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ISSN 2176-1396
O CONCEITO DE AGÊNCIA NO APRENDIZADO DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA EM CONCEPÇÕES DE LETRAMENTO
Zelir Maria Bieski Franco1 - UFPR
Jhuliane Evelyn da Silva2 - UFPR
Eixo – Ensino e Práticas nas Licenciaturas
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Partindo da noção de língua como discurso e de agência como sendo uma ação fundamentada
criticamente, uma prática de construção de sentidos sempre contingentes, situados e
deslizantes, almejamos neste relato construir entendimentos sobre o processo de ensino-
aprendizagem da língua inglesa tendo em vista a agência do professor e do aluno na
perspectiva do Letramento Crítico. Para tanto, observaremos uma atividade prática realizada
na disciplina Língua Inglesa Aplicada I, em uma universidade pública federal no setor de
formação tecnológica no semestre de 2015.2. Almejando fornecer uma leitura provisória de
tal material, debruçamo-nos sobre os pressupostos teóricos ofertados pelo Letramento Crítico,
fazendo uso de autores tais como Jordão (2013, 2015), Bhabha (1998), Menezes de Souza
(2011), Makoni e Pennycook (2007) e Kumaravadivelu (1994; 2013) de modo a fundamentar
nossa análise, direcionando-a para a agência da professora e de suas alunas. Ao observarmos
o livro didático utilizado (Market Leader), percebemos que o conceito subjacente de língua é
o de língua enquanto sistema de regras gramaticais, e, por mais que se ilustre com situações as
quais o formando poderá entrar em contato em sua profissão, tal objetivo é relegado ao
observarmos o foco da lição e a metodologia imposta pelo livro. Em face deste problema, a
professora rompe com tais imposições e tangencia o objetivo da aprendizagem da língua
centrada na proficiência linguística centrada no falante nativo como modelo de falante ideal
para o entendimento de língua enquanto prática social situada, ou ainda, enquanto discurso
que é construído e significado a partir do outro. O processo de ensino-aprendizagem da
língua, então, passa pela concepção de leitura como a leitura do mundo, da palavra e de si
como textos em constante transformação, possibilitando a construção de sujeitos alunas e
professora agentes em seus processos de significação.
Palavras-chave: Agência. Letramento Crítico. Ensino de Língua Inglesa.
1 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected].
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Introdução
Este relato de experiência tem por objetivo construir entendimentos sobre o processo
de ensino-aprendizagem da língua estrangeira focalizando a agência do professor e do aluno
na perspectiva do letramento crítico. Os entendimentos são construídos a partir de uma
atividade de prática realizada em aulas de língua inglesa na área tecnológica da Universidade
Federal do Paraná, no curso de Secretariado Executivo, no ano de 2015, em um grupo
composto por 15 alunas. A prática foi implementada como alternativa à unidade Careers do
livro didático Market Leader (COTTON; FLAVEY; KENT, 2012, doravante LD), com a
finalidade de desenvolver o aprendizado de inglês na valorização do pensamento crítico e
iniciativas de agenciamento do aluno.
A proposta surgiu da observação em que práticas anteriores com outras unidades do
mesmo LD evidenciaram baixo engajamento das estudantes. Estas reações foram
interpretadas como respostas a contextos que não atraíam ao diálogo no sentido bakhtiniano.
Os pensamentos do círculo de Bakhtin (1997), apontam que as interações nas quais os
sentidos são construídos nos discursos caracterizam-se por espaços de negociação e, como
geralmente acontece em negociações motivadas, às vezes se configuram em algo semelhante a
embates (FARACO, 2003). Estes espaços dialógicos às vezes de certa turbulência são
formados em questionamentos, barganhas, refutação, resistência, aceitação, em processos de
ressignificação do signo – respostas, como nos mostra Bakhtin (1997) ao dizer que reagimos
ao que nos faz sentido. No trabalho com o LD, a insatisfação com relação às respostas que
não correspondiam à esta característica dialógica exigia intervenções de prática.
