o crime como evolução da moral e do direito
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O CRIME COMO EVOLUÇÃO DA MORAL A PARTIR DE ÉMILE DURKHEIM:
PARA UMA NOVA TEORIA DA MORAL E DO DIREITO
Rafael de Barros 1
RESUMO: Ao longo da história da criminologia, o crime é entendido e explicado sob um
olhar negativo, no sentido de que este é interpretado como um acontecimento prejudicial que
deve ser extirpado da sociedade. Segundo a teoria clássica do crime, este deve ser entendido
como prejudicial e anormal devendo, portanto, ser extinto do ambiente social. O objetivo deste
trabalho é demonstrar de que modo Durkheim em sua obra define o crime como sendo este um
fato social normal e útil, o apontando como responsável pela evolução no campo moral,
provocando, devido a sua teoria funcionalista do crime, uma “virada criminológica” no sentido
de que rompe com a explicação negativa do crime, atribuindo a este mais que caráter normal,
um caráter útil e essencial ao funcionamento da sociedade, que cristaliza seus preceitos morais
na face do direito, que assim como a moral é rompido e modificado por ações que o
ultrapassam. A realização do trabalho se deu a partir de uma metodologia de pesquisa
bibliográfica. Tal trabalho pretende mais que demonstrar a teoria durkheimiana do crime,
demonstrar também a utilidade do crime como uma nova forma de pensar a evolução moral e a
sua cristalização na forma de direito.
Palavras-Chave: Evolução Moral; Crime; Fato Social.
1 Rafael de Barros é licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) em
2013.
INTRODUÇÃO
Ao longo da história da criminologia, o crime é entendido e explicado sob um olhar
negativo, no sentido de que este é interpretado como um acontecimento que deve ser extirpado
da sociedade. O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a forma como Émile
Durkheim provoca uma “virada criminológica” ao propor o entendimento de tal fato como um
acontecimento saudável e útil a vida e funcionamento da sociedade.
O crime tal como definido por Durkheim possui um caráter normal e útil, sendo tal
utilidade ligada às mudanças ocorridas no campo moral, uma vez que o crime é a transgressão à
norma imposta socialmente pela consciência coletiva, este provocaria mudanças na consciência
coletiva a fazendo mudar para uma nova forma de consciência, gerando deste modo, um novo
imperativo moral a ser seguido pelos indivíduos que compõem a sociedade.
O crime assim entendido possui um caráter indispensável à vida social sendo,
indispensável a qualquer tipo de sociedade ações que violando a consciência coletiva vão contra
os imperativos morais estabelecidos pela sociedade, gerando devido seu caráter contrario
sansões a tais ações, que num outro determinado estagio de desenvolvimento da mesma
sociedade pode ser aceito ou até mesmo desejado. Desta forma o crime serve como um gatilho
que dispara sobre a consciência coletiva que possui preceito moral um despertar para que tais
valores, uma vez transgredidos, sejam ultrapassados possibilitando sua evolução.
Os preceitos morais assim como a maior parte dos imperativos presentes na consciência
coletiva exercem sobre os indivíduos que compõe a sociedade uma coerção que os obriga a agir
moldando seus comportamentos e pensamentos para um padrão imposto socialmente. Uma vez
imposto, o imperativo pela consciência coletiva, este pode receber aceitação ou não por parte
dos indivíduos, deste modo o individuo que possua comportamentos contrários ou inadequados
aos impostos pela consciência coletiva sofre sansões e punições, sendo qualificado como
desviante, anormal ou criminoso. A consciência coletiva exerce sobre os indivíduos que
compõe a sociedade uma coerção, sendo tal coerção mais forte quanto mais presente for a
aceitação do grupo aos imperativos, deste modo, quanto maior a força e extensão da consciência
coletiva, menor será a aceitabilidade do grupo a ações contrarias as socialmente impostas, que
serão interpretadas como criminosas.
O crime sob a perspectiva durkheimiana, que apresenta a ação criminosa como fato
social constituinte da sociedade, pode ser entendido de duas maneiras distintas, a primeira
corresponde à interpretação de Durkheim (2007) do crime como um fato social normal e útil a
vida social. A segunda interpretação do crime refere-se a visão do crime como fato social
patológico, ou seja, o assim classificado crime faz parte de uma ordem de fatos que não
possuiriam funcionalidade e não contribuiriam de modo algum para o funcionamento normal da
sociedade, sendo portanto anormais.
O crime como um fato social normal e útil é apresentado por Durkheim (2007) como o
responsável pela mudança dos preceitos morais existentes na consciência coletiva provocando
sua evolução. Para o autor o crime como motor da moral seria a antecipação dos preceitos
morais que estariam por vir e que se cristalizariam na forma do direito, deste modo, o crime ou a
ação delituosa condenada em determinado período no desenvolvimento da sociedade, poderia
em outro momento ser um imperativo moral a ser seguido.
Deste modo, a partir da utilização do método de pesquisa bibliográfico, analisando as
obras de Durkheim em que este expressa suas ideias e teorias sobre o crime, o objetivo deste
trabalho é não somente apresentar a teoria criminológica de Durkheim, mas principalmente
analisar de que modo esta se relaciona com a evolução da moral, a provocando e a antecipando.
1. TEORIA CLÁSSICA DO CRIME
Segundo Durkheim (2007) o crime é entendido pela consciência comum como sendo
todo ato que se contrapõe as normas impostas pela sociedade, devendo por se contrapor a ela ser
extirpado da vida social. O crime assim definido é entendido pela teoria clássica, de modo que
esta apresenta o crime como fator anormal devendo ser tratado, uma vez que prejudicaria o
funcionamento normal e saudável da sociedade. Portanto, a definição clássica necessita ser
abandonada, segundo Durkheim (2007), uma vez que esta não atende a realidade e a verdadeira
face do evento, é necessário que se entenda o crime abandonando as noções pré-científicas que
gerariam conclusões equivocadas e errôneas.
