o cha nº 10

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Número 10 - 2ª série | Ano 2 - Abril/Maio 2014 | Director: Jacques Arlindo dos Santos | Kz. 200,00 | 1,60 1927-2014 Sobre “Gabo”, a entrevista a Plinio Apuleyo de Mendonça e análises de José Gonçalves e José Eduardo Agualusa “Orações de Mansata” levam à interdição do Nacional Cine-Teatro Pgs. 7-10 Pg. 6 “A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la” Gabriel Garcia Marquez

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Detalhe de algumas informações noticiosas sobre angola.

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Page 1: O CHA Nº 10

Número 10 - 2ª série | Ano 2 - Abril/Maio 2014 | Director: Jacques Arlindo dos Santos | Kz. 200,00 | € 1,60

1927-2014

Sobre “Gabo”, a entrevista a Plinio Apuleyo de Mendonça

e análises de José Gonçalves e

José Eduardo Agualusa

“Orações de Mansata” levam à interdição do Nacional Cine-Teatro

Pgs. 7-10

Pg. 6

“A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la”

Gabriel Garcia Marquez

Page 2: O CHA Nº 10

rou mostrar um pouco da biografia de Sebastião Salgado, vivências em 40 anos de trabalho, as experiências que fizeram do fotógrafo brasileiro o excelente profissional e humanista que hoje conhecemos.

de escravos (2004). Também é autor de livros infanto-juvenis, como Um passeio pela África (2006) e A África explicada aos meus filhos (2008). Em 2009, publicou O quadrado amarelo, que reúne textos sobre arte e literatu-ra, cruzando referências populares e eruditas, recorrendo à memória e às suas experiências de viagem. Além dos Poemas reunidos (2000), publi-cou dois volumes de memórias, Es-pelho do Príncipe (1994) e Invenção do desenho (2007). Alberto da Costa e Silva acumulou ao longo da vida várias distinções e prémios, a que se junta agora o Prémio Camões, o mais importante da criação literária em língua portuguesa.

co, Jorge Melícias, Manuel Daniel, Nok Nogueira e José Carlos Venâncio.

O programa do Festival contou ainda com diferentes debates e mesas redondas, sobre temáticas ligadas à poesia dos dois países. Foram apresentados os autores da Editora Nóssomos, representada

por Luandino Vieira.

Historiador, memorialista, ensaís-ta, poeta e diplomata de carreira, Alberto da Costa e Silva foi distin-guido por unanimidade, pelo júri do Prémio Camões, Affonso Romano de Sant’Anna, do Brasil e presidente do júri, também do Brasil o escritor Antonio Carlos Secchin, o escritor moçambicano Mia Couto, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, e de Portugal Rita Marnoto, professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e José Car-los Vasconcelos, director do JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias.

Especialista em África, Alberto da Costa e Silva, foi considerado por Agualusa “Um brasileiro que é tam-bém africano”, já Mia Couto diz que Alberto da Costa e Silva no trabalho que tem publicado “resgata a memó-ria de África com arte e elegância”.

O premiado nasceu em São Paulo em 1931 e é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicou diversos livros sobre África, como A enxada e a Lança (1992), A manilha e o libam-bo (2002), Um Rio chamado (2003) e Francisco Félix de Souza, mercador

Chama-se The Salt of the Earth/O Sal da Terra e foi realizado pelo mundialmente conhecido realizador alemão Wim Wenders e por Juliano Ribeiro Salgado, filho do fotógrafo brasileiro, premiado Sebastião Sal-gado. Apresentado no Festival de cine-ma de Cannes, na secção Un Certain Regard o documentário foi ovaciona-do pelo público por vários minutos e premiado pelo júri. Wim Wenders, apaixonado há cerca de 20 anos pelo trabalho do fotógrafo, procu-

Conhecido nos anos 60 por temas como “Deixa isso para lá” e “Dispa-rada”, Jair Rodrigues era também um artista de grande versatilida-de indo ao encontro das diferentes áreas musicais como o rap, samba, MPB, bossa nova e o sertanejo. Uma das artistas com quem trabalhou

Escritor brasileiro Alberto da Costa e Silva é Prémio Camões 2014

Durante três dias, Foz Côa foi o lu-gar escolhido para este encontro que se preencheu de poesia e também de música. Foram vários os recitais de poesia evocando vozes de Angola e de Portugal, para além da participação de uma série de autores e investigadores como David Capelenguela, Gociante Patissa, Zetho Cunha Gonçalves, Au-relino Costa, Maria Estela Guedes, Es-tevo Creus, Fernando de Castro Bran-

Organizada pelas Representações Diplomáticas do Grupo africano na Suécia e sob o lema “O Ano Africano da Agricultura e Segurança Alimentar“, o Dia de África animou-se com várias actividades culturais (moda, música e gastronomia) representativas dos vá-rios países do continente.

Angola esteve presente mostrando os trajes típicos do país, trazendo a provar os melhores quitutes da terra, a muamba e o mufete. A representação oficial esteve a cargo de Brito Sozinho, embaixador ex-

Realizou-se em Portugal o Festival de Poesia Portuguesa e Angolana

Angola nos festejos do Dia de África na Suécia

Cantor brasileiro Jair Rodrigues morre aos 75 anos Documentário sobre o fotógrafo Sebastião Salgado, aplaudido de pé em Cannes, leva prémio especial

traordinário e plenipotenciário da Repú-blica de Angola nos Países Nórdicos e Es-tados Bálticos que juntamente com vários diplomatas, funcionários e representantes da Associação da Comunidade Angola-na na Suécia, e diversas entidades suecas, embaixadores, pesquisadores, jornalistas e artistas se juntaram às comemorações.

durante alguns anos foi Elis Regina, relação que levou à edição de três volumes de “Dois na Bossa”. Jair Ro-drigues preparava-se para promo-ver o seu mais recente trabalho dis-cográfico “Samba mesmo”, quando a morte o surpreendeu na sua casa em Cotia (São Paulo).

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O destaque das comemorações foi a realização de um seminário sobre Segu-rança Alimentar e Nutricional em África, com vários oradores nomeadamente o secretário de Estado do Ministério da Agri-cultura da Suécia, Magnus Kindbom.

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2 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|NOTAS DE CULTURA

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Gabo-me de ter potenciado ao longo dos anos e por motivos

justificados, uma razoável capaci-dade de desconfiança em relação a alguns semelhantes. De facto, aprender a não ser surpreendido, quer seja por palavras, quer por actos, condutas ou atitudes de certas pessoas, principalmente daquelas que, por razão ou cir-cunstância, me tenham obrigado a vê-las como modelos de com-portamentos e posturas dignos de serem exemplos, é um gesto consciente e assumido, fazendo, hoje em dia, parte do meu catá-logo de cuidados a ter com os ou-tros. Estou a utilizá-lo mais agora nesta fase de maturação da minha vida, antes do ou quando chega o momento próprio, dependendo da questão que esteja em causa, e confesso que me sinto reconfor-tado ao reconhecer que, de facto, vou, nessa área, desenvolvendo algumas capacidades antigamen-te negligenciadas.

Não posso nem quero com isto dizer que deixei de acreditar nas pessoas e passei a julgá-las todas por igual. Longe de mim tal ideia, até porque de entre os inúmeros privilégios que esta vida me tem proporcionado conta-se o de ter adquirido, à custa de alguns de-saires, a aptidão de entender que morremos por estar vivos e que nos faz muito bem reconhecer o valor de um sorriso, ainda que im-perfeito, em certas horas extremas, mesmo que tenhamos que nos re-colocar dramaticamente perante o mistério que sempre constituiu o fenómeno dos comportamentos humanos.

Que estejam pois descansados os meus leais e verdadeiros ami-gos, conselheiros de muitas oca-siões, os que me habituaram a perceber que a verdade está aci-ma de qualquer interesse e que as afirmações produzidas e vei-culadas por sentimentos obscu-ros, mais cedo ou mais tarde, são facilmente desmontadas. Estejam descansados, pois mesmo admi-tindo que hoje, a verdade de uns quantos confrontada com a nossa, se revelar tão inconciliável, não tenho outra opção que não seja a de continuar a acreditar na hones-tidade do ser humano.

É fácil deduzir na leitura, que este texto dá forma diferente à minha tarefa editorialista, não me perguntem porquê. Na verdade, gostaria de ter dado a este edito-rial substancial parcela do espaço a Gabriel Garcia Marquez, o ce-lebrado escritor colombiano que contou aos incrédulos de todo o mundo a verdadeira história da Mamã Grande, a cujos funerais esteve presente o Sumo Pontífice,

EDITORIALJACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Manuel Alegre,«O Canto e as Armas», (1967) in Manuel Alegre. Trinta anos de poesia,Publicações D. Quixote. Lisboa, 1995.

Vai-se o cantovão-se as armas

Não sei se as pedras andam Mas o meu país é pedra e anda. Desloca-se. Foge. Pula ribeiros nas pernas do povo. Salta fronteiras nas minhas pernas. Rasteja. Nada. Esconde-se. Atravessa montanhas. Desaparece. Disfarça-se. O meu país deixou de ser país. É qualquer coisa que caminha. Que se procura. Saudade de ser Pátria. País em movimento. País sem chão. Assim cortado pela raiz o meu país é feito de dois países: um é dono o outro não. Fica o dono e vai-se o outro. O que se fica tem tudo o que se vai nada tem: nem terra para ficar nem licença para ir.O meu país não é dono. Não tem licença de nada. País clandestino. Pedra ambulante. Chão que sangra. Que caminha. Pula ribeiros. Corre. Derrama-se. E vai-se com ele a força a guitarra a pena a foice. Vai-se o canto. Vão-se as armas.

POEMÁRIO

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e soube, como nenhum outro, no laureado “Cem anos de Solidão”, através duma ficção extraordiná-ria, criar a aldeia de Macondo si-tuada algures na América Latina e inventar a história dramática da família Buendia, uma família de loucos, como foram considerados, desde os tempos primórdios de José Arcadio ao último da linha-gem, o Aureliano, um período que contou sempre com a presença da centenária Ursula, a matriarca. A nossa homenagem ao velho Gabo nesta altura que o mundo o perde, está singelamente marcada nos trabalhos que integram as páginas deste número de “O Chá”.

Chamo a atenção aos eventuais incrédulos leitores angolanos bem assim aos do restante espaço lu-sófono para as palavras alheias de João Melo e José Mena Abrantes aqui reproduzidas, numa opor-tuna abordagem aos motivos que levaram à interdição da sala de es-pectáculos do Nacional Cine-Tea-tro. Sobre esta matéria, enquanto não conseguir inventar, à moda de Gabo, argumentos que me façam viver outras realidades, terei de me contentar a alimentar a certeza de que, ao contrário do que alguns espertos pensam, o país precisa de todas as pessoas. Terei também de aprender a embalar a fragilida-de, a dos outros e a nossa própria, ajudar cada um a reencontrar-se com as coisas e com as memórias certas, a não desesperar, porque sempre ouvi dizer que à beira do fim há sempre muita coisa que co-meça.

Luanda, 27 de Maio de 2014

3*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| POEMÁRIO / EDITORIAL

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e modos da conjugação dos verbos e seu funcionamento na língua, para além da articulação frásica desconexa e a incons-ciente ligação preposicional.

Desenha-se um sujeito que quer dizer uma coisa e diz outra completamente diferente. Não se faz entender naquilo que diz ou não compreende o que lê porque não consegue filtrar as ideias importantes nem sabe orga-nizar as suas informações de forma lógica e coerente.

Saber Português esclarece que o uso da norma culta é um critério que não se restrin-ge apenas à correcção gramatical mas tam-bém à propriedade de termos e/ou proprie-dade lexical.

É importante referir desde já que não inte-ressa tanto a mecanização de regras mas a sua compreensão e utilização adequada.

Saber Português não pretende elaborar propostas de solução e mostra respeito pela diversidade sócio cultural mas acha útil des-pertar a consciência individual para algumas deficiências que vai apontando, que existem na fala comum e que já vão sendo recorrentes. É incrível a utilização do conector “do qual” como articulador de frase, produzindo ideias desconexas. Quem estiver atento a discursos, entrevistas e às diversas intervenções pode comprovar que o uso dos termos “no qual” ou “do qual” é surpreendente! Mas existem mui-tos mais casos da utilização desadequada das palavras da língua.

SABER PORTUGUÊSLuisa Dolbeth

S aber Português vai retomar a questão da alteração da pronúncia relaciona-da com a consoante muda “c”. Para

além do fechamento da vogal que antece-de a consoante muda e que se agrava caso seja retirada, pronunciando-se /setor/ e não /sétor/, aparece a tendência para a vocalização do “c”. Exemplos: a pronúncia de /dirétor, diréto/ tem mudado para /di-reitor, direito/, para as palavras “director” e “directo”. É o caso de “direitor de gabine-te”, “o meu primo direito”, etc. Também se regista o fenómeno de nasalação a subs-tituir o “c”, como por exemplo o caso de /inspenção/ em vez de /inspéção/ relativa-mente à palavra “inspecção”.

Estes fenómenos linguísticos ficarão na-turalmente para estudos mais aprofunda-dos, não nos competindo agora explicá-los, mas Saber Português tem registado algumas tendências actuais no uso da lín-gua portuguesa e vai apresentá-las como “apanhados” de modo a comentar esses desvios à norma culta e explicar o que se-ria “correcto” de acordo com as regras gra-maticais.

O que está a acontecer? Como se está a faltar? As pessoas não dominam os vários me-

canismos sintácticos nem sabem como utilizar adequadamente os sinais de pon-tuação, as formas de concordância verbal, nominal e pronominal, as referências pes-soais, espaciais ou temporais, os aspectos

Propriedade: Editora e Livraria Chá de Caxinde, SARL • Registo: 191/B/97 • Contribuinte: 0.130.210/00 • Editor: João Armando Neves • Director: Jacques Arlindo dos Santos • Produção: Paula Nhone • Redacção e revisão:

José de Almeida e Silva, Maria Sá Fernandes e Paula Nhone • Administração: Bernardino António • Concepção Gráfica: Rodrigo Moreira • Impressão: Publicações, Ciência e Vida, Lda. • • Tiragem: 5.000 exemplares

Fotografia: Sidimbali Vaz Neto • Publicidade: Cristina Garcez • Colaboradores: Adolfo Maria, Luisa Dolbeth, Luis Alberto Ferreira, Maria Sá Fernandes, Isabel Fontes, José Carlos Venâncio, Jacques Arlindo dos Santos,

•Morada: Avenida do 1º. Congresso do MPLA, nº. 20/24 - Luanda Telefax: 222322876 E-mail: [email protected]

FICHA TÉCNICA

•Paula Nhone, Sérgio Piçarra, Carlos Duarte, António Quino, Mena Abrantes, João Melo, José Gonçalves, Leonor Figueiredo, Maria Manuela Araújo

Vamos então a esses APANHADOS!

1. Muitos dissabores que na qual tem trazido muitas preocupações à polícia…

2. Por outro lado há o atendimento ao cliente que na qual não é a melhor…

3. A dança é importante em termos físicos e psicológico, no qual a dança ajuda muito…

4. …correspondam aos planos para o qual es-sas instituições foram criadas…

5. Nós estamos a trabalhar no desenvolvimen-to desses produtos da qual visa vender esses produtos, a banana está podre…

6. Uma organização não governamental, da qual quero prestar a minha homenagem à Sra…que apoiou muito o projecto…

7. Lancei esta música e na qual estou a dar os primeiros passos…

8. Houve um encontro que nós fizemos com a direcção da Federação na qual nós pedimos para apoiar…

9. O agente de trânsito na qual deve fazer a in-terpelação ao condutor…

10. Há a inspenção e a polícia que na qual tra-balhar deve fazer a identificação…

Bem, e por agora vamos ficar por aqui.O que é que está errado?

Continua no próximo número!

4 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|LÍNGUA

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5*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| HISTÓRIA

O suíço Ferdinand de Saussure (1857/1913) é um dos nomes mais sonantes da linguística moder-na. O seu Cours de Linguistique Générale (CLG),

publicado após a sua morte em 1916, sob responsabili-dade de dois de seus discípulos, Charles Bally e Albert Sechehaye, apresenta-nos testemunhos de como po-demos encarar a coabitação linguística como um factor de compreensão do próximo, mesmo sendo aparente-mente diferente devido ao seu código linguístico.

O instrumento que é utilizado para separar, convencio-nalmente, povos e línguas é o espaço geográfico. Teorica-mente, cada povo ou língua possui o seu território, pois, como clarificou Ferdinand de Saussure, tantos são os terri-tórios quantas são as línguas. O mesmo autor defende que, “para a linguística, a diversidade geográfica tem um papel importantíssimo. Foi a primeira verificação que se fez em linguística; ela determinou a forma inicial de investigação científica em matéria de língua”.

É sabido que a supracitada diversidade é, na maior parte dos casos, meramente teórica devido aos traços semelhan-

tes que muitos grupos étnicos apresentam entre si, tor-nando-se difícil afirmar, com segurança, onde começa o território de uma língua e onde termina o de outra. Aliás, as línguas não têm limites geográficos. Por isso, defendemos que as divisões territoriais, que se estabelecem para separar comunidades linguísticas, só podem ser convencionais.

É frequente a relação entre membros de comunidades linguísticas aparentemente diferentes. Durante a coabi-tação, as suas línguas entram em contacto aligeirando diferenças e permitindo a constatação de analogias. E isso mesmo foi também observado por Ferdinand de Saussu-re, um dos fundadores da linguística moderna.

Segundo Saussure, “depois de termos verificado que dois idiomas são diferentes, somos instintivamente levados a descobrir as analogias. É a tendência natural dos sujeitos falantes. Os camponeses gostam de comparar o seu falar com o da aldeia vizinha”.

E o autor diz mais: “A observação científica das analogias per-mite afirmar, em alguns casos, que dois ou vários idiomas estão unidos por um laço comum de parentesco, isto é, têm uma ori-

gem comum. Um grupo de línguas nestas condições chama-se uma família; a linguística moderna tem, sucessivamente, reconhecido famílias indo-europeias, semítica, bantu, etc.”.

No entanto, mesmo entre as línguas da mesma família, existem diferenças, afinal cada língua tem a sua própria es-truturação e a dinâmica activada pelos seus utentes e o seu poder evolutivo eliminam as barreiras da estabilidade. Mas, é nas línguas de famílias diferentes e, por isso, com estruturas diferentes, em que o contacto linguístico provoca um maior número de situações imprevisíveis. Nisso, é salutar o facto de, apesar de não haver consenso sobre a política linguística a utilizar, em muitos espaços geográficos, as línguas chegarem a coabitar harmoniosamente de forma “quase” natural.

Voltando a citar Saussure, “na África do Sul, ao lado de vá-rios dialectos negros, verificamos a presença do holandês e do inglês, resultado de duas colonizações sucessivas; este fenómeno é paralelo à implantação do espanhol no Méxi-co ou do português no Brasil, uma repetição de ocupações linguísticas tão velhas quanto às sociedades”.

Ou seja, Ferdinand de Saussure lembra que “em todos os tempos se viram as Nações a misturar-se umas com as ou-tras sem confundirem os seus idiomas. (...) Na Irlanda fala-se celta e inglês; muitos irlandeses falam as duas línguas. Na re-gião basca utiliza-se o francês e o espanhol ao mesmo tempo que o basco. Na Finlândia, o sueco e o finlandês coexistem há bastante tempo, e recentemente juntou-se-lhes o russo”.

Resumidamente, Saussure defende que a coabita-ção entre línguas faz parte da história linguística e social da maioria das comunidades, visto que a de-limitação política das fronteiras raramente coinci-de com as fronteiras linguísticas.

