSICALIDADE E PERFORMANCE: A IMPORTÂNCIA DO AGIR E A MÚSICA COMO PRÁTICA COLETIVA

Diferente dos capítulos anteriores que apresentaram uma abordagem plural,

onde dois ou mais assuntos foram discutidos e interligados, o presente capítulo gira em torno

de um único tema: a performance. O objetivo, no primeiro tópico, é discutir teoricamente a

performance musical, a partir de autores como Simon Frith (1996) e Thomas Turino (2008).

Essa discussão teórica, associada ao conceito de representação proposto por Roger Chartier

(2002), sustenta a análise das canções da banda Legião Urbana, ao longo de todo o capítulo

com enfoque nos dois últimos tópicos, e possibilita que nosso estudo extrapole os

componentes textuais das mesmas, permitindo que a canção seja entendida como um todo:

letra, música e performance. Em paralelo, fazemos uma curta discussão sobre a performance

política, haja vista que, conforme discutido no capítulo anterior, compreendemos Collor de

Mello como performer, e o breve período de seu governo como um modelo de performance

política e de ator político performático.

3.1. UMA DISCUSSÃO SOBRE OS ASPECTOS DA PERFORMANCE

Anteriormente, na introdução e no primeiro capítulo deste trabalho,

apresentamos o estudo das representações sociais de Roger Chartier (2002) e que as entende

como “matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social” (CHARTIER, 2002, p.

183). A representação consiste em “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um

objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem" capaz de repô-lo em memória e de "pintá-lo"

tal como é” (CHARTIER, 2002, p. 184). Ou seja, as representações reproduzem o mundo

social. Ao apresentar tal conceito, definimos o eixo norteador da nossa análise do elemento

textual das canções que aqui utilizamos como fonte. Trata-se das referências contidas no

interior do texto e que representam aspectos da realidade em que aquela produção musical

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está inserida. Sendo assim, as representações contidas nas obras permitem estabelecer um

paralelo entre obra e realidade representada, já que dialogam com o contexto em questão.

No presente capítulo, especificamente neste tópico, debatemos sobre a

performance musical – ou de apresentação – e a performance participativa a fim de preparar

uma análise dos elementos não-textuais dessas mesmas canções. Haja vista se tratar de um

trabalho histórico, não-técnico no que se refere às minúcias do campo da música, nossa

análise se restringe a alguns aspectos que contribuem para uma compreensão total da canção.

Ou seja, não iremos pormenorizar nas questões técnicas concernentes, por exemplo, às

técnicas de gravação, ou referentes à afinação e instrumentos, já que não são necessárias para

nosso entendimento histórico. Dessa maneira, privilegiamos a abordagem das performances

de apresentação e participativa em detrimento da performance de gravação, brevemente

pincelada. Sendo uma fonte histórica múltipla, as canções serão analisadas e tratadas como

documento.

Em primeiro lugar, começamos nosso debate esboçando, de modo superficial,

como o conceito se transformou. Assim como a indústria cultural, cujas mudanças

acompanharam a evolução do capitalismo industrial e, por conseguinte, da sociedade, a

performance passou por processo semelhante. Em sua discussão de performance na cultura

popular, o historiador e musicólogo britânico Simon Frith (1996) explica:

A partir de uma perspectiva sócio-histórica é, sem dúvida, relevante aqui apontar a importância crescente da performance na vida cotidiana como um efeito da urbanização e do declínio da intimidade (cada vez mais nossos negócios são com pessoas que não conhecemos), como um efeito do capitalismo industrial (...), como um efeito do fetichismo da mercadoria (o nosso consumo é agora uma questão de imaginação, não necessidade). Mas seja qual for a base material para a performance contemporânea, é claramente culturalmente baseada. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 206)

Antes entendida como uma apresentação musical para determinado público em

um determinado espaço, o conceito foi na década de 1990 repensado, quando alguns autores

“iniciaram reflexões no sentido de ampliar a noção de performance musical considerando

práticas coletivas do fazer musical e a participação do ouvinte como performer” (CARDOSO

FILHO, 2013, p. 183). Podemos ter um indicativo do conceito compreendendo o significado

da palavra traduzida. Do inglês, em tradução livre, performance quer dizer “desempenho” o

que, dentre outras coisas, traz a noção de “representar” e “interpretar”, no sentido artístico-

teatral, de atuação. Assim sendo, relaciona-se à execução da canção, e inclui diversos aspectos

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em torno dela. No caso da performance política – ou do performer – essa mesma noção é

válida e diz respeito, também, à estética e à linguagem corporal do ator político.

Para Frith (1996), a performance, sendo um processamento coletivo, é

“construída a partir da socialização entre ouvintes, artistas e música” (CARDOSO FILHO,

2013, p. 184). Reforçando o nosso objetivo de expandir a análise para além da letra, Frith

(1996) assim define:

Minha posição, em resumo, é que antes de tentar formular o sentido da performance com uma maneira de trabalhar com um texto, devemos primeiro ter certeza de que entendemos como a performance é diferente, como é “não-textual”. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 205)

Tendo em vista que a performance diz respeito à ação e interpretação do

artista, podemos dizer que ela tem um caráter teatral, onde o corpo, a postura e a imagem

daquele artista – ou performer – assume uma função central, tanto na música quanto na

política. A esse respeito, Frith (1996) analisa as proposições de Paul Ekman, psicólogo

estadunidense que investiga as emoções e expressões faciais do ser humano.

O que, então, é o papel do corpo na nossa compreensão da performance e resposta musicais? Como o próprio corpo (separado da voz) comunica e reage? Paul Ekman tem utilmente sugerido que ao se considerar a chamada linguagem corporal devemos avançar, analiticamente, da universal, inconsciente, espontânea expressão do corpo através de um espectro de movimentos corporais socializados, para a mais estilizada, convencionalizada e posada. Primeiro, há as expressões físicas diretas de estados emocionais: medo, êxtase, prazer, raiva, agressividade, timidez, e assim por diante. (...) Esta é a essência do que John Blacking chama de “empatia” (e, para ele, é um aspecto necessário da comunicação musical). Tais movimentos são, significativamente, o mais difícil de agir (é difícil rir ou chorar na hora), e os atores normalmente precisam estar no personagem ou situação narrativa exata para fazê-lo, ou seja, no estado de empatia. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 215-216)

Com efeito, temos os movimentos corporais de dança, por exemplo, muito

presentes nas performances ao vivo, entendidos como movimentos pensados e não

necessariamente espontâneos. Esses movimentos são associados às expressões faciais naturais

do ser humano, que expressam sentimentos. Tal associação de movimentos acontece quando o

performer atinge um estado de atuação e incorpora um personagem. Vale lembrar que Renato

Russo por vezes se declarava como um personagem, tal qual na análise de Frith (1996), e

conseguiu criar uma identidade tanto em suas expressões performáticas quanto em seu estilo

de dança.

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Há certas coisas que escrevo que aconteceram realmente comigo; outras, com amigos. Mas, a partir do momento em que o negócio fica pronto, é como se fosse meu alter ego. Até uma música nossa ficar pronta, já entraram tantas influências! (RUSSO, 1989 Apud ASSAD, 2000, p. 135)

Seguindo essa mesma lógica, ao tratar da performance política de Collor,

Maria Cândida Galvão Flores (2008) explica:

Collor, firmando sua estampa de galã de cinema ou televisão, não demorou a configurar e firmar sua campanha na ação, no desempenho, na promessa de alteração do mundo pelo toque pessoal, no comportamento de demiurgo, aspectos que (...) constituem elementos característicos da performance. (FLORES, 2008, p. 218)

Para ela, Collor optou por apoiar-se na construção da imagem, objetivando

“obter a aprovação do eleitorado pelas promessas feitas de modo espetaculoso, bem à feição

de um país apaixonado pelas novelas de televisão e outros gêneros de mídia” (FLORES,

2008, p. 218). Assim como na performance musical, Collor utilizou de determinada expressão

corporal e vocal para firmar-se como performer político. Além disso, Collor apelava à

oratória, sendo reconhecidamente um político persuasivo. Olga Tavares (1998) diz que, por

isso, “os discursos eram sempre e tom didático, bem explicados, pausados, com um léxico

comum e repetitivo, de modo que as frases não deixassem dúvida quanto à sua mensagem”

(TAVARES, 1998, p.84).

Outro viés da expressão corporal na performance musical é assim definido:

Em segundo lugar, há o que Ekman chama de “movimentos ilustrativos”, movimentos ligados ao conteúdo de uma narrativa verbal, ao fluxo da fala. Estes podem ser movimentos muito inconscientes (ou “integrados”) – os movimentos da mão que fazemos (e não podemos evitar) quando falamos, como uma espécie de comentário sobre o que dizemos: uma ênfase aqui, um encolher de ombros lá (e tons de voz e corpo, som adaptado à natureza do que estamos dizendo, são, obviamente, um aspecto deste). Mas, mesmo que tais movimentos são inconscientes, eles certamente são não universais, pois eles são tão culturalmente específicos como as línguas em que falamos. O ponto aqui não é simplesmente que diferentes linguagens usam o corpo de forma diferente (para que se possa distinguir francês, italiano, e os falantes de inglês de vista, bem como de som), mas também que os mesmos movimentos corporais podem significar coisas diferentes em diferentes culturas. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 216)

Aqui, os movimentos do corpo estão intimamente ligados com o que está sendo

cantado ou falado. As expressões corporais de um performer são culturalmente definidas,

dizendo respeito ao idioma, por exemplo. No caso da Legião Urbana, haja vista se tratar de

uma banda cujo estilo foi herdado do punk rock inglês, entendemos que a identidade da

performance da banda é o resultado de características importadas, das bandas inglesas

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sobretudo, somadas à experiência e às influências brasileiras principalmente por ser uma

banda que canta essencialmente em português.

Além da expressão corporal, a performance inclui, em diferentes proporções,

uma interação com o público presente, no caso da performance participativa. Dessa maneira:

Na maioria das apresentações públicas o corpo é, de fato, sujeito a uma espécie de controle externo, a motivação fornecida por uma contagem ou um script ou uma situação social rotineira, funciona como uma rede de segurança para o artista e público igualmente. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 206)

Para Frith (1996), público e artista dialogam cada qual com sua interpretação,

sendo o ato de ouvir em si um ato performático. Nesse caso, ao ouvir uma canção, estamos

realizando a música para nós mesmos (FRITH, 1996, p. 203). Logo, o autor inclui na

performance o ouvinte que, no caso das apresentações ao vivo, interage e modifica a

interpretação do artista. A interação do público pode alterar o andamento de uma

apresentação. De acordo com Thomas Turino (2008), etnomusicólogo americano, essa

interação entre artista e público pode acontecer de diferentes maneiras. Sobre a performance

participativa, complementando o que diz Frith (1996), Turino (2008) assim define:

Existem muitas formas de participação musical. Ficar sentado, em silêncio, contemplado os sons que emanam do palco de um concerto é certamente um tipo de participação musical (...). Aqui, contudo, estou usando a idéia de participação no senso restrito de atividade que contribui para o som e o movimento de um evento musical através da dança, canto, palmas e instrumentos musicais tocados, quando uma dessas atividades são consideradas integrantes da performance. (tradução livre) (TURINO, 2008, p. 28)

Na obra da Legião Urbana, a performance musical e a performance

participativa estão presentes. Embora não fizessem grandes turnês, algumas apresentações ao

vivo que foram lançadas em CD podem ilustrar nossa discussão e servir de exemplo para os

dois casos de performance: do artista e com participação do ouvinte. No álbum “Acústico

MTV” (1999), gravado ao vivo e com platéia em 1992, uma grande parte das canções foram

retiradas do “V” (1991), haja vista que a gravação ocorreu no período de divulgação do

mesmo. O “Acústico MTV” (1999) é um dos grandes exemplos de performance participativa

e interação com o público da carreira da banda. Ao final de cada faixa, Renato Russo tecia

comentários e dialogava com a platéia sobre a origem das músicas, a situação do país, dentre

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outros. Ao final da música “Hoje a Noite Não Tem Luar”47, versão em português da música

“Hoy Me Voy Para Mexico” do grupo porto-riquenho “Menudo”, por exemplo, Renato Russo

diz, referindo-se e propagandeando o disco “V” (1991):

Quem aqui já comprou o disco. Po, a crise ‘tá mals, hein? Ô gente, compra o disco! Ajuda! Não é? É assim: enquanto o disco não chegar a 250, 300 (mil cópias) a gente não vai fazer show! Ah, é verdade! Porque senão, vai ficar um bando de gente lá: “Toca ainda é cedo!”. E a gente: “Não, a gente quer tocar as músicas novas!”.

