o cerebro de broca carl sagan

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cérebro de broca

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  • O CREBRO DE BROCA

    Carl Sagan

    http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

  • O CREBRO DE BROCA

    gradiva

    CINCIA ABERTA

    A Aventura da Cincia

    CARL SAGAN

    Digitalizao e tratamento do texto por Guilherme Jorge (esta obra foi digitalizada

    para uso exclusivo por parte de deficientes visuais ao abrigo do artigo 80 do CDADC).

    O CREBRO DE BROCA

    A Aventura da Cincia

    Reviso de Antnio MANUEL HAPTISTA professor catedrtico da Academia Militar

    gradiva

    Ttulo original ingls: Broca Brain

    by Carl Sagan

    Traduo de: Maria do Rosrio Pedreira

    Reviso de texto: Manuel Joaquim Vieira

    Capa: Paulo Seabra

    Fotocomposio, paginao e fotolitos: Textype Artes Grficas, Ltda.

    Impresso e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu

    Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva - Publicaes, Ltda.

    Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - Telefs.: 3 974067 / 8

    1350 Lisboa 3 edio: Setembro l97?

    Depsito legal n." 115 396/97

  • Para Rachel e Samuel Sagan, meus pais, que me mostraram a alegria de conhecer o

    mundo, com gratido, admirao e amor.

    Com o acordo do autor, foram suprimidos todos os captulos da parte II da edio

    original (caps. 10 a 16) e os captulos 17, 19 e 21 da parte IV.

    AGRADECIMENTOS

    Em relao a alguns assuntos especficos, agradeo a um grande nmero de amigos,

    correspondentes e colegas, incluindo Diane Ackerman, D. W. G. Arthur, James Bakalar,

    Richard Berendzen, Norman Bloom, S. Chandrasekhar, Clark Chapman, Sidney Coleman,

    Yves Coppens, Judy-Lynn Del Rey, Frank Drake, Stuart Edelstein, Paul Fox, D. Carleton

    Gajdusek, Owen Gingerich, Thomas Gold, J. Richard Gott III, Steven J. Gould, Lester

    Grinspoon, Stanislav Grof, J. U. Gunter, Robert Horvitz, James W. Kalat, B. Gentry Lee, Jack

    Lewis, Marvin Minsky, David Morrison, Philip Morrison, Bruce Murray, Phileo Nash, Tobias

    Owen, James Pollack, James Randi, E. E. Salpeter, Stuart Shapiro, Gunther Stent, O. B. Toon,

    Joseph Veverka, E. A. Whitaker e A. Thomas Young.

    Este livro deve muito, em todas as fases da sua produo, aos competentes e dedicados

    esforos de Susan Lang, Carol Lane e, em particular, aos da minha assistente Shirley Arden.

    Estou especialmente grato a Ann Druyan e Steven Soter pelo encorajamento

    desinteressado e pelos comentrios estimulantes sobre a maioria dos temas tratados neste

    livro. Ann teve uma contribuio essencial na escolha do ttulo e em muitos dos captulos;

    a minha dvida para com ela muito grande.

  • INTRODUO

    Vivemos numa poca extraordinria. So tempos de mudanas espantosas na

    organizao social, no bem-estar econmico, nos preceitos ticos e morais, nas perspectivas

    filosficas e religiosas e no autoconhecimento humano, bem como na compreenso do vasto

    universo em que estamos inseridos como um gro de areia num oceano csmico. Desde que

    existem seres humanos que nos pomos questes mais profundas e fundamentais, ou seja, as

    que evocam surpresa e estimulam pelo menos a nossa conscincia tremula e pouco experiente.

    Essas questes so as que se prendem com a origem da conscincia, a vida no nosso planeta, o

    princpio da Terra, a formao do Sol, a possibilidade da existncia de seres pensantes algures

    para l das profundezas do cu; e ainda - e esta a maior pergunta de todas a que diz respeito

    ao advento, natureza e ao destino ltimo do universo. At h muito pouco tempo, na histria

    da humanidade, estes temas eram do pelouro exclusivo dos filsofos e dos poetas, dos

    impostores e dos telogos. As diferentes e mutuamente contraditrias respostas apresentadas

    demonstraram, porm, que poucas das solues propostas eram corretas.

    Mas hoje, como resultado de um conhecimento dolorosamente extrado da natureza e

    atravs de observaes e experincias, estamos habilitados a dar, pelo menos, respostas

    preliminares a muitas destas perguntas.

    H um grande nmero de temas que se entrelaam na estrutura deste livro, aparecendo

    no incio, desaparecendo durante alguns captulos e reaparecendo depois num contexto algo

    diferente - incluindo as alegrias e as conseqncias sociais do empenho cientfico, a cincia

    marginal ou popular, o no inteiramente diferente tema da doutrina religiosa, a explorao dos

    planetas e a procura de uma vida extraterrestre; e tambm Albert Einstein, no centenrio de

    cujo nascimento este livro foi publicado.

    A maioria dos captulos podem ser lidos independentemente, mas a ordem por que as

    idias se sucedem foi cuidadosamente escolhida.

    Como em alguns dos meus livros anteriores, no hesitei em introduzir algumas notas

    de carter social, poltico ou histrico, sempre que me pareceram apropriadas. A ateno

    dedicada cincia marginal pode parecer curiosa a alguns dos leitores.

    Antigamente designavam-se os praticantes da cincia popular com a expresso bizarra

    de "cultivadores de paradoxos", utilizada no sculo XIX para descrever todos quantos

    inventavam elaboradas e no demonstradas explicaes para coisas que a cincia

    compreendeu perfeitamente em termos bem mais simples.

    Hoje existem muitos cultivadores de paradoxos e a prtica comum dos cientistas

  • ignor-los, esperando que desapaream.

    Pensei que poderia ser til ou, pelo menos, interessante examinar as afirmaes e as

    presunes de alguns deles um pouco mais de perto e ligar ou contrastar as suas doutrinas

    com outros sistemas de crenas, cientficos e religiosos.

    Tanto a cincia marginal como muitas das religies so motivadas em parte por uma

    sria preocupao em relao natureza do universo e ao papel que nele desempenhamos; por

    essa razo, merecem a nossa considerao e o nosso apreo.

    Acrescente-se que muitas religies envolvem possivelmente no seu cerne uma

    tentativa de se enfrentarem com os mistrios profundos das histrias da vida individual, como

    est descrito no ltimo captulo. Mas, quer na cincia marginal, quer na religio organizada,

    h muito de incorreto e de perigoso. Enquanto os que praticam essas doutrinas desejam

    freqentemente a inexistncia de crticas a que tenham de responder, a investigao cptica

    o meio, seja na cincia, seja na religio, pelo qual as introspeces profundas so libertadas

    do mais cabal absurdo.

    Espero que as minhas notas crticas sejam reconhecidas como construtivas na sua

    inteno. A afirmao bem explcita de que todas as idias tm o mesmo mrito parece-me

    um pouco diferente da desastrosa afirmao de que nenhuma idia tem mrito.

    Este livro fala da explorao do universo e de ns mesmos, ou seja, fala da cincia. A

    lista de assuntos pode parecer muito variada - desde um cristal de sal at estrutura do

    cosmo, passando por mitos e lendas, nascimento e morte, robots e climas, a explorao dos

    planetas, a natureza da inteligncia a procura de vida fora da Terra. Mas, como espero que

    acontea, estes assuntos ligam-se porque o mundo ele prprio um elo e tambm porque os

    seres humanos o percebem atravs de rgos sensoriais, crebros e experincias que podem

    no refletir as realidades exteriores com absoluta fidelidade.

    Todos os captulos de O Crebro de Broca foram escritos para o pblico em geral. Em

    alguns deles, porm como "Vnus e o Dr. Velikovsky" e "Norman Bloom, mensageiro de

    Deus"-, inclu um ou outro pormenor mais tcnico; mas a compreenso desses pormenores

    no necessria para a compreenso

    do essencial da questo.

    Algumas das idias expostas nos caps. I e XV foram j apresentadas, na minha

    palestra no William Menninger Memorial, Lecture Associao Psiquitrica Americana, em

    Atlanta, na Jrgia, no ms de Maio de 1978. O cap. x tem por base a participao num

    simpsio que comemorou o primeiro vo de um fogueto com combustvel lquido e teve

  • lugar no Instituto Smithsoniano, em Washington DC, no ms de Maro de 1976.

    O cap. XIII baseou-se numa palestra feita na Sage Chapel Convocation, Universidade

    de Cornell, em Novembro de 1977. E o cap. VII reflete uma interveno feita durante a

    reunio anual da Associao Americana para o Avano da Cincia, em Fevereiro de 1974.

    Este livro foi escrito precisamente antes penso que, no mximo, alguns anos ou

    algumas dcadas antes- de as respostas para muitas daquelas incmodas e mais ou menos

    aterrorizadoras perguntas sobre as origens e os destinos se terem libertado do cosmo. Se no

    nos destruirmos, a maioria de ns aqui estar para conhecer as respostas. Se tivssemos

    nascido h anos, podamos ter julgado, ponderado e at especulado sobre estes temas, mas

    nada mais podamos ter feito. E, se nascssemos daqui a cinquenta anos, creio que j

    saberamos as respostas.

    A maioria dos nossos filhos aprend-las-o ainda antes de terem tido a ocasio de

    formular as perguntas. A mais excitante, satisfatria e agradvel altura para viver , de longe,

    aquela em que passamos da ignorncia ao conhecimento destas questes fundamentais: a era

    em que comeamos por nos espantar e acabamos por compreender. Nos quatro mil milhes de

    anos de histria que tem a vida deste planeta, nos quatro mil

    milhes de anos de histria que tem a famlia humana, h uma

    gerao apenas qual foi dado o privilgio de viver atravs desse nico momento

    transitrio: essa gerao a nossa.

    taca, Nova Iorque

    Outubro de 1978

    PARTE I - A CINCIA PREOCUPAO HUMANA

    CAPTULO I: O CREBRO DE BROCA

    - Ainda ontem eram macacos. Dem-lhes tempo.

    - Macaco uma vez, macaco sempre!

    - No, vai ser diferente... Volta daqui a uma ou duas geraes e vers. . .

    Os deuses falando da Terra na verso cinematogrfica do livro de H. G. Wells O

    Homem Que Fazia Milagres (1936).

    Este Muse de Homme (Museu do Homem) era de certa forma como outro qualquer.

    Estava situado numa agradvel colina e tinha um restaurante nas traseiras com vista para a

    Torre Eiffel. Estvamos l para falar com Yves Coppens, diretor associado do Museu e um

    conceituado paleantroplogo. Coppens estudara os antepassados do homem atravs dos

    fsseis encontrados em Olduvai Gorge, no lago Turkana, no Qunia, na Tanznia e na

  • Etipia. H dois milhes de anos existiram criaturas com cerca de 1,20 m de altura, a quem

    chamamos Homo habilis, que viviam no Leste de frica, lascando, aparando e raspando

    ferramentas de pedras e talvez tambm construindo pequenas habitaes e cujo crebro se foi

    desenvolvendo de forma espetacular, conduzindo quilo que somos hoje.