ZWELANDO PARA UNIRAntónio Quino

Coabitação linguísticapor Saussure

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Três horas antes da estreia em Luanda da peça do dramaturgo bissau-gui-

neense Abdulai Sila “As orações de Man-sata”, prevista para a noite de sexta-feira no cine Nacional, em Luanda, a ministra an-golana da cultura, Rosa Cruz e Silva, proi-biu a sua exibição, alegando não existirem “condições de segurança para o uso públi-co daquele lugar, pois persistem os riscos, nomeadamente de derrocada do tecto”.

A Chá de Caxinde, confrontada com rumores segundo os quais a peça seria interdita, informou o ministério da Cul-tura que tinha feito diligências para evitar qualquer acidente.

Com efeito, um relatório apresentado em Março deste ano ao ministério da cultura de Angola pela construtora portu-guesa Teixeira Duarte recomendava o res-tauro integrado de toda a infraestrutura do Cine Nacional, o único teatro de estilo “italiano” existente na Africa subsariana, devido a problemas de estabilidade do edifício, bem como na cobertura do tecto e também no palco.

Contudo, de Março até agora, conti-nuaram a ser realizadas actividades cul-turais no referido espaço, sem qualquer proibição por parte do ministério da cultura. A última foi o ato alusivo aos 40

anos do 25 de Abril (data da chamada Re-volução dos Cravos em Portugal) em An-gola. De igual modo, os funcionários da associação cultural Chá de Caxinde, que administra o Cine Nacional, continuam a trabalhar normalmente, não tendo rece-bido qualquer aviso sobre o alegado peri-go que correm. Os dois restaurantes exis-tentes no teatro também não deixaram de funcionar. Os próprios atores da peça tem ensaiado no local desde segunda-feira desta semana.

Na quinta-feira, a chá de Caxinde, con-frontada com rumores segundo os quais a peça seria interdita, “por razões técnicas”,

informou o ministério da cultura que ti-nha feito as diligências necessárias para evitar qualquer acidente, nomeadamente junto do corpo de Bombeiros e da Poli-cia Nacional. Não obstante, a ministra da cultura confirmou na tarde de sexta-feira, em carta oficial, a proibição da exibição da peça de Abdulai Sila, por aquelas razoes.

De notar que desde que arrendou o Cine Nacional, há vinte anos, a Chá de Caxinde, presidida pelo escritor JACQUES dos Santos, tem tentado conseguir o apoio de diferentes entidades.

João Meloin “Africa 21”

Ministra angolana da Cultura interdita peça de autor guineense

Sobre o assunto que ocupou algum tempo consideráveis espaços nas redes sociais interessadas na cultura angolana, decidimos, depois de obtidas as devidas autorizações dos seus autores, dar à estampa os artigos subscritos por José Mena Abrantes, Director do Elinga Teatro e de João Melo, poeta, escritor e director da Revista África 21. Sem qualquer comentário de nossa parte.

Na passada semana, um espectáculo teatral previsto para ser apresenta-

do em Luanda há mais de ano e meio foi cancelado por ordem do Ministério da Cultura, por, alegadamente, a sala do Tea-tro Nacional/Chá de Caxinde não oferecer garantias de segurança para os actores, téc-nicos e espectadores.

Apesar de ser conhecido que a sala sofria de problemas estruturais, comprovados com um relatório da construtora encarre-gada de os resolver, nada pode explicar que a interdição tenha surgido três horas ape-nas antes do início do espectáculo, quando o local de representação constava dos con-vites enviados com a devida antecedência e o Jornal de Angola dera com relevo essa informação dois dias antes da estreia.

Também não se compreende que te-nha sido invocado desconhecimento oficial para o facto de se terem reiniciado normalmente as actividades nesse teatro, depois da primeira reparação das fissuras na parede do fundo do palco, e quando já estava mesmo publicamente anunciada uma extensa programação nesse espaço para os próximos meses.

São essas as razões que explicam que o caso tenha sido imediatamente empolado e se tenha transformado, sobretudo nas redes sociais, numa denúncia de censura política por causa do conteúdo da peça a apresentar, uma reinvenção por um autor guineense de um clássico universal (Ma-cbeth, de William Shakespeare) adaptado à realidade do seu país.

Os esforços feitos à última da hora pelo Ministério da Cultura para reparar o dano

causado, comprometendo-se pelo arranjo de um espaço alternativo e pela perma-nência do grupo em Angola, esbarraram no facto deste ser constituído por mais de vinte pessoas de seis países diferentes, que haviam harmonizado com dificuldade as suas agendas para se encontrarem nesta data em Luanda, e ter a seguir outros com-promissos profissionais.

Assim sendo, frustrou-se o seu propósi-to de mostrarem o seu trabalho de longos meses exactamente no país onde esse pro-jecto multi-nacional apoiado pela União Europeia teve o seu início, com o aval e a presença da própria Ministra da Cultura. Cabe perguntar: é ou não mesmo vontade de pôr Angola a andar nas bocas do mun-do por razões negativas?

O Ministério da Cultura anunciou agora em nota de imprensa que “vai desencadear os mecanismos necessários para apurar as responsabilidades sobre os constrangi-mentos criados à imagem do país, assim como dar sequência ao processo de requa-lificação do imóvel”. Depois do leite derra-mado, alguém acredita que ele volte a en-trar no recipiente em que foi posto no fogo?

Mas o mal-estar teatral não se reduz a este caso. O teatro em Angola encontra-se numa encruzilhada decisiva. Proliferam os grupos teatrais, tanto na capital como nas principais cidades do país, mas continua a faltar, a todos os níveis, uma mínima forma-ção especializada. Não se ensina teatro nas escolas, institutos ou universidades nem há cursos vocacionados para formar drama-turgos, encenadores, actores, cenógrafos, técnicos de luz e de som, figurinistas, etc.

Cada grupo, de acordo com a maior ou menor capacidade dos recursos humanos de que dispõe, improvisa e vai tentando fazer o melhor que pode, beneficiando ocasionalmente de ‘workshops’ aquando de deslocações ao exterior ou de estágios orientados por alguém mais informado de passagem por estas paragens.

É certo que existe uma escola de actua-ção teatral de nível médio, tutelada pelo Ministério da Cultura, mas poucos são os integrantes dos diversos grupos teatrais que passaram por ela. Assim, todo o mun-do vai sendo formado no interior dos pró-prios grupos, aprendendo enquanto faz. A agravar a situação praticamente todos os grupos são amadores, quase sempre ligados a igrejas, escolas ou empresas, não dispondo de infra-estruturas, de meios técnicos ou de recursos financeiros e de-pendendo sempre de patrocínios e apoios pontuais.

Não existe no país uma companhia que possa realmente ser considerada profis-sional, com uma estrutura técnico-admi-nistrativa funcional e com espaço próprio e repertório regular, capaz de revelar e promover o teatro nacional e de nos dar a conhecer as grandes obras da dramaturgia universal. Não existem salas de teatro nem locais de representação com as mínimas condições técnicas, para quem representa, e de comodidade, para quem assiste.

O panorama só não é desolador porque milhares de jovens se dedicam com afinco a fazer teatro, passando por cima de todos os obstáculos referidos. Animador é tam-bém o facto de haver nas obras de quase

todos eles (talvez por influência das insti-tuições religiosas ou escolares a que estão ligados) uma preocupação sincera com a defesa dos valores morais e dos laços fa-miliares; com o combate à delinquência juvenil, à violência doméstica, à droga e outros vícios e males sociais; com o alerta em relação aos perigos do sexo não prote-gido, desde a gravidez precoce à contrac-ção da AIDS; com a denúncia de situações de injustiça e de manipulação da boa fé ou ignorância das populações ou do aprovei-tamento oportunista de certas tradições para proveito próprio.

Na encruzilhada em que se encontra o teatro angolano, falta dar o salto qualita-tivo que só as autoridades do país podem proporcionar, criando as condições para o efeito. A recuperação do Teatro Nacional/Chá de Caxinde claro que é bem-vinda. Mas que tal começar-se a pensar na ideia de construir por todo o país salas de es-pectáculo a sério? Bastaria, para tal, seguir o exemplo de algumas seitas religiosas de má fama e muito proveito.

A agravar o mal-estar teatral está tam-bém o facto de continuar indefinida a situação das instalações do Elinga-Tea-tro, que tem dado infelizmente azo a que certos indivíduos tentem assumir em pú-blico um protagonismo que a sua prática negativa anterior em nada justifica. Assim, só a discreta celebração do 26º aniversário do grupo, cumprido no passado dia 21 de Maio, pôde servir aos seus integrantes de modesta consolação.

José Mena Abrantes24.05.2014

Mal-estar Teatral

Ministério da Cultura interdita sala de espectáculos do Nacional Cine-Teatro

6 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|CHAZADAS :: 25 ANOS

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prémios, incluindo o Nobel da Literatura, em 1982. Desde aí, Gabriel viveu da escrita, trabalhando, de forma disciplinada e rigorosa e assumindo a res-ponsabilidade de ser lido por milhões.

Ao escritor colombiano desagradavam alguns as-pectos da fama que os seus livros, sobretudo Cem Anos de Solidão, representaram e que impediu que circulasse à vontade. Era um homem que não que-ria assumir-se como intelectual. Gostava de fazer compras com a mulher, Mercedes, e mesmo quan-do estava em grandes capitais da cultura, não tinha qualquer necessidade de ver museus e passear nos parques. Às vezes, cansava-se de ser Gabriel, o es-critor. “O livro mudou-me a vida. A diferença en-tre antes e depois é sempre de 400 pessoas a mais, Antes tinha os meus amigos, agora há além deles uma enorme quantidade de gente que me quer ver, quer falar comigo, jornalistas, professores univer-sitários, leitores. Gostaria de estar com todos mas como não é possível tenho que ir gerindo. E chega a um ponto em que digo mentiras. Estou mesmo far-to do Garcia Márquez!”

Gabriel Garcia Marquez não gostava de ser entre-vistado nem que as suas palavras ficassem regista-das num gravador. Há relatos de entrevistas que se concretizaram após longas perseguições e, algumas mesmo, não presenciais, através de questionários enviados previamente. Dizia que estava cansado de dizer as mesmas coisas, da mesma forma, e que tomara consciência que, por vezes, tentava dar res-postas que não eram necessariamente um espelho do que sentia mas uma tentativa de tornar interes-sante o trabalho do jornalista que tinha à sua frente.

Em abril de 2009 Márquez declarou que não pre-tendia escrever mais livros. A notícia foi confirma-da em 2012, quando o irmão, Jaime Garcia Marquez anunciou que, embora estivesse em bom estado fí-sico, Gabriel tinha perdido a memória e não volta-ria a escrever.

Garcia Marquez morreu a 17 de abril de 2014 na Cidade do México, vítima de pneumonia, pouco depois de completar 87 anos. Disse um dia “Ob-viamente que penso na morte mas o mínimo pos-sível. Para ter menos medo dela, aprendi a viver com uma ideia muito simples., pouco filosófica. De repente tudo pára e é escuro como breu. A me-mória é abolida. O que me alivia e me entristece porque vai ser a primeira experiência que serei incapaz de escrever. “

Gabriel Garcia MarquezA vida como maior fonte de inspiração

Lido por milhões, inovador no estilo, Gabriel Garcia Marquez fica na história como um

dos maiores autores de sempre. Morreu aos 87 anos, já afastado daquilo que deu sentido a todo o seu percurso: a escrita.

Admitia que há muito deixara de ler críticas mas nunca descurou o rigor e empenho no seu trabalho diário, consciente da responsabilidade que era ter um público tão vasto.

Nesta edição, recordamos entrevistas ao amigo Plínio Apuleyo, ao escritor José Eduardo Agualusa e ao investigador e analista José Gonçalves, realizadas quando o colombiano ainda inundava páginas com histórias fantásticas sempre com um toque de realismo. José Carlos Venâncio dedica a crónica deste mês a Gabriel Garcia Marquez, um homem maior do que o seu tempo e cujo perfil vai muito além destas curtas linhas.

após um regresso a Barranquilla e a Aracataca, onde passou a infância e adolescência que se encontrou como escritor. “Apercebi-me que era o tipo de vida que eu tinha vivido, que eu conhecia e sobre o qual queria escrever. Nada mudara mas eu senti que não estava a olhar para a cidade, eu estava a experienciá-la como se estivesse a lê-la. Tudo se tinha tornado literatura: as casas, as pessoas, as memórias. Nessa viagem percebi que tudo o que tinha acontecido du-rante a minha infância tinha valor literário e só ago-ra eu estava a perceber. Quando regressei, comecei a escrever o meu primeiro romance.”

Antes ainda de aprender a escrever, Gabriel já contava histórias, através dos desenhos. “No liceu, ganhei fama de ser um bom escritor embora nada tivesse escrito. Tinha bons conhecimentos literá-rios em comparação com os meus colegas mas foi na universidade em Bogotá que os meus novos amigos me apresentaram os escritores contem-porâneos, Uma noite, um desses amigos empres-tou-me um livro de contos de Franz Kafka. Voltei à pensão e comecei a ler A Metamorfose. A primeira linha quase me fez cair da cama. Fiquei tão sur-preendido! Dizia «Quando Gregor Samsa acordou naquela manhã depois de um sonho agitado, per-cebeu que se tinha transformado num insecto gi-gantesco». Ao ler isto pensei que não sabia que era permitido escrever assim e que se tivesse sabido antes, há muito o teria feito. Comecei logo a es-crever mas ainda baseado na minha experiência literária pois ainda não tinha descoberto a ligação entre a literatura e a vida. “

Em 1967, depois de muitas dificuldades financei-ras, a trabalhar como jornalista, no país e no es-trangeiro, e após algumas frustrações literárias, é publicado em Buenos Aires Cem Anos de Solidão, o quinto livro de Garcia Marquez que provoca, como disse Mario Vargas Llosa, “um terramoto literário na América Latina”. As edições esgotam a cada se-mana e Gabriel torna-se tão famoso como um fute-bolista ou um popular cantor. Em 1969, a Academia Francesa seleciona-o como Melhor Livro do ano, por todo o mundo os críticos rendem-se a um es-tilo diferente, quente como o Caribe, um romance centrado na imaginária terra de Macondo e das sete gerações da família Buendía. Considerada a maior obra de realismo mágico é, sem dúvida, o livro de re-ferência de Gabo. Graças a este romance e também a O Outono do Patriarca (de 1975) venceu todos os

Gabriel Garcia Marquez acreditava que a me-lhor das narrativas era a realidade e sempre se afirmou como um homem do jornalis-

mo. Pelo jornalismo deixou a faculdade de Direito, a ele voltou - já depois de ter alcançado notorieda-de com os seus romances e contos - e dos seus prin-cípios se alimentou para criar histórias eternas.

“Sempre estive convencido que a minha verda-deira profissão é a de jornalista. O jornalismo é uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada no confronto descarnado com a realidade. Aquilo que me desagradava no jorna-lismo eram as condições de trabalho. E além dis-so, incomodava-me ter de condicionar os meus pensamentos e as minhas ideias aos interesses do jornal”, confessava o escritor colombiano numa entrevista à Paris Review.

Para Gabriel Garcia Marquez não há grandes dife-renças entre ficção e jornalismo. “As fontes são as mesmas, o material é o mesmo, os recursos e a lin-guagem são os mesmos”. O essencial, dizia Gabo (como lhe chamavam os mais próximos), é ser credí-vel. “No jornalismo apenas um facto que seja falso prejudica toda a peça. Pelo contrário, na ficção um único facto verdadeiro dá legitimidade a tudo o que está escrito”. O escritor aplicou por isso as técnicas do jornalismo aos seus contos e romances. Mesmo os mais fantásticos acontecimentos eram descritos com tanto pormenor que lhes dava a sua própria realidade. E Gabriel chegou a explicar: “É um truque que podemos aplicar à literatura. Por exemplo, se eu disser que há elefantes a voar no céu, as pessoas não acreditam em mim. Mas se eu disser que há 425 elefantes a voar no céu, as pessoas provavelmente acreditarão. Cem Anos de Solidão está cheio destas coisas. É a técnica que a minha avó usava. Lembro--me que quando era pequeno havia um electricista que costumava ir lá a casa. Eu tinha muita curiosida-de sobre o que ele transportava no cinto que usava para ficar suspenso dos postes eléctricos. E a minha avó dizia-me que sempre que ele lá ia, a casa fica-va cheia de borboletas. Mais tarde, quando escrevi isto, percebi que se dissesse que as borboletas eram amarelas teria muito mais força“. Este universo de realismo fantástico bebeu-o Gabriel do seu povo mas muito dos avós maternos que o criaram desde tenra idade em Aracataca, depois dos pais se terem muda-do para Barranquilla. Saiu para estudar, correu mun-do, começou a escrever e confessa que foi, em 1950,

Maria Sá Fernandes

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DESTAQUE Gabriel Garcia Marquez

“Somos compadres. Quando nasceu o seu filho Rodrigo, sabia que ia ser o padrinho mas para baptizá-lo procurámos outro amigo comum, um sacerdote muito conhecido na América Latina. Ficou conhecido como guerrilheiro. Era Camilo Torres, amigo e condiscípulo meu no liceu e dele na faculdade de Direito. Garcia abandonou a fa-culdade para ser escritor e ele para ser sacerdote. Era muito rigoroso e disse-lhe que gostaria que o menino fosse guerrilheiro quando fosse grande. Nessa época para nós ser guerrilheiro era uma coi-sa maravilhosa. Andávamos todos muito entusias-mados com Castro, a sua aventura, a chegada dos barbudos a Havana. Disse-lhe que o menino ia ser um guerrilheiro e Camilo ficou furioso. «Não posso aceitar Plínio para padrinho porque um padrinho na religião católica cumpre uma função espiritual e o que ele está a desejar para este menino é que seja um guerrilheiro, um homem violento.» Não me queria aceitar. Teve que ser o Garcia Marquez a convencê-lo que tinha sido apenas uma frase. Lá me aceitou e fez a cerimónia em espanhol, não em latim como era hábito. Nunca imaginámos é que Camilo, anos mais tarde, talvez cinco anos mais tarde, iria morrer como guerrilheiro.”

O prémio Nobel foi outro momento partilhado pe-los dois amigos

“Recordo-me que estava em Paris e recebi a no-tícia às 11 da manhã. Depois estive lá na Suécia, em Estocolmo no dia da entrega do prémio e foi uma festa de 8 dias, uma festa completamente louca.

Havia gente da Colômbia, havia músicos… Quando pronunciou o primeiro discurso, emprestei-lhe a minha gravata. Ele é mui-to supersticioso. Acredita que há coisas que trazem má sorte, por exemplo, o fraque e não quis vestir um. Vestiu-se de branco e inventou que era assim que se vestiam os avós na costa do Caribe mas eu nunca vi ninguém com um traje daqueles. As mulheres pergunta-vam-me: «porque é que

o Gabo se vestiu de cozinheiro para receber o pré-mio Nobel? (ri). Claro que nós não podíamos ir todos assim, fomos de fraque e ele então também inventou que as rosas amarelas davam sorte e por isso no banquete enorme oferecido pelo rei, todos nós levámos uma rosa amarela para evitar a má sorte do fraque. Foi divertido! Ele, de facto, é muito supersticioso mas não tem as mesmas superstições das outras pessoas. Acredita, por exemplo, que o número 13 é bom e que ver um gato negro dá sorte e que passar debaixo de escadas também. Tem as suas superstições pessoais.”

Plínio Apuleyo foi presença constante na casa da família Garcia Marquez, ao longo de décadas, par-tilhou alegrias e tristezas e sempre falou e escreveu sobre isso. Em vários livros, um deles com cartas tro-cadas entre ambos, Plínio revelou Gabo na intimi-dade, o que lhe valeu, nos últimos anos, desenten-dimentos com o casal. Sobretudo, disse-lhe Gabo, com Mercedes que não gostou de ler nas memórias de Plínio que não sabia cozinhar e que era de ori-gens modestas.

