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O corpo falante e o final da análise Seminário da Diretoria da EBP-Rio Coordenação: Marcus André Vieira Direção Geral: Fernando Coutinho 02 de Março de 2015 I - Sujeito, Objeto e Corpo: quem fala? (ou O corpo da fantasia e o do sinthoma) O Impacto das imagens e o corpo falante Para dar início ao trabalho deste ano gostaria de partir do tema do próximo Encontro Americano, “O império das imagens”. Podemos contrapor “império das imagens” a “corpo falante”. A primeira expressão se dirige ao que convencionamos chamar “a cidade” propondo-lhe uma leitura: vivemos o império das imagens. A segunda, mais engimática, se dirige à nossa comunidade, ela nos convida a avançar em nosso entendimento sobre o modo como o analista deve situar sua prática no momento atual da civilização, centrando-a no inconsciente como corpo falante mais do que como mensagem cifrada. A proposta de J. A. Miller, que é vetor para nossa comunidade é essa: o inconsciente hoje muitas vezes se apresenta mais como corpo falante do que como Outra cena. 1 Nossos dias como andam? O tema do Enapol nos ajuda. Ele indica para começar a civilização fez sua escolha, colocando os poderes da fala submetidos ao imaginário. Assim entendo a ideia de um “império” hoje, radicalmente diferente do império do pai, muito mais a presença maciças das imagens com sua exigência superegoica de subordinação. A referência aqui é Império de Negri, e a Biopolítica de Deleuze. 2 Em termos de Lacan, diria que nossos dias vivem no imaginário “como se” o simbólico não existisse. É o mundo das imagens tomadas como real e não como significantes. Este mundo, com suas certezas imediatas, impera sobre o tempo linear das narrativas com suas certezas conquistadas. Um exemplo, o modo como lidamos com os exames de imagem cerebral. Elas são tomadas por si, como se real fossem. Antes havia toda uma discussão diagnóstica entre pares para decidir o que significavam aquelas manchas. Era no contexto dessa narrativa clínica que as imagens ganhavam a função de representar um real. Transcrição e pesquisa inicial de referências por Cida Malveira. Revisão: Marcus André Vieira.

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O corpo falante e o final da análise Seminário da Diretoria da EBP-Rio

Coordenação: Marcus André Vieira Direção Geral: Fernando Coutinho

02 de Março de 2015

I - Sujeito, Objeto e Corpo: quem fala? (ou O corpo da fantasia e o do sinthoma)

O Impacto das imagens e o corpo falante

Para dar início ao trabalho deste ano gostaria de partir do tema do próximo Encontro Americano, “O império das imagens”. Podemos contrapor “império das imagens” a “corpo falante”. A primeira expressão se dirige ao que convencionamos chamar “a cidade” propondo-lhe uma leitura: vivemos o império das imagens. A segunda, mais engimática, se dirige à nossa comunidade, ela nos convida a avançar em nosso entendimento sobre o modo como o analista deve situar sua prática no momento atual da civilização, centrando-a no inconsciente como corpo falante mais do que como mensagem cifrada. A proposta de J. A. Miller, que é vetor para nossa comunidade é essa: o inconsciente hoje muitas vezes se apresenta mais como corpo falante do que como Outra cena.1 Nossos dias como andam? O tema do Enapol nos ajuda. Ele indica para começar a civilização fez sua escolha, colocando os poderes da fala submetidos ao imaginário. Assim entendo a ideia de um “império” hoje, radicalmente diferente do império do pai, muito mais a presença maciças das imagens com sua exigência superegoica de subordinação. A referência aqui é Império de Negri, e a Biopolítica de Deleuze.2 Em termos de Lacan, diria que nossos dias vivem no imaginário “como se” o simbólico não existisse. É o mundo das imagens tomadas como real e não como significantes. Este mundo, com suas certezas imediatas, impera sobre o tempo linear das narrativas com suas certezas conquistadas. Um exemplo, o modo como lidamos com os exames de imagem cerebral. Elas são tomadas por si, como se real fossem. Antes havia toda uma discussão diagnóstica entre pares para decidir o que significavam aquelas manchas. Era no contexto dessa narrativa clínica que as imagens ganhavam a função de representar um real.

