o centro do dilema brasileiro não é o presidencialismo; É a coalizão

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Domingo, 13/03/2016, às 11:50, O centro do dilema brasileiro não é o presidencialismo; É a coalizão * Por Sérgio Abranhes O debate sobre uma reforma constitucional, para implantar o que se tem chamado de semipresidencialismo, como saída para a crise política, tem sido no mínimo superficial. A crise tem seu epicentro na Presidência e decorre da óbvia fraqueza política da presidente Dilma Rousseff. A discussão que se vem fazendo no país sobre o tema padece da ausência de um olhar sobre a história do Brasil e sobre a dinâmica concreta dos exemplos usados como referência. Há dois casos que têm sido chamados de semipresidencialismo o da França e o de Portugal. A Espanha é um caso diferente, porque se trata de uma monarquia parlamentarista, mas o rei não é definitivamente uma rainha da Inglaterra. Tem funções “presidenciais". Portugal e Espanha ainda não superaram as crises políticas resultantes da ausência de maioria parlamentar clara. França vive, hoje, uma situação que lá costuma-se chamar de “presidencialismo majoritário”. Falando claro, o presidente tem maioria na Assemblée Nationale e indica o primeiro- ministro de sua preferência. Ele manda, o primeiro-ministro executa. Mas, já houve tempos em que as eleições parlamentares produziram maiorias de oposição. Neles, o presidencialismo majoritário se metamorfoseia em tensa coabitação, no que o diplomata e político Alain Peyrefitte chamou “uma república na qual os dois personagens políticos do topo são parceiros e adversários”. A reler essa definição de Peyrefitte, o que me veio à mente em relação ao Brasil não foram duas pessoas, ou personas, políticas, mas os dois partidos pivô da grave crise atual, PT e PMDB. Sempre viveram uma coabitação tensa desse tipo, principalmente, com Dilma Rousseff e Michel Temer. Tornou-se, agora, particularmente inviável diante do previsível esgotamento da capacidade de financiamento governamental desse casamento de pura conveniência. Algo como a tentativa de coabitação cooperativa, entre o presidente conservador e mandão Jacques Chirac e o talentoso socialista, Leonel Jospin, nos anos 1997-2002. Começaram numa “entente cordiale” e terminaram se odiando abertamente, analisou o Le Nouvel Observateur (L’Obs) em outubro de 2001, n a antevéspera das eleições de 2002. O ponto central é que, se o presidente é fraco politicamente e não tem as aptidões necessárias para o exercício da “alta política”, ele é refém de quem, na coalizão governista, tem essas aptidões. O centro do dilema po lítico brasileiro não é o presidencialismo. É a coalizão. A necessidade, a dificuldade e o modo de formar coalizões. Necessidade, porque o descasamento que parece inevitável entre a maioria que elege o presidente e a maioria parlamentar que sai das urnas exige que o eleito negocie uma coalizão para poder governar. Dificuldade, porque a legislação partidária, a diversidade federativa, a forma de campanha e o método de converter votos em cadeiras promove forte fragmentação partidária. O modo de formar coalizões em um contexto de fragmentação partidária e déficit programático é o clientelismo, o toma-lá-dá-cá, a troca de favores entre partidos e eleitores e entre presidentes e partidos. E clientelismo custa caro, exige capacidade fiscal para pagar por todas as demandas e discricionariedade no gasto. Nas bolhas, tudo bem. No colapso econômico que se segue ao estouro das bolhas, crise. Esse dilema, em França, Portugal e Espanha é diferente. Nesses países, também, parte do problema está na necessidade de formar coalizões. Mas o dilema é outro. Em França e Portugal, ele emerge quando há necessidade de coalizão ou coabitação. Como há forte polarização programática, eles entram em uma zona de stress. Mas o impasse pode ser resolvido com novas eleições. Mesmo que elas não produzam maiorias claras, podem gerar novas personas com mais força para buscar uma solução negociada. Na França, o regime vive entre dois ciclos. Quando há coincidência entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar, dá-se o ciclo do presidencialismo majoritário, no qual o presidente domina as decisões políticas e o primeiro-ministro é uma figura de segundo plano. É o caso, hoje com Hollande e Vals. Quando a maioria parlamentar é de oposição, dá-se o ciclo da coabitação, na qual o primeiro-ministro passa a ser o centro do poder governamental e o presidente perde boa parte de seu poder. Mas, como ele mantém um poder de veto residual significativo, se não há cooperação entre os dois o impasse só pode ser resolvido pela arbitragem da Corte Constitucional, ou o sistema se move para a paralisia. O presidente é totalmente “irresponsável juridicamente”, exceto na hipótese extrema de

