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CHASQUI IV CENTENÁRIO DE INCA GARCILASO DE LA VEGA CÉSAR MORO, A PAIXÃO DO POETA VISÕES DE PACHACÁMAC Detalhe de Genealogía de los incas. Óleo sobre tela. Marcos Chillitupa Chávez, 1837. Coleção particular. Boletim Cultural do Ministério de Relações Exteriores Ano 14, número 28 2016 O CORREIO DO PERU

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CHASQUI

IV CENTENÁRIO DE INCA GARCILASO DE LA VEGACÉSAR MORO, A PAIXÃO DO POETA

VISÕES DE PACHACÁMAC

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Boletim Cultural do Ministério de Relações ExterioresAno 14, número 28 2016

O CORREIO DO PERU

CHASQUI 2

Genealogía de los incas. Óleo sobre tela. Marcos Chillitupa Chávez, 1837. Coleção particular.

Em 12 de abril de 1539 nasceu em Cusco o filho do capitão Sebastián Garcilaso de la Vega Vargas, conquistador de estirpe ilustre, natural de Extremadura, e da Palla Chimpu Ocllo, índia nobre, senhora da linhagem dos incas.

A TRAVESSIA INCONCLUSA DE INCA GARCILASO DE LA VEGA

O menino veio ao mundo em meio ao “ruído e à fúria” da conquista, à desesperada

resistência indígena e às guerras civis entre os novos senhores das terras. Já na infância ele percebeu a arrogância dos conquistadores e o desconsolo dos incas. Cresceu “en-tre armas e cavalos”. Com apenas vinte anos, mudou-se para a Espa-nha. Levou, sem sucesso, suas de-mandas para o Conselho de Índias. Lutou contra os mouriscos nas Alpujarras e obteve as “condutas” de capitão. “Índio entre espanhóis e espanhol entre índios”, procla-mou-se orgulhosamente mestiço. Traduziu Leão Hebreu, frequentou os humanistas andaluzes, fez-se de uma biblioteca, poliu sua prosa e começou a escrever para honrar “à pátria e aos parentes maternos” e a seu “pai e ilustres e generosos companheiros”.

Pela data e o lugar, seu nasci-mento se situa no campo das forças desatadas pela captura e execução de Atahualpa em Cajamarca, por ordem de Pizarro. No início da violenta desestruturação do mundo andino, um redemoinho uniu o conquistador a uma Palla. Dessa união sem palavras —ela não falava castelhano nem ele quíchua —nasceu um menino. O orgulho dos vencedores misturou-se com a humilhação dos vencidos.

Batizado como Gómez Suárez de Figueroa, mudou o nome de

ilustre tom por Gómez Suárez de la Vega pouco depois de chegar à Espanha; ao obter o grau de capitão, chamou-se Garcilaso de la Vega, como seu pai; assinou sua tradução dos Dialoghi d’Amore como Garcilaso Inca de la Vega; quando entregou as duas partes dos Comentarios Reales de los Incas para impressão, tinha estampado em suas portadas o nome de Inca Garcilaso de la Vega, unindo o título nobre de sua ascendência materna e o nome de seu ancestral paterno, o célebre poeta de Toledo.

Os traços quebrados desse re-trato feito pela mão de um homem em busca de si mesmo, dividido ao meio e assediado pela insistência de suas lembranças, também registram as marcas dos movimentos sísmicos do tempo que viveu. Mais que um desenho, é um palimpsesto em que se superpõem vários rostos, ou tal-vez um só, com nomes diferentes, que observa seu espectador com a diplopia de quem se sente vencido e conquistador ao mesmo tempo.

De menino, “mamou o quí-chua” do peito materno. A extraor-dinária síntese de “boca” e “mãe” formulada por James Joyce —“Gar-cilaso’s indian mouther” —expressa tudo o que poderia ser dito sobre a equivalência simbólica entre língua e leite materno. Logo as palavras em castelhano se depositaram sobre os vocábulos acunhados em runa simi.

A curiosidade pelo que acon-tecia nas relações íntimas dos progenitores —em termos psica-nalíticos, o interesse despertado pela cena primária —teria levado Garcilaso a entrever uma cópula impregnada pelo orgulho do pai conquistador e a desolação da mãe possuída e despossuída e a intuir que o enigma de suas origens jazia no leito dos pais.

Quando tinha cinco anos, na confusão das guerras civis, um sol-dado quis atear fogo na casa onde estava sua mãe, mas foi impedido por outro, menos “mal entranha-do”. A casa não foi queimada, mas foi saqueada e proibido o acesso para quem tentasse entrar. A in-fância vivida entre sobressaltos e surpresas foi interrompida pela separação de seus pais.

Passou a juventude “entre ar-mas e cavalos”, jogando às “cañas”, ajudando o pai encomendeiro com as contas, graças a seu conhecimen-to dos quipus, “vendo e ouvindo” seus parentes maternos, especial-mente seu tio Huallpa Tupac, e assistindo a festas como o huaracu ou huarachicu, rito de passagem da nobreza inca, do qual diria: “ressoa tanto como em castelhano o rito de armar caballero”.

Durante o meio século que morou na Espanha se manteve oscilante entre a ilusão e o de-sengano. Quando se apresentou perante o Real Conselho de Índias

para pedir “mercês a Sua Majestade pelos serviços de [seu] pai e a resti-tuição patrimonial de [sua] mãe”, a lealdade de seu pai para com a Corona foi posta em causa: “está escrito pelos historiadores e vós o quereis negar”. Suas expectativas de um reconhecimento foram duplamente frustradas.

Gómez não voltou a sua terra, porém, mudou de nome, decidiu se chamar Gómez Suárez de la Vega. Estabeleceu-se em Montilla. Com o nome de Garcilaso de la Vega, alistou-se nas tropas do marquês de Priego, comandadas por Dom João de Áustria para combater a rebelião dos mouriscos. Na serra das Alpujarras ganhou o título de capitão. Quando o mes-tiço cusquenho firmou a dimen-são espanhola de sua identidade seguindo os passos do pai, beirava os trinta anos.

Dividiu seu tempo entre sua afeição aos cavalos, fazendo muitas vezes de juiz, e os livros, frequen-tando a biblioteca dos Marqueses de Priego. Tinha cinquenta anos quando entregou para impressão sua tradução dos diálogos de amor entre Filão e Sofia, de Leão Hebreu, nome de pluma de Judá Abarbanel, médico, filósofo, judeu espanhol exiliado. Adentrar nesses diálogos escritos por um homem de duas culturas, em que o amor ao conhecimento se torna nobre ao se transformar em conhecimento

Max Hernández*

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Inca Garcilaso, de Francisco Gonzáles Gamarra. Óleo sobre tela, 1959. Coleção da Biblioteca Nacional do Peru.

amoroso, abriu para Garcilaso a possibilidade de estabelecer um diálogo de amor retrospectivo en-tre seus pais e assumir sua condição de mestiço.

O espaço aberto à escrita foi ampliado: alinhavou com excelente prosa os depoimentos de um com-panheiro de seu pai que esteve no Peru antes de passar à Florida. O relato da expedição de Hernando de Soto e a resistência dos nati-vos é uma composição de sereno equilíbrio que valoriza equitativa-mente a coragem, a integridade e o heroísmo dos adversários. A Florida do Inca, publicada em 1605, já tem como autor Inca Garcilaso de la Vega.

Em Córdoba, em seus “re-cantos de solidão e pobreza”, continuou a tratar com teólogos, humanistas e eruditos andaluzes em Montilla. Suas relações com os jesuítas permitiram se familiarizar com a versão contrarreformista da escolástica. Com essa bagagem, meio século depois de ter deixado o Peru “forçado pelo natural amor à pátria” publicou as duas partes de Comentarios reales.

Durante seus últimos dias tomou as ordens menores, fez-se mordomo do Hospital de la Limpia Concepción, redigiu seu testamen-to sem deixar constância de que Diego de Vargas, que ele menciona como criado, era filho seu com a mourisca Beatriz de la Vega. “Mor-reu cristão” faz quatrocentos anos e quis que seus restos repousassem na Capilla de las Ánimas del Purgato-rio da Mesquita-Catedral.

Quem quiser seguir os mean-dros de uma vida variável e con-traditória, com sua cota de infortú-

nios e de conquistas, reclamações infrutuosas e presentes inespera-dos, alegrias efêmeras e nostalgias

pertinazes, fraturas e remendos, temores e arrojos, dualidades e contradições, deve estar prepa-rado para enfrentar sentimentos ambivalentes em cada curva do caminho. A tarefa de compreender seus silêncios, seu afã por agradar, seus conceitos, ora ditirâmbicos ora depreciativos, sua prosa ar-caizante, a complexidade de seus textos, a redação meticulosa de seus livros, a humildade de suas dedicatórias ou a altivez de seu epitáfio, despestará simpatias e rejeições. Contudo, situar uma trajetória vital nas circunstâncias de seu tempo permite e requer mais objetividade.

Inca girava em torno de dois centros. A órbita elíptica permitia observar o que acontecia nos dois lados do Atlântico. Sua condi-ção de marginal exigia deslindar espaços, conjugar diferenças e se-melhanças, tentar alguma síntese. Conciliar os sistemas significantes de duas realidades em conflito fez que processasse a diglossia com que viveu durante seus primeiros anos. Traduzir um livro em que se enfrentava à difícil e intrincada tarefa de integrar duas visões em conflito lhe deu o impulso para traduzir um mundo e fazer visí-vel aquilo que não encaixava no senso comum de seu tempo. No empenho por conhecer suas raízes e mapear o horizonte, construiu uma obra em que consignava os dados de um transvasamento que superava oceanos e distâncias e eludia as constrições impostas pelo poder imperial e eclesial.

Esta edição, a cargo do destaca-do historiador Carlos Araníbar (Lima, 1928-2016), reúne o con-

junto da obra de Inca Garcilaso, desde seus livros maiores —a tradução de Diálogos de amor de Leão Hebreu, Florida del inca, as duas partes de Comentarios reales até Relación de la descendencia de Garcí Pérez de Vargas e as poucas cartas assinadas por ele que se conhecem. Os textos foram rigorosamente atualizados seguindo as pautas acadêmicas vigentes para facilitar sua leitura, mas «sem

prejudicar o original pela adição ou omissão de vocábulos». Embora não pretenda ser uma edição crítica, contém,

devidamente revisados, o glossário e as notas corrigidas e atualizadas que Carlos Araníbar preparara para uma anterior edição da primeira parte de Comentarios reales, bem como uma centena de ano-tações para Relación de la descendencia de Garci Pérez de Vargas e umas breves e orientadoras explicações introdutórias para cada obra. O terceiro volume tem anexo o rigoroso estudo biográfico sobre o Inca Garcilaso escrito por Aurelio Miró Quesada, notável figura entre os garcilasistas peruanos.

«Há escritores representativos —afir-ma Carlos Araníbar na introdução de sua monumental edição— cujas obras, inseridas no espírito e a evolução de um povo, transmitem e sintetizam a imagem nacional e coletiva que com o tempo torna-se clássica e livre de desgaste ou deterioração, como Virgílio, Dante, Ra-belais, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Tólstoi. Nesse seleto grupo literário de narradores de ilusão está firmemente inscrito nosso Garcilaso, que em Co-mentarios reales mistura os velhos textos históricos em voga —as crônicas de Blas Valera, Cieza, Gómara, Zárate, que o estilista melhorou e renovou— com notas e observações testemunhais e com proustianas lembrança da infância e adolescência em Cusco, e deixa para nós a gentil e dourada visão de uma antiga sociedade ideal dos incas do Peru. Mas não o faz com áridas páginas de uma penosa história erudita que pretende falar para a razão, mas com um colorido e vivaz caleidoscópio que, como uma espécie de memória confidente e fami-

liar de um passado remoto, nos oferece cariciosas imagens que parecem falar para o coração».

Como apontou a historiadora Ra-quel Chang-Rodríguez: «A publicação das obras completas de Inca Garcilaso na Biblioteca do Peru, Coleção Bicen-tenário, patrocinada pelo Ministério de Relações Exteriores, é um grande acon-tecimento cultural, e em se tratando de um editor como o admirado Carlos Araníbar, o sucesso é ainda maior [...]. Dentro da tarefa de difusão realizada pelo professor Araníbar a respeito da obra dos cronistas do Peru e particu-larmente da obra de Inca Garcilaso, convém lembrar os principais tipos de edições com os quais trabalhamos tanto nós, historiadores, quanto estudiosos: a fac-similar, a crítica e a modernizada. O doutor Araníbar escolheu a última dessas categorias para levar avante a preparação das obras completas de Inca Garcilaso [...].

