o conceito de liberdade como não dominação sob a perspectiva

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Estudos Feministas, Florianópolis, 22(1): 416, janeiro-abril/2014 13

O conceito de O conceito de O conceito de O conceito de O conceito de liberdade comoliberdade comoliberdade comoliberdade comoliberdade comonão dominaçãonão dominaçãonão dominaçãonão dominaçãonão dominação sob a sob a sob a sob a sob aperspectiva feministaperspectiva feministaperspectiva feministaperspectiva feministaperspectiva feminista

Copyright 2014 by RevistaEstudos Feministas.

Carla Cecília Rodrigues AlmeidaUniversidade Estadual de Maringá

Maria Ligia Ganacim Granado Rodrigues EliasUniversidade de São Paulo

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O ponto central da teoria de Philip Pettit, referência fundamental no chamado novorepublicanismo, é o conceito de liberdade como não dominação: uma pessoa livre é aquelaque não vive sob desejo arbitrário ou dominação de outros. Para ele, esse conceito crucialunifica os autores neorrepublicanos, a despeito de suas variações analíticas, e pode articularpreocupações de vários movimentos contemporâneos, como o feminista. Esse trabalho analisaos pontos de aproximação e tensão existentes entre o republicanismo de Pettit e algumas daspreocupações presentes no campo plural e heterogêneo da teoria feminista. Defendemos oargumento de que, se tratado como um regulador político, o ideal de liberdade como nãodominação pode ser bastante útil às feministas.Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: feminismo; republicanismo; liberdade.

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Philip Pettit é considerado um dos mais importantesautores do neorrepublicanismo, movimento que revigorou ostemas do pensamento republicano no debate teóricocontemporâneo. O ponto vital de sua teoria é o conceito deliberdade como não dominação, segundo o qual umapessoa livre é aquela que não vive sob desejo arbitrário deoutras. Para Pettit, esse conceito expressa o cerne das preo-cupações republicanas e também pode servir às aspiraçõespor liberdade nutridas por socialistas, multiculturalistas,ambientalistas e feministas.

Nosso objetivo é identificar os pontos de aproximaçãoe tensão entre o conceito de liberdade de Pettit e algumasdas preocupações da teoria política feminista. Como

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afirmam Jane Mansbridge e Susan Okin,1 à pluralidadeconstitutiva do feminismo subjaz um objetivo comum e geral:o fim da sistemática dominação da mulher. As explicaçõesfeministas para tal dominação têm desafiado a teoriapolítica de uma forma mais ampla e, por isso mesmo, elastêm alcançando um status inegavelmente importante paraas discussões contemporâneas que envolvem o poder e aliberdade. Não à toa, portanto, interessa a Pettit suscitar umdiálogo com as feministas.

Para analisar seu conceito de liberdade a partir depreocupações oriundas do feminismo, tomaremos comoreferência o exame crítico de Marilyn Friedman,2 feministanorte-americana que tem se dedicado ao tema daautonomia e das relações entre feminismo e cidadania. EmPettit’s Civic Republican and Male Domination (2008),Friedman procura oferecer uma resposta direta às pretensõesde Pettit em relação ao feminismo e, nessa medida, evidencia,mais uma vez, o poder desestabilizador das críticas às teoriasfundadas na ideia de um sujeito unificado e racional, baseda autoridade moral, supostamente portador de umaidentidade fixa e coerente. Segundo críticas oriundas dofeminismo, essa concepção de sujeito ampara a dominaçãode gênero ao se fundar nas dicotomias razão/sensibilidade,mente/corpo, vida pública/privada, as quais pressupõem adesqualificação moral e política daqueles segundos polose dos agentes a eles associados.

Mas o exame de Friedman também nos leva aconsiderar pontos nevrálgicos das dificuldades enfrentadaspara quem se propõe uma teoria política que buscadesocultar a dominação das relações costumeiramenteidentificadas como privadas sem, no entanto, abrir mão deuma defesa intransigente das liberdades individuais, o queexige reconhecimento e valorização dos traços distintivos entreexistência privada e pública. Levando em consideração essasdificuldades, argumentamos neste artigo que o conceito deliberdade como não dominação pode ser entendido comoum regulador político que preserva distinções entre vidapública e privada e, simultaneamente, mantém abertas asportas da primeira aos reclamos por liberdade que possampartir da segunda. Assim, a despeito da pertinência dascríticas de Friedman, julgamos que o conceito de Pettitsobrevive a elas tendo em vista preocupações oriundas dofeminismo. Cumpre notar que suas críticas nos interessam namedida em que projetam preocupações mais amplamenteassociadas ao campo plural e heterogêneo da teoria políticafeminista. É importante destacar que a teoria republicana dePettit assim como a teoria feminista são campos complexosde análise, e seus diálogos, aproximações e afastamentospodem se dar sob diferentes frontes. Este artigo não tem a

1 Jane MANSBRIDGE e Susan OKIN,1995.

2 Marilyn FRIEDMAN, 2008.

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pretensão de esgotá-las, mas sim desenvolver o argumentoacima mencionado.