[...] Todavia partindo do fato de que o crime é detestável, o senso comum
conclui erradamente que ele deveria desaparecer por completo. Com seu
simplismo costumeiro, não concebe que uma coisa que repugna possa ter
uma razão de ser útil. (DURKHEIM, 2007, p. XII)
O crime aqui é entendido como ação que fere os sentimentos da coletividade presentes
na consciência da maior parte dos membros de que é composta a sociedade, ações estas que,
mais que ferir sentimentos fere preceitos morais que foram pela força coercitiva que exercem
cristalizadas na forma do direito. Portanto, a definição de crime como ação que fere não só
preceitos morais, mas normas do direito diferem a definição de crime da definição de desvio,
que consiste segundo Giddens (2005, p.173) “como uma não conformidade com determinado
conjunto de normas que são aceitas por um número significativo de pessoas em uma
comunidade ou sociedade “, cabendo a definição de crime ações que ferem sentimentos morais
mas que devido sua natureza ferem e ultrapassam normas que foram impostas pelo grupo aos
indivíduos na forma de direito, portando, crime e desvio se diferem segundo Guiddens.
O desvio e o crime não são sinônimos, embora, em muitos casos, se
sobreponham. O conceito de desvio é bem mais amplo que o de crime, o qual
se refere apenas a uma conduta não-conformista que infringe uma lei. Muitas
formas de comportamento desviante não são sancionadas pela lei. Assim, os
estudos sobre desvio podem examinar fenômenos tão diversos como os
naturalistas (nudistas), a cultura rave e os New Age travellers. (GUIDDENS,
2005, p. 173)
O crime assim definido fora entendido e interpretado ao longo da história, sendo o
criminologista italiano Cesare Lombroso, aquele que cria na década de 1870 uma das primeiras
explicações para o fenômeno criminológico. A definição de Lombroso tem como base a teoria
biológica, para o criminologista o criminoso ou o individuo que comete a ação delituosa seria
portador de uma serie de características biológicas observáveis que o qualificariam como tal. No
entanto, o cientista aceitava a ideia de que a ação criminosa pudesse ser influenciada pela
sociedade, mas mesmo nestes casos haveria uma explicação biológica, uma vez que o individuo
seria portador de características biológicas e físicas que por estarem em desarmonia com a
constituição biológica normal dos indivíduos que vivem na sociedade impossibilitariam sua
sociabilidade normal, portanto segundo Guiddens:
[…] Lombroso aceitava a ideia de que a aprendizagem social pudesse
influenciar o desenvolvimento do comportamento criminoso, porém
considerava que a maioria dos criminosos fosse biologicamente degenerado
ou defectiva. Por seu desenvolvimento como seres humanos não ter sido
completo, apresentavam uma tendência a agir em desarmonia com a
sociedade humana. As ideias de Lombroso tornaram-se completamente
desacreditadas, mas opiniões semelhantes foram varias vezes sugeridas.
(GUIDDENS, 2005, p. 174)
Mesmo sendo aceita pela disciplina e servir de referência para inúmeros pensadores e
teorias, a teoria biológica de explicação do crime e classificação de indivíduos como normais e
anormais elaborada por Lombroso, fora de acordo com a história da criminologia abandonada,
abrindo espaço para a criação de novas formas de interpretação do crime, como por exemplo a
interpretação psicológica do crime.
A teoria psicológica do crime, assim como a teoria biológica tende a explicar o
fenômeno criminológico como ação individual, que não se relaciona ou é influenciado por
fatores sociais deste modo, ambas as teorias tendiam a explicar o crime por seus agentes e por
suas características individuais, sejam elas biológicas ou psicológicas, não considerando a
sociedade como causa de tais ações, ignorando a influência desta sobre os indivíduos
considerados pelas teorias acima citadas como criminosos e anormais. Deste modo a teoria
psicológica do crime acreditava que o individuo comete ações qualificadas pela sociedade como
criminosas por ser portador de uma serie de estados mentais anormais que o levariam a cometer
tais ações, assim Guiddens (2005, p174) afirma que na teoria psicológica do crime
“Enfatizaram-se os traços distintivos dos criminosos – incluindo “oligofrenia” e “ degeneração
moral”. Hans Eysenck (1964) sugeriu que os estados mentais anormais seriam hereditários e
poderiam predispor um indivíduo ao crime ou criar problemas no processo da socialização.”
Deste modo, a teoria psicológica afirma que os estados mentais serias estados disposicionais
que comprometeram a capacidade de sociabilidade do individuo, o levando a agir de forma
contraria as formas de agir impostas socialmente, sendo devido a crontrariedade de suas ações
as normas impostas considerado criminoso.
No entanto, mesmo que a teoria psicológica aparentemente apresente argumentos e uma
explicação satisfatória para o ato criminoso, esta apresenta uma serie de falhas, dentre elas
destaca-se o argumento de que a teoria psicológica não seria capaz de abarcar todos os fatos em
sua formula, deixando escapar a totalidade de ocorrências, e por consequência não seria uma
formula valida a todos os casos, mas na melhor das hipóteses, uma possível explicação para a
maior parte deles, Guiddens (2005) aponta a incapacidade de explicação da teoria psicológica:
As teorias psicológicas são capazes de, na melhor das hipóteses, explicar
apenas alguns aspectos do crime. Enquanto alguns criminosos podem possuir
características de personalidade distintas do restante da população, é muito
improvável que a maioria dos criminosos assim as tenham. Com a variedade
de tipos de crime existentes, é inadmissível supor que aqueles que os
cometem possuam características psicológicas em comum. (GUIDDENS,
2005, p. 175)
A incapacidade de explicação das teorias clássicas como a biológica e a psicológica
serviram para impulsionar uma nova forma de explicação do fenômeno criminológico como no
caso da teoria funcionalista do crime, que indo contra a tradição da disciplina que, tendiam a
explicar o fenômeno pelo seu agente, ignorando qualquer fator exterior existente, como por
exemplo o fator social, apresenta uma explicação voltada a um olha sociológico do crime, uma
vez que esta entende os fatores exteriores ao individuo, como a sociedade, como sendo
determinantes de suas ações, portanto, para a teoria funcionalista do crime, diferentemente das
teorias clássicas, o crime só pode ser entendido como fato social, uma vez que quem o comete é
um ser social que sofre influencia da vida em sociedade, Guiddens (2005) explica a visão
funcionalista do crime e a ligação entre a definição de crime e as instituições sociais, portanto:
A velha criminologia positivista esteve sujeita a numerosas críticas por parte
de gerações posteriores de estudiosos. Eles defendiam a obrigatoriedade de
que qualquer relato satisfatório da natureza do crime fosse sociológico, já
que a definição do crime depende das instituições sociais de uma sociedade.