Há uns anos, entrevistado em Lisboa, onde foi Embaixador da Colômbia, Plínio lembrou alguns episódios como o do primeiro contacto com Ga-briel, num café de Bogotá. Tinha Plínio 16 anos e Gabriel 20.

“Primeiro, entrou no café, sentou-se e penso que pediu um café ou uma cerveja e não pagou e ainda fez propostas à empregada de mesa. Lem-bro-me que o nosso amigo comum que nos apre-sentou tinha sido meu colega no liceu e era seu colega na faculdade de direito e disse-me «é uma pena, ele tem talento, escreveu um ou dois contos que foram publicados no jornal mas é um caso perdido. Não tem classe, não estuda, ninguém sabe onde dorme, onde acorda…» Fez-me a pintura de um homem muito boémio. Eu creio que esta era a aparência que tinha porque, na realidade, era um homem que tinha decidido dedicar-se à literatu-ra. A literatura hoje dá-lhe muito dinheiro mas naquela altura não lhe dava nada absolutamente. Era um homem muito pobre e para consterna-ção da sua família porque não queria ser o que o pai desejava. O pai desejava que ele fosse advoga-do. Para o pai era muito importante o diploma e quando o filho lhe disse que não queria estudar mais, que queria ser escritor… isso foi visto como uma catástrofe… Um escritor a menos que fosse muito, muito, muito famoso, era uma pessoa que não podia viver da literatura…”

Plínio Apuleyo Mendoza recorda também os dias que ele e Gabriel passaram na capital francesa numa altura em que o amigo enfrentava sérias di-ficuldades

“Muito tempo depois encontrámo-nos em Paris e tornámo-nos muito amigos… Digo sempre que ficámos amigos quando ele viu pela primeira vez a neve. Nunca tinha visto! Está-vamos num restaurante, nos fins dos anos 50. Era dezembro, inverno, e saí-mos do restaurante e ele viu a cidade toda branca e começou a saltar e a cor-rer como louco. E caiu-me muito bem a espontaneidade com que reagiu a uma coisa assim. A neve para um rapaz dos trópicos é uma novidade! Bem, fi-cámos amigos e viajámos juntos pelos países comunistas. Estivémos na URSS, depois mais tarde em Cuba. Nessa etapa em que vivemos em Paris , ele era muito pobre. O jornal onde ele trabalhava foi encerrado e ele ficou em Paris sem um centavo, vivendo com muitas dificuldades. Depois eu sabia que ele estava muito mal… e voltei à Venezuela, onde era director de uma revista semanal e ele veio. Trabalhámos dois anos juntos. Depois levei-o para Bogotá onde trabalhámos numa agência de notícias cubana. Temos muitas histórias .”

Uma dessas histórias é do dia em que o filho mais velho de Gabriel foi baptizado.

Plínio Apuleyo Mendoza, diplomata, escritor e jornalista, foi um dos melhores e mais próximos amigos de Gabriel Garcia Marquez. Plínio assumiu, em 2012, que o estado de saúde de «Gabo» se tinha deteriorado e que já não reconhecia os amigos, apesar da mulher, Mercedes, e o agente o desmentirem.

Gabriel José Garcia Marquez

Nasceu a 6 de Março de 1927 em Aracataca, no Caribe colombiano.

Era o mais velho de 11 irmãos e viveu até aos 8 anos com os avós maternos, Doña Tranquilina Iguarán e coronel Nicolás Ricar-do Márquez Mejía, que lhe encheram a in-fância de histórias .

Estudou Direito em Bogotá mas para des-gosto do pai abandonou os estudos para de-dicar-se ao jornalismo.

Tornou-se conhecido com uma série de 14 episódios em que contou a história real do naufrágio de um barco. Os fascículos fo-ram reunidos no livro Relatos de um náufra-go.

É enviado como correspondente do jornal El Espectador para a Europa e começa a de-dicar-se, de facto, à escrita.

Em 1967 publica Cem Anos de Solidão, o intrincado percurso da família Buendia ao longo de sete gerações, que se tornou a obra maior do realismo mágico.

Em 1982 ganha o Prémio Nobel da Litera-tura.

Foi um dos escritores mais admirados e traduzidos no mundo, com mais de 40 mi-lhões de livros vendidos em 36 idiomas.

Morreu na Cidade do México a 17 de Abril de 2014 aos 87 anos.

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seria um dos motivos de diferença com o Gabo mas não de grande importância. Eu acho que basica-mente as divergências com Gabriel Garcia Marquez são mesmo de ordem política e estão relacionadas com uma divergência que atravessa tudo quanto é sociedade, isto é, deve ou não apoiar-se ditaduras? Deve ou não considerar -se que as ditaduras às ve-zes se justificam? É claro que quem tem uma movi-mentação dentro da área dos direitos humanos não pode nem ouvir falar num compromisso deste tipo e o que nos parece justamente é que Gabriel Garcia Marquez perde um pouco de impacto social com esse seu posicionamento fora da literatura. Dentro da literatura é um grande.

José Eduardo AgualusaDeveria ter 18 ou 20 anos quando li pela pri-

meira vez Cem anos de solidão que foi o primei-ro livro de Garcia Marquez a chegar a Portugal e logo nessa altura para mim foi um abalo, um grande choque. Eu creio que tive assim duas grandes paixões literárias: o Eça de Queiroz pri-meiro, o Garcia Marquez depois e talvez um pou-co mais tarde o Jorge Luis Borges. O que me fas-cinou desde logo no Garcia Marquez foi aquele ambiente barroco tropical, aquele ambiente de excessos, a fantasia poderosíssima e aquele ima-ginário que tinha a ver comigo e com um certo imaginário africano. A forma como a realidade se confundia com a imaginação, como os mitos ocupavam o lugar da realidade. Logo a seguir, creio que tentei ler tudo de Garcia Marquez, e de-pois do sucesso dos Cem anos de solidão, muito rapidamente começaram a surgir os outros livros mas mesmo assim li alguns em espanhol porque ainda não havia edições portuguesas e tinha grande ansiedade em ler tudo. Li tudo em pouco tempo e creio que um dos livros que me marcou mais foi O Outono do Patriarca. Até hoje acho que é o livro. Para quem escreve também, é um livro que fascina pela preciosidade com que é construído, é um trabalho de relojoeiro de facto. E depois outro livro de que gostei muito foi sem dúvida O Amor nos Tempos de Cólera. Talvez

Plínio sublinha como o amigo é tímido, como ali-menta medos muito próprios e como se foram distan-ciando em termos políticos.

“Ambos acreditávamos no mundo socialista e fomos conhecê-lo com muito entusiasmo e ficá-mos muito desiludidos. Lembro-me que um certo dia vínhamos numa estrada da Alemanha Orien-tal, ele tinha adormecido e quando acordou dis-se-me «sabes, tive um sonho horrível, sonhei que o socialismo não funciona». Tínhamos uma visão muito crítica mas a revolução cubana parecia di-ferente deste socialismo ortodoxo, o comunismo e apoiámos com muito entusiasmo, trabalhámos na agência Prensa Latina mas com o tempo fomos pensando de forma diferente. Ele manteve-se fiel a uma ortodoxia de esquerda… Eu sou um liberal, a minha filosofia não é marxista leninista. Pen-so que ele não gosta muito do comunismo mas é amigo pessoal de Fidel, um homem que respeita muito. Eu não! Mal estaríamos se não pudéssemos ter amigos que pensam de forma diferente… Ele diz-me que eu sou de direita, eu pergunto-lhe o que faz com os barbudos. Resolvemos assim…”-

José GonçalvesPara muita gente Gabriel Garcia Marquez é

duas coisas, uma é o Gabriel Garcia Marquez escritor, que é quase unanime, outra é o Gabriel Garcia Marquez que toma posições políticas e aí não faz unanimidade nenhuma. Consoante se concorde com Fidel Castro ou não, GGM vai jun-to. Ele é grande amigo de Fidel Castro, frequenta muito a ilha de Cuba, mas depois tem outro pro-blema, segundo aqueles que lhe fazem críticas, é que era grande amigo também de um ex-presi-dente do México que, acusado de corrupção, teve de fugir do país. Por isso há quem diga que Gabo

gosta muito de estar perto do poder. A verdade é que ele vive uma parte do tempo na Colômbia e outra no México e daí pode ter sido levado por aquele jogo dos convites, a ter relações com um homem cujos dados mais íntimos ele não conhe-cia e o facto é que no grande debate que há em torno das suas posições políticas na América La-tina tudo isso é usado. Ele tem por exemplo uma grande divergência com Mário Vargas Lhosa, o grande escritor peruano. Os dois têm posições muito distintas no que diz respeito por exemplo à revolução à cubana, no que diz respeito ao po-sicionamento sobre os direitos humanos e a par-tir daí muitas outras coisas aparecem. Há quem diga que também há uma luta entre escritores, cada um procurando estar mais nas manchetes que o outro. Eu penso que a base da divergência é claramente politica. De modo geral esse tipo de escritores convivem bem uns com os outros, eles têm cada um o seu espaço e isso não pesa muito.

Gabriel Garcia Marquez nos anos 70 falou muito de Angola e falou em função da política externa cubana, não há menor dúvida. Escreveu inclusivé

um grande artigo sobre a chamada operação Car-lota, que foi o nome que parece que os Cubanos deram às primeiras viagens que fizeram com trans-portes de soldados para Angola. Esse artigo fazia grandes elogios e fazia umas observações da capital Angolana, onde ele esteve nessa altura, observações que eram muito superficiais, ficavam muito abaixo da categoria que ele tem como autor do Cem anos de solidão por exemplo. Então estamos perante um homem multifacetado e que agora está a fazer vá-rios balanços da sua vida. É um personagem inte-ressante a vários títulos e é, claro, um personagem também polémico a muitos outros níveis, o que quer dizer que Garcia Marquez não deixa ninguém indiferente. Mesmo para jovens escritores intelec-tuais da América Latina que dizem que a época do fantástico já passou, o que é um certo exagero, eles têm dados de escrita e dados de observação profun-da da realidade do continente que não podem, de maneira alguma, excluir uma olhada muito firme para GGM. O que é um facto interessante é que esta escola do fantástico começa ela própria a ser con-testada, mas a deixar muitos traços e rastos noutros estilos que aparecem em seguida. E o facto é que, de uma forma ou de outra, toda a gente na América La-tina tem uma certa marcação com isso. Por exemplo, se formos a Juan Rulfo no México até Isabel Allende com A casa dos espíritos e um outro que publicou, bom Vargas Lhosa está realmente longe disso e isso

Principais obras•O enterro do diabo; A Revoada (La Hojarasca)

•Ninguém escreve ao coronel

•Cem anos de Solidão

•O Outono do Patriarca

•Crónica de uma morte anunciada

•O Amor nos tempos de cólera

•O general no seu labirinto

•Viver para contar

•Memórias das minhas putas tristes

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DESTAQUE Gabriel Garcia Marquez

seja até hoje o meu livro preferido embora por vezes hesite entre este e O Outono do Patriarca. É a história improvável de uma paixão entre duas pessoas de idade. Eu acho que é um livro sobre-tudo de uma extrema delicadeza, sempre digo que é muito difícil descrever cenas de sexo, acho que um grande escritor é aquele que tem a ca-pacidade de descrever cenas de sexo sem cair no ridículo e o Garcia Marquez consegue isso neste livro e toda a gente que leu o livro se recorda. Ele consegue isso de uma forma ao mesmo tempo com muito humor, divertida e muito elegante. Creio que é isso que me fascina no Garcia Mar-quez. Por um lado o excesso, este Barroco Tropi-cal, e por outro a elegância.MSF: Reconheces a influência na tua escrita?JEA: Sem dúvida nenhuma, sobretudo nos meus primeiros livros. Era algo que vinha ao

encontro das minhas necessidades, porque África é muito…muito assim e acho que a Amé-rica Latina é assim, em grande medida por in-fluência africana, por causa da colonização africana dos escravos que levaram esse realis-mo mágico onde o realismo é europeu e o lado mágico é africano.MSF: Relês livros do Gabriel Garcia Marquez?JEA: Sim, eu releio. Há livros que funcionam para mim como motor de arranque. Pego em livros do Garcia Marquez, do Jorge Luis Borges e uso-os como motor de arranque ou seja quan-do estou pouco inspirado aquilo funciona para mim como aquecimento, um brainstorming e a seguir começo a escrever, e a partir de certa altura já ganhei o meu próprio estilo e já não tenho que ter medo de ser influenciado. Mas certos autores como o Garcia Marques são mui-

to uteis porque me motivam para escrever, me contaminam.MSF: A sua obra perdurará?JEA: Sem dúvida. É curioso, é o único escritor que foi prémio Nobel e que é ao mesmo tempo um grande sucesso de público. Evidente que há escritores que tiveram sucesso, mas nenhum que fosse sucesso de crítica e entre o público. O sucesso é de tal forma que há intelectuais que desconfiam do Garcia Marquez, o que não acho bonito e vê-se isso de vez em quando. Há uma inveja do Gabriel Garcia Marquez, de forma que há uma desvalorização porque como toda a gen-te gosta não pode ser tão bom. Não, pode ser! Há coisas de que todos nós gostamos e são real-mente boas e uma delas é o Garcia Marquez.

Maria Sá Fernandes

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garantia de liberdade e bem-estar. Em Cem anos de solidão não é propriamente a sociedade civil, en-quanto corolário de uma cidadania conquistada, que está em causa; é, outrossim, a reivindicação de um direito à diferença, a recuperação dos sertões (para utilizar o título da obra de Euclides da Cunha, que também tem um cariz fundacionista) para a construção da nação. É a construção de um espaço cultural e político no qual todos (citadinos, crioulos, indígenas, negros, etc.) se vejam representados.

E, a este respeito, torna-se interessante interpre-tar aquele que, em termos literários, será, porven-tura, o romance (ou novela?) com maior suspense de García Márquez, Crónica de uma morte anunciada (1981). Desta feita é o legado cultural ibérico que está em causa. Santiago Nasar, de origem árabe, é morto por ter desflorado Angela Vicario; o assassi-nato é perpetrado pelos irmãos desta que, assim, limpam a honra da família. O marido, na noite de núpcias, vendo que ela não era virgem, devolve-a à família. É a transposição para ambientes latino-a-mericanos (de pequenas comunidades) do síndro-ma da honra e vergonha que a antropologia tem tratado a respeito do mundo mediterrânico (sul da Europa, norte de África e Médio Oriente), onde a honra é lavada ou reconquistada com a morte de quem prevarica. A ideia de mulher-objeto não deixa de estar presente nesta configuração cultural que, na circunstância, muito responderá pelo tão pro-palado machismo latino-americano. Do romance infere-se uma crítica que, sendo ou parecendo ser ligeira, não deixa de ser contundente e afirmativa. Pois todas as personagens envolvidas na história saem a perder: Nasar, Angela, o marido por uma noite, os irmãos assassinos e as “muitas pessoas que estavam no porto” (p. 29) que sabiam que Nasar ia ser morto e que, na sua crença e passividade, deram título à narrativa.

José Carlos Venâncio

Gabriel García Márquez morreu no passa-do dia 17 de abril. A sua morte foi notícia um pouco por todo o mundo. Noticiários vários abriram com a notícia do seu desa-

parecimento. Estava na altura em Luanda, a parti-cipar na Trienal de Humanidades da Universidade Agostinho Neto, e pude, a exemplo, comprovar o in-teresse que a sua obra suscita junto do leitor ango-lano. Poucos escritores, na verdade, laureados com o prémio Nobel têm sido objeto de tamanha aten-ção. Quer isto dizer que Gabriel García Márquez e a sua obra estão para além do círculo de consagração proporcionado pelo prémio em apreço. García Már-quez transformou-se, sobretudo após a publicação do seu romance Cem anos de solidão, num escritor do mundo; provavelmente não de todo o mundo, porque alguns haverá que não se reveem na des-construção civilizacional que ele enceta, ou começa a encetar, com a publicação deste romance, que se tornou numa das peças-chave do realismo mágico com que a literatura latino-americana viria a ser, em muito, identificada. García Márquez, porém, não apreciou especialmente a expressão, preferin-do o termo “realismo” ao de “realismo mágico”. A realidade latino-americana é que era, já em si, má-gica e extraordinária. “A vida quotidiana na América Latina - diz numa longa conversa com Plinio Apu-leyo Mendoza (2005: 62) – demonstra-nos que a rea-lidade está cheia de coisas extraordinárias”.

Trata-se de uma vivência que, de certa maneira, foge ao racionalismo ocidental, pelo que, ao descre-vê-la, é como se estivesse a mostrar que há alterna-tivas ao mundo da vida (para utilizar uma expressão de Jürgen Habermas) da Europa e do Ocidente, cujo racionalismo impede os seus habitantes de ver “que a realidade não termina no preço dos tomates e dos ovos” (Ibidem). Na descrição de García Márquez não cabe a ideia de progresso, um dos conceitos que, sendo de extração judaico-cristã, marca a deri-va ocidental no mundo. A ele estão, pois, acoplados conceitos como o de tempo monocrómico, o de utilitarismo, o de sociedade industrial e, qual cereja em cima do bolo, a ideia de supremacia (racial e) ci-vilizacional do Ocidente em relação aos outros, que, perante tal afronta, se veem compelidos a percorrer o mesmo caminho para virem a ser tão desenvol-vidos quanto os ocidentais. Dificilmente as muitas teorias sobre o desenvolvimento, fosse qual fosse

a sua orientação ou a disciplina em que se enqua-dravam, conseguiram fugir a esta inevitabilidade. Sendo evidente nas teorias da modernização, não deixaram de estar presentes, mesmo que de forma mais subtil, nas teorias de motivação marxista, tais como as teorias da dependência. García Márquez foge, porém, a todo este enquadramento. Por isso, Cem anos de solidão é um romance tão marcante, em termos literários, mas também no que à sociolo-gia (e economia) diz respeito. A vida e o quotidiano nele espelhados são, na verdade, uma alternativa ao ritmo de vida dos ocidentais, angustiados que estão com a perda de tempo, que o mesmo será di-zer, compelidos a atirar, a cada minuto, a hipótese de felicidade pela porta fora. E a boa receção de que este romance, assim como a obra de Gabriel García Márquez, foi alvo junto dos leitores europeus tinha precisamente a ver com a nostalgia pela perda de um sentido de vida mais descontraído, pelo prazer de simplesmente poder perder tempo, o que as so-ciedades camponesas, pelo menos até certa altura, ainda lhes proporcionaram.

Cem anos de solidão é também um romance fun-dacionista, caraterística herdada do romance euro-peu de oitocentos, que, condicionado pela idiossin-crasia burguesa e servindo-se do positivismo como filosofia de vida e do realismo como enquadramento estilístico, se propôs a fundar a sociedade civil como

ESCRITURALIDADES

O legado do romance Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez

[email protected]

Referências bibliográficas:APULEYO MENDOZA, Plinio, 2005 [1982],Gabriel García Márquez. O aroma da goiaba,Lisboa: Dom QuixoteGARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, 1988 [1967],Cem anos de solidão, Lisboa: Dom QuixoteGARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, 2008 [1981],Crónica de uma morte anunciada, Lisboa: Biblioteca Sábado

11*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| DESTAQUEGabriel Garcia Marquez

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UM LUGAR DE REFERÊNCIA NA BAIXA LUANDENSE

H

O conceito cai como uma luva a este espaço que se notabiliza, sobretudo pela sua localização.