Mais uma vez é citada a crise econômica, abordada ainda em outros momentos

da mesma gravação, que desfavoreceu a venda do álbum em questão. Na canção seguinte,

“Sereníssima” 48, já analisada no capítulo anterior deste trabalho, aos 2:50 minutos, a platéia

grita para reproduzir a versão de estúdio da música, o que gera uma reação do vocalista

Renato Russo que para de cantar e diz: “É, eu não ‘tava esperando. Vamos continuar... Legal

os efeitos!”.

Nos dias 08 e 09 de outubro de 1994, a banda se apresentou na casa de

espetáculos “Metropolitan”49, no Rio de Janeiro. Os shows foram gravados e deram origem ao

álbum duplo especial “Como é que se diz eu te amo” (2001). Nos discos, encontramos alguns

exemplos de performance participativa, como na canção “Ainda é Cedo” 50 em que a banda

interage com a platéia e em alguns momentos a deixa cantar em seu lugar. Outro exemplo de

performance nessa mesma canção, agora por parte do artista, acontece aos 2:48 minutos

quando o vocalista canta um trecho da canção “Gimme Shelter” da banda Rolling Stones. Na

canção “Os Anjos”51, Renato Russo esquece parte da letra e pede ajuda à platéia dizendo:

“Como se faz uma receita para a intolerância e a injustiça?”. Ao final, após resposta positiva

dos fãs que assistiam ao show, ele exclama para os outros integrantes da banda: “Eles sabem,

rapazes!”. Esse é um exemplo de como a interação com o público define e modifica os rumos

de uma apresentação. No segundo disco, na canção “Índios”52, o vocalista mais uma vez

esquece a letra e pede ajuda à platéia dizendo: “Essa eu nunca sei a letra!”. No final,

47 In: LEGIÃO URBANA. Acústico MTV. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1999. 1 disco (76:33 min). Faixa 04 (4:32 min). 48 In: LEGIÃO URBANA. Acústico MTV. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1999. 1 disco (76:33 min). Faixa 06 (4:58 min). 49 Atual Citibank Hall, inaugurado em setembro daquele mesmo ano. 50 Em tradução livre: Me dê abrigo. (N.A.) 51 In: LEGIÃO URBANA. Como é que se diz Eu Te Amo. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 2001. 2 discos (126:49 min). Faixa 08 (2:30 min), disco 1. 52 In: LEGIÃO URBANA. Como é que se diz Eu Te Amo. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 2001. 2 discos (126:49 min). Faixa 09 (4:54 min), disco 2.

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agradecendo aos fãs, Renato Russo diz: “A gente ‘tá aqui no palco, mas a verdadeira Legião

Urbana são vocês!”.

A faixa que finaliza o segundo disco, “Que País é Este?”53, apresenta um

marcante exemplo de performance musical. Durante a introdução ele diz: “Zé Chinelão, onde

você estiver: eu te amo!”. O personagem “Zé Chinelão” diz respeito, segundo o próprio

Renato Russo explica no final da canção anterior, “Vamos Fazer um Filme”, a um amigo de

adolescência: “Eu tinha um amigo, Zé Chinelão. O cara falava que tinha transado com todas

as meninas do colégio, depois a gente descobriu que não era. Ele era sozinho, coitado!”. No

entanto, aos 2:20 minutos, entre dois trechos da música e com a melodia ainda sendo tocada,

ele diz: “Vamos mostrar agora os ‘Vídeo Assassinatos do Chinelão’! O assassinato mais

brutal, criancinha levando prego no olho! É a Vídeo Chinelada do Chinelão”. Essa fala faz

uma possível alusão ao programa do apresentador Fausto Silva, “Domingão do Faustão”, da

Rede Globo e seu quadro “Vídeo Cassetadas”, em mais uma de suas críticas à televisão.

Entendemos ainda como uma crítica ao seguimento de programas dominicais

da época e seu entretenimento rasteiro, já que repetidas vezes em diferentes entrevistas,

Renato Russo frisava seu desgosto pelos programas desse tipo. O documentário “Além do

Cidadão Kane” da rede inglesa BBC, assim define o programa dominical da Rede Globo:

Aos domingos, há uma batalha de programas na televisão brasileira. Na Globo não há novelas nem noticiários, seu programa da tarde é o “Domingão do Faustão”, uma mistura de música, olimpíadas bobocas e catástrofes domésticas. 54

Apesar de ter se apresentado com a Legião Urbana no extinto programa

“Perdidos na Noite” na década de 1980, também apresentado por Faustão, Renato Russo

chegou a declarar por ocasião do lançamento do seu disco solo “Equilíbrio Distante” (1995),

reforçando sua crítica ao programa, que não se apresentaria nele:

A Marlene [Matos, diretora dos programas da Xuxa] está querendo que eu faça o Xuxa Hits com este disco [Equilíbrio Distante]. E eu estou pensando. Eu estou ficando menos ranzinza com certas coisas, o que é um exercício pra mim. Você tem que levar o seu trabalho até o público, não é? A gente, a Legião, protege muito as coisas do grupo: “Não, isso a gente não faz”. “Esse não!”. Por que não fazer? Faustão eu não faria. Mas por que não um Xuxa Hits? (RUSSO, 1995 Apud ASSAD, 2000, p. 276)

53 In: LEGIÃO URBANA. Como é que se diz Eu Te Amo. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 2001. 2 discos (126:49 min). Faixa 13 (16:05 min), disco 2. 54 HARTOG, Simon. Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane). Reino Unido: BBC Londres, 1993. (133 minutos).

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Embora a banda se posicionasse em muitas situações como aversa aos meios de

comunicação conforme abordamos anteriormente, ela reconhecia a importância da imprensa e

das emissoras de televisão: “É muito raro a gente fazer Rede Globo. É muito raro. (...) A

[Rede] Globo é importantíssima.” (RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000, p. 213).

Ainda na performance de “Que País é Este?”, Renato Russo canta um trecho da

música “Baile dos Passarinhos”, que na época foi gravada pelo apresentador Augusto Liberato

do programa “Domingo Legal” da emissora SBT. O programa do Gugu, concorrente direto do

programa do Faustão, exibia, da mesma maneira que seu concorrente, quadros de

entretenimento raso. Na nossa análise, inserir tais referências numa canção de forte conotação

política é uma crítica às emissoras de televisão que muitas vezes apresentam uma

programação superficial e que desvia a atenção dos problemas – políticos, sociais,

econômicos – do país, numa clara configuração de pão e circo. O Brasil naquele momento

passava, mais uma vez, por uma tentativa de estabilização monetária e econômica com a

aprovação do Plano Real e a mudança da moeda nacional.

Além das críticas à televisão, ele canta “Cajuína” de Caetano Veloso e “Aquele

Abraço” de Gilberto Gil, incorporando-as como trechos da canção. A primeira, segundo o

próprio Caetano Veloso55, é o relato do encontro com o pai de seu amigo e parceiro da

tropicália, Torquato Neto, que cometeu suicídio anos antes da composição da música. A

segunda seria uma homenagem à cidade do Rio de Janeiro, onde acontecia a apresentação.

Aos 4:38 minutos, Renato Russo diz: “Vocês vão fazer alguma coisa para consertar as suas

próprias vidas? Eu cheguei à seguinte conclusão: não adianta consertar o resto, tem que

consertar a gente! Ajuda pra caramba! [sic]”. E encerra a canção sem cantar a última estrofe,

interrompendo-a com a seguinte frase: “Agora todo mundo vai pensar como é que o nosso

país vai ficar rico e como a gente vai faturar um milhão sem precisar matar ninguém!”. Na

mesma faixa do CD, podemos ouvir ainda a apresentação da canção “Metal Contra as

Nuvens” que analisaremos no terceiro tópico deste capítulo.

Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar como as performances

acontecem nas apresentações ao vivo, mesmo de uma banda como a Legião Urbana,

conhecida por não fazer muitos shows. Sobre a apresentação supracitada da canção “Que País

é Este?”, a análise de Frith (1996) em relação à performance ao vivo elucida a combinação de

falas e canções de outros artistas que o vocalista Renato Russo incorporou à apresentação. Na

55 Entrevista ao apresentador Sérgio Groisman do programa extinto “Programa Livre” do canal SBT. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=S5NxSwkwx-o&feature=youtu.be Acesso em: 10∕10∕2014.

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sua discussão de performance, Frith (1996) completa, a respeito tanto da performance musical

quanto da performance participativa – quando há interação com o público, que:

Em primeiro lugar, ao descrever algo como uma performance ao vivo estamos chamando a atenção para uma situação em que pensar e fazer são simultâneos (...) Toda performance ao vivo envolve tanto a ação espontânea como a reprodução de um papel. Isto é bastante óbvio em música ao vivo: ela deve envolver uma combinação de improvisação e (...) uma invenção de solo de forma livre. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 207)

A performance envolve, além da expressão corporal como dito anteriormente,

a retórica na interação com o público.

A relação entre a conversação e o performativo é complexa, então, já que envolve não apenas uma utilização específica de linguagem, mas também uma afirmação de ser competente em tal utilização, e uma suposição de que a própria platéia também é tão competente, ou, pelo menos, capaz de reconhecer as habilidades de falar. Ao contrário de uma conversa normal, ou seja, uma performance pode ser boa ou ruim; ela é avaliada. (...) O sucesso de uma performance para um artista, no final, só pode ser medido pela resposta do público (isto é o que o torna uma performance, uma espécie de oratória). A piada que não recebe risos, uma canção que fica sem resposta, é uma apresentação ruim por definição. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 208)

Em outras palavras, uma performance ao vivo exige do artista uma boa

presença de palco, além de partir do princípio que aquela plateia está apta a entender a

mensagem. Uma performance considerada boa, pressupõe uma resposta positiva do público,

que avalia e determina se aquele artista é, ou não, um bom performer. Acrescentamos ainda

que a linguagem e o instrumental são componentes que fazem parte da dinâmica musical: se

completam e andam juntos. Uma entonação diferente de voz, uma pronúncia mais acentuada

acompanhada de um instrumental diferenciado, tudo isso faz parte da performance musical e

ajuda na compreensão da música em sua totalidade e na formulação da identidade do

performer.

