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14 | Vox Objetiva entrevista F icaram no passado as lembran- ças do ritmo intenso das reda- ções, assim como os anos de parti- cipação política dentro de gabinetes e Assembleias. As histórias parecem ser exceções na vida de Fernando Morais, pois elas permanecem. E, a essa altura, já não é possível saber se é ele quem as persegue ou se acon- tece justamente o oposto. Com apenas 15 anos de idade, Morais começou a ouvir e contar histórias. Foi dessa forma que deu o pontapé inicial na carreira jorna- lística. Nas últimas cinco décadas, passou por veículos de comuni- cação conceituados como o jornal Folha de S. Paulo, a TV Cultura e a revista Veja. Colecionador de honrarias, recebeu por três vezes o Prêmio Esso e por quatro o Prêmio Abril. Em 1976, lançou o primeiro livro-reportagem, A ilha, fruto de uma viagem à Cuba. No fim da década de 1980 e início dos anos de 1990, uma rá- pida passagem pela política. Foi deputado estadual por São Paulo durante dois mandatos consecuti- vos e atuou ainda como Secretário de Cultura e de Educação naquele estado. Chatô – o rei do Brasil, lançado em 1993, marca a história do autor. A partir desta obra, Morais passa- ria a se devotar inteiramente à es- crita de livros. A mais recente, Os últimos soldados da Guerra Fria, foi apresentada aos belo-horizontinos no início de novembro, na Acade- mia Mineira de Letras. Em entrevista à Vox, o escritor Fernando Morais revela o incomum interesse pelo ser humano, via de regra, ponto de partida para vários projetos André Martins Fernanda Carvalho O CONTADOR DE HISTÓRIAS Minutos antes do início da pro- gramação, o escritor concedeu uma breve entrevista à Vox Objetiva. A conversa foi para além da literatura. O escritor falou sobre cinema, política e Cuba – país que exerce fascínio so- bre ele, estando presente em grande parte de suas obras. Os inseparáveis charutos que tinha em mãos, entre- tanto, incrivelmente não eram do país do amigo Fidel. “São de Miami”, nos revelou com um sorriso e expressão de quem acaba de ser descoberto. Vox: Em seus livros os persona- gens parecem ser tão importantes quanto as histórias. O jornalismo deveria ser dessa forma? Focado nas pessoas, nas histórias delas? Fernando Morais: Olha, eu gosto mais de gente do que de coisas e acho que o leitor também, porque não há história se não tiver um ser humano por trás. E o ser humano tem pai, mãe, tem vida, libido, tristezas, ale- grias, grandezas e misérias. Na ver- dade, o que torna, na minha opinião, uma história boa ou má é a carga de humanidade que a ela possui. O jornalismo hoje, salvo exceções, tem sido feito por telefone, né? Então o re- pórter liga para a casa da fonte para entrevistá-la, mas não sabe se ela é gorda, magra, preta, branca, se tem um buraco na sola do sapato, se tem dente, se não tem dente, se gesticula ou não gesticula. Não se consegue sequer descrever o ambiente. E isso quando não é por internet. Na maio- ria das vezes a entrevista é feita por meio dela e, no fundo, você pode até suspeitar que não tenha sido o pró- prio personagem quem respondeu. Manda-se um questionário que pode ter sido entregue a uma secretária, a um assessor. Isso é um empobreci- mento muito grande do jornalismo. Os meus livros são todos jornalís- ticos. Eu sempre centro minhas his- tórias em pessoas. Eu tinha três alter- nativas para abrir Os últimos soldados da Guerra Fria. O René Gonzales, que larga a mulher e os filhos e foge para Havana fingindo ser traidor da Revo- lução Cubana; tinha um mercenário que estava preso em Cuba, condenado à morte por fuzilamento; e tinha um terceiro personagem, que era o chefe da operação. Todas as três alternativas eram seres humanos, eram pessoas. Eu acho que a minha opção, mais por gente do que por coisas, não é só minha. Isso seduz mais o leitor. Porque não vira uma coisa muito pedregosa, muito árida. Eu não sou um teórico de nada, eu sou um re- pórter que tenta “desenterrar” histó- rias de pessoas. Então, numa como a de Olga, por exemplo, você poderia fazer um ensaio sobre o nazismo, um ensaio sobre o Estado Novo, so- bre Getúlio Vargas. Mas acho que a melhor maneira de contar as coisas é contar as experiências de gente. Na Academia temos linhas diver- gentes em relação a apresentar a his- tória de modo romanceado. Qual a sua opinião a respeito desse debate? São coisas diferentes. Eu acho um questionamento incabível porque o que o acadêmico faz não tem nada