Transcrição e pesquisa inicial de referências por Cida Malveira. Revisão: Marcus André Vieira.

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As imagens podiam ser um ícone do real, mas sempre em uma narrativa que vinha traduzi-las como índices de uma doença. Hoje as imagens são tidas como o real em si, sem discussão, pois o diagnóstico não é mais uma produção discursiva, seus elementos de composição, tendem a ser processados pelos computadores. São eles que a princípio realizam o diagnóstico. No extremo oposto, a psicanálise não para de demonstrar como uma imagem (em um sonho por exemplo) pode ser tomada em um jogo de dizer, na estrutura do significante. Neste caso ela poderá vir a dizer mais muito do que indica, por isso abre a dimensão do enigma. A referência aqui é a conferência “SIR” de Lacan que em 1953 já definia “só é material para a análise aquele elemento que possa significar outra coisa que não ele mesmo”.3 Mas para isso é preciso que haja um espaço para o enigma, é preciso que haja um vazio no saber, um ponto cego na estrutura. Hoje, quando todos consideram que não há mais impossíveis para a ciência, fica dificil levar alguém a abrir-se à dimensão do enigma e sem enigma como contar uma história? O Outro do discurso e da narrativa exige este ponto de furo. A falência das narrativas, por ocaso da da falta, do desejo e do furo, seriam a falência da psicanálise? O corpo falante Ora, o inconsciente nunca foi somente um discurso do sexual recalcado. Se mergulhamos em nossa historia, como fazemos em uma análise, sempre topamos com algo que fala sem ser, porém, narrativa, discurso articulado. Cenas, fragmentos de cenas de cheiros e imagens: o inconsciente nem sempre é Outra cena (com estrutura encadeada análoga à da consciência), e mais uma alteridade disparatada não encadeada, mas assim mesmo linguageira, que Lacan chamou de lalíngua. É o que busca destacar a expressão “O corpo falante”, com um ganho, de peso: dar lugar a essa experiência da língua antes da língua. Ela não é coisa de uma céu das ideias, mas uma experiência de corpo, ou melhor, de um corpo “pré-corpo”, já que o corpo é habitualmente o espaço de uma unidade e estamos falando de algo essencialmente múltiplo. Por isso não se experimenta exatamente o corpo falante, já que uma experiência supõe uma subjetivação, por um eu bem arrumado. Por isso dizemos, com Lacan e Miller, que o corpo falante, como lugar de lalíngua não se experimenta, ele apenas se apresenta, ele é vivido como um evento, um “acontecimento de corpo”.4 Dito de outro modo: uma análise envolve toda uma série de experiências corporais (da madeleine de Proust ao mal-estar causado por uma lembrança desagradável) vividas por um eu, em seu corpo, como reação ao material inconsciente. Mas ela envolve também eventos corporais que não são do ego e de seu corpo, mas de algo que o perturba por não ser bem a experiência de um Outro discurso afetando o corpo e sim o falante do corpo que vibra e produz um acontecimento. É o falante de lalíngua que faz vibrar algo corporal que, no entanto, não é nenhum órgão do corpo, muito mais “entre os órgãos” para usar a expressão célebre de Freud para localizar seu inconsciente.5

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O cartaz do X Congresso materializa, na imagem de Vik Muniz, um pouco dessa algazarra de um inconsciente feito de fragmentos falantes de gozo, mas não indica o que seria isso nem como trabalhar com isso.6 Hoje tentaremos desdobrar hoje como o passe poderia ajudar. O passe é nossa maior ferramenta para lidar com essa dimensão fora da narrativa exatamente por produzir relatos sobre aquilo que não se encadeia. São relatos costurados por um tanto de romance, mas atravessados de ponta a ponta por elementos que forçam sua coesão, no limite da ruptura. Com relação à singularidade desses elementos, a narrativa que se apresenta é quase um retrocesso, pois ela precisa se sustentar na íngua comum, mas com transmitir a singularidade senão em meio ao universal de uma história? É o que Lacan