    As instituies deste tipo tm um lado pblico e um lado privado. O lado pblico

    inclui as exposies etnogrficas ou de antropologia cultural: o vesturio mongol ou os couros

    pintados pelos nativos americanos, muitas vezes com o propsito especfico de os venderem

    aos voyageurs' ou a um qualquer antroplogo francs mais aventureiro. Mas nos meandros do

    local h outras coisas: pessoas empenhadas na produo de documentos e na construo de

    objetos; vastos armazns plenos de artigos inadequados, pelo seu tema ou pelo seu tamanho,

    maioria das exposies e reas de pesquisa. Fomos conduzidos atravs de um corredor de

    salas escuras e bolorentas e percorremos desde cubculos a enormes cmaras circulares.

    O equipamento e os materiais de pesquisa amontoavam-se pelos corredores: a

    reconstruo do cho de uma gruta paleoltica, indicando para onde haviam sido atirados os

    ossos do antlope depois de ter sido comido; esttuas pripicas de madeira da Melansia;

    talheres delicadamente pintados; mscaras grotescas para rituais; lanas como as assagai

    vindas da Ocenia; um cartaz meio rasgado de um xam africano; um armazm mido e

    sombrio cheio de instrumentos musicais de sopro feitos de madeira, tambores de pele, flautas

    de cana e inumerveis testemunhos do indomvel desejo do homem de fazer msica.

    Aqui e ali podamos encontrar algumas pessoas verdadeiramente empenhadas na

    pesquisa. Mas o seu comportamento recatado e plcido era completamente diferente do

    relacionamento amvel e bilingue de Coppens. Muitas das salas eram evidentemente

    utilizadas para o armazenamento de objetos antropolgicos, que vinham sendo recolhidos h

    mais de um sculo. Tinha-se a sensao de se estar num museu de segunda categoria, em que

    se guardavam, no tanto os materiais que poderiam Ter algum interesse, mas os que noutros

    tempos o tinham tido.

    Podamos imaginar-nos em presena de diretores de sobrecasaca num museu do sculo

    XIX, empenhados na goniomtrica e na craniologia, colecionando, medindo e pesando

    azafamadamente, na esperana de que a simples quantificao conduzisse ao entendimento

    das coisas.

    Mas havia uma outra rea do Museu ainda mais remota, uma estranha mistura de

    pesquisa ativa e de estantes e armrios completamente abandonados: um esqueleto articulado

    e reconstrudo de um orangotango; uma grande mesa coberta de crnios humanos, todos

  • criteriosamente identificados; uma gaveta cheia de fmures empilhados como as borrachas de

    reserva no armrio de uma escola zelosa; uma zona dedicada memria de Neanderthal,

    incluindo o primeiro crnio Neanderthal, reconstrudo por Marcelin Boule e que tive

    cuidadosamente nas minhas mos Senti-o leve e equilibrado e as suturas eram completamente

    visveis: seria talvez a primeira pea arrancada evidncia de que houve h muito criaturas

    semelhantes a ns que se extinguiram e de que existe uma inquietante sugesto de que a nossa

    espcie no sobreviva para sempre; um tabuleiro cheio de dentes de muitos homindeos,

    incluindo o grande molar quebra-nozes do Australopithecus robustus, contemporneo do

    Homo habilis; uma coleo de caixas cranianas de Cro-Magnon, empilhadas, polidas e

    ordenadas. Estas peas estavam razoavelmente conservadas e, de certa forma, constituam os

    fragmentos de prova necessrios reconstruo de uma parte da histria dos nossos

    antepassados e parentes colaterais.

    Nos confins da sala existiam mais colees macabras e perturbadoras: duas cabeas

    encarquilhadas, pousadas num rio, pareciam fazer caretas; olhavam-nos com desprezo e a pele

    dos seus lbios estava levantada para nos serem reveladas "as de pequenos e aguados dentes.

    Havia frascos atrs de frascos com fetos e embries humanos de um branco-plido,

    mergulhados num lquido turvo e esverdeado, todos rotulados. A teoria dos espcimes eram

    normais, mas de vez em quando apercebamo-nos de uma anomalia ou de uma desconcertante

    teratologia - gmeos siameses ligados pelo esterno, por exemplo, ou um feto com duas

    cabeas mostrando os quatro olhos completamente fechados.

    Havia ainda uma fila de frascos grandes e cilndricos que continham, para grande

    admirao minha, cabeas humanas em perfeito estado de conservao, como a de um homem

    de bigode ruivo, de vinte e poucos anos, oriundo, como dizia o rtulo, da Nova Calednia.

    Talvez tivesse sido um marinheiro desembarcado nos trpicos, capturado e executado, cuja

    cabea houvesse sido recrutada em prole da cincia; s que no estava a ser estudada; como

    as outras muitas cabeas, apenas estava a ser negligenciada. Havia tambm um rosto delicado

    e terno de uma criana de mais ou menos 4 anos que exibia os brincos e o colar de coral

    completamente intactos; trs cabeas de recm-nascido, partilhando o mesmo recipiente,

    talvez como medida de poupana; homens, mulheres e crianas de muitas raas e de ambos os

    sexos haviam sido decapitados e as suas cabeas enviadas para Frana por barco apenas para

    se desfazerem talvez aps um breve estudo inicial- no Muse de 1'Homme.

    Perguntava-me como teriam sido embarcados aqueles recipientes.

    Teriam os comandantes dos navios conversado sobremesa sobre o que traziam no

  • poro? Seriam os marinheiros gente despreocupada s porque aquelas cabeas no eram, na

    circunstncia, de europeus como eles? Gozariam com a carga embarcada para demonstrar

    alguma distncia emocional da pequena ponta de terror que se permitiam ter individual e

    particularmente?

    Quando as colees chegaram a Paris, teriam os cientistas sido suficientemente ativos

    e organizados, dando ordens aos cicerones para a disposio das cabeas cortadas? Estariam

    ansiosos por abrir os frascos e medir o contedo com craveiras? Teria o responsvel por esta

    coleo, quem quer que ele fosse, verificado tudo com orgulho e deleite impolutos?

    Foi ento que, num canto ainda mais distante desta ala do Museu, descobri uma

    coleo de objetos cinzentos e convolutos, conservados em formol para retardar a sua runa:

    eram prateleiras e prateleiras de crebros humanos. Devia ter havido algum cujo trabalho

    fosse levar a cabo rotineiras craniotomias nos cadveres de pessoas conhecidas e extrair-lhes

    o crebro para bem da cincia. Ali estava o crebro de um intelectual europeu que atingira

    uma notoriedade momentnea antes de desaparecer na obscuridade desta estante poeirenta;

    mais adiante, o de um assassino executado. Sem dvida alguma, os sbios de tempos mais

    remotos esperavam que houvesse alguma anomalia, algum sinal indicador, na configurao do

    crnio dos assassinos.

    Talvez desejassem apenas que o crime fosse um problema de hereditariedade, e no

    um problema social. A frenologia foi uma aberrao desajeitada do sculo XIX. Eu estou

    mesmo a ouvir a minha amiga Ann Druyan, se tivesse vivido nesse tempo, dizer: "As pessoas

    que matamos fome e torturamos tm uma tendncia natural para roubar e matar. Cremos que

    isso acontece porque as suas sobrancelhas so demasiado inclinadas."

    A verdade que os crebros dos criminosos e dos sbios os restos do de Albert

    Einstein flutuam lividamente num frasco em Wichita- so indistintos. , pois, bem provvel

    que seja a sociedade, e no a hereditariedade, a causa da existncia de criminosos.

    Enquanto olhava mais de perto a coleo entre ruminaes, a minha vista foi atrada

    por um rtulo de um dos muitos pequenos contentores cilndricos. Tirei o recipiente da

    prateleira e examinei-o cuidadosamente. O rtulo dizia P. Broca.

    Tinha nas minhas mos o crebro de Broca.

    Paul Broca foi um cirurgio, neurlogo e antroplogo que desempenhou um papel

    importante tanto no desenvolvimento da medicina como no da antropologia nos meados do

    sculo XIX. Levou a cabo um trabalho considervel na patologia do cancro e no tratamento

    de aneurismas e deu uma contribuio essencial para a compreenso das origens da afasia

  • uma diminuio da capacidade de articular idias. Broca foi um homem brilhante e

    compassivo. Preocupou-se com os cuidados mdicos a prestar aos mais desfavorecidos.

    Encoberto pela escurido, e arriscando a vida, conseguiu desviar de Paris, numa carroa,73

    milhes de, enrolados em sacos de serapilheira escondidos debaixo de batatas, dinheiro que

    constitua o tesouro da Assistance Publique e que ele, por qualquer razo, acreditava estar a

    salvar da pilhagem. Foi o fundador da neurocirurgia moderna. Estudou a mortalidade infantil.

    No fim da sua carreira chegou a senador.

    Broca gostava acima de tudo, como disse um bigrafo, de calma e tolerncia. Em 1848

    fundou uma sociedade de "livres pensadores". Isolado entre os intelectuais franceses do seu

    tempo, solidarizou-se com a idia de Charles Darwin sobre a evoluo por seleo natural. O

    livro de T. H. Huxley O Bulldog de Darwin sublinha que uma s referncia ao nome de Broca

    era capaz de o encher de gratido e Broca foi citado nele como tendo dito: "Eu prefiro ser um

    macaco transformado a ser um filho degenerado de Ado." Por esta e outras afirmaes, foi

    publicamente acusado de "materialista" e, como Scrates, de corromper a juventude. De

    qualquer forma, chegou a senador.

    No incio, Broca encontrou muitos obstculos para fundar em Frana uma sociedade

    de antropologia. O ministro da Instruo Pblica e o chefe da Polcia acreditavam que a

    antropologia devia ser, tal como a busca do conhecimento sobre os seres humanos,

    naturalmente subversiva para o estado. Quando, por fim - e mesmo assim com alguma

    relutncia -, foi concedida a Broca autorizao para falar de cincia com oitenta colegas, o

    chefe da Polcia tornou Broca pessoalmente responsvel por tudo o que nesses encontros fosse

    dito "contra a sociedade, a religio ou o governo". Ainda assim, o estudo dos seres humanos

    foi considerado um ato to perigoso que a Polcia contratou um espio, que aparecia vestido

    paisana durante as reunies e que tinha ordens para interromper de imediato a sesso se

    sentisse ofendido por qualquer coisa que fosse dita. A Sociedade de Antropologia de Paris

    reuniu-se, nestas circunstncias, pela primeira vez, em 19 de Maio de 1859, ano da publicao

    de A Origem das Espcies. Em reunies subsequentes foi discutido um nmero considervel

    de questes - arqueologia, mitologia, fisiologia, anatomia, psicologia, lingstica e histria- e

    fcil imaginarmos o espio da Polcia desatento na maioria das ocasies e s vezes deixando

    cair a cabea de sono.

    Broca relatou que, uma vez, o espio quis dar um pequeno passeio para que no estava

    autorizado e perguntou se podia abandonar a sala com a certeza de que, na sua ausncia, nada

    de ameaador seria dito em relao ao estado. "Nem pense nisso", disse-lhe Broca. "Voc no

  • pode ir a parte alguma: sente-se e merea aquilo que lhe pagam."