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Em entrevista à Vox, o escritor Fernando Morais revela o incomum interesse pelo ser humano, via de regra, ponto de partida para vários projetos

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Ficaram no passado as lembran-ças do ritmo intenso das reda-

ções, assim como os anos de parti-cipação política dentro de gabinetes e Assembleias. As histórias parecem ser exceções na vida de Fernando Morais, pois elas permanecem. E, a essa altura, já não é possível saber se é ele quem as persegue ou se acon-tece justamente o oposto.

Com apenas 15 anos de idade, Morais começou a ouvir e contar histórias. Foi dessa forma que deu o pontapé inicial na carreira jorna-lística. Nas últimas cinco décadas, passou por veículos de comuni-cação conceituados como o jornal Folha de S. Paulo, a TV Cultura e a revista Veja. Colecionador de honrarias, recebeu por três vezes o Prêmio Esso e por quatro o Prêmio Abril. Em 1976, lançou o primeiro livro-reportagem, A ilha, fruto de uma viagem à Cuba.

No fim da década de 1980 e início dos anos de 1990, uma rá-pida passagem pela política. Foi deputado estadual por São Paulo durante dois mandatos consecuti-vos e atuou ainda como Secretário de Cultura e de Educação naquele estado.

Chatô – o rei do Brasil, lançado em 1993, marca a história do autor. A partir desta obra, Morais passa-ria a se devotar inteiramente à es-crita de livros. A mais recente, Os últimos soldados da Guerra Fria, foi apresentada aos belo-horizontinos no início de novembro, na Acade-mia Mineira de Letras.

Em entrevista à Vox, o escritor Fernando Morais revela o incomum interesse pelo ser humano, via de regra, ponto de partida para vários projetos

André MartinsFernanda Carvalho

O CONTADORDE HISTÓRIAS

Minutos antes do início da pro-gramação, o escritor concedeu uma breve entrevista à Vox Objetiva. A conversa foi para além da literatura. O escritor falou sobre cinema, política e Cuba – país que exerce fascínio so-bre ele, estando presente em grande parte de suas obras. Os inseparáveis charutos que tinha em mãos, entre-tanto, incrivelmente não eram do país do amigo Fidel. “São de Miami”, nos revelou com um sorriso e expressão de quem acaba de ser descoberto.

Vox: Em seus livros os persona-gens parecem ser tão importantes quanto as histórias. O jornalismo deveria ser dessa forma? Focado nas pessoas, nas histórias delas?

Fernando Morais: Olha, eu gosto mais de gente do que de coisas e acho que o leitor também, porque não há história se não tiver um ser humano por trás. E o ser humano tem pai, mãe, tem vida, libido, tristezas, ale-grias, grandezas e misérias. Na ver-dade, o que torna, na minha opinião, uma história boa ou má é a carga de humanidade que a ela possui. O jornalismo hoje, salvo exceções, tem sido feito por telefone, né? Então o re-pórter liga para a casa da fonte para entrevistá-la, mas não sabe se ela é gorda, magra, preta, branca, se tem um buraco na sola do sapato, se tem dente, se não tem dente, se gesticula ou não gesticula. Não se consegue sequer descrever o ambiente. E isso quando não é por internet. Na maio-ria das vezes a entrevista é feita por meio dela e, no fundo, você pode até

suspeitar que não tenha sido o pró-prio personagem quem respondeu. Manda-se um questionário que pode ter sido entregue a uma secretária, a um assessor. Isso é um empobreci-mento muito grande do jornalismo.

Os meus livros são todos jornalís-ticos. Eu sempre centro minhas his-tórias em pessoas. Eu tinha três alter-nativas para abrir Os últimos soldados da Guerra Fria. O René Gonzales, que larga a mulher e os filhos e foge para Havana fingindo ser traidor da Revo-lução Cubana; tinha um mercenário que estava preso em Cuba, condenado à morte por fuzilamento; e tinha um terceiro personagem, que era o chefe da operação. Todas as três alternativas eram seres humanos, eram pessoas.