O Espaço Verde Caxinde foi transformado num local moderno e aprazível, onde se poderá

aliar uma boa refeição a instantes de puro ócio, tendo como companhia a boa música,

criteriosamente seleccionada para cada ocasião.

oje, este espaço que se trans-formou numa ampla sala valoriza-da pelo estudo aprofundado das suas reais potencialidades, está preparado para servir vários estratos da sociedade luandense bem assim os visitantes da nossa capital, oferecendo-lhes desde o mais sofisticado cocktail ao refinado jantar temático abrilhan-tado com espectáculo musical.Um considerável número de receitas consta do seu cardápio que valoriza a comida tradicional angolana, numa aposta de tratamento qualificado e digno da gastronomia nacional, e também o

melhor da cozinha internacional.Uma interessante garrafeira e pequenas boutiques completam o quadro que se harmoniza numa simbiose perfeita entre a qualida-de e a beleza. Os preços, garantem-nos, são também interessantes a beneficiar a bolsa da clientela.É também um espaço de imensa actividade cultural, onde se organizam eventos como: confe-rências, lançamento de livros e debates sobre os mais variados temas (música, literatura, filosofia, religião, teatro e cinema).

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política ou física. As instalações da facção Chipenda fo-ram atacadas, depois foram aniquilados militarmente em Luanda a FNLA e a UNITA, presos e mortos muitos dos seus militantes. A seguir são presos numerosos militantes do próprio MPLA, os membros dos CAC, OCA e outros (isto ainda antes da proclamação da independência…) Em 1976, são presos indivíduos que tinham sido mem-bros da extinta Revolta Activa (uma tendência dentro do MPLA).

A propaganda oficial pregava a intolerância e a exclu-são, encorajava a delação, incitava ao extermínio dos que eram considerados traidores e inimigos, ou seja, aqueles que pensavam de modo diferente. Não tardou que mui-tos dos arautos desta conduta violenta e castradora das energias nacionais viessem eles próprios a ser vítimas dos ventos que semeavam e soçobrassem numa tempestade repressiva de inaudita violência desencadeada a mando do presidente. Assim, a tentativa de alguns responsáveis, encabeçados por Nito Alves, de enfrentarem, até às últi-mas consequências, Agostinho Neto, terminava com um balanço trágico para os impulsionadores, para milhares de angolanos e para o país inteiro.

O poder instituído em Angola era - agora à escala imen-sa do país - a reprodução ampliada do aparelho e dos me-canismos autoritários que tinham dirigido o MPLA nos últimos anos da luta de libertação. Este autoritarismo, que se impôs no Movimento e o «formatou» para a tomada do poder nas condições em que esta se realizou, foi o mesmo que depois se impôs a todo o país, vindo a «formatar» a sociedade angolana, fazendo nela imperar a intolerância, a exclusão.

A situação viria a agravar-se com a prolongada guerra civil, cujas origens mergulham no período da luta armada pela independência, quando os três movimentos procura-vam exterminar-se.

***Evoco tudo isto por estar convicto de que ainda persiste

parte dessa nefasta cultura de exclusão que, então, impe-diu a coexistência política na sociedade angolana. Tam-bém o faço porque há que estar consciente deste penoso passado e dos obstáculos a vencer para se caminhar na senda de uma sadia convivência democrática e conseguir-mos alcançar e exercer a plena cidadania.

A questão da cidadania implica uma reflexão nacional que envolva o maior e mais represen-tativo número de ac-tores sociais, económicos, políticos, culturais. Implica que haja recepti-vidade a um generalizado debate na socie-dade angolana e se façam esforços para que tal debate se instale. Implica que a reflexão e o debate se façam na pers-pectiva de Angola se tornar um estado moderno fundado na justiça social. Um país em que todos os seus cida-dãos se sintam livres na expressão e na igualdade de oportuni-dades para o seu bem-estar económico e social.

Lisboa, Maio de 2014

A formatação da sociedade angolana - ICidadania versus cultura de exclusão

Adolfo Maria

O pleno exercício da cidadania - que, neste tempo angolano, é de crucial importância - implica vá-rios pressupostos, sendo um deles, e fundamen-

tal, a aceitação do outro, a convivência em sociedade.Em Angola, todavia, hoje dotada de um regime consti-

tucional democrático, são numerosas as dificuldades na concretização da necessária cidadania, dificuldades bem patentes nas relações entre indivíduos, na relação do po-der com a sociedade civil, na afirmação desta, na autono-mia de vários sectores económicos, sociais, culturais, aca-démicos face ao poder político.

São dificuldades que, em minha opinião, se devem à cultura de exclusão que ainda marca intimamente a so-ciedade angolana. Cultura essa, com várias origens, mas notoriamente implantada no nacionalismo angolano durante a luta de libertação e que, posteriormente, ficou generalizada no país independente.

De facto, o autoritarismo dos líderes nacionalistas tinha formatado os respectivos movimentos na intolerância, na negação do outro, em suma: numa cultura de exclusão. A força política que tomou o poder, imbuída dessa cultura, «formatou» depois a sociedade angolana. E vou recordar como tal sucedeu.

***No longo processo de luta pela independência de An-

gola, o MPLA passou por várias fases. A primeira, de 1960 a 1962, em que o presidente era Mário de Andrade e o secre-tário geral Viriato da Cruz, foi uma fase de intenso debate de ideias no seio da direcção e de muita criatividade para enfrentar o cerco que a UPA e as autoridades congolesas faziam ao Movimento no Congo. Numa segunda fase, esse debate ainda prosseguiu durante algum tempo após a en-trega da presidência a Agostinho Neto, em finais de 1962, particularmente as divergências de Viriato que decidiu abandonar o Movimento. Mas esse debate em breve ces-saria.

A crise de 1963 criou condições para Neto vir a impor o seu poder pessoal. A situação podia assim ser carecteriza-da: muitos quadros tinham abandonado o Movimento; a direcção, onde havia vários mestiços, estava sujeita à pres-são racista da UPA quer junto das populações, quer a nível diplomático; o presidente tinha à sua disposição alguns jovens muito fiéis que rapidamente promoveu. Com a submissão de alguns dirigentes e a activa cumplicidade de outros, entretanto cooptados para a direcção, o presidente foi ficando senhor da situação e começou a impor paulati-namente um estilo autoritário de dirigir.

Noutra fase, a partir de 1966, e devido ao impulso pro-porcionado pela abertura da Frente Leste, Agostinho Neto dominava definitivamente o Movimento. Mas as conse-quências de tal estilo de liderança não tardaram a fazer-se sentir. Com efeito, a partir de 1969/70 são notórios os erros da organização, os fracassos militares e os conflitos no seio do Movimento e deste com algumas populações. Esta si-

tuação foi-se agravando até meados de 1974, estando en-tão o Movimento dividido em três tendências: Direcção, Revolta do Leste e Revolta Activa.

Sucedeu entretanto a revolução dos militares portugue-ses em Lisboa que depuseram o regime fascista, em 25 de Abril de 1974. Essa revolução trouxe a instauração das liberdades políticas em Portugal e nas suas colónias, com a consequente libertação de centenas de presos políticos angolanos.

Rapidamente, nas principais cidades angolanas, em particular em Luanda, os simpatizantes do MPLA organi-zaram-se para enfrentar a reacção colonialista e criar célu-las do MPLA, estabelecer ligação com a Primeira Região político-militar, até então asfixiada pelo exército colonial, bem como enviar a Brazzaville emissários e, depois, mili-tantes das cidades.

Graças à capacidade organizativa dos aderentes ao MPLA no interior do país, especialmente nos centros ur-banos e mais marcadamente em Luanda, o Movimento pôde refazer-se da desastrosa situação em que se encon-trava e preparar-se para o acesso à independência que es-tava próxima. Assim, e apesar da sua debilidade militar, era já enorme a sua força política e a sua implantação no país quando, em Janeiro de 1975, foram assinados os Acordos de Alvor que definiam o quadro de acesso democrático à independência, através de eleições, em que participariam os três movimentos nacionalistas (como se sabe, estas eleições não se realizaram porque os três movimentos se envolveram em combates armados, vindo o poder a ser conquistado através das armas).

Apesar dos tremendos sobressaltos que tinha vivido nos dois anos que antecederam estes acordos, a direcção do MPLA em nada modificou o seu estilo autocrático. Re-feita dos maus momentos por que passara, preparava-se agora para actuar em terreno bem mais vasto, todo o país.

Na direcção tinham sido incorporados vários membros do interior, sendo o mais notório Nito Alves, mas nela per-maneciam as mesmas concepções e métodos. Cultiva-va-se até ao paroxismo a ideia de que a direcção detinha a verdade absoluta. Fazia-se a perseguição e liquidação de vozes dissonantes no seio do Movimento, o extermínio dos outros movimentos concorrentes ao poder em Ango-la, que seria em breve independente.

Se nos últimos anos da luta de libertação, a direcção do MPLA formatara o Movimento para a intolerância, a ex-clusão e o exercício do poder absoluto, nada mudou com a inclusão de novos elementos na direcção. Estes não só não trouxeram novas atitudes como se encaixaram bem no estilo autocrático prevalecente e, por vezes, eram mais radicais. Um claro exemplo de um sistema de reprodução socio-política.

Logo após a assinatura dos acordos de Alvor, a direcção do Movimento desencadeou um incessante combate aos dissidentes e aos outros movimentos até à sua liquidação

13*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| CRÓNICA

MESO MA MESO(OLHOS NOS OLHOS)

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Esse o primeiro nome do Lobito, e que a dis-tinguia da Catumbela Doce, do Rio Catum-bela.

É umas das cidades mais recentes da coloniza-ção portuguesa em Angola; durante mais de três séculos ninguém ligava nada para a fantástica baía, que se tornou abrigo para piratas, contra-bandistas e escravocratas, cujas tripulações de-sembarcavam para comprar escravos aos colonos, e complementar as cargas com razias em terra, pelo interior.

Em 1836, depois de abolida a escravatura, e quando da fundação da Catumbela, houve a idéia de se construir uma cidade no Lobito, no Morro da Kileva, idéia logo abandonada,principalmente pela carência de água na região.

Curiosamente, e no que pese o “bairrismo” ainda hoje existente entre Lobitangas e Benguelenses – sim, autarquias à parte, Lobito, Catumbela e Ben-guela serão a breve futuro, bairros de uma mesma grande cidade – o Lobito nasceu a pedido de mora-dores de Benguela, cansados das baixas por insalu-bridade naquela cidade.

Foi tal o afã , que em pouco tempo, esses mora-dores subscreveram a quantia de Trinta e Um Contos de Réis, para auxiliar nas despesas da empreitada. E assim, em 1842, antes de a Portaria Régia aprovar a transferência, inicia-se no Lobito a construção do Palácio do Governo, com dinhei-ro de Benguelenses e mão de obra escrava.

Em Março de 1843, D. Maria II aprova o nasci-mento da cidade do Lobito.

Mas na realidade, a Baía do Lobito, só come-çou a atrair a atenção nos finais do Século XIX, no auge do comércio da borracha.

O volume de transações exigia um ancoradou-ro maior do que o de Benguela, que tinha capaci-dade apenas para pequenas cargas.

Até então, o Lobito só servia para as pescarias, co-leta de ostras – na realidade trata-se de uma concha bivalve grande, a Cucula, a melhor isca para a pesca à linha, e não de ostras mesmo – para a indústria de cal, e o corte de Tungas, uma madeira resistente dos mangais, que era usada na construção de casas na Catumbela e em Benguela, e claro de couto aos pi-ratas, contrabandistas e escravocratas.

Foi a cobiça dos estrangeiros que abriu o porto para o mundo, e a concessão do Caminho de Fer-ro de Benguela, dada ao inglês Robert Williams, que deu início aos alicerces da cidade, numa luta dificílima contra os pântanos e mangais.

Em duas décadas, o Lobito passou de uma baía abandonada ou desprezada, e de pântanos com área superior à da baía, para uma cidade eferves-cente no crescimento.

Aterraram-se pântanos, construiu-se o cami-nho de ferro, o mercado, a ponte sobre o Rio Ca-tumbela, o edifício dos correios, o do CFB, o Ho-tel Términos, a Igreja da Arrábida, o cais do porto com 225 metros de muro acostável, e com calado para grandes navios...

Tornou-se a ponte marítima para todo o Pla-nalto Central de Angola, e gare marítima para grande parte da África Austral e portos da Europa.

Em 1929 o CFB atingiu a fronteira com o Con-go Belga, tornando-se a via mais econômica para o escoamento do cobre das minas de Katanga.

O Porto do Lobito, mais econômico por estar mais perto da Europa, passou a ser o substituto natural aos portos da Beira e da Cidade do Cabo.

Enfim história e histórias da nossa terra e do tempo do Kaparandanda, um conterrâneo que não deve ser esquecido.

Kaparandanda era o primeiro sobrinho do Soba Kulembe, da Catumbela.

Ia ser Soba.Adolescente, ganhou fama por ter morto sozi-

nho um leopardo – ongué – que andava a comer as cabras – ohombo – dos kimbos do sobado, e por mostrar liderança entre o povo súbdito de Kulembe.

Kaparandanda pode ser considerado um dos mais convictos resistentes ao domínio colonial, como também um dos primeiros resistentes a ser enviado como prisioneiro para S. Tomé, um dos

Catumbela das Ostras ou do Sal,nos tempos do Kaparandanda

Carlos Duarte

locais preferidos pela PIDE/DGS, para confina-mento de presos políticos, na época colonial.

Ainda bem jovem, inconformado com a passa-gem e estadia de caravanas de pombeiros e avia-dos – que chefiavam as caravanas de comércio, levando panos e sal para o Huambo – Bailundos – e trazendo borracha, cera, mel e marfim – sem se submeterem a qualquer tipo de pagamento, pediu uma audiência ao Soba seu tio e aos seku-los, onde tentou convencê-los a que fosse cobra-da uma taxa – Onepa - a essas caravanas.

O Soba, acomodado e com medo da reação dos colonos, não concordou.

Kaparandanda então reuniu um grupo de guer-reiros e foi para o mato, armar emboscadas e as-saltar as caravanas, cujo produto, confiscado, era em parte, distribuído pelos kimbos do sobado.

Quando os colonizadores tomaram conheci-mento dessas ações, foram falar com o Soba, para que tomasse providências e acabasse com essa resistência.

O Soba reuniu os melhores guerreiros e orde-nou-lhes que fossem pegar Kaparandanda e os seguidores.

Mas o resultado foi o contrário do previsto.O grupo de Kaparandanda, dominou e derro-

tou fácil os guerreiros de Kulembe.Os colonizadores resolveram então fornecer

armas de fogo ao Kulembe, acreditando que, com essa vantagem, acabariam com o grupo guerri-lheiro.

Mas Kaparandanda, agindo como um Robin Hood angolano, tinha já granjeado a simpatia de grande parte dos kimbos do sobado; então, emis-sários dos kimbos, saíam para avisá-lo da movi-mentação das forças de Kulembe, o que lhe deu condições de, uma vez mais, espera-las para o confronto, em local que lhe era propício, anulan-do assim a vantagem das armas de fogo.

Uma vez mais a tropa de Kulembe foi derrota-da, e Kaparandanda ficou melhor armado.

Os colonizadores resolveram então enviar uma companhia de tropa portuguesa, comandada por um capitão de nome Almeida, para submeter Kaparandanda.O encontro deu-se no Sopé do Passe. O grupo de Kaparandanda saiu derrotado, e ele, levado preso, primeiro para o Forte da Ca-tumbela, e depois para S. Tomé.

Kaparandanda agiu de 1874 a 1886

10 Jan.2013

14 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|HISTÓRIA

Page 15: O CHA Nº 10

A ilha sempre foi um pedaço de Luanda contemporânea, o seu jardim encantado onde todos podem entrar. A dois passos,

uma válvula de escape da cidade barulhenta. É lá que vamos quando nos apetece apanhar a brisa do fim de tarde, ver o pôr-do-sol, saborear uma bebida enquanto a noite cai, pousar os olhos e a alma nas pequenas ondas que murmuram a nossos pés. Ver as estrelas. Ou, numa versão mais ecológica, a ilha é onde vamos para inspirar ar puro que vem do horizonte, para corrermos, pra-ticarmos desporto, nadarmos, olharmos o sol lá no alto e dizermo-nos como é bom viver.

Organismo vivo que é, a ilha está sempre a mu-dar, quer pela acção e betão do Homem, quer pela força da Natureza. Conta-se nos jornais antigos que, por altura da I Guerra Mundial (1914-1918), por baixo da ponte que a liga a Luanda, cravaram no fundo do mar «potentes estacas de cimento armado, e sobre elas se fundiram fortes longari-nas e travessas para suportarem tabuleiros para comboios, carros e peões», estrutura que serviria para o projecto de um cais acostável. A ideia não foi por diante, mas deixaram, diziam, uma «tosca passerelle».

Reparem na velha fotografia, a preto e branco, de 1924. Tão frágil e estreita na sua madeira, a «passerelle» fala por si. As cabanas na paisagem poderão ser de pescadores. Os antigos habitantes da ilha, que os livros de História de Angola recor-dam, fizeram daquele um lugar especial, berço da pequena concha moeda. Séculos mais tarde, o areal chegou a ser «couto de foragidos e passa-gem predilecta de contrabandos».

Noventa anos separam as fotos. Muito foi vivi-do naquela língua de areia. O antigo jornal «Diá-rio de Luanda» escrevia, em Dezembro de 1940: «veio então o mar, isto por alturas de 1924-1925, prestar o valiosíssimo serviço de tragar toda a ilha e suas indesejáveis sujidades e em seu lugar voltou a pôr uma nova restinga de areias limpas e convidativas (…). Foi este um trabalho que o mar realizou durante muitos meses de luta furiosa e incessante. Por uma brecha que abriu por alturas da Chicala, entrou e em arrancadas contínuas foi sorvendo tudo, empurrando a abertura para Nor-te, ao mesmo tempo que ia pondo novas areias do Lado Sul. (…) Com este trabalho, a ilha ficou mais aproximada da terra e do lado do mar deu-nos a linda e grande praia de que Luanda hoje se orgulha».

Nos anos 20 do século passado criou-se uma comissão de melhoramentos da ilha. Mas a inva-são humana terá começado em meados dos anos 30, a julgar pela «desusada concorrência» de fa-mílias com farnéis, notada pelo jornal luandense «Última Hora», de 24 de Novembro de 1935. De tal forma que os habituais locais de encontro de domingo na cidade ficavam «desertos». «A Ilha remoça, torna-se garrida, movimentada, ad-quirindo um ar buliçoso de que a população de Luanda andava há tempo divorciada».

Passou a haver um comboio, aos domingos, mas poucos anos depois, eram disponibilizadas, entre Janeiro e Março, três viagens diárias da es-tação de Luanda até à Igreja de Nossa Senhora do Cabo. Demorava meia-hora. O extenso areal, encarado pelas autoridades coloniais como uma «estância balnear», também viu ali nascer coló-nias de férias para crianças.

Em 1940 a ilha era acessível por estrada asfaltada, es-tava fornecida de luz e água canalizada. Tinha dois restaurantes, um bar dancing, dois courts de ténis, um

ringue de patinagem, uma prancha para saltos e bar-racas europeias às riscas, todas iguais, paralelas à água. Algumas casas de madeira, em palafita, foram cons-truídas. Porém, as correntes marítimas e a instabilida-de ocorrida na restinga, entre 1940 e 1942, causaram o desaparecimento de uma grande extensão de areia, tendo arrastado e destruído várias casas.

A partir dos anos 50, este pulmão ímpar de Luanda, não parou de crescer. No tempo colonial foram famo-sos alguns restaurantes, bares e locais de diversão noc-turna. Ao longo da história do areal várias instituições criaram raízes, como o Clube Naval (123 anos), o 2º mais antigo na África Subsahariana, e o Clube Náutico. Actualmente, os bares e restaurantes mais aprazíveis, situam-se, precisamente, ali.

