o corpo na arte contemporânea brasileira - viviane matesco

5
0 corpo na arte contemporanea brasileira VIVIANE MATESCO A s expressoes artisticas do imagina- - rio do corpo servem de baliza para . a compreensao dos novos papeis que ele desempenha na estrutura socioeco- nomica do seculo XX. 0 corpo aparece em acees, performances, trabalhos sensoriais, moldes, panes proteticas, videos e fotogra- fias, o que revela uma mudanca significati- va nas formas de sua percepcao. Os artistas exploram sua temporalidade, contingencia e instabilidade, compreendem sua impor- tancia na busca de novas formas de liberda- de e no questionamento de convencoes ar- tisticas e sociais. Esta reflexao sobre o corpo na arte brasi- leira focalizard tres momentos: o primeiro parte da ruptura operada na ciecada de 1960 corn a introduce° da nocao de happenning, por Wesley Duke Lee e Nelson Leiner, e o de- senvolvimento de modelos participantes que integram o priblico em experiencias sen- soriais , p or Oiticica, Clark e Pape. Urn segun- do momento envolve a conjuntura da deca- da de 1970, e investiga a importancia que o corpo do artista assume na desmaterializa- cao da arte e no clima de protesto politico e da contracultura. 0 terceiro momento envol- ve a geracao dos anos 80/90, marcada pelas novas tecnologias e pelo retorno ao objeto, sem o fervor e o aspecto dramatic° de libe- raga° do corpo dos arms 6o/76. Selecionamos trabalhos pontuais no intuito de anahsar a questa° em contextos artisticos diversos, sem a pretensao de abranger, em tao pouco espaco, o grande nUmero de manifestagoes ocorridas ao longo de 40 anos. Na decada de 1960, sob a influencia das teorias de Althusser e Marcuse, a utopia vi- sando a liberar o individuo de sua alienacao na sociedade de massas capitalista estava diretamente ligada a reconquista do proprio corpo.' A descoberta do corpo pela arte, nos anos 6o, significava uma subversao de tabus e interditos, e tornava o espectador teste- munha da transgressao das regras sociocul- turais. Contra a hipocrisia do sistema e o apelo a autenticidade, constrei-se o mito de urn corpo puro. Nesta conjuntura, as acees dos artistas associados corn o Fluxus e hap- pennings marcam a dimensao hist6rica e social da vida: o corpo como locus do "eu" e o sitio onde o dominio public° encontra o pri- vado. 2 No Brasil, apesar do antecedente his- toric° da intervencao de nevi° de Carvalho, 3 a introduce° da nocao de happenning deve- se a Nelson Leiner e Wesley Duke Lee. Em 1963, Duke Lee provoca o primeiro hap- penning no Brasil, no Joao Sebastiao Bar em Sao Paulo, onde realiza uma exposicao, na epoca considerada pomografica, em que as

Upload: vinicios-ribeiro

Post on 29-Dec-2015

154 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: o corpo na arte contemporânea brasileira - Viviane Matesco

0 corpo na arte contemporanea brasileira

VIVIANE MATESCO

A s expressoes artisticas do imagina-- rio do corpo servem de baliza para

. a compreensao dos novos papeis que ele desempenha na estrutura socioeco- nomica do seculo XX. 0 corpo aparece em acees, performances, trabalhos sensoriais, moldes, panes proteticas, videos e fotogra- fias, o que revela uma mudanca significati- va nas formas de sua percepcao. Os artistas exploram sua temporalidade, contingencia e instabilidade, compreendem sua impor- tancia na busca de novas formas de liberda- de e no questionamento de convencoes ar- tisticas e sociais.

Esta reflexao sobre o corpo na arte brasi- leira focalizard tres momentos: o primeiro parte da ruptura operada na ciecada de 1960 corn a introduce° da nocao de happenning, por Wesley Duke Lee e Nelson Leiner, e o de- senvolvimento de modelos participantes que integram o priblico em experiencias sen- soriais , p or Oiticica, Clark e Pape. Urn segun- do momento envolve a conjuntura da deca- da de 1970, e investiga a importancia que o corpo do artista assume na desmaterializa- cao da arte e no clima de protesto politico e da contracultura. 0 terceiro momento envol- ve a geracao dos anos 80/90, marcada pelas novas tecnologias e pelo retorno ao objeto, sem o fervor e o aspecto dramatic° de libe-

raga° do corpo dos arms 6o/76. Selecionamos trabalhos pontuais no intuito de anahsar a questa° em contextos artisticos diversos, sem a pretensao de abranger, em tao pouco espaco, o grande nUmero de manifestagoes ocorridas ao longo de 40 anos.