Araníbar empregou as ferramentas usuais na elaboração da edição peruana modernizada das obras completas do Inca Garcilaso cuja tiragem preliminar de 12 exemplares foi apresentada ini-cialmente na XIX Feira Internacional do Livro de Guadalajara (México) em novembro de 2005. Ele explica seu critério: ‘Com o propósito de alcan-çar uma maior quantidade de leitores, decidimos [...] que toda a obra do his-toriador cusquenho fosse modernizada de acordo com as rigorosas pautas aca-démicas costumeiras para antigos tex-tos histórico-literários. Essa operação

essencialmente consiste em atualizar a ortografia, acentuação e pontuação, redistribuir parágrafos muito exten-sos e substituir por seus equivalentes atuais os arcaísmos, locuções obsoletas e cultismos em desuso, sem prejudicar o original com a adição ou omissão de vocábulos’ (I, 7). As pautas de moder-nização são detalhadamente expostas na introdução do primeiro volume, em que o editor reitera seu desejo de atin-gir um ‘vasto público’ (I, 7-12). Alguns comentários seus a respeito das normas editoriais refletem sua personalidade jocosa que gostava de ironizar. Quando explica, por exemplo, como e por que redistribuiu os parágrafos, ele diz: ‘Os adeptos do ortodoxo old style não con-siderem agravo: antigamente, a pontua-ção dependia quase nada do autor e demais do editor, sempre avaro de espa-ço e papel’ (I, 11). Depois explica como, na edição do Quixote da Real Acade-mia Espanhola em Madri, o texto ori-ginal de Cervantes foi dividido no capí-tulo 13 da segunda parte, pois ao longo de sete páginas não havia sequer um ponto parágrafo; compara essas mudan-ças na pontuação e na distribuição dos parágrafos com as feitas por ele na obra de Inca, e conclui: ‘O que é bom para Cervantes, é bom para Garcilaso’.

A apresentação das Obras completas de Inca Garcila-so foi realizada no Centro Cultural Inca Garcilaso em 22 de abril de 2016, a cargo da historiadora Raquel Chang-Rodríguez. O evento coincidiu com a inauguração da exposição bibliográfica itinerante Inca Garcilaso e o nascimento da cultura mestiça da América.

OBRAS COMPLETAS DE INCA GARCILASONo quarto centenário de sua morte, o Ministério de Relações Exteriores publica em três volumes a primeira edição

peruana com todas as obras do primeiro autor clássico das letras americanas.

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Garcilaso intuía que o seu era um tempo crucial. Estava a definir--se uma nova realidade histórica: o mundo moderno. Os tempos da hegemonia inca e da “tumultuosa desordem” da conquista eram var-ridos pelo furacão do progresso. Só lhe restava o apego a seus retalhos de felicidade, atravessados por relâmpagos de momentos traumáti-cos. No movimento inicial e apenas perceptível da marcha inexorável à comunicação planetária, sentia também que as âncoras políticas, económicas e culturais da Idade Média cediam perante o iminente sismo global e pressentia que com a nova realidade histórica surgia em escala mundial uma mestiçagem cultural.

No parágrafo inicial do primei-ro capítulo do primeiro livro de Comentarios se pergunta se devia abordar certos graves assuntos: se o mundo é um só ou vários; se terra e céu são planos ou redondos; se a terra toda é habitável; se há cami-nhos entre as zonas temperadas; e, caso existam, quais antípodas correspondem a quem. A seguir, diz que não é seu principal propó-sito tratar esses temas porque seria presunção demais em um índio e além disso, em suas próprias palavras, “porque a experiência, após a descoberta do que chamam de Novo Mundo, desenganou-nos da maior parte dessas dúvidas…”. Dito isso, procede a aclarar tais questões “confiado na infinita misericórdia”: a descoberta do “grande Colombo” e o retorno da “nau Victoria” são prova de que “não há mais que um mundo”. A redondeza da terra havia deixado de ser uma abstração dos antigos matemáticos gregos.

Da pequena frota de naus, Vic-tória foi a única a voltar para Sevilla em 1522, com 18 sobreviventes à viagem ao redor do mundo, ini-ciada em 1519 sob o comando de Fernão de Magalhães. O autor de Comentarios certamente sabia que também em 1519, Fernão Cortés havia desembarcado no litoral mexicano com um batalhão de sol-dados e aventureiros para usurpar o “Império” asteca de Moctezuma II, com a ajuda de numerosos alia-dos indígenas. Talvez não prestou a mesma atenção ao fato de que, também em 1519, em Francfort del Meno, “Carlos Quinto, Imperador dos Romanos, Rei poderosíssimo das Espanhas” do requerimento pronunciado por Frei Vicente Val-verde, havia sido eleito como Rei dos Romanos. Como aponta com britânica circunspecção John H. Elliott, durante os três anos com-preendidos entre 1519 e 1522, sur-giram os dois grandes projetos que dominariam a história durante os séculos seguintes: a globalização e o imperialismo territorial europeu. O mundo tinha se transformado.

De uma vez só, a Europa do Renascimento descobrira a anti-guidade greco-latina e a novidade americana; o individualismo de Pico della Mirandola e as novas rotas marítimas. A cultura renas-centista própria de uma elite de ricos, nobres e indivíduos eminen-tes possibilitava uma consciência

plena do próprio valor. A transfe-rência de pessoas e o intercâmbio de metais por produtos manufatu-rados impulsionavam os galeões a sulcar os espaços intercontinentais. O império espanhol se expandia e logo em seus domínios, o sol nunca se poria. Quando começa-ram a reger “escalas planetárias”, a Monarquia Católica, sob o reinado de Felipe II, se estendia nos quatro continentes.

O mundo se transformara… e continuaria a se transformar. Enquanto Cortés assentava no México os alicerces do que seria o Império Espanhol lutando “contra gente bárbara” por uma causa justa e “para expandir sua fé”, Martín Lutero negava em Leipzig o direi-to divino ao Papa. O indivíduo estava só diante das Escrituras. A Reforma protestante estava prestes a desencadear as guerras de religião que transfigurariam a Europa. Logo a acumulação de riquezas na Inglaterra, nos Países Baixos e na França daria início a um processo que se alastrou pelo mundo inteiro. Um sistema único, uma economia-mundo na defini-ção de Inmanuel Wallerstein, iria se impor sobre diversas realidades culturais. Ao mesmo tempo, novas ideias e conhecimentos minavam as visões antigas e medievais sobre a natureza e as bases da ciência moderna começavam a ser finca-das. Uma mudança de paradigmas iniciado por um grupo de audazes pesquisadores faria com que o mundo fosse visto sob uma luz diferente.

No entanto, o nascimento da modernidade costuma ser situado na primeira metade do século XVII e associado ao racionalismo cartesiano, à revolução científica iniciada por Galileu Galilei e Isaac Newton e ao empirismo indutivista de Francis Bacon. Como aponta Stephen Toulmin, a hegemonia dessa visão questiona aquilo que não se ajusta a sua lógica abstrata e descontextualizada. A atitude “tolerante e cética” dos humanistas do século XVI era dominada pela dúvida sistemática e a verificação prática. Considerar os argumentos também modernos de Montaigne, Erasmo, Rabelais e Shakespeare, segundo Toulmin, teria moderado

os mal-entendidos entre as ciências e as humanidades e mantido um espaço de reflexão para acolher os dados, como os da etnografia ou da história, que não eram admitidos pelo paradigma cientificista.

Como aponta Gruzinski, a pri-meira mundialização empreendida pelos ibéricos –espanhóis e portu-gueses –foi desenvolvendo muito além da Península outra moderni-dade à margem do absolutismo da ciência e o racionalismo cartesiano. Uma modernidade que se configu-rava pela necessidade de integrar a nova e surpreendente realidade natural e humana nas coordenadas intelectuais do Velho Mundo. Dois países dessa Europa meridional “arcaica e obscurantista” transplan-taram seus instrumentos jurídicos, políticos e religiosos a espaços geo-gráficos de além-mar e lá, longe das fronteiras da Europa ocidental, os paradigmas definidos pela monar-quia católica foram afincados em terras férteis para a imaginação, adquirindo os traços próprios do sincretismo. A projeção ibérica deu início à primeira mundialização da mestiçagem cultural. Dela partici-pariam não só os europeus, mas também os chineses, os índios, os filipinos, os japoneses, os mulatos e os mestiços.

Porém, também é verdade que à América coube, por assim dizer, “o lado obscuro do Renas-cimento”. Walter Mignolo critica o eurocentrismo dominante nos meios intelectuais e aponta que o colonialismo, mais precisamente a colonialidade, forma parte cons-titutiva da modernidade por ter irrompido no momento exato de sua fundação histórica. O domínio colonial transbordou os âmbitos político e econômico. O projeto eurocentrista da modernidade e as estratégias de modernização im-puseram a supremacia dos paradig-mas de conhecimento europeus. As diversas maneiras de conhecer, predizer e transformar o próprio ambiente e os diferentes modos de pensamento próprios dos povos conquistados foram arrasados.

“…[C]hamam-no Novo Mundo com justiça, porque é assim em todas as coisas”. Garcilaso resumia numa única frase a radical novida-de de sua geografia, fauna, flora,

usos e costumes. Apreendê-la exigia uma mudança igualmente radical nos paradigmas com que os euro-peus a enfrentavam: a modificação das representações mentais, a su-peração dos limites impostos pelo dogma, a revolução nos modos de expressão, a construção de pontes conceptuais… uma mudança de perspectiva de igual magnitude à que deve ocorrer na organização psíquica para processar fatos des-conhecidos.

Wilfred Bion dá a denomina-ção de “mudança catastrófica” aos drásticos ajustes que implicam o desmantelamento de pontos de vista e conceitos fortemente enrai-zados para dar lugar a um novo re-pertório de hipóteses e ideias acor-des com a nova realidade. Segundo o psicanalista britânico, o temor à desestruturação normalmente gera resistências que impedem a trans-formação psíquica necessária para a resposta adaptativa. O adjetivo “catastrófico” procede das mate-máticas e se refere a uma mudança brusca num sistema dinâmico que não pode ser prevista nem contro-lada. Convém precisar que o que seria catastrófico no sentido de “desastroso ou muito ruim” é o que acontece quando não são supera-dos esquemas mentais, preconcei-tos e suposições que não permitem tomar consciência da magnitude e celeridade das transformações na realidade externa.

Essa superação não aconteceu. Se analisarmos o caso da filosofia, considerada como um pilar da cultura ocidental, ela seguiu o ca-minho da exclusão no périplo de sua expansão planetária. O mundo “descoberto” pelos europeus não podia ser entendido extrapolando os métodos e conhecimentos ad usum, já que a exclusividade da realidade admitida até então seria questionada. Pelo contrário, os povos da América, Ásia e África foram submetidos à lógica, a ra-cionalidade e à moral em que era baseada a filosofia ocidental. Era isso que deviam fazer para supe-rar suas deficiências e evitar um fracasso coletivo. Como aponta Antonello Gerbi, eminentes pensa-dores europeus dos séculos XVIII e XIX violentaram a realidade americana para a enquadrar numa

Casa de Inca Garcilaso em Cusco. Casa de Inca Garcilaso em Montilla, España.

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cosmovisão presa aos primitivos preconceitos dos conquistadores. Dessa forma, foram deixadas de lado as soluções propostas a partir das tradições não europeias para problemas afrontados com a pers-pectiva filosófica ocidental.

Segundo Susana Jákfalvi-Leyva, Garcilaso se propôs traduzir um mundo. Sua obra é um compên-dio dos saberes que floresciam no Tahuantinsuyo. Detalha a organiza-ção, o governo e as conquistas dos Incas. Destaca as leis, os arranjos sucessórios, os conhecimentos médicos, o sistema viário com seus caminhos e centros de coleta, a partilha de terras e águas, a do-mesticação de plantas e animais. Discorre sobre os frutos, legumes e hortaliças, sobre o ouro, a pra-ta, as esmeraldas, as pérolas e as turquesas, e sobre “a poesia dos incas amautas, que são filósofos, e dos haravicus, que são poetas”. Retrata o camponês inclinado sobre a tajlla, o tropeiro com seu rebanho de lhamas, o aprendiz de amauta amarrando os cordões dos quipus, o chaski atento à chegada da mensagem. Descreve os edifícios e monumentos e relembra ter visto modelos em argila de cidades e de campos tão bem feitos que “o melhor cosmógrafo do mundo não poderia fazer melhor”.

Mas essa façanha está imersa numa história de “grandes calami-dades, morte de reis, destruição de impérios”. Uma e outra vez nas duas partes de Comentarios se

encontram extensas referências ao fim desventurado de conquista-dores e incas. Aurelio Miró Que-sada chamou a atenção sobre os fatídicos finais das duas partes de Comentarios. O capítulo dedicado à "Execução da sentença contra o príncipe…”, para todos os efeitos o último livro da segunda parte, condensa uma visão da história “essencialmente trágica”, em pa-lavras de José Durand. Garcilaso verteu a “narração dos fatos” num tom elegíaco, no molde trágico que ele bem pôde ter conhecido no contato com o humanismo andaluz. O “maravilhoso castelo de melancolias” que percorreu Luis Alberto Sánchez carrega tanto sua nostalgia quanto essa tristeza vaga, profunda, sossegada e permanente tão valorizada pelos renascentistas, como aponta Carmen Bernand.

