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ISSN 2176-1396 O CONCEITO DE AGÊNCIA NO APRENDIZADO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA EM CONCEPÇÕES DE LETRAMENTO Zelir Maria Bieski Franco 1 - UFPR Jhuliane Evelyn da Silva 2 - UFPR Eixo Ensino e Práticas nas Licenciaturas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Partindo da noção de língua como discurso e de agência como sendo uma ação fundamentada criticamente, uma prática de construção de sentidos sempre contingentes, situados e deslizantes, almejamos neste relato construir entendimentos sobre o processo de ensino- aprendizagem da língua inglesa tendo em vista a agência do professor e do aluno na perspectiva do Letramento Crítico. Para tanto, observaremos uma atividade prática realizada na disciplina Língua Inglesa Aplicada I, em uma universidade pública federal no setor de formação tecnológica no semestre de 2015.2. Almejando fornecer uma leitura provisória de tal material, debruçamo-nos sobre os pressupostos teóricos ofertados pelo Letramento Crítico, fazendo uso de autores tais como Jordão (2013, 2015), Bhabha (1998), Menezes de Souza (2011), Makoni e Pennycook (2007) e Kumaravadivelu (1994; 2013) de modo a fundamentar nossa análise, direcionando-a para a agência da professora e de suas alunas. Ao observarmos o livro didático utilizado (Market Leader), percebemos que o conceito subjacente de língua é o de língua enquanto sistema de regras gramaticais, e, por mais que se ilustre com situações as quais o formando poderá entrar em contato em sua profissão, tal objetivo é relegado ao observarmos o foco da lição e a metodologia imposta pelo livro. Em face deste problema, a professora rompe com tais imposições e tangencia o objetivo da aprendizagem da língua centrada na proficiência linguística centrada no falante nativo como modelo de falante ideal para o entendimento de língua enquanto prática social situada, ou ainda, enquanto discurso que é construído e significado a partir do outro. O processo de ensino-aprendizagem da língua, então, passa pela concepção de leitura como a leitura do mundo, da palavra e de si como textos em constante transformação, possibilitando a construção de sujeitos alunas e professora agentes em seus processos de significação. Palavras-chave: Agência. Letramento Crítico. Ensino de Língua Inglesa. 1 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected].

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ISSN 2176-1396

O CONCEITO DE AGÊNCIA NO APRENDIZADO DE LÍNGUA

ESTRANGEIRA EM CONCEPÇÕES DE LETRAMENTO

Zelir Maria Bieski Franco1 - UFPR

Jhuliane Evelyn da Silva2 - UFPR

Eixo – Ensino e Práticas nas Licenciaturas

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Partindo da noção de língua como discurso e de agência como sendo uma ação fundamentada

criticamente, uma prática de construção de sentidos sempre contingentes, situados e

deslizantes, almejamos neste relato construir entendimentos sobre o processo de ensino-

aprendizagem da língua inglesa tendo em vista a agência do professor e do aluno na

perspectiva do Letramento Crítico. Para tanto, observaremos uma atividade prática realizada

na disciplina Língua Inglesa Aplicada I, em uma universidade pública federal no setor de

formação tecnológica no semestre de 2015.2. Almejando fornecer uma leitura provisória de

tal material, debruçamo-nos sobre os pressupostos teóricos ofertados pelo Letramento Crítico,

fazendo uso de autores tais como Jordão (2013, 2015), Bhabha (1998), Menezes de Souza

(2011), Makoni e Pennycook (2007) e Kumaravadivelu (1994; 2013) de modo a fundamentar

nossa análise, direcionando-a para a agência da professora e de suas alunas. Ao observarmos

o livro didático utilizado (Market Leader), percebemos que o conceito subjacente de língua é

o de língua enquanto sistema de regras gramaticais, e, por mais que se ilustre com situações as

quais o formando poderá entrar em contato em sua profissão, tal objetivo é relegado ao

observarmos o foco da lição e a metodologia imposta pelo livro. Em face deste problema, a

professora rompe com tais imposições e tangencia o objetivo da aprendizagem da língua

centrada na proficiência linguística centrada no falante nativo como modelo de falante ideal

para o entendimento de língua enquanto prática social situada, ou ainda, enquanto discurso

que é construído e significado a partir do outro. O processo de ensino-aprendizagem da

língua, então, passa pela concepção de leitura como a leitura do mundo, da palavra e de si

como textos em constante transformação, possibilitando a construção de sujeitos alunas e

professora agentes em seus processos de significação.

