o caso uber - daniel sarmento

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1 PARECER Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O “caso Uber” SUMÁRIO: 1. A Consulta. 2. Livre iniciativa, livre concorrência e interpretação do direito infraconstitucional. 2.1. O papel dos princípios constitucionais na interpretação do Direito Econômico. 2.2. O princípio constitucional da livre iniciativa. 2.3. O princípio constitucional da livre concorrência. 3. Constituição, serviços públicos e atividade econômica stricto sensu. 3.1. Noções Gerais. 3.2. Critérios para distinção entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito. 3.3. Livre empresa, inovação e ausência de regulamentação da atividade econômica. 4. Transporte individual de passageiros como atividade econômica stricto sensu: interpretação da legislação vigente, restrições regulatórias e competência legislativa. 4.1 A interpretação constitucionalmente adequada da Lei nº 12.587/2012. 4.2. A debilidade dos argumentos em favor da proibição dos serviços da Uber e de seus motoristas parceiros. 4.3. (In)competência legislativa dos municípios, estados e distrito federal. 5. Resposta aos quesitos. 1. A Consulta Consulta-me a UBER BRASIL TECNOLOGIA LTDA, por intermédio de sua ilustre advogada, Dra. Liliane Roriz do Espírito Santo, da prestigiosa banca Licks Advogados, a propósito da juridicidade das suas atividades no Brasil, bem como daquelas desempenhadas pelos motoristas que atuam como seus parceiros. Narra a Consulente que o aplicativo UBER é uma plataforma tecnológica para smartphones lançada nos Estados Unidos em 2010, que permite estabelecer uma conexão entre motoristas profissionais e pessoas interessadas em contratá-los. Por seu intermédio, indivíduos previamente cadastrados no site/aplicativo da Consulente conseguem encontrar, de modo simples e ágil, motoristas parceiros da UBER para transportá-los com conforto e segurança.

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Parecer Jurídico detalhado sobre o caso Uber no Brasil, analisando a sua legalidade frente o ordenamento jurídico brasileiro.

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    PARECER

    Ordem Constitucional Econmica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O caso Uber

    SUMRIO: 1. A Consulta. 2. Livre iniciativa, livre concorrncia e interpretao do direito infraconstitucional. 2.1. O papel dos princpios constitucionais na interpretao do Direito Econmico. 2.2. O princpio constitucional da livre iniciativa. 2.3. O princpio constitucional da livre concorrncia. 3. Constituio, servios pblicos e atividade econmica stricto sensu. 3.1. Noes Gerais. 3.2. Critrios para distino entre servio pblico e atividade econmica em sentido estrito. 3.3. Livre empresa, inovao e ausncia de regulamentao da atividade econmica. 4. Transporte individual de passageiros como atividade econmica stricto sensu: interpretao da legislao vigente, restries regulatrias e competncia legislativa. 4.1 A interpretao constitucionalmente adequada da Lei n 12.587/2012. 4.2. A debilidade dos argumentos em favor da proibio dos servios da Uber e de seus motoristas parceiros. 4.3. (In)competncia legislativa dos municpios, estados e distrito federal. 5. Resposta aos quesitos.

    1. A Consulta

    Consulta-me a UBER BRASIL TECNOLOGIA LTDA, por intermdio de sua ilustre advogada, Dra. Liliane Roriz do Esprito Santo, da prestigiosa banca Licks Advogados, a propsito da juridicidade das suas atividades no Brasil, bem como daquelas desempenhadas pelos motoristas que atuam como seus parceiros.

    Narra a Consulente que o aplicativo UBER uma plataforma tecnolgica para smartphones lanada nos Estados Unidos em 2010, que permite estabelecer uma conexo entre motoristas profissionais e pessoas interessadas em contrat-los. Por seu intermdio, indivduos previamente cadastrados no site/aplicativo da Consulente conseguem encontrar, de modo simples e gil, motoristas parceiros da UBER para transport-los com conforto e segurana.

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    De acordo com a Consulente, esses motoristas so empreendedores individuais, que utilizam a plataforma UBER em sistema de economia compartilhada (sharing economy), que otimiza o acesso e contato entre passageiros e condutores. Eles so credenciados pela UBER, pagando-lhe o correspondente a 20% do valor que percebem de cada passageiro, como retribuio pela utilizao da plataforma tecnolgica. A UBER credencia apenas motoristas profissionais, cujas carteiras de habilitao autorizem o exerccio de atividade remunerada de condutor de veculos. A manuteno do cadastramento dos motoristas parceiros depende, ademais, das avaliaes annimas que estes recebem dos respectivos passageiros ao trmino de cada viagem, por meio de um sistema de pontuao. A avaliao varia de zero a cinco estrelas, e os motoristas que obtm mdia inferior a 4,6 estrelas podem ser descredenciados pela UBER.

    Os automveis dos motoristas tambm so credenciados pela Consulente, e devem satisfazer a uma srie de requisitos atinentes segurana, luxo e conforto, que so muito mais rigorosos do que os demandados pela legislao para licenciamento dos veculos.

    O valor das viagens calculado com base em fatores como a distncia a ser percorrida e tempo de viagem, tendo em vista as informaes repassadas previamente por cada cliente, atinentes sua localizao e destino. A UBER fornece uma estimativa prvia do preo ao passageiro, e os pagamentos so realizados por meio de carto de crdito, atravs do prprio aplicativo.

    A comodidade e segurana dessa modalidade inovadora de transporte individual de passageiros, aliadas simplicidade e eficincia do aplicativo, fizeram com que a UBER casse no gosto dos usurios. A Consulente est hoje presente em 58 pases e 311 cidades ao redor do mundo e, no Brasil, opera atualmente em So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia e Belo Horizonte.

    Apesar desse sucesso de pblico ou talvez exatamente em razo desse sucesso as atividades da UBER e dos seus motoristas parceiros vm sofrendo uma srie de contestaes judiciais e extrajudiciais, provenientes sobretudo de pessoas, entidades ou foras polticas ligadas aos taxistas e aos proprietrios de frotas de txi. Tais opositores argumentam, em sntese, que as referidas atividades seriam ilegais, eis que pretensamente voltadas prestao de um servio de transporte pblico individual de passageiros, que, alm de dependente de autorizao municipal, seria legalmente monopolizado pelos

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    taxistas. Nessa perspectiva, os motoristas parceiros da UBER seriam, supostamente, prestadores de uma espcie de servio de txi clandestino, e, por no seguirem a legislao que disciplina a atividade dos taxistas, praticariam uma pretensa concorrncia desleal em relao a esses, prejudicando tambm os consumidores.

