o desejo e sua interpretação 1-01-12-novembro-1958

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Jacques Lacan

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  • Jacques Lacan O desejo e sua interpretao 12 de Novembro de 1958

    Trao Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanlise http://www.traco-freudiano.org

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    Lio I

    12 de Novembro de 1958

    Ns vamos falar neste ano do desejo e de sua interpretao.

    Uma anlise uma teraputica, dizem. Digamos um tratamento, um tratamento psquico que leva a diversos nveis do psiquismo, sobre o que, de incio, foi o primeiro objeto cientfico de sua experincia, o que ns chamaremos os fenmenos marginais ou residuais: o sonho, os lapsos, o dito espirituoso (eu insisti nisso ano passado) sobre sintomas, por outro lado, se ns entrarmos neste aspecto curativo do tratamento, sobre sintomas no sentido amplo, enquanto que se manifestando no sujeito por inibies, que so constitudas em sintomas e sustentadas por estes sintomas.

    Por outro lado esse tratamento modificador de estruturas, dessas estruturas que se chamam neuroses ou neuro-psicoses, que Freud, de incio, na realidade, estruturou e qualificou como "neuro-psicoses de defesa". A psicanlise intervm para tratar em diversos nveis com essas diversas realidades fenomenais na medida em que pem em jogo o desejo. , nomeadamente, sob essa rubrica do desejo, como significativos do desejo, que os fenmenos que chamei agora h pouco, como residuais, marginais, como foram primeiramente apreendidos em Freud nos sintomas que ns vemos descritos de uma extremidade a outra do seu pensamento. a interveno da angstia, se ns disso fizermos o ponto chave da determinao dos sintomas, mas s enquanto tal atividade, que vai entrar no jogo dos sintomas, erotizada, digamos melhor, isto , presa no mecanismo do desejo. Enfim, o que significa mesmo o termo defesa a respeito das neuro-psicoses, se no for defesa contra o qu? Contra alguma coisa que no ainda outra coisa seno o desejo.

    E, portanto, essa teoria analtica, no centro da qual suficiente indicar que a noo de libido se situa - que no outra coisa seno a energia psquica do desejo -, alguma coisa, se se trata de energia, no que - eu j o indiquei en passant, lembrem-se, na poca, a metfora da usina hidroeltrica -, certas conjunes do simblico e do real so necessrias para que subsista a noo de energia. Mas eu no quero a me deter nem descansar. Essa teoria analtica, portanto, se apoia inteiramente sobre essa noo de libido, sobre a energia do desejo. Eis que desde algum tempo ns a vemos cada vez mais orientada no sentido de alguma coisa que aqueles mesmos que sustentam essa nova orientao articulam, eles prprios, bem conscientemente, ao menos para os mais conscientes dentre eles, havendo tomado emprestado a Fairbairn (ele o escreve vrias vezes, porque ele no cessa de articular nem de escrever nomeadamente na obra que se chama Psychoanalytic Studies of the Personality 1 ), que a teoria moderna da anlise mudou alguma coisa do eixo que tinha dado de incio Freud, fazendo ou considerando que a libido no mais para ns pleasure-seeking, como se exprime Fairbairn, que ela object-seeking. Isso quer dizer que o Sr. Fairbairn o representante mais tpico desta tendncia moderna.

    O que significa essa tendncia, orientando a funo da libido em funo de um objeto que lhe seria de certa forma predestinado, algo ao que ns j havamos feito aluso cem vezes, e da qual eu lhes mostrei sob mil formas as incidncias na tcnica e na teoria

    1 FAIRBAIRN, W.R.D.: A revised psychopathology of the psychoses and psychonevroses, I.J.P. Vol. XXII, pp. 250- 279.

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    analtica, com o que acreditei vrias vezes poder lhes designar nisto como trazendo consigo os desvios prticos, alguns no sem incidncias perigosas.

    A importncia do que quero lhes assinalar para lhes fazer abordar hoje o problema, , em suma, esse velamento da prpria palavra "desejo", que aparece em toda a sua manipulao da experincia analtica, e, de certa forma, que impresso, no diria de renovao, diria de deslocamento, ns produzimos ao reintroduzi-lo. Eu quero dizer que, [se] ao invs de falar de libido ou de objeto genital, ns falamos de desejo genital, nos parecer, talvez, imediatamente, muito mais difcil de considerar como evidente que o desejo genital e sua maturao implicam, por si s, este tipo de possibilidade, ou de abertura, ou de plenitude de realizao sobre o amor, do qual parece que tenha se tornado dessa forma doutrinal de uma certa perspectiva da maturao da libido - tendncia, realizao e implicao quanto maturao da libido, que parecem, assim mesmo, to surpreendentes, que elas se produzem no seio de uma doutrina que foi precisamente a primeira no somente a pr em relevo, mas at mesmo a dar conta disto que Freud classificou sob o ttulo de um Ravalement de la vie amoureuse 2 . , a saber, que se o efeito do desejo parece levar consigo um certo quantum de efeito amoroso, justa e precisamente, e mui freqentemente, de um amor que se apresenta personalidade como conflitual, de um amor que no se confessa, de um amor que se recusa mesmo a ser confesso.

    Por outro lado, se ns reintroduzimos essa palavra "desejo" a, onde termos como "afetividade", como "sentimento positivo" ou "negativo" so empregados correntemente num modo de aproximao vergonhosa, se assim pudermos dizer, das foras ainda eficazes, e, nomeadamente, para a relao analtica, para a transferncia - me parece que pelo simples fato do uso desta palavra, uma clivagem se produzir que ter, por si s, alguma coisa de esclarecedora.

    Trata-se de saber se a transferncia constituda, no mais por uma afetividade ou sentimentos positivos ou negativos, com o que os termos comportam de vago e de velado, mas trata-se, e aqui nomeamos o desejo experimentado por um s termo, desejo sexual, desejo agressivo perante o analista, que nos aparecer de imediato e ao primeiro olhar. Estes desejos no so tudo na transferncia, e, por este fato mesmo, a transferncia precisa ser definida por outra coisa que no as referncias mais ou menos confusas da noo positiva ou negativa de afetividade enfim, de forma que, se ns pronunciamos a palavra desejo, o ltimo benefcio deste uso pleno o que ns nos perguntaremos: O que o desejo?