Na decada de 1960, sob a influencia das teorias de Althusser e Marcuse, a utopia vi- sando a liberar o individuo de sua alienacao na sociedade de massas capitalista estava diretamente ligada a reconquista do proprio corpo.' A descoberta do corpo pela arte, nos anos 6o, significava uma subversao de tabus e interditos, e tornava o espectador teste- munha da transgressao das regras sociocul- turais. Contra a hipocrisia do sistema e o apelo a autenticidade, constrei-se o mito de urn corpo puro. Nesta conjuntura, as acees dos artistas associados corn o Fluxus e hap- pennings marcam a dimensao hist6rica e social da vida: o corpo como locus do "eu" e o sitio onde o dominio public° encontra o pri- vado.2 No Brasil, apesar do antecedente his- toric° da intervencao de nevi° de Carvalho, 3 a introduce° da nocao de happenning deve- se a Nelson Leiner e Wesley Duke Lee. Em 1963, Duke Lee provoca o primeiro hap- penning no Brasil, no Joao Sebastiao Bar em Sao Paulo, onde realiza uma exposicao, na epoca considerada pomografica, em que as

Page 2: o corpo na arte contemporânea brasileira - Viviane Matesco

pessoas utilizavam lanternas para ver os quadros. 4 Em r966, Wesley funda, junto corn

Nelson Leiner e Geraldo de Barros, a Rex

Gallery, uma tentativa de forrnar uma coo-perativa de artistas, 5 cujo objetivo era ques-

tionar a precariedade do sistema de arte.

Depois de uma serie de eventos, no decor-

rer de um ano, resolvem fechar a galeria corn

urn happenning de Nelson Leiner. 0 hap-

penning Exposicao-nao Exposicao convidava

o poblico a cortar as correntes que prendi-

am os quadros presos as paredes e a levar

tantas obras quanto possivel. Esses dois pri-

meiros happennings baseiam-se em uma sub-versa. ° das condicoes habituais de exposicao,

em uma clara referencia as condic6es do

mercado de arte. Enquanto as correntes in-

ternacionais escapavam dos mecanismos

oficiais da arte, buscando alternativas con-

trarias ao seu funcionamento capitalista,

aqui, sintomaticamente, os happennings sur-

giam atrelados a insatisfacao corn a quase

inexistencia de urn sistema formal de arte.°

Os happennings subsequentes de Leiner ob-

jetivavam uma relac5o n5o hierarquizada

corn o public°, e se inseriam em uma visa°

desmistificadora da arte, emblema do con-

junto de sua obra. Playground, realizado em

1969 nas partes externas do MASP e do MAM/

RJ, incluia objetos que previam a participa-cao do public°. Deve-se ressaltar, contudo,

que a necessidade de transmitir ao pUblico

uma vis5o critica em relacao ao aspecto ins-

titucional da arte toma sua obra singular em

relac5o a outras proposig6es da epoca. 9

Durante os anos 6o, Helio Oiticica, Lygia

Clark é Lygia Pape diluem a separacao entre

arte e public°, desenvolvendo modelos par-

ticipativos que integram o public° em expe-

riencias sensoriais. Provenientes do Neocon-

cretismo - movimento que significa uma

humanizacao da linguagem construtiva

atraves de uma investigacao, baseada na

nocao de olhar corporificado de Merleau

Ponty - Oiticica, Pape e Clark radicalizam o

desvio do projeto construtivo ao negar a es-

fera estetica mediante novas praticas artIs-

ticas. Em Lygia Clark, o sentido de manipu-

lagdo da-abra já se encontra nos Repantes e

nos Bichos, mas 6 no final dos anos 6o que seu

trabalho radicaliza o envolvimento do corpo,

assumindo urn carter de terapia mediada

pelos "objetos relacionais". Em A Casa é o

Corpo, Clark relaciona corpo e arquitetura em

uma estrutura em forma de labirinto, na

qual as pessoas vivenciam sensorial e emo-

cionalmente as diversas fases da gestac5o;