    Diante desse cenrio, formulou a Consulente os seguintes quesitos:

    (a) As atividades desempenhadas pelos motoristas parceiros da UBER se enquadram no conceito de transporte pblico individual de passageiros, prevista no art. 4, inciso VIII, da Lei n 12.587/2012, ou constituem hiptese de transporte individual privado de passageiros, contemplada no art. 3, 2, inciso I, a, c/c inciso II, b e inciso III, b, da referida lei?

    (b) O transporte individual de passageiros configura no Brasil servio pblico, ou se trata de atividade econmica stricto sensu?

    (c) As atividades da Consulente e dos seus motoristas parceiros dependem de prvia regulamentao e/ou autorizao para que possam ser validamente exercidas no pas?

    (d) O legislador infraconstitucional de qualquer dos entes federativos pode converter toda a atividade de transporte individual de passageiros em servio pblico, ou se valer de restries regulatrias que impeam que particulares compitam, nesta rea, com os servios de txi?

    Para responder aos quesitos formulados, pretendo abordar, inicialmente, o papel que os princpios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrncia devem desempenhar na interpretao da legislao infraconstitucional que trata de atividades econmicas lato sensu. Em seguida, discuto os conceitos de servio pblico e de atividade econmica stricto sensu, demarcando algumas diferenas entre os seus regimes constitucionais, inclusive no que pertine liberdade de atuao empresarial. Assentadas essas premissas, passo a aplic-las ao transporte individual de passageiros, visando a

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    responder adequadamente aos questionamentos da Consulente, luz da Constituio e da legislao pertinente.

    2. Livre iniciativa, livre concorrncia e interpretao do direito infraconstitucional

    2.1. O papel dos princpios constitucionais na interpretao do Direito Econmico

    No passado, os princpios constitucionais eram vistos como meras proclamaes retricas, cujos efeitos jurdicos dependiam de decises do legislador infraconstitucional. Este tempo, felizmente, ficou para trs. H, na atualidade, controvrsias importantes sobre os princpios constitucionais,1 mas um denominador comum est firmemente assentado: os princpios da Constituio so normas jurdicas extremamente importantes, verdadeiros pilares do ordenamento, e no meras exortaes ao legislador, desprovidas de efeitos concretos.

    Como normas jurdicas, os princpios constitucionais estabelecem limites para o legislador infraconstitucional e para a Administrao, cuja inobservncia enseja a invalidade das normas e dos atos que os contravenham. Eles tambm incidem diretamente sobre as relaes sociais, impondo comportamentos positivos e negativos ao Estado e a particulares.2 Alm disso e este o ponto que nos interessa no momento , os princpios constitucionais so vetores fundamentais na interpretao da ordem jurdica.3

    Nesse sentido, tais princpios operam como verdadeiras bssolas, que devem guiar a interpretao de regras constitucionais mais especficas, mas tambm a exegese da

    1 Tratei extensamente do tema em Cludio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento. Direito

    Constitucional: teoria, histria e mtodos de trabalho. 2 ed., Belo Horizonte: Ed. Frum, 2014, pp. 375-390. Na literatura brasileira, veja-se especialmente Humberto vila. Teoria dos Princpios. 11 ed., So Paulo: Malheiros, 2010. 2 Na atualidade, tem grande penetrao a teoria sobre princpios formulada pelo autor alemo Robert Alexy,

    que os concebe como mandados de otimizao, que devem ser cumpridos na maior medida possvel, dentro das possibilidades fticas e jurdicas de cada caso. Cf. Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2008, pp. 85-179. 3 Cf. Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito. Trad.

    A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, pp. 88-100.

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    legislao infraconstitucional referente ao tema de que tratam. Essa a chamada eficcia interpretativa dos princpios constitucionais, assim sintetizada por Lus Roberto Barroso:

    A eficcia interpretativa consiste em que o sentido e alcance das normas jurdicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados pelos princpios constitucionais. Funcionam eles, assim, como vetores da atividade do intrprete, sobretudo na aplicao de normas jurdicas que comportam mais de uma possibilidade interpretativa. (...) Em suma: a eficcia dos princpios constitucionais, nessa acepo, consiste em orientar a interpretao das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o intrprete faa a opo, dentre as possveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princpio constitucional pertinente.4

    Ora, o constituinte enunciou diversos princpios que regem a nossa ordem econmica, previstos no art. 170 da Constituio. Alm disso, a Lei Fundamental consagra inmeros outros preceitos que tambm devem influenciar o tratamento infraconstitucional das relaes econmicas: os princpios fundamentais da Repblica, os direitos fundamentais, as regras sobre a diviso de competncias entre os entes federativos, dentre outros. Tais princpios e regras constitucionais possuem fora normativa, devendo assim orientar a interpretao do Direito Econmico, cuja constitucionalizao, portanto, decorre da prpria Constituio.5

    Como no poderia deixar de ser, essas normas constitucionais tambm devem pautar a exegese e aplicao dos diplomas legais que cuidam do transporte individual de passageiros. Afinal, fora de dvida que o transporte, pela sua prpria natureza, constitui uma atividade econmica pelo menos em sentido amplo. No bastasse, o prprio

    4 Lus Roberto Barroso. Curso de Direito Constitucional: Os conceitos fundamentais e a construo do

    novo modelo. So Paulo: Saraiva, 209, p. 319. 5 Advirta-se, porm, que no possvel extrair diretamente da Constituio um modelo fechado e minucioso

    de ordem jurdica econmica. Nesta seara, existe um razovel espao para deliberao legtima pelos representantes do povo, que deriva no s do princpio democrtico, como tambm do carter compromissrio da Carta de 88 em matria econmica. No se infere da Constituio, por exemplo, a dosimetria exata da interveno do Estado no mercado, que pode variar em alguma medida ao sabor das escolhas que o eleitor tem o direito de fazer periodicamente nas urnas. Veja-se, a propsito, Cludio Pereira de Souza Neto e Jos Vicente Santos de Mendona. Fundamentalizao e fundamentalismo na interpretao do princpio da livre iniciativa. In: Cludio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Org.). A Constitucionalizao do Direito: fundamentos tericos e aplicaes especficas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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    constituinte inseriu a disciplina do transporte (art. 178, CF) no captulo da Carta intitulado Dos Princpios Gerais da Atividade Econmica (Captulo I do Ttulo VII).

    Dentre os princpios que regem a ordem econmica brasileira figuram dois que so da mxima importncia no s para a compreenso do respectivo sistema, como tambm para o equacionamento das questes suscitadas nesta Consulta: a livre iniciativa (art. 1, IV e 170, caput, CF), e a livre concorrncia (art. 170, IV, CF). deles que trataro os prximos subitens do parecer.

    2.2. O princpio constitucional da livre iniciativa

    A importncia do princpio da livre iniciativa em nossa ordem jurdica foi propositadamente realada pelo constituinte originrio, quando o consagrou, logo no artigo 1, inciso IV, da Lei Fundamental, como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil, ao lado da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e pluralismo poltico. A livre iniciativa, que mantm ntima correlao com a liberdade profissional, garantida no art. 5, inciso XIII, da Constituio, figura tambm, junto com a valorizao do trabalho humano, como fundamento da ordem econmica nacional, no art. 170, caput, da Lei Maior.