Com o tempo, a atenção deslocou-se das explicações individualistas sobre o
crime para as teorias que enfatizam o contexto social e cultural no qual
ocorre o desvio. (GUIDDENS, 2005, p. 176)
Deste modo, o crime é entendido como fato social, portanto, as teorias clássicas do
crime que tendem a explicar a ação criminosa por fatores individuais, sejam biológicos ou
psicológicos, não podem ser consideradas explicações verdadeiras ou satisfatórias uma vez que
estas ignoram o fator social, sendo a teoria funcionalista do crime a única a proporcionar uma
explicação satisfatória para o fenômeno, pois esta coloca o fator social como o principal
responsável pela ação individual.
A teoria funcionalista da criminologia da qual é partidário Émile Durkheim, mais que
produzir explicação satisfatórias as ações tidas como criminosas, atribui a tais ações caráter de
funcionalidade e utilidade, que para o autor seriam indispensáveis a vida saudável e normal
da sociedade. O crime e consequentemente seu agente são definidos por Durkheim como
normais e uteis a vida social, sendo o crime um fato social útil e normal e seu agente um ser
social que desempenha papel fundamental ao funcionamento normal da sociedade, portanto:
Desse ponto de vista, os fatos fundamentais da criminologia apresentam – se
a nós sob um aspecto de todo novo. Contrariamente às ideias correntes, o
criminoso não mais aparece como um ser radicalmente insociável, como uma
espécie de elemento parasitário, corpo estranho e inassimilável, introduzido
no seio da sociedade¹²; ele é um agente regular da vida social. (DURKHEIM,
2007, p. 73)
Deste modo, mais que propor uma nova forma de explicação do crime, Durkheim
promove uma “virada criminológica”, uma vez que retira de foco o individuo tão presente nas
explicações clássicas, e coloca a sociedade como fator principal para o entendimento do crime.
No entanto, mais que elaborar uma explicação sui generis do crime o autor atribui a tal
fenômeno caráter útil o colocando como motor que moveria mudanças no campo da moral.
2. DURKHEIM E O FATO SOCIAL
Positivista, Durkheim é o responsável pela formulação do método sociológico, que
consiste segundo o autor na investigação dos fatos sociais, fatos estes que diferem dos demais
fatos que tem sua ocorrência na sociedade, uma vez que estes possuem características
distintivas que dão seu caráter social, sendo esta ordem de fatos definidas pelo autor como o
objeto próprio da sociologia.
A definição de sociologia formulada por Durkheim (2007) como a ciência que estuda e
tem por objeto os fatos sociais, implica na necessidade de definição de tal objeto, portanto se
faz necessário definir conceitualmente o que é o fato social, para a partir de tal definição,
compreender de que modo o crime se encaixa nesta ordem de fatos.
Para o autor os fatos sociais possuem uma serie de características que o distinguem dos
demais fatos que possuem ocorrência na sociedade, cabendo ao cientista social fazer a
distinção, portanto para Durkheim a definição mais correta de fato social seria a de que os fatos
sociais são:
[…] uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais:
consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo,
e que são dotados de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se
impõe a ele. (DURKHEIM, 2007, p. 03).
Durkheim em sua obra “As regras do método sociológico”, apresenta três características
principais que distinguem os fatos sociais dos demais, a saber: 1) os fatos sociais exercem sobre
os indivíduos uma força coercitiva que os obriga a agir determinando suas ações as
padronizando para uma forma de ação socialmente imposta; 2) os fatos sociais são
independentes dos interesses e consciências individuais, sendo exteriores a estas e as mudanças
desejadsa pelos indivíduos, não podendo estes escolher as regras sociais a serem seguidas e 3) o
fato social é geral, portanto, afetam a totalidade de membros existentes na sociedade, assim
como podem estar presentes na maior parte destas.
Este conjunto de características encontradas somente nos fatos sociais são, segundo
Durkheim, suficientes pra que esta ordem de fatos se distingue dos fatos biológicos ou
orgânicos ou dos fatos psicológicos, de modo que estes fatos mesmo que tendo ocorrência na
sociedade não podem ser confundidos com os fatos sociais, uma vez que não apresentam as
características acima citadas, portanto os fatos sociais:
[…] não poderiam se confundis com os fenômenos orgânicos, já que
consistem em representações e em ações, nem com os fenômenos psíquicos,
os quais só tem existência na consciência individual a através dela. Esses
fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e
reservada a qualificação de social. (DURKHEIM, 2007, p.. 04)
O fato social compreende segundo o autor toda maneira de agir, sentir e fazer em
sociedade, que se impõe aos indivíduos coercitivamente, não sofrendo qualquer forma de
influência da consciência ou vontade individual, pois esta ordem de fatos segundo Durkheim,
uma vez que é exterior ao individuo não pode sofrer deste qualquer forma influência, assim
como não possuir qualquer dependência para sua existência, portanto o fato social possui
existência independente da existência individual e se expressa na medida em que se faz aparecer
na ação dos indivíduos, uma vez que esta é coercitiva.
Deste modo a melhor definição de fato social que pode ser feita para retratar as ideias
de Dukheim é a definição que faz o próprio autor , portanto, para Durkheim:
É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre
o indivíduo uma coerção exterior, ou ainda, toda maneira de fazer que é geral
na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma
existência própria, independente de suas manifestações individuais.
(DURKHEIM, 2007, p. 13).