Na primeira parte de Comenta-rios consta que as gestas dos antigos soberanos e heroicos varões eram representadas pelos próprios incas e por sua corte nos “autos da tragé-dia”. Na segunda parte, “tragédia” alude a múltiplos fatos históricos. São dois os usos do termo: o pri-meiro, com um sentido preceptivo neo-aristotélico, e o segundo, atre-lado à cultura europeia medieval. Segundo Carmela Zanelli, a versão textual (não performativa) do relato histórico ultrapassa necessa-riamente os limites definidos por Aristóteles e se inscreve dentro das concepções da tragédia de Boécio e de Isidoro de Sevilla. Articulada

num modo narrativo não perde, mas atinge sua plena significação. Os fatos narrados não vão além de 1572 porque vai “contar por últi-mo… o mais lastimoso [e] porque em tudo seja tragédia”.

É verdade que os humanistas europeus deram especial impor-tância à tragédia grega. O gênero trágico, criado durante a demo-cracia ateniense, representava fatos do passado numa nova forma que abria um novo curso para as intensas emoções suscitadas pela encenação. Daí que a tragédia, “imitação de uma ação nobre e esforçada”, segundo a clássica definição de Aristóteles, permitia a catarse emocional e mental “por meio da piedade e o terror”. Os espectadores viam as grandes per-sonagens como pessoas iguais a eles que caíam arrastados por sua trágica sina como consequência de algum erro e não por sua própria baixeza ou maldade. Nesse sentido, adequava-se ao momento em que Europa estava a processar sua longa Idade Média.

A recuperação da tragédia pelos europeus coincidiu com a sujeição de culturas e povos a seus impérios. No entanto, para ser posicionada no novo contex-to histórico que abria o ciclo da globalização, era preciso um olhar capaz de expressar os conflitos e mal-estares da modernidade e do ciclo de globalização emergentes. Na periferia, a vasta transformação que em seu momento daria luzes a

Ilustração, foi marcada pela violên-cia desumanizante da Conquista. Longe da Europa, a modernidade tendeu uma sombra comparável à das Dark Ages.

O Tahuantinsuyo devastado pela matança, a fome, os deslo-camentos forçado e as epidemias compendia o horror da conquista, trauma fundacional e fundação traumática do Peru. A violência de-sestruturadora, os efeitos devasta-dores nos povos autóctones e a ar-rogância imperial ensombreceram um acontecimento que anunciava a radical transformação do Velho e do Novo Mundo. Aquele que tinha “prendas de ambas nações” apresentou os adversários como heróis de uma epopeia à espera de uma interpretação trágica do trauma que abrisse caminho a sua compreensão e processamento.

Certamente, no coração de suas angústias identitárias, também se abria uma fresta por onde era pos-sível enxergar as possibilidades de uma incipiente “síntese mestiça”. Tal desejo inspirou Garcilaso de la Vega “irmão, compatriota e paisa-no” para uma nova leitura da his-tória de sua pátria, cujos aconteci-mentos, consignados no “presente” de sua escrita, foram objeto de uma profunda “resignificação”. Seus Comentarios —hoje disputados por literatos e historiadores —foram dedicados aos “índios, mestiços e crioulos dos reinos e províncias do grande e riquíssimo Império do Peru”.

Morreu o Inca Viracocha na majestade e alteza de estado que se referiu; foi

chorado universalmente por todo seu império, adorado por Deus, filho do Sol, para quem ofereceram muitos sacrifícios. Deixou como herdeiro Pachacútec Inca e outros muitos filhos e filhas, legítimos em sangue real e não legítimos; ganhou onze províncias, quatro ao meio-dia de Cusco e sete ao setentrião.

Não se sabe ao certo quantos anos viveu nem quantos reinou, mas o que dizem é que seu reinado durou mais de cinquenta; e assim demonstrava seu corpo, que eu vi em Cusco, no início do ano de mil e quinhentos e sessenta, quando tinha de ir para a Espanha, e fui à pousada do licenciado Polo Ondegardo, natural de Salamanca, que era corregedor daquela cidade, para lhe beijar as mãos e me despedir antes de minha viagem. Ele, entre outros favores que me fez, disse-me: «Já que vais para a Espanha, entrai nesse aposento; vereis alguns dos vossos que eu trouxe à luz, para que leveis o que contar por lá». No aposento achei cinco corpos dos reis incas, três de homens e dois de mulheres. O primeiro deles, diziam os índios, era do Inca Viracocha; mostrava bem sua idade avançada; tinha a cabeça branca como a neve. O segundo, diziam que era o grande Túpac Inca Yupanqui, que foi bisneto do Inca Viracocha. O terceiro era Huayna Cápac, filho de Túpac Yu-panqui e tataraneto do Inca Viracocha. Os dois últimos não pareciam ter vivido

muito, que, embora tives-sem cabelo branco, tinham menos que Viracocha. Uma das mulheres era a rainha Mama Runtu, mulher desse Inca Viracocha. A outra era a coya Mama Ocllo, mãe de Huayna Cápac, e é verossímil que os índios os mantivessem juntos depois de mortos, marido e mulher, como viveram na vida. Os corpos estavam tão inteiros que não lhes faltava cabelo, sobrancelhas nem cílios.

Conservavam suas ves-tes como andavam em vida: os “llautos” ou faixas nas cabeças, sem outro ornamen-to nem insígnias reais. Esta-vam sentados, na posição em que costumam sentar-se os índios e as índias: as mãos cruzadas sobre o peito, a direita sobre a esquerda; os olhos baixos, como quem observa o chão.

O padre mestre Acosta, falando de um desses corpos, que também viu, diz, livro sexto, capítulo vinte e um: «Estava o corpo tão inteiro e bem coberto com betume, que parecia estar vivo. Os olhos tinha feitos de uma malha de ouro; tão bem postos, que não lhe faziam falta os naturais», etc. Confesso meu descuido, que não os vi tanto, e foi porque não pen-

sava escrever sobre eles; que se o tivesse pensado, teria observado mais por inteiro e saberia como e com que os tinham embalsamado, que a mim, por ser filho natural, não teriam se negado a revelar,

como negaram aos espanhóis, que, por muito que fizeram, não conseguiram arrancar dos índios: deve de ser porque eles não tinham a tradição disso, como de outras coisas que dissemos e diremos. Tampouco vi o betume, porque estavam tão inteiros que pareciam estar vivos, como disse o padre. É de se crer que o tivessem, porque corpos mortos de tantos anos e estarem tão inteiros e cheios de suas carnes como pareciam, não é coisa possível se neles não põem algo; mas era tão dissimulado que não se percebia. Lembro-me de chegar a tocar um dedo da mão de Huayna Cápac; parecia que era a de uma estátua de pau, de tão duro e forte. Os corpos pesavam tão pouco, que qualquer índio os carregava nos braços ou nos ombros, de casa em casa dos cavalhei-ros que pediam para vê-los. Levavam-nos cobertos com lençóis brancos; pelas ruas e praças ajoelhavam-se os índios, fazendo reverência, com lágrimas e gemidos; e muitos espanhóis tiravam o gorro, porque eram corpos de reis, do qual ficavam os índios tão agradecidos que não sabiam como expressar. Isso é o que foi possível saber das façanhas do Inca Viracocha; as outras coisas mais miúdas de fatos e ditos desse famoso rei não se conhecem em particular, por quanto é lástima que, por falta de letras, morressem e se enterrassem com eles mesmos as façanhas de homens tão valiosos.

Inca Garcilaso de la Vega. Comentarios reales de los incas, Lisboa, 1609. Capítulo XXIX: «A morte do Inca Viracocha. O autor viu seu corpo».

AS MÚMIAS DOS INCASTestemunho de Inca Garcilaso sobre os restos de seus antepassados.

Inca (imperador) e coya (imperatriz) acompanhados de seu ccumillu ou servidor. Gravura de Édouard Riou, em Viaje a través de América del Sur de Paul Marcoy, Paris, 1869.

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Tinha nascido numa parcela do Orbis terrarum com um nome em disputa: Tahuantinsuyo, Nova Cas-tilha ou Peru? Na difícil encruzilha-da do século XVI, ter nascido num “vago, distante, brumoso país” —ou nessas “Yndias equivocadas e mal-ditas” das quais fala Rafael Sánchez Ferlosio?— foi um estímulo para sonhar com uma troca equitativa entre culturas que se estendesse a Totus orbis e transcendesse o projeto hegemônico da Monarchia Catholi-ca. Com as saudades da religiosi-dade andina, imaginou a guinada mestiça de que precisava o Deus cristão contrarreformista e barroco para ter significação universal. De certa forma antecipava o que seria a aposta ibero-americana de enorme importância para a humanidade.

Acreditou que o horror e a crueldade da conquista podiam ser mitigados com o conjuro do amor. Porém —grande porém— “não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo documento de barbárie”, como es-creveu Walter Benjamin. O furacão “que nós chamamos de progresso” soprava do Ocidente e acumulava escombros. Garcilaso quis inscre-ver a violência da conquista numa perspectiva que conjugasse a so-berba dos vencedores e a dor dos vencidos. Há momentos em que o sutil tecido de seu relato parece ter conseguido harmonizar, ou pelo menos atenuar tais dissonâncias. Entretanto, os fatos se resistem à redenção estética.

Em Filosofia da História, Hegel sustenta que a modernidade foi “duplo ponto de partida” de duas formações históricas fundamen-tais: a economia de mercado e a subjetividade. Talvez Garcilaso intuiu algo disso. Suas referências a Jean Bodin e a Giovanni Botero em relação à moeda, os preços, a renta-bilidade e a inflação mostram seu interesse pelas novas tendências que impulsionavam a expansão das fronteiras do comércio internacio-nal. A premente busca de si mesmo

e o zelo com que trata os matizes e os vincos íntimos da experiência de seus personagens dão prova de uma nascente subjetividade em vias de se libertar do conformismo doutrinário.

Nos quatro séculos transcor-ridos desde sua morte, sua inte-ligência historiográfica tem sido elogiada e questionado o valor de sua obra como fonte histórica; ressaltada sua originalidade e criti-cados supostos plágios; elogiados seus conhecimentos linguísticos e rebatido seu domínio do quíchua; aplaudido seu uso de paradigmas renascentistas e condenada sua imprecisão ao representar as ins-tituições autóctones; encomiada a sutileza sintática de sua prosa e ridiculizado seu apego à retórica notarial da época. Foi chamado o primeiro peruano e censurado por ter lutado sob o estandarte de Santiago —cá, “mata-índios”, lá, “mata-mouros”—; criador de uma obra “falaz e mentirosa”, apenas uma “fantasia utópica”, e de uma “crônica de primeira ordem”1. Crí-ticos ilustres o chamaram de “va-lente charlatão” e renomados au-tores o consideraram um “clássico da América”. Singulares virtudes e singulares defeitos de alguém que era “um índio antártico” nascido naquela remota terra que começava a ser conhecida como Peru.

Certamente, a trama que vin-cula o autor —sujeito da enuncia-ção —com o sujeito do enunciado jaz sobre um campo minado da teoria literária, mais ainda em se tratando de uma obra impregna-da de detalhes autobiográficos e intercalada com digressões e relatos em terceira pessoa. Todavia, rever a vasta produção dos exegetas e críticos de Garcilaso2 permite, talvez não desvendar, mas sim pelo menos vislumbrar a intricada rede de vasos comunicantes que se estende entre sua vida, a época em que viveu e sua obra, e lança luzes sobre o périplo entre dois continentes separados por léguas,

línguas e pela árdua confrontação de duas culturas.

Ainda hoje continuam a gravi-tar angústias identitárias compará-veis às que ele vivenciou quando as circunstâncias históricas em torno de seu nascimento pare-ciam ser “em grande medida uma configuração metafórica de sua pessoa”, usando as palavras de Enrique Pupo-Walker. Em sua primeira infância, ou dizendo de outra forma, em sua pré-história, naquele período de vida prévio à aprendizagem verbal, o vínculo com sua mãe forjou os alicerces de segurança, o sentido básico de seu ser e as primeiras âncoras que permitiriam que ele enfrentasse uma sucessão de embates, conflitos e irrupções traumáticas que iriam a exigir dele, desde o começo de sua vida, arriscados equilíbrios para afrontar as tensões a que era submetido seu psiquismo.

O que o menino pôde conje-turar sobre a cópula que lhe deu a vida assimilou os ecos do que acontecera oito anos antes de seu nascimento. É verdade que os tra-ços da cena primitiva do pequeno

Garcilaso diferiam dos sucessos de Cajamarca, lugar da cena originária da pátria peruana, inscritos a san-gre e fogo como trauma fundante e fundação traumática. O que ambas cenas tinham em comum facilitou a ele a tarefa das equiparar e de situar seus respectivos prota-gonistas numa espécie de equação que conferia às imagos parentais dimensões históricas que chegavam além da metáfora. A acumulação de vivências traumáticas reforçou a atração que nele exerceu o trauma fundacional. O mando do pai o levou a ostentar as insígnias milita-res em momentos marcados pelos acontecimentos de Lepanto.