Palavras-chave: Agência. Letramento Crítico. Ensino de Língua Inglesa.

1 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected].

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Introdução

Este relato de experiência tem por objetivo construir entendimentos sobre o processo

de ensino-aprendizagem da língua estrangeira focalizando a agência do professor e do aluno

na perspectiva do letramento crítico. Os entendimentos são construídos a partir de uma

atividade de prática realizada em aulas de língua inglesa na área tecnológica da Universidade

Federal do Paraná, no curso de Secretariado Executivo, no ano de 2015, em um grupo

composto por 15 alunas. A prática foi implementada como alternativa à unidade Careers do

livro didático Market Leader (COTTON; FLAVEY; KENT, 2012, doravante LD), com a

finalidade de desenvolver o aprendizado de inglês na valorização do pensamento crítico e

iniciativas de agenciamento do aluno.

A proposta surgiu da observação em que práticas anteriores com outras unidades do

mesmo LD evidenciaram baixo engajamento das estudantes. Estas reações foram

interpretadas como respostas a contextos que não atraíam ao diálogo no sentido bakhtiniano.

Os pensamentos do círculo de Bakhtin (1997), apontam que as interações nas quais os

sentidos são construídos nos discursos caracterizam-se por espaços de negociação e, como

geralmente acontece em negociações motivadas, às vezes se configuram em algo semelhante a

embates (FARACO, 2003). Estes espaços dialógicos às vezes de certa turbulência são

formados em questionamentos, barganhas, refutação, resistência, aceitação, em processos de

ressignificação do signo – respostas, como nos mostra Bakhtin (1997) ao dizer que reagimos

ao que nos faz sentido. No trabalho com o LD, a insatisfação com relação às respostas que

não correspondiam à esta característica dialógica exigia intervenções de prática.

Deste modo, respondendo à demanda das aprendizes e do contexto, pensamos em um

trabalho baseada em práticas ressignificadas e ressignificantes. Neste relato, organizado a

partir desta Introdução, Fundamentação teórica, Metodologia, Análise e Considerações,

mostraremos o trabalho feito a partir de uma unidade do livro e como este foi percebido pelas

participantes em termos de aprendizagem de língua, construção de conhecimento e agência.

Fundamentando a análise

A unidade do LD substituída apresenta a língua como código, remontando aos

primórdios estruturalistas, e seu aprendizado ocorre sob ações de desvendar a língua a partir

de aprendizados de modelos de grámatica. Canagarajah (2014) e Pennycook (2010) apontam

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que na concepção de Inglês como Língua Internacional e Língua Franca não há como falar da

língua como um conjunto de variedades pré-construídas, mas sim que a língua deve ser

entendida como uma forma de prática. Nesta concepção, a gramática tem sua importância na

sua condição de emergência da prática, não como construção a priori em fundamentos de

proficiência. Segundo Canagarajah (2014), o que garante o sucesso da comunicação não é a

proficiência da gramática, mas sim nossa capacidade de adaptação em negociações das

diversidades de gramáticas em cada interação específica de comunicação.