delimitou com o neologismo: hystoire.7 Os relatos de passe ensinam sobre o modo como diferente análises esgarçaram a Outra cena da fantasia para lidar com a dimensão de lalíngua do sintoma, dimensão necessariamente plural, sem cena estável. Um sinthoma-efervescência Vou apresentar curtas sequências de um relato de passe bem conhecido de vocês para que tenhamos em mente do que estamos falando, é o de Anne Lysy.8

Como Laurent nomeia, este relato pode ser visto como o de um caso de masoquismo feminino. Ela sempre considerou que sua “fonte vital no Outro”, como sua análise evidencia desde a história familiar em que seu avô era proprietário de uma forja e ela se via como viva graças ao “balão do fole do Outro”. Mais precisamente, esse balão, essa forja, ganhará a forma da fala do Outro. É nesse registro que ela encontra o “homem da sua vida”, que se define por ser alguém que “gostava de falar às mulheres”. Cria-se uma "relação de fala", de dependência, de orientação, ele era seu “tutor”, o que origina uma submissão perigosa, já que considerava que não podia viver sem este “apoio”, aA ponto de tolerar o intolerável, especialmente com relação à vida amorosa. Desde sempre ela foi ancorada na fala do pai, músico. Ela era uma criança barulhenta e quando reclamavam de sua choradeira ele dizia: “Deixem, isso vai lhe dar uma boa voz”, “É uma garotinha viva”. Mas essa fala era também violência e intervém neste plano um xingamento do pai em holandês “pedaços sujos de crianças”. Já seu irmão gêmeo, nascido alguns minutos, antes era “calmo” e doce. Ela, por outro lado, era a agitada, excessiva, era “má”. Ela situa aos quatro anos de idade, tempo da curiosidade sexual, a fixação a essa “frase mortificante de auto-recriminação, por muito tempo inconsciente, que se amarrou ao vivo” do corpo. Ela seria “má porque excessivamente viva”. Na grande travessia que é uma análise isso se apresenta não apenas como a incidência do encontro com o Pai ou o parceiro, mas da relação com a própria fala: “esses minúsculos animais, que são as palavras, se contaminaram e até o fim de minha análise e com isso imprimiram uma oscilação característica: nenhum movimento de vida sem o contragolpe da morte e da condenação. A agitada e o que a detém a atividade entusiasmada e o desmoronamento, isso parecia inextricavelmente ligado”.

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Uma cena fundamental cndensa esse estado de coisas. Lembrou-se de como tivera que ser quase carregada, de tão deprimida, pelo analista da sala de espera até o divã em uma das primeiras sessões da primeira análise. Neste momento viu uma planta aos pés do divã, quase morta enrolada na esteio, que em francês se diz tuteur, também guia, tutor na tradução de Fernando Coutinho. Dirá então: “Sou uma planta [mortificada] que tem sempre a necessidade de uma guia”. Após a análise ter percorrido todos os meandros desse apoio, após o tutor ter se apresentado como pai e o amante, a reação com esse supereu se deloca para a fala destes, e para a incidência de lalingua do corpo. Neste plano não há nada de mortificação ou maldade. O sentido dessa maldade se perde e junto com ela o da mortificação. Ela se vê então de outro modo e retomando a cena da planta, afirma que foi:

“Como se alguma coisa se tivesse desprendido de mim, do meu corpo ... a impressão de uma espécie de filme de plástico transparente que se colava à pele tinha se destacado na calma e

a imagem do homem estivesse impressa ali” (...) “É como se eu tivesse construído toda minha vida e volta dele, como uma planta em volta de uma guia [tuteur], agora retira-se a guia e pppfffuitt”

A partir desse momento, a análise passa a ser protagonizada por fenômenos de corpo: descreve o esgotamento que a tomava, mas sempr epor excesso de energia e não o contrario. Aparece a cena dela correndo, atravessando o parque entre uma sessão de análise e um seminário, correndo sempre. Intervém uma nomeação por parte do analista que indica o quanto esa correria é erótica, dela e não apenas sumissão à exigência de performance do supereu. Ela a chama de “courreuse” o que em francês dá a ideia de mulherengo, pois a expressão, é usada para aquees homens que correm atrás das saias das mulheres. O essencial é que passa a viver na certeza de que havia vida e não mortificação no mais básico sentimento corporal dela. Ela a denomina, então, efervescência.