No longo processo de tradução do livro de Leão Hebreu a iden-tificação com o conquistador foi se transformando num vínculo simbólico. A estrutura do texto deu lugar a uma articulação do legado cultural andino com a tradição hispânica e propiciou a possibi-lidade de estabelecer um diálogo de amor retrospectivo entre seus pais, necessário para que assumisse a condição de mestiço. Compene-trado com a visão neoplatônica de Leão Hebreu, ele pôde iniciar uma nova leitura da história de sua terra que mitigava a violência da conquista com o conjuro do amor dentro de uma perspectiva de civili-zação e evangeliza ção. Emilio Choy destacou a importância renovadora que isso implicava para a direção do pensamento americano.

Publicou seus Comentarios reales com um título modesto, mas ao mesmo tempo ousado para uma obra que transcende o “comentário e glosa” e interpreta o utópico e trá-gico da história de sua terra. Garci-laso fez da crónica de Índias uma obra de arte, e do espanhol “uma língua não só da Espanha, mas do mundo”, como escreveu Mário Var-gas Llosa. A escrita de Comentarios acentuou sua consciência trágica. Sua narração do encontro entre a tropa conquistadora e o cortejo de Atahualpa escrita numa prosa castelhana admirável não isenta de estratégias narrativas quíchuas, faz pensar que queria despertar os processos de catarse e expiação evocados pelo drama grego.

As duas partes de Comentarios registram uma dupla perda: o Tahuantinsuyo devastado pela

NOVO ELOGIO*RicaRdo González ViGil

Em 1916, comemorando o tricentenário da morte do grande cronista, o historiador

e crítico literário José de la Riva–Agüero pronunciou um célebre «Elogio de Inca Garcilaso». Ele teve uma enorme influência em vários dos melhores garcilasistas do século XX, entre os quais sobressaem Raúl Porras Barrenechea, Aurelio Miró Quesada Sosa e José Durand. Riva--Agüero consagrou Garcilaso como símbolo da mestiçagem harmoniosa e fecunda; defendeu sua veracidade como historiador e sua aceitação da herança cultural cristã e ociden-tal. Um século depois, é preciso um novo elogio, que matize a mestiça-gem, a veracidade, o cristianismo e a

ocidentalização de Garcilaso.Necessário é ressaltar sua condi-

ção andina, sua postura anticolonial e sua habilidade para insertar em seus escritos um discurso dissidente, que consegue burlar a censura de seu tempo. Note-se que ele conse-guiu publicar seus escritos enquanto todos os textos que poderiam rivali-zar com eles, ou até os superar como depositários da cosmovisão andina —o manuscrito quíchua de Huaro-chirí, Guamán Poma, Pachacuti, Sal-camaygua, Betanzos e Murúa—, fica-ram inéditos até os séculos XIX-XX.

Nosso Garcilaso exige uma leitu-ra atenta e informada de seu contex-to histórico-cultural, já que um dos traços que mais tipifica os grandes

escritores é a profundidade e a ori-ginalidade com que sintetizam sua época e sua sociedade, erigindo-se numa privilegiada expressão de ambas. E como numa época e numa sociedade sempre se misturam fato-res e tendências diversas, bem como a herança múltipla e heterogênea do passado que as fez possíveis, esses escritores mostram uma riqueza de elementos e uma complexidade pra-ticamente inesgotável para a análise. Daí que suportem, e até exijam, os enfoques e as interpretações mais diversas.

* Fragmento da introdução à antologia Co-mentarios reales y otros textos de Inca Garcilaso a cargo do crítico Ricardo González Vigil, publicada na coleção Penguin Clásicos (2016).

A mesquita-catedral de Córdoba, Espanha.

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matança, a fome, os deslocamen-tos forçados e as epidemias, e o ocaso da gesta épica e cruel de uma conquista feita a sangre e fogo. O texto foi uma lápida para ambas. A “memória do bem perdido” oscila entre a perda e a ausência. Como aponta Dominick LaCapra, a escrita da história dos sucessos traumáticos apaga a diferença (a não identidade) entre perda e ausência. A consciência do horror fez com que Garcilaso desse tanta importância à dolorosa perda im-plícita na invasão europeia. A bru-ma nostálgica fez com que sentisse a perda do Incário como a ausência de um paraíso terrestre. A impossi-bilidade de recuperar um paraíso inexistente fixa a Conquista como um ato fundacional: o trauma que incrustado em meio ao processo de desestruturação do mundo andino foi a base em que seria edificada a organização toledana.

A segunda parte de Comentarios, a Historia General del Perú, dá um significado social à experiência coletiva extrema da Conquista. Como destaca Paul Ricoeur, já que o tempo humano é sempre experiência em movimento, a his-tória é, acima de tudo, narração. Consignar a sequência temporal e intuir uma ordem lógica dos eventos permite articular o passado com o presente e abrir expectativas sobre o futuro. Uma visão trágica —testemunho de uma personalís-sima tentativa de afrontar uma história que discorre através dos sulcos abertos pelo providencialis-mo messiânico próprio do século XVI espanhol —permite intuir o terror, a piedade, a indignação e a compaixão que evocam ações nem sempre compreensíveis. O cortejo de dor, desconcerto, angústia e tris-teza que acompanhou a ocupação do Tahuantinsuyo leva o leitor a se envolver com os protagonistas, ven-cedores e vencidos, e a sentir que o destino de cada um dos atores do drama poderia ter sido o próprio.

Aos “graves assuntos” referidos por Inca no parágrafo inicial do pri-meiro capítulo do primeiro livro de Comentarios —se o mundo é um só e todo ele habitável, se terra e céu são planos ou redondos, se as regiões temperadas são transitáveis e quais antípodas correspondem a quem —teria sido acrescentado o assédio dos graves enigmas que Karl Jaspers situa nas origens da consciência trá-gica: Por que o mundo é assim? O que é o homem e o que o motiva? O que é a culpa e o que o destino? De onde vêm as leis que regem as sociedades humanas? O que são os deuses? Em seus primeiros anos, as respostas para essas perguntas teriam recolhido os ecos míticos dos relatos transmitidos por sua mãe, seu tio Huallpa Tupac, e o “inca velho” Cusi Huallpa.

Mais tarde, com uma dupla perspectiva, a do cristianismo e a da filosofia neoplatônica, ensaiou suas respostas. A fé revelou para ele o poder da intervenção divi-na, tão grande que fez com que o próprio Pachacamac decidisse a sorte do Inca e do Tahuantin-suyo. Os “sinais prodigiosos” que anunciavam a chegada da legião

peruana anunciavam também que o governo dos seus povos seria transformado em vassalagem. A Pax incaica abrira o caminho: os povos submetidos por seu império “receberiam mais docilmente a fé católica”. O providencialismo desempenha um papel chave em sua elaboração pessoal do sentido de uma conquista evangelizadora. Portanto era preciso aceitá-la sem resignação nem lamentações.

Como afirma Emmanuel Mou-nier, um filósofo cristão que vi-venciou os horrores da guerra na França ocupada, para enfrentar circunstâncias terríveis é necessário adotar um “otimismo trágico”. Ele dizia que o confuso emaranhado de situações atrozes não só ensom-brece o horizonte com desconsolo, tristeza e indignação, mas tam-bém deixa enxergar lampejos de esperança. Na polifonia de coros mestiços de Comentarios a que faz referência José Antonio Mazzotti, é possível discernir uma invocação para confiar num futuro guiado pelas rédeas da providência.

Uma consciência trágica se impõe a partir do pano de fundo de Comentarios e se assoma em três momentos. O primeiro, urgido pe-las experiências traumáticas de sua infância e de sua pátria. Experiên-cias no limite último do tolerável, “invivíveis” na expressão de Jorge Semprún. Quem sobreviver a elas não é assediado por uma lembran-ça, mas por um desconcerto cuja integração à consciência é impos-sível e bloqueia sua inclusão numa sequência histórica. Num segundo momento, o passado anterior ao trauma ressurge através de um relato que arrasta paradoxalmente as marcas de um evento posterior

que está além dos limites da repre-sentação. No terceiro, a construção metafórica do cenário histórico tenta recuperar uma civilização desestruturada pelo acontecimento traumático e, ao mesmo tempo, reconciliar as duas metades em que ficou dividida sua pátria. Por isso trata a conquista em clave trágica. Só assim poderia chegar a convi-vência na pátria futura anunciada pelo acontecimento que a integrou ao mundo.

Se prestarmos atenção às po-tencialidades implícitas na escrita de Garcilaso quando ela se dilata em estereofonia —no sentido que dá Roland Barthès ao termo —e afinarmos o ouvido, poderemos es-cutar um rumor que anuncia uma radical mudança de época. Após os ecos dolorosos dos anos vividos na terra da mãe, devastada pelos companheiros do pai, é possível es-cutar a palavra de quem presenciou o acontecimento que daria lugar a um processo de globalização, do qual só hoje começamos a ter clara consciência. Garcilaso conjugou a duração de suas vivencias com o tempo vertiginoso das descobertas nas instáveis coordenadas de sua época.

Foi enfatizada a nostalgia, o tom elegíaco e inclusive o molde aristotélico de Comentarios… Jean--Luc Nancy chama a atenção sobre um viés errôneo próprio de nossa época que desconhece que “o ethos trágico não se reduz ao pathos que acompanha o desastre ou a calami-dade”. Ele atravessa a obra de Inca Garcilaso de la Vega que parece dizer que é indispensável se atrever a sofrer as consequências de conhe-cer nossas próprias histórias. Sem esse alento trágico, não poderão ser

demolidos os muros construídos na beirada da fratura produzida pelo trauma da conquista nem as sequelas de exclusão e desigualda-de que ainda hoje prejudicam a sociedade e continuam a traçar em seu seio fronteiras institucionais e simbólicas. O acontecimento que anunciava a radical transformação do Velho e do Novo Mundo só poderá ser assumido se for consi-derada sua dimensão trágica.

Garcilaso afirmou enfaticamen-te que “não existe mais que um mundo”. Talvez hoje estejamos vivenciando por primeira vez uma história mundial, a de todos os ho-mens, como afirmou em espanhol Octavio Paz.3 Também é verdade que o presente se esvai por causa da velocidade com que ocorrem as descobertas científicas, as ino-vações tecnológicas e as migrações incessantes e que a especialização das linguagens desmantelou o edi-fício da sabedoria convencional. Talvez as intuições desse mestiço do século XVI, que expõem as raízes de um pensamento híbrido e não murado, sirvam para entender a mutação da experiência cultural iniciada naquele então e contri-buam para a evolução de um modo de pensar de matriz heterodoxa, plural e universal.

O homem que deixou “o um-bigo do mundo” para embarcar na aventura incerta de sair para o mundo nunca chegou a se sentir “um fidalgo completo, nem es-panhol nem índio, nem vizinho nem forasteiro”. Adiantado a essa modernidade jânica da qual falou Carlos Fuentes, quatro séculos depois de sua morte, seus livros “se bem nem sempre entendidos, sempre abertos”, levam impressas as palavras de um viajante que se estabeleceu na Espanha, mas que sabia que sua travessia não acabaria enquanto o mundo continuasse a ser “ancho y ajeno”4. Talvez espe-rava, como Hegel, que o mundo chegasse a ser a casa do homem, ou voltar para sua Ítaca natal que, como no poema de Constantino Cavafis, tinha lhe proporcionado uma extraordinária viagem.

* Doutor em Medicina pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e diplomado em Psicologia pelo Royal College of Physicians, em Londres. Trabalhou como secretário executivo do Acordo Nacional do Peru, vice-presidente da Associação Psicanalítica Internacional e presidente da Sociedade Peruana de Psicanálise. Sua obra Memoria del bien perdido. Conflicto, identidad y nostalgia en el Inca Garcilaso de la Vega (Lima: IEP/Biblioteca Peruana de Psicanálise, 1993) é referência entre os estudiosos garcilasistas.

1 Melchor Gaspar Jovellanos, José Durand. Marcelino Menéndez y Pelayo contrastou a escrita de Inca com a “nervosa e viril, rápida e sóbria “ de Julio César presente em “Cartas de Relação” de Hernán Cortés.

2 Inter alia José de la Riva Agüero, Juan Bau-tista Avalle-Arce, Aurelio Miró Quesada, John Grier Varner, Carlos Araníbar, Pablo Macera, Carlos Manuel Cox, María Ros-tworowski, Antonio Cornejo Polar, Miguel Maticorena, José Luis Rivarola, Manuel Burga, Ricardo González Vigil, Oscar Coello, José Antonio Mazzotti, Eduardo Hopkins Rodríguez, Francisco Manzo-Ro-bledo, Miguel Gutiérrez, Edgar Montiel, Rodolfo Cerrón Palomino, Sandra Pinasco, Richard Parra, Enrique Cortez, Carlos García-Bedoya, José Antonio Rodríguez Garrido, Ricardo Fidel Huamán Zúñiga.