Neste LD, o aprendizado da língua é dividido na prática das habilidades – skills – nas

quais são constituídos discursos que exaltam o sucesso do mercado econômico liberal: ouvir

uma entrevista com um diretor financeiro de uma companhia de TV, ler sobre como perfis no

Facebook podem prejudicar a imagem para o emprego, fazer contatos ao telefone, decidir

sobre o candidato de sucesso para um emprego (cf. Fig. 1). Estes discursos não possuem

espaço de problematização sobre as forças de poder (FOUCAULT, 2004) que determinam

seus sentidos ideológicos. Antes, as ideologias do colonizador (MAKONI; PENNYCOOK,

2007) são reforçadas em práticas auditivas de língua e de pronúncia em modelos do falante

“nativo”. Segundo Rajagopalan (2003), a ideia de falante nativo foi uma criação que ganhou

visibilidade no modelo de competência desenvolvido por Chomsky, mas não se sustenta nos

questionamentos sobre o que definiria a competência.

Figura 1 - Unidade trabalhada na pesquisa

Fonte: Market Leader (COTTON; FLAVEY; KENT, 2012)

Na concepção de língua na condição de código, a agência do professor e do aluno são

exercidas sob extremo controle. A agência do professor tem seu foco na habilidade em

operacionalizar o código linguístico e o método. Já a agência do aluno, em internalizar

modelos em expectativas de, em algum momento, reproduzi-los em situação real de

comunicação. No caso do LD, o que prevalece é a agência do próprio livro – o facilitador do

aprendizado – que determina o método, posto como universal, e como este deve ser

operacionalizado, com resultados definidos a priori. Kumaravadivelu (1994) ao argumentar

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sobre a desconexão existente entre as teorias de aprendizado e os aspectos práticos da

pedagogia da língua, trata do “pós-método”. O teórico fala sobre a necessidade em se opor às

metodologias prescritivas totalizadoras e sobre os benefícios em considerar as necessidades

de ações de práticas locais de aprendizado.

A unidade do LD pode ser entendida como fundamentada no tipo de letramento

definido por Brian Street (2003) como modelo de letramento autônomo. Neste modelo,

concepções de outras culturas são simplesmente impostas. O letramento é visto como uma

prática neutra. Concepções ideológicas de língua e de realidades culturais se mantém apenas

como experiências de aprendizado, como se não afetassem as formações de identidade dos

aprendizes. Nesta visão de neutralidade, o livro didático privilegia os recortes linguísticos a

serem aprendidos e os aspectos culturais ideológicos em que a língua circula, sem

problematizá-las.

Street (2003) observa que letramento é uma prática social e, portanto, não é

simplesmente uma habilidade técnica e neutra, mas sim uma construção de sentidos. As

formas como as pessoas se relacionam com a leitura e a escrita estão fundamentadas em

concepções de identidade – de ser e estar no mundo. O entendimento de que letramento é

uma prática social e, como tal, define posicionamentos no mundo evidencia que suas práticas

são permeadas por exercícios de agência. As interações do professor e do livro didático com

o aluno se constituem de práticas sociais sempre ideológicas; essas práticas, como aponta

Street (2003), são definidas por relações de poder, que produzem efeitos nos processos de

letramento que vão além do aprendizado de aspectos formais da língua.

Estes efeitos de letramento que vão além do aprendizado dos aspectos formais da

língua a que se refere Street são transformações produzidas pelos discursos – ou pelo mundo e

por nós mesmos lidos como textos em processo de tornar-se em outro (MASNY;

WATERHOUSE, 2011). Masny e Waterhouse (2011) observam que este processo ocorre na

desterritorialização e reterritorialização dos sentidos – os sentidos são desestabilizados para

novamente serem temporariamente acomodados na cadeia do pensamento rizomático

(DELEUZE; GUATTARI, 2005). Com base na metáfora do rizoma, desenvolvida por

Deleuze e Guattari (2005), as autoras teorizam sobre uma perspectiva oposta ao letramento

autônomo observado por Street (2003). Segundo Masny e Waterhouse (2011), a metáfora do

rizoma evidencia que o letramento é um processo de multiplicidades e envolve conexões

livres do pensamento, sem referencial fixo, pré-determinado. Essas conexões podem ser

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provocadas por qualquer coisa que toque os sentidos e a mente: signos orais, visuais, escritos,

multimodais, como também cheiros e gestos que se conectam aos valores culturais,

espirituais, intelectuais produzindo letramento. Tudo isso, aponta ela, pode formar uma cadeia

de eventos que, em ajuntamento – assemblages (MASNY; WATERHOUSE, 2011) pode

gerar significados e ser lida como textos. Nesse processo de leitura, não apenas lemos o

mundo, mas também a nós mesmos como textos e estamos em constante transformação.