No entanto, quem vivia do sustento do mar foi desa-parecendo. Hoje há poucos pescadores, mesmo na Chicala, a parente pobre da ilha, que na sua pequena baía vê boiar milhões de garrafas de plástico e lixos ur-banos, enquanto são erguidos edifícios de sete andares, que seriam proibidos em muitos países. A paisagem é um dos patrimónios mais valiosos da ilha.

As obras recentes de revitalização dos seus sete qui-lómetros de estrada, as estruturas colocadas nas praias para a prática de desportos, e outros melhoramentos, vieram conferir uma outra dignidade ao braço de areia que beija Luanda -, continuando o convite à vida sau-dável efectuado logo desde a marginal.

O desenvolvimento de Angola estendeu-se ao areal, agora que a inteligência dos homens sabe como supe-rar os acidentes inesperados da Natureza. No futuro haverá uma nova ilha, disso não há dúvidas, configu-rada, eventualmente, com a nova marginal. Alguns as-soreamentos que se vislumbram junto ao esqueleto do «Panorama» e, em outros sítios, indiciam novas cons-truções, que se juntarão aos muitos e modernos edifí-cios e hotéis. O recorte está mesmo a mudar.

Desde os primórdios da vida social na ilha, que aqui pincelamos apenas, esta não mais deixou de encan-tar quem a visita. Hoje, chegamos lá por uma ponte moderna com seis faixas de rodagem, num prolonga-mento da aprasível marginal. Muito diferente da velha «passerelle».

O tempo faz perder a inocência. O mesmo aconte-ceu à ilha. Mas ainda lhe restam qualidades, porque dela emana uma força única, e é grande o poder do seu areal. Deve-se preservar este spa da Natureza, gratuito, tão gratificante para os luandenses cansados de uma semana de trabalho. Precisam de ir à ilha, ouvir a músi-ca das ondas, pisar a areia macia, abandonarem-se ao sol. Merecem-no.

IlhaO jardim encantado de Luanda está a mudar

Leonor Figueiredo

15*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| CRÓNICA

Page 16: O CHA Nº 10

gola contemporânea, que influencia invariavelmente a produção artís-tica de Mosquito que, nascido em Huambo, tem exposto um pouco por todo o mundo. Viveu em Portugal, dos oito aos vinte anos, e atualmente está sediado em Luanda. Uma cida-de onde se congregam esforços para a organização e dinamização das manifestações artísticas contempo-râneas que têm vindo a assumir um significante papel no país.

ACT’s Nº 1, 2, 3, 4, na qual Pop mee-ts prayer, illumination meets illusion, density meets distortion, foi exposta em terras de reis e rainhas, prínci-pes e princesas, onde o passado de permanência em África é notório e as reflexões sobre as temáticas co-loniais e pós-coloniais são urgentes. Trata-se de uma cacofonia audiovi-sual que, simultaneamente diverti-da e provocatória, se centra nos con-ceitos de identidade e de alteridade e propõe um (ou vários) itinerário(s) pelas cores, sons, ruídos e silêncios da Angola pós-colonial.

Ana Sécio Licenciada em Comunicação Social e

Cultural pela Universidade Católica Portuguesa e mestrado em

Estudos de Cultura

Act nº 1Act nº 2Act nº 3Act nº 4

As pancadas de Molière não são audíveis. Mas, tal como no teatro, se divide ACT’s Nº 1, 2, 3, 4 (2012), uma obra do artista angolano Nás-tio Mosquito, em colaboração com o designer gráfico espanhol Vic Pe-reiró, no projeto Nastivicious. Um trabalho apresentado ao cosmopo-lita público londrino na exposição All silent but for the buzzing, no Royal College of Arts, de 6 a 23 de março. A mostra anual, com curadoria dos alunos de Mestrado em Curating Contemporary Art, reuniu 17 artistas emergentes e consagrados da cena artística internacional e baseou o mote deste ano na peça Not I (1972), de Samuel Beckett.

ACT’s Nº 1, 2, 3, 4, projetada ao fundo de uma ampla sala, não pas-sava despercebida aos olhares dos visitantes. A obra é composta por quatro atos, sem estrutura narra-tiva definida, que devem, contudo, ser vistos sequencialmente: um a seguir ao outro e, depois novamen-te, desde o primeiro até ao quarto. Cada ato inicia e termina com uma

cerimoniosa vénia por parte do artista ao (potencial) público, in-troduzindo um ambiente místico e quase sacral aos 12 minutos e 80 segundos que compõem o vídeo. A silhueta de Mosquito marca a centralidade da “peça”, performa-tizando danças, músicas e monó-logos em espelho, que convidam a uma reflexão sobre a identidade e o pós-colonialismo. Nastivicious so-corre-se de uma paleta de cores vi-brantes, que dialoga com a estética da cultura Pop e que aponta para a linha de trabalho de outros artis-tas visuais contemporâneos, como são os casos dos angolanos Fran-cisco Vidal e Yonamine. As ima-gens e os movimentos são traba-lhados em articulação com o som, entre o foque e o desfoque, entre o percetível e o ininteligível. Escu-tam-se sonoridades que vão desde a música eletrónica, ao Pop Rock, até aos ritmos africanos. As dua-lidades e ambivalências do poder, sempre patentes em todos os epi-sódios da existência humana, alia-das à metaforização de elementos como a água – sinal de limpeza, re-novação e purificação – e de cores como o roxo – símbolo de intros-peção e espiritualidade – são ex-

pressas em temas musicais como “Tira a mão da minha chucha” e “Purple Rain”, que ocupam um lu-gar preponderante neste vídeo. E destacam, ainda, o cunho político e contestatário que é transversal à obra de Nástio Mosquito, dividida entre a música e as artes visuais.

À semelhança do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, também Nastivicious recorreu ao som, à imagem e à performance para questionar os meios de comu-nicação e as estruturas sociais. Va-lendo-se do humor e da ironia, nada foi deixado ao acaso. Os diálogos es-tabelecidos entre o “Eu” e o “Outro”, que pode ser também lido como “Outros Eus”, dão conta de uma bus-ca incessante pelo sentido da vida e pelas razões que motivam os indiví-duos à ação. Porque viver é exigente – tal como Mosquito gosta de descre-ver esta tarefa – amor, liberdade, di-reitos e responsabilidades são apon-tados como algumas das motrizes bases associadas ao cumprimento desta missão.

Ouvem-se mensagens em portu-guês e em inglês, umas assertivas, outras subliminares. Como denomi-nador comum, o contexto político, económico, social e cultural da An-

Cacofonia

audiovisual

Nastiviciouspor

ARTES16 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|

Page 17: O CHA Nº 10

Luis Alberto Ferreira*[email protected]

As representações do Diabonas performances de Caetano

Chá Ibéria Dossié Portugal: Até ao “24”(I)

Malcriado, arrogante e capaz da maior das ordinarices, Marcelo Caetano deixou cair a máscara no rescaldo de um incêndio na periferia de Vizeu. E também na Casa de Chá de Monsanto, arredores de Lisboa. Imprevisível nas suas fantasias iracundas, Marcelo Cae-tano deixou marcas irreconciliáveis com a qualidade do seu notável percurso académico

Resfolegavam os anos 60. Estava o senhor professor-doutor Marcelo Caetano enreda-do, no interior do regime, em vários casos

mal contados, quando um incêndio devastador em área florestal pôs a tremer os habitantes de Vizeu. As chamas pareciam dispostas a tudo. Se os bom-beiros não chegavam para tamanha encomenda, muito menos a PIDE. Muito menos a União Nacio-nal, por mais areópagos que convocasse.

Enfim, a cintura florestal de Vizeu ardia a bom arder. E o presidente do Conselho, senhor profes-sor-doutor Marcelo Caetano, temendo talvez que o fogo alastrasse até São Bento, decidiu que só mesmo ele acabaria com aquilo.

Tinha razão, sua excelência. Mal se soube que o senhor professor-doutor Marcelo Caetano ia a caminho de Vizeu, os bombeiros estugaram o passo e o fogo amainou.

E quando o automóvel do senhor Presidente do Conselho chegou ao local, chegámos também nós, os jornalistas, de Lisboa e do Porto.

Eu, como ia do Porto, em representação do “Jornal de Notícias”, não havia contemplado ja-mais a figura, em carne e osso, do senhor pro-fessor-doutor Marcelo Caetano. Os pides, esses sujeitos miseráveis, conhecia-os eu de ginjeira. De um modo geral, era em Lisboa que decorriam as principais surumbambas persecutórias. Com a PIDE a querer beber o sangue dos comunas. Práti-ca depois exercida, com a mesma sanha, no Porto.

O grande incêndio florestal, pensei eu, em al-guma coisa ou pessoa teria encontrado mão e berço. O regime, tal como acontece hoje, pode-ria livremente decretar a origem do fogo. A União Nacional esfregaria as mãos se o “Diário da Ma-nhã” ou a Emissora Nacional titulassem: “Mão criminosa na origem da tragédia em Vizeu”. Ou, com mais supina e licenciosa malvadez: “Agentes ao serviço do exterior” — da URSS, evidentemente — “põem Vizeu a ferro e fogo”.

Caetano debaixo das árvores O sentido da ordem imperou e as chamas, pelo

menos enquanto ali esteve o senhor professor-doutor Marcelo Caetano, não se atreveram a ir-romper de novo. Sua excelência, semblante fe-

chado, conversou, em voz baixa, com o zeloso governador civil de Vizeu, membro da União Na-cional. Ambos assistidos pelo zeloso presidente da câmara municipal de Vizeu, membro da União Nacional. Todos coadjuvados pelo zeloso presi-dente da junta de freguesia da área incendiada, membro da União Nacional.

Conversaram muito, debaixo das árvores, os quatros membros da União Nacional. Para que as coisas tivessem alguma lógica, uma ou outra árvore exibia sem reservas as mazelas derivadas do fogo.

Os autarcas beirões esforçaram-se, à compita, por informar sua excelência. Informar, agradan-do. Agradar, informando. De vez em quando, o senhor professor-doutor Marcelo Caetano torcia o nariz. E logo os jornalistas se alvoroçavam. Com alguma razão.

Poderia sua excelência não querer embarcar, digamos, em alguma versão mais bondosa para a eventualidade da mãozinha de Moscovo naquele fogaréu inclemente.

Além do mais, o senhor Presidente do Conse-lho tinha pressa, tinha mais que fazer. Admitimos nós, os jornalistas, que o senhor professor-dou-tor Marcelo Caetano pudesse estar fartinho da permanência debaixo das árvores. Fartinho da permanência debaixo das árvores e da conversa subserviente dos esforçados autarcas, todos eles membros da UniãoNacional. Atados à vontade primordial de não decepcionar sua excelência.

Caetano escapa-se para missão secreta O leitor não se remeta ao papel de assombradi-

ço. E vou mesmo mais longe: tenha calma.Tenha paciência, também, porque se está a viver em Portugal precisa de zelar pelas várias secções da sua saúde. Os medicamentos estão pelo preço do caviar e o governo dos rapazolas tem propósitos crematórios dignos do Tribunal do Santo Ofício.

Estava o senhor Presidente do Conselho, como já descrevi, debaixo das árvores. Aconfrada-do com os três homenzinhos do poder local vi-zeense. A dado momento, percebêmo-lo nós, os jornalistas, sua excelência segredou qualquer coisinha ao senhor governador civil. De ambos

se acercou, entretanto, o motorista do senhor professor-doutor Marcelo Caetano. O senhor governador civil de Vizeu, de forma discreta, er-gueu o braço e apontou para norte. O motorista do senhor Presidente do Conselho, ao abanar a cabeça, deu a entender que sim, tinha percebido, estava orientado...

Vimos o senhor professor-doutor Marcelo Caetano acomodar-se no banco traseiro do au-tomóvel, que, sem tardança, arrancou. Deva-garinho, por causa dos troncos calcinados que atapetavam o solo. Os leais consócios da União Nacional permaneceram, estáticos, em atitude conspirativa, debaixo das árvores. Pareciam re-crescidos de alma: uff!, uns momentos de pausa. Sua excelência aterrorava qualquer um com seus soberbos ademanes.

Sorrateiro, o fotógrafo de O Século veio segre-dar ao colega, o Guerreiro, redactor na filial por-tuense do histórico jornal: “... O Marcelo vai visi-tar o Arantes e Oliveira, ouvi isso do presidente da junta de freguesia...”.

A mandibulação daquele petisco deu-se em curtos segundos: nós, os jornalistas, pulámos para o interior dos respectivos automóveis e se-guimos na direcção sulcada pelo automóvel do senhor professor-doutor Marcelo Caetano. Agora debaixo de árvores com úlceras dignas de uma catástrofe. Não fosse a informação espalhada pelo fotógrafo de O Século e poderíamos garantir que sua excelência fazia questão de observar de perto os escombros do arvoredo em cinzas.

Caetano chamou-nos filhos da mãe

A manhã vizeense, bafejada por um sol ameno, convidava à paz e à “concórdia” que Salazar tanto apreciava. Disso seria tenaz recusador sua exce-lência o senhor Presidente do Conselho. Pode-ríamos, os jornalistas, compreender uma parte mínima das razões do senhor professor-doutor Marcelo Caetano. Mas, francamente... aquilo não era coisa que se dissesse. O chefe do Governo, o ilustre catedrático, homem de muito livro, muito compêndio, muito pensamento, muita escrita, suposto cavalheiro esbanjador de maneirismos escolásticos...

17*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| CRÓNICA

Page 18: O CHA Nº 10

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Página par 248 mm 303 mm 612,50 1.286,25 2.940,00 5.145,00

1/2 Página ímpar 248 mm 148 mm 525,00 1.338,75 2.520,00 4.410,00

1/2 Página par 248 mm 150 mm 350,00 1.067,50 1.680,00 2.940,00

1/2 Página ímpar vertical 121 mm 303 mm 595,00 1.517,25 2.856,00 4.998,00

1/2 Página par vertical 121 mm 303 mm 455,00 1.160,25 2.184,00 3.822,00

1/4 Página 121 mm 148 mm 262,50 669,38 1.260,00 2.205,00

1/8 Página 121 mm 71 mm 175,00 446,25 840,00 1.470,00

Rodapé 1ª página 248 mm 71 mm 875,00 2.231,25 4.200,00 7.350,00

Rodapé pág. ímpar 248 mm 71 mm 612,50 1.561,88 2.940,00 5.145,00

Rodapé página par 248 mm 71 mm 227,50 1.160,25 2.184,00 3.822,00

Orelha 1ª página superior 77 mm 71 mm 1.050,00 2.677,50 5.040,00 8.820,00

Orelha 1ª página inferior 77 mm 71 mm 700,00 1.785,00 3.360,00 5.880,00

NOVOSPREÇOS

- Seus grandes filhos da puta! — Foi com estes termos, assim mesmo, que o senhor professor-doutor Marcelo Caetano alvejou os repórteres que lhe haviam seguido o rasto até ao portão da quinta do engenheiro Arantes e Oliveira.

Estamos diante de uma historieta que envol-ve o plumbear da “solidez” do caetanismo. Um caetanismo emblematizado como primaveril e como rompedor de salalés e reumatismos po-lítico-ideológicos. Mas o regime estava mina-do. Era conhecido o nome de um redarguente a mexer-se nas Forças Armadas. E havia outras zonas de fugidia contestação. Numa delas, em posição recuada, estava precisamente o enge-nheiro Arantes e Oliveira. Dado como indis-posto ou mal disposto. Havia sido ministro das Obras Públicas.

Ao pretender uma conversa, certamente a sós, com Arantes e Oliveira, o senhor professor-dou-tor Marcelo Caetano cumpria uma verdadeira missão secreta. Missão cabalística, à revelia dos seus ministros, do seu Presidente — morno vizi-nho dos pastéis de Belém — dos deputados, da mesa da União Nacional, das Forças Armadas. E, quem sabe, do bom povo. Uma verdadeira, repito, missão secreta.

É verdade que nós, os repórteres, não soube-mos refrear a pulsão da corrida à cacha. Resulta-do: ao chegarmos junto da herdade de Arantes e Oliveira, ainda sua excelência o Presidente do Conselho, acabado de sair do automóvel, ajeitava o casaco e a gravata.

No entender, creio, do senhor professor-dou-tor Marcelo Caetano, ele acabava de ser apanha-do. A bom rigor, com a boca na botija.

Daí a explosão, a inconsiderada manifestação colérica: “Seus filhos da puta! Quem é que os cha-mou para aqui? Quem foi?!!!”.

Caetano aos pontapés na Casa de Chá

Eu tenho de admitir que o acaso terá feito de mim, virtual ou objectivamente, uma referência testemunhal repugnante para os branqueadores da imagem do senhor professor-doutor Marcelo Caetano. Imagem tricotada com as mais habili-dosas agulhas da função. Num país hoje domina-do por arrivistas e mercadores, todos eles infati-gáveis a espremerem as grandes tetas do rendoso 25 de Abril. A mamarem na mais ruidosa impu-nidade e com a destreza malabar do mais bacoco chico-espertismo.

A verdade é que das duas, uma: ou, em várias ocasiões, coube-me estar onde não deveria, àquela hora, ter estado, como estive, ou então sua excelência o senhor Presidente do Conselho, professor-doutor Marcelo Caetano, foi particu-larmente desafortunado ao ter estado onde eu não deveria, pelo menos àquela hora, ter estado, como de facto estive.

Desse azar é bem ilustrativo o episódio da Casa de Chá. Memorável, arrisco eu. E digo azar porque, naquele dia, na RTP, o repórter esco-lhido por José Mensurado — grande jornalista, sublinhe-se — fui eu...por ter sido quem mais cedo entrou para o turno da tarde. “Olha, prepa-ra-te”, disse-me o então director da Informação na RTP, “vai a Monsanto, à Casa de Chá, e tenta perceber quem é o pesado da NATO, ou do FBI,

ou da CIA, que vai lá encontrar-se com o Marcelo Caetano...”.

Comigo deslocaram-se, apenas, dois operado-res de imagem. Não levámos som. O senhor professor-doutor Marcelo Caetano não dava confiança. Nada de conversas. Prevalecia o che-guem-se para lá.

Combinado: fomos para a Casa de Chá. (Numa próxima oportunidade, eu explicarei como obtinha a RTP certo tipo de informações do foro do poder).

Chegada a Monsanto, a equipa televisiva por mim capitaneada começou por instalar-se no ter-raço do 1º andar da Casa de Chá. Os operadores colocaram as duas câmaras no chão cimentado. Uma, muito perto das escadas. A outra, à entrada, mas cá fora, do salão. O senhor professor-doutor Marcelo Caetano chegou por volta das 15 horas e trinta minutos.

Vimo-lo surgir sozinho, um eufemismo, por-que os pides nunca faltavam. E nem tempo tive-mos para apurar se o tal misterioso interlocutor seria do FBI, da NATO, da CIA ou de qualquer outra “instituição” da mesma família filantrópi-ca. Não tivemos tempo porque o senhor profes-sor-doutor Marcelo Caetano, ao dar-se conta da presença dos repórteres, fez o impensável: muito firme nas suas fantasias coléricas, aplicou um va-lente pontapé na primeira das câmaras, que ro-lou, coitadinha, no duríssimo solo.

Encerrado o piedoso acto, seguiu-se pronta-mente o segundo: certeiríssimo pontapé na outra câmara. Que, fiel aos princípios do espectáculo rolou, também, obediente, no mesmíssimo duro solo do terraço.

Como é que, numa Casa de Chá, pode o senhor Presidente do Conselho permitir-se tal prova de falta de chá?