Para isso, o artigo está estruturado em três partes. Naprimeira, apresentamos o conceito de liberdade como nãodominação de Pettit, salientando suas afinidades compreocupações da teoria política feminista. Na segunda, nosdedicamos ao exame das críticas que Friedman dirige a Pettit.Na terceira e última parte, oferecemos algumas alternativasàs críticas de Friedman, retomando principalmente a ideiade contestabilidade contida na teoria de Pettit. Dessa forma,fundamentamos o nosso argumento de que, se tratado comoum regulador político, o ideal de liberdade como nãodominação pode ser muito útil a preocupações da teoriafeminista.

1 A liberdade como não dominação e1 A liberdade como não dominação e1 A liberdade como não dominação e1 A liberdade como não dominação e1 A liberdade como não dominação esuas afinidades com preocupações dasuas afinidades com preocupações dasuas afinidades com preocupações dasuas afinidades com preocupações dasuas afinidades com preocupações dateoria feministateoria feministateoria feministateoria feministateoria feminista

A discordância costuma ser um forte motivador para odiálogo entre autores filiados à mesma ou a correntes teóricasdistintas. Mas, entre Pettit e as feministas, são as afinidades departida, e não as discordâncias, que levam ao interesse mútuoe justificam, para ambos, a necessidade do diálogo, vistoque a percepção de tais afinidades contrasta, segundoanálise de algumas feministas, com o histórico pouco amistosoexistente entre republicanismo e feminismo. Levando emconsideração essas mudanças, Anne Phillips3 afirma, porexemplo, que, de antagonistas, as duas correntes passarama ser possíveis amigas.

Para Pettit, essas afinidades têm, na verdade, raízeshistóricas mais remotas. O autor lembra a forte presença dotema da liberdade em autoras que se preocuparam com acondição feminina em vários momentos históricos e fazreferência, inclusive, a Jane Mansbridge e Susan Okin,feministas contemporâneas que, como vimos, afirmam queo objetivo do feminismo, a despeito de sua pluralidadeconstitutiva, seria o de acabar com a dominação masculinasistemática das mulheres. Para Pettit, o tema central dosrepublicanos também é a liberdade, e se essa tradição depensamento muitas vezes foi associada a ideias masculinasde participação e ativismo público, isso se deve, segundo oautor, a uma “má historiografia populista”. Se o cerne dorepublicanismo está na defesa da liberdade, nada justificaque ela se restrinja aos cidadãos do sexo masculino. De talmaneira que, para Pettit, “Not only can republicanism offer apersuasive articulation of the central feminist claims, it alsoprovides an articulation that has had a continuos history withinthe ranks of feminists themselves.”4

3 Anne Phillips, 2004.

4 Philip PETTIT, 1997, p. 140. Atradução a seguir e as demaisapresentadas nesse artigo são denossa autoria: “O republicanismonão apenas pode oferecer umaarticulação persuasiva dasreivindicações centrais feministas,como também fornece umaarticulação que possui umahistória contínua entre as própriasfeministas.”

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Do lado das feministas, Anne Phillips,5 fazendoreferência direta às contribuições de Pettit, tambémreconheceu que um importante ponto de convergência entreFeminismo e Republicanismo está na crítica à dependênciae à dominação. Para ela, ao deslocar do centro de suasformulações republicanas os ideais de uma ativa participa-ção política e da busca dos interesses comuns, na mesmamedida em que focalizou o tema da liberdade, Pettitcontribuiu para a aproximação daquelas duas correntes.Esse movimento característico de sua teoria republicanaimplicaria, segundo Phillips, numa visão bem menos rígidadas divisões entre público e privado, tão recorrentementeremetidas ao republicanismo. Assim, a partir da leiturarepublicana de Pettit:

Lo que emerge como el peor de los males en elcanon republicano es estar expuesto a la voluntadarbitraria de otro; y si bien la mayor parte de la literaturaclásica sobre el tema ha centrado su atención críticaen los gobernantes tiránicos con il imitadascompetencias, no hay razón para que las mismascuestiones no puedan ser aplicables a la dominaciónde los empleadores sobre los trabajadores o a ladominación de los maridos sobre sus esposas.6

Em Republicanism, Philip Pettit7 elabora sua teoriarepublicana fundamentado no conceito de liberdade comonão dominação. No capítulo dedicado à apresentação eaprofundamento desse conceito, Pettit retoma as concepçõesde liberdade positiva e liberdade negativa, consideradaspelo autor como as mais correntes no campo da teoriapolítica, especialmente pelo impacto das formulações deIsaiah Berlin.8 Ao retomar a dicotomia entre a liberdadepositiva e a liberdade negativa, Pettit tem como objetivodefinir o seu conceito como uma terceira possibilidade deentender a liberdade: a possibilidade republicana. Nessamesma medida, ele também procura desconstruir aassociação estabelecida entre liberdade positiva erepublicanismo ao defender que figuras importantes dessatradição se mostraram historicamente preocupadas comuma liberdade entendida em termos negativos.9