    No foi a Polcia a nica que se ops ao desenvolvimento da antropologia em Frana.

    Em 1876, o partido ligado igreja catlica organizou uma campanha enorme contra o ensino

    dessa disciplina no Instituto Antropolgico de Paris, fundado por Broca.

    Paul Broca morreu em 1880, vitimado talvez pelo mesmo tipo de aneurisma que to

    brilhantemente estudara. Nessa altura debruava-se sobre um estudo global do crebro

    humano. Tinha fundado em Frana as primeiras sociedades profissionais, escolas de pesquisa

    e algumas publicaes cientficas de antropologia moderna. Os seus espcimes de laboratrio

    foram ento incorporados naquilo a que, durante muitos anos, se chamou o Muse Broca e

    que, mais tarde, acabou por fazer parte do Muse de 1'Homme.

    Fora o prprio Broca, cujo crebro eu embalava entre as mos, quem iniciara a coleo

    macabra que eu contemplava. Estudara embries, macacos e pessoas de todas as raas,

    trabalhando como um louco para compreender a natureza de um ser humano; e, apesar do

    aspecto atual da coleo e das minhas suspeitas, ele no era, pelo menos segundo os padres

    do seu tempo, mais racista ou chauvinista do que qualquer outra pessoa e muito menos essa

    figura tpica da fico e, mais raramente, fatual: o frio, despreocupado e desapaixonado

    cientista, muito pouco interessado pelas conseqncias humanas dos seus atos.

    Broca interessava-se e muito.

    Na Revue d'Anthropologie de 1880 consta a bibliografia completa das obras de Broca.

    A partir dos ttulos consegui mais tarde aperceber-me das origens da coleo que tinha

    observado:

    Sobre o Crnio e o Crebro do Assassino Lemaire, Apresentao do Crebro de Um

    Gorila Macho Adulto, Sobre o Crebro do Assassino Prvost, Sobre a Suposta

    Hereditariedade de Caractersticas Acidentais, A Inteligncia dos Animais e o Governo dos

    Humanos, A Ordem dos Primatas: Paralelos Anatmicos entre o Homem e o Macaco, A

    Origem da Arte de Fazer Fogo, Sobre os Monstros Duplos, As Questes da Microcefalia,

    Trepanando a Pr-Histria, Dois Casos de Um Sobre desenvolvimento Digital na Idade

    Adulta, As Cabeas de Dois Homens da Nova Calednia e O Crnio de Dante Alighieri. Eu

    desconhecia ento o paradeiro atual do crnio do autor de A Divina Comdia, mas a coleo

    de crebros, crnios e cabeas que me rodeava teria decerto comeado com o trabalho de Paul

    Broca.

    Broca era um exemplar anatomista do crebro e fez notveis investigaes sobre a

    regio lmbica, anteriormente denominada "rinocfalo" (o "crebro olfativo"), que sabemos

  • agora estar profundamente ligada s emoes humanas. Mas Broca nos dias de hoje,

    sobretudo conhecido pela descoberta de uma pequena zona na terceira circunvoluo do

    lbulo frontal esquerdo do crtice cerebral, zona conhecida atualmente como "rea de Broca".

    O discurso articulado, ao que parece, como Broca inferiu de provas apenas fragmentrias, est

    localizado e controlado pela rea de Broca. Foi uma das primeiras descobertas de que existe

    uma separao de funes entre os hemisfrios esquerdo e direito do crebro; mas, mais

    importante ainda, foi uma das primeiras indicaes de que funes especficas do crebro

    existem em locais particulares do mesmo, de que existe uma relao entre a anatomia do

    crebro e aquilo que ele faz, atividade por vezes descrita como "mente".

    Ralph Holloway um antroplogo fsico da Universidade de Colmbia, cujo

    laboratrio suponho ter algumas semelhanas com o de Broca. Holloway faz modelos de

    borracha das partes internas de crnios de seres humanos e afins, de tempos remotos e dos

    dias de hoje, numa tentativa de reconstruir, a partir de leves indentaes no interior do crnio,

    aquilo que o crebro deve ter sido numa poca remota. Holloway cr que consegue identificar

    pelo crnio de uma criatura se a rea de Broca est ou no presente e encontrou provas da

    existncia de uma rea de Broca no crebro de um Homo habilis com mais ou menos 2

    milhes de anos - precisamente a era das primeiras construes e dos primeiros utenslios.

    Assim, existe algo que tem a ver com a viso frenolgica. bem provvel que o pensamento

    humano e a indstria tenham andado a par com o desenvolvimento do discurso articulado; e a

    rea de Broca pode, na realidade, ser uma das bases da nossa hominizao, bem como um

    meio de determinar as relaes que existem entre ns e os nossos antecessores, na sua

    caminhada em direo a essa hominizao.

    E ali estava o crebro de Broca a flutuar em formol, aos pedaos, diante de mim.

    Consegui distinguir a regio lmbica, que Broca estudara noutros crebros. Consegui ver as

    circunvolues no neocrtice. Pude inclusivamente observar o acinzentado lbulo frontal

    esquerdo, no qual residia a rea de Broca pertencente a Broca, deteriorada e passando

    despercebida num canto bolorento de uma estante onde jazia a coleo que o prprio Broca

    iniciara.

    Era difcil segurar no crebro de Broca sem pensar se, de alguma forma, Broca estava

    ainda ali dentro - a sua inteligncia, o seu ar cptico, os seus gestos bruscos enquanto falava,

    os seus momentos de calma e de emoo. Estaria preservada, diante de mim, sob a

    configurao de memria, a gravao do momento glorioso em que discutiu perante o grupo

    das Faculdades de Medicina (e perante seu pai, inchado de orgulho) a questo das origens da

  • afasia? De um jantar com o seu amigo Victor Hugo? De um passeio pelo Quai Voltaire e pela

    Pont Royal com a sua mulher, que levava ento um bonito guarda-sol?

    Para onde vamos quando morrermos? Ser que Paul Broca ainda est ali no seu frasco

    cheio de formol? Talvez os traos da memria se tenham desgastado, muito embora haja

    slidas provas, a partir de investigaes modernas feitas ao crebro, de que uma dada

    memria est redundantemente armazenada em locais muito diversos do crebro. Vir

    futuramente a ser possvel, quando a neurofisiologia tiver avanado substancialmente,

    reconstruir as memrias ou as introspeces de algum h muito desaparecido? E seria isso

    bom? Poderia ser a maior invaso da privacidade, mas seria igualmente uma espcie de

    imortalidade concreta, porque, especialmente para um homem como Broca, as nossas mentes

    so um reflexo claro daquilo que fundamentalmente somos.

    Pelo aspecto descuidado desta sala do Muse de 1'Homme fiquei em condies de

    acusar aqueles que haviam reunido a coleo - nessa altura nem sabia que Broca era um deles

    de sexismo, racismo e chauvinismo evidentes, de uma profunda resistncia idia de que

    existe uma relao entre os seres humanos e os outros primatas. E, em parte, era verdade.

    Broca foi um humanista do sculo XIX, mas no foi capaz de abalar os preconceitos

    enraizados ou as doenas sociais da humanidade do seu tempo. Achava que o homem era

    superior mulher e que os Brancos eram superiores aos Negros. Mesmo a sua afirmao de

    que os crebros germnicos no eram significativamente diferentes dos franceses foi uma

    reao intransigncia dos teutnicos, que apregoavam a inferioridade gaulesa. De qualquer

    forma, ele concluiu que havia relaes profundas, na fisiologia cerebral, entre os gorilas e o

    homem. Broca, o fundador, na sua juventude, da sociedade dos livres pensadores, acreditava

    na importncia da investigao livre e viveu a sua vida para atingir esse objectivo. A sua

    incapacidade de realizar esse ideal s mostra que, mesmo os que tm ilimitada capacidade

    para o livre estudo do conhecimento, como Broca, podem ser paralisados por um

    obscurantismo endmico e respeitvel. A sociedade corrompe aquilo que h de melhor dentro

    de cada um de ns. Creio que ser um pouco injusto criticar algum pelo fato de no partilhar

    a clarividncia de uma poca posterior; mas tambm profundamente triste que tais

    preconceitos se tenham difundido tanto. A questo levanta dvidas contnuas sobre quais das

    verdades convencionais da nossa gerao sero consideradas pela prxima como um

    obscurantismo imperdovel.

    Uma maneira de recompensar Paul Broca por esta lio que ele, inadvertidamente, nos

    proporcionou desafiar, profunda e seriamente, as nossas crenas mais enraizadas.

  • Estes frascos esquecidos e os seus terrveis contedos haviam sido recolhidos, pelo

    menos em parte, com um esprito humanstico; e talvez, numa era futura de avano no estudo

    do crebro, voltem a ser considerados teis: eu gostaria de saber um pouco mais sobre o

    homem do bigode ruivo da Nova Calednia, cuja cabea foi devolvida Frana. . .

    No entanto, aquilo que nos rodeava, a sensao de uma cmara de horrores, evocava

    outros pensamentos, indesejados e inquietantes. Num lugar como este sentimos, no mnimo,

    um pouco de solidariedade com aqueles - especialmente os mais jovens e os que morreram em

    sofrimento- que de um modo to invulgar ficam na memria. Os canibais do Noroeste da

    Nova Guin usam filas de crnios como umbrais na frontaria das casas e, s vezes, como

    lintis. Talvez sejam estes os materiais de construo adequados mais abundantes; mas os

    arquitetos no conseguem ser alheios ao terror que aquelas construes evocam nos viajantes

    inadvertidos. Os crnios foram utilizados pelas tropas SS de Hitler, pelos Anjos do Inferno,

    pelos xams, pelos piratas e ainda por aqueles que desenham os rtulos dos recipientes de

    produtos txicos no esforo consciente de chamar a ateno para o perigo. E faz sentido. Se

    eu me encontrar numa sala repleta de crnios, como se houver algum perto: talvez um

    grupo de hienas, talvez um carrasco doentio e obsessivo, cuja ocupao ou hobby seja

    colecionar crnios. Tais indivduos devem ser obviamente evitados ou, se possvel,

    liquidados. O arrepio na minha nuca, a acelerao do meu ritmo cardaco e da minha

    pulsao, essa sensao fria e estranha, so tramas da evoluo para me fazer lutar ou fugir.

    Aqueles que evitam a decapitao deixam mais descendentes.

    A convivncia com esses medos fornece uma vantagem evolutiva.

    Encontrarmo-nos numa sala cheia de crebros ainda mais assustador, como se um

    monstro de moral indizvel, armado com lminas afiadas e ferramentas cncavas, se

    arrastasse, babando-se, algures no sto do Muse de 1'Homme. Mas tudo depende - julgo eu

    do objetivo da coleo; se esse for descobrir, se a coleo adquiriu partes humanas

    postmortem especialmente com o prvio consentimento daqueles a quem essas mesmas partes

    pertenceram, ento no se causou mal nenhum. E talvez a longo prazo se venha a revelar til

    humanidade.

