o conselheiro tutelar e a Ética do cuidado

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O CONSELHEIRO TUTELAR E A ÉTICA DO CUIDADO Pedro Caetano de Carvalho 1 (Trabalho publicado pela editora FORENSE, RJ, 2006, pág. 361, na obra “A ÉTICA DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR- Sua efetividade no cotidiano dos tribunais,” Coordenação Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira,sendo o autor um dos vencedores do Prêmio Caio Mário da Silva Pereira/ 2005.) Sumário- 1-Introdução; 2- Da tutela do Código de Menores ao Conselho Tutelar; 3- Ética e missão; 4- Necessidade de preparo do conselheiro para sua missão; 5- O conselheiro, a ética e a moral; 6- Cuidados necessários no procedimento do conselho tutelar; 7- O Conselheiro Tutelar e o cuidado no abrigamento; 8- o Conselheiro Tutelar e o cuidado com a educação; 9- O Conselheiro e o cuidado em assessorar o poder executivo, através do Cmdca; 10- O Conselheiro Tutelar e o cuidado com o registro de nascimento; 11- O Conselheiro Tutelar e o cuidado na “blitz” ou “batida”; 12- O conselheiro Tutelar e o cuidado com crianças e pais desaparecidos; 13- O Conselheiro e o cuidado ao atender e aconselhar os pais ou responsáveis; 14- O Conselheiro Tutelar e a resiliência. 1- Introdução Uma das principais inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente foi a criação do Conselho Tutelar, constituído por cidadãos, a quem a sociedade escolhe para cuidar e zelar de suas crianças e jovens com até 18 anos de idade. A preocupação em proteger essa camada tão significativa da população brasileira encontra respaldo na Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança, realizada sob os auspícios da ONU, cuja Assembléia proclamou a Doutrina 1 Pedro Caetano de Carvalho é Juiz aposentado e filósofo, ex-presidente do CEDCA – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, ex-coordenador estadual da FUCABEM – Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor, Secretário da Escola de Pais do Brasil – secional de Florianópolis/SC e professor da disciplina “Direito da Criança e do Adolescente”, na ESMESC – Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina. 1

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Page 1: O CONSELHEIRO TUTELAR E A ÉTICA DO CUIDADO

O CONSELHEIRO TUTELAR E A ÉTICA DO CUIDADOPedro Caetano de Carvalho1

(Trabalho publicado pela editora FORENSE, RJ, 2006, pág. 361, na obra “A ÉTICA DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR- Sua efetividade no cotidiano dos tribunais,” Coordenação Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira,sendo o autor um dos vencedores do

Prêmio Caio Mário da Silva Pereira/ 2005.)

Sumário- 1-Introdução; 2- Da tutela do Código de Menores ao Conselho Tutelar; 3- Ética e missão; 4- Necessidade de preparo do conselheiro para sua missão; 5- O conselheiro, a ética e a moral; 6- Cuidados necessários no procedimento do conselho tutelar; 7- O Conselheiro Tutelar e o cuidado no abrigamento; 8- o Conselheiro Tutelar e o cuidado com a educação; 9- O Conselheiro e o cuidado em assessorar o poder executivo, através do Cmdca; 10- O Conselheiro Tutelar e o cuidado com o registro de nascimento; 11- O Conselheiro Tutelar e o cuidado na “blitz” ou “batida”; 12- O conselheiro Tutelar e o cuidado com crianças e pais desaparecidos; 13- O Conselheiro e o cuidado ao atender e aconselhar os pais ou responsáveis; 14- O Conselheiro Tutelar e a resiliência.

1- Introdução

Uma das principais inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente foi a criação do Conselho Tutelar, constituído por cidadãos, a quem a sociedade escolhe para cuidar e zelar de suas crianças e jovens com até 18 anos de idade.

A preocupação em proteger essa camada tão significativa da população brasileira encontra respaldo na Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança, realizada sob os auspícios da ONU, cuja Assembléia proclamou a Doutrina da Proteção Integral, que já havia sido incorporada pela Constituição Brasileira de 1988, uma vez que seus princípios desde então eram amplamente conhecidos. A sua regulamentação foi prevista pela Constituição para ser efetivada em legislação própria, o que ocorreu com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, também conhecido como ECA.

A Doutrina da Proteção Integral estabelece que a família é o ambiente natural para o crescimento e o bem estar de todos os seus membros e, em particular da criança e do jovem que deve receber a proteção e assistência necessária a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade. Reafirmou o fato de que as crianças, dada a sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e proteção especiais, colocando ênfase sobre os cuidados primários e a proteção responsável da família e a necessidade de proteção legal e de outras formas de proteção à criança antes e depois de seu nascimento.

Neste trabalho pretendemos nos ater à ética do cuidado que deve cercear a missão do Conselheiro Tutelar, como membro de um órgão que é um instrumento para assegurar que se cumpram os preceitos da política de proteção aos direitos da criança do adolescente no Município, política esta prevista no ECA, cuja formulação e

1 Pedro Caetano de Carvalho é Juiz aposentado e filósofo, ex-presidente do CEDCA – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, ex-coordenador estadual da FUCABEM – Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor, Secretário da Escola de Pais do Brasil – secional de Florianópolis/SC e professor da disciplina “Direito da Criança e do Adolescente”, na ESMESC – Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina.

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fiscalização é de responsabilidade precípua do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA, que funciona de forma paritária, com metade dos representantes do governo (poder público) e outro tanto de representantes da sociedade civil.

Não temos a pretensão de apresentar um “manual do conselheiro”, mas apenas pontuar alguns dos direitos e deveres, aliados aos limites éticos que devem permear a atuação do Conselheiro Tutelar, inclusive para evitar que o seu desrespeito enseje a ida aos tribunais por motivo de discordância da criança e adolescente por seu representante, ou os pais ou responsável, que pode requerer medida judicial de medida aplicada. A revisão que não se constitui tecnicamente em recurso administrativo, mas em ação própria, na forma prevista pelo art. 137, do ECA, é efetuada através de ação judicial deduzível perante Juiz da Infância e da Juventude, para a qual não se prevê expressamente rito determinado, sendo que o Juiz não pode determinar revisão de medida aplicada pelo CT ex officio, dependendo de provocação de quem tenha legítimo interesse. Sem dúvida que o Conselheiro agindo dentro da ética e do cuidado, no caso de ser acionada a justiça, tanto em primeiro, como em segundo grau, ficará mais fácil salvaguardar o melhor interesse da criança e do adolescente.

2- Da Tutela do Código de Menores ao Conselho Tutelar

Já se vão 15 anos desde quando foi sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente em 13/07/1990, tendo sido comemorado sua entrada em vigor no dia da criança, daquele mesmo ano, embora a vigência legal tenha ocorrido apenas no dia 15. O último artigo do Estatuto (Lei 8069/90), de nº 267, revogou duas leis: o Código de Menores (Lei 6697/77) e a Política Nacional do Bem Estar do Menor (Lei 4513/64). Iniciamos nos referindo ao ECA de trás para frente porque enquanto não se revogar de fato e de direito estas duas leis, abolindo-as da prática dos operadores do Sistema de Garantia dos Direitos não se consegue a implementação do ECA. Em Santa Catarina conseguimos a extinção da FUCABEM – Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor, tão logo entrou em vigor o ECA, porque houve vontade política do Governador da época.

Foi com base na referida lei de 1964, ano da “dita” revolução que se implantou no país o “sistema F”, através da Funabem2 e das Febem´s 3, com uma concepção equivocada para promover o “Bem Estar do Menor”, em perfeita consonância com o então Código de Menores, que foi atualizado em 1979, em substituição ao Código de 1927, com base no qual Juizes e Curadores de Menores (Promotor de Justiça) sob o pretexto de “proteção”, violavam os direitos elementares dos “menores”. Hoje ainda é possível, tanto pela produção literária, como pelo discurso e pela atuação pratica, identificar lobos transvestidos em cordeiros, nos três poderes da República, bem como nas organizações civis e governamentais, que usam o discurso do Estatuto, mas raciocinam e agem nos moldes das duas leis revogadas. E isto tem sido um grande entrave para a operacionalização do ECA. Ficam as perguntas: a quem interessa manter até hoje as FEBEMS, cujo sistema falido, nada tem a ver com o ECA? Quantas ações civis públicas se efetivaram para garantir as Defensorias Públicas com o mesmo suporte do Ministério Público, para garantir o “equilíbrio da balança” nas decisões da Justiça da Infância e da Juventude? Quais os

2 Funabem- Fundação Nacional do Bem Estar do Menor.3 Febem- Fundação Estadual do Bem Estar do Menor.

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Tribunais, Estados e Municípios, que cumpriram integralmente o comando do art. 259, § único, do ECA: “compete aos Estados e Municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta Lei”.

Enquanto prevalece a vaidade institucional e o “faz de conta” das repartições públicas que não têm interesse na implementação do ECA, que é a lei que regulamentou a Constituição Federal na parte relativa aos direitos da criança e do adolescente, cada ano que passa deixa para traz os que continuam sendo de “menor importância” para as autoridades constituídas e a sociedade civil, que não querem vê-los como o “maior destinatário” das políticas públicas, através da proteção integral que lhes foi garantida no art. 1º da referida Lei. É lamentável que ainda se insista em usar a expressão “menor” como substitutivo de criança e adolescente, contrariando a CF e o ECA que assim não o fazem. A expressão “menor” se tornou pejorativa e não deve ser usada a não ser em caso específico de menoridade legal. Nunca é demais lembrar a distinção entre o revogado Código de Menores e o ECA, que está na própria nomenclatura utilizada para um e para outro. A palavra “estatuto” pressupõe uma legislação que objetiva estruturar, regrar uma associação, um grupo, um Estado. É uma lei elaborada através de um processo participativo e sobre este se pauta sua aplicação. O termo “código”, por sua vez, significa coleção de leis, conjunto metódico e sistemático de disposições legais relativos a um assunto ou a um ramo do direito. Enfim, algo estático, como se referem os advogados Mauricio Balesdent Barreira e Jussara Maria Moreno Jaciutto, em obra que integrou uma coleção voltada para o entendimento e implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, da qual tive a honra de ser consultor .4

Além das divergências conceituais e doutrinárias que separam o ECA do Código, vejamos, resumidamente, alguns dos preceitos básicos que marcam a diferença entre ambos, quanto ao objetivo da lei, o poder familiar, os direitos individuais, o direito de defesa, internação, posição do magistrado e mecanismos de participação.