    No ser uma questo qual ns queremos ou poderemos responder. Simplesmente, se eu no estivesse aqui ligado pelo que eu poderia chamar de encontro urgente que tenho com minhas necessidades prticas e experimentais, eu me teria permitido uma interrogao sobre o tema do sentido desta palavra desejo, junto queles que foram mais qualificados para valorizar o uso, a saber, os poetas e os filsofos. Eu no o farei. Primeiro porque o uso da palavra desejo, a transmisso do termo e a funo do desejo na poesia alguma coisa que, eu diria, ns reencontraremos depois de um tempo, se conduzirmos bastante longe nossa investigao. Se for verdade, como o que ser a continuao do desenvolvimento da minha apresentao neste ano, que a situao profundamente marcada, arrumada, rebitada a uma certa funo da linguagem, a uma certa relao do sujeito ao significante, a

    2 FREUD, S.: (1912) ber die allgemeinste Erniedrigung des Liebeslebens, in Beitrge zur Psychologie des Liebeslebens, segunda parte, G.W. pp. 78-91. Trad. Fr. In La vie sexuelle, Paris, 1969, P.U.F., pp. 55-65. Trad. Bras. In Sobre a tendncia universal depreciao na esfera do amor (Contribuies psicologia do amor II), E.S.B. XI, pp.159-173.

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    experincia analtica nos levar, eu espero, pelo menos, talvez bastante longe nessa explorao, para que ns encontremos todo o tempo para nos ajudar com a evocao propriamente potica que pode ser feita disto, e tambm a entender mais profundamente, no final, a natureza da criao potica em suas relaes com o desejo.

    Simplesmente eu farei notar que as dificuldades no fundo mesmo do jogo de ocultao que vocs vero estar no fundo daquilo que nos descobrir nossa experincia, aparecem j nisto, por exemplo, que precisamente vemos bem na poesia o quanto a relao potica ao desejo se acomoda mal, se assim podemos dizer, da descrio de seu objeto. Eu diria que, a esse respeito, a poesia figurativa - eu evoco quase "as rosas e os lrios" da beleza - tem sempre alguma coisa que s exprime o desejo no registro de uma singular frieza que, por outro lado, a lei, propriamente dita, da evocao do desejo est numa poesia que curiosamente se apresenta como a poesia que chamamos "metafsica", e para aqueles que lem em ingls eu s tomarei a referncia, a mais eminente, dos poetas metafsicos da literatura inglesa, John Donne, para que vocs se refiram a isso para constatar o quanto mui precisamente o problema da estrutura das relaes do desejo que est a evocada em um poema clebre por exemplo, The Extasie 3 e cujo ttulo indica bastante os atrativos, em que a direo se elabora poeticamente, no plano lrico ao menos, a abordagem potica do desejo quando ele buscado, visado ele prprio propriamente falando. Eu deixo de lado isso que seguramente vai muito alm, para presentificar o desejo, o jogo do poeta quando ele se arma da ao dramtica. mui precisamente a dimenso sobre a qual ns teremos que voltar este ano. Eu j o anuncio porque ns j nos tnhamos aproximado disto no ano passado, a direo da comdia. Mas, deixemos os poetas. Eu s os nomeei a a ttulo de indicao liminar, e para lhes dizer que ns os reencontraremos mais tarde, mais ou menos difusamente.

    Eu quero mais ou menos parar no que foi neste lugar a posio dos filsofos, porque acredito que ela foi muito exemplar, do ponto onde se situa para ns o problema. Eu tomei o cuidado de lhes escrever ali em cima esses trs termos[sic], pleasure-seeking e object seeking. Na medida em que elas buscam o prazer, enquanto buscam o objeto assim que desde sempre se colocaram para a reflexo e para a moral - eu entendo a moral terica, a moral que se anuncia em preceitos e em regras, em operaes de filsofos, e sobretudo, especialmente, dizem, de ticos. Eu j lhes indiquei: notem de passagem, afinal de contas, a base de toda moral que poderamos chamar "fisicalista", como poderamos ver, em que o termo tem o mesmo sentido que para a filosofia medieval - falamos de teoria fsica do amor -, no sentido em que precisamente ela oposta teoria exttica do amor.

    A base de toda moral que se expressou at o presente, at um certo ponto na tradio filosfica, retorna, em suma, ao que poderamos chamar a tradio hedonista, que consiste em fazer estabelecer um tipo de equivalncia entre esses dois termos, do prazer e do objeto, no sentido em que o objeto o objeto natural da libido, no sentido em que ele bem feito, afinal de contas, para se admitir o prazer no nvel dos bens buscados pelo sujeito, e at mesmo a recus-lo to logo tenhamos o mesmo critrio ao nvel do soberano bem.

    Essa tradio hedonista da moral uma coisa que seguramente s capaz de cessar de surpreender a partir do momento em que estamos de algum modo engajados no dilogo

    3 DONNE, J. (1573-1631): The Extasie, in Pomes, (trad. J. Fuzier e Y. Denis), ed. Bilinge, Paris, 1962, Gallimard, pp. 172-177. A ortografia original The Ecstasy.

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    da escola, em que ns no percebemos mais seus paradoxos. Pois, afinal de contas, o que haveria de mais contrrio ao que chamamos de experincia da razo prtica, do que esta pretendida convergncia do prazer e do bem? Afinal de contas, se olharmos de perto, se observa-se, por exemplo, o que dessas coisas se mantm em Aristteles, o que que ns vemos elaborar-se? E muito claro, as coisas so muito puras em Aristteles 4 . Seguramente alguma coisa que s consegue realizar essa identificao do prazer e do bem no interior daquilo que eu chamarei uma tica de mestre [une thique de matre], ou alguma coisa cujo ideal lisonjeiro [flatteur], nos termos da temperana ou da intemperana, isto , de alguma coisa que provm do domnio do sujeito em relao aos seus prprios costumes. Mas a inconseqncia desta teorizao totalmente chocante. Se vocs relerem estes textos clebres, que dizem respeito precisamente ao uso dos prazeres, vocs vero que nada entra nesta tica moralizante que [no] seja do registro dessa mestria [matrise], de uma moral de mestre, daquilo que o mestre pode disciplinar. Ele pode disciplinar muitas coisas, principalmente seu comportamento em relao aos seus hbitos, isto , ao manejo e ao uso de seu eu [moi]. Mas para o que do desejo, vocs vero a que ponto Aristteles, ele prprio deve reconhecer - ele muito lcido e muito consciente do que resulta desta teorizao moral prtica e terica - que os epiqumia (epithyma), os desejos se apresentam muito rapidamente para alm de um certo limite que precisamente o limite da mestria e do eu [moi] no domnio do que ele chama nomeadamente a bestialidade. Os desejos so exilados do campo prprio do homem, se verdade que o homem se identifica realidade do mestre, quando se oferece a ocasio at mesmo algo como as perverses. E, por sinal, ele tem uma concepo a este respeito singularmente moderna, do fato de que alguma coisa do nosso vocabulrio poderia ser traduzida pelo que o mestre no saberia ser julgado a respeito disso, o que eqivaleria quase a dizer que no nosso vocabulrio ele no saberia ser reconhecido como responsvel. Estes textos merecem ser lembrados. Vocs se esclarecero recorrendo a eles.