    Mas no tenho a certeza de que os cientistas estejam inteiramente desligados dos

    motivos dos tais canibais da Nova Guin. No diro pelo menos: "Eu vivo com estas cabeas

    todos os dias. Elas no me incomodam. Porque que voc to sensvel?

    Leonardo e Vesalius tiveram de subornar e furtar para realizar em segredo as primeiras

    dissecaes sistemticas de seres humanos na Europa, embora tivesse havido uma escola de

  • Anatomia ativa e competente na Grcia antiga. A primeira pessoa a localizar, com base na

    neuranatomia, a inteligncia humana na cabea foi Herfilos da Calednia, que nasceu cerca

    de 300 a. C. Foi igualmente o primeiro a distinguir o nervo motor dos nervos sensoriais e

    realizou o estudo mais detalhado de anatomia cerebral concebido at ao Renascimento. Sem

    dvida, houve quem fizesse objees a estas suas experincias algo horrveis.

    Existe um medo escondido, evidente na lenda de Fausto, de algumas coisas no terem

    sido "feitas" para serem conhecidas, de algumas perguntas serem demasiado perigosas para os

    seres humanos. E, na nossa gerao, o desenvolvimento das armas nucleares pode, se

    tivermos pouca sorte e falta de juzo, tornar-se um caso precisamente deste tipo. No entanto,

    no que diz respeito s experincias sobre o crebro, os nossos medos so menos intelectuais.

    Mergulham profundamente no nosso passado evolutivo. Fazem-nos pensar nas criaturas

    selvagens e nos homens que aterrorizavam os viajantes e as populaes rurais da Grcia

    antiga beira dos caminhos, atravs de mutilaes procrusteanas e outras selvagerias, at que

    um heri qualquer - Teseu ou Hrcules- conseguisse desembaraar se deles sem esforo. Estes

    medos tiveram uma funo especfica no passado; mas no presente creio que so apenas

    portadores de uma grande carga emocional. Eu estava interessado, como cientista que

    escrevera sobre o crebro, em encontrar essas reaes escondidas dentro de mim, revelando-

    se durante a minha visita coleo de Broca. Vale a pena lutar contra os medos.

    Todas as investigaes trazem consigo um certo elemento de risco. No h garantias

    de que o universo seja conforme s nossas predisposies. Mas no vejo como podemos agir

    em relao ao universo - tanto o interior como o exterior - sem o estudarmos.

    A melhor maneira de evitar abusos, no que concerne ao pblico em geral, sermos

    cientificamente competentes, compreendermos as implicaes que existem nessas

    investigaes. Em troca da liberdade de pensamento, o cientista obrigado a prestar contas do

    seu trabalho. Se a cincia considerada um sacerdcio muito fechado, demasiado difcil e

    secreto para o homem comum compreender, ento os perigos do abuso so maiores.

    Mas, se a cincia um assunto do interesse geral que preocupa todos se tanto os

    seus prazeres como as suas conseqncias sociais se discutem regularmente nas escolas, na

    imprensa e ao jantar -, fizemos o melhor que podamos na aprendizagem de como o mundo

    na realidade e do que podemos fazer por ele e por ns prprios. s vezes penso que esta

    uma das idias que ainda deve estar ali, quieta, preguiando em formol, no crebro de Broca.

    CAPTULO II: PODEMOS CONHECER O UNIVERSO? - REFLEXES

    SOBRE UM GRO DE SAL

  • Nada mais abundante do que a inesgotvel riqueza da natureza.

    Ela mostra-nos apenas superfcies, mas tem um milho de braas de profundidade.

    Ralph Waldo Emcrson

    A cincia mais um modo de pensar do que um conjunto de conhecimentos. O seu

    fim descobrir como o mundo funciona, procurar as regularidades que nele existem, abrir

    caminho nas relaes entre as coisas - desde as partculas subnucleares, que podem ser os

    constituintes de toda a matria, at aos organismos vivos, comunidade social humana e, da,

    ao cosmo como um todo. A nossa intuio no , de forma alguma, um guia infalvel. A nossa

    percepo pode ser distorcida pela educao, pelos preconceitos ou apenas pelas limitaes

    dos nossos rgos sensitivos, que, obviamente, no apercebem diretamente seno uma frao

    mnima dos fenmenos do mundo.

    Mesmo uma pergunta como se, na ausncia de atrito, 1 kg de chumbo cai mais

    depressa do que 1 g de algodo foi respondida incorretamente por Aristteles e quase todos os

    que viveram em eras anteriores de Galileu. A cincia baseia-se na experincia, na disposio

    de desafiar os velhos dogmas, numa

    abertura que permita ver o universo como ele na realidade .

    Deste modo, a cincia requer coragem na maioria das vezes no mnimo, a coragem de

    pr em causa a sabedoria convencional.

    Para alm disto, o truque principal da cincia pensar realmente em alguma coisa: a

    forma das nuvens e os seus fundos por vezes aguados a uma mesma altitude em todo o cu; a

    formao de uma gota de orvalho sobre uma folha; a origem de um nome ou de uma palavra -

    por exemplo "Shakespeare" ou "filantrpico"; a razo dos costumes sociais humanos - como,

    por exemplo, a proibio do incesto; como que uma lente sob luz solar pode queimar papel;

    como que uma bengala se parece tanto com um ramo de rvore; por que razo a Lua parece

    seguir-nos quando caminhamos; o que nos impede de fazer um buraco fundo no cho at ao

    centro da Terra; qual a definio de "em baixo" numa Terra esfrica; como possvel a um

    corpo converter o almoo de ontem no msculo ou no tendo de hoje; at onde existe o cimo -

    ser que o universo continua para sempre, ou, se no, ter algum sentido a questo sobre o

    que existir do outro lado? Algumas destas perguntas so bem fceis.

    Todas as culturas se puseram estas questes de uma ou de outra maneira. Quase

    sempre as respostas apresentadas tm a ver com "histrias de que as coisas so tentativas

    como so", de explicar que no se fundam na experincia nem mesmo em observaes

    comparativas cuidadas.

  • Mas a disposio cientfica da mente examina o mundo de forma crtica, como se

    muitos mundos alternativos existissem, como se as coisas que aqui no esto pudessem estar.

    Ento somos forados a perguntar porque que o que vemos est presente, e no outra coisa.

    Por que razo o Sol, a Lua e os planetas so esfricos? Porque no piramidais, ou cbicos, ou

    de doze faces? Porque no formas irregulares e confusas? Porqu mundos to simtricos? Se

    perdermos algum tempo a alvitrar hipteses, verificando se tm sentido, se so consentneas

    com o que j conhecemos, pensando em provas que podemos fazer para substanciar ou

    esvaziar essas hipteses, encontramo-nos a fazer cincia. E, medida que este hbito de

    pensar vai sendo praticado, vamo-nos aperfeioando. Penetrar no corao de uma coisa -

    mesmo pequena, numa folha de erva, como disse Walt Whitman- experimentar uma espcie

    de alegria muito grande que talvez apenas os seres humanos, entre todos os seres deste

    planeta, podem sentir. Somos uma espcie inteligente e o uso apropriado da nossa inteligncia

    d-nos prazer. Visto por este prisma, o crebro como um msculo. Quando pensamos

    corretamente, sentimo-nos bem. E o entendimento uma espcie de xtase.

    Mas at onde podemos verdadeiramente conhecer o universo que nos rodeia? s

    vezes, esta pergunta feita por pessoas que esperam que a resposta seja dada na negativa,

    porque tm medo de um universo em que tudo possa, um dia, ser revelado. E s vezes

    ouvimos declaraes de cientistas afirmando, confiantes, que tudo o que vale a pena conhecer

    ser conhecido - ou j o - e que pintam quadros de uma era dionisaca ou polinesiana em que

    o gosto pela descoberta intelectual decaiu, para ser substitudo por uma espcie de fraqueza

    subjugada, os comedores de ltus bebendo leite de coco fermentado ou qualquer outro suave

    alucingeno. Alm de difamar tanto os Polinsios, que foram exploradores intrpidos (e cujo

    breve repouso no Paraso est agora tristemente a acabar), como os incentivos para

    descobertas intelectuais propiciados por alguns alucinognios, esta afirmao acaba por estar

    trivialmente errada.

    Aproximemo-nos de uma questo bem mais modesta: no a de se podemos conhecer o

    universo, a Via Lctea, uma estrela ou um mundo; mas a de se podemos conhecer, integral e

    detalhadamente, um gro de sal. Imaginemos 1 micrograma de sal de mesa, uma partcula to

    minscula que, sem microscpio, apenas seria visvel por algum com apuradssima viso.

    Nesse gro de sal h mais ou menos 10*16 tomos de sdio e cloro. Isto , um 1 seguido de

    dezasseis zeros, ou seja, 10 milhes de bilies 1 de tomos. Se quisermos conhecer um gro

    de sal, teremos pelo menos de conhecer as posies tridimensionais de cada um desses

    tomos. (De fato, haveria muito mais para ser conhecido - como a natureza das foras entre os

    tomos -, mas estamos apenas a fazer um clculo modesto.) Ora bem: este nmero maior ou

  • menor do que o nmero de coisas que o crebro capaz de conhecer?

    Quanto pode um crebro conhecer? H no crebro talvez 10" de neurnios, os

    elementos dos circuitos e interruptores que so responsveis, na sua atividade qumica e

    eltrica, pelo funcionamento das nossas mentes. Um neurnio cerebral tpico tem talvez 100

    pequenos filamentos, chamados dendrites, que o ligam aos seus companheiros. Se, ao que

    parece, cada bit de informao corresponde no crebro a uma destas ligaes, o nmero total

    de coisas susceptveis de conhecimento pelo crebro no maior do que 10&4, 100 trilies.

    Mas este nmero apenas 1 % do nmero de tomos da pequena partcula de sal.

    Neste sentido, o universo resistente, espantosamente imune a qualquer tentativa

    humana de conhecimento total. Acontece que o sal um cristal em que, exceto pelos defeitos

    da estrutura da rede cristalina, a posio de cada tomo de sdio e cloro predeterminada. Se

    pudssemos penetrar neste mundo cristalino, veramos filas e filas de tomos dispostos

    ordenadamente, uma estrutura alternada regularmente - sdio, cloro, sdio, cloro -,

    identificando a camada de tomos onde estivssemos e todas as outras por cima e por baixo.

    Um cristal de sal absolutamente puro podia ter a posio de todos os tomos determinada por

    qualquer coisa como 10 bits de informao. Isto no excederia a capacidade de informao do

    crebro.

    O cloro um veneno mortal gasoso que foi usado nos campos de batalha europeus

    durante a primeira guerra mundial. O sdio um metal corrosivo que se queima ao contato

    com a gua. Juntos formam um material plcido e inofensivo, o sal de mesa. Por que razo

    cada uma das substncias tem as propriedades que tem um assunto chamado "qumica", que

    requer muito mais do que 10 bits de informao para se compreender.

    Se o universo tivesse leis naturais que governassem o seu comportamento com o

    mesmo grau de regularidade que determinam

    um cristal de sal, ento o universo poderia ser decerto passvel de conhecimento.