Mesmo que o conceito de fato social seja fundamental ao entendimento do conceito de
crime, este só pode nos demonstrar de que modo o crime pode ser entendido como fato social
normal e evidenciar sua utilidade, portanto, é necessário que se estabeleça de forma clara a
relação entre a utilidade do crime, a saber, o de motor da moral, com a própria moral e a
consciência coletiva que a compõe, deste modo é necessário que se explique também o conceito
de consciência coletiva afim, de se fazer a relação entre crime e moral.
Em sua tese de doutoramento “Da divisão do trabalho social” de 1893, Durkheim
apresenta uma analise dos modos de formação e manutenção da coesão social, afim de entender
de que modo se dá a relação entre os individuo e a vida social a forma como estes dividem o
trabalho para fazer a manutenção da sociedade, gerando uma forma de solidariedade que por sua
vez seria a causadora da coesão social necessária ao desenvolvimento da sociedade.
Em sua obra aparece como ponto relevante de seu pensamento o conceito de
consciência coletiva, que seriam segundo o autor responsável pela formação da coesão e
resultado da solidariedade, deste modo Durkheim afirma a existência de um tipo psíquico da
sociedade que segundo o autor coresponderia a todas as formas de pensar, crenças e sentimentos
presentes nas consciências da maior parte dos membros de que é composta a sociedade, sendo
distinta desta e não pertencendo a estes, ou seja, uma forma de consciência que é definida para
(DURKHEIM, 1978, p. 40) como “O conjunto de crenças e dos sentimentos comuns à média
dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida
própria; poderemos chamá-lo: a consciência coletiva ou comum.”
A consciência coletiva definida por Durkheim possui por substrato a sociedade, sendo
distinta da consciência individual mesmo que funcionando de maneira semelhante a esta, a
consciência coletiva possui uma serie de características que a distinguem da individual, não
podendo ser reduzida a integração ou como resultado destas, pois esta é difusa em toda a
extensão da sociedade, sendo independente das condições individuais, portanto:
Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é, por definição,
difusa em toda a extensão da sociedade; mas não deixa de ter caracteres
específicos que fazem dela uma realidade distinta. Com efeito, é
independente das condições particulares em que os indivíduos estão
colocados; eles passam, ela permanece. (DURKHEIM, 1978, p. 40)
A consciência coletiva corresponde a uma serie de crenças, costumes e valores
presentes na sociedade, cobrindo deste modo toda sua extensão, tendo como origem a vida
social e a interação de seus membros, sendo ainda independente a vontade individual,
possibilitando a ligação entre as gerações futuras e a passada. As características de permanência,
extensão de generalidade presentes na consciência coletiva fazem com que a sociedade alcance
um estado que Durkheim chama de coesão.
A consciência coletiva possui segundo Durkheim maior ou menor extensão dependendo
do tipo de solidariedade a que esta submetida a vida social, deste modo, a consciência coletiva
pode ser qualificada de duas maneiras distintas, ora como um conjunto de crenças, costumes e
valores, ora como uma serie de imperativos, regras e leis, dependendo de sua extensão.
Nas sociedades em que os indivíduos possuem características aproximadas, ou seja, em
que os indivíduos se ligam por um conjunto de crenças e valores comuns, onde a sociedade é
dominada por um modelo de solidariedade mecânica a extensão e poder coercitivo da
consciência coletiva se apresenta com maior força, desta forma:
Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, a consciência
coletiva abrange maior parte das consciências individuais. Nas sociedades
arcaicas, a fração das existências individuais submetidas a sentimentos
comuns é quase coextensiva à existência inteira. (ARON, 2002, p. 463)
Diferentemente, nas sociedades onde o modelo de solidariedade é orgânico, onde os
membros apresentam maior grau de diferença e individualidade, a consciência coletiva perde
seu caráter de crença ou valor e ganha o estatuto de regra ou lei, sendo assim, quanto maior for a
força coercitiva da consciência coletiva com relação aos membros de que é composta a
sociedade, maior será o respeito aos imperativos ou as normas impostas socialmente, e por
consequência maior a sanção ou punição aos atos contrários a tais imperativos ou normas. Desta
forma:
Nas sociedades em que aparece a diferenciação dos indivíduos, cada um
tem, em muitas circunstâncias, a liberdade de crer, de querer e de agir
conforme suas preferências. Nas sociedades de solidariedade mecânica , ao
contrário, a maior parte da existência é orientada pelos imperativos e
proibições sociais. O adjetivo social significa, neste momento do
pensamento de Durkheim, apenas que tais imperativos e proibições se
impõem à média, à maioria dos membros do grupo; que eles têm por origem
o grupo, e não o indivíduo, denotando o fato de que este se submete a esses
imperativos e proibições como a um poder superior. ( ARON, 2002, p. 463)
Se nas sociedades onde a solidariedade é mecânica a consciência coletiva é forte e se
caracteriza pela sua coextensão a sociedade, sendo deste modo suficiente para manter a coesão
social, mantendo a ordem entre os membros da sociedade impondo – lhe suas regras e leis de
modo a suprimir ações criminosas e desviantes, ou seja, que vão contra a consciência coletiva,
o contrario acontece nas sociedades onde a solidariedade orgânica é predominante, em que os
membros da sociedade tem mais possibilidades de agir segundo sua própria consciência.
Portanto, se por um lado nas solidariedades mecânicas a consciência coletiva se impõe
mantendo a coesão social, o contrario acontece nas solidariedades orgânicas.
Por outro lado, quando reina a solidariedade orgânica, Durkheim pensa
observar também uma redução da esfera da existência que cobre a
consciência coletiva, um enfraquecimento das reações coletivas contra a
violação das proibições e sobretudo uma margem maior na interpretação
individual dos imperativos sociais. (ARON, 2002, p. 464)
Deste modo tanto em sociedades dominadas pela solidariedade orgânica, onde a divisão
do trabalho e a expressão individual são maiores, como em sociedades onde reina o modelo de
solidariedade mecânica, onde a consciência coletiva se faz mais forte devido sua extensão, a
consciência coletiva pode ser entendida como um conjunto de crenças, sentimentos e
imperativos, sejam morais ou legais, que exercem sobre os indivíduos uma forma de coerção
que os obriga a agir moldando suas ações para um modelo de ação que, uma vez, contrarias as
imposições da consciência coletiva gerariam reprovação por parte dos membros de que é
composta a sociedade sendo condenados por estes, que qualificaria tais ações como criminosas.