    A livre iniciativa foi garantida inicialmente na Frana revolucionria, visando abolio das limitaes e privilgios corporativos, herdados da Idade Mdia, que cerceavam o exerccio de profisses e atividades econmicas.6 Trata-se de princpio estruturante da ordem jurdica capitalista, que preconiza a liberdade dos agentes privados indivduos, coletividades ou empresas para empreenderem atividades econmicas, no ambiente do mercado.7 A livre iniciativa envolve tanto a liberdade de iniciar uma

    6 Cf. Modesto Carvalhosa. Direito Econmico: Obras Completas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013,

    pp. 110-112. 7 No mesmo sentido, Francisco Amaral definiu a livre iniciativa como a liberdade dos particulares de

    utilizarem recursos materiais e humanos na organizao de sua atividade produtiva, liberdade, enfim, dos particulares de decidirem o que, quando e como produzir. (A liberdade de iniciativa econmica. Fundamentos, natureza e garantia constitucional. Revista de Informao Legislativa, n 92, 1996, p. 228).

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    atividade econmica, como de organiz-la, geri-la e conduzi-la.8 O princpio abarca uma srie de componentes, muitos deles tambm previstos em outros preceitos constitucionais, como a liberdade de empresa (art. 170, Pargrafo nico, CF), a proteo da propriedade privada (art. 5, XXII e 170, II, CF) inclusive dos meios de produo ; e a autonomia negocial.9 Nas palavras de Miguel Reale, a livre iniciativa

    (...) no seno a projeo da liberdade individual no plano da produo, circulao e distribuio de riquezas, assegurando no apenas a livre escolha das profisses e atividades econmicas, mas tambm a autnoma eleio dos processos ou meios julgados mais adequados consecuo dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princpio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretao conjugada dos citados arts. 1 e 170.10

    certo que o princpio da livre iniciativa no ostenta carter absoluto e incondicional na ordem constitucional brasileira. Afinal, a Constituio de 88 est longe de consagrar um modelo econmico libertrio, moda do laissez-faire do sculo XIX, como se percebe de outros fundamentos, objetivos e princpios tambm contemplados no seu art. 170 e.g., valorizao trabalho humano, existncia digna, justia social, funo social da propriedade, defesa do meio ambiente, reduo das desigualdades regionais e sociais. Nossa Constituio legitima a interveno estatal na economia no apenas para corrigir as chamadas falhas do mercado,11 como tambm

    8 Nesse sentido, registraram J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira: A liberdade de iniciativa tem um duplo

    sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade econmica (liberdade de criao de empresa, liberdade de investimento, liberdade empresarial) e, por outro, na liberdade de organizao, gesto e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresrio, liberdade empresarial). (Constituio da Repblica Portuguesa Anotada. Vol I. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 790). 9 Cf. Lus Roberto Barroso. A Ordem Econmica Constitucional e os Limites Estatais Atuao Estatal

    no Controle de Preos. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 50-51. 10

    Miguel Reale. O Plano Collor II e a interveno do Estado na ordem econmica. In: Temas de Direito Positivo. So Paulo: RT, 1992, p. 249. 11Sobre a interveno estatal voltada correo de falhas do mercado na literatura jurdica brasileira, veja-se Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo. Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e Saneamento Bsico. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, pp 18-30; e Marcelo Zenni Travassos. A Legitimao jurdico-moral da regulao estatal luz de uma premissa liberal-republicana. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, pp. 53-100.

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    para promover outros objetivos fundamentais, como a igualdade substantiva e da justia social.12

    Sem embargo, o reconhecimento do carter fundante do princpio da livre iniciativa em nossa ordem constitucional significa, como consignou Trcio Sampaio Ferraz, que a estrutura da ordem est centrada na atividade das pessoas e dos grupos, e no na atividade do Estado.13 Nas suas palavras, que parecem talhadas para o presente caso, a livre iniciativa acolhe e promove

    a espontaneidade humana na produo de algo novo, de comear algo que no estava antes. Essa espontaneidade, base da produo da riqueza, o fator estrutural que no pode ser negado pelo Estado. Se, ao faz-lo, o Estado a bloqueia e impede, no est intervindo, no sentido de normar e regular, mas dirigindo, e com isso substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado14

    Pode-se dizer que a livre iniciativa repousa em dois fundamentos essenciais: trata-se de uma emanao relevante da liberdade individual, que tambm deve se projetar na esfera econmica; bem como de um meio voltado promoo da riqueza e desenvolvimento econmico, em prol de toda a coletividade.

    Em relao proteo dos direitos do indivduo, a ideia de que os seres humanos tm projetos e fazem escolhas tambm no mbito da sua vida econmica.15 A salvaguarda da sua liberdade e personalidade restaria incompleta se no fosse estendida a esta seara a garantia da sua autonomia, diante de pretenses autoritrias ou paternalistas do Estado.16 Da porque, a regra geral deve ser a liberdade dos particulares para se engajarem em

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    Veja-se, a propsito, a obra clssica de Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 88 (interpretao e crtica). 17 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 13

    Trcio Sampaio Ferraz. Congelamento de preos Tabelamentos oficiais. In: Revista de Direito Pblico, n 91, 1989, p. 77. 14

    Idem, ibidem, p. 78. 15

    Isto no significa, porm, que as liberdades econmicas e as existenciais sejam protegidas pela ordem constitucional brasileira com a mesma intensidade, o que no ocorre. Explorei o tema em Daniel Sarmento. Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 162 ss. 16

    Para um extenso desenvolvimento do ponto no mbito da filosofia constitucional, a partir de perspectiva liberal, veja-se Charles Fried. Modern Liberty and the Limits of Government. New York: W.W Norton & Company, 2007.

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    atividades econmicas, desde que no lesem direitos de terceiros ou interesses relevantes da comunidade.

    Na dimenso coletiva, a premissa de que a sociedade tende a ser mais prspera quando assegura a liberdade aos agentes econmicos, do que quando o Estado se apropria dos meios de produo ou planifica completamente a economia. A garantia da livre iniciativa estimula o empreendedorismo, gerando maior riqueza social. No por outra razo, Cass Sunstein, jurista insuspeito de simpatias libertrias, afirmou que os mercados livres so motores de produtividade econmica.17 Ademais, o funcionamento regular de um mercado competitivo tende a ser instrumento mais eficiente para a captao e satisfao das necessidades e preferncias de um universo amplo e plural de pessoas do que a atuao de qualquer autoridade pblica. Por isso, o bem-estar coletivo promovido quando as instituies asseguram a livre iniciativa e preservam as regras do jogo em que ela se desenvolve de modo saudvel18 o que no exclui, claro, a interveno estatal na economia voltada promoo de outros objetivos legtimos que o mercado no atende bem, como a distribuio de riqueza.