Deste modo, respondendo à demanda das aprendizes e do contexto, pensamos em um
trabalho baseada em práticas ressignificadas e ressignificantes. Neste relato, organizado a
partir desta Introdução, Fundamentação teórica, Metodologia, Análise e Considerações,
mostraremos o trabalho feito a partir de uma unidade do livro e como este foi percebido pelas
participantes em termos de aprendizagem de língua, construção de conhecimento e agência.
Fundamentando a análise
A unidade do LD substituída apresenta a língua como código, remontando aos
primórdios estruturalistas, e seu aprendizado ocorre sob ações de desvendar a língua a partir
de aprendizados de modelos de grámatica. Canagarajah (2014) e Pennycook (2010) apontam
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que na concepção de Inglês como Língua Internacional e Língua Franca não há como falar da
língua como um conjunto de variedades pré-construídas, mas sim que a língua deve ser
entendida como uma forma de prática. Nesta concepção, a gramática tem sua importância na
sua condição de emergência da prática, não como construção a priori em fundamentos de
proficiência. Segundo Canagarajah (2014), o que garante o sucesso da comunicação não é a
proficiência da gramática, mas sim nossa capacidade de adaptação em negociações das
diversidades de gramáticas em cada interação específica de comunicação.
Neste LD, o aprendizado da língua é dividido na prática das habilidades – skills – nas
quais são constituídos discursos que exaltam o sucesso do mercado econômico liberal: ouvir
uma entrevista com um diretor financeiro de uma companhia de TV, ler sobre como perfis no
Facebook podem prejudicar a imagem para o emprego, fazer contatos ao telefone, decidir
sobre o candidato de sucesso para um emprego (cf. Fig. 1). Estes discursos não possuem
espaço de problematização sobre as forças de poder (FOUCAULT, 2004) que determinam
seus sentidos ideológicos. Antes, as ideologias do colonizador (MAKONI; PENNYCOOK,
2007) são reforçadas em práticas auditivas de língua e de pronúncia em modelos do falante
“nativo”. Segundo Rajagopalan (2003), a ideia de falante nativo foi uma criação que ganhou
visibilidade no modelo de competência desenvolvido por Chomsky, mas não se sustenta nos
questionamentos sobre o que definiria a competência.
Figura 1 - Unidade trabalhada na pesquisa
Fonte: Market Leader (COTTON; FLAVEY; KENT, 2012)
Na concepção de língua na condição de código, a agência do professor e do aluno são
exercidas sob extremo controle. A agência do professor tem seu foco na habilidade em
operacionalizar o código linguístico e o método. Já a agência do aluno, em internalizar
modelos em expectativas de, em algum momento, reproduzi-los em situação real de
comunicação. No caso do LD, o que prevalece é a agência do próprio livro – o facilitador do
aprendizado – que determina o método, posto como universal, e como este deve ser
operacionalizado, com resultados definidos a priori. Kumaravadivelu (1994) ao argumentar
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sobre a desconexão existente entre as teorias de aprendizado e os aspectos práticos da
pedagogia da língua, trata do “pós-método”. O teórico fala sobre a necessidade em se opor às
metodologias prescritivas totalizadoras e sobre os benefícios em considerar as necessidades
de ações de práticas locais de aprendizado.
A unidade do LD pode ser entendida como fundamentada no tipo de letramento
definido por Brian Street (2003) como modelo de letramento autônomo. Neste modelo,
concepções de outras culturas são simplesmente impostas. O letramento é visto como uma
prática neutra. Concepções ideológicas de língua e de realidades culturais se mantém apenas
como experiências de aprendizado, como se não afetassem as formações de identidade dos
aprendizes. Nesta visão de neutralidade, o livro didático privilegia os recortes linguísticos a
serem aprendidos e os aspectos culturais ideológicos em que a língua circula, sem
problematizá-las.
Street (2003) observa que letramento é uma prática social e, portanto, não é
simplesmente uma habilidade técnica e neutra, mas sim uma construção de sentidos. As
formas como as pessoas se relacionam com a leitura e a escrita estão fundamentadas em
concepções de identidade – de ser e estar no mundo. O entendimento de que letramento é
uma prática social e, como tal, define posicionamentos no mundo evidencia que suas práticas
são permeadas por exercícios de agência. As interações do professor e do livro didático com
o aluno se constituem de práticas sociais sempre ideológicas; essas práticas, como aponta
Street (2003), são definidas por relações de poder, que produzem efeitos nos processos de
letramento que vão além do aprendizado de aspectos formais da língua.