Motivadas, então, por esta concepção de leitura que propomos práticas de ensino-

aprendizagem independentes do livro didático. Desejamos com isso provocar leituras na

língua estrangeira – leituras do mundo e de si mesmo como textos.

A prática está baseada no conceito pós-estruturalista de letramento denominado por

Menezes de Souza (2011) como letramento crítico redefinido. O conceito de crítica aqui e

entendido na mesma linha de pensamento de Masny e Waterhouse (2011), de leitura do

mundo e de si mesmo como texto. Menezes de Souza (2011) aponta que a crítica acontece

quando lemos o mundo a partir de entendimentos das razões que produzem nossas

construções de sentidos. Este conceito de crítica estende-se à noção de crítica ideológica, que

direciona leituras com o objetivo de perceber dominações, geralmente opressoras, nos

discursos. A noção de letramento crítico redefinido, aponta Menezes de Souza (2011),

entende que o processo crítico se constrói a partir do “Ler-se lendo”, o que exige a leitura de

nós mesmos na compreensão dos nossos posicionamentos nos contextos sócio-históricos em

que vivemos. Este exercício de leitura nos permite entender porque atribuímos determinado

sentido e não outro às realidades ou aos acontecimentos.

Nesta concepção de letramento, a língua é concebida como discurso no qual os

sentidos são construções sociais e contingentes (JORDÃO, 2015) e rizomáticos. Nestas

interações dialógicas, os significados não estão presos à materialidade da sentença, e, como

apontam Masny e Waterhouse (2011), nem estão presos à materialidade dos textos escritos.

Assim, os discursos devem ser entendidos como enunciações (BAKHTIN, 1997, 2000). Estas

se formam não apenas nas vozes que pronunciam o discurso, mas também e principalmente,

na voz com quem o discurso interage – o ler-se lendo naquilo que é dito e ouvido e também

nas ressonâncias do que não é materializado na linguagem; enfim, nos ajuntamentos –

assemblages – que produzem significados no mundo e em nós mesmos.

Nesta concepção de letramento crítico, as agências do professor e do aluno são

estimuladas nas interações dialógicas, nas produções de sentido dos discursos. A nosso ver,

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este tipo de interação favorece o aprendizado da língua. Nesse entendimento, as atividades de

prática foram negociadas com os alunos. A proposta alternativa à da unidade do LD foi de

subvertê-la completamente. Assim, a opção não foi por trabalhar nas brechas como nos sugere

Duboc (2012), infiltrando práticas de letramento crítico em uma ou outra atividade, em

adaptação ao livro didático, mas sim por substituir toda a unidade.

A prática não foi orientada por nenhuma abordagem teórica metodológica específica.

A intenção foi de que as direções de prática fossem sendo construídas ao longo do trabalho

com a língua, conforme surgiam as demandas locais (KUMARAVADIVELU, 1994, 2013). O

cuidado foi direcionado à concepção de língua enquanto discurso formado na produção de

sentidos. Para tanto, o princípio norteador da prática foi o de negociar sentidos. O cuidado foi

em promover interações dialógicas dos alunos fazendo com que eles tivessem a voz mais alta

nas decisões sobre a prática, no diálogo entre si, com os discursos e consigo mesmos e com a

professora.

Nesta proposta foi considerado que o aprendizado contemporâneo é influenciado por

formações ideológicas globais que afetam as realidades localizadas. Nesse sentido, a prática

teve o objetivo de promover o aprendizado da língua inglesa – uma imposição do mundo

globalizado – considerando seus efeitos sobre a formação profissional de secretariado em uma

instituição no Brasil – uma realidade local. Foi esperado que a prática pudesse contribuir para

o aprendizado da língua estrangeira no exercício de reflexão sobre a profissão e sobre o

processo de aprendizado da língua.