O Código destinava-se a assistência à “menores” em situação irregular, enquanto objeto de medidas judiciais. O Estatuto partiu da concepção de “sujeitos de direitos” de todas as crianças e adolescentes, independente da condição em que se encontrem.

Diferentemente do Código, o ECA (art. 23) não mais permite que pais ou responsáveis tenham o poder familiar suspenso ou destituído por motivo de pobreza, o que torna a intervenção da autoridade judiciária menos arbitrária no âmbito da família. Infelizmente ainda há Juizes e Promotores agindo como na época do Código.

Em contraposição ao revogado Código, que permitia a prisão cautelar hoje inexistente para os adultos, à lei 8069 declara que “nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente. Parágrafo único: O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis por sua apreensão, devendo ser informado acerca de seus direitos (art. 106)”.

Como lembra o Des. Antonio Fernando do Amaral e Silva,“este é um dos pontos centrais do que se considera como avanço da legislação, utilizando-se, inclusive, parâmetros internacionais, pois coíbe a arbitrariedade e os abusos permitidos na legislação

4- Mauricio Balesdent Barreira e Jussara Maria Moreno Jaciutto In Compreendendo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: CBIA e o CESPP, 1995, p. 17.

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anterior segundo a qual qualquer um teria autoridade para apreender o ‘menor’ mesmo em casos de mera suspeita”.5

Na legislação anterior, a defesa do adolescente a quem se atribuía autoria de ato infracional, era restrita à participação do Curador de Menores (Promotor Público), o mesmo que o acusava. A lei 8069 estabeleceu a garantia de defesa como se vê nos artigos 110 e 111: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal”, sendo asseguradas diversas garantias de defesa, como o direito de receber assistência judiciária gratuita, ser ouvido pela autoridade competente e solicitar a presença dos pais entre outros.6

Quanto à internação, crianças e adolescentes podiam ser internados por encontrarem-se em “situação irregular”, por exemplo, por impossibilidade dos pais em prover os cuidados necessários à sua subsistência, sem prazo determinado. De acordo com o ECA, no tocante à internação, a medida só será aplicável a adolescente autor de ato infracional grave, obedecendo-se os princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Quando houver criança ou adolescente necessitando de proteção, que não seja em decorrência de ato infracional (art. 105), poderá ser abrigada em instituição especialmente para este fim, observado o que estabelece o art. 101, § único: “o abrigo é medida provisória e excepcional utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”. Sobre a posição do Magistrado que exerce a função do Juiz da Infância e da Juventude (art. 146), diferentemente da legislação anterior, seus poderes foram limitados, na medida em que se estabeleceu a garantia do direito à defesa à criança e ao adolescente. Com o ECA houve a desjudicialização dos diversos procedimentos que passaram a ser atribuição da Assistência Social e demais políticas públicas, bem como do Conselho Tutelar.

Concluindo a apertada síntese dos preceitos básicos que marcam a diferença entre o Código e o ECA, trazemos os mecanismos de participação. No caso do Código, as possibilidades de participação limitavam-se às autoridades judiciárias, policiais e administrativas. A Lei 8069/90 destacou os aspectos não jurídicos do problema restringindo a ação da autoridade judiciária e criando instâncias sócio-educativas de atendimento a crianças e adolescentes com a participação da sociedade civil. Foram previstos organismos de participação popular como os Conselhos de Direito que são paritários (Estado e Sociedade), nos níveis Federal, Estadual e Municipal. Mas uma das maiores inovações foi o Conselho Tutelar, de cujos membros pretendemos tratar mais adiante da ética do cuidado que deve ter para com a população infanto-juvenil.

3- Ética e Missão

O estudo da ética, de forma resumida, é uma reflexão sobre a conduta humana, um estudo que procura entendimento no reino dos discursos, das afirmações e das lições de moral. Considera o que vale a pena, o que deve ser feito e o que dá sentido à vida. Busca

5 Antônio Fernando de Amaral e Silva apud Francisco Pilotti e Irene Rezini ( org) In A arte de governar crianças. Rio de Janeiro:Anais, 1995, pp. 162/36 Pedro Caetano de Carvalho In Neste In Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, (Coord. Muniz Cury, Antonio Fernando do Amaral e Silva e Emilio Garcia Mendez (comentando arts. 174/176 e 185/186 ) São Paulo: Malheiros, 1992, p. 490.

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clareza e consistência nas bases e nos motivos, nos meios e nas conseqüências da ação adequada, dos modos de “fazer as coisas direito”.

Como ensina Gustavo Korte “a ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está situado, ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta. Procura enunciar e explicar as regras, normas, leis e princípios que regem os fenômenos éticos. São fenômenos éticos todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e o seu contexto”.7

Sem a pretensão de ater-nos tanto aos aspectos filosóficos da ética, que deve abranger também a função de Conselheiro Tutelar, não podemos deixar de trazer alguns de seus subsídios que permeiam esta nobre missão, buscando-os na ética das profissões, embora consciente de que Conselheiro não exerce uma profissão, mas ao ser escolhido recebe um mandato para desempenhar a função pública específica de Conselheiro Tutelar.

Quando o ECA instituiu o Conselho Tutelar, por conseqüência exigiu dos seus membros os requisitos do art. 133, que algumas leis municipais logo cuidaram de ampliar. Contudo, uma exigência se sobressai, que é a da “idoneidade moral” (inciso I). Nos diversos dicionários jurídicos a idoneidade moral é vista como o conjunto de qualidades morais que tornam o indivíduo bem conceituado no meio social em que vive, pela honestidade que o caracteriza, por seus costumes, cumprimento dos deveres etc.

Embora o Conselheiro Tutelar não se enquadre como detentor de profissão, ofício ou carreira, queremos trazer alguns subsídios que norteiam a importância da vocação em qualquer das funções referidas. Antes, é de se registrar que ainda não existe consenso se o Conselheiro por ser escolhido (art. 132), e não mais “eleito”, como era na redação original do ECA, seja detentor de cargo ou função.

Na falta, ainda, de melhor definição ficamos com a conceituação do direito administrativo, na acepção de Hely Lopes Meirelles que trata agentes públicos como “todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal. [...]Os cargos, são apenas os lugares criados no órgão para serem providos por agentes que exercerão as suas funções na forma legal”.8

O Conselheiro é escolhido e o seu vínculo com a municipalidade se mantém pelo prazo de seu mandato para desempenhar a função específica de Conselheiro. Neste período, por exemplo, por uma questão de ética, o Conselheiro fica impedido de trabalhar em alguma entidade de atendimento, uma vez que cabe ao CT a sua fiscalização.

Embora não seja de grande relevância jurídica, cabe o registro de que o CT como órgão municipal, instituído pelo legislador federal, por obvio, sua criação não depende de legislação municipal, diferentemente do CMDCA, este sim necessitando de criação, uma vez que o CT, conforme posição do Procurador de Justiça gaúcho, Dr. Afonso Armando Konzen “já se encontra desde logo, criado pela Lei nº 8069/90, cabendo à lei municipal dispor sobre o seu funcionamento, nos termos do art. 134”.9 7 Gustavo Korte In Iniciação à Ética . São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p.18 Hely Lopes Meireles In Direito Administrativo. São Paulo:Malheiros, 1995, p. 719 Afonso Armando Konsen In Pela Justiça na Educação. Brasília: Fundescola/Mec 2000, pp. 166/7 O autor, membro do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul foi um dos coordenadores técnicos da publicação da ABMP – Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude, por ocasião dos “Encontros pela Justiça na Educação, realizados nas diversas regiões do Brasil, cujos textos e informações ali contidos representaram contribuição

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Veja-se o art. 88, II, do ECA apenas prevê a criação do Conselho de Direitos, e o art. 134, quanto ao CT, restringe o conteúdo da lei municipal ao funcionamento do colegiado. O art. 261 trata da “falta” dos conselhos municipais, e o 262 prevê a situação temporária enquanto não instalados os Conselhos Tutelares.

Assim, cabe ao Município apenas regulamentar o órgão com vistas a sua instalação e funcionamento.

No tocante à vocação, há funções para as quais ela é um pressuposto que necessita estar junto com as qualificações que o cargo exige. Se a CF e o ECA tratam a criança com a prioridade absoluta e lhes assegura a proteção integral, com certeza a pessoa que vai ser escolhida pela sociedade para zelar (cuidar) pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, na função de Conselheiro, mais do que informações técnicas, precisa ser vocacionada.

As idéias de profissão, ofício e carreira contêm e traduzem uma idéia de realização pessoal, de consecução de objetivos e de satisfação íntima, só encontrado pelos que as seguem. Respondem a uma vontade íntima e pessoal do indivíduo, comumente designada por vocação.

Daí porque uma pessoa que esteja buscando, apenas um “emprego” ao se candidatar como Conselheiro, sem ser vocacionado, não conseguirá exercer bem a função, sendo de grande responsabilidade pessoal esta opção, como, aliás, deve ser em qualquer profissão, atividade ou ofício.