destina-se, segundo a artista, a experiencia

fanstamatica e simbolica da interiori-

dade do corpo. 8 As mudancas que ela pro-

p6e na relac5o sujeito-objeto contestam os

opostos tradicionais, tais como corpo e men-

te, interior e exterior, real e imaginario, mas-

culino e feminino. 0 corpo torna-se o centro

das atencoes e . espaco para o autoconheci-

mento."Na fantasmatica do corpo, o que me

interessa nao é o corpo em 5i",9 afirma a ar-

tista, referindo-se ao conjunto de conteados

psiquicos que determinam a percepcao, a memaria de vivencias do mundo que habi-

ta o sujeito. Dal o desenvolvimento de estra-

tegias para desentorpecer, no espectador,

seu "corpo vibratil", fazendo corn que o flu-

xo coletivo de pensamentos corporificados,

sentimentos e ideias, constituintes do ser,

revele-se para ele proprio.mNa Sorbonne, na

decada de 70, a artista desenvolve o "corpo

coletivo" em experiencias como Time?, Baba Antropolagica e Rede de Elastic°, nas quais urn

grupo vive proposicoes em conjunto e troca

entre si conteUdos psiquicos.

A noc5o de corpo praticamente se iden-tifica com a concepcao de cor na trajetoria

de Oiticica." Dos primeiros trabalhos concre-

tos as propostas de Antiarte, a cor assume

uma agao transitoria que funda a obra na

propria relagao corn o sujeito. A partir dos

Penetraveis, &Slides e Parangoles, esta dimen-

s5o sera Tadicalizada pela manipulacao e

utilizacao do "plurissensorial", termo utili-

zado pelo pr6prio artista para designar urn

alargamento da percepcao crometica, que

agora se desvencilha do monopolio visual,

requisita o corpo do individuo e instaura

uma nova ordem: a fruicao como proposta de

arte. 0 Parangole, de 1964, é uma manifesta-

cao que tern como base capas feitas corn

panos interligados, revelados apenas quan-

do a pessoa se movimenta. A cor ganha urn

dinamismo no espaco, atraves da associacao

corn a danca e a mUsica, e assume urn care-

ter literal de vivencia, reunindo sensacoes

visuals, tateis e ritmicas. A 1' III dos Poran-

fiolils, a ear passa a Sc relacionar corn E:C!r1:1:A-

cbe:: corporals e ernucties clue supaern, rani-

tas vmtes, 111Ila ViVE:!!-!Cia desestibilizadora,

uria vez clue Mia se vincula a pressupostus

estf.iricas estabelecidos. tygia Pape cornecti

I in be u deSel ivolver mxperiencitts corn

pm ticipacim do pnbliIto nu final do dactyl'

de 60. Trubolhos corno Divisor, 0 Ovo e Radii

dos Pritzeres evidenciarn urn caraler coleti-

(plias n carpi) do espectador 6 esti-

MI dada t011t0 ql1M110 01710-

cionalinente. A construcao de urn nova Flo-

Merit - ideal construtivo quo pennant-ice na

decarla de Go-- e a proposta tie vivencias clue

ilependem exelusivamente da partiCipa00

do especiador, e par isso no° tem um cara-

ror de espetneulo, distanciam os traballms

de Clark, Oiticica e }'ape de outras expres-

sees corporals no rtivel internacional. Au in-

ves de contestar a disciplina, os cedigos e as

:1011MIS sociais, a opciio sera de abrir novos

caroinhos, ampliando a percepccio e a cons-

ciencia do sujeilo. inna relaccio que iosili-

Va para despertar, diversa da europeia e americana que contesta para denunciar.

0 Sala° da Bassola, em 1969, introduz no

cenerio brasileiro as transformac6es na

linguagen1 artistica que já ocorriam interim-

cionalmente: as praticas experimentais

questionam a autonomia da pintura e da

escultura, o monopolio da visualidade e a

tradicao da recepcao da arte. He uma radi-

calizacao das proposicOes duchampianas,

uma reavaliacao da arte, uma interrogacao

sobre seu sentido e funcao na sociedade. A

ruptura dos suportes habituais e a mescla de

tecnicas acentuam o carater multidisciplinar

da arte, o que leva a uma major abrangencia

da atividade artistica, incorporando desde objetos, ambientes, intervencoes, fotografi-

a, rriapa , filIOC::::,VIC1005.1, ate carimbott i.'mi-

rneogrutos. Muitus trabrilhos envolventio o

corpo 5o realizados posses suportus, por

meio de experiencias estaticas inavadoras

is litenoloOds geradoras de irnagerm In-

dust] tars. tto en Lint°, mu vez tie tiaLi-los

cm no tuna linguagem conclicicmada biston-

carnet -lie, pi Ica izarn a precarimludc tecuica

e o it/wok/linento corn srluocoes ernoeinnais

e coriditinus." 0 confronto direto do urtista

corn A cthnesa I (Ostia gesto1 pei forma t icos

no!: trabulhos de .lose Roberto Aguilar, tole

de l'reitas, Paulo 13ruseky, Leticia Parente,

Ivens Machado, Anna Bella Geiger, Anita

Malin Maiolino, Sonia Andrade, ctntrc., outros.