3 Cf. Sebastian Conrad What is global history?

4 Ciro Alegría.

Escudo de Inca Garcilaso em Cusco, publicado em Comentarios reales. À esquerda é possível observar os brasões hispânicos; à direita, os símbolos incas.

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VISÕES DE PACHACÁMACO pintor Ricardo Wiesse (Lima, 1954) reúne no Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores uma amostra antológica de seus óleos e desenhos dedicados ao mítico santuário arqueológico da costa peruana.

Faz 17 verões que eu vou com o pintor croata Dare Dovid-jenko ao santuário de Pacha-

cámac para pintar e repintar no lo-cal. Tratamos os motivos ao ar livre, como o fizeram os paisagistas do século XIX e outros ainda mais an-tigos. Dessa forma, temos repetido versões de nossos temas prediletos: o Templo do Sol, a Casa dos Qui-pus, o Palácio de Tauri Chumbi, as 18 pirâmides com rampa.

A exposição percorre os mes-mos lugares em diferentes tem-pos. Não coteja assuntos, mas tratamentos. Desenhar e pin-tar são exercícios do deleite, da aproximação paulatina às chaves cromáticas sutis e vibrantes do complexo arquitetônico. Dialogar visualmente com o lugar e reco-lher no papel e na tela os últimos tons vermelhos do Punchao Can-cha ou os derradeiros verdes do

vale de Lurin constituem privilé-gios inegáveis e prazeres dobrados em cada visita.

Na antiguidade, Pachacámac, senhor do subsolo, foi oferen-dado para calmar a fúria dos ter-remotos e equilibrar as lutas ter-ritoriais, as disputas sucessórias, os impasses políticos próprios de um mosaico social extenso, multiétnico e ágrafo. Um mundo sem escritura baseou seus acordos

de convivência pacífica na voz desse oráculo, venerado em toda a área andina e amazônica. Tanto quanto ontem, os peruanos hoje exigimos a inspiração de entida-des simbólicas unificadoras seme-lhantes. Talvez a apreciação e o conhecimento de nossos valores originários sirvam para reconci-liar o passado distante com o re-cente, e traçar rumos futuros.

RicaRdo Wiesse

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VISÕES DE PACHACÁMACO pintor Ricardo Wiesse (Lima, 1954) reúne no Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores uma amostra antológica de seus óleos e desenhos dedicados ao mítico santuário arqueológico da costa peruana.

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PACHACÁMAC MILENARDenise Pozzi-Escot*

O novo museu é inaugurado no santuário arqueológico de Pachacámac.

O santuário arqueológico de Pachacámac, localizado ao sul de Lima, na bacia

do rio Lurín, tem uma história de aproximadamente 1.200 anos. Foi o principal centro cerimonial pré-hispânico do litoral peruano durante o império dos incas. Ocupa atualmente 465 hectares, onde existem mais de cinquenta edifícios que refletem a grande importância do sítio, espalhados dentro de uma área de aproxima-damente 250 hectares.

Essa importância também fica patente graças aos trabalhos de investigação realizados desde o iní-cio do século XXI, que permitiram recuperar importante material rela-cionado com os costumes, crenças e formas de vida das diferentes ocupações humanas do santuário arqueológico.

O lugar é dividido por quatro muralhas que controlam e orien-tam o acesso. Originalmente, desde o início de nossa era, na época Lima, até meados do pri-meiro milênio, foram construídos o Templo Velho, uma imponente obra feita de pequenos tijolos de barro feitos a mão, e o Urpi Wachaq, além do centro adminis-trativo conhecido como Complexo de Adobitos. Ao que parece, houve um primeiro apogeu ao redor de 650 d. C. quando os waris se expandiram desde a região de

Ayacucho até ocupar os andes centrais

e, além dar uso ritual religioso ao lugar, enterra-ram seus mortos em Pachacámac. Dessa forma, deixaram ali um grande cemitério.

D u r a n t e os séculos XI e XV, a região onde atual-mente fica a cidade de Lima foi ocupada por um grupo c o n h e c i d o como Ychma, que construiu a maioria de edifícios que hoje podem ser admirados no santuário. As construções mais represen-

tativas dessa época são as pirâ-mides, muito semelhantes entre si, formadas por duas ou três plataformas e uma rampa central; existem 16 delas dentro do santuá-rio, com acesso pela rua Norte-Sul ou Leste-Oeste, as principais vias de comunicação no interior do santuário. Também destaca dessa época o Templo Pintado, um edifício escalonado construído primeiro com tijolos de barro pequenos, caraterísticos da época Lima, e retangulares, cuja fachada norte apresentava uma importan-te pintura mural com desenhos de figuras antropomórficas, plantas, peixes e aves de cor vermelha e amarela.

Foi na época inca que o santuá-rio de Pachacámac atinge um auge pan-andino, incorporado o vasto estado do Tahuantinsuyo. O pro-selitismo religioso inca permitiu a subsistência da religião e o culto ao Deus Pachacámac, oráculo de reconhecida fama, mantendo seus templos, ícones e cores locais, isto é, permitindo que continuassem as oferendas tradicionais.

Os incas remodelaram grande parte do santuário, condicionan-do os acessos e construindo uma série de edifícios que firmavam seu domínio na região do lito-ral central. A ocupação inca se revela não apenas nos grandes edifícios como o templo do Sol e o Acllahuasi, mas também nos objetos de uso cotidiano e ceri-monial encontrados durante as escavações no sítio.

Parte importante desses acha-dos é constituída pelos tecidos, lembrando que eles conferiam identidade social, política e cul-tural no antigo Peru. Como os têxteis, os quipus incaicos tiveram um papel importante dentro da organização do santuário de Pachacámac ao registrar meticu-losamente a coleta de oferendas

deixadas pelos peregrinos, que atualmente integram a importan-te coleção do museu no sítio de Pachacámac.

Além disso, pelo vale de Lurín passava o trecho Xauxa– Pacha-cámac do caminho principal incaico ou Qhapaq Ñan, caminho transversal que unia o sítio de Pachacámac, através do apu Paria-caca na puna, com Hatun Xauxa, importante centro administrativo inca na região de Junín.

A necessidade de conservar o material procedente das escava-ções foi uma das razões principais que levaram Arturo Jiménez Borja a fundar o primeiro museu no santuário de Pachacámac em novembro de 1965, a fim de custodiar, pesquisar e expor os principais testemunhos arqueoló-gicos do lugar. Com o passar dos anos, o museu de Pachacámac se tornou um importante centro de difusão da história pré-hispânica da região, guardando também o material procedente das pesquisas no vizinho vale de Lurín.

Hoje, cinquenta anos depois, é inaugurado um museu totalmente renovado, que harmoniza com o entorno, respeitando a paisagem e de acordo com as estruturas pré-hispânicas, sem prejudicar a área intangível do santuário. O desenho incorporou uma série de rampas que nos fazem lembrar das formas arquitetônicas pré-his-pânicas, e conta com uma ampla sala de exposição permanente, organizada a partir de um rotei-ro que faz referência aos cinco valores universais do sítio, imple-mentando uma museografia ino-vadora que expõe adequadamente objetos representativos da história do sítio. Conta também com uma sala de usos múltiplos, além de um espaço ao ar livre, onde está a loja do museu e uma cafeteria que permite desfrutar da paisagem.

Por último, o museu utiliza atual-mente novos e amplos depósitos que serão equipados paulatina-mente para um adequado manejo dos objetos armazenados.

Como todo museu moderno, o de Pachacámac abriu suas portas à comunidade do entorno organi-zando atividades para socializar a história e o espaço do importante santuário. Dessa forma, desde 2014 e com o apoio de Sustainable Preservation Initiative (SPI) está sendo executado o Projeto de Desenvolvimento Comunitário, que permitiu capacitar um grupo de mulheres dos assentamentos vizinhos do sítio para a confecção de artesanato com identidade, relacionado com a iconografia de Pachacámac. Após dois anos de capacitações permanentes em desenho, gestão empresarial e turismo, essas mulheres forma-ram com entusiasmo a empresa Sisan (Florescer, em quíchua) para comercializar seus produtos.

Esse importante projeto pode-rá continuar capacitando o grupo em novas técnicas artesanais como o tingimento em reserva, graças à bolsa de turismo Cuida, que viabi-liza a troca de conhecimentos com outros artesãos do litoral norte, percorrendo simbolicamente, vários séculos depois, o caminho de seus ancestrais peregrinos. O museu de Pachacámac é também um centro de aprendizado, um espaço para a educação intercultu-ral do qual podem participar esco-las do entorno com a realização de programas vinculados ao meio ambiente e a história particular da região, promovendo sua identida-de local. Dessa forma, esperamos contribuir para a formação de cidadãos comprometidos com seu patrimônio.

* Diretora do museu de Pachacámac do Ministério de Cultura.

Novo museu no sítio arqueológico de Pachacámac.

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Ídolo de Pachacámac. Detalhe da talha em madeira que representa o deus Pachacámac, adorado e temido no mundo andino.

CHASQUI 11

CÉSAR MORO OU A PAIXÃO DO POETA

Jorge Nájar*Aparecem duas esperadas edições da poesia completa do surrealista peruano.

Alfredo Quíspez Asín, nome de batismo de César Moro.

É surpreendente constatar como a partir de três edições praticamen-te clandestinas, publicadas além

do mais em francês, duas na Cidade do México e uma em Lima, e de um só livro em castelhano, publicado após sua morte, a obra inteira de César Moro (Lima 1903-1956), com o passar do tempo, chegou a ser uma das maiores contribuições à modernidade dentro de nossa tradição: um mundo de inten-sa paixão onde «o erotismo não é só experiência da plenitude, mas também da carência»1.

Convém, então, refletir sobre os ele-mentos que intervieram para essa obra ter conquistado tanto reconhecimen-to. Vamos começar lembrando alguns aspectos da personalidade do autor. Foi dito sobre ele que era «explorador, místico, irônico, violento, sem vonta-de para viver uma vida de cânones ou preceptivas…». Tais não são pinceladas para retratar um ser qualquer. Um mís-tico é uma pessoa dedicada à vida espi-ritual e à contemplação de Deus, ou a escrever sobre isso. E no caso de Moro, na perspectiva de Carlos Estela, trata-se de um místico que ao mesmo tempo é um ser violento. Também foi dito que ele era «visionário, cosmopolita, visce-ralmente peruano… basta começar a ler para desatar a aura de um escritor maldito e secreto», além de uma «figu-ra uma «figura enigmática […], homem paradoxalmente discreto e apaixonado até o ponto de uma saciedade verossí-mil, que renegou de su pátria e de sua língua materna». Ao comentar uma fotografia de Moro caminhando pela rua de San Juan de Letrán (Cidade do México, 1942), o próprio Gabriel Ber-nal Granados o descreve em toda sua dimensão: «Leva paletó de cor sépia e camisa preta de gola redonda. Óculos também pretos e testa ampla. O vai e vem se seus braços enfatiza a vertigem ilusória da central avenida. Moro con-heceu e tratou com alguns membros do grupo Contemporâneos; especialmen-te se fala de sua empatia com Xavier Villaurrutia, poeta noturno do amor homossexual, a morte e o sonho; entre-tanto, tem algo na aparência de Moro que o diferencia de seus companheiros de rota. O que será que ele tinha, que o fazia diferente inclusive dos líderes da vanguarda latino-americana educados na Europa, como Vallejo ou Huidobro, ou o predecessor e mestre deles todos, o nicaraguense Rubén Darío? A dife-rença que marcava seu carácter e apeti-tes está no que poderia ser qualificado como certo desdém poético. O cume de suas ambições não se encontrava no reino da literatura ou das artes, mas no mais excelso e difícil da vida…»2. Eis aí o personagem em relação com os outros e consigo mesmo. Eis aí o artista por cima das engrenagens da promoção social e do autolouvor.

Porém, quando se chega a esse nível, convém ir além das posturas e tentar chegar ao cerne das coisas. Para isso, é preciso percorrer a Obra poética completa da coleção Archivos e Obra poé-tica completa da Academia Peruana da Língua, diferentes uma da outra por seus conteúdos e opções. A primeira opta pela edição crítica, apresentando os textos de Moro nas línguas em que foram escritas e, portanto, parcialmen-te bilíngue. A segunda, traz uma edição bilíngue dos textos escritos original-

mente em francês, permitindo que toda essa poesia, antes disponível apenas para uma minoria de leitores bilíngues, esteja agora ao alcance de todos os lei-tores de língua castelhana.