Estes efeitos de letramento que vão além do aprendizado dos aspectos formais da
língua a que se refere Street são transformações produzidas pelos discursos – ou pelo mundo e
por nós mesmos lidos como textos em processo de tornar-se em outro (MASNY;
WATERHOUSE, 2011). Masny e Waterhouse (2011) observam que este processo ocorre na
desterritorialização e reterritorialização dos sentidos – os sentidos são desestabilizados para
novamente serem temporariamente acomodados na cadeia do pensamento rizomático
(DELEUZE; GUATTARI, 2005). Com base na metáfora do rizoma, desenvolvida por
Deleuze e Guattari (2005), as autoras teorizam sobre uma perspectiva oposta ao letramento
autônomo observado por Street (2003). Segundo Masny e Waterhouse (2011), a metáfora do
rizoma evidencia que o letramento é um processo de multiplicidades e envolve conexões
livres do pensamento, sem referencial fixo, pré-determinado. Essas conexões podem ser
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provocadas por qualquer coisa que toque os sentidos e a mente: signos orais, visuais, escritos,
multimodais, como também cheiros e gestos que se conectam aos valores culturais,
espirituais, intelectuais produzindo letramento. Tudo isso, aponta ela, pode formar uma cadeia
de eventos que, em ajuntamento – assemblages (MASNY; WATERHOUSE, 2011) pode
gerar significados e ser lida como textos. Nesse processo de leitura, não apenas lemos o
mundo, mas também a nós mesmos como textos e estamos em constante transformação.
Motivadas, então, por esta concepção de leitura que propomos práticas de ensino-
aprendizagem independentes do livro didático. Desejamos com isso provocar leituras na
língua estrangeira – leituras do mundo e de si mesmo como textos.
A prática está baseada no conceito pós-estruturalista de letramento denominado por
Menezes de Souza (2011) como letramento crítico redefinido. O conceito de crítica aqui e
entendido na mesma linha de pensamento de Masny e Waterhouse (2011), de leitura do
mundo e de si mesmo como texto. Menezes de Souza (2011) aponta que a crítica acontece
quando lemos o mundo a partir de entendimentos das razões que produzem nossas
construções de sentidos. Este conceito de crítica estende-se à noção de crítica ideológica, que
direciona leituras com o objetivo de perceber dominações, geralmente opressoras, nos
discursos. A noção de letramento crítico redefinido, aponta Menezes de Souza (2011),
entende que o processo crítico se constrói a partir do “Ler-se lendo”, o que exige a leitura de
nós mesmos na compreensão dos nossos posicionamentos nos contextos sócio-históricos em
que vivemos. Este exercício de leitura nos permite entender porque atribuímos determinado
sentido e não outro às realidades ou aos acontecimentos.
Nesta concepção de letramento, a língua é concebida como discurso no qual os
sentidos são construções sociais e contingentes (JORDÃO, 2015) e rizomáticos. Nestas
interações dialógicas, os significados não estão presos à materialidade da sentença, e, como
apontam Masny e Waterhouse (2011), nem estão presos à materialidade dos textos escritos.
Assim, os discursos devem ser entendidos como enunciações (BAKHTIN, 1997, 2000). Estas
se formam não apenas nas vozes que pronunciam o discurso, mas também e principalmente,
na voz com quem o discurso interage – o ler-se lendo naquilo que é dito e ouvido e também
nas ressonâncias do que não é materializado na linguagem; enfim, nos ajuntamentos –
assemblages – que produzem significados no mundo e em nós mesmos.
Nesta concepção de letramento crítico, as agências do professor e do aluno são
estimuladas nas interações dialógicas, nas produções de sentido dos discursos. A nosso ver,
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este tipo de interação favorece o aprendizado da língua. Nesse entendimento, as atividades de
prática foram negociadas com os alunos. A proposta alternativa à da unidade do LD foi de
subvertê-la completamente. Assim, a opção não foi por trabalhar nas brechas como nos sugere
Duboc (2012), infiltrando práticas de letramento crítico em uma ou outra atividade, em
adaptação ao livro didático, mas sim por substituir toda a unidade.