Complementando a ideia desenvolvida por Frith (1996), Thomas Turino (2008)

analisa a performance participativa da seguinte forma:

Embora a qualidade do som e do movimento seja muito importante para o sucesso da performance participativa (...) pois inspira uma maior participação entre os presentes (...) a qualidade da performance é, em última instância, julgada pelo nível de participação alcançado. (tradução livre) (TURINO, 2008, p. 28-29)

Nesse sentido, Turino (2008) entende, comungando das explicações de Frith

(1996), que na performance participativa o performer é avaliado a partir da interação com o

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público. A participação do público ouvinte torna-se um termômetro para a qualidade da

apresentação. A qualidade da apresentação “também é avaliada pela forma como os participantes

se sentem durante a atividade” (tradução livre) (TURINO, 2008, p. 29), ou seja, através da maneira

como o público reage durante a execução daquele show. Frith (1996) analisa, ainda, que uma

performance pressupõe doses de espontaneidade.

Em alguns gêneros musicais a espontaneidade de um show é indicada pelos erros dos artistas, suas cordas quebradas, seus falsos começos e términos contrariados; em outros, o engajamento global dos músicos com o que eles estão fazendo é indicado pela precisão de suas mudanças, a perfeição de suas harmonias. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 220)

Analisando brevemente outro tipo de performance de apresentação musical –

como no caso das óperas, nesse caso sem a interação com o público, para Turino (2008), e

que pode ser avaliada de diferentes maneiras:

Os valores e objetivos de uma performance de apresentação leva a diferentes critérios para a criação e julgamento de uma boa música. Além disso, neste campo, a responsabilidade social dos artistas é de um tipo diferente da dos artistas em eventos participativos; músicos devem apresentar um desempenho que sustente o interesse de um público que não está participando fazendo o som ou a dança, e o público tem a sua própria responsabilidade de conceder mais ou menos a atenção para a performance de acordo com o quadro de gêneros. (tradução livre) (TURINO, 2008, p. 52)

Sobre o ato de assistir a uma determinada apresentação, Frith (1996) elucida

que há um “grande número de questões sobre o processo da escuta (ou o ato de assistir, ou o

consumo) – nós não, afinal, consumimos o artista, mas suas performances” (tradução livre)

(FRITH, 1996, p. 211). O autor frisa que a interpretação que o público faz de uma canção (ou

de sua performance) tem caráter subjetivo:

Da mesma forma, se todas as canções são narrativas, se elas funcionam como mini-musicais, então os seus enredos são uma questão de interpretação, tanto pelos artistas de anexá-los às suas próprias histórias quanto pelos ouvintes, (...) colocando suas expressões de emoção em nossas próprias histórias, seja diretamente (nesta situação, nesta relação, agora), ou, mais comumente, indiretamente, que estabelece a performance sobre as nossas memórias de situações e relacionamentos: nostalgia, como uma condição humana, é definida pelo nosso uso de música popular. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 211)

Na política, a performance aparece como forma de propaganda ou marketing,

já discutidos no Capítulo II deste trabalho, e ainda tem forte conotação teatral, assim como na

música. A performance é uma maneira de espetacularizar a ação política e apresentar o ator

político como sério, competente, digno de confiança. Envolve, além das ações e expressões

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corporais, a construção da imagem daquele ator político, das vestimentas ao tom de voz e

vocabulário utilizados.

Emoção, adrenalina, esperança de ação espetacular se satisfazem com atos fortemente teatralizados, por assim dizer, com performances, e não propriamente com programa de boa gestão administrativa, mas pela força da vontade, pela explosão da energia. (FLORES, 2008, p. 219)

Flores (2008) conclui que a atuação performática de Collor alterou a maneira

como a propaganda política brasileira tem sido feita desde então.

Tudo indica que Collor, pelos seus métodos performáticos e midiáticos, também introduziu doravante uma cultura política definitiva, os governos sucessores já começaram “blindados”, para usar uma metáfora corrente. (...) Para o bem e para o mal, os governantes brasileiros não mais podem governar sem expressar claramente suas performances, por meio dos recursos da mídia, correndo o risco de fazer perigar a democracia e infantilizar a sociedade. Os métodos de Collor, parecem ter contagiado de vez seus sucessores e, se assim for, terão assegurado, nefastos ou não, um papel histórico que lhe é próprio, com lugar marcado na cultura política brasileira contemporânea. (FLORES, 2008, p. 222-223)

Quanto à performance musical, vemos ainda uma outra vertente de

apresentação dos artistas da música: os videoclipes. Eles são um tipo distinto de performance

e, para Frith (1996), são “a fonte de práticas de performance mais interessantes do pop”

(tradução livre) (FRITH, 1996, p. 224). De acordo com Frith (1996), os videoclipes

aproximam o artista do público, já que são veiculados pela televisão e, acrescentamos, mais

popularmente pela internet nos dias atuais. Além do amplo alcance, o videoclipe é uma forma

pós-moderna de propaganda para o artista.

O vídeo pop é importante, em outras palavras, não porque obriga músicos a tocarem de novas maneiras (embora às vezes possa fazer isso), mas na forma como ele desenha necessariamente (e, portanto, traz à nossa atenção) estabelece convenções do espetáculo e os adapta às novas circunstâncias tecnológicas e de venda. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 224-225)

Os videoclipes são uma face da performance musical, e em alguns casos

alcançam uma escala cinematográfica, de “mini-filme” ou curta-metragem, com narrativas e

um desempenho artístico que difere daquele do palco. Nele, o performer pode explorar

diferentes talentos e, muitas vezes, o videoclipe acrescenta uma identidade à canção, sendo

que a música passa a ser associada ao visual. Acrescentamos que, com o advento da internet,

os videoclipes possibilitaram ao artista uma maior liberdade criativa, já que não precisam se

adequar às exigências dos mercados televisivos. Em síntese:

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Minha conclusão de tudo isto é que os vídeos são ideologicamente importantes não porque eles trazem novas preocupações à performance pop (e certamente não como algum tipo de perturbação pós-moderna de narrativas musicais), mas porque elas permitem que músicos (ou suas gravadoras) possam traduzir seus ideais realizando em termos televisivos diretamente, sem ter que ser mediada pelas normas estabelecidas de entretenimento de TV. (tradução livre) (FRITH, 1996, p. 225)

Mais uma vez, a imagem representa uma parte importante da apresentação e da

performance musicais. No videoclipe, a performance aparece no plano principal e o público

consome, primeiro, a imagem em vez da música em si. Talvez pelo caráter propagandístico, a

Legião Urbana não tenha construído uma tradição em gravar videoclipes, devido entre outras

coisas à sua instável relação com a imprensa. Em toda a carreira, a Legião Urbana gravou, nas

palavras do próprio Renato Russo, “só três ou quatro videoclipes. Todos horriveizinhos.”

(RUSSO, 1996 Apud ASSAD, 2000, p. 270). Para ele, o videoclipe existe não como um viés

do fazer musical, mas como uma peça exclusivamente de marketing: “Eu não respeito muito

vídeo, que é só uma peça promocional. Não é arte, é anúncio. É pra vender a música, o disco”

(RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000, p. 269).

O exemplo mais marcante da carreira do grupo – e com maior investimento em

produção – é o clipe da música “Perfeição” do disco “O Descobrimento do Brasil” (1993),

antes disso, a Legião Urbana tinha apenas produzido poucos vídeos de baixo orçamento.

Talvez pelo fato de não gravarem videoclipes com freqüência, o clipe de “Perfeição” foi um

verdadeiro sucesso de público e mídia, sendo veiculado nos principais programas de televisão

da época. O clipe retrata a atmosfera bucólica do disco, com visual similar ao do encarte,

sendo a principal peça de marketing deste trabalho. Em uma de suas declarações sobre a

televisão e os videoclipes, Renato Russo relembra a dificuldade em gravá-los – e a escassez

deles na carreira da banda, e ressalta: “Agora, também acontece de a gente fazer o clipe de

Perfeição e ele ir direto para o [programa] Fantástico” (RUSSO, 1994 Apud ASSAD, 2000,

p. 271).

O clipe citado foi um importante recurso para promover e reimpulsionar a

carreira da banda, haja vista o mau desempenho em vendas do álbum anterior – o “V” (1991)

– se comparado aos outros discos. Com “O Descobrimento do Brasil”, a Legião Urbana

retoma, além do bom desempenho em vendas no mercado fonográfico nacional, o

relacionamento com os veículos de imprensa. Durante a divulgação, a banda participou de

diversos programas de televisão, incluindo os principais da época, como o programa “Jô

Soares Onze e Meia” do SBT, quando o apresentador, Jô Soares, chamou a atenção para a

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relação da banda com a imprensa: “Vocês aparecem pouco em televisão, não é?”56. Ainda na

mesma entrevista, Renato Russo aborda seu problema com álcool, drogas e remédios, e fala

sobre a ajuda conseguida no grupo Alcoólicos Anônimos (AA). Em determinado momento ele

diz: “Eu ‘tava seguindo o caminho do Kurt Cobain57, aquele rapaz do ‘Nirvana’”.

Curiosamente, na performance da canção “Perfeição” gravada no especial “Como é que se diz

eu te amo”, ele canta um trecho da música “Lithium”58 da banda Nirvana. Essa canção

aborda, dentre outras coisas, os problemas psiquiátricos e os efeitos do vício em

medicamentos.

Quanto à performance de gravação, ocultadas suas particularidades técnicas, a

analisamos sob o ponto de vista da alta fidelidade que, grosso modo, embora exija técnicas

específicas de produção, apresenta propostas “conectadas com as práticas de performance ao

vivo” (CARDOSO FILHO, 2013, p. 186). Nesse caso, ao examinar a execução das canções da

Legião Urbana em estúdio, estaremos levando em consideração todos os detalhes da

performance de apresentação, ponderando que “as práticas fonográficas possuem inúmeros

pontos de contato com o campo da performance para apresentação, tendo em vista que os

artistas de estúdio na era elétrica eram grandes astros nos palcos” (CARDOSO FILHO, 2013,

p. 186). A Legião Urbana se considerava uma banda de estúdio, por esse motivo o reduzido

número de apresentações:

Eu gosto é de compor, entrar no estúdio, encontrar os rapazes, trabalhar a obra, pensar a capa e pronto: colocar o disco na loja. A gente é artista de gravação. O [cantor] Lou Reed falou isso: “I am a recording artist”59, não um poeta. Ele é um artista que grava, e esta é a visão que eu tenho da Legião. (RUSSO, 1996 Apud ASSAD, 2000, p. 36)

Sobretudo no que diz respeito à retórica, tendo em vista que “uma forma de

falar pode, por si só, significar uma performance” (FRITH, 1996, p. 2008), observamos as

gravações das canções objeto de nossa pesquisa considerando-as exemplos de performance

musical. Analisamos, sobretudo, a influência mútua entre instrumental e textual, o uso de

entonações de voz e∕ou pronúncias específicas nos diferentes momentos da canção, como

56 Entrevista ao apresentador Jô Soares no extinto programa “Jô Soares Onze e Meia” do canal SBT. Junho 1994. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=kVaRokcm80s. Acesso em 01∕12∕2014. 57 Vocalista e compositor da banca norte-americana Nirvana, viciado em drogas, álcool e medicamentos, que cometeu suicídio em 04 de abril de 1994 aos 27 anos. Kurt Cobain já havia sido internado em diferentes ocasiões pelo abuso das substâncias citadas, tendo em algumas ocasiões sofrido overdose (tentativa de suicídio). (N.A.) 58 Em tradução livre: Lítio. Trata-se de uma substância que dá origem, dentre outras coisas, aos medicamentos utilizados para tratar doenças psiquiátricas como transtorno bipolar, esquizofrenia e depressão nervosa. (N.A.) 59 Em tradução livre: Eu sou um artista de gravação. (N.A.)