    Mesmo que existissem muitas leis como essas, cada uma com uma complexidade

    considervel, os seres humanos poderiam ter a capacidade de as compreender todas. Ainda

    que esse conhecimento excedesse a capacidade de informao do crebro, poderamos

    armazenar as informaes adicionais fora dos nossos corpos - por exemplo, em livros ou na

    memria de um computador- e ainda, em certo sentido, conhecer o universo.

    Os seres humanos esto, compreensivelmente, muito motivados para a descoberta de

    regularidades, de leis naturais. A procura de regras, nica maneira possvel de compreender

    um universo to vasto e complexo, chama-se "cincia". O fora aqueles que nele vivem a

  • compreend-lo. Essas criaturas que acham a experincia quotidiana um amontoado confuso

    de acontecimentos irregulares, imprevisveis, esto moribundas.

    O universo pertence queles que, pelo menos em certa medida, perceberam isso.

    um fato admirvel que haja leis da natureza, regras que sintetizem convenientemente

    - no s qualitativa, mas tambm quantitativamente- o funcionamento do mundo. Podamos

    imaginar um universo no qual no h leis dessas, no qual 10*88 de partculas elementares que

    formam um universo como o nosso se comportam em total e inflexvel isolamento. Para

    compreender um tal universo precisaramos de um crebro pelo menos to macio como o

    universo. Parece improvvel que esse universo tivesse vida e inteligncia, porque os seres e os

    crebros requerem um certo grau de estabilidade e ordem interna. Mas num universo ainda

    muito mais desorganizado, onde houvesse esses seres com uma inteligncia muito superior

    nossa, no poderia haver tanto conhecimento, tanta paixo, nem tanta alegria.

    Para nossa sorte, vivemos num universo que tem, pelo menos, partes importantes

    susceptveis de serem conhecidas.

    A nossa experincia de senso comum e a nossa evoluo histrica prepararam-nos

    para compreender uma parte do funcionamento do mundo quotidiano. Porm, quando

    penetramos noutros domnios, o senso comum e a intuio natural tornam-se guias altamente

    duvidosos. espantoso que, quando estamos prximo da velocidade da luz, a nossa massa

    aumenta indefinidamente e contramo-nos at uma espessura zero na direo do movimento,

    podendo o tempo deter-se tanto quanto queiramos.

    H muita gente que pensa que isto um disparate e quase todas as semanas recebo

    uma carta de algum que se queixa disso. Mas no: uma conseqncia perfeitamente certa,

    no s da experincia, mas tambm da brilhante anlise feita ao espao e ao tempo por Albert

    Einstein, conhecida como a teoria da restrita relatividade. No importa que estes efeitos nos

    paream improvveis. No temos o hbito de viajar a uma velocidade como a da luz: o

    testemunho do nosso senso comum suspeito a altas velocidades.

    Imaginemos agora uma molcula isolada composta por dois tomos com a forma

    semelhante a um alter - uma molcula de sal, por exemplo. Uma molcula como esta roda em

    torno de um eixo imaginrio que liga os dois tomos. Mas, no mundo da mecnica quntica,

    no domnio do verdadeiramente pequeno, nem todas as orientaes do nosso alter so

    possveis. Podia acontecer a molcula ser orientada na posio horizontal, ou ento na

    vertical, mas no em muitos ngulos entre as duas.

    Algumas posies rotativas so proibidas. Mas proibidas por quem? Pelas leis da

  • natureza. O universo est construdo de uma tal forma que limita ou quantiza a rotao. No

    experimentamos isto diretamente na vida quotidiana; ach-lo-amos complicados e fizssemos

    exerccios de levantamento sentados, percebendo que os braos esticados para os lados ou

    para cima apenas permitem algumas posies intermdias. No vivemos no mundo do

    pequeno, escala de 10-&3 cm, no domnio em que existem doze zeros entre a unidade e a

    casa decimal. As nossas intuies de senso comum no contam. O que conta a experincia -

    neste caso, a observao a partir dos espectros no infravermelho longnquo das molculas.

    Eles mostram que a rotao molecular quantizada.

    O pensamento de que o mundo pe restries aos atos humanos frustrante. Por que

    razo no poderamos ser capazes de ter posies rotativas intermdias? Porque no podemos

    viajar mais depressa do que velocidade da luz? No entanto, tanto quanto podemos dizer, este

    o modo como o universo est construdo. Esses impedimentos no s nos empurram em

    direo a uma pequena humildade, como tornam o mundo passvel de conhecimento. Cada

    restrio corresponde a uma lei da natureza, a uma regularizao do universo. Quanto mais

    restries houver quanto ao que a matria e a energia podem fazer, mais conhecimentos

    podero os homens alcanar. O fato de o universo ser susceptvel de conhecimento no

    depende apenas do nmero de leis da natureza que existem e respeitam a fenmenos

    diferentes, mas sobretudo da capacidade intelectual de compreendermos essas mesmas leis.

    As nossas formulaes que se relacionam com as regularidades da natureza esto certamente

    dependentes do modo como o crebro est construdo e, a um outro nvel, de como o universo

    est construdo.

    C por mim, gosto de um universo que inclua muito do que se desconhece e, ao

    mesmo tempo, muito do que pode vir a conhecer-se. Um universo em que tudo se sabe seria

    esttico e aborrecido, to aborrecido como o paraso de alguns telogos sem imaginao. Um

    universo que no susceptvel de ser compreendido no o lugar adequado para um ser

    pensante. Para ns, o universo ideal muito parecido com aquele em que habitamos e tenho a

    impresso de que isto no uma coincidncia.

    CAPTULO III:ESSE MUNDO QUE ACENA COMO UMA LIBERTAO

    Para me castigar pelo meu desprezo pela autoridade, o destino fez de mim prprio

    uma autoridade. Einstein

    Albert Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha, exatamente h um sculo. Era uma

    dessas raras pessoas que em qualquer poca reformulam o mundo atravs de um dom

    especial, um talento de compreender coisas antigas de novas formas, de propor profundos

  • desafios sabedoria convencional. Durante muitas dcadas, Einstein foi admirado e venerado

    por todo o mundo, sendo o nico cientista que toda a gente conhecia, atravs no s das suas

    descobertas cientficas, conhecidas pelo menos vagamente pelo pblico, mas tambm das

    posies frontais que tomava perante os assuntos sociais e da sua benevolncia.

    Para pessoas com eu, filhos de pais emigrantes com inclinao cientfica, ou que

    cresceram durante a Depresso, esta venerao por Einstein demonstrou que existiram

    pessoas que eram de fato cientistas e que a carreira cientfica no era totalmente impossvel.

    Ele desempenhou, sem querer, a funo de servir de modelo cientfico. Sem ele, muitos dos

    jovens que se tornaram cientistas aps 1920 poderiam nunca ter ouvido falar da existncia da

    empresa cientfica. O raciocnio que serviu de suporte teoria da relatividade restrita, de

    Einstein, poderia Ter sido desenvolvido um sculo mais cedo, mas, embora tivesse havido

    algumas investigaes premonitrias feitas por outros, a relatividade teve de esperar por

    Einstein.

    Fundamentalmente, a fsica da relatividade restrita muito simples e muitos dos

    resultados essenciais podem ser deduzidos com a lgebra do liceu ou com a observao de um

    barco que rema rio acima e rio abaixo.

    Toda a vida de Einstein teve a riqueza do gnio e da ironia, foi a paixo pelos assuntos

    do seu tempo - a interveno na educao, a ligao entre a cincia e a poltica- e a

    demonstrao de que indivduos podem, de fato, modificar o mundo.

    Enquanto criana, Einstein deu poucos sinais do que viria a ser. "Os meus pais", disse

    um dia, "preocupavam-se porque comecei a falar relativamente tarde. Consultaram um

    mdico por causa disso. Eu devia ter na altura talvez uns 3 anos, no menos que isso." Foi um

    aluno desinteressado na escola primria, onde dizia que os professores lhe faziam lembrar

    sargentos instrutores. Durante a sua juventude, as diretrizes mximas da educao europia

    eram o nacionalismo bombstico e a rigidez intelectual. Revoltou-se contra os mtodos de

    ensino mecanizados e enfadonhos - "Preferia suportar qualquer espcie de castigo a ter de

    papaguear as coisas aprendidas." Einstein continuaria sempre a detestar os autoritarismos

    rgidos na educao, na cincia e na poltica.

    Aos 5 anos sentiu-se atrado pelo mistrio do funcionamento de uma bssola. Mais

    tarde escreveu: "Aos 12 anos experimentei uma segunda sensao maravilhosa, de uma

    natureza completamente diferente, ao ler um pequeno livro sobre geometria euclidiana

    simples. Havia concluses, como, por exemplo, a interseco das trs alturas de um tringulo

    num ponto, que, embora no fossem evidentes, podiam ser provadas com tal clareza que

  • qualquer dvida parecia estar fora de questo. Esta lucidez e segurana provocaram em mim

    uma impresso indescritvel."

    A escolaridade formal era, para Einstein, apenas uma interrupo fastidiosa de tais

    contemplaes. Escreveu depois sobre a sua auto-educao: "Dos 12 aos 16 anos familiarizei-

    me com elementos de matemtica e com os princpios do clculo diferencial e integral. Ao

    faz-lo, tive a sorte de encontrar livros que no eram demasiado insistentes no seu rigor

    lgico, mas que, em compensao, apresentavam as idias principais de uma forma bastante

    clara. Tive a sorte de comear a conhecer os resultados e os mtodos do campo global das

    cincias naturais atravs de uma excelente exposio de divulgao que se restringia quase s

    aos aspectos qualitativos. . . um trabalho que li apaixonadamente." Os atuais divulgadores da

    cincia devem sentir-se reconfortados com estas palavras.

    Nenhum dos professores de Einstein parece ter reconhecido as suas potencialidades.

    No Gymnasium de Munique, a principal escola superior da cidade, um dos professores disse-

    lhe:

    "Nunca hs-de ser algum, Einstein." Aos 15 anos foi aconselhado a abandonar a

    escola: "A sua presena prejudica o respeito que os alunos tm por mim", disse-lhe um dos

    professores.

    Aceitou esta sugesto com satisfao e passou vrios meses passeando pelo Norte de

    Itlia, deixando o liceu na dcada de 1890.

    Sempre preferiu o estilo informal na forma de estar e de se vestir. Se tivesse vivido a

    sua juventude nos anos 60 ou 70, teria sido considerado um hippie pela sociedade

    convencional.

    O seu desagrado pela educao formal foi, no entanto, rapidamente ultrapassado pela

    curiosidade em relao fsica e pela atrao pelo universo natural. Inscreveu-se, por isso, e

    apesar de no ter ainda o diploma do ensino secundrio, no Instituto Federal de Tecnologia

    em Zurique, na Sua. Tendo reprovado no exame de admisso ao Instituto, inscreveu-se num

    liceu suo para corrigir as suas falhas e foi admitido, passado um ano, no Instituto Federal.

    Continuava, no entanto, a ser um estudante medocre. Estudava apenas aquilo a que

    era obrigado, o que estava estipulado,

    no comparecia s aulas e dedicava-se ao que o interessava. Mais tarde escreveu: "O

    grande problema disto que eu era obrigado a meter tudo aquilo na cabea, quer quisesse

    quer no, para conseguir passar no exame."