Dais trabalbos emblernaticos representain

esta p oduc;-Ito: Marco Rernstrada, de 1974, vi-

deo no qual Leticia Parente bordou as pain-

vras "Made In Brasil" sobre a propria Planta

dos pas, coin uma agulha e 'Mita preta, e a

filme Super-8 In-Out, de Anna Maria Mujoli-

no, em que a cainera fixa em close uma boca

inicialmente taparla corn fita adesiva e, de-

pow, livre, tentanclo articular algurn cliscur-

so ern uma clara referencia a censura e a um-

I 532 CRITICA DE ART E NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTEMPORANEA BRASILEIRA- VIVIANE MATESCO

14 AM" NO B1110 , 11.:1!1■11111( A% CNIt MPORANI AS

(.91W1 5 I:A MOE c.t7N9E MPORANI A BR/9.111iltA VIVIAN! MAll SIM 5:33

Page 3: o corpo na arte contemporânea brasileira - Viviane Matesco

535 534 CRiTICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTEMPORANEA BRASILEIRA - VIVIANE MATESCO CRITICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTEMPORANEA BRASILEIRA - VIVIANE MATESCO

possibilidade de expressao. No final da de- cada, o grupo 3NOS3, que reline Hudinilson Jr., Rafael Franca e Mario Ramiro, foi respon- save' por imarneras intervengOes urbanas, muitas delas corn plastic° industrial, reali- zadas clandestinamente nas primeiras ho- ras da manha, criando situagOes ca6ticas em pontos estrategicos de Sao Paulo.r 3 Paralela- mente, desenvolvem a experimentacao de novas meios - o uso artistic° da fotoc6pia, conhecido por Copy Art nos Estados Unidos e Xerox Art no Brasil, envolve a relagao corn o prOprio corpo na producao dos tres artistas. No entanto, foi sem chlvida Hudinilson Jr. quem mais radicalizou a relagao perforrna- tica corporal. Desde seus trabalhos anterio- res corn colagem, xilogravura e grafite nota- se a presenca do corpo no vies de uma poe- tica homossexual; entretanto, nas performan- ces corn a maquina xerox, ele praticamente se coloca em urn embate sexual. De uma maneira mais distanciada, Paulo Bmscky desenvolve, em Recife, alguns trabalhos corn maquina xerox. Corn LMNUZX,fogo!, de 1980, filma em Super-8 o ato de colocar fogo em diversos materials em cima do visor da co- piadora. Em Xerperformance mostra, tambem atraves do Super-8, o relacionamento corpo- ra° corn a maquina xerox.

0 clima de protesto no final da decada de 1960 é acirrado no Brasil par condigiies espe- cificas como o endurecimento da ditadura militar, o decreto do Al-5, a censura dos mei- os de expresso e uma repressao sangrenta. Essa situacao repercute na elaboracao dos trabalhos, que exaltam a contracultura e tern o sentido de rebater a carga repressiva do ambiente. As transgressees dos artistas ir- rompem alem das fronteiras da arte, uma vez que nao pretendem refietir passivamente a sociedade em que vivem: produzem inter- vencees na paisagem urbana, passam a uti-

lizar o proprio corpo como suporte artistic° e convertem suas obras em performances no espago public°. Corpobra, de Antonio Manu- el, é simbolo da postura assumida na decada de 70.0 nu de Antonio Manuel, desfilado sem autorizacao no uernissage do Salao de Arte Modema de 1970, expressa um posiciona- mento politico que questiona o elitismo da cultura e do sistema. Da mesma maneira, Ti- radentes: Totem - Monument° ao Preso Politico, uma acao realizada por Cildo Meireles em Belo Horizonte, em que ateia fogo ern dez galinhas vivas, é uma referencia literal a tor- . _ tura. A questao politica tambem reverbera no experimentalism° radical de Barrio. 0 traba- lho com trouxas ensangilentadas, constitui- do de sangue, came, ossos, barro e cordas, era uma clara alusao aos corpos esquartejados e a repressao militar. Os dejetos, as materiais pereciveis e as intervencoes no cotidiano Tido s6 questionam os pressupostos esteticos, como representam uma oposigao aos valores de uma sociedade desigual. Suas interven- cOes partem da agao do corpo do artista que, par meio de atuagoes inesperadas, mobiliza as espagos e revela outros sentidos da reali- dade. 0 foco na transitoriedade dos materi- ais, sobretudo aqueles que supoem urn fluxo organic°, distancia suas experiencias da ra- cionalizagao inerente aos processos concei- tuais da decada. A putrefagao, as dejetos, as humores do corpo e a violenta sensualidade da came supoem um envolvimento sensori- al do corpo de maneira particular, pois impli- cam uma experiencia de repulsa pelo seu carter escatologico.mEste aspecto, no entan- to, engloba uma sensibilidade que ultrapas- sa a mera descricao material; seus trabalhos alcancam outras dimensoes poeticas, cons- tituindo-se em situagOes que impossibilitam a divisao tradicional entre subjetividade e objetividade ou entre mente e corpo.