Há quem diga que atender à vocação significa processar a materialização das idéias contidas em sua alma.

Ao se decidir se vai concorrer ao cargo de Conselheiro Tutelar, cabem as observações do filósofo Gustavo Korte: “é preciso que a opção seja compatível com as nossas capacidades, competências e disponibilidades pessoais. As razões éticas podem ser de muita valia e são imprescindíveis para a escolha de profissão, atividade e ofício, pois nos ensinam a compatibilizar o que temos, quanto podemos e onde queremos chegar”.10

4- Necessidade de preparo do Conselheiro para sua Missão

Inicialmente partimos do principio de que o Conselho Tutelar é “órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos nesta Lei” (art. 131, da Lei 8069/90). Suas atribuições estão centradas nos artigos 136, 95 e 56 do ECA, tendo como pano de fundo o artigo transcrito, com destaque para aplicação de medidas de proteção a crianças e adolescentes (art. 101); aplicação de medidas aos pais ou responsáveis (art. 129); encaminhamento ao Ministério Público - MP dos casos de infrações administrativas a crimes em espécie, perda ou suspensão do poder familiar; encaminhamento ao Poder Judiciário dos casos de sua competência (art.148); assessorar o Poder Executivo na elaboração de propostas orçamentárias; representar em nome da família sobre violação do art. 220, da CF; tomar providências quando das notificações dos estabelecimentos de ensino (art. 56); fiscalizar as entidades de atendimento (art.90).para maior compreensão do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, especialmente do direito à educação, sob o título Conselho Tutelar, Escola e Família – Parcerias em Defesa do Direito à Educação”.10 Gustavo Korte, ob. cit. p.160.

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Inúmeras são as atribuições do Conselho Tutelar, o qual é imprescindível para o bom funcionamento do sistema de garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.

O Conselho Tutelar tem recursos ou respaldo para o seu trabalho, podendo requisitar serviços públicos nas áreas de educação, saúde, assistência social, previdência, trabalho e segurança. Expedir notificação, providenciar medidas de proteção ao adolescente autor de ato infracional, requisitar certidão de nascimento e óbito de crianças e adolescentes.

Diferentemente de funções como, por exemplo, a do Juiz e do Promotor, galgados mediante concurso público e que são vitalícios, o Conselho Tutelar não é uma profissão que justifique a participação contínua de uma mesma pessoa e por isso a lei permitiu apenas uma recondução. O ECA em seu art. 132 é claro ao estabelecer que os Conselheiros Tutelares serão escolhidos pela comunidade local. O legislador quis assegurar a escolha de quem a sociedade tem de melhor, a cada eleição, dentro das condições do município, para zelar de forma colegiada pelos direitos da criança e do adolescente. Caso contrário, a Lei teria previsto que o Conselheiro seria funcionário público de carreira e com mandato permanente.

Contudo, a alternância de mandato dos Conselheiros tem exigido uma capacitação contínua, além de uma preparação destas pessoas especiais a quem a sociedade encarregou a tarefa de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Por isso a necessidade imperiosa de que seja inerente à função do Conselheiro Tutelar a ética do cuidado para a missão que aceitou desde a sua posse.

A Convenção dos Direitos da Criança, no seu artigo 3º estabeleceu que “os Estados Partes (países) se certificarão que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da direção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes”. Da mesma forma, o art. 7º, assegura à criança “o direito de conhecer seus pais e a ser cuidada por eles”.

Andou bem o legislador do Estatuto ao tirar do âmbito da Justiça todas as atribuições que não implicavam em conflito de interesses entre as partes, devolvendo à família, à sociedade, às políticas públicas, às instâncias socio-educativas e ao Conselho Tutelar o melhor cuidado para com as crianças.

Quando se discutiu a forma de se retirar do âmbito da Justiça as tantas atribuições que lhe eram afetas, relativamente à infância e a juventude, foi o então Juiz de Direito de Blumenau – SC, Dr. Antonio Fernando do Amaral e Silva, hoje Desembargador quem levou para a comissão encarregada de preparar a redação do ECA, a idéia dos Conselhos Educacionais Tutelares cujo projeto foi sendo debatido, chegando aos moldes do Conselho Tutelar hoje conhecido.

Como se sabe, o CT não usurpou funções da Justiça Infanto-Juvenil, uma vez que o legislador do ECA não repassou-lhe nenhuma matéria jurisdicional, mas apenas atribuições de natureza administrativa que na legislação anterior eram exercidas pelo Juizado de Menores, num evidente desvio de finalidade, já que, não compete ao Poder Judiciário prestar a jurisdição.

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Como ensina Konzen o CT como órgão não jurisdicional, “não lhe é natural assumir a responsabilidade de solver os conflitos de interesses ou aplicar sanções aos transgressores do ordenamento jurídico, matéria em geral afeta à prestação jurisdicional. Portanto o Conselho Tutelar não julga casos, no sentido de dizer a verdade para partes eventualmente em conflito, tampouco aplica sanções no sentido de punir eventuais transgressões da norma. O proceder do agente tutelar, por situar-se na esfera administrativa, limita-se a verificar a situação, formar o seu juízo de valor e determinar, a partir do seu convencimento, a melhor providência para o caso concreto.

Por se tratar de atividade não jurisdicional e as providências suscetíveis de aplicação caracterizarem-se pela total ausência de retribuição, faz-se necessário que na atuação do Conselho Tutelar inexista necessariamente um contencioso administrativo, com o que, ainda que se apresente uma atuação com todas as características de um processo, ou procedimento as pessoas atendidas, crianças ou adolescentes, pais ou responsável, não necessitam, obrigatoriamente exercer defesa técnica, papel tradicional da advocacia”.11

O Conselheiro Tutelar por desempenhar serviço público relevante, é dotado de autoridade pública para receber denúncias, aplicar medidas que interferem na conduta das pessoas; requisitar serviços públicos para garantir direitos constitucionais e fiscalizar entidades de atendimento. Não pode exercer tais atribuições sem que formalmente esteja investido numa função ou cargo criado e regulamentado por lei. O tempo do exercício das atribuições é o do mandato fixado na lei, após a sua eleição.

Daí a necessidade do amplo preparo do Conselheiro para a sua missão. Mas mais do que isso ele necessita se guiar pela ética, pois a prioridade é o melhor interesse da criança, que muitas vezes se confronta com interesses de políticos, de adultos, do poder público, da família, da sociedade etc.

5- O Conselheiro, a ética e a moral

Para que não reste dúvida sobre ética e moral, que não são sinônimos, trazemos as definições, embora abstratas, de Leonardo Boff, para quem “a ética é parte da filosofia. Considera concepções de fundo acerca da vida, do universo do ser humano e de seu destino, estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades. Uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções. Dizemos então que tem caráter e boa índole”.

A moral é parte da vida concreta. Trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores consagrados. Estes podem, eventualmente, ser questionados pela ética. Uma pessoa pode ser moral (segue os costumes até por conveniência), mas não necessariamente ética (obedece a convicções e princípios)”. 12

O mesmo autor trata do surgimento da ética e da moral, tanto analisando o sentido das palavras, como aprofundando a sua origem na Grécia, e as manifestações dos filósofos sobre o assunto, que não cabe analisar aqui. Contudo, não pode ficar sem registro o estudo efetuado por ele sobre a palavra ethos, donde se deriva a ética. Ethos em grego significa

11 Afonso Armando Konsen, ob. cit. pp. 170-171.12Leonardo Boff In Ética e Moral – a busca dos fundamento. Petrópolis: Vozes, Petrópolis,2004, p.37

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morada humana, e os hábitos e usos dos moradores foram chamados de moral. Para nós hoje a morada não é apenas a casa ou o apartamento que habitamos, é também a cidade em que vivemos, o país a que pertencemos e o Planeta Terra, nossa Casa Comum.

Entre os diversos estudos trazidos por Leonardo Boff, destacamos o ethos que ama e o que cuida. O outro faz surgir o ethos que ama, sendo que amar o outro é querer que ele exista, porque o amor faz o outro importante. Conclui que “quando alguém ou alguma coisa se fazem importantes para o outro, nasce um valor que mobiliza todas as energias vitais. É por isso que, quando alguém ama, rejuvenesce e tem a sensação de começar a vida de novo. O amor é a fonte dos valores”.13

Peninha já cantou que “quando a gente ama é claro que a gente cuida...”

Cuidar não é atribuição exclusiva do Conselheiro Tutelar, mas ele precisa estar atento no trato do dia-a-dia com outros cuidadores (pais, professores, irmãos mais velhos, tios, avós etc). É importante ter a sensibilidade para perceber quando não existe amor, pois de tudo que amamos, também cuidamos, e quando cuidamos, amamos. Quem cuida se responsabiliza e se compadece.

Boff define o cuidado “com dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de danos passados”.14

O Conselheiro é instado diuturnamente a agir em situações em que crianças e jovens estão sujeitos a terem seus direitos violados, prevenindo danos futuros. Mas muito mais vezes são acionados quando a violação já ocorreu, cabendo-lhe cuidar da regeneração dos danos passados. Daí a importância da ação articulada com o CMDCA para que estejam em pleno funcionamento no município os diversos programas de atendimento elencados no ECA, onde serão atendidas crianças e adolescentes, bem como seus pais ou responsáveis. Além disso, é de se estar continuamente atento à necessidade que toda pessoa tem, em especial as crianças e adolescentes, que é o direito à delicadeza principalmente para com as vitimas do abandono e da violência, tanto física, como psicológica, em todas as etapas do atendimento.