O editor da Obra poética completa3, na versão da Academia Peruana da Lín-gua, exprime o longo caminho percorri-do pela poesia de Moro para chegar ao estado atual de maestria. E graças a essa edição, agora é imperioso falar da obra tendo em conta as contribuições de seus tradutores. Também é impossível falar dela sem nos deter previamente nos trabalhos de tradução do próprio Moro. Por que? Porque o tradutor é o autor invisível da história da literatura. Os tradutores são atores da literatura na medida em que são importadores de literaturas. E Moro foi um deles.

Quando se chega à coluna vertebral da obra de Moro, à poesia em si, não deixarão de surpreender as opiniões divergentes diante de suas opções lin-guísticas, o espanhol ou o francês. Por um lado, na primeira introdução de Obra poética completa-Archivos, afirmou-se que com sua chegada a Paris, o francês seria «sua língua poética por excelência»4. Efetivamente, durante sua vida, o próprio Moro preparou e materializou suas edições nesse idioma. Tanto a primeira, Château de grisou, de 1943 (200 exemplares), a segunda, Let-tre d’amour, de 1944 (50 exemplares), ambas publicadas no México, quanto a terceira, Trafalgar Square, de 1953 (120 exemplares), publicada em Lima, são

edições mínimas, como se deliberada-mente não procurasse leitores entre aqueles que estavam em volta. Mesmo assim, estas três publicações não eram mais do que a ponta do iceberg.

Por outro lado, admitindo que efe-tivamente a língua de adoção prima considerando o volume de sua obra, é impossível deixar de reconhecer a insu-perável intensidade da matéria verbal em que ficou plasmada sua minoritá-ria obra em castelhano. Numa outra introdução à mesma Obra poética com-pleta-Archivos, Julio Ortega afirma que a obra de Moro «põe em crise o hábito da leitura homogeneizadora e excede as classificações e nomenclaturas, inclusive dentro do próprio surrealismo, especial-mente em seu uso libérrimo da língua fran-cesa». Nessa mesma linha, André Coyné, autor da terceira introdução, confessa: «Desde que nos conhecemos, no final de 1948, cada vez que escrevia uns ver-sos, copiava-os e os mostrava para mim, mas não para discuti-los esteticamente, e sim para que eu corrigisse seu francês, se preciso fosse …». «Traduzir Moro é uma aventura apaixonante, mas usualmente decepcionante e às vezes impossível» dis-se Américo Ferrari. É apaixonante quan-do o leitor privilegiado se depara com diamantes. O perigo está nos sílices, que submetidos ao processo de recriação numa nova língua, acabam despedaça-dos, com seus ângulos afiados, entre as mãos do tradutor.

Cabe lembrar também da análise de Helena Usandizaga a respeito de

um aspecto pouco estudados dentro da obra de Moro. Ela aponta para a tendência de ler a obra multifacetada «como se tratando do drama autobio-gráfico gerado pela violência enuncia-tiva que define o estilo [...]. Isso é ver-dade, mas só em parte: nos diferentes textos o sujeito textual realiza operações diferentes e por isso não é lógico transi-tar sem questionamento de um tipo de texto para outro»5. A voz profética que impera em seus textos, a voz enuncia-dora do despojamento amoroso e seu respectivo componente sacrificial —afir-ma Usandizaga— «explica-se também em termos da estratégia usada pela paixão extrema». Em sua argumentação apon-ta, por exemplo, que nas cartas de amor falta um elemento decisivo de seu tom poético: a violência como forma de se relacionar com o mundo. E isso leva a sustentar que «no tom são reelabora-das as atitudes críticas e analíticas dos ensaios para transcender os limites da autobiografia». O próprio Moro sus-tentou em Los anteojos de azufre que a poesia é «a guarida das criaturas ferozes, o advento da era antropófaga, a seleção dos piores instintos, dos instintos de assassinato, de violação, de incesto…». O tom de Moro nos ensaios muda. Em sua reflexão ensaística «Moro define a combustão com que ardem seus textos e […] propõe a transgressão que a pro-picia». Na tentativa de esclarecer seu enraizamento, sua vontade de permane-cer entre nós mesmo se considerando alheio, Moro se refugiou intelectual-mente, esteticamente, ideologicamente, na imagem fulgurante e bela do antigo Peru para a opor «à sordidez e vulgari-dade da vida moderna; nela se refugia como poeta, e essa imagem, segundo ele, pertence aos poetas». Conclui Usan-dizaga sugerindo que achar refúgio no mundo das antigas civilizações não era para Moro um aconchego na referência arqueológica, mas «uma percepção esté-tica extrema que implica uma maneira de arder na beleza e no sagrado...».

Já apontadas as relações preceden-tes e vista desde qualquer ângulo, a obra inteira de César Moro emerge como um gigantesco fluxo vulcâni-co. Sai da profundidade da noite, das entranhas do planeta, e expande sus gemidos e suas pepitas de ouro, seus gritos repletos de diamantes e pedras estranhas, seus silêncios, suas lágrimas e gargalhadas como se fosse um canto diabólico. Um canto de anjos furiosos. Um canto fúnebre em francês e em castelhano, mas entoado com a mesma tinta: a paixão. Trata-se de um canto de imolação nas fogueiras do prazer. Trata-se de um hino solar às turbulências do amor.

* Poeta e tradutor. Teve a seu cargo a tradução de parte das obras em francês de Moro, pu-blicada pela Academia Peruana da Língua.

1 Sucre, Guillermo. La máscara, la transparen-cia, Caracas, Monte Ávila, 1975, pp. 398-404.

2 Amour à Moro, homenagem a César Moro. Edi-tores: Carlos Estella e José Ignacio Padilla, pp. 5, 101, 114 e 116.

3 César Moro. Obra poética completa. Lima, Academia Peruana da Língua, 2016.

4 César Moro. Obra poética completa. Edição crítica. Coordenadores: André Coyné, Daniel Lefort, Julio Ortega. Poitiers, CRLA. Coleção Archivos, 2015, pp. XXX.

5 Usandizaga, Helena. «Saber y violencia en los ensayos de César Moro». Em: Amour à Moro..., ob. cit., pp 118-127.

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Vienes en la noche con el humo fabuloso de tu cabellera

AparecesLa vida es ciertaEl olor de la lluvia es ciertoLa lluvia te hace nacerY golpear a mi puertaOh árbolY la ciudad el mar que navegasteY la noche se abren a tu pasoY el corazón vuelve de lejos a asomarseHasta llegar a tu frenteY verte como la magia resplandecienteMontaña de oro o de nieveCon el humo fabuloso de tu cabelleraCon las bestias nocturnas en los ojosY tu cuerpo de rescoldoCon la noche que riegas a pedazosCon los bloques de noche que caen de tus manosCon el silencio que prende a tu llegadaCon el trastorno y el oleajeCon el vaivén de las casasY el oscilar de luces y la sombra más duraY tus palabras de avenida fluvialTan pronto llegas y te fuisteY quieres poner a flote mi vidaY solo preparas mi muerteY la muerte de esperarY el morir de verte lejosY los silencios y el esperar el tiempoPara vivir cuando llegasY me rodeas de sombraY me haces luminosoY me sumerges en el mar fosforescente donde acaece tu estar

Y donde solo dialogamos tú y mi noción oscura y pavorosa de tu serEstrella desprendiéndose en el apocalipsisEntre bramidos de tigres y lágrimasDe gozo y gemir eterno y eternoSolazarse en el aire rarificadoEn que quiero aprisionarteY rodar por la pendiente de tu cuerpoHasta tus pies centelleantesHasta tus pies de constelaciones gemelasEn la noche terrestreQue te sigue encadenada y mudaEnredadera de tu sangreSosteniendo la flor de tu cabeza de cristal morenoAcuario encerrando planetas y caudasY la potencia que hace que el mundo siga en pie y guarde el equilibrio de los maresY tu cerebro de materia luminosaY mi adhesión sin fin y el amor que nace sin cesarY te envuelveY que tus pies transitanAbriendo huellas indeleblesDonde puede leerse la historia del mundoY el porvenir del universoY ese ligarse luminoso de mi vidaA tu existencia

el olor y la mirada

El olor fino solitario de tus axilasUn hacinamiento de coronas de paja y heno fresco cortado con dedos y asfódelos y piel fresca y galopes lejanos como perlasTu olor de cabellera bajo el agua azul con peces negros y estrellas de mar y estrellas de cielo bajo la nieve incalculable de tu miradaTu mirada de holoturia de ballena de pedernal de lluvia de diarios de suicidas húmedos los ojos de tu mirada de pie de madréporaEsponja diurna a medida que el mar escupe ballenas enfermas y cada escalera rechaza a su viandante como la bestia apestada que puebla los sueños del viajeroY golpes centelleantes sobre las sienes y la ola que borra las centellas para dejar sobre el tapiz la eterna cuestión de tu

mirada de objeto muerto tu mirada podrida de flor

* César Moro. La tortuga ecuestre. Lima, Revuelta Editores, 2012.

Vens à noite com a fumaça fabulosa de tua cabeleira

Apareces A vida é certaO cheiro da chuva é certoA chuva te faz nascerE bater na minha portaÓ árvoreE a cidade o mar que navegasteE a noite te deixam passarE o coração volta de longe a se assomarAté chegar a tua fronteE te ver como a magia resplandecenteMontanha de ouro ou de neveCom a fumaça fabulosa de tua cabeleiraCom as criaturas noturnas nos olhosE teu corpo de brasaCom a noite que regas em pedaçosCom os blocos de noite que caem de tuas mãosCom o silêncio que prende a tua chegadaCom o transtorno e a maréCom o vai e vem das casasE a oscilação de luzes e a sombra mais duraE tuas palavras de enxurrada fluvialAssim que chegas já foste emboraE queres pôr a salvo a minha vidaE só preparas a minha morteE a morte de esperarE morrer de te ver longeE os silêncios e o esperar o tempoPara viver quando chegasE me rodeias de sombraE me fazes luminosoE me submerges no mar fosforescente onde acontece teu estar

E onde só dialogam tu e minha noção escura e pavorosa de teu serEstrela desprendendo-se no apocalipseEntre bramidos de tigres e lágrimasDe gozo e gemer eterno e eternoAprazer-se no ar rarefeitoEm que quero te prenderE rolar pela vertente de teu corpoAté teus pés cintilantesAté teus pés de constelações gêmeasNa noite terrestreQue te segue encadeada e mudaTrepadeira de teu sangueSustentando a flor de tua cabeça de cristal morenoAquário guardando planetas e caudasE a potência que faz com que o mundo continue de pé e guarde oequilíbrio dos maresE teu cérebro de matéria luminosaE minha adesão sem fim e o amor que nasce sem cessarE te envolveE que teus pés transitamAbrindo pegadas indeléveisonde pode ser lida a história do mundoE o porvir do universoE esse ligar-se luminoso de minha vidaA tua existência

o cheiro e o olhar

O cheiro fino solitário de tuas axilasUm cúmulo de coroas de palha e feno fresco cortado com dedos e liláceas e pele fresca e galopes distantes como pérolasTeu cheiro de cabeleira sob a água azul com peixes negros e estrelas de mar e estrelas de céu sob a neve incalculável de teu olharTeu olhar de holotúria de baleia de sílice de chuva de diários de suicidas úmidos os olhos de teu olhar de pé de madréporaEsponja diurna a medida que o mar cospe baleias doentes e cada escada rejeita seu viandante como a criatura empestada que povoa os sonhos do viajanteE golpes cintilantes sobre as têmporas e a onda que apaga as centelhas para deixar sobre o tapete a eterna questão de teu olhar de objeto morto teu olhar apodrecido de flor

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marinha de Guerra do PerúBANDA SINFÓNICAedição especial centenáRio 2015

A Marinha de Guerra do Peru, come-morando o centenário da criação de sua banda, lançou o primeiro CD de sua nova Banda Sinfônica, que inclui música original para banda, arranjos de música peruana, música ‘clássica’ (valsas de Strauss, suite da ópera Car-mem, etc.) e trilhas sonoras de cinema. A Banda Sinfônica da Marinha foi refundada em 2014 com o impulso e a direção do maestro Abraham Padilla Benavides, assessor musical da instituição.