A prática não foi orientada por nenhuma abordagem teórica metodológica específica.
A intenção foi de que as direções de prática fossem sendo construídas ao longo do trabalho
com a língua, conforme surgiam as demandas locais (KUMARAVADIVELU, 1994, 2013). O
cuidado foi direcionado à concepção de língua enquanto discurso formado na produção de
sentidos. Para tanto, o princípio norteador da prática foi o de negociar sentidos. O cuidado foi
em promover interações dialógicas dos alunos fazendo com que eles tivessem a voz mais alta
nas decisões sobre a prática, no diálogo entre si, com os discursos e consigo mesmos e com a
professora.
Nesta proposta foi considerado que o aprendizado contemporâneo é influenciado por
formações ideológicas globais que afetam as realidades localizadas. Nesse sentido, a prática
teve o objetivo de promover o aprendizado da língua inglesa – uma imposição do mundo
globalizado – considerando seus efeitos sobre a formação profissional de secretariado em uma
instituição no Brasil – uma realidade local. Foi esperado que a prática pudesse contribuir para
o aprendizado da língua estrangeira no exercício de reflexão sobre a profissão e sobre o
processo de aprendizado da língua.
Os alunos refletiram sobre a profissão de secretariado executivo em práticas da língua
inglesa, a partir de uma entrevista autêntica com uma secretária executiva de outro país,
assistida inicialmente com o grande grupo. Como prática multimodal, os alunos produziram
um vídeo no qual eles próprios falam sobre as realidades da profissão no Brasil, relatando
experiências e expectativas. Evitou-se a aula expositiva. Não houve explicação formal de
gramática a priori. O objetivo era que a língua fosse sendo construída, in situ, na formação
dos sentidos. Não houve cobrança em modelos de pronúncia. Nas práticas além da sala de
aula, os alunos produziram de modo independente, sem o auxílio da professora. Os vídeos
produzidos foram assistidos em sala e fizeram parte de um debate sobre a profissão e sobre o
processo de aprendizagem. Como parte da avaliação, os alunos escreveram sobre o processo
do trabalho. Os discursos destas narrativas são aqui tomados para verificar efeitos de agência
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do aluno e da professora nas práticas de letramento crítico redefinido no processo de
aprendizado da língua.
Metodologia
A metodologia empregada na observação do aprendizado é de concepção pós-
estruturalista em rizoanálise (MASNY; WATERHOUSE, 2011). Nesta concepção são
construídas percepções de como as leituras do mundo e de si mesmo na prática da língua
estrangeira poderiam ter produzido transformações. Nesta perspectiva, a metodologia é
desterritorializada e reterritorializada como um processo rizomático, e não segue modelos
convencionais de análise. Com o objetivo de não fixar sentidos, ao invés de afirmar
interpretações, este modo de observação prefere indagar sobre possibilidades. As respostas às
perguntas podem ser formuladas pelo leitor.
Texto 1 - Reflexão sobre atividade – Aluna 1
Fonte: Arquivos pessoais (2015)
Texto 2 - Reflexão sobre atividade – Aluna 2
Fonte: Arquivos pessoais (2015)
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Uma forma de ler e produzir sentidos sobre os textos...
Agência do aluno
As observações da agência do aluno buscam responder às perguntas: Como
construíram conhecimento? Como atribuíram sentidos à atividade? E que indícios de
transformação podem ser atribuídos? Materialmente, organizamos excertos de suas narrativas
por similaridade.
Ao tomar os trechos “I think this presentation was very different, I liked it” (Aluna 1)
e “It was a good experience - along the last years in the course… I did not do “nothing”
similar” (Aluna 2), perguntamos sob que referência seria a diferença mencionada – seria o
livro didático com o qual eles estavam habituados a trabalhar? Foram feitas conexões com
outros aprendizados, da formação profissional e da vida? E se o livro didático faz parte dessas
referências, isso significa que o aluno se sentiu mais motivado para aprender fora do livro
didático?