    Apesar da falncia do socialismo real, simbolizada pela queda do Muro de Berlim, o princpio da livre iniciativa ainda , no Brasil e em boa parte do mundo, objeto de acesas controvrsias ideolgicas. Nada obstante, o poder constituinte originrio fez a legtima escolha no s de positiv-lo, como tambm de elev-lo condio de fundamento da Repblica. Esse dado fundamental no pode ser ignorado pelo intrprete na exegese dos preceitos constitucionais e legais que disciplinam a atividade econmica no Brasil inclusive o transporte individual de passageiros. que, como destacou Fbio Konder Comparato que certamente no pode ser tachado de neoliberal , o carter fundamental do princpio da livre iniciativa na ordem jurdica brasileira importa que todas as normas constantes no sistema da legislao ordinria, no campo econmico, devem ser interpretadas luz desse princpio.19

    17

    Cass R. Sunstein. Free Markets and Social Justice. New York: Oxford University Press, 1997, p. 3. 18

    Veja-se, nesta linha, a obra clssica do Prmio Nobel de Economia Douglass C. North. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 19

    Fbio Konder Comparato. Regime constitucional de controle de preos. In: Direito Pblico: Estudos e Pareceres. So Pauo: Saraiva, 1996, p. 102.

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    2.3. O princpio constitucional da livre concorrncia

    Profundamente ligado livre iniciativa, o princpio da liberdade de concorrncia, previsto no art. 170, inciso IV, da Constituio, outro pilar essencial da ordem econmica brasileira. Tal princpio se volta, essencialmente, proteo da livre competio entre os agentes econmicos no mercado, em prol do consumidor, da eficincia econmica e de outros objetivos socialmente importantes.20 Nas palavras de Paula Forgioni, a livre concorrncia consiste, basicamente, na garantia da disputa no campo econmico.21

    A premissa bsica a de que, em um mercado competitivo, amplia-se o direito de escolha do consumidor, os preos das mercadorias e servios tendem a cair, e a sua qualidade a se elevar, em proveito de todos.22 A competio proporciona tambm uma melhoria na eficincia alocativa da economia, ao fazer com que os preos dos produtos correspondam aos valores que a sociedade lhes atribui, assim como na eficincia produtiva das empresas, que so levadas a reduzir os seus custos e aperfeioar os bens e servios que fornecem, no af de prosperarem no mercado.23 A concorrncia estimula, nesse sentido, a inovao e o progresso. Ademais, ela se liga garantia da igualdade de oportunidades entre os agentes econmicos, na medida em se concretiza por meio da disputa equnime dos competidores no mercado, que incompatvel com a criao de privilgios ou imposio de barreiras estatais que beneficiem ou prejudiquem quaisquer deles.

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    Existe polmica a propsito das finalidades da proteo concorrncia, que no convm aqui examinar. Veja-se a propsito, com posies muito distintas, Calixto Salomo. Direito Concorrencial. So Paulo: Malheiros, 2013, pp. 76-121; Robert H. Bork. The Antitrust Paradox: A policy at war with itself. New York: The Free Press, 1978; Jack B. Kirwood & Robert H. Lande. The Fundamental Goal of Antitrust: protecting consumers, not increasing efficiency. Notre Dame Law Review, n 191, 2008, pp. 191-243. 21

    Paula Forgioni. Princpios constitucionais econmicos e princpios constitucionais sociais. A formatao jurdica do mercado brasileiro. Revista do Advogado, n 117, 2012, p. 167. 22

    Nesse sentido, o magistrio de Lus Roberto Barroso sobre o princpio da livre concorrncia: Nele se contm a crena de que a competio entre os agentes econmicos, de um lado, e a liberdade de escolha dos consumidores, de outro, produziro os melhores resultados sociais: qualidade dos bens e servios e preo justo (A Ordem Econmica Constitucional e os Limites Atuao Estatal no Controle de Preos. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 58). 23

    O tema das vantagens econmicas da concorrncia extensamente discutido em Richard A. Posner. Antitrust Law. 2 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2001.

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    A livre concorrncia gera, ainda, consequncias polticas relevantes, pois tende a dispersar o poder econmico, dificultando a formao de grupos com excessiva influncia sobre o governo e a sociedade.24 Os objetivos principais da proteo livre concorrncia foram sintetizados em deciso da Suprema Corte norte-americana referente ao Sherman Act, que o principal diploma normativo sobre a matria naquele pas:

    Ele (o Sherman Act) se baseia na premissa de que a interao livre de foras competitivas vai acarretar a melhor alocao dos nossos recursos econmicos, os preos mais baixos, a melhor qualidade e o maior progresso material, criando, ao mesmo tempo, um ambiente propcio preservao das nossas instituies democrticas polticas e sociais25

    O princpio da livre concorrncia tem uma dupla face. Por um lado, ele limita o Estado, que no pode instituir restries excessivas que impeam os agentes econmicos de ingressar, atuar e competir livremente no mercado. Por outro, o princpio impe que o Poder Pblico atue sobre o mercado, para proteger a sua higidez, prevenindo e coibindo abusos do poder econmico e prticas anticoncorrenciais, como a formao de monoplios, oligoplios, cartis etc. que o princpio no pressupe, romanticamente, a existncia de um mercado atomizado, formado por agentes econmicos de igual poder, competindo em condies equnimes pela preferncia do consumidor. Pelo contrrio, diante da constatao de que, quando livre de todas as amarras, o poder econmico tende a se concentrar patologicamente em detrimento da concorrncia, o princpio impe a atuao comissiva do Estado, em favor da sade do prprio mercado.26 No plano infraconstitucional, essa atuao comissiva tem como diploma central a Lei n 8.884/94 (com as alteraes promovidas pela Lei n 12.529/2011), que dispe sobre a preveno e a represso s infraes contra a ordem econmica.

    24

    Cf. Eduardo Ferreira Jordo. Restries Regulatrias Concorrncia. Belo Horizonte: Ed. Frum, 2009, p. 25. 25

    Northern Pac. Ry. Co. v. United States, 365 U.S. 1 (1958). Traduo livre. No original It rests on the premise that the unrestrained interaction of competitive forces will yield the best allocation of our economic resources, the lowest prices, the highest quality and the greatest material progress, while at the same time providing an environment conducive to the preservation of our democratic political and social institutions. 26Cf. Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988 (interpretao e crtica). Op. cit., pp. 205-210.