*Jornalista e investigador[continua]

18 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|CRÓNICA

Page 19: O CHA Nº 10

As autobiografias de Nelson Mandela e de Eduardo Mondlane são discursos do Eu ao espelho repartido da diáspora protestatária

moderna, textos marcados por uma estética de re-sistência, produzida na luta contra o etnocentrismo colonial. Pela razão apontada, serão convocados a dialogar entre si, e em contraponto com a Literatura de Escravos, até Frederick Douglass, bem como com a linha de líderes políticos que ele inicia, e se esten-de até Martin Luther King. Propõe-se como linha temática de investigação a observação do Nome Humano Individual nas narrativas em apreço, por este se configurar um elemento de diagnose social e cultural, susceptível de ilustrar e problematizar situações de centro e de periferia, partindo do pres-suposto teórico que deter um lugar devidamente localizado na periferia não é estar na marginalidade.

O processo de reconstituição das identidades in-dividual e social, em que o Nome Humano Indivi-dual se tem apresentado como símbolo do descen-tramento errante a que foi submetido o indivíduo escravo, contingência que vive na memória recente e longínqua que o sujeito tem de si próprio, encon-tra eco nas autobiografias contemporâneas de Nel-son Mandela e de Eduardo Chivambo Mondlane.

Num abreviado percurso pela Literatura Afro-a-mericana nos E.U.A., no seu início, se «Bars Fight», o único poema de Lucy Terry (1724-1821), circulou oralmente durante aproximadamente cem anos an-tes da sua primeira publicação, em 1855, e é conside-rado o texto inaugural das Letras Afro-americanas, o poema «An Evening Thought: Salvation by Christ, with Penitential Cries», de Jupiter Hammon (1711-1790/1806), com a sua publicação em 1760, celebri-zou o seu autor, considerado o primeiro versificador publicado na História da Literatura Afro-americana. Posteriormente, em 1778, o escritor dirige um poe-ma de 21 quadras à que foi considerada a primeira autora afro-americana de reputação internacional, «An Address to Miss Phillis Wheatly».

Apesar de ambos os textos estarem ainda embuí-dos de uma moral religiosa assimilacionista, onde a tónica é “salvação espiritual”, em vez de “resistência política”, o que é certo é que Hammon contribui já, de alguma forma, para uma aproximação da linha de protesto social, ao invocar episódios bíblicos, aturadamente insinuadores da igualdade humana.

Embora os nomes mencionados se destaquem

como autores de uma escrita lírica de intenção ri-mática sistemática, os seus escritos assumem, no entanto, contornos de texto autobiográfico. O Sujei-to Poético, autoral, implica-se de forma identitária no referente poético, junção plural que o pronome pessoal We torna clara, no registo grafado de vivên-cias espirituais ou terrenas que, por serem de índole colectiva, mostram como o indivíduo se auto-repre-senta por identificação com os outros, o seu grupo humano de pertença.

No entanto, o primeiro texto autobiográfico es-crito em prosa é uma narrativa de cativeiro, que surge em 1760, e se intitula Narrative of the Uncom-mon Sufferings and Surprizing Deliverance of Briton Hammon.1

Em 1789, The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the African, Written by Himself foi considerado o protótipo auto-biográfico de maior êxito durante todo o séc. XVIII, com a particularidade de inaugurar uma escrita independente, isto é, menos dirigida por escritores e editores brancos. Por contraste com a projecção internacional que ganhou a narrativa de Equiano, menciona-se apenas a quase imperceptível auto-biografia de Venture Smith (1729?-1805), publicada em 1798, A Narrative of the Life and Adventures of Venture, A Native of Africa. Ambos os autores, oriun-dos de reinos africanos situados na costa Ocidental, se referem à sua ascendência real, assim como ao corte violento com a sua linhagem dinástica de su-cessão.

No que diz respeito ao séc. XIX, a quantidade de narrativas de escravos que emerge neste período mostra que este é um século literariamente fértil, tendo este género de relatos de vida continuado a surgir no séc. XX, quer na forma canónica de 1ª. pessoa, quer em forma de romance na 3ª. pessoa, contudo, de índole autobiográfica.

Assim, se o nome de William Wells Brown (1814?-1884) é um marco literário importante nas letras do séc. XIX, às quais também se juntam os nomes de Josiah Henson e de Henry Bibb, as autobiografias de Harriet Jacobs (1813-1897) e de Frederick Douglass (1818-1895) são dois marcadores principais do sé-culo em menção, na autobiografia afro-americana.

A Literatura de Escravos acima referida são escri-tos do Eu que relevam a impossibilidade de escolha do Nome Humano Individual, a anulação da sua

descendência familiar, bem como do local de nas-cimento, situação de aniquilamento, em que a tra-dição genealógica africana se foi perdendo ao longo dos tempos, e ao escravo lhe foram sendo impostos os diversos Nomes dos seus senhores, que o regista-vam como bem de sua pertença, comprado, suscep-tível de ser leiloado e doado como herança.

A perda do Eu, revelada na instável contingência a que estava votado o nome dos escravos, situação que declara um significado social de inexistência, vem a ser reparada pelo texto autobiográfico afro-a-mericano: o Eu grafado liberta um grito de auto-afir-mação, encorajado pela Modernidade americana, que elegeu Narciso como seu símbolo preferen-cial. Assim, a autobiografia afro-americana veio a consagrar-se como facto cultural da Modernidade, instituído como tradição literária, é uma moderna tradição que faz a recuperação do Eu perdido. Deste modo, a literatura em menção faz a representação de dois momentos que, antagonicamente, se impli-cam: o período da escravatura, aniquilador do Eu, e o período que acarinha e corporiza o espírito da de-signada Emancipation Proclamation, em que se foi operando o resgate da identidade perdida, na emer-gência do Eu que, pela palavra escrita, ganhou voz.

A voz de que se fala é a voz que lutou pelo seu re-conhecimento, publicamente firmada pela oratória política, celebrizada por Frederick Douglass (1818-1895) e por Martin Luther King Jr. (1929-1968), dois marcos importantes de uma linha contínua de lí-deres políticos, que integrou Booker T. Washington (1856-1915), numa versão mais extremada do racia-lismo negro Marcus Garvey (1887-1940), e William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963).

Esta linha de líderes políticos contemporâneos, traçada nas suas próprias autobiografias, é um cor-pus literário em que dialoga a contestação ideológi-ca, alargando, sem fim, as zonas literárias da diás-pora política afro-americana. O mapa geográfico desta interactiva escrita autobiográfica, protagoniza a crítica ao ideário colonial moderno, dentro e fora dos E.U.A., configurada no discurso anti-colonial, em que o indivíduo negro deixa de ser “objecto de discurso”, para se afirmar como “sujeito e objecto de discurso”.

Proposta como paradigmática da escrita Auto-biográfica Afro-americana, a discursividade irreve-rente e contestatária dos textos de Eduardo Mon-

Maria Manuela AraújoDoutorada em Estudos LiteráriosFaculdade de Letras da Universidade de [email protected]

Rememorando Nelson Mandela e Eduardo Mondlane a Propósito do Filme Biográfico 12 Anos Escravo

1 Para acesso ao titulo completo deste texto, veja-se Lauter, Paul (ed.). The Heath Anthology of American Literature, 4 th. ed., vol.1. Boston, New York: Houghton Mifflin Company, 2002, p. 1102.

19*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014| HISTÓRIA

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HISTÓRIA

dlane e de Nelson Mandela revela, como pontos de semelhança, o facto de ter crescido dentro da tradição religiosa protestante, bem como ter sofrido a influência dos mesmos líderes políticos, ou seja, de algumas figuras proeminentes do Renascimento Negro e, no caso de Eduardo Mondlane, muito es-pecialmente, do círculo científico de Chicago, pólo intelectual africanista.

Dos mencionados políticos africanos, salienta-se o facto de Eduardo Mondlane, segundo a tese de-fendida por Silvério Pedro Eugénio Samuel 2, ter sido formado, nos E.U.A., dentro da tradição liberal americana, o que pode conferir maior pertinência ao paradigma estabelecido.

Nas narrativas memorialistas de Mandela e de Mondlane o percurso do Nome é marcado, de ma-neira ambivalente, quer pela força inalterável da tradição, quer pelo poder normalizador da Moder-nidade, definida como racional, científica, ocidental e, no presente contexto, também colonial. A interde-pendência destas duas forças dinâmicas, no proces-so de construção das identidades culturais e sociais dos indivíduos aqui implicados, deve-se, sobretudo, à viagem voluntária do campo para a cidade, do col-mo para o zinco, da palhota para a barraca, até che-gar à telha e ao betão, deve-se ao contacto dos sujei-tos africanos com a vivência urbana ocidentalizada, e dominada pelo colonialismo, verificando-se, em ambas as narrativas, uma construção genealógica complexa, descrita com pormenor, reveladora de uma estrutura linhagística de que o Eu é representan-te colectivo, e da qual ele se mostra brioso, ou mesmo glorioso.

Nelson Mandela dá iní-cio à sua autobiografia, começando por afirmar a importância do Nome Humano Individual na so-ciedade tradicional xhosa, a nação da qual é oriundo: «Apart from life, a strong constitution and an abi-ding connection to the Thembu royal house, the only thing my father bes-towed upon me at birth was a name, Rolihlahla.» (Mandela, 2002, vol. I, p.3)

No entanto, se Mandela, logo no princípio da obra, parte que dedica ao relato da sua infância no campo, se refere à importância do nome xhosa atri-buído à nascença pelo pai, esmiuçando o seu signi-ficado, ao explicar os sentidos literal e coloquial do mesmo, de igual modo ele releva o facto de o nome inglês Nelson lhe ter sido colocado no primeiro dia de escola, isto é, pela administração colonial, concluindo: «My more familiar English or Chris-tian name was not given to me until my first day of school. But I am getting ahead of myself.» (Mandela, 2002, vol. I, p.3)

Por outro lado, na narrativa de memórias intitula-da Chitlango Filho de Chefe, ao Eu protagonista é transmitido, desde cedo, a importância do nome que herda à nascença, relevância essa que aparece bem marcada numa das conversas que Chitlango tem com a sua mãe, em que a elocução da mesma se faz através de um discurso metafórico, orientado para a acção física do quotidiano doméstico:

- Mamã, a escolha do nome tem importância?- Chitlango, olha para esta panela de ferro que o teu pai

comprou nos brancos. Tem uma tampa e em cima da tampa, uma pega. Meu filho, um nome, é a pega em que os deuses agarram para manejar a tampa da nossa vida. Alguns nomes fazem-lhes medo, outros sorriem-lhes, ou-tros ainda impõem-lhes respeito. A avó disse-te que o teu nome é querido dos deuses. Um nome querido dos deu-ses é uma bênção. (Khambane, Clerc, 1990, p. 53)

O nome Eduardo Chivambo Mondlane segue um percurso idêntico ao nome Nelson Mandela. Os dois sujeitos no-meados, embora de-tentores de identida-des étnicas diferentes, têm em

comum, não só o facto de as suas culturas de origem derivarem do grande tronco Bantu, mas também de os dois indivíduos terem sido sujeitos ao mesmo fenómeno de conformização linguística, pela im-posição de uma língua de coloniza-ção, ainda que por diferentes países colonizadores.

Eduardo Mondlane, apesar da descendência directa Zulo dos seus pais, afirma ser Tsonga, «Eu sou to-talmente um Tsonga.» (Manghezi, 2001, p. 64), sujeito falante da lín-gua-mãe Changane. Nelson Man-dela pertence ao povo Thembu, que faz parte da nação xhosa, sen-

do sujeito falante da língua Xhosa. Mondlane, refe-rindo-se aos diferentes contextos de colonização, Moçambique e a África do Sul, a propósito da obra Here is the Veld, de Attilio Gatti, a qual criticou, por carta, com Janet Mondane, afirma:

Lembra-te de que eu próprio não sou cidadão sul-afri-cano. Sou cidadão português. No meu país não temos leis de segregação... Eu farei tudo o que puder para lutar pelos direitos do meu povo no meu próprio país, onde ainda temos muito a fazer para melhorar a sorte da maioria do meu povo, que não tem educação. (Manghezi, 2001,p.64)

Assim, melhor se percebe que a permitida cida-

dania de Mondlane, tal como a de Mandela, ao im-plicar o trânsito do espaço rural, tradicional, para o espaço urbano, moderno, tivesse que ser assinalada com um nome próprio europeu, obrigatório e, na maior parte das vezes, posto fora da possibilidade de escolha, quer do sujeito nomeado, quer da famí-lia do mesmo.

Nas designadas Províncias Ultramarinas do Esta-do Português, sobretudo nos meios rurais, era prá-tica corrente dos funcionários da Administração Civil alterar o nome de nascimento das crianças pertencentes às culturas autóctones. No momento do seu registo, para Assento de Nascimento, o nome colocado no seio da cultura-mãe era, normalmente, modificado de forma aleatória, por fazer parte de um sistema linguístico estranho ao monolinguismo colonialista. Também acontecia que, à falta de ou-tro, o nome próprio colocado aos sujeitos em causa fosse inspirado no nome bíblico do eleito Santo do Dia, sendo só depois autorizada a permanência dos nomes herdados à nascença. O primeiro contacto com a nova fórmula oficial de identificação era feito na escola.

Se a autobiografia de Nelson Mandela confere vi-sibilidade à instituição estatal escola, como estrutu-ra impositiva de um saber ditado pela ideologia de uma minoria dominante, onde o exercício repres-sor, conducente à desindividualização, começa logo por se fazer operar a nível da assimilação forçada de um nome, também o texto de Eduardo Mondlane nos mostra, na discursividade das vozes que repre-senta, a mesma perspectiva castradora de singulari-zação humana, operada pela escola.

Em ambos os textos, a escola colonial surge como órgão de poder desestruturador do nome original do sujeito, ideador do primeiro nome, dentro do mesmo espírito colonialista que motivou a secun-darização do nome de nascimento, processo que traduz uma inserção periferizante da cultura de per-tença dos sujeitos, a aculturar ao sistema silenciador em causa.

As estratégias em causa, historicamente discrimi-natórias, tinham como objectivo conduzir o indi-víduo à perda do seu lugar específico, à anulação da sua diferença, lançando a confusão mental e iniciando um processo de disrupção identitária, desencadeado no Nome, mas em que, progressiva-mente, o sujeito se vai confrontando com outros ac-tos de desvalorização humana, deliberados em fun-ção da cor da sua pele, anuladores das línguas-mãe de África, das suas sociedades, das suas culturas, das suas nações, dos seus povos, dos seus clãs familia-res, dos seus impérios, da sua História.

O texto memorial de Mondlane traz para a clarei-ra luminosa da escrita um Eu que, à priori, parece perder o seu centro, na ânsia de querer apreender e compreender uma nova lógica de pensamento, estruturadora da Razão imperante que o segre-ga. Mondlane manifesta vontade de adquirir um outro conhecimento, o do mundo dos molungos, dos brancos, que pretendem sentá-lo no banco do aprendente submisso, e ao qual só poderá ace-der se aceitar os respectivos preceitos impostos. As

2 Veja-se, SAMUEL, Silvério Pedro Eugénio. Pensamento Político Liberal de Eduardo Chivambo Mondlane. Tese apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de doutor em Filosofia. Faculdade de Filosofia de Braga, 2003.

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condicionantes de acesso ao mundo dos brancos recordam, em termos simbólicos, a viagem iniciá-tica antiga, neste caso, a viagem é o trânsito para a Modernidade Ocidental, e o seu herói passará por uma entrada moderna ritualizada, cuja iniciação se faz através da ditadura do “novo”, um novo nome, um código de acesso e de aceitação, não reconhe-cido, no entanto, pela competência linguística do sujeito em causa, nem pelas suas matrizes culturais, igualmente sem significado dentro do seu univer-so sagrado, mas que ele, assimetricamente, deseja compreender.

O ponto de vista acima verbalizado é textualmen-te dramatizado, de forma explícita, no diálogo es-tabelecido entre Chitlango e o seu mestre pastor,

Madjerimane, que, após a contextualização do mes-mo, se transcreverá. No decorrer do referido diálogo, Chitlango revela a Madjerimane a enorme vontade de partir da sua aldeia, em demanda da cultura lu-zente do branco, o lugar distante, onde a forma das casas fere a concertada unidade do círculo cósmico. (Cf. Khambane, Clerc, 1990, p. 43)

Aos olhos do seu educador, Chitlango envereda por um caminho que trai os princípios regulado-res da ordem tradicional, de entre eles, o que ex-plicitamente está contido na advertência seguinte: «Tens de falar a língua dos brancos.» (Khambane, Clerc, 1990, p.102). Se Chitlango concretizar o de-sejo manifestado, e segundo as regras da tradição, terá de renunciar ao nome que, comunitariamen-

te, representa e personifica, o qual tem a obrigação de honrar, pois sua mãe, desde cedo, lhe incute a responsabilidade de honrar o nome que herdou: « - Chitlango, honra o nome que tens.». (Khambane, Clerc, 1990, p.13)

Chitlango arrisca procedimentos que não corres-pondem, de todo, às expectativas familiares e co-munitárias, ao questionar aspectos da sua própria cultura, embora o faça, no seu ponto de vista, para melhorar a vida do seu espaço de pertença, rebel-dia que o coloca no papel de africano que se propõe qualificar, inovar, modernizar a própria tradição cul-tural africana, revelando um discernimento não co-mum ao pensamento dos seus aldeãos.

O desejo de implantar novas leis na sua aldeia, me-

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xendo assim na estrutura de um passado imodificá-vel, começa já por ser indiciador de um processo de transformação pessoal, vital, que compromete o lu-gar herdado de chefe tradicional, liderança destinada, que converte em liderança escolhida, ou seja, o chefe tradicional caminha na direcção do futuro líder políti-co nacional, experiência fundamental que foi toman-do forma, e cresceu, dentro da sua vivência directa do divino, nas missões protestantes onde sempre estu-dou, em Moçambique, na África do Sul e nos E.U.A.

Chitlango ficou impressionado com a comunidade dos pastores em Niarangole, com a forma dura como foi recebido e iniciado nas suas leis, com o facto de haver fome e, segundo a tradição, só as mulheres po-derem trabalhar nos campos, enquanto aos homens lhes competia, estritamente, o manejo das armas.3 Vai-se sentindo perplexo com o que vai descobrindo, um mundo de regras cruéis e generosas, heróicas e co-bardes, começando, assim, a sua primeira indagação existencial, em que o Eu se pergunta em que mundo vive, e «Como conciliar estes contrários?» (Khambane, Clerc, 1990, p. 101). Chitlango contraria o conformismo de Madjerimane, declarando-lhe:«-Pois bem Madjeri-mane! eu vou compreender [o mundo dos brancos] e ao mesmo tempo continuar a ser um verdadeiro Africano» (Khambane, Clerc, 1990, p.102)

Eduardo Mondlane mos-tra que, apesar da sua assu-mida identidade Tsonga, da identificação sentida com a sua gente, a consciência de que era preciso mudar foi germinando, em si, desde então, motivando a reorien-tação do seu protagonismo, que envolveu a renúncia à tranquilidade fundamentada no hábito, levando-o, em consequência, mais longe, quando decidiu lutar com as imposições colonialistas, tendo-se submetido para poder conhecer e, posteriormente, regressar a casa, para libertar e modernizar o seu país.

Chivambo não se conforma com a alienante convicção de Madjerimane, « - O que é que queres Mudar Chilango? Nós somos pretos. Vivemos como pretos, com as nossas regras...», e sem trair a sua cultura, manifesta o desejo de partir, sem, contudo, deixar de ser «[...] um verdadeiro afri-cano» (Khambane, Clerc, 1990, p. 102). A sua posição não é compreendida pelo mestre que o inicia na arte da pasta-gem, pelo que Madjerimane lhe responde evasivamente: « “[...] - Basta Chitlango. Vai à escola. Põe um chapéu e uma camisa, sapatos e umas calças. Ficarás bonito e vais-te chamar Delfim ou Maomede, como os molungos, como os brancos. Passe bem, Maomed Delfim! ” » (Khambane, Clerc, 1990, 103).