Os alunos refletiram sobre a profissão de secretariado executivo em práticas da língua

inglesa, a partir de uma entrevista autêntica com uma secretária executiva de outro país,

assistida inicialmente com o grande grupo. Como prática multimodal, os alunos produziram

um vídeo no qual eles próprios falam sobre as realidades da profissão no Brasil, relatando

experiências e expectativas. Evitou-se a aula expositiva. Não houve explicação formal de

gramática a priori. O objetivo era que a língua fosse sendo construída, in situ, na formação

dos sentidos. Não houve cobrança em modelos de pronúncia. Nas práticas além da sala de

aula, os alunos produziram de modo independente, sem o auxílio da professora. Os vídeos

produzidos foram assistidos em sala e fizeram parte de um debate sobre a profissão e sobre o

processo de aprendizagem. Como parte da avaliação, os alunos escreveram sobre o processo

do trabalho. Os discursos destas narrativas são aqui tomados para verificar efeitos de agência

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do aluno e da professora nas práticas de letramento crítico redefinido no processo de

aprendizado da língua.

Metodologia

A metodologia empregada na observação do aprendizado é de concepção pós-

estruturalista em rizoanálise (MASNY; WATERHOUSE, 2011). Nesta concepção são

construídas percepções de como as leituras do mundo e de si mesmo na prática da língua

estrangeira poderiam ter produzido transformações. Nesta perspectiva, a metodologia é

desterritorializada e reterritorializada como um processo rizomático, e não segue modelos

convencionais de análise. Com o objetivo de não fixar sentidos, ao invés de afirmar

interpretações, este modo de observação prefere indagar sobre possibilidades. As respostas às

perguntas podem ser formuladas pelo leitor.

Texto 1 - Reflexão sobre atividade – Aluna 1

Fonte: Arquivos pessoais (2015)

Texto 2 - Reflexão sobre atividade – Aluna 2

Fonte: Arquivos pessoais (2015)

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Uma forma de ler e produzir sentidos sobre os textos...

Agência do aluno

As observações da agência do aluno buscam responder às perguntas: Como

construíram conhecimento? Como atribuíram sentidos à atividade? E que indícios de

transformação podem ser atribuídos? Materialmente, organizamos excertos de suas narrativas

por similaridade.

Ao tomar os trechos “I think this presentation was very different, I liked it” (Aluna 1)

e “It was a good experience - along the last years in the course… I did not do “nothing”

similar” (Aluna 2), perguntamos sob que referência seria a diferença mencionada – seria o

livro didático com o qual eles estavam habituados a trabalhar? Foram feitas conexões com

outros aprendizados, da formação profissional e da vida? E se o livro didático faz parte dessas

referências, isso significa que o aluno se sentiu mais motivado para aprender fora do livro

didático?

O contexto – falar sobre si mesmo na profissão – teria provocado motivação? As

afirmações podem ser interpretadas como sinais de interação dialógica? Quem é o ‘outro’ da

cadeia dialógica sobre quem estas revelações de contentamento repousam – apenas a

professora? Ou eles próprios? Bakhtin (1997) aponta que o outro com quem dialogamos pode

ser nós mesmos. Se for este o caso das afirmações, elas poderiam indicar transformações?

Que conexões na cadeia do rizoma teriam sido feitas?

A partir das falas “’this’ is very good to learn more about the language” (Aluna 1) e

“I have “count” with help of my husband / I observed that only the practice brings the

excellence” (Aluna 2), questionamos se a busca pela língua, em websites, dicionários e de

outro (husband) que não fazem parte do grupo de aprendizado poderia ser sinal potencial de

agência? A afirmação das alunas poderia significar que o livro didático produz cerceamento

da agência ao fornecer a priori o instrumento linguístico para as práticas que propõe e por

limitar o espaço dessas práticas? Que padrões de excelência na língua definem as expectativas

das alunas – seriam os modelos de gramática e de pronúncia do livro didático? Poderia ser

que as afirmações são evidências de formação de letramento crítico redefinido – a consciência

sobre o processo de aprendizado poderia ser em exercício de “ler-se lendo”, ou “de ler o

mundo e a si mesmo como texto”? Que valores sócio-históricos em que as participantes estão

inseridas motivam tal esforço para o aprendizado da língua?