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parte do fazer musical. Examinamos como o instrumental, o textual e o vocal se completam e

são elementos importantes para a compreensão da canção total.

Em resumo, podemos dizer que a performance é um processo dinâmico, que

inclui aspectos artísticos teatrais, haja vista a importância do corpo e da linguagem corporal –

tanto na performance musical quanto na política, já que ambas apóiam-se na imagem do

performer. No caso da música, a performance nas apresentações ao vivo pode ser entendida

como uma prática coletiva do fazer musical, considerando que a interação do público torna-se

parte integrante daquela apresentação, podendo reorientar o performer no sentido de dirigir os

passos seguintes. Ou seja, a resposta do público, positiva ou negativa, influencia uma

apresentação musical de maneira determinante, além de ser um termômetro para a qualidade

de uma performance ao vivo. A performance é mais um instrumento para o artista.

Acrescentamos ainda que, nos casos supracitados, a performance teve a

capacidade de dialogar com a realidade inserida, como na apresentação da canção “Que País é

Este” que faz uma crítica ao entretenimento televisivo superficial largamente consumido

naquele momento. Nos tópicos seguintes, analisamos as canções “Metal Contra as Nuvens” e

“O Teatro dos Vampiros”, ambas do álbum escolhido para este trabalho, o “V” (1991), com

enfoque nas representações que nos permitem relacionar ao período Collor. Inclusive

procuramos a partir de uma análise das diferentes performances, ilustrar e entender a

importância das apresentações para a dinâmica do fazer musical e a prática coletiva em que a

canção se transforma ao ser executada ao vivo.

3.2. METAL CONTRA AS NUVENS: A REPERCUSSÃO SOCIAL E O DESENCANTO

COM O GOVERNO COLLOR

De uma maneira geral, a música tem a atribuição de reproduzir o que as

pessoas sentem ou querem dizer e ouvir, é um retrato artístico e uma parte da realidade. Em

períodos de crise, como o breve período Collor de Mello (1989-1992), essas representações

parecem ficar mais evidentes, já que o desencanto – ou a decepção – torna-se generalizado.

Ao passo que uma canção deseja transmitir uma mensagem, ela é passível de múltiplas

interpretações.

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Quero que as pessoas me digam o que entenderam. Acho que existem várias leituras para este disco e para as palavras que estão nele. São palavras simples, é um vocabulário básico, mas há coisas a descobrir. (...) Se você quiser uma definição para o disco, pode dizer que é mitológico, medieval. Tenho fascinação por aquelas histórias de cavaleiros da távola redonda. Mas é tudo com a cara da Legião Urbana. (RUSSO, 1991 Apud ASSAD, 2000, p. 267)

Mais uma vez, o caráter mitológico do disco surge como uma característica

essencial dele. Na canção que analisamos aqui as representações medievais se misturam

àquelas que fazem referência ao momento político que o Brasil atravessava no ano de 1991.

Em alguns momentos, dizem respeito, de maneira metafórica, ao próprio Fernando Collor de

Mello, sua performance de mito, seu discurso e suas medidas econômicas controversas que

minaram a confiança do brasileiro. Em outros, dizem respeito à desesperança que acometeu

todo o país, após décadas de seguidas decepções e após terem as expectativas de mudança

renovadas com as Eleições de 1989. Muitas vezes, é entendida como uma canção de amor e

decepção amorosa. Vale ressaltar que será apresentada uma análise do ponto de vista do

historiador, em detrimento da recepção pelo público, que não será levada em consideração.

Para o nosso trabalho, optamos por examinar a letra – suas representações, na

acepção de Chartier (2002), e alegorias – em paralelo com o instrumental, que consideramos

importante já que setoriza a canção dividindo-a em diferentes momentos. Essa discussão

dialoga com a análise de performance, embora não ao vivo já que se trata de uma canção de

estúdio, também utilizada no exame da canção. O estudo aqui apresentado coaduna com as

discussões dos capítulos anteriores e do primeiro tópico do presente capítulo. É o exemplo

prático de tudo o que foi discutido anteriormente.

Como todas as outras letras do disco, “Metal Contra as Nuvens”60 foi escrita

em 1991 por Renato Russo, e o instrumental composto numa parceria entre Russo, Dado

Villa-Lobos e Marcelo Bonfá. Sobre a canção, uma de suas favoritas, ele diz:

Acho "Metal contra as Nuvens" uma música super acessível. O problema é que o disco falava de coisas que as pessoas não estavam querendo ouvir na hora. (...) Mas o disco tem as melhores letras, de longe. Consegui falar tudo o que eu queria. Mas as pessoas não queriam ouvir aquilo. Por exemplo, "Metal contra as Nuvens" é uma música sobre o Collor, mas nunca ninguém falou sobre isso.61

60 In: LEGIÃO URBANA. V. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1991. 1 disco (49:50 min). Faixa 02 (11:26 min). 61 In: MATIAS, Alexandre. Em entrevista inédia, Renato Russo fala de Drogas e da Legião. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, 2001. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u18180.shtml. Acesso em: 15/03/2014.

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Segunda canção do disco, com duração de 11:26 minutos, apresenta uma longa

introdução instrumental com 1:33 minutos e é tocada basicamente por instrumentos de base e

rítmica: baixo, violões∕guitarras e bateria. Além da introdução, aos 7:55 minutos, a música

apresenta um intervalo instrumental, quando é acrescentada uma orquestra de cordas62. A

música é dividida em quatro partes – ou quatro atos, de acordo com o encarte do disco.

Considerando o momento em que a canção foi escrita, optamos por analisá-la considerando-a

um relato do momento político-social brasileiro e seus desdobramentos, haja vista que,

conforme o próprio Renato Russo, o disco foi concebido como “um retrato daquela época”63.

Analisamos então cada uma dessas partes.

I Não sou escravo de ninguém ∕ Ninguém senhor do meu domínio ∕ Sei o que devo defender ∕ E por valor eu tenho ∕ E temo o que agora se desfaz Viajamos sete léguas ∕ Por entre abismos e florestas ∕ Por Deus nunca me vi tão só ∕ É a própria fé o que destrói ∕ Estes são dias desleais. Sou metal – raio, relâmpago e trovão ∕ Sou metal, eu sou o ouro em seu brasão ∕ Sou metal: me sabe o sopro do dragão. Reconheço o meu pesar ∕ Quando tudo é traição ∕ E o que venho encontrar ∕ É a virtude em outras mãos. Mas minha terra é a terra que é minha ∕ E sempre será minha terra ∕ Tem a lua, tem estrelas e sempre terá.

A primeira parte inicia-se com uma estrofe que interpretamos como o

sentimento (desejo) de liberdade trazido por toda a conjuntura do final da década de 1980: fim

da ditadura, Constituição de 1988, Eleições de 1989. “Sei o que devo defender” como uma

possível representação da defesa da democracia e as duas últimas frases relatando o temor do

retorno às décadas anteriores, com toda a falta de liberdade que um regime autoritário traz. A

liberdade é representada pela frase “Não sou escravo de ninguém” e o medo de ter a ditadura

recém superada de volta – e a liberdade cerceada – na frase “E temo o que agora se desfaz”.

A segunda estrofe traz referências medievais marcantes: léguas, abismos,

florestas. Entendemos as duas primeiras frases como representações dos anos de ditadura:

“Viajamos sete léguas ∕ Por entre abismos e florestas”. A floresta, conforme analisamos no

segundo capítulo deste trabalho, representa o cenário da maior parte das aventuras dos

62 Conjunto de instrumentos de cordas composto por: violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. (N.A.) 63 RUSSO, 1994. In FRÓES, Marcelo. Renato Russo Entrevistas MTV. Rio de Janeiro: MTV, 2006. (143 minutos).

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cavaleiros medievais. É o local onde estão abrigados os maiores temores do homem medieval:

as figuras fantásticas, o medo, a solidão. Viajar “por entre abismos e florestas” é a superação

de um determinado período. Portanto, concluímos que é uma representação da escuridão dos

anos de ditadura e a difícil reconstrução da democracia vivida na década anterior. As últimas

frases são o primeiro relato do governo Collor e fazem referência ao momento presente e toda

a sua frustração e desesperança. O desencanto aparece na forma da perda de confiança e

lealdade: “É a própria fé o que destrói ∕ Estes são dias desleais”. A fé que destrói pode ser

entendida como a confiança no primeiro presidente eleito pelo voto direto, este que subverteu

negativamente as expectativas do eleitor.

As referências medievais da terceira estrofe (refrão) são importantes

representações do governo Collor. Ao apresentar-se como um mito, encarregado de salvar o

Brasil, Collor investiu na performance messiânica: da imagem, passando pela expressão

corporal sempre altiva e imponente, chegando ao discurso, com suas simbologias bíblicas e

carregado de um maniqueísmo desvelado, quando se coloca como o portador do bem, em

oposição às forças apocalípticas do mal de seus antagonistas (TAVARES, 1998, p. 84). A

linguagem medievalesca presente no discurso de Collor, conforme Olga Tavares (1998), nos

leva a compreender que, na canção, o metal faz referência à própria figura forte do presidente

e aos seus discursos: “Sou metal – raio, relâmpago e trovão ∕ Sou metal, eu sou o ouro em seu

brasão”. A forma como é cantada, com a voz empostada acompanhada de ecos, reforça nossa

hipótese, pois transmite uma mensagem de força e autoridade.

Levantamos a hipótese de que esta estrofe, que é repetida na terceira parte da

música, seja uma construção simbólica de um discurso do então presidente. Cantada em

primeira pessoa, ela parece representar a fala de alguém em posição de autoridade. A estrofe é

finalizada com uma frase que pode facilmente ser associada ao discurso de Collor: “Sou

metal: me sabe o sopro do dragão”. De acordo com Olga Tavares (1998), o dragão era

utilizado como metáfora para a inflação:

O messianismo necessita de uma força opositora que reforce sua ação salvadora. O herói-protagonista sempre tem um vilão-antagonista, que dá o tom para o confronto. Fernando Collor tinha essas forças opositoras apocalípticas, das quais ele se aproveitou em seus discursos: o dragão (inflação); a Babilônia (a república de José Sarney); a besta (os marajás e, depois, o candidato Lula); o Cordeiro (ele próprio) seguido dos justos (minha gente); e a visão do mundo novo, da nova Jerusalém (o Brasil Novo). (TAVARES, 1998, p. 84)

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Anderson dos Santos (2008) ainda acrescenta, ao estudar a relação entre

Fernando Collor de Mello e a Revista Veja a partir das capas com cunho propagandístico da

publicação, que o periódico costumava referir-se à inflação da mesma maneira. Trata-se, pois,

de “uma alusão à inflação, já que o periódico referia-se freqüentemente à mesma como

‘dragão’” (SANTOS, 2008, p. 123).