Eu acho que a minha opção, mais por gente do que por coisas, não é só minha. Isso seduz mais o leitor. Porque não vira uma coisa muito pedregosa, muito árida. Eu não sou um teórico de nada, eu sou um re-pórter que tenta “desenterrar” histó-rias de pessoas. Então, numa como a de Olga, por exemplo, você poderia fazer um ensaio sobre o nazismo, um ensaio sobre o Estado Novo, so-bre Getúlio Vargas. Mas acho que a melhor maneira de contar as coisas é contar as experiências de gente.

Na Academia temos linhas diver-gentes em relação a apresentar a his-tória de modo romanceado. Qual a sua opinião a respeito desse debate?

São coisas diferentes. Eu acho um questionamento incabível porque o que o acadêmico faz não tem nada

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a ver com o que faz um jornalista. O meu trabalho é jornalístico. Então eu posso dizer isso com uma certa familiaridade, digamos, porque sou casado com uma historiadora, uma pós-doutora em História. Nós não temos conflitos. Ela é a minha primei-ra leitora. Antes de entregar os meus originais para o editor, a minha mu-lher lê e corrige com um olhar muito rigoroso. Mas não é um olhar acadê-mico. Muitas vezes ela diz: “Mas você botou um palavrão aqui. Machado de Assis jamais colocaria um palavrão no texto dele”. Aí eu digo: “Mas o pa-lavrão não é meu, é do personagem. E eu não o posso censurar”.

Então eu acho que é uma contra-dição. Uma coisa é você fazer uma tese. Eu li várias sobre a relação en-tre Cuba e Estados Unidos após a Revolução Cubana. Li dez livros so-bre o assunto. Agora, não tem gen-te, não tem sangue, não tem miséria, não tem grandeza. E com gente fica mais saboroso. Você contar uma história a partir da trajetória de um ser humano é mais sedutor.

Há algum tipo de cuidado que você toma ao escrever, no sentido de tornar seus livros mais atraen-tes aos leitores?

O que se encontra muito em meus livros é tratamento literário. Não tem nada de ficcional. Do pon-to de vista estético, trabalho com mais elegância.

Eu tenho muito mais tempo que vocês têm na redação. Às vezes fico três, quatro dias para fazer uma lau-da. Eu digo pra mim mesmo: “Não está boa, não está boa, não está boa. Tenho que escrevê-la de novo. Não está boa. O leitor vai se confundir. Se ele está lendo na cama, esse trem chato aqui vai fazê-lo fechar o livro e dormir. Pode ser que no outro dia nem o abra mais e não fale para o vizinho que o livro é bom”.

Eu procuro dar aos meus livros, não sei se consigo, um tratamento estético literário cuidadoso, elabo-rado, o que inclui não repetir pala-vras, ser elegante. Agora, isso não tem nada que ver com ficção, mas com qualidade de texto.

Assis Chateaubriand, Olga Be-nário Prestes, Paulo Coelho, Ca-simiro Montenegro Filho. Como foram feitas as escolhas por contar essas histórias?

Olha, varia muito. Cada uma caiu na minha mão de maneira diferente. Olga, eu ouvia, desde pequeno, meu pai falar toda vez que se tocava no nome de Getúlio: “Ah, esse aí man-dou a mulher do Prestes, que era ju-dia, para morrer numa câmara de gás na Alemanha Nazista”. Eu não sabia o que era judeu, judia, nem sabia o que era nazismo. Na medida em que crescia e adquiria noção do que eram as coisas, eu comecei a me dar conta da barbaridade, da brutalidade da-quela história e resolvi “mergulhar”,

ir atrás. O livro que estou lançando agora caiu na minha mão ao ouvir uma notícia no rádio, em um táxi de São Paulo. Casimiro Montenegro foi uma história que veio para mim pela minha neta, que tem uma meio-irmã que é neta do Casimiro Montenegro. Um dia ela disse pra mim: “Olha, a vovó fulana de tal disse que gostaria muito que o senhor escrevesse a his-tória do marido dela”. Aí eu falei: “E quem é o marido dela?”. “É o Mare-chal Montenegro”. Aí eu pedi a ela que me desse alguma coisa. Quando comecei a ler, descobri que tinha um personagem legal. O Paulo [Coelho] fui eu, que tinha uma enorme curio-sidade de saber quem era, quem habitava debaixo daquela pele. Ele

é um fenômeno editorial universal, um cara que já vendeu mais de 150 milhões de livros.

Acontece muito também de você ter ideias a partir de projetos em exe-cução. Em geral, quando se está fa-zendo um livro, você encontra como se fosse um tronco de uma árvore com galhos laterais, que são outras árvores e que dariam outros livros.