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O relato “I had a little bit of shame, but I believe this is normal / It is funny listen _ me

speaking English, is different” (Aluna 1) nos permite indagar que formações identitárias

estariam sendo construídas – que estavam se tornando em outro? Que conexões na cadeia

rizomática poderiam ter desencadeado estas emoções? Poderia ter havido embates dialógicos

em questionamentos, refutação à língua estrangeira?

Considerando as afirmações “After the presentation I noticed a big improvement in my

pronunciation. I’m happy and more presentation would be very nice” (Aluna 1) podemos

inferir que o fato de se ouvir falando inglês pode ter aumentado a consciência linguística e

motivado a prática? A aluna já teria modelos de pronúncia estabelecidos? Seriam esses

modelos os que circulam nas atividades do livro didático às quais ela era frequentemente

exposta? A afirmação de que está feliz com a prática e de que gostaria que esta continuasse

pode ser evidência de que a aluna está pronta para mais agenciamento do que as aulas de

inglês normalmente proporcionam?

Agência do professor

Intentando construir uma leitura possível dos dados gerados no contexto de educação

técnica supramencionado, apoiar-nos-emos nos conceitos de agência (JORDÃO, 2013; 2015,

BHABHA, 1998) e de língua (MAKONI; PENNYCOOK, 2007) propostos e ressignificados

por autores inscritos em estudos de viés pós-colonial e pós-estruturalista por acreditarmos que

abrem espaço para uma discussão localizada na fronteira, em um espaço híbrido, de

constantes transformações, evitando assim a fixação de qualquer sentido ou interpretação.

A partir de uma leitura pós-colonial, não-materialista da linguagem, entendemos que

língua é uma construção social, uma invenção de movimentos políticos, culturais e sociais

(MAKONI; PENNYCOOK, 2007), portanto criada e ressignificada a partir de sua utilização

por falantes. Assentadas ainda numa visão pós-estruturalista, tomando a língua como discurso

(JORDÃO, 2013, 2015), poderíamos afirmar que a professora desafiou o status quo da língua

inglesa enquanto commodity e enquanto língua internacional, capaz de garantir o sucesso do

estudante que dela se utiliza? Teria ela instigado suas alunas a desconstruírem o aprendizado

da língua estrangeira como estrutura a fim de construir sentidos a partir da necessidade da

utilização da língua, assim, como uma prática social situada e significada por seus falantes?

Ao se recusar fazer uso do livro didático com uma proposta engessada para o ensino da

gramática, podemos entender tal atitude enquanto de resistência e transformadora?

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Quando da elaboração da atividade, da abertura para a escolha do formato de

apresentação desta (vídeo) pelas aprendizes e da tomada de posição da professora enquanto

co-construtora (sem fornecer explicações gramaticais a priori) ao invés de transmissora, teria

ela proposto uma nova forma de ver o objeto, seja este a concepção de língua ou o próprio

processo de aprendizagem da língua em si? Teria ela desafiado as interpretações naturalizadas

do que se pode entender como o papel da professora e de como a língua inglesa se insere no

contexto da profissão de secretária?

Em vez de trabalhar os verbos modais, viu-se a gramática como emergente, dentro do

discurso? Ou seu ensino foi relegado por não apresentar relevância naquele contexto? A

língua inglesa foi utilizada/significada a partir de necessidade dos falantes ou a partir do que o

LD propunha? Com esta atitude problematizadora e rizomática, a língua inglesa deixou de ser

estrangeira para aquelas aprendizes a partir da apropriação do discurso do outro?