Ivens Machado desenvolve uma serie de instalagaes, performances e videos, nos quais o corpo ocupa lugar central, seja pela refe- rencia sanguinolenta de uma carcaga bovi- na, seja pela atmosfera hospitalar de banda- gens e azulejos assepticos, au por videos que registram performances de situagoes obses- sivas. No final da decada, inicia a sorie cam cacos de vidro que prenuncia a substituigao de procedimentos conceituais par trabalhos nos quais sobressai o aspecto imaginativo. Grandes esculturas de cimento, revestidas de pontiagudos cacos de vidro, Tapete, Bumerangue, Consolador tern urn claro carater simbedico que supOe a ideia de afligao: o to- que, o aconchego, o prazer sexual sao suge- ridos por um vies perverso, coma se cor- porificasse a ideia do corte.'s 0 sentido de corporeidade tambem esta presente nos tra- balhos de TUnga, corn feltro, borracha e ma- teriais eletricos, do final da decada de 70, que sugerem uma experiencia visivel de mani- festacOes inconscientes, como se a obra fos- se uma plastica do desejo. Seu trabalho nao lida somente cam as caracteristicas fisicas dos materiais, mas cam significacees que se produzem nas diversas formas adquiridas pela materia. Cabelos, ossos, cranios e pr6- teses dentarias sao indicadores de uma pre- senga que nao se esgota em sua manifesta- cao. 0 que interessa nao e o corpo, nao é o objeto em si mesmo, mas sua fantasmatica, aquilo que mesmo nao podendo se ver, pro- duz efeitos. ,6 As performances de limp já se inserem em uma conjuntura diversa daque- la do experimentalismo da virada dos anos 60/70. Ern limp, a dimensao objetual e per- formatica encontram-se de tal modo entre- lacadas que o sentido de urn trabalho se completa no outro; assim, as 7Yancas origi- naram-se do artigo sabre as gemeas siame- sas, par sua vez ligado a performance das

Xifopa gas Capilares e a performance corn ser- pentes, Van guarda Visperine.

Ap6s o dominio quase exclusivo da pin- tura nos anos 8o, a performance e a arte cor- poral sao utilizadas de maneira radicalmen- te novas. 0 engajamento direto do corpo desaparece em proveito de uma metafora do corpo, que adquire agora uma nova concep- quo. A identificagao do artista corn o pr6prio corpo desempenha um papel central nos anos 60/70, já para a geracao atual o corpo perde o carater provocador. Para a arte cor- poral dos anos 60, o corpo constitui o origi- nal par excelencia, que nao se pode falsifi- car, enquanto as artistas atuais pensam que a diferenga entre autentico e falso, verdadei- ro e artificial, original e copia nao delimita fronteiras nas discussoes de arte.r 7 Muitos retomam a metodos de representagao e de narracao, seja em objeto, seja em imagem, coma os fragmentos de marmore de Angela Freiberger, trabalhados a partir do proprio corpo da artista, óu as visceras e corpos es- quartejados na pintura de Adriana Varejao, ambos bem diferentes dos c6digos de des- materializagao da obra de arte, vigentes na decada de 70. A fragmentagao do corpo em objetos ou imagens tambena é uma via re- corrente na arte contemporanea, como se observa nos trabalhos em madeira esmalta- da de Edgard de Sousa, que tanto se referem a fluidos do corpo como nas pegas em forma- to de gotas, on a fragmentos coma dorsos, au mesmo a fusao de dois homens pelo tronco. Aqui, da mesma forma que nas imagens pro- cessadas em computador a partir do regis- tro corn camera automatica de performances privadas, o artista convene-se no protago- nista de sua arte, explorando a natureza e a pertinencia de sua auto-apresentacao.'s Na producao de Nazareth Pacheco, as objetos possuem uma relagao de carater agressivo