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    Para os fins desta Consulta, interessa mais diretamente a faceta negativa do princpio da livre concorrncia, que se volta limitao do poder estatal de intervir na economia, restringindo o acesso e a atuao de particulares no mercado. Afinal, o que est em discusso se os motoristas parceiros da UBER podem ou no ingressar no mercado do transporte individual de passageiros, competindo com os taxistas. Ou, em outras palavras, debate-se se o cidado deve ou no ter acesso a essa alternativa de transporte, para que possa exercer a sua liberdade de escolha, ou se, ao contrrio, o Estado instituiu uma reserva de mercado em favor dos txis.

    Recorde-se, nesse ponto, que, conquanto a liberdade de concorrncia proteja os agentes econmicos diante de regulaes estatais restritivas, o seu foco principal no a proteo desses agentes, mas sim a tutela dos interesses dos consumidores, que so prejudicados pela imposio de limites injustificados sua liberdade de escolha.27 Portanto, a criao de embaraos estatais competio, com a instituio de reservas e privilgios a empresas ou grupos especficos, viola no apenas os direitos dos potenciais concorrentes prejudicados. Mais que isso, ela ofende os interesses dos consumidores e da prpria sociedade.28

    A dimenso negativa do princpio da livre concorrncia vem sendo acentuada pela jurisprudncia do STF, exatamente para rechaar a criao legal de reservas de mercado. Assim, a Corte afirmou a inconstitucionalidade, em face da Constituio passada, de lei que estabelecera o monoplio de empresa de telefonia para a publicao de listas telefnicas.29 Na mesma trilha, aps proferir sucessivas decises nesse sentido, o STF 27

    Nas palavras de Calixto Salomo, toda a teorizao econmica do direito anticoncorrencial baseia-se na proteo do consumidor. (Direito Concorrencial. Op.cit., p. 104). Veja-se, a propsito, Robert H. Lande e Neil W. Averitt. Using the Consumer Choice Approach to Antitrust Law. Antitrust Law Journal, vol. 77, 2007, pp. 175-264. 28

    Nesse sentido, veja-se Victor Rheim Schirato. Livre Iniciativa nos Servios Pblicos. Belo Horizonte: Ed. Frum, 2012, p. 146. 29

    STF, 1 Turma, RE 15876, Rel. p/ ac. Min. Seplveda Pertence, DJe 05/10/2007. A ementa do acrdo tem a seguinte redao: Servios telefnicos. Explorao. Edio de Listas ou Catlogos Telefnicos e Livre Concorrncia. Se, por um lado, a publicao e a distribuio de listas telefnicas constitua um nus das concessionrias de servio de telefonia que podem cumpri-lo com ou sem a veiculao de publicidade no se pode dizer que estas tinham exclusividade para faz-lo. O artigo 2 da L. 6.874/80 (A edio ou divulgao das listas referidas no 2 do art. 1 desta Lei, sob qualquer forma ou denominao, e a comercializao da publicidade nelas inserta so de competncia exclusiva da empresa exploradora do respectivo servio de telecomunicaes, que dever contrat-las com terceiros, sendo obrigatria, em tal caso, a realizao de licitao) era inconstitucional tendo em vista a Carta de 1969 na medida em que institui reserva de mercado para a comercializao das listas telefnicas em favor das empresas concessionrias. RE desprovido.

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    editou a Smula Vinculante n 46, segundo a qual ofende o princpio da livre concorrncia lei municipal que impede a instalao de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada rea.30

    certo que a liberdade de concorrncia, tal como a livre iniciativa, no protegida pela Constituio de modo absoluto. Princpios constitucionais eventualmente colidentes, como a proteo ao meio ambiente,31 podem justificar a imposio de restries proporcionais a esse importante princpio constitucional. Porm, no caso do UBER, como se ver adiante, no h qualquer razo legtima que justifique a restrio concorrncia, que no passa de tentativa de reserva de mercado para taxistas no transporte individual de passageiros.

    De todo modo, indiscutvel que, como princpio constitucional de regncia da ordem econmica, a livre concorrncia representa vetor inafastvel para a interpretao das normas legais que disciplinam o transporte individual de passageiros.

    3. Constituio, servios pblicos e atividade econmica stricto sensu

    3.1. Noes Gerais

    Em sentido amplo, a atividade econmica compreende tambm a prestao de servios pblicos, uma vez que estes mobilizam recursos escassos para a satisfao de necessidades sociais.32 De todo modo, a doutrina e jurisprudncia nacional aludem existncia de dois campos distintos da atividade econmica em sentido amplo, sujeitos a regimes constitucionais significativamente diversos: a atividade econmica em sentido

    30

    STF, Plenrio, DJe 23/06/2015. 31

    Cf. STF, Plenrio, ADPF 101, Rel. Min. Carmen Lcia, DJe 04/06/2012. Nessa deciso, afirmou-se que uma ponderao entre, de um lado, a proteo ao meio ambiente, e, do outro, a livre concorrncia e livre iniciativa, justificavam a proibio de importao de pneus usados de pases no pertencentes ao Mercosul. 32

    Cf. Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988 (interpretao e crtica). Op. cit, pp.89-150; Lus Roberto Barroso. A Ordem Econmica Constitucional e o Limite Atuao Estatal no Controle de Preos. Op. cit., p. 67.

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    estrito, campo de atuao prioritria da iniciativa privada, e o servio pblico, setor titularizado pelo Estado.33

    Na atividade econmica em sentido estrito, a interveno direta do Estado, consistente na sua atuao empresarial, deve ser excepcional, e s se justifica, nos termos da Carta de 88, quando necessria aos imperativos de segurana nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173, caput). Ao intervir diretamente na economia, o Estado, via de regra, vale-se de empresas pblicas ou sociedades de economia mista e suas subsidirias (art. 173, 1, CF),34 que atuam em concorrncia com os particulares, sendo constitucionalmente vedada, nesta competio, a concesso de vantagens e benefcios aos entes estatais no extensivos iniciativa privada (art. 173, inciso II e 2, CF). H tambm hipteses excepcionalssimas de monoplio estatal sobre atividades econmicas em sentido estrito (e.g., art. 177, incisos I a V, CF). De acordo com a doutrina dominante, tais hipteses, que representam graves restries aos princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia, so apenas aquelas taxativamente previstas pela prpria Constituio.35

    O Estado tambm detm o poder de intervir indiretamente sobre a atividade econmica em sentido estrito, para normatiz-la, exercer o poder de polcia e fomentar atuaes privadas consideradas socialmente desejveis (cf. art. 174, caput, CF).36

    33

    De acordo com Celso Antnio Bandeira de Mello, a separao entre os dois campos servio pblico, como setor pertencente ao Estado, e domnio econmico, como campo reservado aos particulares, induvidosa. (Curso de Direito Administrativo. 13 ed., So Paulo: Malheiros, 2001, p. 610. 34