    Ao contrrio dessa tradio filosfica h algum que eu gostaria, no entanto, aqui, de nomear, nomear como, aos meus olhos, o precursor deste algo que creio ser novo, que ns devemos considerar como novo, dentro, digamos, do progresso, no sentido de certas relaes do homem com ele prprio, que aquele da anlise que Freud constitui: Spinoza. Afinal de contas, creio que dele, em todo caso com um acento bastante excepcional podemos ler uma frmula como esta: o desejo a prpria essncia do homem 5 . Para no isolar do incio da frmula sua continuao, acrescentaremos: enquanto que ela concebida a partir de algumas de suas afeces, concebida como determinada e dominada por uma qualquer de suas afeces para fazer alguma coisa.

    J poderamos fazer muito a partir da para articular o que desta forma ainda fica, assim posso dizer, irrevelado eu digo irrevelado, porque, claro, no podemos traduzir Spinoza a partir de Freud ele assim mesmo muito singular. Eu lho dou como testemunho muito singular. Sem dvida, pessoalmente, talvez eu tenha a maior propenso que algum outro, e em tempos idos pratiquei muito Spinoza. E no creio, no entanto, que seja por isto que ao rel-lo a partir da minha experincia me parece que algum que participa da experincia freudiana pudesse encontrar-se to vontade nos textos daquele que escreveu De Servitute

    4 ARISTTELES : tica a Nicmaco.

    5 SPINOZA, Ltique dmontr selon lordre gomtrique et divise en cinq partie. III partie: De la nature et de lorigine des affects, I. (Texte original et trad. B. Pautrat) Paris. Trad. Brasileira: TICA, III Parte: Da origem e da natureza das paixes (Edies de ouro, Coleo Universidade).

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    Humana 6 , e para quem toda realidade humana se estrutura, se organiza em funo dos atributos da substncia divina.

    Mas deixemos esta pista, por ora, de lado, prontos a ela retornarmos. Eu quero lhes dar um exemplo muito mais acessvel, e sobre o qual encerrarei essa referncia filosfica concernente ao nosso problema. Eu o tomei a, no nvel mais acessvel, e at mesmo o mais vulgar do acesso que vocs podem ter disto. Abram o dicionrio do encantador defunto Lalande, Vocabulaire Philosophique, que ainda, devo dizer, em toda espcie de exerccio dessa natureza - aquele de fazer um vocabulrio -, sempre uma das coisas das mais perigosas e ao mesmo tempo das mais frutuosas de tanto que a linguagem dominante em tudo o que problema. Estamos certos de que ao organizar um Vocabulrio, faremos sempre alguma coisa de sugestiva. Aqui, se ns encontrarmos isto em Desejo: Begehren, Begehrung - no intil lembrar o que articula o desejo no plano filosfico alemo - Tendncia espontnea e consciente em direo a uma finalidade conhecida ou imaginada. O desejo se apoia, portanto, na tendncia da qual ele um caso particular e mais complexo. Ele se apoia, por outro lado, vontade (ou volio) daquilo que esta supe a mais: 1 - a coordenao, ao menos momentnea das tendncias 2- a oposio do sujeito e do objeto 3 - a conscincia de sua prpria eficcia 4 - o pensamento dos meios pelos quais se realizar a finalidade desejada [voulue]. Estes lembretes so muito teis. Somente deve-se notar que num artigo que quer definir o desejo h duas linhas para situ-lo em relao tendncia, e que todo esse desenvolvimento se refere vontade. de fato a isto que se reduz o discurso sobre o desejo deste Vocabulrio, com a pequena diferena que a se acrescenta ainda: Enfim, segundo certos filsofos, h ainda na vontade um 'fiat' de uma natureza especial irredutvel s tendncias, e que constitui a liberdade. H eu no sei que ar de ironia nestas linhas! chocante v-lo surgir neste autor filosfico. Em nota: O desejo a tendncia de se procurar uma emoo j sentida ou imaginada, sendo a vontade natural de um prazer (citao de Rauh e Revault dAllones). Esse termo vontade natural tendo todo seu interesse de referncia. Ao que Lalande pessoalmente acrescenta: Esta definio parece muito limitada naquilo que ela no leva suficientemente em conta da anterioridade de certas tendncias em relao s emoes correspondentes. O desejo parece ser essencialmente o desejo de um ato ou de um estado, sem que a seja necessrio, em todos os casos, da representao de carter afetivo dessa finalidade. Eu penso que isto quer dizer do prazer, ou de alguma outra coisa. Seja como for, no deixa, certamente, de apresentar o problema de saber do que se trata, se da representao do prazer, ou se do prazer. Certamente eu no penso que a tarefa do que se opera pela via do Vocabulrio, para tentar condensar a significao do desejo seja uma tarefa simples, ainda mais que talvez a tarefa, vocs tambm no a tero pela tradio, qual ela se revela absolutamente preparada.

    Alm do mais, o desejo, ele a realidade psicolgica rebelde a toda organizao? E, afinal de contas, o seria pela subtrao dos caracteres indicados para ser os da vontade que ns poderemos chegar a nos aproximar do que a realidade do desejo?

    Ns teremos, ento, o contrrio do que ns abandonamos, a no coordenao, mesmo momentnea, das tendncias. A oposio do sujeito e do objeto seriam realmente retiradas. Da mesma forma ns estaramos a numa presena, uma tendncia sem conscincia de sua prpria eficcia, sem pensar nas palavras pelas quais ela realizar a finalidade desejada. Em suma, seguramente, ns estamos a no campo em qual em todo caso a anlise trouxe certas articulaes mais precisas, j que no interior dessas determinaes negativas, a anlise desenha mui precisamente num nvel, nestes seus diferentes nveis, a pulso, enquanto

    6 SPINOZA, op. cit., IV Parte: Da Servido Humana, dito de outro modo, da Fora das Paixes.

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    sendo ela justamente isto: a no coordenao, mesmo momentnea, das tendncias, o fantasma [le fantasme] enquanto introduzindo uma articulao essencial, ou, mais exatamente, uma espcie completamente caracterizada no interior desta vaga determinao da no oposio do sujeito e do objeto. Ser precisamente aqui, neste ano, o nosso objetivo tentar definir o que o fantasma [fantasme], talvez at um pouco mais precisamente que a tradio analtica at aqui chegou a defini-lo.

    No mais, destes ltimos termos do idealismo [e do] pragmatismo que esto aqui implicados, ns reteremos, por enquanto, uma s coisa: muito precisamente o quanto parece difcil situar o desejo e analis-lo em funo de referncias puramente objetais.