Page 4: o corpo na arte contemporânea brasileira - Viviane Matesco

'fir 1

e sadico corn o corpo. Na mostra de suas pequenas caixas, em 1993, este carater se exprime por meio de materiais que falam de sua experiencia corn o corpo: fragmentos, como mechas de cabelos, fotografias, bulas e receitas, referem-se aos tratamentos me- dicos e de beleza, aos sacrificios impostos mulher pelos padrOes esteticos dominantes. Seus trabalhos posteriores corn especulos e forceps complementam a imagem de tortu- ra na relagao corn o corpo feminino. Na Ines- ma linha, os vestidos feitos de laminas de barbear ou de bisturi, assim como seus cola- res perfurantes, denunciam a perversao do toque ou do adorn° que fere: 9

Dois artistas sao exemplares para mos- trar como a utilizagao do corporeo pode ter aprocirriacir,es opostas, 'rips tralii .ilbos

Karin Lambrecirt, a utilli:acao de mai.:ulais

orgnnicos assocrailos a palavras condo pur

filcut), tnixo , ancue e tanner: parte:i tin

corpo, conk) Erns, .c.adrnacd, conic•o, .Z.eVer-; tcf - se de um citrate( 51.inbolill•T: ClUO fume te ;Jos

ciclos dit naturcila, ao CC:ipl3 a inorte. As

ccrres e o tra tan -lento fisico rnarert) nni;

leva. tarribern a 1-c:beret -tar rnineria piciori-

ca Li carnalirlade. Au lenge cla sua trajeteala,

a cargii draniatica de seu indica() 'or arnpli-

ado COM a ideia di) SaCrliiCitli, do abate de

animals, o debater agonisante da Caine e 0

escorrimento do sanguesobre a tela eoutros

suportes. 2`) Ern, postura oposia, a recorrencia,

nos traballms de Arlgeth Verrosa, de verte-

bras, denies, cilinios, irnagens tomogralicas,

moldes facials, pseuclocartilagense irnagens

corporais se.cionadas rervidencia urn desejo

de exploraclio formal pela ordenactio clas

part.es quo se apresentarn sera villa, coma

se fossem resicluos muclos, imagens descar-

nadirs de urn corpo.

Em rnuitos artistas, coma Ricardo Ven-

tura, Ernesto Neto, Eliane Duarte e Franklin

Cassaro, o corpo tangencia o trabalho pot meio de urn sentido latente de corporeida- de. Os trabalhoS de Ricardo Ventura ecoam carnalidade a partir de uma concretude tactil e sensual que provoca o individuo em uma dimensao anterior a razao. De forma paralela, na obra de Eliane Duarte, a fantas- matica requer uma corporeidade, urn cor- po interim e visceral. Na serie corn meias de seda recheadas corn chumbinho, de Ernes- to Neto, os elementos se prolongam sensu- almente no espaco, como se fossem corpos que distendessem sua pele. Neto privilegia o espago da troca: nao se trata de esculpir corn formas organicas, mas de estabelecer urn processo que contenha a ideia de fusao. Nos trabalhos posteriores, o visual é acorn-

‘n.:1

mrimpu:,!:;dic,

dor: ,rontui..i poi re

proct.nso (me po:!•:.',lish.rJ ; .2 •

1

p;i:1 7,1!:! .;1•:;

fulit

pE,I16011(INCV 11:1 de tt .t.1

rani na cornurndad ;le •

COI r 1.4.1-111 - ir

000 ,-..tqo

v.! 1.1111i:

cypria

perform:race ecioscrirda••sy ud.roo

7(.), pew:

complex:dude

ircJti viietr yeas 1.2[00i.hd% rfortm..?

co/florae:Die reLuune;:r"..t.

infancia a sexualidade, como Fabrica Fallus e Kaminhas-sutrinhas, originadas das perfor- mances Sex Manisse e Lovely Babies. Na serie Fabrica Fallus, a artista transforma corn hu- mor objetos comprados na sex shop em brin- quedos, questionando a proibicao da ima- gem do penis. Em Desenhando corn tergos, uti- liza uma infinidade de tergos para ocupar o chao de uma sala corn figuras de penis. Unir uma imagem sexual, o penis, a uma imagem religiosa, o terco, expOe em came viva a cen- sura da sexualidade pela religiao. A relagao entre performance e outros meios de expres- sao tambem caracteriza as geracoes mais recentes, urn exemplo disso é o trabalho da pernambucana Juliana Notari. Na sua pro- dugao, o corpo esta presente nao apenas nas performances, mas tambem em objetos que sugerem seres hibridos. Seus trabalhos po- dem misturar seres vivos, como na propos- ta corn jabutis, ou o andar sobre cacos de vi- dro, e muitas vezes incluem videoinstalagao.