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8/17/2019 O Centro Do Dilema Brasileiro Não é o Presidencialismo; É a Coalizão

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Domingo, 13/03/2016, às 11:50,

O centro do dilema brasileiro não é o presidencialismo; É a coalizão

* Por Sérgio Abranhes

O debate sobre uma reforma constitucional, para implantar o que se tem chamado de semipresidencialismo, como

saída para a crise política, tem sido no mínimo superficial. A crise tem seu epicentro na Presidência e decorre da

óbvia fraqueza política da presidente Dilma Rousseff. A discussão que se vem fazendo no país sobre o tema padeceda ausência de um olhar sobre a história do Brasil e sobre a dinâmica concreta dos exemplos usados como

referência. Há dois casos que têm sido chamados de semipresidencialismo o da França e o de Portugal. A Espanha é

um caso diferente, porque se trata de uma monarquia parlamentarista, mas o rei não é definitivamente uma rainha

da Inglaterra. Tem funções “presidenciais". Portugal e Espanha ainda não superaram as crises políticas resultantes da

ausência de maioria parlamentar clara. França vive, hoje, uma situação que lá costuma-se chamar de

“presidencialismo majoritário”. Falando claro, o presidente tem maioria na Assemblée Nationale e indica o primeiro-

ministro de sua preferência. Ele manda, o primeiro-ministro executa. Mas, já houve tempos em que as eleições

parlamentares produziram maiorias de oposição. Neles, o presidencialismo majoritário se metamorfoseia em tensa

coabitação, no que o diplomata e político Alain Peyrefitte chamou “uma república na qual os dois personagens

políticos do topo são parceiros e adversários”. 

A reler essa definição de Peyrefitte, o que me veio à mente em relação ao Brasil não foram duas pessoas, ou

personas, políticas, mas os dois partidos pivô da grave crise atual, PT e PMDB. Sempre viveram uma coabitação tensa

desse tipo, principalmente, com Dilma Rousseff e Michel Temer. Tornou-se, agora, particularmente inviável diante

do previsível esgotamento da capacidade de financiamento governamental desse casamento de pura conveniência.

Algo como a tentativa de coabitação cooperativa, entre o presidente conservador e mandão Jacques Chirac e o

talentoso socialista, Leonel Jospin, nos anos 1997-2002. Começaram numa “entente cordiale” e terminaram se

odiando abertamente, analisou o Le Nouvel Observateur (L’Obs) em outubro de 2001, na antevéspera das eleições

de 2002.

O ponto central é que, se o presidente é fraco politicamente e não tem as aptidões necessárias para o exercício da

“alta política”, ele é refém de quem, na coalizão governista, tem essas aptidões. O centro do dilema po lítico

brasileiro não é o presidencialismo. É a coalizão. A necessidade, a dificuldade e o modo de formar coalizões.

Necessidade, porque o descasamento que parece inevitável entre a maioria que elege o presidente e a maioria

parlamentar que sai das urnas exige que o eleito negocie uma coalizão para poder governar. Dificuldade, porque a

legislação partidária, a diversidade federativa, a forma de campanha e o método de converter votos em cadeiras

promove forte fragmentação partidária. O modo de formar coalizões em um contexto de fragmentação partidária e

déficit programático é o clientelismo, o toma-lá-dá-cá, a troca de favores entre partidos e eleitores e entre

presidentes e partidos. E clientelismo custa caro, exige capacidade fiscal para pagar por todas as demandas e

discricionariedade no gasto. Nas bolhas, tudo bem. No colapso econômico que se segue ao estouro das bolhas, crise.

Esse dilema, em França, Portugal e Espanha é diferente. Nesses países, também, parte do problema está na

necessidade de formar coalizões. Mas o dilema é outro. Em França e Portugal, ele emerge quando há necessidade de

coalizão ou coabitação. Como há forte polarização programática, eles entram em uma zona de stress. Mas o impasse

pode ser resolvido com novas eleições. Mesmo que elas não produzam maiorias claras, podem gerar novas personas

com mais força para buscar uma solução negociada.