Assim, a instituição escola, dentro do contexto colo-nialista em foco, revela ser o primeiro elemento per-turbador do inicial mundo de referências de ambos os autores, desordem identitária que fica assinalada com

o primeiro nome, Nelson e Eduardo, símbolos de uma etapa, primeiro obstáculo a transpor, no longo e árduo percurso dos heróis em causa, e a que Nelson Mandela chamou Long Walk to Freedom.

Por contraste com a condição a que o nome indi-vidual foi sujeito nas Narrativas de Escravos Afro-a-mericanas, em que este nunca mostrou constituir-se voz presente de um passado ancestral, nos dois textos autobiográficos africanos, a constituição dos nomes Eduardo Chivambo Mondlane e Nelson Mandela revela, na coexistência do primeiro nome

ocidental com o(s) nome(s) africano tradicio-nal, a forte evidência da palavra escrita, que não só se constitui vestígio histórico de domí-nio colonial, tal como o nome do escravo, mas também se apresenta como superfície visível, que anuncia uma profunda raiz histórica, es-condida, mas que foi escapando à vigilância

da Modernidade Ocidental, marcando a sua escrita, ainda que de forma subalternizada.

A composição mista destes nomes poderá confi-gurar-se como símbolo de um cruzamento cultu-ral e civilizacional assimétrico, entre Modernidade Ocidental e Tradição Africana, em que a língua do colonizador inscreve, no sistema semiológico da sua escrita, um outro sistema linguístico de vivência oral, a língua do colonizado, que embora tolerada, vive, não obstante, em situação de subordinação, pela prioridade concedida ao nome colonial, face ao qual os nomes africanos foram periferizados.

O raciocínio acima verbalizado parece ser confir-mado pela seguinte asseveração de Nelson Mandela: «Africans of my generation – and even today – ge-nerally have both a Western and an African name. Whites were either unable or unwilling to pronou-nce an African name, and considered it uncivilized to have one.» (Mandela, 2002, vol.I, p.19).

Da mesma forma, fica igualmente esclarecida a razão pela qual foi afastado o seu nome xhosa de nascença, Rolihlahla, que em Xhosa, no seu sentido

literal significa «arrancar o ramo de uma árvore», e no seu sentido coloquial significa «o que causa pro-blemas» (Mandela, 2002, vol.I, p. 3), embora o nome africano de família, Mandela, herdado do avô 4, te-nha sobrevivido até aos dias de hoje, assim como, em circunstâncias especiais, o epíteto respeitoso de Madiba, nome do seu clã. 5

No texto autobiográfico de Eduardo Mondlane, no prefácio da obra, o Dr. Pascoal Mocumbi escla-rece, que também o nome Tsonga de nascença, Chivambo, foi substituído por Chitlangou, preci-samente «[…]para evitar a repressão colonial[…]» (Khambane, Clerc, 1990, p.3), variação onomástica que pretende iludir a vigilância do poder vigente.

Chivambo herdou um nome de alta linhagem, seu pai era regente do clã Khambane, representan-te de uma linha nobre de ascendência, da qual sua mãe o foi consciencializando: « - Os teus antepas-sados foram tão grandes senhores que reuniram e comandaram os exércitos contra o invasor Zulu, há dezenas e dezenas de anos.» (Khambane, Clerc, 1990, p. 14). O nome herdado à nascença invoca o último predecessor mais afamado do seu ramo familiar, Chitlango-o-Velho, assim como outros ramos genealógicos nos quais entronca, pelo que sua mãe faz questão de lhe revelar, discriminada-mente, a sua ilustre nomeada: «O último grande senhor do país, amado e respeitado – se bem que submetido aos brancos – foi Chitlango-o-Velho, que governou muito, muito tempo. Ele veio a se-guir a seu pai, Psarithio, filho de Mitambuti, filho de Chipeniane, filho de Khambane, filho de Ndzo-vo.» (Khambane, Clerc, 1990, p. 14).

A sucessão de nomes acima transcrita transpor-ta até ao presente narrativo uma memória longín-qua, que marcou o nome completo dos sujeitos em causa. A tradição revela aqui sobreviver sob a forma de chamamento da ancestralidade, de en-tidades espirituais, os grandes antepassados se-pultados na orla da floresta sagrada. O universo sagrado de transmissão divina de que o sucessor africano acredita ser personificação, represen-tação do seu poder e conhecimento, rege-se por uma espécie de encarnação, de possessão linha-geira, a imortalidade desejada e contida na adver-tência verbal da mãe, a Chitlango:

- É preciso que te lembres muito bem dos nomes de to-dos estes grandes chefes, porque eles vivem connosco. [...]

- Quando um chefe morre e se enterrou o seu cadá-ver, ele mesmo vai para a “Grande assembleia dos che-fes mortos”. (Khambane, Clerc, 1990, p.14)

A Grande Assembleia dos Chefes Mortos que se reúne à sombra de uma árvore, deuses a quem todos os mem-bros da aldeia têm de render culto, e prestar contas de todos os acontecimentos importantes das suas vidas, por intermédio de um sacerdote, veículo entre os homens e o divino, e vice-versa, a quem o pai de Chitlango comuni-cou o nascimento do seu filho, e ao qual, por regozijo dos deuses, lhe foi posto, sem equívoco, o nome de Chivambo.

Assim, Chivambo adquire o nome de um dos deu-ses do clã Khambane, um dos clãs que, nas suas pa-

3 (Cf. Khambane, Clerc, 1990, cap. XII)

4 Mandela , filho mais novo da Casa Ixhiba. (Cf. Mandela, 2002, vol. I, pp. 5-7)

5 Madiba era o nome de um chefe Tembu que, no séc. XVIII, reinou no Transkei, tendo dado o nome a um clã, ao qual pertence Mandela. (Cf. Mandela, 2002, vol. I, p. 5)

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lavras, «[…] continua a viver e a distinguir-se […]» (Khambane, Clerc, 1990, p.30), sendo eleito mhamba, «[…] a pessoa que irá estabelecer um laço entre os deu-ses-antepassados e o clã.» (Khambane, Clerc, 1990, p. 31), assumindo, convictamente, a sua identidade Khambane, logo na sua infância, durante a cerimó-nia festiva do seu clã, na capital mística dos Kambane, a orla da floresta sagrada, quando profere: «Sou um Khambane. Sou o grande Chitlango dos Khambane. Todo o clã vive em mim. Eu encarno-o.» (Khambane, Clerc, 1990, p. 23)

No entanto, a transição deste mundo tradicional africano para a progressiva vivência da moderna civi-lização ocidental implica, em Eduardo Mondlane, uma outra identidade, erigida dentro das várias missões religiosas e universidades, que o acolheram e onde se formou, reconhecendo-se na multiplicidade de expe-riências e saberes vividos, como um ser culturalmen-te mestiço: « […] Penso que foi o que me aconteceu, tal como a milhares de outros africanos. Adquiri uma com-preensão suficiente da cultura ocidental para poder ser considerado um ocidental, E, no entanto, continuo a ser essencialmente africano. Não quero dizer que vou viver uma vida africana como viveram os meus pais, isso seria impossível. Mas o que sou agora é uma nova contribui-ção que é desejável para o tempo em que vivo.» (Man-ghezi, 2001, p. 77)

Eduardo Mondlane começou por estudar numa es-cola oficial em Moçambique, dirigida pela igreja cató-lica, mas o seu descontentamento fê-lo mudar para a escola da Missão Suiça, na aldeia de Maússe. Mais tar-de, transitou para Lourenço Marques, onde continuou a estudar e a trabalhar na mesma missão, em que o missionário-chefe, André Daniel Clerc, encorajador da sua autobiografia, assumiu o papel de seu pai adoptivo e guia fundamental, na continuação da sua educação. Desde então, o seu percurso passa pela Escola Meto-dista Americana, em Cambine, Inhambane; pela Es-cola Secundária da Missão Suiça, Lemana, situada no Transval Norte e pela Universidade de Witwatersrand, em particular, ambas na África do Sul; salientando-se ainda o seu trajecto académico nos E.U.A., Oberlin College e Northwestern University. Esta última, uma universidade metodista, famosa pelos seus africanistas, onde Mondlane contactou de perto com o africanista Kimball-Young e onde foi aluno de Melville J. Hersko-vits (1895-1963), o antropólogo fundador do primeiro programa universitário em Estudos Africanos, o qual foi considerado o pai do americanismo negro. Na altu-ra, a Universidade do Noroeste constituía-se como sa-télite do centro científico e ideológico de Chicago, onde se concentrou a intelectualidade multiétnica metodis-ta que marcou a Modernidade Americana em particu-lar, mas também todo o mundo.

Se a identidade ocidental de Eduardo Mondlane fi-cou assinalada no nome Eduardo, a sua identificação com África permaneceu inscrita no sobrenome Mon-dlane, que o reverendo Macavi enalteceu. Nos anos 60, de regresso ao seu país, após onze anos fora, Mondlane é recebido na igreja de Chamanculo, onde o reveren-do Gabriel Macavi proferiu as boas vindas ao Senhor

Doutor Eduardo Chivambo Mondlane, doutorado nos E.U.A. e, na altura, com funções assumidas de líder po-lítico, ao serviço da ONU.

O poema épico, proferido pelo senhor Macavi, eleva Eduardo Mondlane ao lugar de herói nacional, come-çando por exaltar a sua proveniência genealógica que, embora enraizada numa procedência menos relevada, a de Mondlane, ali entronca, conferindo, no entanto, maior ênfase a Mbingwana de Kambane. (Cf. Manghe-zi, 2001, pp. 191-192)

Deste modo, o trânsito vivencial que Eduardo Mon-dlane escolheu percorrer entre várias culturas veio projectar, universalmente, o sobrenome de Mondlane, adoptado como nome de família, extensivo à sua espo-sa, na altura, de naturalidade americana, e filhos.

Eduardo Mondlane, quer a nível do seu suporte reli-gioso, enquanto experiência fundamental do indiví-duo que assume uma consciência messiânica, quer a nível político, na prática de acções intervencionistas de libertação dos povos oprimidos em África 6, veio a constituir-se, igualmente, um potencial líder nacional, cujos objectivos de luta mantiveram alguns pontos de contacto com os propósitos que guiaram os chefes ca-rismáticos afro-americanos: a institucionalização de uma nova ordem, disruptora da lógica colonial.

Nesta afinidade discursiva bebe o fundamento de conferir visibilidade aos diálogos que se geraram entre as duas zonas literárias, a afro-americana e a africana, argumento que justifica a escolha das autobiografias de Nelson Mandela e de Eduardo Chivambo Mon-dlane, ambos líderes políticos, paradigmáticos da li-nha afro-americana, em cujas escritas o Eu é plural e eminentemente ideológico, pontos de convergência comunitária, representantes reconhecidos pelos seus povos, que neles acreditaram como gestores fidedig-nos de um projecto comum, um projecto nacional de transformação social e política.

As vozes que aqui se falam, em acto ilocutório de Eu, dimanam de um «topos guerreiro» 7, que profere da margem para o centro, em rejeição das franjas da mar-ginalidade. Por conseguinte, são textos que parecem falar a mesma língua, uma diáspora discursiva que dia-loga inter-textos.

À luz da aplicação teórica dos conceitos de centro e de periferia, feita por Anthony Smith, vale dizer que o Eu afro-americano, subordinado às etnias dominan-tes do estado colonial euro-americano, insiste falar da periferia para o centro, onde se fizeram ouvir os líderes que afirmaram falar em seu nome. O Eu colectivo de Mondlane e de Mandela efectivaram uma viajem dos seus centros étnicos, Changane e Xhosa, em direcção a outros centros intelectuais e políticos, também go-vernados pelas etnias nucleares dos estados coloniais. As três situações ilocutórias de Eu mostram recusar o estatuto de minorias sociais colonizadas, tendo luta-do pela sua diferenciação cultural e nacional, contra a prepotência dos estados coloniais. Os grupos humanos aqui implicados partem de situações periféricas disse-melhantes, encontrando, não obstante, afinidades no repúdio que fazem do estatuto de marginalidade a que foram remetidos.

Bibliografia Activa:

KAMBANE, Chitlango, CLERC, André-Daniel. Chitlan-go, Filho de Chefe. Trads. Maria de Lurdes Torcato e Ana Maria Branquinho. S/l: Cadernos Tempo, 1990.

MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom, vol. I e II. Great Britain: Abacus, 2002.

Bibliografia Passiva:

ANDRADE, Mário Pinto de. Origens do Nacionalismo Africano: Continuidade e Ruptura nos Movimentos Unitários Emergentes da Luta contra a Dominação Colonial Portuguesa: 1911-1961. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998.

ANDREWS, William L. (ed.). African American Autobio-graphy: a collection of critical essays. E UA: Prentice-Hall, 1993.

BHABHA, Homi K. The Location of Culture. London and New York: Routledge, 2006.

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Trad. Maria Mar-garida Barahona. Lisboa: Edições 70, 1980.

CORNEVIN, Marianne. O Apartheid: Poder e Falsifica-ção Histórica. Trad. Maria Cristina Rocha. Lisboa: Edi-ções 70, 1979.

DERRIDA, Jacques. O Monolinguismo do Outro, ou a Prótese de Origem. Trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? in ASHCROFT, Bill, GRIFFITHS, Gareth, TIFFIN, Helen (eds.). The Post-colonial Studies Reader. London and New York: Routledge, 1999, pp. 24-28.

GATES, Henry Louis, Jr., MCKAY, Nellie Y (eds.). The Norton Anthology of African American Literature. New York and London: W.W. Norton & Company, 2004.

IRELE, Abiola F. The African Imagination: Literature in Africa & the Black Diaspora. New York: Oxford Univer-sity Press, 2001.

Lauter, Paul (ed.). The Heath Anthology of American Li-terature, 4th. ed., vol I. Boston, New York: Houghton Mifflin Company, 2002.

MANGHEZI, Nadja. O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro: Uma História da Vida de Janet Mondlane. Trad. Machado da Graça. Maputo: Centro de Estudos Africanos UEM e Livraria Universitária UEM, 2001.

SAMUEL, Silvério Pedro Eugénio. Pensamento Político Liberal de Eduardo Chivambo Mondlane. Tese apre-sentada à Universidade Católica Portuguesa para ob-tenção do grau de doutor em Filosofia. Faculdade de Filosofia de Braga, 2003.

SARACENO, Chiara, NALDINI, Manuela. Sociologia da Família. Trad. Isabel Teresa Santos. Lisboa: Editorial Estampa, 2003.

SEGALEN, Martine. Sociologia da Família. Trad. Ana Santos Silva. Lisboa: Terramar Editores, 1999.

SMITH, Anthony D. Nações e Nacionalismo Numa Era Global. Trad. Carlos Leone. Oeiras: Celta Editora, 1999.

TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Trads. Fáti-ma Gaspar e Carlos Gaspar. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

6 Tais como as que desenvolveu na ONU, onde apresentou um manifesto político, em que se lê: […]Primeiro que tudo, nós não estamos interessados em fazer parte de Portugal.» (Cf. Samuel, 2003, p.259)

7 Utiliza-se a expressão de Roland Barthes. (Barthes, 1980, p.68)

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“A MASCARA AZULMemorias policiais do reporter Zimbro por AUGUSTO BASTOS

[ Jornal de Benguela, 12-11-1931, p. 4 ]

[CONTINUAÇÃO]

“Não lhe escapou a circunstancia especial de o cadaver se encontrar com a mão direita violentamente cerrada, que o reporter, com bastan-te custo, conseguiu abrir, escapando lhe um pequeno grito involuntario ao encontrar nela qualquer cousa, que se apressou a retirar e a guardar desapercebidamente, emquanto to-dos se ocupavam na assinatura do auto de noticia e exame, em um dos escaninhos da sua carteira, que fez desaparecer rapidamente no bolso interior do seu casaco, ao mesmo tempo que lhe aflorava aos labios delgados um sorriso enigmatico e triunfante e lhe fusilava nos olhos negros um relampago indicativo de qualquer descoberta importante.

Ao ouvir o pequeno grito que o reporter deu involuntariamente, perguntou lhe o Comandante da Policia se havia encontrado alguma cousa, tendo obtido resposta nega-tiva.

- É que estranhei o facto de estar a mão direita tão violentamente cer-rada – explicou o reporter.

- Resultado da luta que houve, em que o desgraçado teria empregado bastante força com essa mão – disse o Comandante.

É natural; é isso mesmo – respon-deu o reporter.

E por ahi ficou o pequeno dialo-go.

Na manhã de quarta feira de cin-zas retirou se Zimbro da casa mor-tuaria e recolheu aos seus aposentos deitando-se para descançar algu-mas horas, pois que havia perdido toda a noute.

Mas antes de se deitar examinou detidamente a cousa que havia re-tirado da mão cerrada do cadaver, e sorriu satisfeito.1

CAPITULO VI

Na verdadeira pista

O reporter Zimbro aliára aos seus trabalhos de reportagem jornalistica e de investigação policial um rapaz africano, inteligente, vivo, chamado Manuel da Silva, com bossa litera-ria e que de cá costuma de tempos a tempos enviar umas cronicas para o «Jornal do Comercio e das Coló-nias», e para o «Diário de Noticias», ecolabora/ção [sic] charadistica para o «Almanach de Lembranças», e com o qual o reporter lisboeta tra-vou relações poucos dias depois da sua chegada a Benguela.

Rapidamente se estabeleceu en-tre os dois uma grande simpatia, tornando se amigos inseparaveis e

tendo Zimbro encontrado em Ma-nuel da Silva, que se tornou o seu braço direito em Africa, um bom e precioso auxiliar, um leal e dedicado colaborador.

Por isso, na noute do assassinato de Jacinto da Cunha, Manuel da Sil-va, que tambem no baile se encon-trava, não deixou de acompanhar Zimbro a casa do brasileiro e velar com ele na camara mortuaria, ten-do se retirado ambos na manhã se-guinte.

Durante o caminho Manuel da Silva fizera esta interpretação ao re-porter detective:

- Creio que o sr. Zimbro encon-trou qualquer cousa na mão direita do brasileiro.

- Ou não fôsse o sr. um rapaz com lume no olho – replicou o interpela-do.

- E o que é, faz favor de me dizer?- Safá [sic]! que curioso me saiu!Devagar, devagar, meu caro sr.

Nem eu ainda sei bem o que é. Logo em casa verei.

- E poderei vêr também?- Irra! Que impaciencia! Sim, se-

nhor, verá, mas não antes da tarde.2

Manuel da Silva fez um gesto de amúo e calou-se, continuando am-bos a caminhar.

Uma vez metido na extraordina-

ria aventura policial, Zimbro pro-meteu de si para si, convencido, como ficou nessa mesma quarta-feira de cinzas, da inocencia de João de Lemos por um precioso indicio que lhe veio parar ás mãos e que o havia de conduzir á verdadeira pis-ta, desvendar o misterio do crime do Cavaco ou da mascara azul, des-cobrir o verdadeiro ciminoso [sic] e entregá-lo as autoridades da terra.

A sua primeira diligencia consis-tiu em alcançar a necessaria permis-são para ir ao calabouço falar com João de Lemos, afim de obter dele os esclarecimentos necessarios que o pudessem guiar na investigação da causa criminal, tendo lhe sido tam-bem[sic] dada permissão para exa-minar o fato, o lenço e a mascara, de setim azul, que a autoridade arreca-dára e trouxera de casa de João de Lemos por ocasião da busca a que ali se procedeu, e que este levára ao baile na noute de Entrudo.3

Ajudado pelo seu inseparavel companheiro Manuel da Silva, con-tinuou o reporter Zimbro a proce-der ás suas investigações policiaes, resolvido a salvar João de Lemos e a fazer castigar o seu verdadeiro autor do crime.“

(Continua)

1 Repare-se como o autor vai referindo várias vezes a “cousa” sem nos dar indícios sobre o que

ela é, deixando o fim do “capitulo” em suspense.