“Era como se minha lembrança mais antiga não fosse uma imagem, mas uma sensação corporal, de uma efervescência, de um querer intenso”.

Um sonho é destacado: A filha, no cavalo que ama, cai, ele estrebucha, ela não fica arrasada, e destaca-sa a língua torta do cavalo. Essa língua torta sela para ela a mudança com relação à fala mortificante, não é mais uma fala perfeita ou terrível, e sim uma coisa desajeitada com a qual temos que nos haver. Retorna para ela a sensação de ser uma: “Liana, verde e viva, enrolada em volta de um vazio sem desmoronar”. Que vazio é esse? Na verdade é muito cheio, pleno de elementos esparsos da lalíngua de seu sinthoma: corredora, o tutor, os pedações sujos de crinças, a língua torta.

Uma bela imagem se constrói ao ouvirmos este relato, contrapondo dois momentos muito esquematicamente resumidos da seguinte maneira. Primeiro a situação em que ela se sentia desfalecer na sala de espera e o analista teve que levá-la pelo braço até o divã. Ela se viu como a planta escorada no esteio no vaso em frente, só podendo viver apoiada em seu tutor, incluindo tudo de inaceitável que tinha de admitia para estar com ele. Na outra ponta da análise ela pode se desfazer desta mortificação que sempre a acompanhara e em vez de se vez frágil, reconhece a força que a fazia estar sempre correndo atrás (inclusive em um sentido sexual). Nessa ambiguidade da interpretação ela sintetiza uma virada: não era o tutor que sustentava esse mais de vida, ao contrário, ele o negativava. Neste ponto ela afirma ter ganho a certeza de não ser mais um nada sustentada por um guia, mas “uma liana verde e viva, enrolada em volta de um vazio sem desmoronar”. É um vazio muito especial. Só é vazio de sentido, pois é feito de muitas coisas que ela lista de várias maneiras, concentrando-se no sonho em que a língua do cavalo está torta. Essa vida que carregava se liberta da submissão mortificante ao falo. Não

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por se livrar dele, mas de seu peso. A fala do Outro deixa de ter o significado de “cale-se”, torna-se algo aberto. Esse vazio de sentido agora a sustenta por se materializar em uma série de elementos singulares, a lalíngua de seu sinthoma, com os quais ela vai jogar a partida dela na vida. A partir daí, atravessando de ponta a ponta toda sua história, uma vibração vital que tinha sido negativada na neurose infantil, vivida como mortificação, ganhará sua localização final como o que ela chama de uma efervescência. É com esse gozo do Um, gozo do sinthoma com que lidamos no final da análise. Se lembramos que estamos num tempo em que o romance da vida encontra dificuldades para se manter em cartaz, como diz Lacan sobre o Édipo já em 1931 no texto “Complexos familiares”, talvez seja o caso de termos que lidar com esse mesmo gozo, só que não mais após o esvaziamento da fantasia, mas de maneira, digamos, selvagem. Não seria um modo de abordar as análises de hoje que parecem nunca começar? De todo modo, lembremos que mesmo nas análises ditas clássicas, o trabalho não é tão arrumadinho no sentido de uma novela familiar com seus conteúdos recalcados dos quais tratamos de nos desembaraçar como cavaleiros ou mocinhas vitorianas. Fiquemos com o modo como Anne Lysy exprime magnificamente este vai e vem entre os elementos de lalíngua e sua montagem em uma estrutura fantasmática repetida da qual nos livramos muito mais por encontrarmos o que nos serve do que por superação.