    Ns vamos aqui nos deter para entrar, propriamente falando, nos termos aos quais eu penso em articular para vocs o problema da nossa experincia, na medida em que so nomeadamente aqueles do desejo, do desejo e de sua interpretao. J a ligao interna, a ligao de coerncia da experincia analtica do desejo e de sua interpretao, apresenta em si mesma alguma coisa que somente o hbito nos impede de ver o quo subjetivo por si toda interpretao do desejo, e alguma coisa que esteja de certa forma ligada de modo to interno, parece bem, manifestao do desejo. Vocs sabem de que ponto de vista, eu no direi ns samos, ns caminhamos, pois no de hoje que estamos juntos - eu quero dizer que j h cinco anos ns tentamos designar os delineamentos da compreenso de certas articulaes de nossa experincia. Vocs sabem que estes lineamentos vm este ano convergir sobre o problema que pode ser o problema de ponto concursante de todos estes pontos, alguns afastados uns dos outros, dos quais eu quero primeiramente poder preparar sua abordagem.

    A psicanlise - e ns caminhamos juntos ao longo destes cinco anos - a psicanlise nos mostra essencialmente isto que ns chamaremos a tomada do homem dentro do constituinte da cadeia significante que esta tomada ligada ao fato do homem, mas que esta tomada no coextensiva a este fato nesse sentido que o homem fala, sem dvida, mas para falar deve entrar na linguagem e no seu discurso preexistente. Eu diria que esta lei da subjetividade que a anlise pe especialmente em relevo, sua dependncia fundamental da linguagem algo de to essencial que, literalmente, sobre isto desloca toda a psicologia *em si mesmas* [*en eux-mmes*][?].

    Ns diremos que h uma psicologia que est servida, a partir do momento em que poderamos defini-la como a smula dos estudos concernentes ao que poderemos chamar no sentido amplo, uma sensibilidade enquanto funo da manuteno de uma totalidade ou de uma homeostase. Em suma, as funes da sensibilidade em relao a um organismo. Vocs vem que a tudo est implicado, no somente todos os dados experimentais da psico-fsica, mas tambm tudo o que pode trazer, na ordem mais geral, a colocao em jogo de noes de forma quanto a apreenso dos meios da manuteno da constncia do organismo. Todo um campo da psicologia est aqui inscrito, e a prpria experincia sustenta esse campo no qual a pesquisa prossegue.

    Mas a subjetividade de que se trata, na medida em que o homem pego na linguagem, enquanto tomado, quer queira ou no, e que ele a est pego bem alm do saber que tem, uma subjetividade que no imanente de uma sensibilidade, na medida em que aqui o termo "sensibilidade" quer dizer a dupla estmulo-resposta, pela seguinte razo: que o estmulo a dado em funo de um cdigo que impe sua ordem necessidade que deve a se traduzir. Eu articulo aqui a emisso, no de um sinal [signe] que podemos a rigor dizer, ao menos na perspectiva experimental, no ensaio experimental do que chamo o ciclo

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    estmulo-resposta. Pode-se dizer que um sinal [signe] que o meio exterior d ao organismo de ter de responder, de ter de se defender. Se vocs fizerem ccegas na planta do p de um sapo, ele assegura o sinal [signe], ele responde a isto fazendo uma certa distenso muscular, - mas enquanto a subjetividade tomada pela linguagem, h emisso, no de um sinal [signe] , mas de um significante, isto , lembrem bem isto que parece simples: que alguma coisa o significante vale, no como o falamos na teoria da comunicao, alguma coisa vale em relao a uma terceira coisa que este sinal [signe] representa. Ainda bem recentemente pudemos ler isto com trs termos, sendo os termos mnimos: preciso que haja um [cdigo], aquele que entende, bastando vir seguido de um significante no nem preciso falar de emissor, bastando um sinal [signe] e dizer que este sinal [signe] significa uma terceira coisa que ele representa simplesmente. No entanto, a construo falsa, porque o sinal [signe] no vale em relao a uma terceira coisa que ele representa, mas ele vale em relao a um outro significante que ele no .

    Quanto a estes trs esquemas 7 que eu acabei de por na lousa, eu quero lhes mostrar, eu diria no pela gnese, pois vocs no imaginam que se trata a de etapas, se que alguma coisa a possa se encontrar, na ocasio, de etapas efetivamente realizadas pelo sujeito. bem preciso que o sujeito a tome seu lugar, mas no vejam a [etapas no sentido em que] se trataria de etapas tpicas, de etapas [de desenvolvimento], trata-se mais de uma gerao, [e para dizer tudo], de uma anterioridade lgica de [cada um destes esquemas em relao] quele que o segue. O que que representa isto que ns chamaremos D? Para partir de grande D, isto representa a cadeia significante. O que isso quer dizer? Essa estrutura basal, fundamental, submete toda manifestao de linguagem a esta condio de estar regulada por uma sucesso, dito de outro modo, por uma diacronia, por alguma coisa que se desenvolve no tempo. Ns deixamos de lado as propriedades temporais interessadas. Ns talvez precisemos voltar a isso em seu tempo.

    fig. 1 Digamos que seguramente toda a plenitude do tecido temporal, como dizemos, no est em nada implicado. Aqui as coisas se resumem na noo da sucesso, com aquilo que ela j pode trazer e implicar de noo de escanso. Mas ns ainda no chegamos a isto. O nico elemento discreto (isto , diferencial) a base sobre a qual vai se instaurar nosso problema da implicao do sujeito no significante. Isto implica, tendo em vista aquilo que eu acabei de faze-los notar, a saber, que o significante se define por sua relao, seu sentido, e toma seu valor da relao a um outro significante, de um sistema de oposies significantes. Isto se desenvolve em uma dimenso que implica do mesmo movimento e ao mesmo tempo uma certa sincronia de significantes. esta sincronia de significantes, a saber, a existncia de uma certa bateria significante da qual podemos apresentar o problema de saber que ela

    7 Esses esquemas so integrados ao prprio texto em relao aos comentrios.

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    a bateria mnima. Eu tentei me exercitar com esse pequeno problema. Isto no lhes levaria muito longe de sua experincia de saber se depois de tudo podemos fazer uma linguagem com esta bateria que parece ser a bateria mnima, uma bateria de quatro. Eu no creio que isto seja impensvel, mas deixemos isto de lado. claro que, no estado atual das coisas, ns estamos longe de estar reduzidos a este mnimo.