Na estrofe seguinte vemos uma representação que ilustra o desencanto, o

sentimento de traição que acometeu o povo brasileiro. “Reconheço o meu pesar ∕ Quando tudo

é traição ∕ E o que venho encontrar ∕ É a virtude em outras mãos”: o pesar, com o

arrependimento pela escolha do presidente; a traição, com as denúncias de corrupção e o

confisco dos bens; a virtude, como uma qualidade que não pertence ao presidente. Quanto aos

vocais, este trecho é cantado de maneira sofrida – desolada – e ao final demonstrando certa

resignação.

Encerrando a primeira parte, percebemos referências ao patriotismo que surge

mesmo em momentos de crise: “Mas minha terra é a terra que é minha ∕ E sempre será minha

terra ∕ Tem a lua, tem estrelas e sempre terá”. O patriotismo está ainda nas figuras do ouro e

do brasão. Musicalmente, a primeira parte da canção é serena e melancólica: transmite a idéia

de frustração e desencanto. A última estrofe, um pouco mais animada, é a transição melódica

– e textual – para a segunda parte da música que é agressiva e agitada, acompanhando

perfeitamente o texto que representa a desilusão e a revolta com a crise política e econômica

que o país atravessava.

Observamos que a segunda parte está ancorada na situação econômica, no

sentimento de perda e traição. É o desencanto pelas medidas econômicas que pegaram o

brasileiro de surpresa. Quanto ao instrumental, guitarras, baixo e bateria ganham sonoridade

punk rock.

II Quase acreditei na sua promessa ∕ E o que vejo é fome e destruição ∕ Perdi a minha sela e a minha espada ∕ Perdi o meu castelo e minha princesa. Quase acreditei, quase acreditei. E por honra, se existir verdade ∕ Existem os tolos e existe o ladrão ∕ E há quem se alimente do que é roubo ∕ Mas vou guardar o meu tesouro ∕ Caso você esteja mentindo. Olha o sopro do dragão.

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O sentimento de traição pelas medidas econômicas que contradisseram as

promessas de campanha são sentidos logo na primeira estrofe: “Quase acreditei na sua

promessa ∕ E o que vejo é fome e destruição”. Conforme os discursos de Collor, o dinheiro do

povo brasileiro seria poupado. Sempre se declarando como paladino da verdade, o candidato

moderno e que traria a mudança para o país, ele atribuía a traição do povo brasileiro,

resultante de medidas para o confisco de bens, ao candidato da oposição, o vilão-antagonista

Luís Inácio da Silva (PT). Sempre se apoiando em uma visão maniqueísta, Collor discursava

apontando as diferenças entre o bem (ele próprio) e o mal (opositores):

Ser moderno, minha gente, não é querer tomar o dinheiro que você consegue com sacrifício depositar na sua caderneta de poupança. Ser moderno, não é ficar com o dinheiro que é fruto de um trabalho suado e sacrificado como quer o outro candidato. Ser moderno, minha gente, é respeitar a poupança, a poupança é sagrada, e garantir esse dinheirinho a mais que você consegue juntar e garantir sua propriedade, por menor que ela seja.64

Na canção, os bens confiscados surgem representados pelas figuras da sela,

espada, castelo e princesa, essa última como mais uma referência aos contos e fábulas

medievais: “Perdi a minha sela e a minha espada ∕ Perdi o meu castelo e minha princesa”. A

segunda estrofe é cantada em tom agressivo e decepcionado, retratando a imensa decepção do

eleitor: “Quase acreditei, quase acreditei”.

Na terceira estrofe, vemos representado esse sentimento que acometeu o

eleitor, além de exprimir dúvida: “E por honra, se existir verdade”. Aqui o eleitor é retratado

como tolo, o presidente como ladrão, e os envolvidos nos escândalos de corrupção – incluindo

o presidente – como aqueles que se alimentam do que fora roubado do povo: “Existem os

tolos e existe o ladrão ∕ E há quem se alimente do que é roubo”. E por fim, a tentativa de

poupar seus bens materiais: “Mas vou guardar o meu tesouro ∕ Caso você esteja mentindo”.

Por último, na última frase, surge mais uma vez a inflação na figura mítica do dragão, que

mesmo com as medidas do governo para controlá-la mantinha-se instável e em aumento

constante e descontrolado: “Olha o sopro do dragão”. A inflação era um mal ainda não

superado, sempre à espreita.

A segunda parte, e também a mais agressiva e agitada da música, encerra-se

com uma transição instrumental de quase um minuto para a terceira parte, onde percebemos

surgir referências ao momento pessoal de Renato Russo: 64 Fernando Collor de Mello em discurso durante o Horário Eleitoral Gratuito, em 11 de dezembro de 1989, às vésperas do segundo turno. (N.A.) In: TAVARES, Olga. Fernando Collor: o discurso messiânico, o clamor ao sagrado. São Paulo: Annablume, 1998.

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III É a verdade o que assombra ∕ O descaso o que condena ∕ A estupidez o que destrói Eu vejo tudo o que se foi ∕ E o que não existe mais ∕ Tenho os sentidos já dormentes ∕ O corpo quer a alma entende Esta é a terra-de-ninguém ∕ Eu sei que devo resistir ∕ Eu quero a espada em minhas mãos. Sou metal – raio, relâmpago e trovão ∕ Sou metal, eu sou o ouro em seu brasão ∕ Sou metal: me sabe o sopro do dragão. Não me entrego sem lutar ∕ Tenho ainda coração ∕ Não aprendi a me render ∕ Que caia o inimigo então.

As duas primeiras frases representam a descoberta da AIDS. Retrata a agonia

da confirmação da doença (“É a verdade o que assombra”) e na segunda estrofe, na nossa

análise, retrata a decisão de tratá-la e abandonar os vícios: “Tenho os sentidos já dormentes ∕

O corpo quer, a alma entende”. Em algumas entrevistas, Renato Russo chegou a falar sobre a

AIDS, de maneira geral: “A AIDS coloca toda e qualquer ação humana sob outro prisma”

(RUSSO, 1988 Apud ASSAD, 2000, p. 22).

A terceira estrofe pode ser analisada tanto como uma decisão de lutar contra a

doença quanto de lutar por um país melhor. “Esta é a terra-de-ninguém ∕ Eu sei que devo

resistir ∕ Eu quero a espada em minhas mãos”: se analisada sob o ponto de vista político, essa

estrofe diz respeito à crise enfrentada em todo país e é finalizada com o desejo que retomar o

controle (financeiro, político, social) da situação. Talvez aqui, a espada seja uma

representação do voto. Se analisada do ponto de vista subjetivo, como uma representação da

crise pessoal de Renato Russo, as duas últimas frases fazem referência ao desejo de tratar a

doença e os vícios. De toda maneira, os vocais indicam segurança e desejo de controlar a

situação.

A última estrofe também carrega essa particularidade, podendo ser analisada

sob uma perspectiva política ou pessoal. Sob o viés subjetivo, carrega as mesmas referências

que aparecem na terceira estrofe, com o desejo de lutar contra o inimigo (doença e vícios).

Sob o viés político, refere-se à não desistência de lutar pelo país e encerra com uma possível

referência ao impeachment: “Que caia o inimigo então”. No momento da composição da

música, os desentendimentos do então presidente Collor com seu irmão, Pedro Collor de

Mello, começavam a se tornar públicos. Apesar de distante, a ideia do impeachment já era

comentada pela população insatisfeita, pela oposição e pelos meios de comunicação

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sensacionalistas, vindo a se cristalizar no começo do ano de 1992. Essa última frase é cantada

de maneira enfática, expressando o desejo determinante de superar essa fase, pessoal e

política. O paralelo entre a vida política econômica e a vida pessoal já havia sido comentado

por Renato Russo como alvo de insegurança: “A inflação e a AIDS acabaram com a

segurança. As angústias voltaram a ser básicas. E pessoais.” (RUSSO, 1988 Apud ASSAD,

2000, p. 22).

Em relação ao instrumental, a terceira parte é lenta e tranqüila assim como a

primeira. O instrumental melancólico dialoga com o textual que exprime medo, inseguranças

e um desejo de mudança latente. Ao final, antes de ser cantada a quarta parte, temos um

instrumental marcante de transição para o desfecho da música, quando é acrescentada uma

orquestra de cordas em um trecho extenso acompanhado dos vocais que cantam: “Tudo passa,

tudo passará”. É o anúncio de um final positivo, em que as expectativas ressurgem. O solo

segue por quase três minutos, quando começa a ser cantada a última parte.

IV E nossa estória não estará pelo avesso ∕ Assim sem final feliz ∕ Teremos coisas bonitas pra contar ∕ E até lá vamos viver ∕ Temos muito ainda por fazer ∕ Não olhe pra trás ∕ apenas começamos. O mundo começa agora ∕ Apenas começamos.

Como uma maneira de encerrar a canção com ânimo e placidez, a exemplo de

grande parte da obra da Legião Urbana que, embora apresente as dificuldades vividas em cada

momento e muitas vezes demonstre revolta, é retomada a serenidade inicial, musicalmente, e

são inseridas palavras de estímulo, superação e coragem. Cantada de forma delicada, a última

parte concilia letra e música e nos permite perceber que a desesperança deu lugar à confiança

de dias melhores, superando o desencanto anterior (“Não olhe pra trás ∕ Apenas começamos”).

È a negação do passado substituída pela crença no recomeço.

Existem ainda duas versões ao vivo da canção “Metal Contra as Nuvens”

gravadas em CD, nos álbuns: “Acústico MTV” (1999) e “Como é que se diz eu te amo”

(2001). Nelas, a canção perde cerca de dois minutos, entre introdução e solos, sendo

apresentada de forma mais curta e objetiva, sem tantos detalhes quanto na versão de estúdio.

No “Acústico MTV” (1999), é tocada somente com dois violões, bateria e pandeiro meia-lua,

dessa forma, a experiência sonora é diferente e simplificada, sem arranjos longos e sem a

orquestra de cordas. Na segunda versão citada, é tocada com quase todos os instrumentos da

versão de estúdio, embora também dispense a introdução e uma parte dos solos instrumentais.

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Nesse caso, a orquestra de cordas é substituída por teclados, que trazem uma sonoridade

diferente e sintética.

Ao longo de seus 11:26 minutos, talvez por uma herança do rock progressivo e

suas longas composições que mesclam letras elaboradas e instrumentais extensos, “Metal

Contra as Nuvens” é uma canção dinâmica e coerente no que diz respeito à harmonia entre as

quatro partes. Com referências medievais marcantes e instrumental que transita entre o punk

rock e o rock progressivo, apesar de ainda abrigar a simplicidade do punk em detrimento do

instrumental elaborado do progressivo, apresenta desde violões com sonoridade melancólica

até guitarras fortes e combativas, que casam com o texto e o desempenho vocal. Performance,

letra e música dialogam e caminham juntas pelos quatro momentos da canção. Todos esses

elementos aparecem sem substituir o estilo característico, simples e pouco elaborado

instrumentalmente, construído pela banda durante a carreira.