Isso foi resultado de uma série de importantes iniciativas destinadas a colocar no mais alto nível a música para banda no Peru, realizadas durante os últimos anos. Tradicionalmente as bandas das instituições militares não faziam parte da vida cultural de concer-tos no Peru, mas com a aparição desse elenco, isso mudou radicalmente. O alto nível demonstrado desde os pri-meiros concertos oferecidos em 2014 continuou a se desenvolver durante a

Temporada Centenário 2015, chegan-do a atrair mais de 13 mil espectadores. Também foram realizados concertos di-dáticos e recitais dos elencos de câmara da Banda Sinfônica. A qualidade fica patente nos sutis matizes atingidos, o timbre sinfônico refinado, a afinação exata, a versatilidade de estilos aborda-dos e um equilibrado virtuosismo. Suas interpretações são vibrantes e enérgi-cas, mostrando também grande deli-cadeza nas obras e passagens em que ela é necessária. O disco foi gravado na Escola Naval do Peru em julho deste ano pela Global Artists Studio, com os mais altos padrões de qualidade e conta com uma elegante apresentação gráfica. Como uma contribuição ao repertório peruano original para banda sinfônica, é incluída a obra Ninkashi: el abrazo de la Tierra, de Abraham Padilla, inspirada em cantos tradicionais do povo ashaninka da Amazônia perua-na. Também está incluída uma versão renovada do vals peruano «La flor de la canela». Traz uma encadernação com a resenha da banda, um artigo sobre o desenvolvimento da arte musical na Marinha, comentários vários e os créditos correspondentes. O repertório é o mesmo que foi interpretado no Concerto de Gala realizado no Gran-de Teatro Nacional do Peru em 11 de agosto de 2015.

luciano QuisPenueVa sanGre, SONIDOS DEL ANDE PERUANO(Wayna Music, 2013, WWW.sayaRiy.coM)

Esta é uma coleção de música inter-pretada, arranjada e, em alguns casos,

criada por destacados intérpretes de instrumentos característicos da música andina. Foram convidados expoentes de charango, violão, violino, harpa, aerofones e saxofones para represen-tar o imaginário musical dos Andes modernos, na visão do produtor. Essa visão é materializada nos discos monográficos, cada um dedicado a um instrumento ou sonoridade.Na coleção, os instrumentos não se combinam entre si. O produtor de-clara que cada disco da série pretende ser um corpus acadêmico sonoro do que denominaria como a «nova mú-sica andina». No caso, o intérprete é Luciano Quispe, destacado harpista local, autor de vários temas do disco. Outras obras pertencem ao repertório tradicional, incluídos também temas de Guillermo Arias, Eustalio Cuentas e Teodoro López.As peças gravadas são maiormente reinterpretações de música de Apurí-mac, Ayacucho, Áncash ou Cajamarca. Os arranjos e criações de Quispe se inserem numa linhagem não apenas andina da harpa, mas que possui entre seus antecedentes os gestos sonoros, texturas e técnicas dos famosos harpis-tas paraguaios da década de 1980, que deram notável impulso à difusão desse instrumento. Do mesmo modo, as no-vas tendências harmônicas, melódicas e rítmicas do que reconhecemos como música pop andina estão presentes também na estética do disco, deixando patente que as gravações, concertos e presença mediática dessa música não só constituem uma forma de expressão de um grupo de músicos interessados em se conectar com um público mais amplo, mestiço e talvez descendente do migrante camponês à cidade, mas

que também são agora insumo para novos intérpretes e criadores, partici-pando dessa forma na ciranda ilimi-tada da cultura musical viva peruana. abRahaM padilla benaVides.

SONS DO PERU

A compositora, coreógrafa e desenha-dora Victoria Santa Cruz (Lima, 1922–2014) e seu irmão Nicomedes

(Lima, 1925–Madrid, 1992), poeta, músico, folclorista e jornalista, fizeram, tanto juntos quanto por separado, fundamentais aportes para a construção da identidade peruana diversa e pluricultural, através de sua contri-buição exemplar para o resgate e valorização da tradição musical e dancística da cultura negra do Peru. Ambos foram incansáveis na tarefa de evidenciar as atitudes da socie-dade diante do componente afro de nossa cultura nacional, revelando o preconceito e a discriminação de que ele era objeto durante muito tempo, mas não através da queixa ou da autovitimização, mas pelo contrário, recorrendo à difusão de seu valor estético e idiossincrático. Com uma contí-nua e fervorosa atividade artística, docente e mediática, Victoria e Nicomedes propu-seram à sociedade peruana uma revisão de suas atitudes diante das particularidades do ritmo, do movimento corporal e de outros componentes culturais nascidos e herdados da particular mestiçagem decorrente da chegada de escravos africanos ao nosso país, procurando sempre a dignificação dessas raízes e a exaltação desses valores. Com verso instruído, florido e às vezes combativo, Victoria em seus discursos e Nicomedes em suas décimas, lutaram por uma transformação da percepção e a valori-zação da cultura negra no Peru.

Embora uma parte dessas produções mostrasse o preconceito, outra muito importante foi dedicada a construir um corpus de tradições novas, baseadas em suas próprias pesquisas e nas que eram realizadas nas Américas, para tirar o véu com que o tempo e a falta de dados precisos cobriram alguns aspectos particulares da música e, especialmente, da dança negra. Integrando ambos tipos de expressão e tomando como base a origem africana, desenharam os contornos e muitas vezes o conteúdo inteiro das manifestações musicais e dancísticas do

que hoje conhecemos como cultura afro--peruana. Os irmãos realizaram contínuos esforços para difundir esse trabalho através de companhias de dança e música, apresen-tações no Peru e no exterior, conferências, publicações, etc. Nem todos os peruanos somos conscientes de que a maioria desses gêneros, padrões musicais e coreografias não existiam nas tradições de nossos povos da mesma forma que em outras culturas em que os traços característicos podem ser rastreados, porque muitos dos seus compo-nentes subsistiram até suas expressões presentes e continuam vivas nas atividades cotidianas em algumas regiões do pais, como é o caso da cultura andina ou da amazônica.

Essas criações, transformadas em novas tradições, hoje fazem parte dessa entidade difusa e segmentada chamada “identidade peruana”, mas que todos já reconhecemos como um patrimônio comum graças ao trabalho de Victoria e Nicomedes Santa Cruz e, é claro, ao de outros que continua-

ram com essas indagações e preocupações. Um sobrinho de Victoria e Nicomedes, Rafael Santa Cruz (1960-2014), filho do toureador Rafael Santa Cruz, dividiu seu tempo entre telenovelas e seriados de tele-visão, promovendo a música afro-peruana numa nova tendência de fusão com outras expressões, não só nacionais como também estrangeiras. Publicou em 2004 o livro e CD El cajón afroperuano e criou o Festival Inter-nacional do Cajón em 2008, cuja expressão mais difundida é a chamada ‘cajoneada’, realizada anualmente desde então, que convoca músicos e aficionados para tocarem juntos nas praças. O pesquisador Marco Aurelio Denegri publicou em 2009 o livro Cajonística y vallejística, em que faz impor-tantes contribuições para a história do cajón como instrumento musical peruano.

Compositores de música acadêmica, entre eles o subscrito, vêm criando faz algum tempo tempo obras que incluem o cajón peruano como parte do instrumental

da orquestra ou como instrumento solista, integrando dessa forma sua sonoridade à paisagem musical peruana contemporânea.

Se bem houve um notável avanço para o conhecimento, o respeito e até a integração em alguns aspectos de nossas expressões multiculturais, especialmente as afro-peruanas, é utópico e até desnecessário procurar uma unificação das mesmas, dado que é justamente essa diversidade que oferece uma grande oportunidade ao Peru, a possibilidade de se nutrir todos os dias de novos ingredientes e de se transformar, de crescer, de se conhecer, e de se respeitar, procurando a convivência harmoniosa, a interação ou integração com o outro, com aquilo outro, valorizando cada componente do que está vivo dentro de todo peruano, essa mestiçagem que nos faz afirmar com total convicção: no Peru, o que não tem de inga tem de mandinga.

* Compositor e diretor de orquestra.

A FAMÍLIA SANTA CRUZ NA CULTURA PERUANAAbraham Padilla Benavides*

Victoria e Nicomedes Santa Cruz. Rafael Santa Cruz.

CHASQUIBoletim Cultural

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Direção Geral para Assuntos CulturaisJr. Ucayali 337, Lima 1, Peru

Telefone: (511) 204-263

E-mail: [email protected]: www.rree.gob.pe/politicaexterior

Os artigos são responsabilidade de seus autores.Este boletim é distribuído gratuitamente pelas

missões do Peru no exterior.

Tradução:Angela Peltier Maldonado

Impressão:Tarea Asociación Gráfica Educativa

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O REINO DO CAMARÃO DE RIOTeresina Muñoz-Nájar*

Hoje a maior produção do crustáceo, cerca dos 80%, concentra-se nas bacias de

Ocoña, Majes-Camaná e Tambo, em Arequipa, embora também há apetitosos camarões em Lunahua-ná, na bacia do rio Cañete, ao sul de Lima.

Como outros artrópodes —gru-po ou phylum que inclui insetos, aracnídeos, crustáceos e miriápo-des—, o camarão de rio (Criphyops caementarius) é totalmente coberto por uma carapaça. Dado que essa armadura impede seu crescimen-to, ele deve mudar constantemen-te seu exoesqueleto. Isso quer di-zer que cada vez que esse guerreiro de água doce acumula quantidade suficiente de tecido para dar uma nova esticada, desenvolve uma ca-rapaça sob a velha, e dessa forma, quanto está pronto, procura um lugar seguro para a muda, ação que dura poucos minutos. Sua nova armadura não leva mais de seis horas para ficar tão resistente quanto a anterior. Se bem essa característica o faz semelhante a outros crustáceos como o lagos-tim (Litopenaeus vannamei), entre eles há uma grande diferença além do sabor: o camarão de rio possui uma pinça tão grande que pode chegar a ter o mesmo peso que o corpo.

Os camarões machos adultos são bastante maiores que as fê-meas, e elas têm o segundo par de extremidades bem menor. Há camarões de criadouros, como os «gigantes da Malásia» cultivados principalmente na região amazô-nica de San Martín, mas em seu habitat natural, o animal prefere os remansos profundos e escuros e costuma se esconder da luz e dos predadores, seja entre a vegetação dos rios, seja embaixo das pedras. Cabe lembrar que o camarão tem um forte instinto canibal, por quanto são vítimas não só do ho-mem, que pesca indiscriminada-mente ou contamina a água, mas também de sua própria espécie. Quando cresce em lugar adequa-do, o camarão pode atingir um tamanho de até 40 centímetros e pesar 200 gramas; entretanto, comercialmente, seu tamanho oscila entre 8 e 20 centímetros e seu peso entre 20 e 100 gramas.

Seguindo o rastro do camarãoNão há dúvida de que o camarão de rio foi parte da dieta dos antigos

peruanos. Isso é confirmado em primeiro lugar por Ruth Shady, estudiosa de Caral, uma das cul-turas mais antigas da civilização. Segundo Shady, faz 5.000 anos, além de consumir anchova e o ex-tinto mexilhão roxo ou choro zapa-to, os habitantes de Caral comiam camarões do rio Supe. Nesse sítio arqueológico foram encontrados vestígios muito interessantes, como armadilhas fabricadas com fibra de sisal e algodão e restos de fragmentos de camarões entre as oferendas achadas no edifício piramidal A Galeria.

O camarão de rio também foi representado em cerâmicas de diversas culturas pré-hispânicas e perenizado nos petróglifos de Chichictara, na província de Pal-pa, em Ica, nos de Miculla, em Tacna, e nos de Toro Muerto, em Arequipa, entre outros. Isso de-monstra que, em épocas remotas, foi sustento alimentar dos habi-tantes dessas regiões, que deviam consumi-lo fresco ou seco, como faziam com peixes e moluscos.

Durante o vice-reinado, o camarão continuou a ocupar um lugar preponderante nas mesas de muitos lugares. O padre Bernabé Cobo, em sua famosa Historia del

Nuevo Mundo (datada em Lima, em 1653), aponta: «Os camarões dos rios são de cor parda, e cozi-dos ficam vermelhos como o coral […] de todos há muita abundancia neste reino do Peru, e secos são levados de umas partes para ou-tras». Sergio Zapata Acha, em seu Diccionario de gastronomía peruana tradicional Zapata, lembra que em quíchua, yukra significa camarão, que em aimará se chama amukha e lang na língua mochica.

Por sua parte, Eduardo Dar-gent, em Cocina monacal en la Lima virreinal, refere que no monastério da Santíssima Trindade, a meados do século XVII, os camarões se compravam «por cargas ou ‘man-tas’ em quantidade que não se pôde averiguar». Dargent informa que as freiras também adquiriam camarões secos e que eram empre-gados junto com os frescos para preparar, entre outros quitutes, a «quinoa atamalada».

Dargent recuperou desse monastério uma série de listas de ingredientes em que o cama-rão é protagonista. Uma delas é realmente interessante: «Cinco patacões de camarões, 4 reais de banha, meio real de cebola e salsa, 2 reais de tomate, 1 real de

ají verde, meio real de vinagre». A pregunta é se o prato preparado com esses ingredientes terá sido camarões ao vapor.

Sobre a presença dos camarões nos rios de Lima, Dargent diz que «eram pegos nos rios Rímac, Chillón e Lurín, mas também nos canais do rio Surco. Até inícios do século XX era possível pescar camarões nesse último rio e na quebrada de Armendáriz, que era seu escoadouro». Mais tarde, já durante a República, Manuel Atanasio Fuentes, em seus Apun-tes históricos, descriptivos, estadísticos y de costumbre de Lima (1867), ao se referir às «comidas nacionais», conta: «Outro dos guisados é o chupe, que, se não estiver na alta hierarquia de um cozido, é certa-mente mais agradável. É feito com batatas cozidas em água ou leite em que se acrescenta o camarão, peixe frito, ovos, queijo, manteiga e sal». Também diz que «o chupe precisa de algum sei lá o que, que só o cozinheiro de Lima sabe».