O contexto – falar sobre si mesmo na profissão – teria provocado motivação? As
afirmações podem ser interpretadas como sinais de interação dialógica? Quem é o ‘outro’ da
cadeia dialógica sobre quem estas revelações de contentamento repousam – apenas a
professora? Ou eles próprios? Bakhtin (1997) aponta que o outro com quem dialogamos pode
ser nós mesmos. Se for este o caso das afirmações, elas poderiam indicar transformações?
Que conexões na cadeia do rizoma teriam sido feitas?
A partir das falas “’this’ is very good to learn more about the language” (Aluna 1) e
“I have “count” with help of my husband / I observed that only the practice brings the
excellence” (Aluna 2), questionamos se a busca pela língua, em websites, dicionários e de
outro (husband) que não fazem parte do grupo de aprendizado poderia ser sinal potencial de
agência? A afirmação das alunas poderia significar que o livro didático produz cerceamento
da agência ao fornecer a priori o instrumento linguístico para as práticas que propõe e por
limitar o espaço dessas práticas? Que padrões de excelência na língua definem as expectativas
das alunas – seriam os modelos de gramática e de pronúncia do livro didático? Poderia ser
que as afirmações são evidências de formação de letramento crítico redefinido – a consciência
sobre o processo de aprendizado poderia ser em exercício de “ler-se lendo”, ou “de ler o
mundo e a si mesmo como texto”? Que valores sócio-históricos em que as participantes estão
inseridas motivam tal esforço para o aprendizado da língua?
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O relato “I had a little bit of shame, but I believe this is normal / It is funny listen _ me
speaking English, is different” (Aluna 1) nos permite indagar que formações identitárias
estariam sendo construídas – que estavam se tornando em outro? Que conexões na cadeia
rizomática poderiam ter desencadeado estas emoções? Poderia ter havido embates dialógicos
em questionamentos, refutação à língua estrangeira?
Considerando as afirmações “After the presentation I noticed a big improvement in my
pronunciation. I’m happy and more presentation would be very nice” (Aluna 1) podemos
inferir que o fato de se ouvir falando inglês pode ter aumentado a consciência linguística e
motivado a prática? A aluna já teria modelos de pronúncia estabelecidos? Seriam esses
modelos os que circulam nas atividades do livro didático às quais ela era frequentemente
exposta? A afirmação de que está feliz com a prática e de que gostaria que esta continuasse
pode ser evidência de que a aluna está pronta para mais agenciamento do que as aulas de
inglês normalmente proporcionam?
Agência do professor
Intentando construir uma leitura possível dos dados gerados no contexto de educação
técnica supramencionado, apoiar-nos-emos nos conceitos de agência (JORDÃO, 2013; 2015,
BHABHA, 1998) e de língua (MAKONI; PENNYCOOK, 2007) propostos e ressignificados
por autores inscritos em estudos de viés pós-colonial e pós-estruturalista por acreditarmos que
abrem espaço para uma discussão localizada na fronteira, em um espaço híbrido, de
constantes transformações, evitando assim a fixação de qualquer sentido ou interpretação.
A partir de uma leitura pós-colonial, não-materialista da linguagem, entendemos que
língua é uma construção social, uma invenção de movimentos políticos, culturais e sociais
(MAKONI; PENNYCOOK, 2007), portanto criada e ressignificada a partir de sua utilização
por falantes. Assentadas ainda numa visão pós-estruturalista, tomando a língua como discurso
(JORDÃO, 2013, 2015), poderíamos afirmar que a professora desafiou o status quo da língua
inglesa enquanto commodity e enquanto língua internacional, capaz de garantir o sucesso do
estudante que dela se utiliza? Teria ela instigado suas alunas a desconstruírem o aprendizado
da língua estrangeira como estrutura a fim de construir sentidos a partir da necessidade da
utilização da língua, assim, como uma prática social situada e significada por seus falantes?
Ao se recusar fazer uso do livro didático com uma proposta engessada para o ensino da
gramática, podemos entender tal atitude enquanto de resistência e transformadora?