Algum desses personagens te impactou de maneira especial? Há aquele que exerça maior fascínio ou estranheza?

Não. Por cada um eu sou sedu-zido, sou atraído por uma razão diferente. Não tem. E também não tem uma única metodologia. Me perguntam: “como é o seu traba-lho?”. O meu trabalho varia de personagem para personagem, de história para história.

Olga, em 2004, e agora Cora-ções Sujos foi roteirizado para o cinema. Como é a sua relação com essas adaptações? Você se abor-rece com as transformações feitas pelos diretores e roteiristas? Gos-tou do resultado dos filmes?

Eu gostei de Olga, apesar da crí-tica o ter escorraçado. Acho que a crítica brasileira nunca tratou tão mal um filme, enquanto o público brasileiro tratou tão bem. Foram cinco milhões e meio de espectado-res só nos cinemas, sem contar as várias exibições da Rede Globo, que eleva esse número para mais de 50 milhões. Sobre o Corações sujos, eu vi o filme agora, ele está pronto, estreia no fim do ano. Foi feito pelo Vicente Amorim, filho do Ministro das Re-lações Exteriores, Celso Amorim. Eu assisti no Festival do Rio. O filme é uma maravilha, belíssimo. Além desse livro, cujo filme está sendo lançado, tem o Na toca dos leões, que o Fernando Meirelles já comprou os direitos para montar o roteiro e fil-mar; e o Montenegro, que o João Ba-tista de Andrade deve fazer.

Autor não se mete muito, ali-ás, autor não se mete em nada. Eu, particularmente, não mexo em nada nessas adaptações. O que,

Em geral, quando se está fazendo um livro, você encontra como se fosse um

tronco de uma árvore com galhos

laterais, que são outras árvores e

que dariam outros livros.

Fernando Morais

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em geral, me comprometo com os produtores, os diretores, é ler o tratamento dos roteiros. Não me meto nem nas escolhas de ator. Por exemplo, no Olga, na primeira ver-são, era a Patrícia Pillar que seria a protagonista, o que me parecia ideal. Não só pelo talento dela, mas pela aparência física. Ela é a boni-ta feia. A bonita que não é Barbie, como era a Olga. Mas aí ela ficou doente e não pôde fazer. Quando escolheram a Camila Morgado eu fiquei um pouco com o pé atrás,

mas, olha, ela teve um desempe-nho maravilhoso, se incumbiu da tarefa com brilho.

Eu só dou palpite nos roteiros para fazer uma espécie de policia-mento histórico, para não ter ne-nhuma fraude, não inverter os fa-tos. Porque tem muito de liberdade dramatúrgica, mas essa liberdade não pode fraudar a história. Então, até agora a minha experiência é boa e espero que continue com os pró-ximos livros que serão roteirizados.

Do cinema para a política. No ano passado você apoiou a candi-datura da presidente Dilma. Nes-se primeiro ano de mandato, suas expectativas foram supridas?

Eu continuo dilmista. Fiz a cam-panha, fiz o que devia. Acho uma pena que ela tenha perdido tanto tempo de governo com esse monte de batedor de carteira que ela está pondo para correr. Agora, é melhor que tenha sido assim do que se ti-vesse sido ocultado. Eu acho me-lhor para a sociedade, melhor para

todos nós, que esses problemas te-nham sido solucionados por ela.

Se a Dilma for candidata nova-mente, eu faço campanha e voto. Eu já não sou mais um político, não vou me candidatar nem nada disso, mas eu sou um ativista político no Brasil e fora dele, e sem ter, obriga-toriamente, um compromisso par-tidário. Sou amigo do Chavez, do Evo Morales. Agora, eu não quero mais nada. Até porque essa inde-pendência me dá uma liberdade

muito maior. Se hoje eu estivesse envolvido com algum partido po-lítico eu, provavelmente, não faria muita coisa do que faço hoje.

Cuba parece ser um lugar es-pecial para você. Sua obra reflete isso. É um país que está presente em A ilha, Cem quilos de ouro e em Os últimos soldados da Guerra Fria. Por quê esse interesse?

Muita gente fala que eu, já um sexagenário, continuo defensor da Revolução Cubana. Acabaram ago-

ra os Jogos Panamericanos. Primei-ro lugar, Estados Unidos; o segun-do foi de quem? Cuba. Depois vem Brasil, Canadá, México, Argentina. Eles ficaram em segundo lugar e não tem mais União Soviética para pagar as contas, não. Faz vinte anos que a União Soviética desapareceu.