3. A TEORIA DO CRIME DE DURKHEIM
A teoria do crime fundada por Durkeim conhecida com teoria funcionalista do crime
mais que provocar uma espécie de “virada criminológica” por retirar o individuo como foco de
analise e entendimento do ato criminoso colocando em seu lugar não as ações individuais mas
as forças exteriores que influenciariam as ações individuais, da a tal ato um caráter funcional e
útil, sendo devido sua importância referência para que outros autores pudessem produzir a partir
da proposta de Durkheim:
As ideias de Durkheim a respeito do crime e do desvio exerceram influência
no sentido de deslocar a atenção das explicações individuais para as forças
sociais. Sua noção de anomia foi utilizada pelo sociólogo norte-americano
Robert K. Merton, que elaborou uma teoria altamente influente sobre o
desvio, situando a fonte do crime dentro da própria estrutura da sociedade
norte-americana (1957). (GUIDDENS, 2005, p. 177)
A partir de uma analise sociológica do crime Durkheim define tal ato como sendo um
fato social, que devido suas características e formas de apresentação seriam acontecimentos
inevitáveis a qualquer modelo de sociedade, deste modo, seria impossível para Durkheim uma
sociedade onde a existência de ações consideradas criminosas não se fizesse presente:
Durkheim via o crime e o desvio como fatos sociais; acreditava que ambos
fossem elementos inevitáveis e necessários nas sociedades modernas. De
acordo com Durkheim, as pessoas da era moderna são menos constrangidas
do que aquelas das sociedades tradicionais. Havendo mais espaço para a
escolha individual no mundo moderno, é inevitável que haja algum tipo de
não-conformidade. (GUIDDENS, 2005, p. 177)
Mais que atribuir ao crime caráter de fato social, Durkheim apresenta uma definição
distinta de crime uma vês que este é apresentado pelo autor como sendo todo ato que por não
estar em conformidade com o modelo de ação imposto pela consciência coletiva aos indivíduos
atrai sobre si uma espécie de punição ou sansão, podendo, o criminoso ser considerado como
todo individuo que recebe sobre si uma punição pelo seu ato, portanto é crime para Durkheim
toda ação que atrai sobre si uma punição:
[...] Por exemplo, constatamos a existência de certo números de atos que
apresentam, todos, o caráter exterior de, uma vez efetuados, determinarem de
parte da sociedade essa reação particular que é clamada pena. Fazemos deles
um grupo sui generis, ao qual impomos uma rubrica comum; clamamos de
crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma
ciência especial, a criminologia. (DURKHEIM, 2007, p. 36)
O crime assim definido possuiria para Durkheim um caráter funcional que se relaciona
diretamente a existência ou não da coesão social, deste modo o crime como motor que
provocaria mudanças no campo da moral serviria para impedir de tais valores se cristalizem e se
enfraqueçam gerando um estado de desorganização que o autor chama anomia.
[...] a noção de anomia foi primeiramente introduzida pó Émile Durkheim, o
qual sugere que, nas sociedades modernas, as normas e os padrões
tradicionais sofrem enfraquecimento, sem serem substituídos. A anomia
existe quando não há padrões claros para guiar o comportamento em
determinada área da vida social. (GUIDDENS, 2005, p. 176)
Ao definir o crime como fato social atribuindo-lhe caráter de funcionalidade e utilidade,
Durkheim abre espaço para uma dupla interpretação do fenômeno enquanto tal. Em sua obra
podemos observar duas formas distintas de classificação dos fatos sociais, a primeira diz
respeito aos fatos definidos como normais e a segunda ordem de fatos é denominada pelo autor
de fatos patológicos.
A observação, conduzida de acordo com as regras que precedem, confunde
duas ordens de fatos, muito dessemelhantes sob certos aspectos: os que são o
que devem ser e os que deveriam ser de outro modo, os fenômenos normais e
os fenômenos patológicos. (DURKHEIM, 2007, p. 49)
Definir o crime como fato social implica em dividi-lo nestas duas categorias de fatos, ou
seja, o crime como fato social normal, que por ser normal possui caráter de funcionalidade e é
indispensável ao funcionamento normal da vida social e a interpretação do crime como um fato
social patológico, ou seja, anormal e prejudicial ao funcionamento normal da sociedade,
devendo, portanto, ser extinto da vida social, enquanto que o primeiro deveria ser cultivado pela
sociedade.
A definição de crime como fato social normal ou como fato social patológico pode
sofrer alterações, ou seja, um ato crimonoso que em um determinado momentos de
desenvolvimento de uma dada sociedade possui caráter normal, no sentido de que é útil e
indispensável ao funcionamento normal da sociedade, pode, em um outro estagio de
desenvolvimento da mesma sociedade ser considerado patológica, seja por não corresponder
mais as exigências da vida social seja por não possuir mais utilidade. Portanto, o crime e sua
classificação como normal ou patológico deve estar atrelada ao estagio de desenvolvimento da
sociedade assim como aos mandamentos e crenças presentes na consciência coletiva.
Um fato social não pode portanto ser dito normal para uma espécie social
determinada, a não ser em relação a uma fase, igualmente determinada, de
seu desenvolvimento; em consequência, para saber se ele tem o direito a essa
denominação, não basta observar sob que forma ele se apresenta na
generalidade das sociedades que pertencem a essa espécie; é preciso também
ter o cuidado de considerá – las na fase correspondente a sua evolução.
(DURKHEIM, 2007, p. 60)
Deste modo a classificação de crime como fato social normal depende do estagio de
desenvolvimento da sociedade. Com efeito, a tese aqui defendida de que o crime é o motor da
moral se afirma como verdadeira, no sentido de que se um mesmo ato pode ser considerado pela
mesma sociedade normal em determinado momento e patológico em outro é devido a uma
mudança não no ato mas no julgamento do ato, ou seja se a classificação do ato muda mas não o
ato é devido a mudança no campo moral que se transforma e aceita ou rejeita o ato criminoso.