“[naqueles anos] Atravessei momentos muito duros, numa espécie de exacerbação da oscilação da energia e da dor, do elã e de um sentimento de extrema precariedade. Foi necessária a paciência e a determinação de se aproximar o melhor possível dessa coisa sombria que sempre me pegava, voltar sobre meus passos e retroceder aos mesmos pontos. Foi necessário sustentar pequenas elaborações, que esclareciam de outra forma as construções anteriores, de alguns sonhos e iluminações súbitas, foi necessário pegar os acontecimentos contingentes da vida como mãos estendidas [perches] foi necessária a presença dos empurrões do analista para eu sair do buraco para onde sentia que me escorregava, até que me propulsionei.”9

A cena da fantasia Nossa realidade é estruturada com relação ao par sujeito-objeto. “Sujeito-Verbo-Predicado”, essa tríade quase ontológica de base das línguas flexionadas já indica que quando alguma coisa se endereça a outra, um é ativo outro é passivo, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, pão-pão, queijo-queijo. É uma diferença fundamental para a base da realidade. Se uma coisa for uma coisa e outra coisa ao mesmo tempo, tudo fica estranho. Ora, a psicanálise começa exatamente quando estranhos seres que não são uma coisa nem outra, estranhos e íntimos ao mesmo tempo, são levados a sério. A referência à Merleau-Ponty, segundo J. A. Miller, nos ajuda a retomar esse ponto no plano do corpo, pois ele destaca o corpo como um ponto de entrecruzamento dessa diferença tão confortável. Nosso corpo pode ser tanto sujeito, pois ele olha, quanto objeto, por ser também olhado. E ambos ao mesmo tempo, afinal, todo corpo ao mesmo tempo em que olha é olhado. Como se situa nos dois pólos ao mesmo tempo, o que é esse corpo anterior à diferença do olhar e ser olhado? Que espaço seria anterior à bifurcação entre sujeito e objeto, ativo e passivo? Lalíngua e o corpo

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falante são conceitos forjados nessa mesma dimensão pré-ontológica. Merleau Ponty vai aqui situar o que chama de carne. 10 Fantasia, por outro lado, é o nome daquilo que nos permite manter a distância entre sujeito e objeto. O conceito pode ser tomado em dois planos. Ele se refere às fantasias conscientes, variadas narrativas semi-heróicas de nós mesmos que acabam em uma análise se reduzindo a uma estrutura mínima. Igualmente se refere às fantasias inconscientes, que trazem, não apenas simpáticas montagens do tipo sujeito-verbo-predicado, como também bizarras articulações da mesma estrutura só que com objetos recalcados e sujeitos bem estranhos ao eu. Lacan propõe com seu conceito de fantasia fundamental, a ideia de um mínimo múltiplo comum das fantasias que acaba sendo a estrutura básica do modo de articulação entre sujeito e Outro a partir de dos acontecimentos de uma vida e se suas fixações libidinais históricas. Diremos, de maneira simplificada, sempre fantasia, para designar essa estrutura fundamental de si. Fantasia é, desse modo, uma estrutura particular que define o ponto que se coloca a pergunta de quem se é assim como quem é para o Outro, sujeito e objeto.

O símbolo “punção” marca o quanto uma análise é feita de pontos de virada que vão desenhando a estrutura da fantasia, o modo como cada um às vezes é sujeito, às vezes é objeto, mas nunca os dois ao mesmo tempo. De fato, uma análise é a epxeriência repetida de que quando somos mais autênticos é quando somos mais objetos. Quando encontro alguma coisa que me dá certeza de que é lá que sou, lá estou como objeto. Sabemos como Lacan teorizou essas relações paradoxais e essas viradas, como alienação e separação, por exemplo. Não retomaremos aqui essa teorização. Pensei, já que o tema é o império das imagens, em trazer para vocês uma demonstração

