o cérebro ou o “mar de dentro” um mitema?

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1 O Cérebro ou o “mar de dentroum mitema? Paulo Pedro P. R. Costa / [email protected] psicólogo, com especialização em acupuntura e saúde pública Palavras chave: cérebro, mitema, etnomedicina, acupuntura Uma busca da concepção e atribuição de funções ao órgão cérebro no sistema etnomédico chinês, da mesma forma com se faz na moderna neurociência ocidental, não pode deixar de avaliar as produzidas nos textos originários da civilização chinesa ou "documentos brutos” segundo Lévi-Strauss (1976 a) produzidos por aquela cultura sobre esse órgão. Em chinês cérebro pode ser traduzido por Não ou Suí Hai 髓海 é descrito como um dos 6 órgãos extraordinários mencionado na literatura clássica (Hiep) um dos quatro mares (Ling Shu) uma fonte (local de armazenamento) do Jing (Energia ancestral) formado pelos rins (meridiano/ órgão).

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texto extraído de: O "mar de dentro", uma perspectiva etnomédica para o estudo do cérebro, sua fisiologia e algumas disfunções na medicina tradicional chinesa. Apresentado para aprovação na disciplina Psiquiatria Transcultural (ISC 717 TESC) / Docente: Mônica Nunes do Programa de Pós - Graduação em Saúde Coletiva do ISC - Instituto de Saúde Coletiva. UFBa - Universidade Federal da Bahia, Salvador, Julho de 2004 - recentemente revisto

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Page 1: O Cérebro ou o “mar de dentro” um mitema?

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O Cérebro ou o “mar de dentro” um mitema?

Paulo Pedro P. R. Costa / [email protected] psicólogo, com especialização em acupuntura e saúde pública Palavras chave: cérebro, mitema, etnomedicina, acupuntura

Uma busca da concepção e atribuição de funções ao órgão cérebro no sistema etnomédico chinês, da mesma forma com se faz na moderna neurociência ocidental, não pode deixar de avaliar as produzidas nos textos originários da civilização chinesa ou "documentos brutos” segundo Lévi-Strauss (1976 a) produzidos por aquela cultura sobre esse órgão.

Em chinês cérebro pode ser traduzido por Não 腦 ou Suí Hai 髓海 é descrito como um dos 6 órgãos extraordinários mencionado na literatura clássica (Hiep) um dos quatro mares (Ling Shu) uma fonte (local de armazenamento) do Jing (Energia ancestral) formado pelos rins (meridiano/ órgão).

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O Nei King se refere a este órgão como o mar de medula, mar dentro, do interior. O ideograma correspondente usualmente é traduzido como medula (marrow), possivelmente também interpretado como referência não anatômica (parte de dentro, como adotamos nesse trabalho) mas também como uma observação sobre a sua matéria constituinte - a substancia branca (mielina e outros constituintes básicos como fosfoglicerídeos, colesterol cerebrosídeos etc. de natureza lipídica) se interpretarmos, assim, o que diz, por exemplo o cap 33 do Ling Shu: "os mares são os locais de reunião da medula, do sangue, da respiração ou energia, dos líquidos e dos alimentos." Os outros 3 mares são: o mar de Sangue, Xue; o mar de Respiração; O mar de líquidos e dos alimentos. Para compreender a natureza dos mares (numa perspectiva do entendimento de quem a concebeu) temos que proceder do mesmo modo que o Imperador Amarelo procedeu no seu diálogo com Qi Bai ao responder a relação entre os si - hai (4 mares) e o homem, obtendo a seguinte resposta: ..."é preciso compreender claramente o Yin e o Yang, o interno e o externo e a localização dos pontos Rong e Shu a fim de determinar os "quatro mares"... Na tradução que utilizamos do Ling Shu de Ming Wong traduz-se Shu como ponto de transporte - usualmente grafados como Luo. Os pontos Shu correspondem a regiões onde se concentram energia, são sensíveis à palpação e a dor local indicam uma alteração no órgão correspondente. Os pontos Rong (Roé) correspondem a pontos especiais com funções específicas. O texto que corresponde a descrição dos pontos Rong e Shu do "mar da medula" dá margem a várias interpretações como pode ser visto nessa reprodução integral que se segue: ..."No cérebro acha-se o mar da medula seu ponto de transmissão, em cima está colocado sobre o Gai (tampa) ou ápice do crânio; em baixo sobre o Feng Fu (habitáculo do vento) nº16 do Vaso Governador" Em termos de neurofisiologia a estimulação de VG20, Ba-Hui o ponto do ápice da cabeça corresponde aos territórios do nervo trigêmeo (ramos supra - orbitário e auriculotemporal respectivamente da divisão oftálmica e mandibular do V par craniano) e do nervo occipital maior que contém fibras de nervo raquidiano do segundo nervo cervical - C2. Os ramos do occipital maior do 2 nervo cervical e terceiro ramo occipital do 3 nervo cervical inervam a pele na região de VG16 (Chen) Uma correspondência à estimulação dos núcleos da ponte e áreas associadas ao controle da respiração, postura, vômito e regulação orgânica no tronco cerebral em tese podem ser testadas. Enquanto símbolo (integrante sistema coerente de conceitos etnomédicos) sobretudo o Ba-Hui (cem reuniões ou encontro de todos) possui uma função similar ao chakra da flor de mil pétalas e temas que se repetem nas mitologias asiáticas representando a sede da compreensão, destinos da "medulas" do Kundalini através da portas e palácios dos meridianos do Vaso Governador e Vaso da Concepção (assim são denominados alguns de seus pontos). A conexão do "mar de medula" com pontos do vaso governador também nos permite estender a este "órgão" as mesmas funções do sistema da conhecida pequena circulação Yin - Yang (vaso da concepção - vaso governador). Contudo como a