Na França, o regime vive entre dois ciclos. Quando há coincidência entre a maioria presidencial e a maioria

parlamentar, dá-se o ciclo do presidencialismo majoritário, no qual o presidente domina as decisões políticas e o

primeiro-ministro é uma figura de segundo plano. É o caso, hoje com Hollande e Vals. Quando a maioria parlamentar

é de oposição, dá-se o ciclo da coabitação, na qual o primeiro-ministro passa a ser o centro do poder governamental

e o presidente perde boa parte de seu poder. Mas, como ele mantém um poder de veto residual significativo, se não

há cooperação entre os dois o impasse só pode ser resolvido pela arbitragem da Corte Constitucional, ou o sistema

se move para a paralisia. O presidente é totalmente “irresponsável juridicamente”, exceto na hipótese extrema de

8/17/2019 O Centro Do Dilema Brasileiro Não é o Presidencialismo; É a Coalizão

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alta traição. Portanto, não existe a possibilidade de impeachment. Apenas a renúncia. O primeiro-ministro só pode

ser removido por um voto de censura do parlamento. Na coabitação, resulta da Constituição uma diarquia, um

poder bifronte. Situação que é de uma ambivalência insolúvel. Na difícil coabitação entre Chirac e Jospin, o

presidente dizia que, para ser forte, a França precisaria falar uma só voz. Jospin respondia que, a França sempre teria

uma só voz, desde que fossem observados os poderes constitucionais de cada um.Terminou reclamando à Corte

Constitucional sobre a intromissão de Chirac nos assuntos de sua alçada como primeiro-ministro, dizendo que “não

há uma só decisão de governo na qual o presidente não tenha a última palavra”. Seria uma impossível coabitação no

Brasil, entre uma presidente Dilma, política e pessoalmente fraca, mas com poderes de veto, e um primeiro-ministronascido de uma coalizão PMDB-PSDB, por exemplo.

No caso de Portugal, que comentei aqui no ano passado, as eleições parlamentares deram 38% dos votos e 89

deputados ao PSD, o partido do presidente Cavaco Silva, e 32% dos votos e 87 cadeiras e 86 deputados ao PS, de

oposição. Os partidos da direita, fizeram 107 deputados em uma câmara de 230. A esquerda fez a maioria. Pedro

Passos Coelho, o primeiro-ministro, recebeu de Cavaco Silva a incumbência de formar um novo governo. Ele durou

12 dias. Tomou posse em 30 de outubro e foi demitido pela maioria parlamentar de oposição, em 10 de novembro,

quando este apresentou seu programa de governo. Só então Cavaco Silva deu ao Socialista, António Costa, aincumbência de formar o governo, 51 dias após as eleições. A difícil coabitação, que Cavaco Silva tentou evitar,

durou pouco. Em janeiro foi eleito presidente Marcelo Rebelo de Sousa, militante do PSD, há muito afastado da

política, que concorreu como independente, vencendo as chapas das coalizões lideradas pelo PSD e pelo PS. António

Costa mostrou-se aliviado com a vitória de um presidente sem dificuldades de convivência com seu governo. O

presidente tem força institucional em Portugal, ele tem o poder de vetar as decisões do Governo ou apresentar leis

ao Tribunal Constitucional e de dissolver Parlamento.

A Espanha, que também comentei aqui, vive uma situação de impasse que parece insolúvel sem novas eleições

parlamentares, que podem ser convocadas em junho. O PSOE, de centro-esquerda foi derrotado pela maioria

parlamentar na sua tentativa de formar um governo de minoria com o Ciudadanos, de centro-direita. O impasse é denatureza programática. É dificílimo um acordo programático que concilie as posições polares do Ciudadanos e do

Podemos, de esquerda. O chefe de governo, Mariano Rajoy demissionário, recusa-se a prestar contas ao

parlamento, dizendo que não tem mais esta obrigação, porque não foi nomeado por ele. Uma situação que pode,

facilmente, desembocar numa crise política séria.

O exame das experiências concretas desses regimes que se imagina possam resolver a crise brasileira, talvez desse

mais sobriedade e ceticismo a essas expectativas. Como lembrou o Matheus Leitão aqui, nenhum dos dois

momentos de parlamentarismo que o Brasil viveu pode ser visto como politicamente estável. Os governos foram de

curta duração e se sucediam, de crise em crise.

* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do

cenário político internacional