Portanto, o fato social normal deve ser assim classificado dentro de determinado
contexto social, podendo perder tal característica caso a sociedade sofra mudanças, portanto:
Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e
daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos. Se concordarmos em
chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos ao reunir num
mesmo todo, numa espécie de individualidade abstrata, os caracteres mais
frequentes na espécie com suas formas mais frequentes, poderemos dizer que
o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo o desvio em relação a
esse padrão da saúde é um fenômeno mórbido. (DURKHEIM, 2007, p. 58)
Portanto, se o fato social normal é o fato que se apresenta na maior parte dos casos, é
incontestável a classificação do ato criminoso como fato social normal, uma vez que este se faz
presente na maior parte das sociedades observadas, sendo segundo Durkheim a sua generalidade
o caráter que o qualifica não só como normal mas útil ao funcionamento normal das sociedades,
sendo para o autor inconcebível uma sociedade em que tais atos não se fizessem presentes,
portanto Durkheim (2007. Pag. 68) afirma: “Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma
sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível”
A sua generalidade garante ao crime seu caráter de normalidade, segundo o autor
mesmo que o crime seja odiado e indesejável ele possui caráter de normalidade e faz parte da
vida e funcionamento normal da sociedade, sendo necessário exercendo função fundamental ao
funcionamento do todo social uma vez que este se liga as condições efetivas da vida social.
Portanto fazer o crime uma fato social anormal implica em negar algo que faz parte da essência
da vida social, qualificando o normal como anormal negando-lhe não só seu caráter utilitário,
mas toda a essência da sociedade. Sendo deste modo, impossível negar o caráter evidentemente
normal do crime:
Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos
os sintomas de normalidade, já que ele se mostra intimamente ligado às
condições de toda a vida coletiva. Fazer do crime uma doença social seria
admitir que a doença não é algo acidental, mas, ao contrario, deriva em certos
casos, da constituição fundamental do ser vivo; seria apagar a distinção entre
o fisiológico e o patológico. (DURKHEIM, 2007, p. 67)
No entanto da mesma forma que o crime pode devido suas características ser
classificado como fato social normal, pode ocorrer que este, devido a mudança na vida social se
apresente sob outros aspectos, que o modificariam o fazendo perder seu caráter de normalidade,
portanto, o crime pode em um determinado período se apresentar como normal e em outro como
patológico deste modo:
Certamente pode ocorrer que o próprio crime tenha formas anormais; é o que
acontece quando, por exemplo, ele atinge um índice exagerado. Não é
duvidoso, com efeito, que esse excesso seja de natureza mórbida. O que é
normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto que esta atinja
e não ultrapasse, para cada tipo social certo nível que talvez não seja
impossível fixar de acordo com as regras precedentes (DURKHEIM, 2007, p.
67)
A teoria do crime de Durkheim apresenta portanto duas formas distintas de classificação
do crime, sendo o crime normal o que apresenta caráter de funcionalidade, utilidade e
generalidade, sendo este responsável pelo rompimento dos preceitos morais existentes na
consciência coletiva provocando sua mudança.
4. O CRIME COMO FATO SOCIAL
A evolução dos preceitos morais existentes na consciência coletiva e que se apresentam
como imperativos morais a serem seguidos pelos membros de que é composta a sociedade, se
da por meio da transgressão a tais imperativos, que uma vez ultrapassados se mostram ou
desnecessários ou fracos para aquele determinado momento de desenvolvimento da sociedade,
seno necessária sua mudança, deste modo o crime como transgressão a regra imposta se
apresenta como responsável pela evolução dos preceitos morais, sendo necessário e útil ao
funcionamento normal da sociedade:
Classificar o crime entre os fenômenos de sociologia normal é não apenas
dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda que lastimável, devido à
incorrigível maldade dos homens; é afirmar que ele é um fator da saúde
publica, uma parte integrante de toda sociedade sadia. (DURKHEIM, 2007,
p. 68)
Deste modo mais que normal o crime se apresenta como necessário ao funcionamento
normal da sociedade por exercer papel fundamental na evolução dos preceitos morais
impedindo sua cristalização em leis e imperativos que mais tarde podem apresentar-se como
prejudiciais, deste modo a evolução dos preceitos morais provocada pela transgressão a tais
preceitos gera uma flexibilização da consciência coletiva que permite a mudança para um
modelo moral novo que melhor corresponde as necessidades da vida social.
O crime enquanto motor da moral provoca nesta mudanças que podem mais que
transformar tais preceitos os substituir por preceitos morais novos. A existência de permanência
de certos preceitos que mesmo transgredidos permanecem intactos e inalterados se da segundo
Durkheim devido existência de uma variação no grau de força e essencialidade dos preceitos
morais, deste modo podem existir preceitos morais essenciais em determinado período e outros
totalmente diferentes aos anteriores em outro estagio da sociedade, sendo os mais essenciais
mais resistentes à mudança gerada pelo crime.
Os preceitos morais são para Durkheim um conjunto de imperativos que possuem força
coercitiva, ou seja, que obriga os indivíduos a agir de determinada maneira e que pune toda ação
contraria a seus imperativos, ou seja, é moral todo imperativo que uma vez violado é punido ou
reprovado pelo grupo a que pertence o indivíduo que comete a ação. Deste modo:
Para decidir se um preceito é moral ou não, devemos examinar se ele apresenta ou não o sinal exterior da moralidade; esse sinal consiste numa sanção repressiva difusa, ou seja, numa reprovação da opinião pública que vinga toda a violação do preceito (DURKHEIM, 2007, p. 42)
Deste modo a moral consiste na ação que é possível de ser violada e que uma vez
transgredida atrai sobre si punição, sendo considerado criminoso todo ato que a viole. A
transgressão da moral entendida como crime gera nos preceitos morais ao mesmo tempo um
fortalecimento por meio da punição e um enfraquecimento, na medida em que os preceitos
morais violados uma vez não fundados na natureza essencial da sociedade pode ser alterado ou
substituído, uma vez que tais preceitos são ultrapassados estes sofrem da consciência coletiva
repressão. Portanto, a inexistência de ação em que os preceitos morais são transgredidos só seria
possível se tais preceitos se fizessem presentes em todas as consciências individuais, mas
mesmo neste caso nos diz Durkheim, o crime existiria, uma vez que os preceito morais fossem
fortes a ponto de suprimir toda a ação contraria a estes, a consciência moral elegeria novos
preceitos e novas formas de transgressão gerando novos crimes.