Pettit enfatiza que a concepção de liberdade comonão dominação advém de uma antiga tradição queassocia ser livre a não ser dominado ou subjugado porninguém. O autor procura diferenciar, portanto, a suaconcepção de liberdade de uma concepção positiva,porém seu foco principal está no debate com a noçãonegativa de liberdade. Dessa forma, Philip Pettit desenvolvea ideia de liberdade como não dominação em oposição àideia de liberdade como não interferência. Seu argumentoé o de que a primeira pertence à tradição republicana,

5 Anne PHILLIPS, 2004.

6 PHILLIPS, 2004, p. 277. “O queemerge como o pior dos malesno cânone republicano é estarexposto à vontade arbitrária deoutro; e, ainda que a maior parteda literatura clássica sobre o tematenha centrado sua atençãocrítica nos governos tirânicos compoderes ilimitados, não há razãopara que as mesmas questões nãopossam ser aplicadas à domina-ção dos empregadores sobre ostrabalhadores ou à dominaçãodos maridos sobre suas esposas.”7 Phillip PETTIT, 1997a.8 Referimo-nos ao ensaio Dois Con-ceitos de liberdadede, de IsaiahBerlin (1959). As duas acepçõescontrastadas por Berlin são: a liber-dade em seu sentido positivo,caracterizada como “autodomí-nio”, e a liberdade em seu sentidonegativo, concebida como “nãointerferência”. Inicialmente, pode-ríamos resumir as diferenças entreas duas concepções da seguinteforma: a liberdade negativacorresponderia a “estar livre de”, ea liberdade positiva corresponderiaa “estar livre para”. Enquanto anoção negativa está preocupadaem evitar interferência nas açõesdos indivíduos, a noção positivapreocupa-se com questõesrelacionadas à natureza e aoexercício do poder.9 PETTIT, 2004.

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enquanto a segunda corresponde à forma liberal de pensaro tema da liberdade.

Tanto a ideia de liberdade como não interferênciacomo a ideia de liberdade como não dominação evocam anoção de interferência. Interferência constitui-se como um atointencional pelo qual os agentes são responsáveis. Os atosde interferência podem ser uma coerção tanto do corpo comoda vontade, ou uma manipulação. Incluem atos que reduzemas alternativas de escolha ou que aumentam o custoassociado a uma escolha. Assim, a interferência pode diminuiras possibilidades de escolha do indivíduo ou aumentar seuscustos para optar por uma determinada alternativa.10

Embora as duas concepções possuam a meta“negativa” de evitar a interferência, há uma distinção entreelas no que diz respeito a que tipo de interferência deve serevitada. Segundo Pettit, a forma liberal de entender aliberdade tem como foco as interferências de fato, equalquer interferência consiste em uma diminuição daliberdade sob essa concepção:

[…] liberalism has been associated over the twohundred years of its development, and in most of itsinfluential varieties, with the negative conception offreedom as absence of interference, and with theassumption that there is nothing inherently oppressiveabout some people having dominating power overothers, provided they do not exercise that power andare not likely to exercise it.11

O que diferencia a ideia republicana de liberdade éo fato de seu foco de preocupação não estar em qualquertipo de interferência, mas sim nas interferências arbitrárias.Para Pettit, toda interferência arbitrária, ou mesmo apossibilidade desta, são formas de dominação. Aarbitrariedade acontece quando um indivíduo tem apossibilidade de agir de acordo com sua vontade, seuarbitrium, sem levar em conta aqueles que serão atingidospor suas ações. Dessa forma, alguém domina ou subjugaoutro na extensão da capacidade que tem “(1) de interferir (2)com impunidade e de acordo com sua vontade (3) em certasescolhas que os outros estão em posição de fazer”.12 Pettitexplica o que são atos arbitrários da seguinte forma:

What makes an act of interference arbitrary, then –arbitrary in the sense of being perpetrated on anarbitrary basis? An act is perpetrated on an arbitrarybasis, we can say, if it is subject just to the arbitrium, thedecision or judgment, of the agent; the agent was in aposition to choose it or not choose it, at their pleasure.13

Tendo em vista que a preocupação da liberdaderepublicana tem seu foco na arbitrariedade, e que, por sua

11 PETTIT, 1997, p. 8-9. “O liberalismotem sido associado ao longo dosduzentos anos de seu desenvolvi-mento e, na maioria de suas varia-ções influentes, com a concepçãonegativa de liberdade como aausência de interferência, e coma suposição de que não há nadainerentemente opressivo quanto aalgumas pessoas possuírem poderdominante sobre outras, desdeque essas não exerçam tal podernem sejam susceptíveis deexercê-lo.”