    Na atualidade, fala-se tambm em mecanismos de neointervencionismo pblico na atividade econmica em sentido estrito, que se realiza sob novas formas, como a deteno de golden shares aes que do poderes especiais aos seus titulares em empresas privadas, participao minoritria estratgica em sociedades (empresas pblico-privadas), e parcerias societrias entre estatais e empresas privadas. Veja-se, a propsito, Alexandre dos Santos Arago. Empresa pblico-privada. Revista dos Tribunais, v. 98, n 980, 2009, pp. 33-68. 35

    Nesse sentido, e.g., Lus Roberto Barroso. Regime Constitucional do Servio Postal. Legitimidade da Atuao da Iniciativa Privada. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 171-173; Fbio Konder Comparato. Monoplio pblico e domnio pblico Explorao indireta da atividade monopolizada. In: Direito Pblico: Estudos e Pareceres. Op. cit., pp. 146-153. Em sentido contrrio, cf. Cludio Pereira de Souza Neto e Jos Vicente Santos de Mendona. Fundamentalizao e fundamentalismo na interpretao do princpio da livre iniciativa. Op. cit. 36

    H diversas classificaes sobre as formas de interveno do Estado na economia. Uma classificao didtica e influente, da lavra de Lus Roberto Barroso alude interveno direta, atravs da prestao de servios pblicos e da explorao de atividades econmicas; e interveno indireta, por meio da disciplina e do fomento. (cf. Modalidades de interveno do Estado na ordem econmica. Regime jurdico das sociedades de economia mista. Inocorrncia de abuso de poder econmico. In: Temas de Direito Constitucional, Tomo I. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 395-398). Aqui, parto da classificao proposta

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    Evidentemente, a interveno indireta do Estado sobre a atividade econmica em sentido estrito no est livre de amarras constitucionais. Pelo contrrio, alm das normas constitucionais que regem a atividade econmica dentre os quais figuram os princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia37 o desempenho dessa funo estatal tem de observar vrias outras limitaes importantes, como o respeito aos princpios da proporcionalidade, da legalidade e da igualdade. Nessa rea, a regra geral, que tem substrato constitucional como j se viu nos itens anteriores , a liberdade do particular para atuar no mercado, que nota essencial dos regimes capitalistas, como o consagrado pela Constituio de 88.

    J o campo dos servios pblicos cometido prioritariamente ao Poder Pblico pela Constituio (art. 175, caput, CF). De acordo com a doutrina dominante e a jurisprudncia do STF,38 cabe ao legislador a deciso poltica sobre manter sob a exclusividade estatal a prestao de cada servio pblico, ou possibilitar que o particular tambm atue, em regime de concesso ou permisso do poder pblico.39 Sob essa perspectiva, sequer incidiriam nesse campo os princpios da livre iniciativa e da livre

    por Barroso, apenas diferenciando, no mbito do que ele chamou de disciplina, a atividade normativa do Estado do exerccio do poder de polcia sobre a atividade econmica. 37

    Nessa linha, decidiu o STF: I- A interveno estatal na economia, mediante regulamentao e regulao de setores econmicos, faz-se com respeito aos princpios e fundamentos da Ordem Econmica. CF, art. 170. O princpio da livre iniciativa fundamento da Repblica e da Ordem econmica: CF, art. 1, IV; art. 170. (2 Turma, RE 422.941-2, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 24/03/2005). 38

    Cf. STF, Plenrio, ADPF n 46, Rel. p/ ac. Min. Eros Grau, DJe 26/02/2010. 39

    Ressalte-se, porm, que a prpria Constituio contempla inequvocas excees a esta regra, quando abre iniciativa privada a prestao de servios pblicos nas reas de sade e educao (cf. arts. 197, 199 e 209, CF)

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    concorrncia, j que o Estado pode legitimamente optar por prestar os servios pblicos em regime de monoplio ou privilgio, sem abri-los participao dos particulares.40 41

    Por ser o titular dos servios pblicos mesmo quando prestados por particulares cabe ao Estado disciplin-los em detalhe, dispondo sobre aspectos como os tipos de atividade a serem executadas, os direitos e deveres dos prestadores e usurios, as tarifas etc. Na rea dos servios pblicos, portanto, a atuao normativa do Estado, conquanto tambm sujeita a limites, desfruta de liberdade muito maior do que a existente no mbito da atividade econmica stricto sensu.

    Em outras palavras, no cabe ao Estado, via de regra, ditar o preo dos bens e servios oferecidos pelas empresas no mercado, mas ele pode fixar as tarifas cobradas pelos particulares que prestam servios pblicos. Do mesmo modo, no lcito ao Poder Pblico, em geral, definir o modo como os agentes privados exercero as suas atividades econmicas, buscando atrair a clientela e prosperar. O Estado pode, certo, instituir limites para essas atividades, visando preservao de direitos de terceiros ou de interesses da coletividade, mas no pode se substituir aos particulares em suas decises empresariais legtimas, privando-os, por exemplo, da possibilidade de inovar, de criar um

    40

    Eduardo Ferreira Jordo sintetizou com clareza esta orientao predominante: No tocante aos servios pblicos, a prpria Constituio quem estabelece uma exceo aos princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia. Para estes servios, a regra no a liberdade de iniciativa empresarial, a regra no a livre competitividade. (...). A excluso dos deveres estatais relativos competitividade, para o mbito da regulao dos servios pblicos, explcita. Primeiro, porque se permite ao Poder Pblico prestar diretamente o servio, mesmo monopolisticamente. Segundo porque se lhe autoriza expressamente o controle das tarifas e o estabelecimento de regras cogentes relativas qualidade do servio. Terceiro, porque do Poder Pblico se exige que controle a entrada nos mercados correspondentes a estes servios. Note-se que, no tocante ao controle de entrada, a regra constitucional at mesmo impositiva: se servio pblico, no est aberto livre iniciativa dos operadores particulares. A prestao privada deste servio depender de prvia concesso ou permisso do Poder Pblico (Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit., pp. 47-48). No mesmo sentido, veja-se, e.g., Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988 (interpretao e crtica). Op. cit, pp.89-150; e Maral Justen Filho. Teoria Geral das Concesses de Servio Pblico. So Paulo: Dialtica, 2003, p. 39. 41

    Saliente-se, todavia, que vem se fortalecendo na doutrina outra corrente, ainda minoritria, que afirma que, como os servios pblicos visam a atender a direitos e interesses dos cidados, e no os do Estado, quando os primeiros forem melhor servidos pela competio de agentes econmicos prestadores, o princpio da livre concorrncia tambm se aplicaria, embora com matizaes prprias. Veja-se, nessa linha, Alexandre dos Santos Arago. Direito dos Servios Pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 407-490; Floriano de Azevedo Marques. A nova regulao dos servios pblicos. Revista Eletrnica de Direito Administrativo, n 1, 2005; e Vitor Rhein Schirato. Livre Iniciativa nos Servios Pblico. Op. cit. Essa , desde sempre, a orientao predominante nos Estados Unidos, em que as public utilities ideia mais prxima no Direito norte-americano ao nosso servio pblico so, em geral, titularizadas por particulares, embora sujeitas a intensa regulao estatal. De acordo com Sabino Cassese, tambm na Europa contempornea h uma tendncia no campo dos servios pblico de abertura maior concorrncia, sobretudo em razo da influncia do Direito Comunitrio (La Nuova Costituzione Economica. Roma: Editori Laterza, 1995, pp. 71-90)