    O importante isto que indicado na linha pontilhada que vem recortar de frente para atrs, cortando-a em dois pontos, a linha representativa da cadeia significante. Isto que representado pela linha pontilhada representa o primeiro encontro no nvel sincrnico, ao nvel da simultaneidade dos significantes. Aqui, [C] a o que eu chamo o ponto de encontro do cdigo. Em outros termos, enquanto a criana se dirige a um sujeito que ele sabe falante, que ele o viu falando, que lhe penetrou de relaes desde o incio de seu despertar luz do dia. enquanto h algo que joga como jogo do significante, como moinho de palavras, que o sujeito tem para aprender muito cedo que a est uma via, um desfile por onde essencialmente devem se reduzir as manifestaes de suas necessidades para serem satisfeitas.

    Aqui, o segundo ponto de cruzamento [M] o ponto onde se produz a mensagem e constitudo por isto: que sempre por um jogo retroativo da seqncia dos significantes que a significao se afirma e se precisa, isto , que s depois [aprs coup] que a mensagem toma forma a partir do significante que est adiante dele, do cdigo que est adiante dele, e sobre o qual, inversamente, ela, a mensagem, enquanto se formula a todo instante, antecipa, d um pique.

    Eu j lhes indiquei o que resulta deste processo. Em todo caso, o que resulta disto e que ressaltado sobre esse esquema, isto, que o que est na origem sob a forma de ecloso da necessidade, da tendncia como dizem os psiclogos, que est a representado no meu esquema, a no nvel deste "isso" [a] que no sabe o que ele , que estando pego na linguagem no se reflete desse emprego inocente da linguagem na qual o sujeito se faz primeiramente discurso resulta disto que, mesmo resumindo as suas formas s mais primitivas de apreenso disto pelo sujeito que est em relao com outros sujeitos falantes, se produz esta alguma coisa na extremidade da cadeia intencional que eu chamei aqui a primeira identificao primria [I], a primeira realizao de um ideal, do qual no podemos nem dizer, neste momento do esquema, que se tratasse de um Ideal do eu [moi], mas que seguramente o sujeito a recebeu o primeiro seing, signum, de sua relao com o outro.

    A segunda etapa do esquema pode encobrir de certo modo uma etapa evolutiva pela simples condio de que vocs no as considerassem nem como definidas. H coisas definidas na evoluo. No no nvel dessas etapas do esquema que essas cesuras se encontram a. Estas cesuras, como em algum lugar Freud o notou, se marcam no nvel do julgamento de atribuio em relao a nominao simples. No disto que eu lhes falo agora, eu virei a isto mais adiante.

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    fig. 2

    Na primeira parte do esquema, e na segunda, trata-se da diferena de um nvel infans do discurso, pois talvez no seja nem necessrio que a criana j fale para que esta marca, esta marca posta sobre a necessidade pela demanda, se exera j ao nvel do choramingar alternante. Isto pode bastar. A segunda parte do esquema implica que, mesmo se a criana ainda no sabe manter um discurso, pelo menos ele j sabe falar e isto vem bem cedo. Quando digo sabe falar, quero dizer que se trata, ao nvel da segunda etapa do esquema, de alguma coisa que vai alm da tomada na linguagem. H, propriamente falando, relao na medida em que h apelo do Outro como presena, este apelo do Outro como presena, como presena sobre fundo de ausncia a este momento assinalado do fort-da que to vivamente impressionou Freud na data que ns podemos fixar em 1915, tendo sido chamado ao lado de um de seus netos que tambm se tornou um psicanalista - eu falo da criana que foi o objeto de observao de Freud.

    Eis o que nos faz passar ao nvel dessa segunda etapa de realizao do esquema, nesse sentido que, aqui, alm do que articula a cadeia do discurso como existindo alm do sujeito e impondo-lhe, queira ele ou no, sua forma alm desta apreenso, se assim podemos dizer, inocente da forma linguajeira pelo sujeito, alguma outra coisa vai se produzir que est ligada ao fato que nesta experincia da linguagem que se funda sua apreenso do Outro como tal, deste Outro que pode lhe dar a resposta, a resposta ao seu apelo, este Outro ao qual fundamentalmente ele pe a questo que ns vemos, nO Diabo enamorado, de Cazotte 8 , como sendo o mugir da forma aterradora que representa a apario do sobre-eu[surmoi], em resposta quele que o evocou numa caverna napolitana: Che vuoi? O que voc quer? A questo colocada ao Outro daquilo que ele quer dito de outro modo, dali onde o sujeito faz o primeiro encontro com o desejo, o desejo como sendo primeiro o desejo do Outro, o desejo, graas ao que ele percebe que ele se realiza como sendo aquele alm em volta de que gira isto, que o Outro far com que um significante ou outro esteja, ou no, na presena da palavra: que o Outro lhe d a experincia de seu desejo ao mesmo tempo como uma experincia essencial, pois at o presente momento era em si que a bateria dos significantes estava a, na qual uma escolha podia ser feita, mas agora na experincia que esta escolha se revela como comutativa, que est ao alcance do Outro fazer com que um ou outro dos significantes esteja a, que se introduzam na experincia, e neste nvel da experincia, os dois novos princpios que vem adicionar-se ao que era antes puro e simples princpio de sucesso implicando este princpio de escolha. Ns temos agora um princpio de substituio, pois - isto essencial - esta comutatividade a partir da qual se estabelece para o sujeito aquilo que eu chamo, entre o significante e o significado, a barra, a saber: que h entre o significante e o significado esta coexistncia, essa simultaneidade que est ao

    8 CAZOTTE, J., Le Diable amoureux (1772), (com uma apresentao de J.L.Borges) Paris, 1978, Retz-Franco Maria Ricci. No Brasil: O Diabo amoroso, So Paulo, Editora Escuta, 1991.

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    mesmo tempo marcada de uma certa impenetrabilidade, quero dizer a manuteno da diferena, da distncia entre o significante e o significado: S/s.

    fig. 3

    Coisa curiosa, a teoria dos grupos tal qual a aprendemos no estudo abstrato dos conjuntos, nos mostra a ligao absolutamente essencial de toda comutatividade com a possibilidade mesma de usar o que eu chamo aqui o sinal da barra, da qual nos servimos para a representao das fraes. Deixemos isso, por enquanto, de lado, sendo uma indicao lateral sobre aquilo de que se trata.

    A estrutura da cadeia significante a partir do momento em que ela efetuou o apelo do Outro, isto , onde a enunciao, o processo da enunciao se superpe, se distingue da frmula do enunciado, exigindo como tal alguma coisa que justamente a tomada do sujeito, tomada do sujeito que era antes inocente, mas que aqui - a nuana est a, no entanto essencial - inconsciente na articulao da palavra a partir do momento em que a comutatividade do significante a se torna uma dimenso essencial para a produo do significado. , a saber, que de uma maneira efetiva, e ecoando na conscincia do sujeito, que a substituio de um significante por um outro significante ser, como tal, a origem da multiplicao destas significaes que caracterizam o enriquecimento do mundo humano.