10 PETTIT, 1997c.

12 PETTIT, 1996, p. 578. Traduçãolivre.13 PETTIT, 1997, p. 55. “O que tornaum ato de interferência arbitrária,então – arbitrária no sentido de serperpetrado sob bases arbitrárias?Um ato é perpetrado sob basesarbitrárias, nós podemos dizer, seeste ato é sujeito apenas ao arbi-trium, à decisão ou julgamentodo agente; o agente estava emuma posição de decidir ou não,ao seu prazer.”

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vez, a arbitrariedade é entendida como fonte de dominação,tal liberdade irá diferenciar-se principalmente em doisaspectos da liberdade como “mera” não interferência. Aprimeira diferença trata da possibilidade de não ser livre, deestar em uma situação de domínio sem sofrer interferênciade fato. Segundo Pettit, para os republicanos pode haverdominação mesmo sem haver uma interferência efetivaquando alguém possui o poder de interferir arbitrariamente,mesmo que de fato não o faça. Pettit recorre à tradiçãorepublicana para enfatizar que uma pessoa, enquanto viverà mercê da vontade de outra, estará sendo dominada.

A segunda diferença refere-se à possibilidade de serlivre mesmo sofrendo interferência. Essa condição estádiretamente ligada ao papel das leis para o EstadoRepublicano. Para o republicanismo, as leis quecorrespondam aos pensamentos e interesses gerais podematé ser consideradas formas de interferência, mas não seconstituem numa forma de dominação, consequentementenão comprometem a liberdade. A grande condição paraque a lei não se constitua como uma interferência arbitrária éela levar em conta todos aqueles que por ela serão afetados,ou seja, representar uma regra justa.

Para Philip Pettit, a maximização da não dominaçãodeve ser a principal motivação de um governo republicano.Isso implica não só tornar improvável uma dominação, mastambém restringir qualquer possibilidade de interferênciaarbitrária. Desfrutar a liberdade no sentido republicanorequer uma esfera de escolhas na qual não temamos sofrercontrole ou poder arbitrário de outros. Tal esfera será resilientequando os indivíduos forem protegidos por instituições quenão possam ser subvertidas. Dessa forma, a genuínaliberdade como não dominação requer a extensão igualde direitos de cidadania para todos. Esse pacote de direitosde cidadania constitui uma expressão legal do status de“pessoa livre” em uma dada sociedade.14

Desse modo, viver sob o jugo de um senhor bondoso,de um marido generoso, por exemplo, não significa serlivre. Ao falar das convergências entre o republicanismode Pettit e as preocupações feministas, Philips sublinhaque Pettit emprega exemplos da dominação de gêneropara ilustrar que o seu conceito iria além do conceito denão interferência. Do mesmo modo, Friedman (2008)reconhece a importância para as feministas de umconceito de dominação que não se restrinja a “mera”interferência. Para ela, essa restrição pode gerar visõesenganosas segundo as quais a melhor coisa que umapessoa pode fazer pela outra é deixar o seu caminho livre.Assim, podemos dizer que ambas concordam que aliberdade como “não interferência”, associada aos postu-

14 Pettit e Frank Lovett, 2009.

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lados liberais, é um ideal inferior ao da liberdade como“não dominação”.

As dominações de gênero avançam sobre aquelasque seriam as linhas que dividiriam o “público” do “privado”,e a teoria política comprometida em entender e desafiar adominação exige uma interpretação de tais esferas. Asformulações de Pettit e o seu foco na dominação sãoatraentes para a teoria política feminista na medida emque o seu ideal de liberdade esquiva-se dos habituaisposicionamentos liberais e republicanos,15 com importantesimplicações para o entendimento de esfera pública eprivada, tema-chave para a teoria feminista.

Como podemos depreender do que afirmou JoanLandes,16 o desconforto das feministas com o republicanismoe o liberalismo foi elaborado a partir da maneira como suasfronteiras foram, tradicionalmente, reconhecidas e nomea-das. Segundo ela, como os republicanos, as feministasvalorizam a participação e a esfera pública, pois visamtrazer para o debate público as estruturas e as relaçõesdesiguais e hierárquicas historicamente construídas sob osmitos universais do indivíduo soberano e racional. Como osliberais, elas veem a necessidade de expandir os direitosindividuais, já que o próprio reconhecimento de que temosdireito à liberdade individual e a um interesse próprio éfundamental para desconstruir as ficções de unidade queoprimem e silenciam as diferenças. Por isso, a autora observaa desconfortável posição das feministas com essas duastradições.

Entretanto, o conceito de liberdade como não domi-nação, defendido por Pettit como tipicamente republicano,não vem acompanhado pela supervalorização de umaesfera sobre a outra. Ao contrário, mais do que entender quea dominação é um mal independente da esfera em que seinstaura, seu conceito leva a considerar as interdepen-dências entre garantia dos direitos individuas e valorizaçãoda esfera pública. E é nesse olhar que valoriza igualmenteesfera pública e privada e suas interconexões que pareceresidir a atração das feministas pelo republicanismo de Pettit.