O crime, conforme mostramos alhures, consiste num ato que ofende certos
sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particular.
Para que, numa sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem
deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se
verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com grau
de força necessário para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que
essa condição pudesse efetivamente ser realizada, nem por isso o crime
desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa mesma que
esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas.
(DURKHEIM, 2007, p.68)
Para Durkheim o crime provoca mudança no campo moral, no sentido de que provoca a
transformação dos preceitos morais existentes, tais preceitos podem, devido a transgressão
sofrida pelo ato criminoso, ser modificados ou permanecerem imutáveis, tanto em um caso
como em outro Durkheim afirma que a mudança ou permanência devido a transgressão não
significa a existência de preceitos essencialmente mais fundados na natureza da sociedade que
outros, mas sim é um indicativo de que tal preceito deveria ser mudado seja pela sua inutilidade
seja pela sua falta de força ou deveria permanecer imóvel devido sua utilidade, portanto, os
fatos morais mutáveis e imutável não podem ser diferenciados entre essenciais e não essenciais,
mas sim em mutáveis e imutáveis. Portanto:
As partes variáveis do senso moral não são menos fundadas na natureza das
coisas do que as partes imutáveis; as variações pelas quais as principais
maneiras passaram testemunham apenas que as próprias coisas variam. [...]
Do mesmo modo, os atos tachados de crime pelas sociedades primitivas, e
que perderam essa qualificação, são realmente criminosos para essas
sociedades, tanto quanto os que continuamos a reprimir hoje em dia. Os
primeiros correspondem às condições mutáveis da vida social, os segundos às
condições constantes; mas uns não são mais artificiais que outros
(DURKHEIM, 2007, p.41)
5. O CRIME COMO EVOLUÇÃO DA MORAL
O crime enquanto fato social normal deve, devido seu caráter de normalidade apresentar
caráter funcional e utilitário, ou seja, o crime por ser qualificado como fato social normal
segundo Durkheim deve junto a tal caráter ser útil ao funcionamento normal da sociedade, deste
modo afirma Durkheim (2007, p. 65) “Enfim, e sobretudo, se é verdade que tudo que é normal é
útil, com a condição de ser necessário, é falso que tudo o que é útil seja normal”.
O crime é necessário para que os preceitos morais possam efetivamente se modificar, ao
passo que se a ocorrência de ações que indo contra a consciência coletiva qualificadas como
criminosas fossem devido a força coercitiva dos preceitos morais extirpada, a sociedade que
obedece a tais preceitos elegeriam de imediato novos preceitos e consequentemente novas
formas de transgressão, e passariam a eleger faltas que em um determinado período foram
normais como ações criminosas graves. Portanto, o crime é necessário uma vez que este
possibilita a possibilidade de mudança dos preceitos morais impedindo sua cristalização e
fortalecimento excessivo que gerariam uma “super-moralidade”, que condenaria qualquer ação
que a transgredisse. Para exemplificar Durkheim apresenta o seguinte argumento:
Imaginem uma sociedade de santos, um claustro exemplar e perfeito. Os
crimes propriamente ditos serão desconhecidos; mas as faltas que parecem
veniais ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito ordinário
nas consciências ordinárias. Portanto, se essa sociedade estiver armada do
poder de julgar e de punir, ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará
como tais. (DURKHEIM, 2007, p.69)
A evolução da moral se da na medida em que seus imperativos são transgredidos por
ações que são consideradas criminosas, tais ações uma vez que ultrapassam e desobedecem tais
imperativos mostram a falta de poder coercitivo destes, assim como sua inutilidade, gerando
novos preceitos morais mais adequados e necessários para aquele determinado período de
desenvolvimento da sociedade. Deste modo a consciência moral apresenta característica
plástica, ou seja, é passível de mudança e a transgressão.
De fato, não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral
variam de um tipo social a outro, como também mudam em relação a um
mesmo tipo, se as condições da existência coletiva mudam. Mas para que
essas transformações sejam possíveis, é preciso que os sentimentos coletivos
que estão na base da moral não sejam refratários à mudança, que tenham,
portanto, apenas uma energia moderada. Se fossem demasiado fortes,
deixariam de ser plásticos. (DURKHEIM, 2007, p.71)
Desta forma mais que promover a evolução no campo da moral o crime é responsável
pela evolução do modelo social como um todo, ao passo que se os preceitos morais fossem
fortes o suficiente a ponto de suprimir as ações individuais estes seriam incapazes de promover
a evolução não só de tais preceitos, mas da sociedade como um todo.
Ora, se não houvesse crimes, essa condição não seria preenchida; pois tal
hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chegado a um grau de
intensidade sem exemplo na história. Nada é bom indefinidamente e sem
medida. É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja
excessiva; caso contrario, ninguém ousaria contesta – la e muito facilmente
se cristalizaria numa forma imutável. (DURKHEIM, 2007, p.71)
Visto a utilidade do crime como sendo o responsável pela mudança não só da
consciência moral mas de toda a sociedade, demonstrando a possibilidade de mudança de tais
preceitos e evidenciando suas características de plasticidade, este também pode ser entendido
como a antecipação deste novo modelo social, desta forma, mais que proporcionar a mudança
no campo moral, modificando os preceitos morais existentes na sociedade, este é responsável
por preparar a mudança, assim como antecipar o modelo moral que esta por vir.