6- Cuidados necessários no procedimento do Conselho Tutelar

As funções do CT são voltadas ao atendimento de caso individual e concreto, não se constituindo em órgão executor da política de atendimento do Município, e tampouco é agente de execução de programas de atendimento. A formulação da política de atendimento e o controle das ações competem ao CMDCA. Situando-se a atividade do CT no campo administrativo, a sua ação deve consubstanciar-se nos princípios básicos do agir da administração, quais sejam, a legalidade, a moralidade, a finalidade e a publicidade dos atos praticados. As decisões devem trazer em si, especialmente a decisão de aplicar medida, os atributos do ato administrativo, como a presunção da legitimidade, a imperatividade e a auto-executoriedade. Ultimamente uma das perguntas que mais temos ouvido nas aulas de “Direito da Criança e do Adolescente,” que ministramos na Escola Superior da Magistratura Catarinense, é a que se refere ao direito do advogado de acompanhar, em

13 Leonardo Boff, ob. cit. p. 47.14 Leonardo Boff, ob. cit. p. 48.

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nome de seus clientes, os atos do Conselho Tutelar, inclusive quando aplicadas medidas aos pais ou responsáveis, ou como procuradores de vítimas de ato infracional cometido por criança. Não há dúvida de que não é o caso de estabelecer-se o contraditório, mas dentro da transparência exigida dos atos de competência do CT, cada vez mais este necessita estar preparado para enfrentar esta realidade, sempre atento aos princípios já referidos.

Trazemos aqui os princípios observados por Konzen como imprescindíveis para a atuação do Conselheiro para quem “outro corolário lógico de classificação do Conselho Tutelar como atividade não jurisdicional e, portanto, de natureza administrativa, é a presença dos princípios instrumentalizadores do proceder administrativo.

Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello mesmo na ausência de lei reguladora de um dado procedimento, há a incidência de alguns cânones gerais de acatamento obrigatório, todos eles com fundamento, explícito ou implícito, na Constituição Federal. Arrola, o citado mestre em Direito Administrativo, onze princípios, certamente todos eles aplicáveis ao proceder do Conselho Tutelar, quais sejam: (1) princípio da audiência do interessado; (2) princípio da acessibilidade aos elementos do expediente; (3) princípio da ampla instrução probatória; (4) princípio da motivação; (5) princípio da revisibilidade; (6) princípio da representação e assessoramento; (7) princípio da lealdade e boa fé; (8) princípio da verdade material; (9) princípio da oficialidade; (10) princípio da gratuidade; e, por último (11) princípio do informalismo.

De todos esses o único princípio não totalmente incidente ao proceder do Conselho Tutelar é o da revisibilidade, segundo o qual o administrado pode recorrer da decisão que lhe seja desfavorável a instâncias superiores. Ora, como dispõe o art. 137 do Estatuto, a decisão do Conselho Tutelar só pode ser revista por decisão judicial a pedido de quem tenha legítimo interesse, solução que não se constitui em recurso administrativo, mas em ação própria. O que não significa que a regulamentação do proceder tutelar não possa prever, na hipótese de se tratar de medida aplicada por um determinado conselheiro, a revisão pelo conjunto dos demais conselheiros, ou se a medida regimentalmente originar-se de decisão do Conselho considerado como um todo, que o destinatário da medida possa solicitar a revisão da providência ao próprio órgão.

O procedimento administrativo deve objetivar, sempre, o resguardo dos destinatários da atividade e a transparência do agir da administração. Ainda que a ação do Conselho Tutelar não deva assumir características burocrática impeditivas da pronta solução, também não deve, avassaladoramente, intervir na vida dos cidadãos. O equilíbrio entre a determinação de agir, em face do interesse subjacente, sempre de maior relevância, e as prerrogativas das pessoas sujeitas da verificação é o segredo da boa ação de todo e qualquer agente investido em autoridade pública”.15

No que se refere ao direito do cidadão contra quem foi aplicada alguma medida pelo CT, de pedir revisão, além dos argumentos acima referidos, é de lembrar que no âmbito da Justiça Infanto-Juvenil, da decisão do Juiz, havendo recurso, cabe o juízo de retratação (art. 198, VII), ou seja, antes de remeter o processo à instância superior (Tribunal de Justiça), o Juiz deve manifestar-se se mantém ou revoga sua própria decisão, pois pode ter sido apresentado fato novo e convincente que atenda o melhor interesse da criança.

15 Armando Afonso Konzen, ob. cit., pp. 171/210

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Assim, o regimento interno, ou até a própria legislação municipal deve prever a possibilidade de revisão por iniciativa do próprio Conselho, ou por pedido dos pais ou responsáveis, quando for o caso, de forma a atender a prioridade absoluta da criança e do adolescente sempre que surgirem fatos novos.

É preciso cuidado para que o CT não se transforme em Programa de Atendimento. Muito menos usurpar funções de profissionais especializados (psicólogos, terapeutas, pedagogos, assistentes sociais etc), o que pode constituir crime, por exercício de função sem a devida licença e credenciamento. Um outro cuidado que deve acompanhar o Conselheiro Tutelar é o de não infantilizar as famílias, intervindo de forma a “desautorizá-las”, recriminando-as diante dos filhos, mas sim de encaminhá-las, se necessário, para algum dos programas previstos no art. 129, do ECA, entre os quais o do inciso IV: “encaminhamento a cursos ou programas de orientação”.

O Conselheiro Tutelar, como agente do Estado, encarregado de zelar pelo melhor interesse da criança, muitas vezes se vê no dilema, como outras autoridades, de ter agido impondo “o seu próprio sistema de valores a outros pais, e onde as “salvações”, as mais bem intencionadas, levam às vezes a destruir os últimos vestígios dos laços familiares, sem que sejam capazes de oferecer à criança os substitutos familiares de que ela necessita. [...] As condições de vida aparentemente desordenadas de uma família conduzem por vezes as autoridades a uma intervenção brutal, dispersando a família antes mesmo de estudar os laços que unem esses membros e o risco do abandono a ser desencadeado pela ruptura desses laços”.16

Vale também para o Conselheiro Tutelar, da mesma forma que para Juizes e Promotores, o comando que estabelece o ECA, e tantas vezes esquecido, no tocante a qualquer das medidas de proteção, em cuja aplicação “levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários” (art. 100). Daí a importância de se verificar antes de mais nada se os efeitos benéficos da intervenção serão superiores aos eventuais efeitos negativos.

7- O Conselheiro Tutelar e o cuidado com a educação Hoje cada vez mais está se despertando para a importância do cuidado, sendo que

tanto pais como educadores estão percebendo que a nova ordem social invoca indivíduos autônomos e participativos, cientes de seu papel no mundo e preparados para defender idéias e projetos.

O Conselheiro precisa perceber isto, pois do contrário estará intervindo de forma a prejudicar as crianças e jovens atendidos. Quando, por exemplo, mantém contato com a escola precisa observar se lá crianças e jovens recebem suas primeiras “lições de cidadania”. Quando recebe queixa dos professores deve observar se ele está exercendo sua função de elemento multiplicador da semente da cidadania junto as novas gerações, pois hoje não cabe mais os antigos métodos baseados apenas em vigilância e punição. O Conselheiro não deve priorizar a punição da criança e do jovem.

16 Fernando Freire ( org.) In Abandono e Adoção. Curitiba: Terre des hommes, 1991, p. 31.

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No tocante à educação, lembramos que a regra estabelecida no art. 56, II e III do ECA, não pode ser ignorada, sob pena de os responsáveis, inclusive Conselheiros Tutelares, incorrerem em crime de responsabilidade, pela omissão e negligência (art. 5º, do ECA). Os dirigentes de estabelecimentos de ensino deverão comunicar ao CT os casos de reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar esgotados os recursos escolares, além dos elevados níveis de repetência. Faz parte do cuidado que o CT deve ter a atenção aos dados que recebe e tomar as providências cabíveis, junto aos setores competentes, inclusive encaminhando-os ao CMDCA, ao Ministério Público e ao Juiz. O primeiro porque é o órgão formulador e controlador das políticas de atendimento, e o MP e o Poder Judiciário para que participem do conjunto articulado de ações governamentais, como estabelece o art. 86, do ECA. Todos sabem que a criança fora da escola significa uma maior distância e demora para conquistar a cidadania. Nestes quinze anos do Estatuto se os Conselheiros, Educadores, Família e demais autoridades tivessem cuidado melhor para que as crianças e jovens estivessem na Escola será que não teríamos menos população vivendo nas ruas e se perdendo no emaranhado do mundo do crime? Daí o desafio para se manter a criança na escola e se evitar os altos índices de repetência, que deve ser de todos nós.

Ainda quanto à educação, não se pode esquecer da atenção que precisa ser dada ao regimento interno das escolas e das entidades de atendimento. Lá são estabelecidas as regras com que são tratadas crianças e adolescentes. Precisa, no mínimo, estar de acordo com o ECA. Se queremos preparar cidadãos que lutem pelos seus direitos quando se sentem violados, temos que prestar atenção em como as regras das escolas e entidades lidam com questões, por exemplo como revisão de provas, eleição para grêmios estudantis ou de lideranças, desligamento, eventuais punições etc. Se não permitimos que as crianças e adolescentes lutem por seus direitos, exercitem o voto e exponham-se a ser candidatos, quando a situação permite, participem de manifestações, executem uma atividade social etc, estamos perdendo as oportunidades de prepará-los para o exercício da cidadania.

Pelo art. 4º, do ECA, todos nós temos responsabilidade de ensinar e garantir às crianças e adolescentes os seus direitos e deveres. E não se diga que o Estatuto só dá direitos, pois qualquer outra lei que atribuir deveres à população, se não disser exceto crianças e jovens, a eles se aplica. Não precisava o ECA elencar os deveres, mas atribuiu à família, à comunidade e ao poder público além da obrigação de lhes garantir os direitos, o dever de ensinar-lhes os deveres. Não é possível que o Estado (Poder Público) seja omisso quanto à educação adequada para crianças e jovens, e depois queira estar presente apenas na hora de puni-los.