A Unicef divulgou, há poucos meses, números interessantes. Da fronteira sul dos Estados Unidos até a Patagônia, o único país que conseguiu extinguir o problema

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Em 2001, Morais recebeu o Prêmio Jabuti por Corações sujos, considerado o melhor livro de não-ficção daquele ano.

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da desnutrição infantil foi Cuba. A mortalidade infantil do país é mais baixa que dos Estados Unidos. Vou repetir: o índice de mortalidade in-fantil de Cuba é menor que o dos Estados Unidos. E não é informa-ção do PC cubano, não. O índice é 4,5 mortes por 1.000 crianças nasci-das. Nos EUA, 8 por 1.000. Brasil, 22 por 1.000. Ué, por que eu não vou ser solidário com uma revolu-ção como esta?

Eu uso muito um exemplo pra dizer o motivo de eu continuar um entusiasta da Revolução Cubana. Há um outdoor em Havana, já desgasta-do, amarelado, colocado em razão da visita do papa João Paulo II à ci-dade. Nele está escrito o seguinte: “Esta noite, 200 milhões de crianças vão dormir na rua em todo o mun-do. Nenhuma delas é cubana”.

Cuba é um país de economia insignificante, mas lá não tem anal-fabetos, não tem um analfabeto há 50 anos, não tem mendigo, não tem criança pedindo esmola em sinal de trânsito. Eu não vou ser solidário com essa revolução? Tirem o cavalo da chuva. Deixa a Veja falar mal de mim.

Dê política para o retorno à li-teratura. Você tem um projeto um tanto quanto polêmico, que é a biografia de Antônio Carlos Maga-lhães. A pergunta é a seguinte: esse livro, de fato, será lançado um dia?

Olha, fui eu quem propôs ao se-nador Antônio Carlos Magalhães de fazer a biografia dele. Tudo ia muito bem até o momento em que ele disse que não leria os originais do livro, o que era um risco.

Eu gravei os últimos nove anos da vida dele. Tenho algumas cente-nas de áudios. Perguntei tudo. Não deixei nada para trás, inclusive as coisas mais “cabeludas”. Namora-das, filhos, grampos, a filha dele, ab-solutamente sobre tudo foi pergun-tado. Algumas questões causaram desconforto, é claro, mas não ficou nenhuma pergunta sem resposta. Agora, por que não saiu? Eu estou esperando o defunto esfriar (risos). Eu acho que é muito cedo. Porque, na verdade, Antônio Carlos Maga-

lhães morreu, mas o carisma dele permanece muito vivo na Bahia. Do ponto de vista histórico, quatro anos não são nada. Não é uma gota.

Ele foi de uma generosidade es-pantosa comigo. Me deu acesso a todos os arquivos pessoais dele, que eu digitalizei e que estão guardados em São Paulo, e inclui uma coisa que eu achava inacreditável. Ele gravou todos os telefonemas dele desde que o gravador apareceu no Brasil. E não informava aos interlocutores que a conversa estava sendo grava-da. Então, tem coisas inacreditáveis, imaginem vocês: Collor na véspera ou antevéspera do impeachment li-gando para ele pedindo socorro... Coisas saborosíssimas e coisas im-portantes para a história do Brasil.

Muita gente me pergunta a ra-zão do meu interesse por Antônio Carlos Magalhães. Em primeiro lugar, o jornalista que não se inte-

ressar por ACM tem que mudar de profissão. Segundo, pelo seguinte: de Juscelino a Lula, Antônio Car-los Magalhães, seguramente, foi o único que conviveu com o poder durante todo esse tempo com um único hiato: os dois anos do gover-do Itamar Franco, quando este não deu colher de chá e ele ficou no os-tracismo. Tirando esse período, o ACM esteve presente como prota-gonista ou como testemunha.

Bem, só eu tenho esse material e o depoimento que ele me deu, não vai dar para mais ninguém, só se for em um terreiro (risos). Eu não tenho pressa, porque ninguém terá o que eu tenho. Agora, tudo que eu obtive e tudo o que eu apurei e vier a apurar, porque há muito a fazer, será publicado. Pelo menos eu não corro o risco dele ficar bravo comi-go, a não ser que ele venha puxar a minha perna (risos).

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Após o bate-papo, atencioso, Morais autografou os livros e distribuiu sorrisos.