    Um outro termo que igualmente se desenha, onde um outro princpio, que o princpio de similitude, dito de outra forma, que faz com que no interior da cadeia, em relao ao fato de que na seqncia da cadeia significante, um dos termos significantes ser ou no parecido com o outro, que se exerce igualmente uma certa dimenso de efeito que , propriamente falando, a dimenso metonmica. Eu lhes mostrarei na seqncia que nesta dimenso, essencialmente nesta dimenso, se produzem os efeitos que so caractersticos e fundamentais daquilo que podemos chamar o discurso potico, os efeitos da poesia.

    portanto no nvel da segunda etapa do esquema que se produz isto que nos permite colocar no mesmo nvel que a mensagem, isto , na parte esquerda do esquema, aquilo que a mensagem do primeiro esquema, a apario do que significado do Outro [s(A)] por oposio ao significante dado pelo Outro [S (A)] que, ele, produzido sobre a cadeia, ela pontilhada, j que uma cadeia que no articulada seno em parte, que s implcita, que s representa aqui o sujeito enquanto sendo o suporte da palavra. Eu lhes disse, na experincia do Outro, enquanto que Outro tendo um desejo, que se produz essa segunda etapa da experincia. O desejo [d], desde sua apario, sua origem, se manifesta neste intervalo, esta hincia [bance] que separa a articulao pura e simples, linguajeira da palavra,

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    disto que marca que o sujeito a efetiva alguma coisa dele mesmo que s tem alcance, sentido, somente pela relao com esta emisso da palavra e que propriamente falando aquilo que a linguagem chama seu ser. entre os avatares da sua demanda e aquilo que estes avatares o fizeram se tornar, e, por outro lado, essa exigncia de reconhecimento pelo Outro, que podemos chamar exigncia de amor, no caso, onde se situa o horizonte de ser para o sujeito, do qual trata-se de saber se o sujeito, sim ou no, pode atingi-lo. neste intervalo, nesta hincia, que se situa uma experincia que aquela do desejo, que apreendida primeiramente como sendo aquela do desejo do Outro e no interior da qual o sujeito tem de situar seu prprio desejo. Seu prprio desejo como tal no pode se situar em outro lugar seno neste espao.

    Isto representa a terceira etapa, a terceira forma, a terceira fase do esquema. Ela constituda por isto: que na presena primitiva do desejo do Outro como opaco, como obscuro, o sujeito est sem recursos. Ele hilflos, - Hilflosigkeit - eu uso o termo de Freud em francs, isto se chama o abandono [dtresse] do sujeito. Est a o fundamento daquilo que, na anlise, foi explorado, experimentado, situado como a experincia traumtica.

    fig. 4

    O que Freud nos ensinou depois do caminhar que lhe permitiu situar finalmente, no seu verdadeiro lugar, a experincia da angstia, alguma coisa que no tem nada deste carter, ao meu ver, por certos lados difusos, do que chamamos a experincia existencial da angstia. Se podemos dizer, numa referncia filosfica, que a angstia alguma coisa que nos confronta com o nada, seguramente essas frmulas so justificveis em uma certa perspectiva da reflexo. Saibam que, sobre este assunto, Freud tem o ensinamento articulado, positivo, ele faz da angstia alguma coisa de totalmente situado em uma teoria da comunicao: a angstia um sinal. No no nvel do desejo, se que o desejo deve se produzir no mesmo lugar onde primeiramente se origina, se experimenta o abandono [dtresse], no no nvel do desejo que se produz a angstia. Ns retomaremos este ano atentamente, linha por linha, o estudo de Inibio, Sintoma, Angstia, de Freud. Hoje, nesta primeira lio, no posso fazer outra coisa seno lhes engatilhar alguns pontos maiores para saber reencontr-los em seguida, e nomeadamente este: Freud nos disse que a angstia se produz como um sinal no eu [moi], sobre o fundamento do Hilflosigkeit ao qual ela chamada como um sinal a remediar. Eu sei que vou muito rpido (isto merecer todo um seminrio, que eu lhes fale disso), mas no posso lhes falar de nada se no comeo mostrando-lhes o projeto do caminho que ns temos para percorrer.

    , portanto, ao nvel dessa terceira etapa que intervm a experincia especular, a experincia da relao imagem do outro enquanto fundadora da Urbild do eu [moi], que

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    ns vamos, em outros termos, reencontrar este ano, e utilizar em um contexto que lhe dar uma ressonncia toda diferente, o que ns articulamos no final do nosso primeiro ano concernente s relaes do eu [moi] ideal e do Ideal do eu [moi], na medida em que vamos ser levados a repensar tudo isso nesse contexto a, que a ao simblica, que lhes mostro aqui como essencial. Vocs vo ver qual utilizao ela poder finalmente ter. Eu no fao aluso aqui, unicamente, ao que disse e articulei sobre a relao especular, a saber, a confrontao do espelho, do sujeito com sua prpria imagem: eu fao aluso ao esquema dito O - O, isto , ao uso do espelho cncavo que nos permite pensar a funo de uma imagem real ela mesma refletida, e que no pode ser vista como refletida seno a partir de uma certa posio, de uma posio simblica, que aquela do Ideal do eu.

    Aquilo de que se trata aqui: em uma terceira etapa do esquema ns temos a interveno como tal do elemento imaginrio da relao do eu [moi] [m] ao outro [i(a)] como sendo o que vai permitir ao sujeito completar este abandono [dtresse] na relao com o desejo do Outro, pelo qu? Por alguma coisa que emprestada ao jogo de mestria que a criana, em uma idade eletiva, aprendeu a manusear em uma certa referncia a seu semelhante como um tal - a experincia do semelhante no sentido onde ele olhado, onde ele o outro que lhes olha, onde ele faz jogar um certo nmero de relaes imaginrias dentre as quais, no primeiro plano, as relaes de aparncia marcante, as relaes tambm de submisso e de derrota. por meio disto, em outros termos, como Aristteles diz, que o homem pensa, (deve-se dizer que o homem pensa, no deve-se dizer a alma pensa, mas o homem pensa com sua alma), deve-se dizer que o sujeito se defende, isto que nossa experincia nos mostra com seu eu [moi]. Ele se defende contra este abandono [dtresse], e com este meio que a experincia imaginria da relao ao outro lhe d ele constri alguma coisa que com a diferena da experincia especular, flexiva com o outro. Porque o que o sujeito reflete, no so simplesmente os jogos de presteza, no sua apario ao outro no prestgio e no fingimento, ele mesmo como sujeito falante, e porque o que eu lhes designo aqui [$a] como sendo este local de sada, esse local de referncia por onde o desejo vai aprender a se situar, o fantasma [fantasme]. porque o fantasma, eu o lhes simbolizo, lhes formulo por meio desses smbolos. O $ aqui, eu lhes direi daqui a pouco porque ele barrado como $, isto , o sujeito enquanto falante, enquanto se refere ao outro como olhar, ao outro imaginrio. A cada vez que vocs lidarem com alguma coisa que propriamente falando, um fantasma, vocs vero que ele articulvel nestes termos de referncia do sujeito como falante ao outro imaginrio. isto que define o fantasma e a funo do fantasma como funo de nvel de acomodao, de situao do desejo do sujeito como tal, e bem porque o desejo humano tem esta propriedade de ser fixado, de ser adaptado, de ser coaptado, no a um objeto, mas sempre essencialmente a um fantasma.