Em relação ao cenário em que o álbum foi composto e gravado, como já

relatamos, trata-se do conturbado e instável segundo ano do governo Fernando Collor de

Mello (1991). O Plano Collor já estava em vigor, portanto as cadernetas de poupança e contas

corrente já estavam congeladas e a crise econômica já estava instalada. O eleitor estava

insatisfeito, a mídia tecia graves críticas, a oposição aproveitava a situação para conquistar

adeptos e mesmo os partidos de situação evitavam demonstrar grande apoio ao presidente, já

que um intenso desencanto tomava conta de todos os setores políticos e sociais. Poucos meses

mais tarde a CPI iniciou as investigações e a partir de então a ideia de impeachment se

cristalizou. Era, portanto, o momento de eclosão da crise política que desencadeou a queda do

primeiro presidente brasileiro eleito por voto direto após o longo período de ditadura.

Em suma, “Metal Contra as Nuvens” é um relato musical da desilusão e

desesperança trazidas pelas controversas medidas do começo do governo Collor, que atingiu a

sociedade e reverberou na produção musical. A insegurança econômica, a crise política e

social, são relatadas de maneira romanceada e ilustradas com os elementos fantásticos do

imaginário medieval. Como em outros momentos da história nacional, quando a produção

musical e cultural circunda os acontecimentos nos mais diferentes campos da vida social,

aqui, temos mais um exemplo de interação dos bens simbólicos culturais com a realidade

política. No terceiro e último tópico do presente capítulo, analisamos a canção “O Teatro dos

Vampiros”, cujas representações sociais nos apresentam outro viés do momento político que o

Brasil atravessou naquele ano de 1991.

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3.3. O TEATRO DOS VAMPIROS: UMA ANÁLISE DA CANÇÃO DE 1991

Quinta música do disco, com 3:36 minutos de duração, “O Teatro dos

Vampiros”65 foi, juntamente com “O Mundo Anda Tão Complicado”, uma das canções mais

populares do álbum “V” (1991). Além da versão de estúdio, a canção foi ainda gravada em

duas versões ao vivo, no “Acústico MTV” (1999), cuja gravação também integrou o especial

duplo “Música Para Acampamentos” (1992), e no também duplo “Como é que se diz eu te

amo” (2000). No especial “Acústico MTV” (1999), gravado em janeiro de 1992, Renato

Russo explica a ideia que deu origem à música. Essa explicação nos dá um ponto de partida

para a análise que se segue.

Agora um segredo para vocês. Eu não sei se vocês perceberam, mas... Era na época daquela novela [Vamp]66, que estava fazendo sucesso – acho que ainda está fazendo sucesso, porque eles alongaram. Tem essa crise do país e tudo. Então, o que rola é que a gente fez essa música. Essa foi a primeira letra. Bonfá fez a música, eu fiz a letra, e depois a gente juntou tudo. E era para ser sobre a TV. E o nome da música é O Teatro dos Vampiros.67

Em sua versão de estúdio, “O Teatro dos Vampiros” apresenta um instrumental

fundamentalmente lento, próximo das baladas pop, com forte inclinação comercial no plano

harmônico melódico. É tocada basicamente por violões∕guitarras, baixo e bateria, e ao fundo

em alguns trechos acompanha uma orquestra de cordas não tão marcante quanto em “Metal

Contra as Nuvens”. Por essa razão, foi uma canção amplamente tocada nas rádios, pela

facilidade de aceitação que esse tipo de composição tem. É uma das canções do disco

responsáveis pela veiculação em rádio do disco e também com maior apelo entre o público

jovem, haja vista que a letra circunda o cotidiano juvenil do período. Diferente de “Metal

Contra as Nuvens” e sua crítica política e econômica, principalmente, com metáforas que

aludem às figuras medievais, aqui vemos uma canção de letra mais acessível cujo cenário é

basicamente social, abordando os efeitos da crise generalizada nos jovens.

O apelo comercial está ainda no título e sua referência à televisão, presente nas

iniciais e na associação com a telenovela “Vamp”, um dos grandes sucessos da Rede Globo 65 In: LEGIÃO URBANA. V. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1991. 1 disco (49:50 min). Faixa 05 (03:36 min). 66 Telenovela brasileira transmitida pela Rede Globo entre julho de 1991 e fevereiro de 1992, cujos personagens eram vampiros. (N.A.) 67 RUSSO, 1992. In: LEGIÃO URBANA. Acústico MTV. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1999. 1 disco (76:33 min). Faixa 06 (4:58 min).

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na década de 1990. É curioso notar que o título traz uma série de diferentes referências, mas

não perde a coesão com o restante do disco, já que traz também uma conotação medievalesca

ao referir-se à figura maravilhosa do vampiro. O teatro é ainda uma alusão aos grandes teatros

europeus, palco de famosas óperas e apresentações artísticas populares. Na Idade Média, o

teatro era, talvez, uma das mais importantes formas de entretenimentos disponíveis, fazendo

parte de praticamente qualquer história (literária, cinematográfica, etc.) que se desenrola na

Idade Média. De maneira geral, o título da canção se une aos outros títulos do disco, o que

reforça nossa análise de um álbum coeso. Sobre a canção e a fama melancólica do disco,

Renato Russo explica:

O Bonfá chegou com O Teatro dos Vampiros que é uma música pop, mas é uma música lenta (...) Entraram coincidências, na época eu estava lendo muito sobre a Idade Média, sobre “templários”... A gente é uma banda, quer dizer, cada um traz um pouco da sua coisa. Por um determinado motivo, todo mundo trouxe coisas que tinham aquela vibração. 68

Na fala do letrista, percebemos que a composição de um disco era um

processo compartilhado que envolvia todos os membros da banda. Por opção, as canções

ganharam uma conotação de desesperança. Todas as letras foram escritas após a composição

instrumental, que em sua maioria já tinham uma sonoridade melancólica relatada pelos

membros da banda, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, pois grande parte das composições

foram entregues prontas para que fosse acrescentada a letra. Seguindo a tendência daqueles

anos que estavam presentes nas canções instrumentais, Renato Russo escreveu todas as letras

visando, em suas palavras, “pegar uma experiência recente minha – que foi essa coisa de

mexer com substâncias que são perigosas (...) e escrever sobre isso. E tentar como letrista

colocar dentro das músicas essa experiência para ser um retrato daquele momento”69.

Isto posto, conseguimos visualizar com maior clareza as representações sociais

presentes na letra que aqui estudamos. Nesse caso, é dado ao artista o encargo de representar

o público jovem consumidor. Quanto às representações, concluímos que os agentes culturais

são e possuem, simbolicamente, “as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das

quais (...) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da

classe” (CHARTIER, 2002, p. 183). Em outras palavras, para a produção de bens simbólicos

culturais o artista abriga a prerrogativa de poder discursar em função de determinado grupo.

68 RUSSO, 1994. In FRÓES, Marcelo. Renato Russo Entrevistas MTV. Rio de Janeiro: MTV, 2006. (143 minutos). 69 RUSSO, 1994. In FRÓES, Marcelo. Renato Russo Entrevistas MTV. Rio de Janeiro: MTV, 2006. (143 minutos).

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Numa visão total, a canção é um relato da experiência jovem na transição entre

as décadas de 1980 e 1990. Associa a experiência pessoal da banda com uma perspectiva

geral social das múltiplas crises. Desde o primeiro álbum, a Legião Urbana assumiu um papel

de porta-voz da juventude que consumia sua música. Nesse caso, no quinto disco, a banda

continuava a compartilhar experiências com o público, o que reforçava a identificação. “O

Teatro dos Vampiros” é mais uma das canções que mescla a temática subjetiva – de

inquietação e incertezas juvenis – com o cenário político nacional, este que por sua vez,

reflete no primeiro e o determina. Optamos por dividi-la em quatro partes, sendo a segunda o

refrão, que é repetido no final (quarta parte). A introdução instrumental é curta e simples, sem

grandes arranjos. A primeira parte apresenta duas estrofes:

Sempre precisei de um pouco de atenção ∕ Acho que não sei quem sou ∕ Só sei do que não gosto ∕ E destes dias tão estranhos ∕ Fica a poeira se escondendo pelos cantos. Este é o nosso mundo ∕ O que é demais nunca é o bastante ∕ E a primeira vez é sempre a última chance ∕ Ninguém vê onde chegamos ∕ Os assassinos estão livres, nós não estamos.

Na primeira estrofe, percebemos a inconsistência da fase jovem associada à

insegurança do segundo ano de governo Collor. Entendemos que as primeiras frases ilustram

a problemática dos primeiros anos da fase adulta, clima que surge em diferentes momentos da

canção: “Acho que não sei quem sou ∕ Só sei do que não gosto”. As duas últimas, indicam o

desgosto por toda a crise que o começo da década de 1990 trouxe: “E destes dias tão estranhos

∕ Fica a poeira se escondendo pelos cantos”. A última frase pode ainda aludir aos problemas

políticos e denúncias de corrupção que começavam a surgir.

A segunda estrofe, com a juventude ainda em foco, é encerrada com uma frase

que entendemos ser uma representação do retorno à democracia que se soma ao desencanto de

um primeiro governo democrático considerado ruim (“Ninguém vê onde chegamos”). Em

seguida, aparece uma crítica à falta de liberdade, embora a ditadura tenha acabado, acentuada,

se fizermos uma leitura associativa aos anos de ditadura, pela falta de punição de criminosos

militares (“Os assassinos estão livres, nós não estamos”). Instrumentalmente, essa primeira

parte da canção é lenta (balada) e constante. A forma como é tocada e cantada permanece a

mesma nas duas estrofes, sem grandes variações ou vocais diferenciados. Esta é uma música

curta e objetiva, sem longos trechos instrumentais.

A segunda parte (refrão) da canção contém duas estrofes e é cantada

novamente ao final (quarta parte) com uma pequena alteração na letra. No plano instrumental,

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a mudança é pequena e mantém o ritmo constante. Aqui, a crise refletida nos jovens é mais

aparente, bem como o fantasma da ditadura:

Vamos sair, mas não temos mais dinheiro ∕ Os meus amigos todos estão procurando emprego ∕ Voltamos a viver como há dez anos atrás ∕ E a cada hora que passa envelhecemos dez semanas. Vamos lá, tudo bem – eu só quero me divertir ∕ Esquecer dessa noite, ter um lugar legal p’ra ir ∕ Já entregamos o alvo e a artilharia ∕ Comparamos nossas vidas ∕ E esperamos que um dia ∕ Nossas vidas possam se encontrar.

A economia instável e o problema do desemprego estão representados nas duas

primeiras frases da primeira estrofe. As medidas econômicas do Plano Collor não foram

suficientes para conter as oscilações da inflação o que, por conseguinte, refletia nos preços e

na geração de empregos. Em seguida, o medo da ditadura que terminara poucos anos antes e

as primeiras crises da vida adulta: “Voltamos a viver como há dez anos atrás ∕ E a cada hora

que passa envelhecemos dez semanas”. A segunda estrofe traz ainda uma curta representação

militar (“Já entregamos o alvo e a artilharia”). O medo do retorno da ditadura e das liberdades

cerceadas aparece em todo o disco, bem como em entrevistas com os membros da banda.

Como um fenômeno recente que os atingiu diretamente durante a adolescência, a falta de

liberdade era um assunto recorrente e a ditadura militar criticada reiteradas vezes.