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visual da estrutura da fantasia, o quadro “As meninas” de Diego Velázquez, As Meninas. É uma cena, que é também uma estrutura e bem complexa. Em cena o palácio, o atelier do artista, a infante Margarida e as outras damas de companhia, o anão, o cachorro, freiras, pessoas e Velásquez o próprio artista. Ele, ali, pintando, para um pouco, levanta o olhar da tela e nos encara. Deixemos de lado todo o contexto e personagens para apenas nos perguntarmos: Para quem olha Velasquez? É uma das questões que o quadro nos coloca. Quem somos nós? Estamos no lugar de quem? A resposta de Michel Foucault na introdução de seu livro As palavras e as coisas é a de que são Philipe IV e a rainha, os patrões de Velasquez, concierge do palácio. Como sabemos, lá no fundo aparecem seus vultos em um espelho de frente para nós. É esse olhar do sujeito real que estabiliza toda a cena segundo Foucault. Lacan está de acordo, mas em seu Seminário 13, ao comentar o comentário de Foucault diverge em alguns pontos. Foucault se apresenta na sessão seguinte do seminário, assiste-o e eles trocam algumas falas a final, mas ao estilo de um diálogo de surdos.11 Fazendo um curto-circuito nesse diálogo vamos direto para o ponto que nos interessa: a questão de Lacan não é tanto quem está ali olhando para Velasquez, ou para quem ele está olhando, mas o que ele está pintando. Se Velásquez está pintando o rei e a rainha, eles são seus objetos. Podemos, porém, também imaginar que Velásquez estivesse pintando outra coisa no atelier e o rei e a rainha chegassem. Eles estão então no espelho, mas neste caso, são o rei e a rainha que ao chegar fizeram dele e de todos presentes objeto de seu olhar, como queria Foucault. Do ponto de vista de Lacan o mais importante é essa reversibilidade que a tela encerra. A tela é o segredo da história, o objeto de virada, o quiasma de Merleau Ponty, a carne do quadro. Ela é o ponto de mutação antes da definição da diferença entre sujeito e objeto. Numa análise a cada vez que nos aproximamos de elementos como essa tela, tudo começa a se confundir e é isso mesmo que queremos para reconfigurar a cena de base a partir dessa perturbação. Isso posto, é preciso perceber que apesar de Velásquez nos ter revelado a estrutura da fantasia e do objeto de perturbação, a tela, tudo em seu mundo se mantém organizado. A distância entre sujeito e objeto está preservada porque a tela é um enigma, fora de cena. Ela pode gerar narrativas em vários sentidos, mas não as implode. Minha proposta é essa. Tomemos o quadro de Velásquez como a fantasia. Em sua estrutura encerra algo perturbador, mas mantido à distância. Há um objeto perturbador, objeto a, a tela e há um sujeito que escapole, uma hora pode ser o rei, outra Velasquez, outra a infanta margarida, mas nunca se confunde com o objeto-tela. Uma análise percorre os sujeitos que somos em variados momentos da vida, para delinear o objeto, o lugar do objeto e se apropriar dos poderes do objeto. Ela visa o ponto de virada para assim desrealizar a fantasia. Lalingua O passe nos ensina não apenas o que é uma fantasia, mas como ela se torna menos importante do que o sinthoma, o gozo singular encarnado pela efervescência nesse caso. Ele só se apresenta a partir das viradas que os encontros com os objetos a,

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como essa tela, os esparsos disparatados de lalíngua, das variadas cenas que compõem a selva da fantasia que é atravessada em uma análise vão produzindo. Em nossos tempos de falência da narrativa, falência de cenas estruturadas e estruturantes como o quadro de Velasquez, cabe a pergunta: Haveria uma maneira de conduzir uma sem se referir à fantasia? A uma cena estruturada? 12 Proponho, então, outra imagem, outro recurso visual para traduzir o espaço da lalíngua do sinthoma menos ancorada no quadro da fantasia. Por um lado ela pode retratar o modo como a fantasia se apresenta após seu atravessamento e ao mesmo tempo talvez o modo como encontramos a fantasia nas análises de alguns analisantes de hoje. Encontrei essa imagem entre as muitas releituras que Picasso faz das meninas de Velasquez.