É comum ouvir-se dos professores e direção das Instituições que o comportamento insubordinado e violento dos alunos é relacionado a permissividade do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se questionados, dizem conhecer esta lei tão importante para a cidadania dos jovens, como tivemos oportunidade de ouvir diversas vezes quando participamos da capacitação para multiplicadores do programa PAZ NAS ESCOLAS, da rede pública de Santa Catarina. No entanto, quando perguntados, afirmaram quase nunca discutirem o ECA em sala de aula. Mesmo dizendo conhecê-lo, os professores manifestaram visão reducionista a respeito do ECA e sobre a situação do jovem no mundo globalizado.

Na referida capacitação era comum verificar-se que nas escolas onde havia queixa sobre a violência no seu interior, como tráfico de drogas e porte de armas fazendo parte de comportamentos agressivos entre estudantes, também havia freqüência de agressões verbais

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por parte dos professores e gestores escolares dirigidas aos jovens, e aos jovens entre si. Nestas escolas que estavam vivenciando sérias dificuldades de resolução de conflitos, também havia pouco aprofundamento desses problemas e pouco diálogo para enfrentá-los coletivamente. O discurso dos educadores enfatizava a preocupação com a perda da autoridade e do controle sobre os jovens.

Normalmente quando surgem estes conflitos, o Conselheiro Tutelar é chamado. Alguns conselheiros, ingenuamente, acham que sua simples intervenção vai resolver o problema.

Na verdade, esta questão só vai ser resolvida se a escola priorizar o “protagonismo juvenil”, a que se refere o Professor Antonio Carlos Gomes da Costa, o que implica numa nova concepção, não mais dos alunos apenas como problema, mas como solução, cujo papel dos educadores e da família é fundamental. É claro que não é somente através do protagonismo das crianças e jovens que tudo vai se resolver, mais é um bom começo quando eles percebem que são mais úteis do que quando estão envolvidos com drogas ou com gangues ou outra situação de risco mais perigosa. O ideal é que o movimento de jovens se dê em torno da escola, onde professores e pais estejam presentes para contribuir, abrir espaços, dar sugestões e cooperar com o crescimento dos jovens.

Para o referido professor, “a expressão protagonismo juvenil designa a aprticipação de adolescentes atuando como parte da solução, e não do problema, no enfrentamento de situações reais na escola, na comunidade e na vida social mais ampla. [...] No que diz respeito ao educando, o protagonismo juvenil se caracteriza por: 1- ver o jovem como parte da solução, e não como problema; 2- ver o jovem como fonte, e não, como receptáculo; 3- direcionar-se para o jovem que queremos, e não para o jovem que não queremos. [...] O protagonismo juvenil não significa que os adultos devam jogar sobre os jovens os problemas que não fomos capazes de resolver na escola, comunidade e na vida social mais ampla. Trata-se de uma metodologia de trabalho cooperativo, na qual os adolescentes, assessorados por seus educadores, vão atuar na construção e implementação de soluções para problemas pessoais para os quais se deparam no dia-a-dia de suas escolas, de suas comunidades ou da sociedade de que são parte.” 17

É comum encontrar-se escolas em que prevalece tanto a rigidez moralista quanto a permissividade inconseqüente, onde normalmente a solução é dada, se não tem jeito, usando a força da repressão ou se deixa ao caos. Assim há escolas que passam a ser “presídios”, com seus muros altos, câmeras de segurança e normas rígidas, ou se deixa sem parâmetros, terra de ninguém.

Para estes casos, ao invés do Conselheiro, quando acionado, pretender intervir como punidor dos alunos, deve estar atento que sua função primordial é de cuidador. Neste sentido, deve denunciar para o CMDCA, para as autoridades educacionais competentes e inclusive para o MP e para a sociedade em geral. Contudo, a melhor solução, como ensina o professor Wanderley da Silva, que “num crescente acabe envolvendo a comunidade escolar como um todo, até a construção de um projeto político pedagógico realmente orgânico que faça sentido para a realidade na qual a escola esteja inserida.

17 Antonio Carlos Gomes da Costa In Protagonismo juvenil, passo a passo – Um Guia para o Educador, Rio de Janeiro: TaKano Editora Gráfica/ Programa Cuidar em convênio com do Instituto Souza Cruz, RJ, no capítulo sobre “O que é protagonismo juvenil?”, sem paginação

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Daí a importância do incentivo à iniciativa de alunos, pais, responsáveis e professores em um primeiro momento para que haja o início da apropriação do espaço escolar como espaço público e democrático. Tornar a escola pública é ultrapassar a idéia da transformação individual e vivenciar a idéia de construção coletiva e permanente do espaço escolar.

As situações de risco estão cada vez mais presentes e batendo à porta das escolas, desde uma escola da periferia ou classe média de grandes centros urbanos até mesmo as das zonas rurais mais bucólicas. Em todas elas existe o perigo das drogas, tanto as lícitas – que muitas vezes são incentivadas pelos familiares (pela tradição!) – quanto as ilícitas que têm por trás de si uma estrutura empresarial de produção, distribuição e geração de “empregos” diretos e indiretos. Contra esse risco só uma ação político-cultural! Chega de posições simplistas e arrogantes que buscam no “mau caráter” (geralmente dos mais pobres) a gênese da questão, basta de esconder a sociedade em posições moralistas que no máximo conseguem construir uma sentença míope do “não se deve consumir drogas porque é ilegal” ou “o Ministério da Saúde adverte, que fumar faz mal à saúde”. É necessário ouvirmos a nossa sociedade, suas necessidades e frustrações. Com efeito, faz-se urgente colocar em público a dor que nos afeta”.18

A discussão sobre a ética na escola deve se desenvolver sobre uma estrutura democrática, e nunca moralista ou normatizadora. Não estamos discutindo ética quando impomos uma regra e depois censuramos quem não a cumpre; não estamos trabalhando valores quando dizemos que quem faz conforme nós mandamos é bom e o outro ruim. Estas observações se aplicam também para o Conselheiro Tutelar no exercício da sua função no dia a dia de cuidar (zelar) pela garantia dos direitos infanto juvenis.

É bom recordarmos que vivemos, principalmente nos grandes centros, uma época em que cada vez mais ficam reduzidos os espaços para recreação e práticas esportivas nos finais de semanas, quando há escolas com ginásios esportivos construídos com verba, a maioria pública e que permanecem fechados. Enquanto isso a sociedade reclama e critica os jovens pelo seu envolvimento com drogas e os taxa de “desocupados”, sem lhes oferecer opção, inclusive de práticas esportivas e de diversão. É elogiável a experiência realizada em escolas públicas de Santa Catarina com a chancela da UNESCO, como já ocorre em alguns outros Estados, através do Projeto Escola Aberta, que abre as portas à comunidade aos finais de semana, para realização de feiras de leitura, mostras culturais, campeonatos esportivos, festivais, palestras, oficinas, cursos de informática etc.

8- O Conselheiro Tutelar e o cuidado no abrigamento

No que diz respeito aos abrigos e as chamadas “casas lares”, sua proliferação e inchamento se deve em parte à inoperância de algumas autoridades constituídas. Grande parte do aumento de crianças e adolescentes institucionalizados deve-se à forma equivocada e à falta de ética como são abordados os casos de maus tratos, alcoolismo de adultos e casos de pobreza por parte do Conselho Tutelar, Promotores e Juizes, ou de quem mais tem a obrigação de cuidar da manutenção do vínculo familiar e de sua preservação sempre que é possível.

Existem tantas famílias, no limiar da miséria, que conseguem preservar a dignidade e serem solidárias com os outros vizinhos que necessitam de cuidado. Ser pobre não é

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crime. São muitos os casos de pobres que amam mais os filhos do que quem tem posses. Daí o cuidado para que a intervenção não seja só por causa de pobreza.

Se o abrigo é transição para a colocação em família substituta (art. 101, § único, da Lei 8069/90), não é para lá que deve ir a criança por motivo apenas de pobreza.

É comum encontrar-se abrigos fundados por Juizes ou Promotores, ou com seu aval, cujos nomes e fotos ficam nas Instituições junto com as crianças, quando eles vão trabalhar em outras comarcas, começando ali uma história de abandono que não existiria se houvesse sido cumprido o art. 100, do ECA. Poucos programas são desenvolvidos para o fortalecimento dos vínculos familiares. Normalmente o Poder do Juiz e do Promotor é maior que o Poder Familiar, principalmente se o estado da família é de pobreza, em total descumprimento do art. 23-ECA.

Não se pode esquecer o comando do art. 19-ECA “toda criança tem direito de ser criada no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta”. A família, por sua vez, tem o direito de ser protegida. Tanto é assim que o parágrafo único, do art. 23 estabelece: “Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação de medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio”. Bastava os Juizes e Promotores se empenharem no cumprimento deste art. 23, exigindo a implantação de programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente (art. 101, IV, da ECA), e um grande número de crianças abrigadas estariam com seus familiares. Esta mesma postura precisa ser adotada pelo Conselheiro Tutelar.

Sobre a família, como organização que necessita muitas vezes ser cuidada para poder cuidar, lembro o que diz a Resolução 2542, da Assembléia Geral da ONU: “A família, enquanto elemento básico da sociedade, é o meio natural para o crescimento e o bem-estar, de todos os seus membros, em particular das crianças e jovens. Deve ser promovida, ajudada e protegida, afim de que possa assumir plenamente suas responsabilidades no meio da comunidade”.