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    novo negcio e oferec-lo ao mercado consumidor. Porm, no campo dos servios pblicos no assim: como titular do servio, cabe ao Estado estabelecer a forma como este deve ser prestado, mesmo quando houver delegao da prestao a particulares. Portando, existe uma diferena marcante entre os regimes constitucionais da atividade econmica stricto sensu e do servio pblico, mesmo quando prestado por entes privados: naquela, a regra a liberdade do particular, e a exceo a sua submisso s escolhas estatais, enquanto nesse ltimo d-se justamente o inverso desde que, claro, as escolhas estatais sejam conformes ordem jurdica e ao interesse pblico.

    Demarcadas, de forma muito abreviada, algumas das diferenas mais significativas entre o regime constitucional da atividade econmica em sentido estrito e o vigente para os servios pblicos, percebe-se claramente a importncia prtica de se enquadrar uma determinada atividade em um ou noutro campo. O tema, como no poderia deixar de ser, se afigura extremamente relevante tambm em relao ao transporte individual de passageiros. Por isso, discutir-se-, no prximo item, os fatores que permitem a identificao de uma atividade como servio pblico, sendo certo que, sempre que isso no ocorrer, ela ser enquadrada como atividade econmica em sentido estrito.

    3.2. Critrios para distino entre servio pblico e atividade econmica em sentido estrito

    Um dos temas mais polmicos no Direito Pblico a forma de diferenciar o servio pblico da atividade econmica em sentido estrito. que os contornos desses institutos, alm de no estarem expressamente definidos pela Constituio, tendem a variar no tempo e no espao, ao sabor de mudanas polticas, econmicas, sociais, tecnolgicas e culturais.42

    H hipteses em que a caracterizao de determinada atividade como servio pblico se afigura indiscutvel, em razo de expressa determinao constitucional, j que a Constituio de 88 aludiu a uma srie de servios pblicos (e.g., art. 20, incisos X, XI, 42

    Cf. Lus Roberto Barroso. Regime constitucional do servio postal. Legitimidade da atuao da iniciativa privada. Op. cit., p. 154; Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 19 ed., So Paulo: Malheiros, 1994, p. 294.

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    XII). Cabe notar, neste particular, que a Carta de 88 no faz qualquer referncia ao transporte individual de passageiros como servio pblico (a Constituio menciona, isto sim, o transporte coletivo de interesse local atribudo titularidade municipal - art. 30, inciso V, CF)

    De acordo com a doutrina majoritria, qual me filio, tambm a lei pode caracterizar uma atividade como servio pblico,43 por meio do que se denomina de publicatio ou publicizao. Portanto, no h reserva de Constituio para a criao de servios pblicos,44 embora existam limites constitucionais intransponveis a esta atividade do legislador. Para deline-los, necessrio realizar um rpido exame de alguns aspectos tericos atinentes ao servio pblico.

    A doutrina tradicional afirmava a presena de trs aspectos distintivos do servio pblico: o subjetivo ou orgnico, ligado prestao do servio pelo Estado; o objetivo ou material, relacionado natureza da atividade, voltada satisfao de necessidades coletivas relevantes; e o formal, correspondente submisso da atividade a um regime jurdico peculiar de Direito Pblico.45 Porm, aponta-se atualmente a existncia de crise nesta noo tradicional,46 ligada a mutaes sociais relevantes, bem como ao fato de que, com grande frequncia, tais critrios se encontram dissociados e se revelam ambguos ou insuficientes. O critrio subjetivo tornou-se invivel, seja em razo da prestao de servios pblicos tambm por particulares, seja pela explorao direta da atividade econmica em sentido estrito pelo Estado. O critrio objetivo, por sua vez, de difcil

    43

    Cf., e.g., Maral Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., pp. 737-738; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 20 ed., So Paulo: Atlas, 2007, p. 88; Alexandre dos Santos Arago. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 370; Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., pp. 607-609. 44

    Consigne-se, porm, que existe posio contrria, sustentando que como o Estado, ao instituir um servio pblico, restringe a livre iniciativa e a livre concorrncia que so princpios constitucionais -, o legislador no poderia faz-lo, em razo da supremacia da Constituio. Veja-se, nesse sentido, Fernando Herren Aguilar. Controle Social dos Servios Pblicos. So Paulo: Max Limonad, 1990, pp. 133 ss. 45

    Cf. Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. Op. cit., p. 294. 46

    Cf. Gaspar Orio Ortiz. El Nuevo Servicio Pblico. Madrid: Marcial Pons, 1997; Alexandre dos Santos Arago. O servio pblico e suas crises. In: Alexandre dos Santos Arago e Floriano de Azevedo Marques (Orgs.). Direito Administrativo e seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte: Forum, 2008, pp. 421-440; Maral Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. 10 ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 747.

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    manejo, pela sua extrema fluidez e variabilidade, muito dependente de compreenses ideolgicas sobre o papel do Estado na sociedade.

    Diante desse cenrio, uma corrente importante de publicistas brasileiros advoga a tese de que o elemento fundamental para a caracterizao do servio pblico o formal: o regime jurdico ao qual a atividade esteja submetida. Tal posio capitaneada por Celso Antnio Bandeira de Mello, para quem o elemento formal, isso , a submisso a um regime de Direito Pblico, o regime jurdico-administrativo, o que confere carter jurdico noo de servio pblico.47

    Sem embargo, o prprio elemento formal, conquanto de indiscutvel importncia, tambm atravessa crise e revela insuficincias. que, na contemporaneidade, se manifesta forte tendncia relativizao dos institutos e princpios que tradicionalmente caracterizam o regime jurdico-administrativo. No campo dos servios pblicos, tal tendncia se manifesta, por exemplo, no emprego de tcnicas regulatrias mais flexveis, pautadas pela busca da consensualidade e eficincia, na eventual abertura para a concorrncia, e em fenmenos correlatos, que pem em xeque alguns purismos e

    ortodoxias conceituais.48

    Ademais, o foco exclusivo no regime jurdico para a caracterizao do servio pblico provocaria uma subverso hierrquica, em detrimento dos princpios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrncia. Isso porque, o legislador quem, em geral, estabelece o regime jurdico ao qual se submetem as atividades econmicas em sentido lato. Ora, se o legislador pudesse, ao seu alvitre, estabelecer o regime jurdico do servio pblico para qualquer atividade que lhe aprouvesse, permitir-se-ia, por vias oblquas, que ele suprimisse espaos relevantes da iniciativa privada e institusse monoplios pblicos, ao arrepio da Constituio. Imagine-se, por exemplo, uma lei que publicizasse a produo e comercializao de perfumes, de cerveja ou de automveis, submetendo-as ao regime jurdico peculiar dos servios pblicos e alijando dessas atividades as empresas privadas. Haveria, no caso, manifesta inconstitucionalidade, por afronta aos princpios de regncia da ordem econmica.