    S conseguiu licenciar-se porque um grande amigo, Marcel Grossmann, ia

  • regularmente s aulas e partilhava os seus apontamentos com Einstein. Escreveu, muitos anos

    depois, a respeito da morte desse amigo: "Lembro-me dos nossos tempos de estudantes.

    Ele era um aluno irrepreensvel e eu um incorrigvel sonhador. Ele, sempre de boas

    relaes com os professores, percebendo sempre tudo; eu, um pria insatisfeito e pouco

    querido por todos, completamente perdido no limiar da vida."

    Conseguiu a sua graduao atravs da concentrao absoluta nos apontamentos de

    Grossmann, mas, recorda mais tarde, "estudar para os exames finais teve um efeito to terrvel

    em mim que durante um ano inteiro me foi completamente insuportvel a concentrao em

    qualquer problema cientfico [...]

    S por milagre estes mtodos pedaggicos no estrangularam ainda por completo a

    sagrada curiosidade para investigar, porque o que esta planta mais necessita, para alm da

    estimulao inicial, de liberdade. Sem isso de certeza destruda. Acredito que qualquer

    animal saudavelmente voraz perca completamente o apetite se for obrigado a comer

    continuamente, quer tenha fome, quer no". Estas observaes de Einstein deveriam servir de

    pontos de reflexo aos responsveis pela educao cientfica avanada. s vezes penso em

    quantos potenciais Einsteins tero sido sistematicamente desencorajados pela competitividade

    dos exames e pela "alimentao" forada dos currculos.

    Depois de viver custa de diversos empregos e de ter sido recusado para posies que

    desejava, Einstein aceitou uma proposta de emprego para verificar os requerimentos no

    Departamento de Patentes Suas, em Berna. Esta oportunidade surgiu-lhe por influncia do

    pai de Marcel Grossmann. Nesta altura rejeitou a nacionalidade alem e tornou-se cidado

    suo. Em 1903, trs anos mais tarde, casou com a namorada dos tempos da faculdade. Sabe-

    se pouco sobre os pedidos de patentes que teriam sido aprovados ou rejeitados por Einstein.

    Seria interessante saber at que ponto essas propostas estimularam os seus pensamentos na

    fsica.

    Um dos seus bigrafos, Banesh Hoffman, descreve como Einstein "aprendeu

    rapidamente a desempenhar as suas tarefas e isto permitiu-lhe furtar tempos livres no

    Departamento, tempos que dedicava sub-repticiamente aos seus clculos, que escondia

    culposamente numa gaveta sempre que ouvia o som de passos aproximando-se". Foi nestas

    circunstncias que nasceu a clebre teoria da relatividade. Einstein recordaria mais tarde,

    nostalgicamente, o Departamento de Patentes como "o claustro secular onde amadureceram as

    minhas idias mais belas".

    Disse vrias vezes a colegas seus que a profisso de faroleiro seria a ideal para um

  • cientista - porque um trabalho relativamente fcil e, ao mesmo tempo, permite a

    contemplao necessria investigao cientfica. Leopold Infeld, um colega seu, disse um

    dia: "Para Einstein, a solido da vida num farol seria decerto estimulante, libert-lo-ia de

    muitas das obrigaes que ele detesta. Seria para ele a vida ideal. No entanto, quase todos

    os cientistas pensam o contrrio. A maldio da minha vida foi ter passado muito

    tempo fora do ambiente cientfico, sem ningum com quem falar sobre fsica."

    Einstein acreditava que era algo desonesto ganhar dinheiro a ensinar fsica. Defendia

    que era muito melhor para um fsico sustentar-se atravs de um outro tipo de trabalho simples

    e honesto e trabalhar em fsica nos tempos livres. Alguns anos mais tarde, nos Estados

    Unidos, disse por graa que gostaria de ter sido canalizador e foi imediatamente tornado

    membro honorrio do sindicato dos canalizadores.

    Em 1905, Einstein publicou quatro artigos de investigao na principal revista de

    fsica da altura, a Annalen der Physik.

    Estes artigos eram fruto do seu trabalho durante as horas vagas no Departamento de

    Patentes Suas. O primeiro artigo demonstrava que a luz tem propriedades de partculas e de

    ondas e explicava o estranho efeito fotoeltrico, segundo o qual os eletres so emitidos por

    slidos quando irradiados pela luz. O segundo explorava a natureza das molculas, explicando

    o "movimento browniano" estatstico de pequenas partculas em suspenso.

    O terceiro e o quarto introduziam a teoria da relatividade restrita e, pela primeira vez,

    foi escrita a famosa equao E=mc2, to amplamente citada e to raramente compreendida.

    A equao expressa a possibilidade de a matria se converter: em energia e vice-versa.

    Amplia a lei da conservao da energia para a lei da conservao da energia e da massa,

    afirmando que a energia e a massa no podem ser criadas nem destrudas embora uma forma

    de energia ou de matria possa ser convertida noutra. Na equao, o E representa a energia

    equivalente massa, m. A quantidade de energia que poderia, em circunstncias ideais, ser

    extrada da massa mcz, onde c a velocidade da luz = 30 bilies de centmetros por

    segundo. (A velocidade da luz sempre escrita em letra minscula, e nunca em letra

    maiscula.) Se medirmos m em gramas e c em centmetros por segundo, E ser medido numa

    unidade de energia chamada erg. A converso completa de 1 g de massa em energia liberta1 x

    (3 x l0&o)z = 9 x l0zo ergs, o que seria mais ou menos equivalente exploso de 1000 t de

    TNT. Estas imensas fontes de energia esto contidas em quantidades mnimas de matria.

    Imagine-se o que seria se soubssemos como extra-la. As armas e as centrais

    nucleares so hoje exemplos corriqueiros das nossas tentativas eticamente ambguas de extrair

  • a energia que Einstein demonstrou estar presente em toda a matria. Uma arma termonuclear,

    uma bomba de hidrognio, uma inveno com um poder aterrorizador, mas nem mesmo

    assim representa mais de 1 % de mc2 da massa m de hidrognio.

    Os quatro artigos de Einstein publicados em 1905 poderiam ter sido o resultado

    impressionante de um trabalho de investigao feito a tempo inteiro durante toda uma vida;

    terem sido o resultado do trabalho feito nas horas vagas de um empregado do Departamento

    de Patentes com 26 anos de idade algo completamente espantoso.

    Muitos historiadores da cincia chamaram ao ano de 1905 Annus Mirabilis, o "ano dos

    milagres". S tinha existido um ano ligeiramente semelhante a este na histria da fsica -1666,

    ano em que Isaac Newton, de 24 anos, num isolamento rural forado por uma epidemia de

    peste bubnica, produziu uma explicao para a natureza espectral da luz do Sol, inventou o

    clculo diferencial e integral e criou a teoria da gravitao universal.

    Os artigos de 1905 e a teoria da relatividade generalizada, formulada pela primeira vez

    em 1915, foram as principais criaes da vida cientfica de Einstein.

    Antes de Einstein defendia-se que existiam sistemas de referncia privilegiados e

    coisas tais como o espao absoluto e o tempo absoluto. O ponto de partida de Einstein foi que,

    qualquer que fossem os sistemas de referncia, todos os observadores (fosse qual fosse a sua

    localizao, velocidade ou acelerao) veriam as leis fundamentais da natureza da mesma

    forma.

    provvel que esta forma de encarar os sistemas de referncia tenha sido influenciada

    pelas atitudes sociais e polticas de Einstein e pela sua resistncia ao chauvinismo estridente

    da Alemanha dos finais do sculo XIX. A idia de relatividade neste sentido tornou-se j um

    lugar-comum da antropologia e os cientistas sociais j h muito adotaram a idia do

    relativismo cultural: h uma validade comparvel nas vrias formas de encarar os contextos

    sociais e de expressar, nas diferentes sociedades, os conceitos ticos e religiosos.

    A relatividade estrita no foi inicialmente bem aceite. Tentando iniciar, de novo, uma

    carreira acadmica, Einstein submeteu os seus artigos apreciao da Universidade de Berna,

    apresentando-os como exemplo do seu trabalho. Considerava-os evidentemente como algo de

    importncia. Foram rejeitados por serem incompreensveis e ele manteve-se, assim, no

    Departamento de Patentes at 1909.

    O trabalho publicado no passou, no entanto, completamente despercebido e alguns

    dos mais importantes fsicos da Europa comeavam lentamente a perceber que Einstein

    poderia ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Mas o seu trabalho sobre a

  • relatividade continuava a ser altamente controverso.

    Numa carta de recomendao para que Einstein ingressasse na Universidade de

    Berlim, um importante cientista alemo sugeria que a relatividade era uma divagao

    hipottica, uma aberrao momentnea, mas que, apesar disso, Einstein era, de fato, um

    pensador de alta craveira. (O Prmio Nobel que Einstein ganhou, e de que teve conhecimento

    durante uma

    visita ao Oriente em 1921, foi-lhe atribudo pelo artigo sobre

    o efeito fotoeltrico e "outras contribuies" para a fsica terica.

    A relatividade era ainda tida como demasiado controversa para poder ser mencionada

    explicitamente.)

    As formas de Einstein encarar a religio e a poltica esto interligadas. Os pais, de

    origem judaica, no praticavam os rituais judaicos. Einstein acabou por ter, apesar disso, uma

    educao religiosa convencional, "dada pela mquina tradicional da educao, o estado e as

    escolas". Este tipo de educao teve um final repentino aos 12 anos: "A leitura de livros

    cientficos de divulgao levou-me rapidamente concluso de que muitas das histrias da

    Bblia no podiam ser verdadeiras. A conseqncia disto foi um fanatismo positivo pela

    liberdade de pensamento, a que se juntou a impresso de que a juventude estava a ser

    intencionalmente enganada pelo estado com as suas mentiras; era uma sensao chocante.

    Desta experincia nasceu a desconfiana em relao a qualquer tipo de autoridade, a atitude

    cptica em relao s convices defendidas em qualquer ambiente social especfico - atitude

    que no mais me abandonou, embora mais tarde, atravs do conhecimento profundo das

    ligaes causais, tenha perdido a sua rigidez inicial.

    Exatamente antes de rebentar a primeira guerra mundial, Einstein aceitou um lugar de

    professor no clebre Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim. O profundo desejo de estar no

    principal centro de fsica terica foi momentaneamente mais forte do que a sua antipatia pelo

    militarismo alemo.

    O incio da guerra impediu a mulher e os dois filhos de Einstein de voltarem da Sua

    para a Alemanha. Esta separao forada acabaria em divrcio alguns anos depois. Apesar de

    estar

    de novo casado, Einstein doou o valor total do Prmio Nobel que lhe foi atribudo em

    1921, 30 000 dlares, sua primeira mulher e aos filhos. O filho mais velho viria a ser uma

    figura importante da engenharia civil, professor na Universidade da Califrnia. O segundo

    filho, que idolatrava o pai, acusou-o anos mais tarde, e com grande angstia para Einstein, de

  • ter sido ignorado durante a sua juventude.