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Quando da elaboração da atividade, da abertura para a escolha do formato de
apresentação desta (vídeo) pelas aprendizes e da tomada de posição da professora enquanto
co-construtora (sem fornecer explicações gramaticais a priori) ao invés de transmissora, teria
ela proposto uma nova forma de ver o objeto, seja este a concepção de língua ou o próprio
processo de aprendizagem da língua em si? Teria ela desafiado as interpretações naturalizadas
do que se pode entender como o papel da professora e de como a língua inglesa se insere no
contexto da profissão de secretária?
Em vez de trabalhar os verbos modais, viu-se a gramática como emergente, dentro do
discurso? Ou seu ensino foi relegado por não apresentar relevância naquele contexto? A
língua inglesa foi utilizada/significada a partir de necessidade dos falantes ou a partir do que o
LD propunha? Com esta atitude problematizadora e rizomática, a língua inglesa deixou de ser
estrangeira para aquelas aprendizes a partir da apropriação do discurso do outro?
Finalmente, cabe-nos utilizar as provocações de Jordão (2015) quando nos questiona
quais as teorias de prática que a professora construiu levando em consideração suas
experiências, suas aprendizes, suas próprias experiências e teorias enquanto aluna e
professora, e o LD? Que entendimentos de sala de aula a professora construiu? E ainda quais
são as implicações desses entendimentos e teorias para o processo de ensino e aprendizagem
de língua inglesa e para a identidade profissional desta professora?
Algumas considerações
Ao longo deste relato, problematizamos os conceitos de língua e de agência do aluno e
do professor dentro de uma perspectiva mais tradicional (letramento autônomo) e de uma
perspectiva que não desconsidera o papel do social ou da ideologia e do poder que atravessam
a prática de letramento, a urgência dos sentidos, nem tampouco a emergência das crises,
imprevisibilidades e dissenso como constitutivos do processo de construção de sentidos
(letramento ideológico). Para tanto, olhamos para nossos dados numa atitude
problematizadora – entendendo a impossibilidade da neutralidade na pesquisa e da existência
de sentidos fixos e completos – e localizada, almejando fornecer leituras possíveis da
atividade realizada em sala de aula.
Percebemos, deste modo, tanto as ações das alunas como as da professora como de
agenciamento porque fundamentadas, principalmente, pela negociação, rupturas,
questionamentos e produções de significação locais e contingentes. As alunas sobre o seu
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processo de aprendizagem da língua, por um lado, porque lançaram mão de estratégias para
realizarem o trabalho, buscaram em outras fontes vocabulário, gramática e outros aspectos
formais da língua. A partir de sua necessidade, mobilizaram saberes e conhecimentos de
outras disciplinas, de dentro e de fora da academia, trabalharam colaborativamente com
colegas, esposo e professora e organizaram a partir do encontro consigo mesmas e com o
outro um produto para a avaliação da disciplina. Por outro lado, a professora por ter entrado
em sala de aula com vistas a entender o que lá acontecia, levando em consideração as
dificuldades e as potencialidades das alunas, despojada de pré-conceitos e fórmulas fixas para
o ensino e a aprendizagem da sua disciplina. Outro fato que merece destaque é a escolha
consciente de não trabalhar a língua a partir da gramática (um posicionamento social, político
e ideológico) para propiciar seu entendimento enquanto discurso, promovendo uma ruptura
com o livro didático, de modo que suas alunas se instrumentalizaram e agiram com, na e pela
língua.
Tendo em vista os posicionamentos aqui adotados, ousamos momentânea e
provisoriamente afirmar que há a negociação de sentidos em sala de aula, atitude que
proporciona espaços para um pensamento rizomático, nos termos de Masny e Waterhouse
(2011). Consequentemente, uma prática docente pautada no letramento crítico, em atitudes de
contestação e problematização constantes pode ir ao encontro das necessidades de tantas
outras salas de aula que compreendam o processo de ensino-aprendizagem como
constitutivamente em crise e em movimento. A leitura e os questionamentos ofertados neste
relato são apenas uma das múltiplas que podem ser construídas pelos leitores, que, a cada
nova leitura construirão outros entendimentos por não mais serem os mesmos, por serem seres
em transformação.
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