2 Críticas feministas à 2 Críticas feministas à 2 Críticas feministas à 2 Críticas feministas à 2 Críticas feministas à liberdade comoliberdade comoliberdade comoliberdade comoliberdade comonão dominaçãonão dominaçãonão dominaçãonão dominaçãonão dominação

Ainda que reconheça sua afinidade com as deman-das feministas, Friedman17 identifica que, sob a própria óticadelas, o conceito de liberdade de Pettit apresenta problemas.Em síntese, seu argumento é o de que a dominação comomera capacidade de agir arbitrariamente sobre outraspessoas é, em determinados aspectos, muito exigente e, emoutros, muito fraco. É muito exigente no que diz respeito à

15 Essa é uma discussão bastanteampla. Podemos encontrar algunsargumentos em Roberto Gargarella(1999), em especial no capítulo 6,e em Pettit (2004) e Pettit e Lovett(2009).16 Joan LANDES, 1998.

17 Friedman, 2008.

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aceitação da dominação como mera capacidade e muitofraco no que se refere a excluir da dominação a não arbitra-riedade.

O conceito é exigente porque uma pessoa não podeser punida pela mera capacidade de interferir arbitra-riamente nas escolhas de outras. Considerando as relaçõesde gênero, Friedman diz que o reconhecimento da domina-ção masculina como um problema estrutural e institucionalnão justifica que os homens, individualmente, possam serpunidos por estarem numa condição de mera capacidadede dominar as mulheres, afinal, é preciso aceitar que a açãopropriamente dita faz uma diferença fundamental. Até porque,afirma a autora, o controle sobre a mera capacidade daspessoas de dominarem outras exigiria um Estado Totalitário,aniquilador do direito à intimidade.

Para Friedman, é importante também distinguir amera capacidade de dominar da dominação de fato,porque a capacidade das pessoas de interferiremarbitrariamente na vida de outras pode, em muitas situações,ser intrínseca à capacidade para agir em seu benefício.Aqui ela fala especificamente das atividades que envolvemo “cuidado” e que são ancoradas por relações dedependência para suprir necessidades básicas. Essasrelações fazem parte da experiência humana e implicamrelações desiguais de poder. Nesse caso, a capacidadeque uma pessoa tem para interferir arbitrariamente na vidade outras corresponde também à capacidade para protegere satisfazer necessidades básicas de pessoas dependentes.Considerar dominação como mera capacidade iguala,portanto, dominador e cuidador, pessoa dominada epessoa cuidada. Segundo a autora, as distinções entre“cuidar” e “dominar” precisam ser reconhecidas, inclusivepara que suas fronteiras possam ser preservadas.

Por outro lado, Friedman afirma que o conceito dedominação como mera capacidade de interferir arbitra-riamente é fraco se consideramos a possibilidade decoexistência entre dominação e não arbitrariedade. Issoporque, vistas a partir de uma perspectiva mais ampla eintegral, nas relações hierárquicas, a subordinação podese tornar moeda de troca para pessoas que ocupamposições desvantajosas na estrutura social. Esse é o casotípico das relações entre homens e mulheres, nas quais osprimeiros, como provedores, podem agir em benefíciogenuíno de suas esposas e famílias, com suas anuências,ao passo que também, por conta dessa mesma posição, asdominam. Em casos como esses, em algum grau as/osdominadas/os não são simplesmente passivas/os na relaçãoe, portanto, a arbitrariedade não seria o melhor termo paraqualificar sua posição diante do polo dominador.

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No conjunto, as críticas de Friedman expõem impor-tantes preocupações oriundas do campo feminista. Asprivilegiadas nesse trabalho correspondem àquelasassociadas, em especial, a sua vertente denominada “éticado cuidado” ou “ética feminista”.18 Assim, ao trazer o temado “cuidado” e discutir suas implicações para as relaçõesde dependência e dominação, os argumentos da autoratornam mais complexa a empreitada de traçar fronteirasentre autodeterminação e dominação. Seus exemplos mos-tram que, pela ótica das relações não usualmente considera-das pela teoria política, ou seja, as relações que envolvemo cuidado e a dependência, as posições dos indivíduoscomportam mais ambiguidades e nuances do que podemcaptar as formulações baseadas em binarismos claramenteidentificáveis. Conforme argumenta Joan C. Tronto:

Cuidar desafia a visão de que a moralidade começaquando e onde indivíduos racionais e autônomosconfrontam-se mutualmente para executar as regrasda vida moral. Em vez disso, nos permite ver aautonomia como um problema com o qual as pessoastêm de lidar o tempo todo nas suas relações com osiguais e com aqueles que as ajudam ou delasdependem.19

As relações de cuidado e dependência não sãotratadas pelos cânones do pensamento político ocidentalporque estas não envolveriam a moral, não implicariamjulgamentos, já que estariam no terreno das necessidades.De acordo com Tronto, o problema é que, como elas nãoestão sob o crivo da justiça, nós não temos como garantir anecessária distinção entre “cuidar” e “dominar”, nem comojulgar quando uma dependência se traduz em dominação.E é para isso que Friedman deseja chamar atenção quandonota a necessidade de reconhecermos as distinções entredependência e dominação, cuidador e dominador, oumesmo reconhecermos quando há o deslizamento de umpolo para outro.