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medicina tradicional chinesa baseia-se na observação, não poderia deixar de existir a clara descrição de sua função verificada em afecções típicas como as que se seguem: “Lê-se no Ling Shu: ...” o mar da medula em excesso significa um relaxamento muscular que ultrapassa a medida “... O que pode muito bem ser referências ao coma, estupor ou paralisia flácida numa escala de gradações do relaxamento e “... o mar de medula em insuficiência provoca zumbidos de ouvidos com atordoamento do cérebro (vertigens). Observa-se dores intensas nas pernas, vertigens e perturbações na vista. O relaxamento incita ao sono"... Também não é por acaso que o tratamento de acupuntura que utiliza os referidos pontos (VG20, VG16) destina-se a afecções neuropsiquiátricas (esquizofrenia, comportamento maníaco, depressão) manifestações neurológicas (convulsão, falta de memória) e psicossomáticas (palpitação, prolapsos do anus e útero, febre) (Machado) Como todos os órgãos classificados na medicina tradicional chinesa como Fu (ID; VB; E; IG; B; SJ e Útero) o cérebro tem a função de receber, absorver (digerir), transmitir (excretar) opondo-se a função de armazenamento, produção de substancias essenciais dos órgãos Zang o que também reforça a idéia deste como elemento de adaptação, conexão, também enunciada no Nei-ching e Su-Wen, de que ele articula as relações entre o Jing (energia ancestral que vem dos rins) e o Shen (energia comandada pelo coração) (China, Livro dos 4 Institutos). Sem pretender adentrar nas discussões filosóficas que cogitam a possibilidade do cérebro conhecer a si mesmo, reforçando a necessidade de modelos analógicos, metafóricos, é notável a semelhança da concepção chinesa com os modelos da neurofisiologia / reflexologia russa (pavloviana) especialmente quanto a ser um elemento de conexão interior - exterior, um reflexo - “a relação entre um estímulo e a resposta, nem o estímulo nem a resposta separadamente definem um reflexo” (Klotz). Contudo as origens e sistemas de referência conceituais são indiscutivelmente distintos. Observe-se também que está implícita nesta comparação a distinção entre mito e ciência. A antropologia estrutural identifica que a ciência é construída a partir da percepção/observação e a mitologia da introspecção (Lévi-Strauss, 1976 b) Não se pode dizer entretanto que a mitologia e/ou as concepções chinesas não consideram a observação o "observar-se" e conhecer a mente ou o shen - espírito que comanda o hsing (corpo). Lê-se no livro do imperador amarelo:

"O shen não pode ser escutado com o ouvido, o olho deve ser brilhante de percepção e o coração deve ser aberto e atento para que o espírito se revele subitamente através da própria consciência de cada um. Não se pode exprimir pela boca; só o coração sabe exprimir tudo quanto pode ser observado. Se presta muita atenção, pode-se ficar a saber subitamente, mas também pode-se perder de repente esse saber. Mas shen, o espírito, torna-se claro par o homem como se o vento tivesse varrido as nuvens. Por isso se fala dele como do espírito."

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Abismo conceitual

O desenvolvimento de uma teoria sobre os mecanismos de ação da acupuntura e fisiologia do sistema nervoso depara-se ainda com a ausência de um consenso no próprio ocidente de concepções teóricas ou mecanismos de explicação do sua organização e funcionamento da própria neurofisologia. A integração de distintos sistemas teóricos como por exemplo psicanálise - reflexologia; reflexologia - behaviorismo (medicina comportamental) ou entre a concepção de um cérebro reptil no modelo triúnico de Paul MacLean e os modelos funcionais de Luria / Anokhin (unidades de regulação de tonus e vigília - recepção armazenagem de informações - programação, verificação de atividades) ainda está por ser realizada, quanto mais uma integração entre sistemas teóricos concebidos em diferentes princípios cognitivos oriundos de culturas distintas.