A extensao do corpo corn partes proted- cas cria corpos estranhos a referenda huma- na. Urn antecedente dessa pratica sac) as roupas coletivas de James Lee Byars e as esculturas de corpo de Rebecca Horn. Ana Miguel costura seres de outro planeta corn o croche: boneca corn varios olhOs, bicos de seio que brotam de suti5s, luvas corn olhos ou corn garras. Nos trabalhos de Laura Lima, pessoas utilizam vestes ou partes proteticas pie estendem o corpo, sugerindo seres hi- bridos, como aquele em que dois homens, ligados pela cintura por uma fralda, movem- se constantemente pelo espaco, a formar uma nova especie. As esculturas de ferro de Felix Bressan sac) prolongamentos de urn corpo ausente. Corpos hibridos que sugerem imagens de maquinas e seres pre-historicos, seus trabalhos recentes radicalizam a rela- cao corn o corpo ao utilizar moldes de pias e

bides, fundidos em ferro sem acabamento, cujas irriperfeigOes, buracos e ferrugens fun- cionam como ferimentos na prOpria pele." Os prolongamentos do corpo tambern estao no cerne de trabalho de Michel Groisman. Em sua triologia de performances, compostas por Criaturas,"flansferencias e Tear, desenvol- ve uma linguagem constituida por urn tipo de movimentagao corporal integrada ao uso de aparelhos. Compostas por rodas, exten- sees, dobradiga, tubos, entre outros, essas extensees sao construidas pelo ardsta para cada pane do corpo, em referenda a um tipo de agao, como em D-ansferincia, em que pas- sa a chama de urn ponto ao outro do corpo, pot meio da movimentagao e de urn comple- xo sistema de tubos e velas.

0 corpo retoma em imagens de fotogra- fia ou de novas midias. Apesar da sua expo- sicao obsessiva na ültima decada, este se apresenta de maneira ambigua, pois as ima- gens reforcam uma ausencia. Fragmentado, o corpo aparece para provar sua presenga fisica atraves de videos, fotografias e outros meios tecnologicos. A proliferacao de ima- gens de fragmentos corporais parece refle- tir sua desmaterializagao. Uma nova geracao de artistas discute o aniquilamento do in- dividuo na sociedade de massas, utilizando a fotografia como meio. A impossibilidade de identificar o outro e a si mesmo em uma so- ciedade esfacelada e a recusa em produzir obras fotograficas, nas quais a objetividade da imagem seja a tecnica principal, levaram a fotografia a beira da abstragao, tendo como base o proprio corpo ou o corpo do outro.22A segmentacao do corpo aparece relacionada a perda de identidade ou a hibridizacoes nos trabalhos de Rubens Mano, Rochelle Costi, Marcia Xavier, Marcelo Hara, Rafael Assef, Vicente de Mello, Janaina Tschape, entre muitos outros.

S3G . :1

rk.

AUL NO PPASIL: TEMATIrt.d. t r

o — .

t..9:11 1 O t.:11C 1:01111MPORANEA yruli

CRITICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTEMPORANEA BRASILEIRA — VIVIANE MATESCO 537

Page 5: o corpo na arte contemporânea brasileira - Viviane Matesco

538 539 CRITICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTEMPORANEA BRASILEIRA - VIVIANE MATESCO

CRITICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS

0 CORPO NA ARTE CONTE MPORANEA BRASILEIRA - VIVIANE MATESCO

Duas . abordagens sugerem posigOes divergentes em relacao a tecnologia e a vir- tualizacao das relacees. 0 grupo Corpus In- formaticos, coordenado por Beatriz Medeiros da Universidade de Brasfiia, desenvolve ex- periencias performaticas por meio de uma rede informatizada, na qual a telepresenca elimina a necessidade de urn corpo fisico e palpavel para ocorrer uma interacao. 23 0 ob- jetivo e investigar a possibilidade de um "corpo informatico", de urn "corpo-carne nu- merico" e verificar a sobrevivencia de urn corpo sensual e sexual transformado em imagem. A performance em telepresenca re- aliza-se via webdialogos, correio eletronico e outros softwares de comunicageo, permi- tindo texto, imagem e som em tempo real. 0 grupo Corpus Informoiticos afirma a telepre- senga como uma quase-presenca, capaz de encontro e afeto, assim como de prazer es- tetico. De maneira oposta, o trabalho de Yif- tah Peled refiete a experiencia alienada do corpo diante da falta de densidade de urn mundo cada vez mais virtual, e questiona as possibilidades de comunicacao pelo olhar e pela pele. Na Bienal de Curitiba, de 1995,