Não é por falta de lei que a família deixa de ser cuidada, uma vez que a Constituição prevê, em seu art. 226, §8º que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Como já registramos na obra “O melhor Interesse da Criança: um debate interdisciplinar”, “há casos em que a mãe se dirige ao Juizado ou a algum serviço de assistência à infância, pedindo para colocar a criança em uma instituição, por não ter condições econômicas de sustentá-la. Em vez de estudar e viabilizar meios de apoio à mãe, o técnico responsável oferece, de imediato, a alternativa da adoção, pois assim a criança ficaria com o seu futuro garantido. A situação de crise, de vulnerabilidade e de dependência em que se encontra a mãe, leva-a, muitas vezes, a concordar com a medida e a autorizar a adoção. [...] Contribui para que ocorram tais práticas a convicção de que estão imbuídos os agentes de que os pobres são inaptos para gerir sua própria vida e criar seus filhos (“são pobres porque não souberam aproveitar as oportunidades...”). Pensando assim, pouco esforço é investido na criação de programas de apoio e assistência a essas famílias e elas passam a ver a si mesmas como pessoas desvalorizadas, incapazes de cuidar bem de suas

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crianças. Daí a importância da implantação de programas municipais de apoio à família. Esse mecanismo é difícil de ser enfrentado, pois dificilmente o discurso que o acompanha é explicito e transparente. As pessoas que agem assim, sejam Juizes, Técnicos ou Advogados, estão, em geral, convictas da adequação de sua prática, consideram os que as criticam de ‘irrealistas’ ou até politicamente ‘suspeitos’.18

Ainda sobre a prioridade dada para a adoção, na obra acima referida, registramos a observação da Assistente Social Simone Regina Medeiros da Silva, de que “as pessoas são mais solidárias com quem não pode ter filhos, do que com aquelas que têm e não podem criá-los”.19

O tempo em que a criança é que estava em “situação irregular” já se acabou com o Código de Menores. A criança não pode ser penalizada pela omissão do Poder Público que não oferece os serviços adequados para atendê-la, ou a sua família. Foi-se o tempo em que era apenas “objeto de direitos”, tendo passado à condição de “sujeito de direitos”, a partir da CF88 e do ECA.

Lamentavelmente os “lobos transvestidos em cordeiros”, a que nos referimos anteriormente, ao invés de buscar o cumprimento integral do ECA, estão ressuscitando parte do Código de Menores, na forma com que se pretende alterar o ECA para fazer uma lei de adoção que prioriza, entre outros interesses, os dos adotantes e das Instituições. Embora não pretendamos discutir aqui este assunto, cabe lembrar das observações de Grant Gilmore: “A lei reflete o valor moral de uma sociedade, mas em nenhum caso ela o determina. Uma sociedade razoavelmente justa refletirá seus valores em leis razoavelmente justas. Melhor é a sociedade, menos leis ela terá. No Paraíso, não existirão leis, e o leão e o cordeiro se tocarão. Uma sociedade injusta refletirá seus valores em leis injustas. Pior é a sociedade, mais leis ela terá. No Inferno, existirão apenas leis, e os procedimentos serão escrupulosamente observados”.20

Se vivêssemos em uma sociedade melhor, não haveria necessidade de observações como as que ora foco, na tentativa de contribuir, pelo menos um pouco, para tornar esse mundo um pouco menos imperfeito para nossas crianças. E nem precisaria o ECA estabelecer a norma do seu art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,...” Às vezes bastava tratá-las como tal. E é isto que se espera de seus cuidadores.

Quando o caso for de adoção, valem as observações que fizemos ao prefaciar a obra de Lidia N. D. Weber, a qual conseguiu demonstrar que “encontra-se em andamento a mudança que está propiciando uma nova cultura em nosso país, mas que está ocorrendo com muita lentidão. O tempo urge, pois a demora no encaminhamento e efetivação da colocação familiar pode significar, para muitas crianças, nunca experimentar o aconchego de um lar, de uma família. Não nos esqueçamos que a vida não tem replay. Quantas esperanças se perdem pela ineficiência das pessoas envolvidas com a adoção no Brasil. [...] Observa-se que o Poder Judiciário pelos seus órgãos envolvidos no processo de colocação familiar, sequer repassa dados e informações aos Conselhos de Direitos para que possam 18 Pedro Caetano de Carvalho “A Criança e o Município” In O melhor Interesse da Criança: um debate interdisciplinar”( coord de Tânia da Silva Pereira ) Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp.181/ 183.19 Pedro Caetano de Carvalho, ob. cit. p. 183.20 Grant Gilmore, citado In “Abandono e Adoção”, p. 33. Recomendamos a leitura dos trechos selecionados da obra “Antes de Evocar o Interesse da Criança”, de autoria de Anna Freud, Albert J. Solite e Joseph Goldstein, publicado nesta mesma obra, pp. 12/33. Juizes, Promotores, Conselheiros Tutelares e Assistentes Sociais, sobretudo, não deveriam deixar de ler este texto, que continua sempre atual.

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atuar, uma vez que são os responsáveis pela formulação e controle das políticas voltadas para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes que extrapolam as formalidades dos autos da Justiça da Infância e da Juventude. O mesmo se pode dizer do Ministério Público, dos Conselhos Tutelares e das Entidades que mantém programas de abrigos. Não seguem o comando do Estatuto (art. 86): a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-à através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais...”21

Mesmo que a decisão final sobre a colocação familiar caiba à Justiça, o Conselho Tutelar deve cuidar do melhor interesse da criança em todos momentos. Neste sentido, o abrigamento deve ser só em casos extremos. Quando isto ocorrer, no mesmo momento precisa ser iniciado o reatamento dos vínculos familiares (art. 92), de forma que a criança permaneça lá o menos possível. É preciso o CT estar atento, em conjunto com a assistência social forense, pois a criança abrigada corre o risco de ser apenas “mais um processo”. Nunca se pode esquecer do princípio da prioridade absoluta.

Ademais, o abrigo é uma das entidades que está sujeita à fiscalização também do CT. Daí o cuidado do Conselheiro para não participar da usurpação do direito à convivência “familiar e comunitária” (art. 4º) assegurado a toda criança e adolescente.

9- O Conselheiro e o cuidado em assessorar o Poder Executivo, através do CMDCA

O ECA previu entre as atribuições do CT, no art. 136, IX, “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente”.

O legislador partiu do pressuposto de que os Conselheiros Tutelares devam conhecer com profundidade a realidade local, especialmente a carência de recursos de retaguarda já que ao CT, não compete manter as estruturas necessárias à implementação das providências determinadas, uma vez que, como lembra Konzen, “o Conselho Tutelar não é o hospital, o consultório médico ou piscicoterápico, ou o programa de assistência social, de apoio alimentar ou de auxílio financeiro, tampouco é o orientador educacional, o grupo de apoio ou de tratamento de alcoolistas ou de dependentes químicos, ou qualquer outro sentido que se possa dar aos serviços necessários ao cumprimento das medidas aplicadas, serviços a serem oferecidos pelos organismos públicos ou não governamentais, rede de serviços que se constitui em retaguarda indispensável à efetividade da ação do Conselho Tutelar mas da qual não é ele o executor. Conferiu-lhe, por isso, a lei a incumbência de auxiliar o Poder Executivo do Município para a elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento à criança e ao adolescente. O destinatário natural do assessoramento é o Conselho dos Direitos, a instância do Executivo Municipal encarregada de formular os planos e os programas e de tratar da reserva orçamentária correspondente”.22

A omissão do CT tem propiciado que muitos Conselhos de Direitos não funcionem como deveriam, até porque não são alimentados pelo CT, que se coloca na condição de autônomo (art. 131), como se não estivesse sob o comando das normas dos arts. 86 e 88.

21 Lidia Natalia Dobrianskyj Webber In Aspectos Psicológicos da Adoção. Curitiba: Juruá, Curitiba, 1999. p. 13.22Armando Afonso Konzen, ob. cit., p. 176.

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Normalmente quando Conselho de Direitos não vai bem é porque o CT não funciona na forma prevista pelo ECA. O mesmo raciocínio vale quando não existe e não funciona o Fundo para Infância. A ação de um depende do outro. Por isso se fala num tripé de garantia dos direitos (Conselhos dos Direitos e Tutelar, além do Fundo). Aparentemente este tripé anda bem capenga. Ademais, nenhum Conselheiro, seja tutelar ou de direito, bem como o Juiz e o Promotor podem se curvar às artimanhas dos políticos para que os Conselhos de Direitos não funcionem, ou só existam no papel. Neste caso, quem fica prejudicado é a criança ou o adolescente, que não se beneficia da união de esforços, através do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais (art. 86), em todos os níveis, conforme lhe foi assegurado no ECA

10- O Conselheiro Tutelar e o cuidado com o registro de nascimento

Relativamente ao Registro de Nascimento, a norma do art. 102, § 1º é expressa: “verificada a inexistência de registro anterior, o assento será feito à vista dos elementos disponíveis, mediante requisição da autoridade judiciária”. Logo, o CT não requisita diretamente ao Cartório o registro de nascimento, mas apenas certidões (art. 136, VIII). Na falta de registro, o CT encaminha os dados disponíveis à autoridade competente, preferencialmente ao representante do Ministério Público.

É inadmissível que exista crianças e adolescentes que passam por diversas instâncias de atendimento e não tenha sido regularizado o registro. O Conselheiro Tutelar , mais do que ninguém, precisa cuidar para que isto não ocorra.