Ao silenciamento teórico das relações que envolvemo cuidado/dependência e à negação do seu estatuto moralsubjaz o pressuposto de uma rígida separação entreliberdade/necessidade, razão/sensibilidade, mente/corpo.E é o tratamento dicotômico desses pares que permite retirardo problema da liberdade a complexidade que lhe éintrínseca e que o exemplo das relações de cuidado edependência deixa evidente. O tratamento dicotômicodaqueles pares permite simplificações, como admitir aexistência de uma fronteira fixa e claramente identificávelentre o terreno da moral e o terreno da necessidade tantoquanto entre a autodeterminação e a dominação.

18 Segundo Alisson M. Jaggar(1996), a atenção teórica dasautoras que trabalham nessa ver-tente recai na natureza da mora-lidade e seu projeto é contestartodas as formas pelas quais a éticaocidental excluiu as mulheres oujustificou sua subordinação. Comoé comum no feminismo, as formu-lações dessa vertente são alvos defortes críticas entre feministas queas acusam de valorizar demasiada-mente as relações privadas emdetrimento das públicas e dedefender uma suposta superiori-dade moral das mulheres. Semdesejar entrar no mérito da perti-nência desses apontamentos, éimportante sublinhar que, mesmoentre as que são críticas, há oreconhecimento de que as autorasdessa vertente prestam umapreciosa contribuição ao tematizara experiência moral feminina emostrar, assim, a diversidade dofenômeno moral.19 TRONTO, 1997, p. 196.

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É para essa dificuldade que nos alerta o exemplo deFriedman a respeito das relações entre marido e mulher, nasquais ela indica a possibilidade de coexistência entredominação e não arbitrariedade mediante estruturas sociaisque distribuem hierarquicamente os indivíduos na sociedade.Os apontamentos de Friedman nos chamam a atenção parao fato de que as fronteiras entre autodeterminação edominação não podem ser tão facilmente traçadas comosupõem as concepções dicotômicas e fixas de sujeito, quesimplificam e silenciam sobre um conjunto de relaçõeshumanas.

Como podemos sugerir a partir das considerações deJaggar,20 o sujeito moral que ampara aquelas dicotomias équestionado pelo feminismo e outras correntes porque supõeum ser descarnado, separado, unificado e racional, similar atodos os outros sujeitos. Como se sabe, o feminismo e outrascorrentes têm contestado essa concepção ao chamarem aatenção para o caráter fragmentado, dinâmico, contextual esempre precário e parcial das identidades que constituemos sujeitos.

Do nosso ponto de vista, os argumentos de Friedman,lidos a partir dessas considerações críticas, reclamam umconceito de liberdade ao mesmo tempo mais dinâmico econtextual, que seja capaz de abrigar a complexidadeintrínseca das situações – multifacetadas – que envolvem asrelações humanas. Mas será que devemos concordar comFriedman que o conceito proposto por Pettit não responde,em alguma medida, satisfatoriamente a essas exigências?

3 A liberdade como não dominação3 A liberdade como não dominação3 A liberdade como não dominação3 A liberdade como não dominação3 A liberdade como não dominaçãocomo regulador políticocomo regulador políticocomo regulador políticocomo regulador políticocomo regulador político

O nosso argumento neste artigo é o de que, a despeitodas críticas de Friedman, o ideal de liberdade como nãodominação de Pettit pode ser bastante pertinente para causasfeministas se entendido como um regulador político. Issoimplica não abordá-lo como uma definição fixa do que é serlivre ou estar sob dominação, mas compreendê-lo como umfiltro de entrada de reclamos na esfera pública, ou como umparâmetro de julgamento da pertinência dos reclamosdiversos e variados referentes à dominação. Desde essaperspectiva, percebemos que suas potencialidades políticassuperam as críticas de natureza normativa apresentadas porFriedman, já que torna a esfera pública significativamentemais porosa sem que suas fronteiras sejam diluídas.