De qualquer sorte a noção de invariante biológico seja uma estrutura anatômica e sobretudo sua função, apesar das críticas a seu poder de determinar (produzir) teorias ou interpretações específicas ainda é uma perspectiva segura de comparar culturas. Levi Strauss manifesta-se sobre a especificidade do biológico com a noção de zoema ao comparar mitos sobre animais segundo ele essa classe especial de mitema ou elemento utilizado na construção dos significados do mito, corresponde ..."espécies de animais com uma função semântica que lhes permite manter invariantes a forma de suas operações no espaço em que a geologia, o clima, a fauna e a flora não são os mesmos" (Lévi-Strauss, 1985) Poderá o corpo humano e/ou seus órgãos ser analisados como um invariante biológico para distintas culturas e interpretado como um mitema ou zoema? __________________ PS: Na concepção de Lévi-Strauss a analogia formal e a metáfora são comuns ao mito e à ciência, e é a ciência poética (que decifra a intuição e bricolagem) uma poderosa ferramenta que nos permite o entendimento de como a linguagem simbólica se apropria das experiências empíricas e dão sentido ao mundo, se consolidando em tradições. A comparação mais ou menos sistemática de “mitos” - os escritos clássicos da medicina oriental (chinesa, ayurvédica, tibetana, por exemplo) crenças acerca do processo saúde doença com informações científicas especialmente das áreas da anatomia, neurociência, patologia, etnomedicina é a nossa estratégia para produzir uma prática fundamentada no que, provisoriamente, pode ser chamada de acupuntura de chakras (como definiu Stux). Naturalmente os resultados vêm da eficácia clínica e bem estar dos pacientes, um “completo bem-estar” que na concepção oriental possui uma dimensão cósmica, espiritual do samhadi e integração com o Tao

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Referências

CHINA, Ministério da Saúde; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Beijing; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Shanghai; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Nanjig; Academia de Medicina Tradicional Chinesa. (Quatro Institutos) Fundamentos essenciais da acupuntura chinesa. SP, Ed. Ícone, 1995 HIEP Nguyen Duc. The dictionary of acupuncture & moxibustion, a pratical guide to traditional chinese medicine.UK, Thorsons Publishers, 1987 KLOTZ, H et al. El aporte de Pavlov al desarollo de La medicina. Buenos Aires: Editorial Psique, 1957 LÉVI-STRAUSS, Claude A Noção de Estrutura em Etnologia. São Paulo Abril-Cultura (Os Pensadores vol 50-1a Ed) 1976 a LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem São Paulo, Companhia Ed Nacional, 1976 b LÉVI-STRAUSS, C. A Natureza do Pensamento Mítico, IN: A Oleira Ciumenta (1985) São Paulo, Ed Brasiliense, 1987 MACHADO, Jurecê J. Curso Básico de Acupuntura. BA, Edição do Autor, 1993 STUX, G. Chakra Acupuncture. Medical Acupuncture. AAMA - journal 1994 V 6 / N 1 - http://www.medicalacupuncture.org WONG, Ming. Ling Shu, base da acupuntura tradicional chinesa. SP, Andrei, 1995 Ilustrações: Scalp Acupuncture Map (Poster) Sigmund Freud (1856 -1939) O ego e o Id (1923) Alexander R. Luria (1902 -1977)- "three principal functional units of the brain in: Luria's Working Brain, 1974 Paul D. MacLean (1913 - 2007)The Triune Brain in Evolution: Role in Paleocerebral Functions. NY: Plenum Press, 1989 Channels and points of the front of the head and neck (wikimedia commons)

texto extraído de: O "mar de dentro", uma perspectiva etnomédica para o estudo do cérebro, sua fisiologia e algumas disfunções na medicina tradicional chinesa. Apresentado para aprovação na disciplina Psiquiatria Transcultural (ISC 717 TESC) / Docente: Mônica Nunes do Programa de Pós - Graduação em Saúde Coletiva do ISC - Instituto de Saúde Coletiva. UFBa - Universidade Federal da Bahia, Salvador, Julho de 2004 outra versão deste texto: http://etnomedicina.blogspot.com.br/2014/03/cerebro-o-mar-de-dentro.html

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ver também ACUPUNTURA DE CHAKRA Gabriel Stux, M.D. / Tradução: Paulo Pedro P.R. Costa http://etnomedicina.blogspot.com.br/2013/06/acupuntura-de-chakra.html