Picasso fez 58 desenhos sobre essa tela. Como disse minha filha, “é Velasquez, versão lelé". Lelé resume uma convivência de opostos, sujeito e objeto ao mesmo tempo, tudo está lá “ao mesmo tempo agora”. Vejam nesse detalhe por exemplo de um estudo sobre a infanta dona Margarida como para Picasso sujeito e objeto não mais se distanciam como antes. Voltando ao quadro como um todo, vemos como a cena está implodida, mas mesmo assim algo se mantém e pode ser vivido e visto. Essa tela entre outros situa bem como há alguma coisa que se sustenta, não necessariamente referido a uma fantasia prévia, à cena original, mas ao mesmo tempo dela tributário. A cena original é aliviada do peso das significações e a partir daí não é mais o imaginário dessas significações que dá a unidade. É necessariamente o plural de lalingua, feita, segundo Lacan de "esparsos disparatados".13

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Para concluir uma série de perguntas que nos colocaremos passo a passo ao longo deste ano. É possível uma análise “Picasso”? Podemos abrir mão de Velasquez? Da fantasia? Como isso se apresenta na clínica de todo dia? Estamos fora do inconsciente como Outra cena, fora da fantasia? Seria a “política da neurose”14 hoje trabalharmos com a letra, o sinthoma os nós sem a fantasia? O fato é que apresenta-se a importância do que Lacan tentou aprender desde o início de seu ensino como “S1 fora da cadeia”, ou “ significante no real”, e ainda “Significante mestre” e em outro sentido “Objeto a”, a seguir Letra e mesmo Lalíngua. O corpo falante, como outro nome para o falasser, é o corpo de lalíngua. É por onde seguiremos.

1 Miller, J. A. « L’inconsciente et le corps parlant », https://www.congressoamp2016.com/pagina.php?id=8#texfra1. 2 Cf. Hardt, M. Negri, A. Império, São Paulo, Record, 2000, p. 42 e 326, cf. Ainda Cf. Cottet, S. “Deleuze, pour et contre la psychanalyse”, Des philosophes à l’envers, Paris, ECF, 2004 e Rego Barros. R. “O anti-Édipo da psicanálise”, Opção Lacaniana, n. 43, 2005. 3 Lacan, J. (1953) “O simbólico, o imaginário e o real”, Nomes do Pai, Rio de Janeiro, JZE, 2005, p. 21. 4 Jacques-Alain Miller, « Biologie lacanienne et evenement de corps », La Cause freudienne, n° 45, p. 28. 5 Freud, S. “A Interpretação dos Sonhos”, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. V, Parte II, cap. 7, p. 649. 6 Cf. https://www.congressoamp2016.com/pagina.php?id=24. 7 Cf. Lacan J. Outros Escritos, Rio de Janeiro JZE, 2003, glossário. 8 Lysy, A. "A-paixonada", Opção lacaniana n. 58, 2012. 9 Ibid. 10 Para as referências sobre Merleau-Ponty com relação à conferência cf. Ciscato, M. “Carne en Ponty”, Alto falante, boletim informativo da Seção Rio, maio 2015. 11 Lacan, J. O Seminário, livro 13, inédito, lições de 11 e 18/5/1966. Para a divergência entre Foucault e Lacan quanto ao quadro de Velazques, cf. Depelsenaire, Y. Un musée imaginaire lacanien, La Lettre volée, Paris, 2008 e Brockelman, T. “The other side of the canvas: Lacan flips Foucault over Velasquez”, Continental Philosophy Review, Volume 46, No. 1 (http://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11007-013-9265-x#page-1). 12 A proposta de Lacan para apontar para essa dimensão fora da fantasia é uma tela de Balthus que não poderemos retomar aqui. 13 Lacan, J. Outros Escritos, op. cit. p. 569. 14 Cf. Laurent, E. Opção Lacaniana, vol. 60, 2011, p. 89.