2 Veja-se como o autor continua a jogar com o suspense. A impaciência de Manuel da Silva

figura a nossa própria impaciência e curiosidade sobre o que seria tal “cousa”.

3 Aqui nos deixa Augusto Bastos um primeiro indício sobre o que podia ser a “cousa”,

dizendo-nos que ela é decisiva e sugerindo-nos que pode ter relação com a roupa.

Assim visa estimular o leitor sem lhe dar a solução, mantendo-o em suspense até à próxima

edição do jornal. O nosso leitor terá de ficar também, por isso, à espera do próxima revista…

FOLHETIM24 * Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|

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SAÚDE

VIVER COM QUALIDADEIsabel [email protected]

É um bom começo referir a beleza e as carac-terísticas dos meses do ano e eu gosto de o fazer e neste artigo começamos com mais

um mês…Maio, um mês cheio de predicados, tem uma

série de maravilhosos atributos, é o 5º mês do ca-lendário gregoriano, o seu nome é uma homena-gem à deusa da fertilidade, a deusa romana Bona Dea, é o mês de Maria, da pujança das flores, que abrem e mostram toda a sua magia de cores e cheiros, e impregnam o ar com o seu perfume, a par com a dezena de frutas saborosas próprias desta época em que o calorzinho já está menos envergonhado na Europa e começa o cacimbo no nosso País onde o sol anda meio escondidinho e já nos obriga a vestir casaco ao princípio e fim do dia, a chuva está fora, de férias por outras pa-ragens e o pó não se acanha de polvilhar tudo e todos, deixando a cidade e os campos com o tom da terra cota.

É um mês pródigo em dias disto e daquilo, no nosso País prefiro recordar as datas de Maio de acontecimentos positivos, o dia do trabalhador, dia 7 o dia do silêncio, o dia do reggae, da mãe, da internet, dos geólogos, do enfermeiro, dos mu-seus, dia internacional das famílias, enfim, todos os dias se comemora alguma coisa, para não fa-lar dos eventos históricos, como o dia 20 de Maio de 1498 em que o navegador português Vasco da Gama alcança KappaKadavu, próximo a Calecu-te, descobrindo assim o caminho marítimo para a Índia, mais um benefício para a Europa, a 13 de Maio de 1888, foi abolida a escravatura no Bra-sil, pela lei áurea nº 3.353…enfim tanta coisa boa neste mês luminoso, as menos boas ou muito más há que ter aprendido a lição e esquecer.

A dieta do tipo sanguíneo AB, faz hoje parte da nossa página, é o último artigo sobre a dieta do tipo sanguíneo, mas vamos continuar a dar conta das orientações dos cientistas sobre este impor-tante tema…

Falaremos também dos cuidados a ter com a perda de peso sem orientação, da importância de começar bem o dia, com frutas, sumos naturais, chás benéficos, cereais, mel e pólen. Falaremos também da árvore mais estudada do mundo e suas mais valias, da Xandala e do hibisco, tenta-remos falar das frutas vermelhas…algas …qui-noa…gimboa….ginguba …

Vamos ver o que cabe nestas 2 páginas, o resto nas revistas a seguir…

Perda de peso, não acredite nas dietas relâm-pago, mude o seu conceito e progrida a pouco e pouco, o importante é adquirir novas e saudáveis formas de usar os alimentos e saber mais sobre os que são próprios para o seu tipo sanguíneo. An-tes de começar a cuidar de si, veja qual o seu tipo sanguíneo, faça a sua alimentação e crie hábitos saudáveis à luz do seu tipo de sangue.

Não acredite em dietas ou medicamentos mi-lagrosos.

Primeiro o conhecimento do seu corpo, do es-tado de saúde, do peso adequado à sua idade e altura e depois, devagarinho vá introduzindo no-vos e mais saudáveis alimentos e aprenda a con-fecioná-los duma forma simples e saudável. Ter o peso certo é um hábito e um cuidado eterno.

As saladas bem mastigadas e ensalivadas, a se-guir o prato principal, sempre pouca quantidade, 40% verdes crus, 40% produtos da terra cozinha-dos e só 20% de produto animal. E muita sopa.

Os líquidos meia hora antes da refeição e uma hora depois, durante, só chá quente, de jasmim, caxinde, camomila, folhas de abacateiro já secas, moringa e outros chás digestivos.

Mais importante que tudo é a mudança inte-rior, o querer absoluto, o objetivo de vida, tudo o que se disser ou aconselhar, nada fará sentido e muito menos efeito se o “Acreditar Em Si” não fizer parte da mudança…

Dieta do tipo sanguíneo AB

Como todos os grupos sanguíneos, também este tem a sua história, cheia de características muito sui géneris, por exemplo, este tipo sanguí-neo existe apenas há 900 anos e em apenas cinco por cento da população mundial. Como herança, recebeu os males e os bens do grupo B e A. O seu aparelho digestivo é frágil, apesar de se adaptar bem às mudanças de ambiente e de alimentação. É um mistério da evolução, tem um sistema imu-nológico muito brando, reage melhor ao estresse espiritualmente, com vivacidade física e energia criativa. A herança genética, dos seus antepassa-dos das estepes que eram tipo B, dá-lhes uma for-ma extra de impulso vital, assim como são mais fortes e activos do que os antepassados do grupo A. São uma espécie de tipo sanguíneo centauro, biologicamente complexo, pois há alimentos que não são bons, ou seja prejudicam o grupo A e B e são prefeitos para o AB. “ O tipo AB é o delica-

do produto de uma rara mistura entre o tolerante tipo A e o anteriormente bárbaro, porém mais de-licado, tipo B”. Ele é um enigma, é raro, carismáti-co e misterioso. As anemias, doenças do coração e cancro são alguns dos riscos que as pessoas do tipo AB correm. É fundamental o cuidado com a alimentação e a prática de exercício adequado.

Os alimentos benéficos são as carnes brancas, como carneiro, cordeiro, coelho e perú; o baca-lhau, atum, garoupa, sardinha, cavala, salmão e pargo, são alguns dos peixes recomendados; leite e queijo de cabra, azeite doce, ginguba (amen-doim, um poderoso estimulante do sistema imu-nológico), nozes, castanha da Índia, feijão branco e vermelho, lentilhas e grãos de soja, arroz inte-gral e basmati, aveia e centeio, grãos germinados, alho, batata doce, beringela, beterraba e folhas, brócolos, couve verde e flor , inhame e peino, sal-sa e tofu, tomate, abacaxi e cerejas, limão, kiwi,

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exercício relaxantes e os que fazem suar, como ioga, tai chi chuam, aikido, golfe, ciclismo, cami-nhada, dança, natação, aeróbica, alongamento e meditação. A arte do silêncio é fundamental para as pessoas deste grupo, pois age como um agradável calmante, uma forma de controlar as suas reacções perante o estresse, o modo como reage perante ele é problemática, fazendo subir a adrenalina muito rapidamente, tendo como consequência a ansiedade, irritabilidade e hipe-ratividade.

O tipo AB tem uma personalidade metaforsea-da, um misto de equilíbrio, sensibilidade e excen-tricidade, já que aceita tudo da vida sem pensar muito nos resultados e o seu sangue é isso mes-mo, um amigo de todos os vírus e doenças do pla-neta. A sua personalidade é assim, sempre com um sorriso e os braços abertos, sem rancor, dis-postos a mudar e a encantar o mundo.

Há mais, comprem e sigam o livro “Dieta do tipo sanguíneo, do Dr. Peter D, Ádamo

A primeira refeição do dia e seus benefícios

Hoje vou relembrar os alimentos benéficos para a primeira refeição, já falamos sobre o ma-mão, a banana, o mel, o alho, a chia, levedura de

cerveja, do gérmen de trigo e da importância de usar as frutas de todas as cores.

Mas na primeira refeição deve constar tam-bém a moringa (verde), o aloé vera, o chá de hi-bisco (vermelho), o própolis (agora que estamos no cacimbo, para prevenir as constipações).

Moringa oleifera, é neste momento a árvore mais estudada do mundo, cientificamente pro-vado, porque tem algumas características inte-ressantes, atinge oito a dez metros de altura, tem flor branca o ano inteiro, que se usam na alimen-tação, as suas vagens também se comem quan-do são jovens, depois tornam-se acastanhadas e têm três lados, por isso não há que enganar ao identificar esta árvore e umas sementes que são óptimas para a saúde, mastigando três por dia,

SAÚDE

limão, toranja e uvas; figos; mamão, cenoura; chás de alcaçuz, alfafa, bardana, camomila, equi-nácea, gengibre, ginseng e chá verde; café desca-feinado.

Pesquize e veja o que é nocivo para o tipo AB, como bacon, presunto, coração de animais, per-diz, carne de vaca, porco, veado; barracuda, ca-marão, búzios, lagosta, ostras, enguias, polvo; leite integral, manteiga, queijo; milho, girassol; feijão-frade, favas, grão de bico e milho; cogume-los; abacate, banana, laranja, manga; pimentas; vinagre; xandala; bebidas destilada, refrigerantes e chá preto.

Há alimentos que engordam o tipo AB, como carne vermelha, feijão, sementes, milho e tri-go. Estes alimentos provocam digestões difíceis, armazenam gorduras, intoxicam o aparelho di-gestivo, inibem a eficácia da insulina, provocam hipoglicemia, diminuem o ritmo metabólico e tornam menos eficaz o uso das calorias.

Há alimentos que emagrecem o tipo AB, como o tofu (queijo de soja), frutos do mar, verduras, algas marinhas e abacaxi. Estes alimentos contri-buem para o aumento da eficácia metabólica, da produção de insulina e estimulam a mobilidade intestinal.

Os suplementos são sempre recomendados,

pois são uma ajuda para o equilíbrio e uma mais valia para o organismo no seu todo. Reforça o sistema imunológico, fornece oxidantes contra o cancro e fortalece o coração.

Se a alimentação for correta, o grupo AB não precisa de se preocupar com os suplementos, pois a sua dieta alimentar tem quantidades su-ficientes de vitamina A, B 12, E, ferro e niacina, o que os protege contra o cancro e as doenças de coração… A vitamina C pode ser tomada em pequenas quantidades e também comendo aba-caxi, brócolos, cerejas, limão, morangos e toran-jas ou chá dos frutos da roseira. O zinco é reco-mendado, mas como é uma faca de dois gumes só com orientação médica, principalmente em crianças atreitas a infecções de ouvidos.

O exercício é um hábito saudável para todos os humanos, para o grupo AB os melhor são os

use para reproduzir, reproduzem-se muito ra-pidamente, o ideal era que cada família tivesse duas ou três à sua disposição, devem manter-se mais baixas para quem quer usar todos os dias, por isso se cortam sempre que elas atinjam cerca de dois ou três metros, para engrossar e aprovei-tar as folhas. Tiram-se as folhas e secam- se num balaio (cesto raso de palha) de preferência num espaço com ar condicionado, sempre virando, quando estiverem bem secas, guardar num saco, melhor se for de pano, e usar nos chás e para co-mer diariamente.

Contém dezoito aminoácidos, quatro vezes mais cálcio que o leite, sete vezes mais vitamina C que a laranja, mais vitamina E que a cenoura, ferro, clorofila e muito mais.

Fortalece o sistema imunológico, por essa ra-zão está a ser usada para o HIV.

Utiliza-se em chás, na sopa, no arroz, nos mo-lhos, fresca ou seca (duas colherinhas por dia), substituí a carne pela suas mais valias, acon-selhado para os vegetarianos e para quem quer emagrecer com saúde e paulatinamente.

Xandala ou Kikalanga (aloé vera), é um dos cactos mais importantes da natureza, há milé-nios que é conhecido pelas suas propriedades curativas e também para afastar os maus espíri-tos como acreditavam os judeus. Cleópatra usava o seu gel para o banho, para manter a beleza e as rugas longe da sua pele. A OMS aconselha o seu uso, mas sempre pesquizando primeiro ou seguindo os concelhos de quem sabe para usar a dose certa.

A xandala, tal como o alho, é um regulador, um imunizador, um regenerador de células e fortale-ce o sistema imunológico. Regula a diabetes, as batidas do coração, a hemoglobina, as funções do fígado, a azia, a disenteria, a artrite e principal-mente a saúde e beleza da pele.

Contém dezoito aminoácidos dos vinte e dois que necessitamos, dos quais sete ou oito que o organismo não tem forma de fabricar e que ser-

vem para produzir os outros.Aconselho a usar a xandala

natural, viva, que se usa três anos depois de estar plantada, corta-se sempre as folhas per-to da terra, deixam-se dois dias a escorrer, para tirar o liquido amargo, depois lavar, limpar os picos e cortar toda ela (cin-co centímetros) e guardar no

congelador. Todos os dias descascar e aproveitar o interior da casca para a pele e cabelo e ingerir o interior gelatinoso com o seu sumo ou água. Para quem quer ou prefere pode usar fresca, depois de escorrida, mantendo a folha num recipiente alto.

A xandala mais forte ou verdadeira é a da flor amarela, a nossa, um pouco menos ativa, tem a flor cor-de-rosa.

A nossa receita de hoje é precisamente a me-lhor refeição do dia, o MATA BICHO.

Água, chás, cereais, fruta, moringa, alho e xandala.Viver com qualidade só depende de si…Amem-se e tudo será mais fácil

Isa fontes

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PASSATEMPO 27*Número 10 - 2ª série Ano 2 - Abril / Maio 2014|

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Na sequência da publicação do texto em título no nº. 9 de “O Chá”, trabalho da autoria do jornalista Manuel Rodri-

gues Vaz, reagiram ao seu conteúdo, através de mensagens remetidas à nossa Redacção, os também jornalistas Humberto Costa e Fer-nando Cruz Gomes. De modo indirecto, outros antigos profissionais da informação angolana igualmente se pronunciaram sobre a matéria.

Em face das questões levantadas e atenden-do às responsabilidades que nos cabem, enten-demos ser essencial um pedido de esclareci-mento ao autor do artigo em causa, solicitação que foi atendida. E é pois no quadro dos factos ocorridos e pelo inquestionável respeito que temos pelos nossos leitores, que damos à estampa as afirmações de Humberto Costa e Fernando Cruz Gomes bem como o ponto de vista de Manuel Rodrigues Vaz.

Luanda, 25 de Maio de 2014 O Director

A Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, enquanto instituição que con-tribui activamente para o desenvolvi-

mento da cultura nacional, tem vindo a cumprir exemplarmente e na medida das suas possibili-dades o seu papel de promotor da imagem dos artistas e do país cultural, ao longo de 25 anos ininterruptos.

Constituída como é por gente dos mais diversos quadrantes, não consegue, por essa mesma razão, consensos públicos de apreciação meritória para o trabalho que desenvolve. Clarificando, muitas vezes não consegue sequer a mais simples e vulgar das aspirações, como seja, ver divulgada e por isso conhecida a sua acção. É normal que isto acon-teça? Sim, se tivermos em conta as contradições da sociedade multifacetada onde nos inserimos e onde as identidades se constroem como resultado de discursos recheados de lacunas que vão, entre-tanto, fazendo a verdade.

Sou de opinião que essas situações desfavorá-veis ao bem da Nação poderiam ser revertidas se o discurso que estrutura o mundo social angola-no fosse melhor elaborado e não afectasse as vá-rias áreas das ciências humanas como a exclusão, a violência e a memória.

Luanda, Maio de 2014 J.A.S.

CHÁ COM TORRADAS

Manuel Rodrigues Vaz

Caro Diretor de “O Chá”: Solicitou-me, indiretamente, que esclarecesse

devidamente o “drama” de me ter esquecido de ci-tar o profissional da Informação Fernando Cruz Go-mes, no meu artigo sobre a Informação em Angola nos anos 60, publicado no último número de O Chá.

Perante esta “birrinha”, que eu não aceito de bom grado pela maneira como as coisas se processaram, eu tive de deixar passar uns dias, para “não partir a louça toda”. Agora até me rio por ter dado tanta im-portância ao incidente.

É evidente que muitos nomes de profissionais da Imprensa ficaram de fora, e muitos esquecidos, como é natural, porque meter tudo num artigo de impressões gerais sobre a Informação em Angola em 2 páginas não lembraria a ninguém!

Confirmo totalmente: o Fernando Cruz Gomes foi realmente um profissional da Imprensa em An-gola na data referida, tendo eu conhecimento direto da sua passagem pelo Jornal do Congo, pela Emisso-ra Oficial de Angola e pelo Diário de Luanda, onde foi meu colega de trabalho, assim como pela revista Trópico, cujas dívidas, que não seriam dele propria-mente, teve de pagar durante muitos anos, segundo ele se me queixou muitas vezes.

Nunca fui muito íntimo dele, mas nunca me hos-

Humberto Costa

I Love the True LordTive o privilégio de receber via correio electrónico

a edição nº 9 do Mensário CHÁ. Quero felicitar pela qualidade e importância da informação constante no Vosso Mensário.

Chamou-me particular atenção o artigo das pági-nas 5 e 6, com o título “A informação em Angola nos anos 1960-74: A festa era da rádio”, assinada por Rodrigues Vaz. Parece-me que ele se “esqueceu” de falar num tal de Fernando Cruz Gomes. O Fernando Cruz Gomes chegou a Angola em 1960, tendo desde esta altura estado envolvido activamente na comu-nicação social/jornalismo da época. Esteve na rádio clube de Benguela, na Rádio Ecclésia, no Jornal do Congo, no Comércio, no ABC, na Emissora Oficial, na Província de Angola (consta que foi ele, enquanto director, quem mudou o nome para Jornal de Ango-la). (…) Há muita gente viva que conhece a história. O articulista, que até é seu contemporâneo, deveria não escamotear a verdade.

Fernando Cruz Gomes

Ex-chefe de redacção do Jornal do Congo (Dez 60 a Maio de 62); ex-chefe de redacção de “a pro-vincial de Angola” e, depois, “Jornal de Angola”; ex-chefe do sector da Informação da Emissora Oficial de Angola.

(…) No fundo, era para entrar em contacto com o Rodrigues Vaz, que escreveu um artigo no “Chá” carregado de inexactidões, ainda que mes-clado de algumas verdades. E fiquei triste por ver que essa é que passará a ser... a História. (…)

« A informação emAngola nos anos 1960-74: A festa era da rádio »

tilizou, nem eu nunca o hostilizei, o que me leva a não perceber este acinte pessoal recente.

Quem faz uma antologia escolhe naturalmente, quem faz um resumo escolhe até mais logicamente. Ao contrário do que sugere, eu não me esqueci dele, nem de muitos outros camaradas nossos que passa-ram com brilhantismo pela informação em Angola naquela época. Só que, como se percebe pelo tama-nho do artigo, tratava-se de um resumo e por isso o autor só pode citar os que mais o impressionaram pessoalmente. É subjetivo, claro, mas o mundo tam-bém é feito de subjetividades. E, além do mais, eu até citei as suas duas esposas; a Gioconda Ferreira, já falecida, que era irmã do conhecido costureiro Augustus, também falecido recentemente, e a Arle-te Pereira, que foi um dos grandes nomes do Rádio Clube de Benguela.

Essa de afirmar que o artigo estava «carregado de inexatidões, ainda que mesclado de algumas verda-des», parece-me um bocado forte e recuso-me a co-mentar. E sobre a afirmação do sr. Humberto Costa de que eu escamoteei a verdade, muito menos.

Mas ainda bem que parece que houve este inci-dente provocado pela minha “maldade”. Os dois se-nhores ficaram a conhecer O Chá. Haja Alá, que é sempre grande!

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