Ainda sobre o registro, sobre a gratuidade a que se refere o §2º do art. 102, não se deve abusar desta concessão legal, principalmente quando o Conselheiro o requisita sem antes investigar sua existência junto à família. É lamentável que ainda exista Conselho que requisita a 2º via de certidão de nascimento de todo um grupo, apenas para fins de autorização de viagem de crianças ou adolescentes. Não fazem idéia do tempo despendido no Cartório sobre um eventual registro. Não se pode banalizar o trato com uma coisa tão séria como o registro de nascimento, que é o primeiro passo para a cidadania.

11- O Conselheiro Tutelar e o cuidado na “blitz” ou “batida”

Quanto à lavratura do auto de infração, por parte de Conselheiro tutelar, já existe jurisprudência firmada de que não é de sua competência tal procedimento. Estabelece o art. 194 do ECA: “o procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente terá inicio por representação do Ministério Público, ou do Conselho Tutelar, ou auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado, e assinado por duas testemunhas, se possível”.

Embora a competência para lavratura do auto de infração seja de servidor efetivo ou credenciado pelo Poder Judiciário, o CT pode iniciar o processo de representação, onde conste o resumo dos fatos, o termo de visita de inspeção realizado pelo CT, quando tratar-se de irregularidade havida em entidade de atendimento. Já no caso de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente, a representação deve conter a descrição da ação ou omissão que caracteriza a infração, a identificação do autor, a comprovação da autoria e materialidade composta de visita de inspeção, termo de

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declarações, auto de constatação e outros documentos que auxiliem na caracterização da culpa. Se o processo não for feito de forma correta, no final não vai haver condenação.

Sempre que tomar conhecimento dos casos de crime ou infração administrativa prevista no ECA (arts. 225 a 248), ou no Código Penal, o Conselheiro deve encaminhar a notícia dos mesmos através de ofício ao Promotor da Infância e da Juventude da comarca onde ocorreram os fatos, para que proponha a ação cabível (art. 136, IV), ou representando diretamente à autoridade judiciária (art. 136, V).

É fundamental que o Conselheiro tenha conhecimento e consciência do que compete especificamente à Justiça da Infância e da Juventude (arts. 148 e 149) de forma que não exacerbe de suas atribuições.

Da mesma forma é de se observar que o Conselheiro não pode aplicar multa. A multa prevista no ECA somente é aplicável pela autoridade judiciária, após tramitação de regular processo onde tenha sido garantido a ampla defesa da parte envolvida.

Acredito que ainda faltam eventos e publicações para melhor estudar tanto as atribuições do Conselheiro Tutelar, quanto as dos Comissários da Infância e da Juventude, ou Agentes de Proteção, e dos Assistentes Sociais Forenses. 23

No tocante a “blitz” ou as chamadas “batidas” para verificar a presença de crianças e jovens em lugares proibidos por lei, estas não devem ser feitas sem a presença da polícia. O ideal é que o Conselheiro esteja de sobreaviso, ou até próximo do local, mas não deve adentrar o recinto num primeiro momento. Em muitos casos há risco de vida para os participantes e a policia foi preparada para este procedimento, diferentemente do Conselheiro. Não se pode esquecer que a fiscalização de venda de bebidas alcoólicas, cigarros, pedofilia, prostituição, material pornográfico etc. é da Policia, que nem sempre tem feito a sua parte relativamente à proteção da criança e do adolescente. Tendo conhecimento da inoperância da policia, o CT precisa comunicar ao MP e, dependendo do caso, à Autoridade Judiciária, sendo que esta última, em muitas Comarcas, ainda possui os Comissários e/ou Agentes de Proteção.

12- O Conselheiro Tutelar e o cuidado com crianças e pais desaparecidos

Entre as linhas de ação da política de atendimento prevista no ECA, art. 87, consta no inciso IV, “serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos”. Esta é uma questão que merece atenção de todos, mas sobretudo do Conselho Tutelar. É comum caso de criança desaparecida em uma cidade que apenas um bom tempo depois são localizadas sendo atendidas por algum Conselho Tutelar de outra cidade. Sempre quando se lida com uma criança ou adolescente que não é da comunidade, ou com histórias fantasiosas, é de se supor que em algum outro lugar alguém

23 Recomendamos aos Conselheiros, e demais operadores da Justiça da Infância e da Juventude a leitura do trabalho de autoria de Alcebir Dal Pizzol, publicado sob o título de “Estudo Social ou Perícia Social? Um Estudo Teórico-prático na Justiça Catarinense”, da Editora Insular, Florianópolis, 2005, obra esta que além da pesquisa, enfoca a prática e traz sugestões a todos os que militam nas Varas de Família, Infância e Juventude. O autor, além das abordagens teórico praticas, trata de sugerir aos Magistrados a adequação da realização do estudo e/ou da perícia social em ações específicas, bem como presta orientação aos Assistentes Sociais para realizar uma perícia social atentos as regras processuais, cuja a matéria não é tratada no curso de graduação.

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o está procurando. O projeto SIPIA, 20 já de conhecimento de muitos Conselheiros Tutelares, quando funcionando a nível nacional, poderá contribuir também para a equalização deste problema.24

Contudo, é na polícia que vai haver mais facilidade para esclarecer a situação, uma vez que a localização de qualquer pessoa desaparecida é inerente à sua função. Já está mais do que na hora de os grandes centros possuírem Delegacias ou Serviços Especializados em proteção da criança e do adolescente. São conhecidos os ditos serviços de proteção que só tratam do adolescente enquanto autor de ato infracional. E onde está sua proteção quando são vítimas? Ainda há Conselhos de Direitos, inclusive Estaduais, que ainda não incluíram em sua pauta assuntos como este. Todos os Conselhos de Direitos precisam discutir e deliberar sobre o cumprimento das normas estabelecidas no art. 88, do ECA, e precisam fiscalizar como ocorre o seu cumprimento. Não pode aquietar-se frente ao discurso de que há falta de verba. Hoje é mais do que sabido que a falta maior é de verbo. Através da conversação e da articulação sempre se chega a um bom termo. Quando há problema, não pode ser de uma única instituição, mas de todos.

Sem dúvida que uma ação articulada, na forma que preconiza o art. 86, e a integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social (art. 88, V) facilita a agilização dos procedimentos para localização de pessoas desaparecidas. Veja-se que não se está falando apenas de crianças e adolescentes, mas também de seus pais ou responsáveis. A incompetência tem feito com que uma significativa faixa de população infanto juvenil seja criada nas Instituições, com processos intermináveis, porque falta maior empenho de quem tenha responsabilidade para localização de pais ou responsáveis.

Pouco a pouco os Estados estão se organizando neste sentido, mas muito ainda há por se fazer.

13- O Conselheiro e o cuidado ao atender e aconselhar os pais ou responsáveis

Compete ao CT atender a criança e o adolescente e seus pais ou responsável (guardião ou tutor), nas situações definidas pelos artigos 98 e 105 do ECA.

Como já vimos, o art. 105 exclui, expressamente, a criança autora de ato infracional do sistema de responsabilidade da Infância e da Juventude. Assim, não cabe punição à criança a quem se atribua conduta que a lei descreve como crime ou contravenção, mas apenas medidas de proteção, aplicadas exclusivamente pelo CT, independente da natureza e da gravidade da conduta.

Os incisos I e II, do art. 136 do ECA, ao atribuir ao CT a função de atender crianças e adolescentes, bem como seus pais ou responsáveis, para muitos casos, abriu a porta do sistema público de atendimento.

24 SIPIA é um sistema nacional de registro criado para subsidiar a adoção de decisões goveramentais sobre políticas para crianças e adolescentes, garantindo-lhes acesso à cidadania, já em funcionamento em vários Estados (www.mj.gov.br/sipia)

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Como já dissemos, o principal papel do Conselheiro não deve ser o de tentar resolver o problema, mas sim ouvir a questão e saber encaminhar os envolvidos para quem tem a solução.

Cabe o cuidado do Conselheiro ao atender e acompanhar os pais ou responsáveis, para não extrapolar a autoridade pública de agente tutelar garantida pelo art. 236, do ECA, que elevou a conduta de impedimento ou de embaraço ao exercício das funções à condição de ilícito penal, capitulados nos arts. 329 e 331 do Código Penal. Conforme esclarece Konzen, “o impedimento para configurar a conduta ilícita, deve ser físico, no sentido de obstacularizar a ação do Conselheiro, não se configurando como tal o descumprimento de determinação do Conselho, conduta configurável como infração administrativa (art. 245 do Estatuto). Por embaraçar compreende-se a conduta de perturbar, estorvar, complicar ou dificultar a ação do agente tutelar, com vistas a constranger o agente público a não agir de determinada forma ou criar obstáculos, físicos ou morais à verificação em andamento”.26

Registramos que o CT ao aplicar as medidas de proteção, que não possuem caráter retributivo, ou seja, de compensar ou punir, mas prevalecem as necessidades pedagógicas e de inclusão familiar, nem por isso deixam de ter o sentido de obrigatoriedade para o destinatário, especialmente os pais ou responsáveis. O descumprimento da medida configura a prática da infração administrativa prevista no art. 249 do ECA. “Verificada a hipótese de não tomada das providências determinadas, compete ao Conselho Tutelar dar início ao procedimento de apuração da infração administrativa correspondente, providência expressamente autorizada no inciso III, letra “b”, do art. 136 e no art. 194 do Estatuto. Os pais ou o responsável pelo cumprimento das medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar têm ampla possibilidade de discordar das providências, o que não significa, no inverso, possibilidade de descumprimento. A discordância deve corresponder a pedido judicial da revisão. Simples omissão, sinônimo de descumprimento da determinação, pode trazer como conseqüência a responsabilização administrativa”.25 27

Como se sabe, não são suscetíveis de execução todas as medidas, mas apenas as fundamentadas nos incisos I a VII do art. 101 e I a VII do art. 129 do ECA.