Finalmente, cabe-nos utilizar as provocações de Jordão (2015) quando nos questiona

quais as teorias de prática que a professora construiu levando em consideração suas

experiências, suas aprendizes, suas próprias experiências e teorias enquanto aluna e

professora, e o LD? Que entendimentos de sala de aula a professora construiu? E ainda quais

são as implicações desses entendimentos e teorias para o processo de ensino e aprendizagem

de língua inglesa e para a identidade profissional desta professora?

Algumas considerações

Ao longo deste relato, problematizamos os conceitos de língua e de agência do aluno e

do professor dentro de uma perspectiva mais tradicional (letramento autônomo) e de uma

perspectiva que não desconsidera o papel do social ou da ideologia e do poder que atravessam

a prática de letramento, a urgência dos sentidos, nem tampouco a emergência das crises,

imprevisibilidades e dissenso como constitutivos do processo de construção de sentidos

(letramento ideológico). Para tanto, olhamos para nossos dados numa atitude

problematizadora – entendendo a impossibilidade da neutralidade na pesquisa e da existência

de sentidos fixos e completos – e localizada, almejando fornecer leituras possíveis da

atividade realizada em sala de aula.

Percebemos, deste modo, tanto as ações das alunas como as da professora como de

agenciamento porque fundamentadas, principalmente, pela negociação, rupturas,

questionamentos e produções de significação locais e contingentes. As alunas sobre o seu

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processo de aprendizagem da língua, por um lado, porque lançaram mão de estratégias para

realizarem o trabalho, buscaram em outras fontes vocabulário, gramática e outros aspectos

formais da língua. A partir de sua necessidade, mobilizaram saberes e conhecimentos de

outras disciplinas, de dentro e de fora da academia, trabalharam colaborativamente com

colegas, esposo e professora e organizaram a partir do encontro consigo mesmas e com o

outro um produto para a avaliação da disciplina. Por outro lado, a professora por ter entrado

em sala de aula com vistas a entender o que lá acontecia, levando em consideração as

dificuldades e as potencialidades das alunas, despojada de pré-conceitos e fórmulas fixas para

o ensino e a aprendizagem da sua disciplina. Outro fato que merece destaque é a escolha

consciente de não trabalhar a língua a partir da gramática (um posicionamento social, político

e ideológico) para propiciar seu entendimento enquanto discurso, promovendo uma ruptura

com o livro didático, de modo que suas alunas se instrumentalizaram e agiram com, na e pela

língua.

Tendo em vista os posicionamentos aqui adotados, ousamos momentânea e

provisoriamente afirmar que há a negociação de sentidos em sala de aula, atitude que

proporciona espaços para um pensamento rizomático, nos termos de Masny e Waterhouse

(2011). Consequentemente, uma prática docente pautada no letramento crítico, em atitudes de

contestação e problematização constantes pode ir ao encontro das necessidades de tantas

outras salas de aula que compreendam o processo de ensino-aprendizagem como

constitutivamente em crise e em movimento. A leitura e os questionamentos ofertados neste

relato são apenas uma das múltiplas que podem ser construídas pelos leitores, que, a cada

nova leitura construirão outros entendimentos por não mais serem os mesmos, por serem seres

em transformação.

REFERÊNCIAS

BAKHTN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas

fundamentais de método sociológico na ciência da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec,

1997.

_____. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BHABHA, H. K. O local da cultura. (Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima

Reis, Gláucia Renato Gonçalves) Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

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CANAGARAJAH, S. In Search of a New Paradigm for Teaching English as an International

Language. TESOL, v. 5, n. 4, December, p. 767-785, 2014.

COTTON, D. FLAVEY D., KENT S. Market leader: Business English Course Book. Pre-

Intermediate. 2nd ed. United Kingdom: Pearson, 2012.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. A thousand plateaus: Capitalism and Schizophrenia.

(Traduzido por Brian Massumi). University of Minnesota Press: Minneapolis. London, 2005.

DUBOC, A. P. M. Atitude curricular: letramento crítico nas brechas da formação do

professor de inglês. 2012. 258f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo, São

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