Além dessa utilidade indireta, o próprio crime pode desempenhar um papel
útil nessa evolução. Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto
às mudanças necessárias, como também, em certos casos, prepara
diretamente essa mudança. Não apenas, lá onde ele existe, os sentimentos
coletivos encontram-se no estado de maleabilidade necessário para adquirir
uma forma nova, como ele também contribui as vezes para predeterminar a
forma que esses sentimentos irão tomar. (DURKHEIM, 2007, p. 72)
Portanto, o crime como evolução e motor da moral é também a antecipação desta, na
medida em que transgride o imperativo proposto pelo preceito moral, é também a antecipação
da ação moral futuramente aceitável, mostrando a partir de sua ocorrência de que modo a nova
norma ou preceito moral de assumir para desempenhar seu papel de modo satisfatório. Desto
modo, é comum segundo o autor que o crime assuma mais que papel de “gatilho” da mudança
papel de modelo futuramente aceito, uma vez que o crime só pode ser assim classificado dentro
dos limites de um determinado momento de desenvolvimento da sociedade, sendo possível que
o mesmo ato que em uma determinada época considerado criminoso pela consciência coletiva ,
que uma vez ofendida reprime o ato, em uma outra época, e em consequência da evolução moral
causada pelo ato tido como criminoso, o considere moralmente aceito e desejável em um outro
momento de sua existência.
Tal é a veracidade dos escritos de Durkheim que os casos particulares em que o crime
antecipa a moral demonstrando qual caminho que esta deve percorrer, podem ser observados ao
longo da história. Segundo o autor, por exemplo, o crime e a condenação de Sócrates fora
moralmente aceitável e justificado como justa, uma vez que a ação de Sócrates transgride a
norma imposta socialmente pela consciência coletiva, ou seja, a condenação de Sócrates fora
justa uma vez que seu crime feriu os sentimentos morais vigentes, do mesmo modo, seu crime, a
liberdade de pensamento, se fazia não só necessário à sociedade ateniense de sua época mas fora
o ponto de partida para que as sociedades posteriores pudessem gozar de tal direito, que na
época de Sócrates fora considerado crime. Durkheim apresenta o de Sócrates como um exemplo
de caso em que o crime serve como evolução e antecipação da moral.
Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão a antecipação da moral que
esta por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo como
direito ateniense, Sócrates era um criminosos e sua condenação simplesmente
justa. No entanto, seu crime, a saber, a independência de seu pensamento ,
era útil, não somente à humanidade, más a sua pátria. Pois ele servia para
preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então
necessidade, porque as tradições segundo as quais tinha vivido até então não
mais estavam em harmonia com suas condições de existência.
Deste modo, o crime é para Durkheim responsável pela evolução da moral NE medida
em que apresenta a maior parte dos indivíduos a incapacidade dos preceitos morais existentes de
gerir satisfatoriamente a vida social, provocando deste modo a mudança de tais preceitos para
uma nova forma de moralidade, que melhor corresponde as necessidades da vida social em
determinado contexto da existência da sociedade. Sendo portanto, o crime mais que útil
necessário, uma vez que sua função proporciona a mudança não só da moral mas a evolução de
toda a sociedade seja no campo moral como no campo do direito, deste modo (DURKHEIM,
2007, p.71 ) “ O crime é portanto necessário; ele está ligado às condições fundamentais de toda a
vida social e, por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas
indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”.
Os preceitos morais assim como as normas do direito estabelecidos em determinado
momento de desenvolvimento da sociedade sofrem com ações que os violam denominadas
crimes, tais preceitos ou regras uma vez transgredidos são modificados por tais atos, tal
mudança se da devido sua inutilidade ou sua falta de força para se impor, sendo a ação
criminosa o ato que promove a mudança necessária ao funcionamento normal e saudável da
sociedade, sendo portanto, o crime na teoria de Durkheim,, um fator mais que normal ao
funcionamento da sociedade um fator de saúde social ao passo que exerce função fundamental
ao funcionamento da sociedade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria clássica do crime como por exemplo a teoria biológica e psicológica de
explicação do fenômeno criminológico tendem a explicar tal ato pelo seu agente, ignorando os
fatores externos que alguma forma poderiam ter influenciado tais ações, a teoria funcionalista
proposta por Durkheim, promove uma “virada criminológica no sentido de deixa de explicar o
fato como fenômeno individual e o eleva a um estatuto de social, deste modo a criminologia de
Durkheim tende a explicar o crime não mais pelo seu agente mas como sendo um
acontecimento social, que possui ocorrência no seio da vida social, sendo tal ocorrência normal
e útil à sociedade.
A teoria do crime proposta por Durkheim se liga diretamente a sua teoria da moral, uma
vez que o crime consiste na transgressão a norma imposta. A violação da norma, ou seja, o
crime consiste em um fato social que tem características normais, sendo possivel observar sua
ocorrência na maior parte das sociedades existentes.
O crime é entendidopor Durkheim como sendo motor das mudanças na consciência no
campo da moral, uma vez que o crime transgride tais normas demonstrando sua possibilidade de
mudança, guiando tal modificação a antecipando, deste modo a ação criminosa em determinado
período da história da sociedade pode em outro perder tal caráter e se tornar um imperativo
moral aceito e até mesmo desejável socialmente como no caso da condenação de Sócrates por
exemplo.
As ideias acerca do crime proposta por Durkheim mais que provocar uma virada no
campo dos estudos da criminologia proporciona ainda uma nova forma de entendimento do
crime, como fato social normal e útil a vida social, sendo responsável pela mudança e renovação
dos preceitos morais que uma vez estabelecidos e satisfatoriamente funcionais se cristalizam na
forma do direito, portanto, o crime mais que provocar evolução no campo da moral proporciona
a mudança do direito e de toda a vida social. A tese aqui defendida, a de que o crime é
responsável pela mudança e evolução no campo da moral e do direito, se faz constante na
medida em que as sociedades progride assim como os preceitos morais e o direito, sempre se
fará necessário procurar entender e explicar o fenômeno criminológico.
REFERÊNCIAS
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GIDDENS, Anthony. Sociologia. Trad. Sandra Regina Nertz. 6ªEd. Porto Alegre:
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