Nos domínios do crustáceoO fato de os rios de Arequipa atualmente monopolizarem a produção de camarão não é mera casualidade. Em meados

Com o passar do tempo, vários fatores como a depredação e as mudanças climáticas foram reduzindo o hábitat do insumo mais suntuoso da gastronomia peruana: o camarão de rio, espécie endémica do litoral peruano, desde Lambayeque até Tacna, e do norte do Chile.

Venda de camarão no mercado de San Camilo de Arequipa.

Foto

: Ros

Pos

tigo

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RECEITAS

do século XVIII, o historiador arequipenho Ventura Travada y Córdova afirmava que a cidade de Arequipa era fornecida de grandes quantidades de camarão seco. Isso faz pensar que, se os secavam, não era só para abaste-cer toda a região, mas porque os frescos sobravam, como aconte-cia por exemplo em Lunahuaná, onde ainda se fala das enormes quantidades de camarão fresco que botavam nos telhados das casas para secar ao sol, e que serviam de reserva nas épocas de escassez. «De longe —dizem os moradores do lugar— parecia que todas as casinhas tinham telha vermelha».

Verdade ou não, o certo é que em Arequipa o camarão sempre foi abundante. Isso confirma Alonso Ruiz Rosas em La gran comida mestiza de Arequipa, em que afirma: «Havia camarão no próprio rio Chili até inícios do século XVIII, embora a maior parte da oferta viesse sempre dos rios mais próximos do litoral». «Em Ocoña —escreveu Raimondi no primeiro volume de sua mo-numental obra El Perú (1874)— vi suas indústrias principais, que

consistem na fabricação de azeite e na pesca de camarão e maris-cos que fazem secar para levar até Arequipa, e atravessando a vau o caudaloso rio, con-tinuei percorrendo a pouca distância entre mar e o po-voado de Camaná, cujos habitantes têm quase as mesmas indústrias que os de Ocoña».

Ruiz Rosas destaca também três coisas im-portantes. A «evidente origem pré-hispânica» de alguns pratos arequipe-nhos a base de camarão, como a ocopa, o sivinchi, o chupe e o escrivão, e das téc-nicas de pesca e secagem. Respeito da pesca do camarão de rio, o autor comenta que havia três tipos: com atarraya ou rede (que é o instrumento que os pescadores artesanais utilizam atualmente), com a mão e com a famosa «izanga», um cesto cônico aberto na parte mais larga e fechado no extremo oposto, também utilizado pelos antigos peruanos e cujo uso hoje é proibido, porque atenta contra

o ciclo vital do ca-marão.

Quanto à secagem, técnica que como vimos é ancestral, ela consiste em colocar o ca-marão sobre as

brasas acesas de um forno ou fo-

gão, até a carapa-ça ficar vermelha.

Depois, é exposto ao sol e ao ar para secar

completamente. Em Arequipa, esse processo é chamado de «caspado», vocábulo que provém do quíchua caspay, que significa assar. O método

é confirmado por Mejía Xespe en Alimentación de los

indios. Ele escreve: «Quando a pesca é abundante, prepara-se

o amuka, que é o camarão seco com uso de fogo e de pedra ou areia quente».

Venturas e desventurasComo diz Ruiz Rosas, se

bem «o camarão é o indiscutível monarca da cozinha arequipenha

desde tempos remotos» e, sem dúvida, valioso ingrediente em quase toda a culinária do norte, sul e centro do país, existe o risco de ele desaparecer, especialmente se a veda anual não for respeitada escrupulosamente. Segundo a Ge-rência Regional de Produção do

Governo Regional de Arequi-pa, as grandes ameaças para o camarão são a captura indiscri-minada, a contaminação decor-rente da mineração informal e do despejo de águas domésticas sem tratamento e de água de uso agrícola com fortes agroquímicos. É urgente, por tanto, tomar cons-ciência e proteger essa preciosa espécie. Tanto nos lares quanto nos restaurantes, pode ser usado o lagostim ou o mencionado ‘camarão da Malásia’ na época de veda do camarão de rio, entre 20 de dezembro e 31 de março, e consumi-lo só durante os meses em que sua pesca é permitida. A ideia é nunca deixarmos de sabo-rear um «chupe de camarão», um «moqueguano de camarão» ou um «cubierto de camarão», suculentas receitas que oferecemos a seguir.

* Jornalista e pesquisadora gastronômica.

CELADORES DE CAMARÃO

INGREDIENTES600 gramas de camarão descascado2 limões6 colheradas de vinagre6 colheradas de azeite2 tomates descascados e sem semente, cortados em tiras1 rocoto bem picadinho1 cebola grande cortada em tiras1 colherada de salsa e coentro picadinhosSal e pimenta a gosto

PREPAROBotar o camarão no suco de limão com sal e pimenta. Acrescentar o vina-gre e o azeite e deixar de molho por uma hora. A seguir, agregar o tomate e o rocoto. Corrigir o tempero. Finalmente cobrir com a cebola e salpicar com a salsinha e o coentro. Servir com batata cozida e milho torrado.

Em: Blanca Chávez. El camarón. USMP, Lima, 2015.

CHUPE DE CAMARÃOReceita de Gabriela García de Huaco

INGREDIENTES1 ½ quilo de camarão grande2 litros de água fervendo2 colheradas de molho de ají panca6 dentes grandes de alho 1 cebola roxa pequena, bem picada6 pedaços pequenos de abóbora, 6 rodelas de milho verde3 batatas médias descascadas, partidas ao meio ½ xícara de arroz branco lavado½ quilo de favas verdes descascadas6 pimentas de cheiro2 ovos1 xícara de leite evaporado¼ de quilo de queijo fresco serrano, em cubinho 1 raminho de orégano fresco, 1 raminho de huacatay1 maço pequeno de cuentroAzeite, sal

PREPAROLimpar e lavar o camarão sem tirar o coral. Numa panela, dourar a cebola e os alhos bem picadinhos em azeite até ficarem cristalinos; acres-centar o molho de ají com uma pitada de sal e fritar sempre mexendo. Colocar o camarão e deixar cozinhar por uns dois minutos, até ficarem vermelhos. Retirar o camarão e pôr a água fervendo com a pimenta de cheiro. Quando a fervura começar, acrescentar as batatas e o milho, depois o arroz e no final, amarrados num maço, o huacatay, o orégano e um par de raminhas de coentro. Pôr as favas, a abóbora e o camarão. Deixar até a cocção terminar; colocar o leite, o queijo e os ovos ligeira-mente batidos, corrigir o sal deixar repousar um pouco. Reaquecer e servir, salpicando por cima coentro picadinho.

Em: A. Ruiz Rosas. El recetario de Arequipa. Cuzzi Editores, Arequipa, 2014.

CAUCHE DE CAMARÃO

INGREDIENTES24 camarões frescos descascados e lavados1 xícara de queijo fresco esmiuçado1 xícara de cebola cortada à juliana1 colherada de pasta de alho assado1 colherada de molho de ají amarelo1 colherada de coral de camarão½ xícara de tomate sem pele nem semente, em cubos4 papas brancas cozidas, em cubos½ xícara de favas verdes cozidas e descascadas1 xícara de creme de leite1 colherada de huacatay picadinho2 colheradas de azeiteFolhas de huacatay, sal, pimenta

PREPAROTempere o camarão com sal e pimenta e reserve. Numa panela, dourar a cebola, a pasta de alho assado, o molho de ají amarelo e o coral de camarão no azeite doce. Temperar com sal e pimenta. Acrescentar o ca-marão, o tomate, as batatas brancas, as favas verdes, o queijo fresco, o creme de leite e o huacatay picadinho. Cozinhar até o queijo derreter e o camarão ficar cozido. Corrigir o tempero. Sirva em prato fundo e decore com folhas de huacatay.

Em: Gastón Acurio. La cocina del sur. El Comercio, Lima, 2006.

CHASQUI 16

A trajetória de Emilio Rodrí-guez Larraín (Lima, 1928- 2015) marcou decisivamente

o panorama das artes visuais no Peru da segunda metade do século XX. Formado na tradição moderna de vanguarda, soube, porém, se adaptar às novas práticas que defini-ram o campo artístico a partir dos anos sessenta. A passagem da pintu-ra para a escultura e as intervenções em espaços específicos determinou o curso de um trabalho sem parale-lo na cena local que influiu decisiva-mente na renovação da arte peruana para buscas relacionadas com nossa contemporaneidade.

Iniciado como arquiteto nas batalhas pela modernidade no final dos anos quarenta, Rodríguez Larraín passou rapidamente para a pintura, prática que exploraria de forma contínua ao longo de sua vida. Na década de 1950 viajou para a Europa, onde morou e trabalhou por mais de trinta anos, conquistan-do reconhecimento internacional com uma pintura de orientação abstrato-geométrica que continuaria até meados da década de 1960. Já instalado na Europa, sua pintura se decanta para superfícies mais textu-rizadas associadas ao informalismo modernista, que fazem alusão às culturas do antigo Peru. Sua proxi-midade com alguns dos principais artistas da primeira modernidade como Marcel Duchamp e Man Ray impulsionou seu interesse pelo surrealismo e a experimentação artística.

Foi essa vontade pela ruptura e a fascinação pelas novas linguagens o que o levaria a dar uma virada importante no final dos anos sessen-ta, quando incursiona na escultura,

desenhando peças de grande rigor construtivo que refletem sua formação inicial como arquiteto. Os planos que desenvolve para seu desenho, bem como o trabalho que reali-za com artesãos, permitem que ele se distancie do que chamou «o gesto escultó-rico». Isso possibilita sua aproximação mais concei-tual ao trabalho artístico, embora suas esculturas mantenham uma filiação com a tradição do objeto surrealista. Efetivamente, suas peças em volume parecem entidades autossuficientes que não fazem alusão a referências externas e lembram seres impossíveis de tempos imemoriais —algo que se desprende de alguns títulos que o artista dá a esculturas como Milpatas, Ancestral ou Oiseau-vache (o Pássaro-vaca). Seguindo a pauta do projeto surrea-lista, Rodríguez Larraín assume um humor irônico e agudo entrelaçado com alusões eróticas, o que é patente em toda sua produção e que se revela nos títulos que ele dá a muitas de suas obras, como o emblemático Coño de oro (Con d’Or, en francés).

É precisamente o trabalho escultórico o que leva o artista para a produção de obras efêmeras e em espaços específicos. Em 1978 mergulhou uma de sus esculturas

mais emblemáticas —uma Piramidita de aço tratado— no mar Mediter-râneo, gesto que abriu as portas a novos projetos concebidos para ser materializados fora das galerias e dos espaços institucionais. Com essa iniciativa, Rodríguez Larraín

começa a cogitar a volta para trabalhar no Peru, concebendo depois a instalação de um enorme monumento para o deserto de Ica baseado em sua escultura Milpatas.

Embora esse projeto não chegou a se concretizar, seu retorno ao país em 1980 —um dos momentos mais complexos da história nacional— iniciou uma nova etapa de experi-mentação. Nos seguintes 15 anos, o artista desenvolveu um coerente corpo de trabalho com materiais locais que incluiu esculturas, maquetes, pinturas e intervenções no território. La tumba de los Reyes Católicos ou Un cuarto de escultura, que combinam uma intenção alegó-rica com uma reflexão crítica sobre o contexto peruano, marcaram uma ruptura em seu trabalho e se tornaram um referente indispen-sável para a história da escultura local. Como em grande parte de su obra pictórica, a arquitetura teve um papel fundamental em todas as obras que executou nesse então no Peru, particularmente sua série de «esculturasrefugio», que desenhou para ser instalada na serra de Conchucos, ou a grande construção da Máquina de arcilla, que instalou na praia de Huanchaquito dentro do marco da Bienal de Trujillo de 1987. Ao dissolver as fronteiras dos gêneros artísticos tradicionais, esses projetos assentaram um precedente importante numa cena local conser-vadora, que tinha optado por deixar de lado grande parte dos avanços experimentais no final dos anos setenta.

* Curadoras da amostra.

EMILIO RODRÍGUEZ LARRAÍN

A RENOVAÇÃO PERMANENTE

Daniela de la Fuente de Alcobendas, aprox. 1970-1980, técnica mista sobre papelão, 102 × 102 cm. Coleção privada, Lima.

Sem título / Botellas, aprox. 1969-1971, técnica mista sobre aglomerado de madeira, 119 × 165 cm. Coleção privada, Lima.

Natalia Majluf y Sharon Lerner*O Museu de Arte de Lima dedica uma exposição retrospectiva em homenagem ao destacado artista peruano.