O próprio Pettit já havia mostrado preocupação emdotar seu conceito de certa maleabilidade ao admitir quedominação e liberdade, mais do que pares dicotômicos queenvolvem uma questão de “tudo ou nada”, se concretizam

20 Alisson JAGGAR, 1996.

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em graus variados. Como ele afirma, a não dominação podevariar em extensão e intensidade porque os agentes têm umacapacidade maior ou menor de interferir. A capacidade deinterferência que uma pessoa tem sobre outra pode ser maisou menos séria e pode estar disponível com mais ou menoscusto. Então, a liberdade também varia em sua extensão,uma vez que pode existir um número maior ou menor deescolhas disponíveis aos indivíduos, e os custos associadosa elas também podem ser mais ou menos significativos.21

Do ponto de vista de preocupações feministas, comomencionamos, a pertinência de conceber a liberdade comonão dominação como um regulador político está no fato deque, assim, garantimos ao mesmo tempo o não isolamentoda esfera privada sem abrir mão do reconhecimento detraços distintivos entre ela e a esfera pública. Para melhorcompreender essas potencialidades abrigadas no idealde liberdade como não dominação, temos que entendersua conexão com a ideia de democracia contestatóriadefendida por Pettit, o que exige trazer para essa discussãooutros elementos de sua teoria republicana.

Para tanto, comecemos recordando que uma dascríticas de Friedman dizia respeito a considerar dominaçãocomo “mera possibilidade” de ação arbitrária, já que issoconduziria ao Estado totalitário. Assim como Friedman, Pettittambém se preocupa com a possibilidade de um Estadoque exerça dominação sobre os seus cidadãos. Pettit chamade imperium a interferência arbitrária exercida pelo poderpúblico. Segundo o autor, para um Estado não ser fonte dedominação é necessário um regime constitucional e umademocracia que possibilite a contestação. Um regimeconstitucional comprometido com a liberdade e que nãoseja manipulado por aqueles que detêm o poder do Estadodeve cumprir três condições: “The first condition is, in JamesHarrington’s phrase, that the system should constitute an‘empire of laws and not of men’; the second, that it shoulddisperse legal powers among different parties; and the third,that it should make law relatively resistant to majority will.”22

Mas, embora indispensável ao Estado republicano,o sistema constitucionalista não é suficiente para assegurara não arbitrariedade do governo. Afinal, todo sistema deleis deixará certo poder decisório em mãos de autoridadespúblicas, mas é responsabilidade de um Estado republi-cano não permitir que esse poder discricionário se torneuma fonte de arbitrariedades. Assim, é necessário que oEstado seja também democrático.

Pettit ressalta a importância da democracia comoforma de garantir que a tomada de decisão pública leveem conta o interesse e as ideias daqueles que serão afetadospor ela. Para tanto, a democracia tem que ir além de sua

21 PETTIT, 1997c.

22 PETTIT, 1997a, p. 173. “A primeiracondição é, na frase de JamesHarrington, que o sistema deveriaconstituir um ‘império de leis e nãode homens’; a segunda, que [osistema] deveria dispersar podereslegais dentre diferentes partidos;e terceira, que deveria tornar alei relativamente resistente aodesejo da maioria.”

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dimensão eleitoral, pois deve favorecer os cidadãos a ex-pressarem o seu descontentamento diante das decisões pú-blicas, isso é, a democracia deve ter um caráter contestatório.

Para o autor, as eleições são instrumentos importantesde controle popular. Referendos e eleições permitem aoscidadãos destituírem e rejeitarem aqueles que usamarbitrariamente o poder do Estado. O povo é o autor últimodas decisões, uma vez que a seleção daqueles que estãono governo é determinada pela população. No entanto, aseleições são limitadas para garantir o controle do imperium,pois, embora a democracia eleitoral possa fazer com queos governos não sejam totalmente indiferentes aos interessespopulares, ela é bastante consistente com a ideia de que ogoverno deve seguir os interesses da maioria, absoluta ourelativa. As eleições, para o autor, “[...] may allow the tyrannyof the majority under which the members of a stable minorityare treated as less than equal. And they may allow the tyrannyof an elite whereby those in government, or their immediatecronies and supporters, are treated as more than equal.”23

Assim, para Pettit, o Estado republicano, guiado peloideal da liberdade como não dominação, deve se compro-meter a respeitar não apenas os cidadãos consideradoscoletivamente, mas também levar em conta os indivíduosseparadamente, o que também podemos supor os diversosgrupos constituídos no interior de uma sociedade. Segundoo autor, para que a decisão pública não seja fonte dedominação, não é necessário o consentimento individualpara cada decisão que o governo irá tomar, o importante éhaver a possibilidade de contestação da decisão tomada.O que torna as decisões públicas interferências não arbitrá-rias é a possibilidade de o indivíduo contestar a decisãotomada, caso a considere contrária aos seus interesses eideias relevantes. A democracia é entendida como um mo-delo primariamente mais contestatório do que consensual:“where the electoral mode of democratization gives thecollective people an indirect power of authorship over thelaws, the contestatory would give people, considered indivi-dually, a limited and, of course indirect power of editorshipover those laws.”24

Assim, uma democracia que tenha como foco a cria-ção de canais de contestação aumenta as possibilidadesde os reclamos que partem da esfera privada seremacolhidos pela esfera pública. Uma característica interes-sante da ideia de contestabilidade é que não necessaria-mente todos os assuntos devem ser discutidos, problemati-zados e colocados em votação. Desse modo, não é pressu-posto que teremos um debate público sobre todos osaspectos da vida, nem tudo o que é privado deverá entãoser “político”. No entanto, a constestabilidade permite que

23 PETTIT, 2007, p. 323. “[...] podempermitir a tirania da maioria sob aqual os membros de uma minoriaestável são tratados como menosque iguais. Elas também podempermitir a tirania de uma elite naqual os governantes, ou seusapoiadores e simpatizantesimediatos, sejam tratados comomais do que iguais.”