Não cabe aqui comparar a competência e a atuação do CT e da Justiça da Infância e da Juventude, mas à título de provocação, cabe lembrar que da mesma forma que já existem Varas da Infância adotando a implantação de serviços de mediação ou de Justiça Restaurativa, no trato com as medidas sócio-educativas, acreditamos ser possível ao Conselho Tutelar incentivar e articular a adequação de tais metodologias no trato com crianças, adolescentes, pais ou responsáveis, nas questões afetas à sua competência.

Sem pretender uma ampla discussão sobre o assunto lembramos que a mediação é uma técnica de resolução de conflitos que pode ser aplicada em diversas áreas de inter-relação, já amplamente utilizada em áreas como mediação familiar, comunitária, trabalhista, comercial, questões de meio ambiente, além de mediação organizacional e

25Armando Afonso Konzen, ob. cit., pp. 173/174.27 Armando Afonso Konzen, ob. cit., p. 175.

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escolar. Nada impede uma mediação específica para garantia de direitos e deveres de crianças, adolescentes, pais ou responsáveis.

Quanto à Justiça Restaurativa, está sendo introduzida no Brasil, com o apoio da UNESCO e do Ministério da Justiça, com projetos pilotos em Brasília, São Caetano (SP) e Porto Alegre. Nesta última cidade tivemos a honra de participar do lançamento do projeto, já em andamento na 3º Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude, onde o colega Leoberto Brancher é o Juiz Titular, além de Coordenador do Núcleo de Práticas Restaurativas da Escola Superior de Magistratura do RS (AJURIS).

O campo moderno da Justiça Restaurativa desenvolveu-se nos anos setenta, na América do Norte, mas o movimento deve muito às experiências iniciais e a uma grande variedade de tradições religiosas e culturais. As fontes primeiras são encontradas nas práticas indígenas da América do Norte e da Nova Zelândia.

Acreditamos que da mesma forma que este projeto iniciado em Porto Alegre está buscando identificar no processo de Justiça conjunturas de decisão que podem recepcionar práticas restaurativas, o mesmo pode ser feito pelo Conselho Tutelar. Entre os objetivos do projeto está o de acompanhar e avaliar o impacto da aplicação dos princípios da Justiça Restaurativa na abordagem das relações entre infrator, vítimas e respectivas comunidades no âmbito das execuções de medidas sócio-educativas. Acreditamos que, guardadas as devidas proporções, é possível identificar e fundamentar as práticas restaurativas possíveis no campo de atuação do Conselho Tutelar que, como já vimos ao tratar da ética e da moral, o Conselheiro age prevenindo danos futuros, mas na maioria das vezes são acionados quando a violação já ocorreu, cabendo-lhe cuidar da regeneração dos danos passados, sobretudo em situações de violência psicológica, física ou sexual. Não podemos esquecer o que já disse Marshall Rosemberg: “Toda violência é a expressão trágica de uma necessidade não atendida”.2628

Talvez o principal impacto de um projeto como o da Justiça Restaurativa, devidamente adequado às atribuições do CT, seja em relação aos adolescentes e familiares em atendimento. Neste sentido, trazemos o que disse a Professora de Serviço Social da PUCRS Beatriz Aguinsky, no referido evento em Porto Alegre, ao destacar que: “este projeto vai afirmar o protagonismo de adolescentes e familiares na construção de respostas éticas e responsáveis na resolução de conflitos que afirmem a não violência e contribuam para a restauração do tecido social atingido pela infração. Através de sua instrumentalização para mediar conflitos e construir respostas não-violentas às violências presentes nas relações de que tomam parte, podem ocupar função de multiplicadores destas competências sociais na comunidade.” 29

Além disso, um projeto como este é voltado para a paz, que é o melhor antídoto contra a violência.27 30

2628 Marshall Rosemberg In exposição apresentada pelo magistrado gaucho Leoberto Brancher, sob o título “Justiça Restaurativa, Direito Penal Juvenil e Medidas Socio-educativas, no Seminário Promovendo Praticas Restaurativas no Sistema Socio-educativa, na PUCRS, na cidade de Porto Alegre, em 20/05/05.2729 Beatriz Aguinskj, exposição apresentada sob o título “A Justiça em Conexão com a Vida – Transformando a Justiça Penal Juvenil pela ética da Justiça Restaurativa”.30 A CNV é uma das organizações que está integrada ao projeto piloto de Justiça Restaurativa em Porto Alegre. Havendo interesse em assuntos de não violência e paz, visite o site da CNV Brasil – Rede de Comunicação Não Violenta – www.cnvbrasil.org/ ou e-mail: [email protected]

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Queremos concluir lembrando aos Conselheiros que mesmo que a lei lhes assegure entre as tantas prerrogativas a de executar suas decisões, é possível exercer o uso da força através do diálogo. As idéias de mediação ou de justiça restaurativa induzem ao diálogo e são essencialmente redutores de violência. O Conselheiro Tutelar, em sua nobre missão de cuidar e zelar com ética pelos direitos da criança e do adolescente é, sobretudo, um artífice da paz.

14- O Conselheiro Tutelar e a resiliência

São muitas as vezes que o Conselheiro é instado a intervir em conflitos envolvendo pais e filhos, principalmente quando “perderam as rédeas”. Desde as situações mais simples até as mais complexas, embora o CT não seja órgão de atendimento, lembramos que a capacitação dos Conselheiros necessita inserir noções de resiliência. Quantos pais gostariam de ter um manual para criar filhos perfeitos, que não existe, mas estudiosos do mundo todo pesquisam com profundidade este tema há mais de 50 anos, existindo assim respostas claras e precisas como a criança aprende a se comportar e o que é importante para o desenvolvimento infantil nas interações entre pais e filhos.

Trazemos aqui alguns subsídios sobre resiliência para orientar os cuidados do Conselheiro quando o assunto é relacionamento pais e filhos. Resiliência é “um processo onde se desenvolve a habilidade para se ressurgir da adversidade com fatores de risco reconhecidos, adaptar-se por fatores de proteção, recuperar-se por fatores resilientes e participar de uma vida ativa e significativa”.

São muitos os conceitos hoje existentes sobre o tema, mas ficamos com este que aproveitamos da exposição do Dr. Haim Grünspun, no 42º Congresso Nacional da Escola de Pais do Brasil (2005) em sua exposição sob o tema “Criando Filhos Vitoriosos – Quando e como promover a resiliência”. Ele lembra que não podemos prometer felicidade aos filhos, mas prepará-los para a resiliência. No congresso anterior ele havia lançado “A cartilha sobre resiliência para crianças adolescentes”.28 31

A psicóloga e pesquisadora Lídia Weber em sua obra “Eduque com Carinho”, voltada para pais e filhos, traz o que há de mais recente em pesquisas científicas sobre educação de filhos em uma abordagem que se chama disciplina positiva, onde lembra que a resiliência tem sido uma das palavras-chave da atualidade, cujo conceito “indica que uma pessoa é capaz de enfrentar e superar a adversidade. Resiliência pode ser vista como uma série de habilidades que podem ser aprendidas e aplicadas no decorrer da vida. Uma criança que possui resiliência é aquela que consegue lidar mais efetivamente com o estresse, com os desafios de cada dia, recuperar-se das frustrações, resolver problemas e ter expectativas realistas. Pesquisadores têm mostrado que essa capacidade de ser resiliente tem as suas raízes mais profundas na interação com os pais que incorporam no seu manejo doses de empatia, otimismo, amor incondicional, capacidade de comunicação ativa e paciência. Crianças adquirem resiliência também. Quando têm os pais enormemente compromissados

28 Haim Grünspun In A cartilha sobre resiliência para crianças e adolescentes, que consta dos anais do 41º Congresso da Escola de Pais do Brasil, publicado no livro “Família, Caminho da Independência Segura”. São Paulo: Marco Markovitch, 2005, pp. 36/40.

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com ela e podem dizer ‘eu sou amada pelos meus pais exatamente como eu sou’. Enfim, bons pais significam filhos resilientes”.29 32

Talvez isto explique porque tantas pessoas permanecem íntegras, apesar das adversidades da vida, inclusive em situações de miséria. Acreditamos que os Conselheiros, entre os tantos cuidadores de crianças e adolescentes, inclusive já institucionalizadas, podem ser promotores de resiliência tanto diretamente com a população atendida, como paticipando da articulação de programas que envolvam a escola e a família, ou atendimento psicológico, uma vez que as boas habilidades de resiliência podem ser aprendidas.

Como ensina Haim Grünspun “nossa tendência é idealizar a infância como uma idade feliz e despreocupante. Mas a mocidade por si só não oferece escudo contra ferimentos emocionais e contra traumas que muitas crianças enfrentam. As crianças podem ser obrigadas a enfrentar desde a valentia de colegas até o abuso em sua casa. Junto a isso, as incertezas que fazem parte do crescimento e encontraremos crianças que passam por tudo, menos felicidade e despreocupação. A capacidade para reagir a esses desafios, se saindo bem, resultam das habilidades para resiliência que a criança já tem.30 33

Assim, ensinar e promover resiliência é função de todos, inclusive do Conselheiro Tutelar.

À guisa de conclusão sobre o Conselheiro Tutelar e a ética do cuidado, aproveitamos a citação feita pela professora Beatriz Aguinskyj no evento já referido, cuja mensagem há muito tem nos motivado na luta pelas mudanças que viabilizem a implementação do sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente, de CHAUI, 2002, p. 362: “O possível é não apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobre tudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando o curso de uma situação que pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições”.

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29 Lídia Weber In Eduque com Carinho. Curitiba: Juruá, 2005, p. 26/27.30 Haim Grünspun, ob. Cit. p. 36.

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