    Einstein, que se dizia socialista, defendia que a primeira guerra mundial era, em

    grande parte, resultado das intrigas e da incompetncia das classes dominantes, concluso

    com que muitos dos historiadores contemporneos esto de acordo.

    Tornou-se ento um pacifista. Enquanto muitos outros cientistas alemes apoiavam

    entusiasticamente as proezas militares da sua nao, Einstein condenava publicamente a

    guerra, chamando-lhe "iluso epidmica". A cidadania sua impediu a sua priso, o que no

    aconteceu com o seu amigo e filsofo Bertrand Russell em Inglaterra, na mesma altura e pelos

    mesmos motivos.

    Esta forma de Einstein encarar a guerra no aumentou a sua fama na Alemanha. A

    guerra teve, no entanto, uma influncia indireta na divulgao do seu nome.

    Na teoria da relatividade generalizada, Einstein explorava a afirmao - uma idia

    ainda hoje admirvel pela sua simplicidade, beleza e poder - de que a atrao gravitacional

    entre duas massas aparece porque essas massas distorcem ou deformam o espao euclidiano

    vizinho. A teoria quantitativa reproduzia, com a preciso com que tinha sido testada, a lei da

    gravitao universal, de Newton. Olhando mais de perto, no entanto, possvel ver que a

    relatividade generalizada prev diferenas significativas em relao teoria de Newton. Isto

    est na tradio clssica da cincia, onde as novas teorias retm os resultados verificados das

    antigas, mas avanam um conjunto de novas previses que permite uma distino decisiva

    entre as duas perspectivas.

    As trs provas da relatividade geral propostas por Einstein diziam respeito s

    anomalias do movimento da rbita do planeta Mercrio, ao desvio para o vermelho das linhas

    espectrais da luz emitida por uma estrela macia e ao desvio da luz das estrelas quando passa

    perto do Sol.

    Antes de ter sido assinado o Armistcio em 1919 foram mandadas expedies

    britnicas ao Brasil e ilha do Prncipe, na frica ocidental, para verificar, durante um eclipse

    total do Sol, se o desvio da luz das estrelas estava de acordo com as previses da relatividade

    generalizada. Ficou, assim, demonstrado o ponto de vista de Einstein. O simbolismo de uma

    expedio britnica, confirmando o trabalho de um cientista alemo, quando os dois pases

    estavam ainda tecnicamente em guerra, foi bem acolhido pelo pblico.

    Mas, ao mesmo tempo, era lanada na Alemanha uma campanha pblica bem

    financiada contra Einstein. Em Berlim e noutros locais reuniam-se massas com sentimentos

    anti-semitas para denunciar a teoria da relatividade. Os colegas de Einstein mostravam-se

  • chocados, mas a sua maioria, que era demasiado tmida em questes polticas, nada fez contra

    tais manifestaes.

    Com o aparecimento dos nazis, nos anos 20 e no princpio dos anos 30, Einstein viu-

    se, contra a sua natureza silenciosamente contemplativa, a discursar em pblico, vrias vezes

    e de forma frontal. Testemunhou nos tribunais alemes a favor dos estudantes em julgamento

    pelas suas posies polticas. Pediu anistias para os presos polticos na Alemanha e no

    estrangeiro (incluindo Sacco, Vanzetti e os Scottsboro boys nos Estados Unidos).

    Quando Hitler se tornou chanceler, em 1933, Einstein e a mulher fugiram da

    Alemanha.

    Os nazis queimaram as obras cientficas de Einstein em piras pblicas, juntamente

    com outras obras de autores antifascistas.

    Foi lanado um outro ataque figura cientfica de Einstein, liderado pelo fsico Philipp

    Lenard, que recebera o Prmio Nobel.

    Lenard denunciava aquilo a que chamava "as teorias matematicamente adulteradas de

    Einstein" e o "esprito asitico na cincia".

    Continuava assim: "O nosso Fhrer eliminou este mesmo esprito na poltica e na

    economia nacional, onde conhecido por marxismo. Mas ele mantm-se nas cincias

    naturais, na nfase que se dedica a Einstein. Temos de reconhecer que no digno de um

    alemo ser seguidor intelectual de um judeu.

    A verdadeira cincia natural de origem puramente ariana. . . Heil Hitler !"

    Juntaram-se ento muitos intelectuais nazis prevenindo as pessoas contra a fsica

    judaica e bolchevista de Einstein. Ironicamente, na Unio Sovitica, mais ou menos

    simultaneamente, alguns importantes intelectuais estalinistas classificavam a relatividade

    como a "fsica burguesa". O fato de o contedo da teoria em causa ser verdadeiro ou falso no

    era, obviamente, considerado em nenhum desses ataques.

    A identificao do prprio Einstein como judeu, apesar do seu profundo

    distanciamento das religies tradicionais, foi inteiramente determinada pelo aparecimento do

    anti-semitismo na Alemanha dos anos 20. Foi tambm por este motivo que se tornou sionista.

    Segundo o seu bigrafo Philipp Frank, nem todos os sionistas o aceitavam bem, porque

    Einstein pedia que os Judeus fizessem um esforo para ajudar os rabes, tentando perceber o

    seu modo de vida. Esta devoo ao relativismo cultural tornava-se ainda mais marcante pelos

    complexos aspectos emocionais envolvidos. De qualquer forma, ele continuou a apoiar o

    sionismo, especialmente medida em que ia sendo conhecido o desespero dos Judeus na

  • Europa no fim da dcada de 30. (Em 1948, Einstein foi convidado para presidente de Israel,

    mas recusou delicadamente. interessante especular sobre as diferenas que poderiam existir,

    se que haveria algumas, na poltica do Prximo Oriente se Albert Einstein tivesse aceite ser

    presidente de Israel.)

    Depois de ter abandonado a Alemanha, Einstein soube que os nazis tinham posto a sua

    cabea a prmio por 20 000 marcos. ("Eu no sabia que ela valia assim tanto ! ") Aceitou

    ento um emprego no Instituto de Estudos Avanados, recentemente fundado em Princeton,

    Nova Jrsy, onde ficaria o resto da vida.

    Quando lhe perguntaram que salrio pensava ser justo para si, respondeu 3000 dlares.

    Percebendo o olhar de espanto do representante do Instituto, pensou que teria pedido de mais

    e props uma quantia mais baixa. O seu salrio foi fixado em 16.000 dlares, o que era uma

    quantia considervel nos anos 30.

    O prestgio de Einstein era to grande que no de estranhar que outros fsicos

    europeus emigrados nos Estados Unidos o tenham abordado, em 1939, para escrever uma

    carta ao presidente Franklin D. Roosevelt propondo o estudo e o desenvolvimento de uma

    bomba atmica, tentativa de ultrapassar os provveis esforos para conseguir armas nucleares

    por parte dos Alemes. Embora Einstein no estivesse a trabalhar em fsica nuclear, nem

    tivesse tido, mais tarde, qualquer participao no desenvolvimento deste projeto, escreveu a

    carta que levou realizao do Projeto Manhattan. provvel, no entanto, que a bomba

    atmica tivesse sido criada nos Estados Unidos independentemente desta participao de

    Einstein. Mesmo sem o E = mcz, a descoberta da radiatividade por Antoine Becquerel e a

    investigao dos ncleos atmicos por Ernest Rutherford - ambos trabalhando

    independentemente de Einstein teriam sempre conduzido ao desenvolvimento das armas

    nucleares.

    O horror de Einstein Alemanha nazi j h muito o tinha levado a abandonar, para seu

    grande desgosto, as idias pacifistas.

    Quando, mais tarde, se veio a saber que os nazis no tinham conseguido adquirir

    armas nucleares, Einstein expressou o seu remorso: "Se tivesse sabido que os Alemes no

    iam conseguir uma bomba atmica, nada teria feito para que a consegussemos aqui."

    Em 1945, Einstein incitou os Estados Unidos ao corte de relaes com a Espanha de

    Franco, que apoiara os nazis na Segunda guerra mundial. John Rankin, um congressista

    conservador do Mississpi, atacou Einstein num discurso feito na Cmara dos Representantes,

    declarando que "este agitador estrangeiro vai acabar por fazer-nos mergulhar numa nova

  • guerra s para propagar o comunismo pelo mundo [...] J tempo de o povo americano se

    precaver contra Einstein".

    Einstein era um poderoso defensor das liberdades civis nos Estados Unidos, mesmo

    durante o perodo mais negro do macartismo no final dos anos 40 e incio dos anos 50.

    Observando a mar crescente de histeria, experimentava a sensao assustadora de ter

    assistido a algo de semelhante na Alemanha dos anos 30. Incentivava os rus a recusarem-se a

    depor perante a Comisso das Atividades Antiamericanas da Cmara, dizendo que qualquer

    pessoa deveria estar "preparada para a priso ou para runa econmica [...] para sacrificar o

    seu bem-estar pessoal aos interesses [...] do seu pas". Defendia que as pessoas tm "o dever

    de se recusar a participar em qualquer iniciativa que viole os direitos constitucionais do

    indivduo. Isto diz respeito, em particular, a todos os inquritos relacionados com a vida

    privada e as filiaes polticas dos cidados [..]".

    Esta tomada de posio foi fortemente criticada pela imprensa.

    O senador Joseph MaCarthy afirmou, em 1953, que qualquer pessoa que tivesse este

    tipo de opinio era "ela prpria um inimigo da Amrica". Por tudo isto, tornou-se moda

    associar o reconhecimento do gnio cientfico de Einstein a um certo menosprezo

    condescendente pelo seu posicionamento poltico, considerado naive.

    Os tempos mudaram. Pergunto-me hoje se no ser mais razovel ver as coisas de uma

    outra forma: num campo como a fsica, onde as idias podem ser quantificadas e

    comprovadas com grande preciso, as descobertas de Einstein so inquestionveis e

    espantosa a sua clareza em assuntos onde outros se perdiam na confuso; valer talvez a pena

    pensar se as suas opinies no tero tambm alguma validade no campo mais subjetivo da

    poltica.

    Durante os anos que passou em Princeton, a paixo de Einstein continuou a ser, como

    sempre, a vida da mente. Trabalhou longa e duramente numa teoria do campo unificado, que

    combinaria a gravitao, a eletricidade e o magnetismo numa base comum. Esta tentativa foi,

    no entanto, considerada fracassada.