24 PETTIT, 1999, p. 180. “Onde omodo eleitoral de democratizaçãodá as pessoas coletivamente umpoder indireto de autoria sobre asleis, o modo contestatório dariaas pessoas, consideradasindividualmente, um limitado e,com certeza um poder indiretode edição sobre essas leis.”

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O CONCEITO DE LIBERDADE COMO NÃO DOMINAÇÃO SOB A PERSPECTIVA FEMINISTA

qualquer assunto possa a vir a público. Uma vez que umgrupo ou um indivíduo sinta-se em situação de dominação,este pode recorrer às vias de contestação, que devem sergarantidas pela democracia.

Essa perspectiva se afina com as implicaçõesdecorrentes do refrão feminista “o pessoal é político”.Segundo a visão de Iris Marion Young, esse refrão não desejadiluir as distinções entre esfera pública e privada, masintenciona defender que “nenhuma pessoa, nem ações,nem aspectos da vida de uma pessoa devem ser forçadosà privacidade”.25 Nesse sentido, a autora deseja, como elamesma enfatiza, acentuar a orientação do agente, isto é, odireito de o indivíduo retirar-se, ao invés de ser retirado.

Podemos entender então que a liberdade como nãodominação serve bem como um regulador político que ampliasignificativamente a porosidade da esfera pública aosreclamos de dominação, abrindo possibilidades para querelações de dominação socialmente construídas possam serdebatidas, ainda que os indivíduos particulares dos gruposaos quais aquelas relações estejam associadas não sofram,concretamente, a dominação. Afinal, para Pettit, a nãodominação está ligada ao conhecimento e reconhecimentocomum. Isso significa que desfrutar a não dominação emrelação a outro agente – ao menos quando o agente é umapessoa – exige ser capaz de olhar o outro nos olhos, confianteno conhecimento compartilhado de que você persegue assuas escolhas por um direito publicamente reconhecido. Nãovive com medo ou em deferência a outrem.

É importante notar que essa maneira de formular oproblema da dominação projeta para o centro das atençõeso grau de porosidade da esfera pública. Ou melhor, essaformulação faz a atenção recair nas fronteiras entre esferapública e privada, não para que seus traços sejamnecessariamente reforçados ou atenuados, mas para quesuas implicações recíprocas sejam sempre consideradas edebatidas. Assim, do ponto de vista teórico, torna-se poucorelevante determinar se uma relação de dominação podeser assim definida desde um ponto de vista exterior aos seusagentes, ou se apenas interiormente a eles. Do modo mesmo,aqui também importa pouco o empreendimento teóricovoltado à classificação a priori das relações entre livres ounão. Sem desconsiderar a importância das discussõesnormativas que envolvem questões dessa natureza, o quedesejamos sublinhar aqui é a potencialidade política doconceito de liberdade como não dominação para enfatizarque, sim, a priori, toda e qualquer relação pode se transformarem objeto de debate público.

Portanto, apesar das considerações de Friedman,observamos mais aproximações do que incompatibilidades

25 YOUNG, 1996, p. 84.

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entre o ideal de não dominação de Pettit e as preocupaçõesfeministas. Entendida para além de um conceito filosófico,a liberdade como não dominação, enquanto um reguladorpolítico, é uma grande aliada na luta contra a dominaçãodas mulheres.

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[Recebido em 1º de março de 2012,reapresentado em 9 de maio de 2013 e

aprovado em 20 de junho 2013]

Concept of Freedom as Non-Domination under the Feminist PerspectiveConcept of Freedom as Non-Domination under the Feminist PerspectiveConcept of Freedom as Non-Domination under the Feminist PerspectiveConcept of Freedom as Non-Domination under the Feminist PerspectiveConcept of Freedom as Non-Domination under the Feminist PerspectiveAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: The central point of Philip Pettit’s theory, fundamental reference in the so-calledneorepublicanism, is the concept of freedom as non-domination: a free person is one who doesnot live under arbitrary will or domination of others. For him, this crucial concept unifies newrepublican’s authors, despite their analytical variations, and can articulate concerns of severalcontemporary movements such as the feminist. This paper analyzes the closeness and tensionbetween Pettit’s republicanism and some of the concerns present in the plural and heterogeneousfield of feminist theory. We advocate the argument that, if treated as a political regulator, the idealof freedom as non-domination can be very useful to feminists.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Feminism; Republicanism; Freedom.