Peled mostra uma fotografia elaborada de sua pele, enquanto se ouve o ritmo de seu corageo. Seguindo esta mesma linha, outro trabalho tern por foco o ato da respiragdo. Em ambos, o tempo se refere ao registro do rit- mo da vida, do tempo proprio do humano. 24

A questa° do corpo tern sido objeto de muitos estudos nos (izltimos anos, devido a prOpria relevancia que o tema assumiu em todas discussoes contemporaneas e, par isso mesmo, vem sendo pesquisada por diversas areas, como a antropologia, sociologia e psi- canalise, que freqfientemente utilizam a arte como ilustracao. Pen- outro lado, grande parte das pesquisas relativas a arte tem se restringido a aspectos especificos as perfor- mances e as 'novas interees corn recursos tecnolOgicos. Neste texto, procura-se lancar urn olhar mais amplo sobre o tema, sempre a partir dos proprios contextos e discussoes artisticas, e as varias facetas que a relacao corpo/arte pode assumir: corpo e performan- ce, corpo em imagens e midias eletr8nicas, corpo e sexualidade, corpo fragmentado e hibrido e corpo como projecao psiquica ou corporeidade.

15. CANONGIA, Ligja (ed.). Ivens Machado, o engenheiro de fcibulas. Rio de Janeiro: Pacci Imperial, 2001, •

16. BASUALDO, C. 1./ma Vanguarda Mperina. In: 'nava. New York Center for Curatorial Studies, Bart College, 1997, p.41. 17. FLECK, Robert, op. cit., p. 316. 18. MESQUITA, Ivo. Edgard de Souza, esculturas. Panorama da Arte Braiileira. Sao Paulo: MAM, 1997. 19. CHIARELLI,Tadeu. 1./ma realidade dilacerante: a product:10 de Nazareth Pacheco. Ibidem, p. 112. 20. CANONGIA, Ligia. Violencia e Paixiio. Rio de Janeiro: Museu de Axle Modema, 2002.

2r. OLIVA, F. Bressan forja estetica do ago na Thomas Cohn. 0 Estado de Sao Paulo, 15/03/02. 22.Ver CHIAREIIJ,Tadeu. Identidade/Nao-identidade, sabre a fotografia brasileira hoje. Rio de Janeiro: Centro Cultural

Light 1997. 23. Ver www.corpos.org 24. PEFtAZZO, Nelly. Jogar dentro dos finites do campo: Yiftah Peled. Curitiba: Fudacao Cultural de Curitiba,

1997.

Notas I. FLECK, It. L'Actualite du Happenning. In: Hors Limites, Fart e la vie 1952-1994. Paris: Centre Georges Pompidou, 1991- 2. JONES, A. Body, splits. In: WARR, T (ed.) The Artist's Body. London: Phaidon Press, 2000, p. 16.

3. 0 artista lanca novo traje de veil°, saindo pelas rims de Sao Paulo, em z 956, vestido corn saiote, blusa de nailon e meias arrastao.

4. Ver Wesley Duke Lee. Colecao Arte Brasileira Contempo-ranea. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. 5. Foram incoxporados, depois, Jose' Resende, Carlos Fa-jardo e Frederico Nasser. 6. Vet DUARTE, Paulo Sergio. Os anos 6o, transformagao da arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1988. 7. CHIARELLI,Tadeu. Nelson Leiner, arte e nem arte. sao Pau-lo: Takano, 2002.

8. In: Lygia Clark. Barcelona Fundaci6n AntoniTapies, 997. 9. In: FIGUEIREDO, L. Cartas. Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 1996, p. 223-230.

ROLNIK, S. Molda-se uma alma contemporanea: o vazio-pleno de Lygia Clark In: BENILTON, B. e PLATINO, C. (orgs.), Corpo, Afeto, Linguagem: a questao do sentido hoje. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2001, p. 317.

Ver MATESCO,Viviane.Corpo-Cor em Hello Oiticica. XXIV Siena! de Sao Paulo. Sao Paulo: Fundacao Bienal, 1998. 12. FERREIRA, Gloria e TERRA, Paula. Situacaes Arte Brasilei-ra anos 70. Rio de Janeiro. Casa Franca-Brasil, p. 15-28. 13 Ver www.autopsi.de 14. FREIRE, C. Artur Barrio: sictransit gloria mundi. In: Artur Barrio, a Metaforas dos Fluxos. Sao Paulo: Paco das Artes, 2000, p. 21.