    Ainda assistiu incorporao da teoria da relatividade generalizada como instrumento

    principal da compreenso da estrutura e da evoluo do universo em larga escala. Ter-lhe-ia

    sido agradvel, decerto, testemunhar a aplicao vigorosa da relatividade generalizada

    astrofsica atual. Nunca percebeu a reverncia com que era tratado e queixava-se mesmo de

    que os seus colegas e os estudantes graduados de Princeton nunca o visitavam sem se fazer

    anunciar, com medo de o incomodar. Mas escreveu: "O meu interesse apaixonado pela justia

  • e pela responsabilidade social contrastou sempre, curiosamente, com uma notvel falta de

    interesse pela associao prxima com homens e mulheres. No fui feito para o trabalho de

    equipa. Nunca pertenci sinceramente a nenhum pas nem a nenhum estado, ao meu crculo de

    amigos e mesmo minha prpria famlia. Estes laos sempre foram pouco estreitos e o desejo

    de refgio em mim prprio tem aumentado com os anos. Este isolamento por vezes

    doloroso, mas no lamento no ter a compreenso nem a simpatia das outras pessoas. Perco

    certamente alguma coisa com isso, mas sou compensado pela independncia em relao aos

    hbitos, s opinies e aos preconceitos dos outros e no me sinto tentado a construir a minha

    paz de esprito em bases to mutveis como essas." Os seus principais divertimentos na vida

    eram tocar violino e velejar. Nos seus ltimos anos, Einstein parecia, e em certos aspectos era

    de fato, um hippie a envelhecer. Deixou crescer os cabelos j brancos e preferia usar uma

    camisola e um bluso a vestir fato e gravata, mesmo quando recebia pessoas importantes. Era

    totalmente despretensioso e explicava simplesmente: "Falo a toda a gente da mesma forma,

    seja ao homem do lixo ou ao reitor da Universidade." Estava quase sempre disposio do

    pblico e s vezes tambm disposto a ajudar os alunos da Faculdade nos problemas de

    Geometria nem sempre com xito.

    Seguindo a tradio cientfica mais correta, estava sempre aberto a idias novas, mas

    exigia que fossem rigorosamente comprovadas.

    Era uma pessoa de esprito aberto, mas muito cptico

    em relao evidncia de catstrofe planetria na histria

    recente da Terra e s experincias de percepo extra-sensorial.

    A sua resistncia a este ltimo aspecto baseava-se nos argumentos que defendiam que

    as capacidades telepticas no diminuem medida que aumenta a distncia entre emissor e

    receptor.

    Einstein pensava muito mais profundamente nas questes religiosas do que a maioria

    das pessoas, mas era sistematicamente mal interpretado. Quando visitou pela primeira vez a

    Amrica, o cardeal O'Connell, de Boston, alertou as pessoas para o fato de a teoria da

    relatividade "esconder a apario assustadora do atesmo". Este aviso alarmou um rabi de

    Nova Iorque, que perguntou a Einstein: "Acredita em Deus?", ao que Einstein respondeu:

    "Acredito no Deus de Spinoza, que se revelou na harmonia de todos os seres. No no Deus

    que se preocupa com o destino e as aes dos homens." Esta resposta corresponde a um

    posicionamento religioso mais subtil, hoje defendido por vrios telogos.

    As crenas religiosas de Einstein eram muito genunas. Nos anos 20 e 30 expressou

  • srias dvidas acerca do preceito bsico dos mecanismos qunticos: ao nvel essencial da

    matria, as partculas comportam-se de um modo imprevisvel, tal como foi expresso no

    princpio da incerteza, de Heisenberg. "Deus no joga aos dados com o cosmo", dizia

    Einstein. "Deus subtil, mas no malicioso." Einstein utilizava tanto estes aforismos que,

    um dia, um fsico dinamarqus, Niels Bohr, lhe disse, irritado: "Pare de dizer a Deus o que

    deve fazer!" Mas havia muita gente na fsica que sentia que, se algum sabia alguma coisa

    acerca das intenes de Deus, esse algum era Einstein.

    Uma das bases da relatividade especial era o princpio de que nenhum objeto material

    se pode mover to depressa como a luz. Esta barreira da luz tornava-se incmoda para as

    pessoas que gostariam que no existisse limite para a capacidade de realizao humana. Mas o

    limite da luz permite-nos compreender uma parte do mundo, que antes nos parecia misteriosa,

    duma forma simples e elegante. E, sempre que Einstein tirava alguma

    coisa, dava qualquer outra coisa em troca: h muitas conseqncias da relatividade

    restrita que vo contra a intuio e contra a nossa experincia de todos os dias, mas que se

    tornam claras e facilmente verificveis quando viajamos suficientemente prximos da

    velocidade da luz - o que uma experincia rara ao nvel do senso comum (cap. II). Um

    exemplo disto que, quando viajamos a uma velocidade prxima da luz, o tempo se atrasa: os

    relgios de pulso, os relgios atmicos e o nosso envelhecimento biolgico. Uma nave

    espacial que se desloque a uma velocidade prxima da luz pode deslocar-se entre dois lugares

    quaisquer, independentemente da distncia entre eles, num perodo de tempo muito curto-

    tempo medido a bordo da nave, e no no planeta de origem. Um dia poderemos ir ao centro da

    Galxia da Via Lctea e voltar demorando apenas umas dcadas, tempo medido a bordo da

    nave. Este mesmo de tempo, medido na Terra, equivalente a perto de 60 000 anos e muito

    poucos dos que nos viram partir estariam vivos para comemorar o nosso regresso. O filme

    Contatos Imediatos do Terceiro Grau d-nos uma vaga idia desta possibilidade de dilao do

    tempo, embora integre tambm a sugesto gratuita de que Einstein seria provavelmente um

    extraterrestre.

    As suas descobertas foram, de fato, desconcertantes, mas ele era muito humano e a sua

    vida um exemplo de quanto um ser humano pode conseguir, se for suficientemente dotado e

    corajoso

    O ltimo ato pblico de Einstein foi juntar-se a Bertrand Russell e a muitos outros

    cientistas e intelectuais, numa tentativa frustrada de parar o desenvolvimento das armas

    nucleares.

  • Argumentava que as armas nucleares tinham modificado tudo menos a nossa forma de

    pensar. Num mundo dividido em estados hostis, ele via a energia nuclear como a maior

    ameaa sobrevivncia da espcie humana. "Pudemos escolher", dizia, "entre tornar ilegais as

    armas nucleares e ter de enfrentar a aniquilao geral [...] O nacionalismo uma doena

    infantil. o sarampo da espcie humana [. . .] Os nossos livros escolares glorificam a guerra e

    escondem os seus horrores. Infiltram o dio nas veias das crianas. Eu ensinaria a paz em vez

    da guerra. Eu tentaria infiltrar o amor, e no o dio."

    Com 66 anos, nove anos antes de morrer, em 1955, Einstein descrevia o objectivo de

    toda a sua vida: "Havia este mundo enorme, que existe independentemente de ns, seres

    humanos que permanece diante de ns um enigma gigantesco e eterno acessvel, pelo menos

    em parte, nossa inspeo e ao nosso pensamento. A contemplao deste mundo acenava

    como uma libertao [...] O caminho para este paraso no era to confortvel nem atraente

    como o caminho para o Paraso religioso; mas mostrou-se digno de confiana e nunca me

    arrependi de o ter escolhido." .

    CAPTULO IV: EM LOUVOR DA CINCIA E DA TECNOLOGIA

    O enriquecimento da mente como um alimento que se fornece alma humana.

    Marco Tlio Ccero, De Finibus Bonorum et Malorum, VOL. 19 (45-44 a. C.)

    Para alguns, a cincia uma deusa enaltecida; para outros, uma vaca leiteira.

    Friedrich von Schiller, Xenien

    Nos meados do sculo XIX, o grande fsico ingls autodidata Michael Faraday

    recebeu a visita da sua soberana, a rainha Vitria. Entre as inmeras famosas descobertas de

    Faraday, algumas de bvio e imediato benefcio prtico, encontravam-se achados menos

    conhecidos versando os campos da eletricidade e do magnetismo, que ento mais no eram do

    que curiosidades laboratoriais. Durante o tradicional dilogo entre um responsvel pelo estado

    e um responsvel por um laboratrio, a rainha questionou Faraday sobre a utilidade de tais

    estudos, ao que o cientista retorquiu: "Minha Senhora, e qual a utilidade de um beb?"

    Faraday pensava que, um dia, talvez viesse algo de prtico a resultar da eletricidade e do

    magnetismo.

    Na mesma altura, o fsico escocs James Clerk Maxwell estabeleceu quatro equaes

    matemticas baseadas no trabalho de Faraday e nas experincias dos seus antecessores,

    relacionando cargas e correntes eltricas com campos eltricos e magnticos.

    As equaes revelavam uma estranha falta de simetria, fato que preocupou Maxwell.

    Havia algo de inesttico. Nelas, tal como eram ento conhecidas, e, para melhorar a simetria,

  • Maxwell props que a uma dessas equaes fosse somado um termo adicional, que o fsico

    denominou "corrente de deslocamento".

    O seu argumento era fundamentalmente intuitivo; no havia nenhuma prova

    experimental que comprovasse a existncia de tal corrente. A proposta de Maxwell teve

    contudo conseqncias espantosas. As equaes corrigidas implicavam a existncia de

    radiao electromagntica, incluindo raios gama, raios X, luz ultravioleta, luz visvel,

    infravermelhos e rdio. Estas equaes estimularam Einstein na descoberta da relatividade

    restrita.

    O conjunto do trabalho laboratorial e terico levado a cabo por Faraday e Maxwell deu

    origem, um sculo mais tarde, a uma revoluo tcnica no planeta Terra. A luz eltrica, o

    telefone, o gira-discos, a rdio, a televiso, o frigorfico, os pace-makers cardacos, as centrais

    hidroeltricas, os sistemas automticos de alarme e de combate a incndios, os eltricos e os

    metropolitanos, juntamente com o computador eletrnico, constituem alguns dos benefcios

    advindos da linha revolucionria do trabalho laboratorial de Faraday e da insatisfao esttica

    de Maxwell ao observar uns rabiscos matemticos numa folha de papel.

    Muitas das grandes aplicaes prticas da cincia deram-se deste modo acidental e

    imprevisvel. Na poca da rainha Vitria no bastaria dinheiro para que os cientistas ingleses

    pensassem e inventassem, digamos, a televiso.

    Poucos iro contra a idia de que o efeito ntido destas invenes no seja positivo.

    Reparo que mesmo muitos jovens j profundamente desencantados com a civilizao

    tecnolgica ocidental, freqentemente por boas razes, continuam a manter uma fervorosa

    dedicao por certos aspectos da alta tecnologia por exemplo, pelos sistemas eletrnicos

    musicais de alta fidelidade.

    Algumas destas invenes modificaram de um modo fundamental o carter da

    sociedade na sua globalidade. A facilidade de comunicao veio "desprovincializar" inmeras

    regies do mundo, tendo, no entanto, a diversidade cultural diminudo na mesma proporo.

    As vantagens prticas destas invenes so reconhecidas por quase todas as sociedades

    humanas; extraordinrio como as naes recentemente aparecidas se preocupam pouco com

    os efeitos negativos da alta tecnologia (poluio do ambiente, por exemplo); estas decidiram

    firmemente que os benefcios superam os riscos. Uma das mximas de Lenine afirmava que a

    soma do socialismo com a eletrificao era igual ao comunismo. No entanto, no houve

    empreendimento to vigoroso ou inventivo com respeito alta tecnologia como o que se

    verificou no Ocidente. As mudanas so to constantes e do-se de um modo to rpido que

  • muitos de ns no conseguem acompanh-las. Esto ainda hoje vivas muitas pessoas que

    nasceram antes da existncia do primeiro avio, que viveram para assistir descida