    Isto um fato de experincia que pode durante muito tempo permanecer misterioso, assim mesmo o fato de experincia, no esqueamos, que a anlise introduziu no decorrer do conhecimento. S a partir da anlise que isto no uma anomalia, alguma coisa de opaca, alguma coisa da ordem do desvio, da inclinao, da perverso do desejo. a partir da anlise que at mesmo tudo isso que pode na ocasio se chamar inclinao, perverso, desvio, at mesmo delrio, concebido e articulado numa dialtica que aquela que pode, como eu acabei de lhes mostrar, conciliar o imaginrio com o simblico. Eu sei que no lhes levo, para comear, por uma vereda fcil, mas se no comeo imediatamente a pr nossos termos de referncia, o que que eu vou conseguir fazer? Indo lentamente, passo a passo, para lhes sugerir a necessidade de uma referncia, e se no lhes trago isto que eu chamo o grafo, de imediato, ser necessrio assim mesmo que o traga para vocs como o

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    fiz no ano passado, pouco a pouco, isto , de uma maneira que ser ainda mais obscura. A est, portanto, porque eu comecei por a. No entanto, eu no lhes digo que lhes tornei a experincia mais fcil.

    para isto que, agora, para alivi-la, esta experincia, eu gostaria de lhes dar, de imediato, pequenas ilustraes. Estas ilustraes, eu tomarei uma, primeiro, e verdadeiramente, no nvel mais simples, j que se trata das relaes do sujeito ao significante: a menor e a primeira coisa que podemos exigir de um esquema ver para que ele pode servir, a propsito do fato de comutaes.

    Eu me lembrei de alguma coisa que havia lido h algum tempo no livro de Darwin sobre a expresso no homem e no animal 9 , e, devo dizer, me divertiu bastante. Darwin conta que um certo Sidney Smith que, suponho, devia ser um homem da sociedade inglesa do seu tempo, e do qual ele diz isto - coloca uma questo, Darwin -, ele diz: Eu ouvi Sidney Smith, numa noitada, dizer tranqilamente a seguinte frase: Ele me voltou aos ouvidos que a cara velha Lady Cock a cortou. Na realidade overlook quer dizer que o vigia no a detectou, sentido etimolgico. Overlook usual na lngua inglesa. No h nada correspondente no nosso uso. por isto que o uso das lnguas ao mesmo tempo to til e to nocivo, porque nos dispensa fazer esforos, de fazer essa substituio de significantes na nossa prpria lngua, graas qual ns podemos chegar a visar um certo significado, pois trata-se de trocar todo o contexto para obter o mesmo efeito em uma sociedade anloga. Isto poderia querer dizer o olho passou acima dele. E Darwin se maravilhou haver sido absoluta e perfeitamente claro para cada um, mas sem nenhuma dvida isto queria dizer que o diabo a havia esquecido. Quero dizer que ele havia esquecido de lev-la ao tmulo - o que parece haver sido neste momento, no esprito do ouvinte, seu lugar natural, at mesmo desejado. E Darwin deixa verdadeiramente o ponto de interrogao aberto: Como ele fez para obter este efeito?, diz Darwin, a est, eu sou realmente incapaz de diz-lo! Notem que ns podemos lhe ser gratos, ao prprio, de marcar a experincia que ele faz a, de um modo especialmente significativo e exemplar, do seu prprio limite na abordagem desse problema. Que ele haja pego de um certo modo o problema das emoes, dizer que a expresso das emoes est a assim mesmo interessada justamente por causa do fato de que o sujeito no manifesta estritamente nenhuma, que ele diga isto, placidely, , talvez, levar as coisas um pouco longe demais. Em todo caso Darwin no o faz, ele est realmente muito espantado dessa alguma coisa que deve ser levada ao p da letra, como sempre. Quando ns estudamos um caso no devemos reduzi-lo, tornando-o vago. Darwin diz: todo mundo entendeu que o outro falava do diabo, sendo que o diabo no estava em lugar algum. E isto que interessante, que Darwin nos diga que o arrepio do diabo passou sobre a assemblia.

    Tentemos agora entender um pouco. Ns no vamos nos demorar sobre as limitaes mentais prprias de Darwin ns obrigatoriamente viremos a, mas no de imediato. O que h de certo que h desde a primeira abordagem alguma coisa que participa de um conhecimento marcante, porque afinal no h necessidade de haver colocado os princpios dos efeitos metafricos, isto , da substituio de um significante por um significante dito de outro modo, no h necessidade de exigir de Darwin que tenha disto o pressentimento para que ele se aperceba de imediato que o efeito, em todo caso, vem primeiramente do

    9 DARWIN, C., LExpression des motions chez lhomme et les animaux, (trad. S. Pozzi e R. Benot) Paris, 1874, C. Reinwald e Cie Libraires-diteurs. A passagem que citada se refere autobiografia de Charles Darwin (trad. J.M. Goux) Paris, 1985, Belin.

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    que ele nem mesmo articula (do fato de que uma frase que comea quando dizemos Lady Cock, termine normalmente por ill, doente) eu ouvi dizer, no entanto, que h algo que no gira redondo. Portanto a substituio alguma coisa (parece que se espera uma notcia que diz respeito sade da velha dama, pois sempre de sua sade que nos ocupamos primeiramente quando trata-se de velhas damas) substituda por alguma coisa diferente, ou at mesmo irreverenciosa, por certos ngulos. Ele no diz nem que ela est morrendo nem to pouco que ela se porta muito bem ele diz que ela foi esquecida.