Durante toda a carreira, a experiência com o governo militar foi abordada. No

disco “Música para Acampamentos” (1992), a performance da canção “Baader-Meinhof

Blues” 70, originalmente gravada no álbum “Legião Urbana” (1985), ilustra a violência

policial que os jovens dos grupos punk rock vivenciaram. Na introdução, Renato Russo

simula um diálogo entre jovens perseguidos e um policial:

[Jovem] “Ei, ei! Olha lá! Acho que aquele cara ‘tá seguindo a gente! Ei cara, vai mais rápido, eles ‘tão seguindo a gente! Po, eu sei que a gente não fez nada, mas eles ‘tão seguindo a gente! Olha lá! Cara, entra pra lá, entra pra lá!” [Policial] “Sai do carro, garoto! Mão na cabeça!” [Jovem] “Po, a gente não fez nada!” [Policial] “Sai do carro, garoto!” [Jovem] “Po, o quê que é isso, o quê que é isso, cara! Para!”

70 LEGIÃO URBANA. Música para Acampamentos. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1992. 2 discos (90:34 min). Disco 1. Faixa 07 (04:57 min).

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[Policial] “Documento, porra! Não quero saber! Que papo é esse? Quietinho ai! Muito quietinho ai, porra! Cadê, cadê, cadê a maconha, porra?!” [Jovem] “Cara, a gente não fuma nem nada! Que papo é esse, cara? Po! Po! Deixa a menina, cara! Deixa a menina, cara! O quê que é isso, porra?”

A canção, de maneira geral, através de um relato que o próprio Renato Russo

diz ter sido extraído da vida dos jovens brasilienses, expõe a realidade das grandes cidades e

que muitas vezes é retratada na televisão. Dessa maneira, o compositor parecer ter

identificado na ação terrorista do grupo alemão “Baader-Meinhof”71 que recebia como

resposta a repressão policial, uma realidade próxima da deles, cuja perseguição da polícia

agredia a liberdade de expressão, qual seja política, cultural ou social. Essa violência,

apropriada como arte pela indústria do cinema, representaria um cotidiano de comodismo

social perante a realidade grosseira e cruel:

A violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais ∕ Você passa dia e noite sempre vê apartamento acesos ∕ Tudo parece ser tão real, mas você viu esse filme também ∕ Andando nas ruas, pensei que podia ouvir ∕ Alguém me chamando, dizendo meu nome. Já estou cheio de me sentir vazio ∕ Meu corpo é quente, estou sentindo frio ∕ Todo mundo sabe, ninguém quer mais saber ∕ Afinal, amar ao próximo é tão démodé. E essa justiça desafinada, é tão humana e tão errada ∕ Nós assistimos televisão também ∕ Qual é a diferença? ∕ Não estatize meu sentimento ∕ Para seu governo o mesmo estado é independente.

A última estrofe tenta explicar que, embora o costume excessivo de assistir

televisão seja alienante, ainda há uma parte do espectador que assimila e interpreta as

informações da mídia de maneira crítica. Essa composição atesta o poder da mídia em exercer

controle na vida social cotidiana do homem comum, embora não atinja de forma igual todos

os indivíduos, haja vista as múltiplas leituras de mundo defendidas por Roger Chartier (2002).

A canção questiona ainda a diferença entre os dois grupos, cidadãos comuns e jovens letrados,

já que os últimos, embora também tenham acesso à televisão, mantêm uma postura não

alienada e seletiva em relação às informações que recebe.

Partindo para a terceira parte da canção “O Teatro dos Vampiros”, temos mais

uma vez a mensagem em torno das dificuldades enfrentadas pelos jovens adultos, sobretudo

71 Baader-Meinhof: grupo terrorista alemão de extrema-esquerda fundado na década de 1970. Originário do movimento estudantil de Berlim, o grupo protestava, principalmente, contra questões sociais não somente alemãs, mas também as que consideravam de alcance internacional como a Guerra do Vietnã (1959-1975) e as violações dos Direitos Humanos. Até a sua dissolução, no ano de 1998, os integrantes do grupo sofreram constantemente com a perseguição da polícia alemã. (N.A.)

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num período de crise. No plano instrumental, este trecho se diferencia dos outros e a orquestra

de cordas surge um pouco mais evidente.

Quando me vi tendo de viver comigo apenas e com o mundo ∕ Você me veio como um sonho bom ∕ E me assuntei. Não sou perfeito ∕ Eu não esqueço ∕ A riqueza que nós temos ∕ Ninguém consegue perceber ∕ E de pensar nisso tudo, eu, homem feito ∕Tive medo e não consegui dormir.

Com vocais marcantes, transmite a ideia de insegurança trazida pela

independência da vida adulta: “Quando me vi tendo de viver comigo apenas e com o mundo”.

Além disso, traz uma breve referência aos relacionamentos: “Você me veio como um sonho

bom”. Este trecho é encerrado com mais uma mensagem de inquietação: “E de pensar nisso

tudo, eu, homem feito ∕ Tive medo e não consegui dormir”. Vocais e letra dialogam, como nos

outros trechos e, apesar de a canção manter um ritmo calmo e constante, este terceiro trecho

se destaca pelo vocal e instrumental diferenciados que acompanham e demonstram afinidade

com o texto.

O refrão é repetido com uma pequena alteração na letra que na primeira estrofe

não altera o sentido. Por fim, a última estrofe que antes era encerrada com “Comparamos

nossas vidas ∕ E esperamos que um dia ∕ Nossas vidas possam se encontrar”, dá lugar a uma

frase de indiferença:

Vamos sair, mas estamos sem dinheiro ∕ Os meus amigos todos estão procurando emprego ∕ Voltamos a viver como há dez anos atrás ∕ E a cada hora que passa envelhecemos dez semanas. Vamos lá, tudo bem – eu só quero me divertir ∕ Esquecer dessa noite, ter um lugar legal p’ra ir ∕ Já entregamos o alvo e a artilharia ∕ Comparamos nossas vidas ∕ E mesmo assim, não tenho pena de ninguém.

No “Acústico MTV” (1999), a canção é tocada apenas por violões, bateria e

pandeiro meia-lua. A orquestra de cordas é suprimida e o ritmo torna-se um pouco mais lento

e melancólico. Os vocais seguem o padrão da gravação em estúdio e não há participação da

plateia como em outras canções do mesmo especial. No disco “Como é que se diz eu te amo”

(2001), a canção é tocada com arranjo semelhante ao do “Acústico MTV” (1999), utilizando

apenas dois violões, sem acompanhamento da bateria e do pandeiro meia-lua. A diferença fica

a cargo da participação da plateia que canta junto e acompanha a canção com palmas,

demonstrando mais uma vez como a performance ao vivo de uma canção é uma prática

coletiva que muitas vezes associa artista e público, resultando em uma experiência de escuta

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diferente. Aqui, é possível perceber como a identificação do público com essa canção é

intensa e como o público reage à execução desta.

Se comparada à primordialmente política e econômica “Metal Contra as

Nuvens”, temos aqui uma canção de conteúdo mais acessível e comercial, tanto no quesito

instrumental quanto textual, de fácil assimilação e identificação do jovem. Relata o momento

da emancipação e da entrada na fase adulta, e que se soma ao difícil panorama de crise

política e econômica que o país atravessava. Sob uma perspectiva social, abordando a visão

do jovem, a canção consegue retratar uma série de problemáticas comuns aos jovens adultos

do começo dos anos 1990: desemprego, problemas financeiros, solidão, insegurança política

com a democracia recém restaurada.

Em conclusão, “O Teatro dos Vampiros” é no disco “V” (1991) a responsável

por apresentar um viés primordialmente social do desencanto com a Era Collor (1989-1992),

reflexo da má gestão e das controversas medidas econômicas do então presidente. Nela,

percebemos os sentimentos presentes no cotidiano jovem, resultados de um momento de

variadas crises: desilusão com a situação atual, medo de um retorno ao passado, desesperança

quanto ao futuro. Apresenta uma leitura daquele período complementar à apresentada por

“Metal Contra as Nuvens”, reiterando nosso entendimento de um disco coeso e cujas

representações aludem de diferentes maneiras ao cenário social, político e econômico da

transição entre as décadas de 1980 e 1990.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Naturalmente, é necessário que essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível, suscetível de agregar, no caminho, uma multiplicidade de novos tópicos, e aberta a todas as surpresas. (...) O explorador sabe muito bem, previamente, que o itinerário que ele estabelece, no começo, não será seguido ponto a ponto. Não ter um, no entanto, implicaria o risco de errar eternamente ao acaso. A diversidade dos testemunhos históricos é, já tive a oportunidade de indicar, quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca, pode e deve informar sobre ele. (BLOCH, 1996, p. 79)

A possibilidade de se utilizar tudo o que o homem toca como fonte histórica

impulsiona muitos historiadores a se aventurarem pela pesquisa com base em aspectos que

compõem a cultura e a identidade de um povo. A música, enquanto parte integrante dessa rede

pode ser apreendida como representação que nos relata um viés específico acerca da realidade

vivida e da qual faz parte.

Esta pesquisa surgiu do interesse em desvendar de que maneira se deu a

repercussão do curto governo Fernando Collor de Mello na juventude do final da década de

1980 e início da década de 1990. Para isso, optamos por analisar o álbum “V” (1991) da

banda Legião Urbana devido, dentre outras coisas, à identificação do jovem com o grupo em

questão e o histórico do mesmo em compor a respeito do panorama político do país.

Estudos a respeito deste singular período da história brasileira tendem a

apresentar uma abordagem econômica ou política e, por vezes, incluir aspectos concernentes

ao marketing e à publicidade presentes na performance política de Collor, aspectos estes

também trabalhados por nós. Quanto ao viés da produção cultural, a escassez de estudos com

essa leitura – no que se refere ao período supracitado – nos incentivou a explorar esse campo

de pesquisa e tentar mostrar como essa interação entre política, cultura e sociedade ocorre em

múltipla contribuição. De uma maneira geral, a produção de bens simbólicos dialoga com os

acontecimentos no plano político e econômico, sobretudo aqueles que reverberam no plano

social, situação típica dos períodos de crise e∕ou transição.

A ampliação das possibilidades de pesquisa permite que o historiador hoje

caminhe entre essas diferentes linhas de investigação buscando nas mais diversas fontes,

importantes referências para um entendimento da totalidade de determinado recorte estudado.

Embora sejam campos complementares da vida social, somar cultura e política em uma

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análise coesa é um desafio que tentamos atravessar na presente dissertação, dando o devido

peso para cada aspecto. As relações sociais e seus desdobramentos constituem importantes

ferramentas para a investigação histórica que aqui propomos. Autores como Roger Chartier

(2002), um dos precursores da História Social tal qual conhecemos hoje, já avaliava essa

interação entre os diferentes campos históricos como complementares e importantes para o

estudo dos diferentes sentidos da vida em sociedade.

Daí as tentativas para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meada das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles. (CHARTIER, 2002, p. 177)

Destarte, utilizando um componente cultural cujo público-alvo era basicamente

jovem adulto, buscamos analisá-lo tendo em perspectiva um ambiente de crise política e

econômica refletida no campo social e que resultou no que conveniamos chamar de

“desencanto”. Para desenvolver esta pesquisa, utilizamos como metodologia de análise das

canções o conceito de representação para compreender o elemento textual, proposto por

Chartier (2002) e discutido por autores como Sandra Jatahy Pesavento (2008) e Carlo

Ginzburg (2006), associado à ideia de performance de que trata autores como Simon Frith

(1996) e Thomas Turino (2008), visando expandir a análise para além do texto, a fim de

apresentar um entendimento expandido da canção.