    Ento, aqui, o que que intervm para este efeito metafrico, a saber, em todo caso alguma outra coisa que diria se overlook podia ser esperado? enquanto que ele no esperado que substitudo por um outro significante, que um efeito de significado se produz que novo, que no est nem na linha do que espervamos nem na linha do inesperado. Se este inesperado no estava justamente caracterizado como inesperado, alguma coisa original que de certo modo deve ser realizado no esprito de cada um segundo os seus ngulos prprios de refrao. Em todos os casos h isto que a abertura de um novo significado a este algo que faz, por exemplo, com que Sidney Smith passe, no conjunto, por um homem de esprito, isto , no se expressa por clichs.

    Mas por que diabo? Se ns nos referirmos ao nosso pequeno esquema, isto nos ajudar, no entanto, bastante. para isto que serve. Se fazemos esquema, para us-los. Podemos por sinal chegar ao mesmo resultado sem ele, mas o esquema de certa forma nos guia, nos mostra muito evidentemente o que se passa a no real. Isto que se presentifica um fantasma propriamente dito, e por que mecanismos? aqui que o esquema tambm pode ir mais longe. O que permite, eu diria, uma espcie de noo inocente: que as coisas so feitas para expressar alguma coisa que, em suma, se comunicaria, uma emoo, como dizemos, como se as emoes, em si mesmas, no apresentassem a si prprias ss, de forma que outros problemas, a saber, o que elas so, isto , se elas j no precisam, elas, de comunicao.

    Nosso sujeito, nos dizem, est a perfeitamente tranqilo, isto , ele se apresenta de certa forma no estado puro, a presena de sua fala sendo seu puro efeito metonmico, quero dizer, sua fala enquanto fala em sua continuidade de fala. E nesta continuidade de fala precisamente, ele faz intervir isto, a presena da morte enquanto que o sujeito pode ou no lhe escapar, isto , dizer o enquanto que ele evoca esta presena de alguma coisa que tem o maior parentesco com a vinda ao mundo do prprio significante - eu quero dizer que, se h uma dimenso onde a morte (ou o fato de que no h mais disto), pode ser ao mesmo tempo diretamente evocado, e ao mesmo tempo velado, mas em todo caso, encarnado, se tornar imanente a um ato, bem a articulao significante. , portanto, na medida em que esse sujeito que fala to facilmente da morte, fica bem claro que ele no quer especialmente muito bem a esta dama. Mas, por outro lado, a perfeita placidez com a qual ele fala disto, implica justamente que a esse respeito ele dominou o seu desejo, na medida em que esse desejo, como em Volpone 10 , poderia se expressar pela amvel frmula: Feda e morra! Ele no diz isto, ele articula simplesmente, serenamente, que o que nos vale, que ao nvel este destino, cada um por sua vez, a por um instante esquecido, - mas isto, se assim posso me expressar, no o diabo - a morte, isto vir qualquer dia! E da mesma forma esta personagem, ele se coloca como algum que no teme se igualar com aquela da qual ele fala, de se pr no mesmo nvel, sob o golpe da mesma falta, da mesma legalizao terminal pelo mestre absoluto aqui presentificado.

    10 JONSON, B. (1605), V olpone ou le Renard. (trad. Maurice Castelain) Paris, 1990, Les Belles Lettres.

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    Em outros termos, aqui o sujeito se revela no lugar daquilo que velado da linguagem como a tendo este tipo de familiaridade, de completude, de plenitude do manejo da linguagem que sugere o qu? Justamente alguma coisa sobre o que eu quero terminar, porque o que faltava a tudo o que falei do meu desenvolvimento em trs etapas, para que aqui o mbil daquilo que eu queria articular para vocs seja completo.

    No nvel do primeiro esquema ns temos a imagem inocente. inconsciente, claro, mas uma inconscincia que no demanda seno passar ao saber. No esqueamos que na inconscincia essa dimenso de ter conscincia, mesmo em francs, implica essa noo. Ao nvel da segunda e terceira etapas do esquema, eu lhes disse que tnhamos um uso muito mais consciente do saber. Eu quero dizer que o sujeito sabe falar e que ele fala. o que ele faz quando chama o Outro, e, no entanto, a, propriamente falando, que se encontra a originalidade do campo que Freud descobriu e que ele chama o inconsciente, isto , este algo que pe sempre o sujeito a uma certa distncia do seu ser e que faz com que precisamente esse ser no o alcance jamais. E por isso que necessrio, que ele no possa fazer outra coisa seno atingir seu ser nesta metonmia do ser no sujeito que o desejo.

    E por qu? Porque no nvel onde o sujeito est engajado, entrado ele mesmo na fala e por a na relao ao Outro como tal, como lugar da fala, h um significante que falta sempre. Por qu? Porque um significante. Esse significante est especialmente delegado relao do sujeito com o significante. Esse significante tem um nome, o falo.

    O desejo a metonmia do ser no sujeito: o falo a metonmia do sujeito no ser. Ns voltaremos a isto. O falo, na medida em que ele elemento significante subtrado cadeia da fala, enquanto engajando toda relao com o outro. A est o princpio limite que faz com que o sujeito, sem dvida, e na medida em que est implicado na fala, caia sob o golpe do que se desenvolve em todas as conseqncias clnicas sob o termo complexo de castrao.

    O que sugere toda espcie de uso, eu no direi puro, mas talvez mais impuro das palavras da tribo 11 , toda espcie de inaugurao metafrica a partir do momento em que ela se faz audaciosa e no desafio daquilo que a linguagem vela sempre, e aquilo que ela vela sempre, ao ltimo termo, a morte. Isto tende sempre a fazer surgir, a fazer sair esta figura enigmtica do significante faltante, do falo que aqui aparece, e, como sempre, claro, sob a forma que chamamos diablica, orelha, pele, ou at mesmo o prprio falo, e se neste uso, fica clara a tradio do jogo do esprito ingls, deste algo de contedo que no dissimula menos o desejo violento, mas este uso basta por si s para fazer aparecer no imaginrio, no outro que a est como espectador, no pequeno a, esta imagem do sujeito na medida em que marcado por esta relao ao significante especial que se chama o interdito. Aqui, no caso, enquanto viola um interdito, enquanto mostra que para alm dos interditos que fazem a lei das linguagens (no se fala assim das velhas damas), h assim mesmo um senhor que ouve falar o mais placidamente no mundo e que faz aparecer o diabo, e ao ponto em que o caro Darwin se pergunta como diabos ele fez isto!

    11 MALLARM, S., Le Tombeau dEdgar Poe in OEuvres compltes, Posies (dition critique prsente par Carl Paul Barbier et Charles Gordon Millon), Paris, 1983, Flammarion, p. 272.

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    Eu lhes deixarei isto hoje. Ns retomaremos a prxima vez um sonho em Freud, e tentaremos ali aplicar nossos mtodos de anlise, o que, ao mesmo tempo, nos permitir situar os diferentes modos de interpretao.

    Lio I