Ao optarmos por trabalhar a performance, buscamos fugir do lugar-comum em

que muitas pesquisas que utilizam a canção como fonte histórica se encontram. Entendemos

que letra, música e performance não se dissociam e, se investigada a canção em sua

totalidade, é possível um entendimento mais amplo e completo da mesma, bem como do

cenário histórico de que faz parte. Assim, embora não assumimos o mérito de analisar as

minúcias técnicas do fazer musical, tentamos alcançar um resultado coerente e diferenciado,

que possa contribuir de alguma forma para a compreensão tanto da nossa fonte primária, as

canções, quanto do recorte temporal, o governo Collor, escolhidos.

Dividimos nosso trabalho em três capítulos, cada um com suas subdivisões. No

primeiro, intitulado “Indústria Cultural, Juventude e Ditadura”, pavimentamos o caminho

teórico para a investigação de nosso objeto de estudo, a banda Legião Urbana e as canções de

seu disco “V” (1991). Nele, debatemos sobre as perspectivas da indústria cultural, através da

análise dos principais teóricos da cultura de massas, e suas implicações. A importância dessa

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discussão reside na preocupação em trazer um debate sólido a respeito de um produto cultural

de massas, numa sociedade de massas em plena eclosão de uma crise generalizada. A Legião

Urbana, embora apresente uma obra crítica e com conteúdo rico, encontra-se no cerne de uma

grande gravadora e é, portanto, um produto cultural comercial.

Debatemos ainda o trajeto político nacional, passando pela ditadura militar e a

redemocratização. No caso da última, apresentamos uma discussão com a finalidade de

possibilitar a construção de um entendimento claro sobre o surgimento do encanto, que mais

tarde cedeu espaço para a desilusão. Foi este o momento que a cidadão brasileiro exteriorizou

um sentimento de esperança e um desejo de mudança, gestados durante mais de duas décadas

sob um governo militar sem o aparelho democrático do voto direto. A esperança quebrada

com a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em março de 1985, ganhou novo fôlego

com a Constituição de 1988, que rege as diretrizes das eleições diretas para presidente

realizadas em 1989, sendo transferida para o então candidato Fernando Collor de Mello. No

último tópico deste capítulo, apresentamos um histórico da banda Legião Urbana, onde

discutimos sua formação, suas influências e, por último, a produção e algumas linhas gerais a

respeito do disco que utilizamos na nossa análise, o Álbum “V” (1991). Neste tópico,

preparamos o leitor para as análises que se seguem nos capítulos II e III, onde aprofundamos

no exame do disco e suas canções.

No Capítulo II, “Política e Mídia: onde as duas se encontram”, trabalhamos o

governo Collor, em seus aspectos mais gerais, e nos concentramos em mostrar as confluências

entre ele e a mídia, bem como entre a Legião Urbana e a mídia. Partimos do princípio de que

Collor era a síntese do mito político, que por vezes era “humanizado”, abrigando as

características mais importantes de um performer político. A relação entre os dois principais

personagens do nosso trabalho, Collor e Legião Urbana, com os meios de comunicação de

massa, é marcante e um dos principais pontos de encontro entre eles. Na sequência,

apresentamos o exame das canções com conteúdo subjetivo e representações medievais.

As canções presentes no segundo capítulo abrigam referências basicamente de

ordem pessoal dos membros da banda, principalmente Renato Russo. Confluem temas como o

problema da AIDS e dos vícios, os relacionamentos amorosos e seus conflitos. Apesar disso,

aparecem inúmeras alusões ao universo mítico medieval, que trabalhamos ainda no terceiro,

já que trata-se de uma importante presença ao longo de todo o disco. A intenção, além de

investigar as inúmeras referências e habituar o leitor com a linguagem da obra inserindo-o no

mundo medievalesco, foi de abrir caminho para o terceiro e último capítulo, onde foram

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analisadas as canções com representações da Era Collor, que aparecem romanceadas em

referências medievais e∕ou subjetivas.

Conforme já explicado, buscando um entendimento completo das canções e da

atuação política de Collor, avaliamos aspectos concernentes à performance, musical e

política, no Capítulo III deste trabalho, intitulado “Musicalidade e Performance: a

importância do agir e a música como prática coletiva”. Neste capítulo, procuramos trabalhar

os múltiplos aspectos que compõem uma canção, todos eles relevantes para a compreensão da

maneira na qual a música se liga a seu contexto de produção. Explicando sobre o processo

criativo de composição das músicas de um álbum, Renato Russo (1989) disse que:

O processo criativo é um processo lento. Enquanto bolamos as músicas, já começamos a pensar no que dizer na letra. Essa música tem a cara de quê? A música começa na bateria e no baixo, e começamos a tentar encaixar palavras que combinem com a música. Letra é complementação e grande parte da força da letra está na música. (RUSSO, 1989 Apud ASSAD, 2000, p.199)

Tal declaração reafirma a importância dos outros elementos (instrumental,

vocal, etc.) que integram a canção. Fizemos aqui a análise das canções “Teatro dos

Vampiros”, que apresenta o cotidiano do jovem brasileiro perante a crise, e “Metal Contra as

Nuvens”, e seus aspectos concernentes aos reflexos na sociedade da política e dos planos

econômicos do governo Collor. A perspectiva trabalhada foi a do desencanto – ou decepção –

com o breve governo, haja vista todo o contexto apresentado nos capítulos anteriores.

Em uma perspectiva global, se considerarmos o álbum “V” (1991) como uma

obra fechada cujas canções se completam, cada uma desempenha ali sua função para o que

acreditamos ser um produto de referências calculadas. Cada representação presente nele

aparece por uma opção dos membros∕compositores da banda, já que acompanham a vibração

daqueles dias. As referências medievais, além de fazerem parte do corpus teórico do letrista

Renato Russo, é um aspecto recorrente em obras de rock progressivo. Nas músicas, elas

surgem ainda como crítica e menção à figura espetacular e performática de Fernando Collor

de Mello, considerando que ele assume a função de um mito salvador análogo às personagens

bíblicas religiosas.

Em conclusão, compreendemos que as duas canções, “Metal Contra as

Nuvens” e “O Teatro dos Vampiros” apresentam vieses complementares quanto ao governo

Fernando Collor de Mello (1989-1992), cada qual com sua contribuição, e ilustram o diálogo

entre produção de bens simbólicos e realidade inserida. A primeira nos aproxima da crise

econômica e política, trazendo-nos representações do desencanto com a figura do presidente e

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suas medidas financeiras que atingiram grande parte da população brasileira. A segunda traz

uma perspectiva social, resultado das múltiplas crises, e complementa a primeira já que nos

apresenta a face social jovem daquele período.

Quando optamos por trabalhar este tema, era sabido que problematizar o

conteúdo de um álbum, relacionando-o a um complicado contexto político, sem desconsiderar

seus diversos componentes e utilizando de uma metodologia do fazer histórico, seria um

grande desafio neste processo. Em casos assim, corre-se o risco de apresentar uma análise que

privilegie um ou outro elemento em detrimento dos demais, o que na maioria das vezes

prejudica o resultado final. Ao buscarmos um estudo da performance, percebemos que é

possível esmiuçar a explicação de uma letra relacionando-a à música e ao desempenho, de

maneira a enriquecer a análise sem, no entanto, arriscar-se por um trabalho técnico e que foge

à alçada do investigador histórico. Esta pesquisa nos possibilitou construir um sentido

ampliado na análise do produto musical dentro da perspectiva de pesquisa histórica.

Os percalços comuns a todo e qualquer trabalho acadêmico surgiram e

possibilitaram que vislumbrássemos novas vertentes para a presente pesquisa que, esboçada

de determinada maneira, encontrou formas não esperadas de caminhar ao longo de sua

execução. Algumas de nossas suposições iniciais, quando optamos por trabalhar tal tema,

permaneceram no campo das hipóteses ou foram substituídas. Outras informações surgiram,

ajudando a sustentar nossas hipóteses iniciais. De maneira minimamente bem sucedida, nosso

trabalho pretende contribuir para o entendimento da canção, enquanto fonte histórica, em sua

rica totalidade, onde instrumental, textual e performático se desenvolvem em mútua

contribuição e em debate com os panoramas históricos.

Reafirmamos, com o percurso atravessado nos três capítulos desta pesquisa,

que a produção cultural em determinado momento nos fornece uma visão particular e rica a

respeito dele. São fontes primárias de um campo histórico fértil e que, concordando com a

acepção de Marc Bloch (1996) de fonte histórica, se formuladas as questões corretas,

abastecem a pesquisa em História Social de discussões produtivas. A Legião Urbana, como

produtora de bens simbólicos, atuou naquele começo de década como agente histórico e

abrigou em suas canções um relato singular do desencanto generalizado que toldou a

sociedade brasileira, resultado de um decepcionante primeiro governo eleito por via direta no

auge de nossa reconstrução democrática.

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ANEXOS

5.1. Anexo 1: Documento de censura da canção “Faroeste Caboclo”

Fonte: ODILA, Fernanda; NERY, Natuza. Na transição democrática, a censura atuava pela moral e os bons costumes. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, 2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/10/1362449-na-transicao-democratica-a-censura-atuava-pela-moral-e-os-bons-costumes.shtml. Acesso em: 13/02/2014.

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5.2. Anexo 2: LEGIÃO URBANA. V. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1991. 1 disco (49:50 min). Capa e contracapa.

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5.3. Anexo 3: Capa da Revista “Veja” de 23 de março de 1988.

Fonte: VEJA. Collor de Mello: o caçador de marajás. São Paulo: Editora Abril, 23 de março de 1988. nº 12. ano 20. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_23031988.shtml. Acesso em: 18/11/2014.

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ARTIGOS DE JORNAL

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FONTES

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LEGIÃO URBANA. Acústico MTV. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1999. 1 disco (76:33 min).

LEGIÃO URBANA. A Tempestade. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1996. 1 disco (60:07 min).

LEGIÃO URBANA. Dois. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1986. 1 disco (47 min).

LEGIÃO URBANA. Como é que se diz Eu Te Amo. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 2001. 2 discos (126:49 min).

LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1985. 1 disco (37:09 min).

LEGIÃO URBANA. Música para acampamentos. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1992. 2 discos (90:34 min).

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LEGIÃO URBANA. O Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1993. 1 disco (50:52 min).

LEGIÃO URBANA. Que País É Este? (1978-1987). Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1987. 1 disco (35:52 min).

LEGIÃO URBANA. Uma Outra Estação. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1997. 1 disco (60:01 min).

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RAUL SEIXAS. Krig-Ha, Bandolo! Rio de Janeiro: Philips, 1973. (28:52 min)

RENATO RUSSO. Equilíbrio Distante. Rio de Janeiro: EMI Music Brasil, 1995. 1 disco (65:12 min).

WEBSITES

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Discos do Brasil: http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/indice.htm

Sony Music Brasil – EMI Music Brasil: http://www.sonymusic.com.br

Legião Urbana: http://www.legiaourbana.com.br

Renato Russo: http://www.renatorusso.com.br/