    47

    Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 600. 48

    Veja-se, a propsito, Floriano de Azevedo Marques Neto. A nova regulao dos servios pblicos. Op. cit; e Alexandre dos Santos Arago. O servio pblico e suas crises. Op. cit.

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    Esse ponto reconhecido at mesmo pelos defensores da hegemonia do critrio formal para a caracterizao do servio pblico, que apontam para o fato de que o legislador no pode se valer de qualquer alquimia legal para transmudar em servio pblico aquilo que, luz dos padres culturais e jurdicos vigentes, considerado atividade tipicamente econmica, sob pena de absoluto esvaziamento normativo da garantia constitucional da livre iniciativa.49

    Da porque, tem-se buscado limitar a discricionariedade legislativa nessa rea, a partir do elemento material ou objetivo do servio pblico. Nesse sentido, por exemplo, Maral Justen Filho sustenta que s podem ser qualificadas como servio pblico pelo legislador as atividades vinculadas diretamente a um direito fundamental, e que sejam, ademais, insuscetveis de satisfao adequada mediante os mecanismos da iniciativa privada.50 Para o autor, portanto, se uma atividade no apresentar conexo direta com direitos fundamentais, ou se for possvel a satisfao das necessidades subjacentes a esses direitos por meio da iniciativa privada como no caso da produo de alimentos ou medicamentos ela no poder ser concebida como servio pblico, independentemente da vontade do legislador.

    Toshio Mukai, por sua vez, associou o servio pblico natureza essencial da necessidade coletiva por ele atendida51. J Eros Roberto Grau afirmou que servio pblico

    49

    Nesse sentido, registrou Celso Antnio Bandeira de Mello: 21. realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou no em servio pblico tal ou qual atividade, desde que respeite os limites constitucionais. Afora os servios pblicos mencionados na Carta Constitucional, outros podem ser assim qualificados, contanto que no sejam ultrapassadas as fronteiras constitudas pelas normas relativas `a ordem econmica, s quais so garantidoras da livre iniciativa. que a explorao da atividade econmica, o desempenho de servios pertinentes a esta esfera, assiste aos particulares e no ao Estado. Este apenas em carter excepcional poder desempenhar-se empresarialmente nesta rbita. 22. Sem embargo, o fato que o Texto Constitucional, compreensivelmente, no define o que sejam atividades econmicas. Em consequncia, remanesce ao legislador ordinrio um certo campo para qualificar determinadas atividades como servios pblicos, no que, indiretamente, gizar, por excluso, a rea configurada como das atividades econmicas. lgico, entretanto, que, em despeito desta margem de liberdade, no h, para o legislador, liberdade absoluta. falta de uma definio constitucional, h de se entender que o constituinte se remeteu ao sentido comum da expresso, isto , ao prevalecente ao lume dos padres de uma cultura de uma poca, das convices predominantes da Sociedade. Por isso mesmo no total a liberdade do Legislativo, sob pena de ser retirado qualquer contedo de vontade ao dispositivo da Carta Magna, tornando-o letra morta, destitudo de qualquer valia e significado (Curso de Direito Administrativo. Op. cit., pp. 609-610). 50

    Maral Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., pp. 727-738. 51

    Nas suas palavras, servio pblico no pode ser seno aquilo que, dentro de certas circunstncias de tempo e de lugar, tenha transcendncia, pela sua necessidade e essencialidade para a comunidade, alm de outros requisitos retirados da natureza das coisas (Toshio Mukai, O Direito Administrativo e os regimes jurdicos das empresas estatais. Belo Horizonte: Frum, 2004, p. 190).

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    atividade (...) indispensvel, num dado momento histrico, realizao e ao desenvolvimento da coeso e interdependncia social (Duguit).52

    H divergncias entre essas posies, mas todas partem de um mesmo e inobjetvel denominador comum: os princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia que, como visto, so pilares da nossa ordem constitucional econmica impem limites inarredveis ao poder do legislador de definir certas atividades como servios pblicos. Ademais, de tais princpios decorre o dever, para o intrprete, de evitar as exegeses legais cujo resultado subtraia da livre atuao das empresas privadas aquelas reas em que no se justifique a sua excluso.53

    Vale ressaltar que o STF j manifestou o mesmo entendimento, em questo atinente ao prprio setor de transportes. Discutiu-se no RE 220.999-754 se haveria responsabilidade civil da Unio em razo da no prestao do servio de transporte fluvial de carga em determinado rio. Para assentar a ausncia de responsabilidade civil, o STF afirmou que o transporte fluvial de cargas no era servio pblico, por no atender a qualquer necessidade coletiva essencial. O acrdo tem trechos importantes, que sero abaixo reproduzidos, em razo da sua pertinncia em relao ao objeto deste Parecer:

    Nem se diga que o transporte fluvial dos servios que integram os fins do Estado. O Prof. RUY CIRNE LIMA, quanto ao conceito de servio pblico foi preciso: servio pblico todo servio existencial, relativamente sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, por isso mesmo tem que ser prestado pelos componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou por outra pessoa administrativa (...) No o que se passa, no caso, com o transporte fluvial.

    52

    Eros Roberto Grau. A Ordem Econmica na Constituio de 1988 (interpretao e crtica). Op. cit., p. 132. 53

    Nesse sentido, Lus Roberto Barroso sustentou que as normas que criam servios pblicos no inerentes aqueles que, pela sua natureza, s podem ser prestados pelo Estado, porque relacionados com o seu poder de imprio s ser admitida com fundamento, ainda que genrico, em outra norma constitucional e, em qualquer caso, dever ser interpretada restritivamente, como convm s normas excepcionais e restritivas de direitos (Regime Constitucional do Servio Postal. Legitimidade da Atuao da Iniciativa Privada. Op. cit., p. 165). 54

    STF, 2 Turma, RE 220.999-7, Rel. p/ ac. Min. Nelson Jobim, DJ 24/11/2000.

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    No indispensvel realizao e ao desenvolvimento da interdependncia social (DUGUIT). No existencial para a sociedade.

    Existenciais e indispensveis realizao e ao desenvolvimento da interdependncia social so os servios pblicos ditos essenciais. (...) A Unio no tem a obrigao constitucional, legal nem contratual de oferecer os servios.

    Ora, evidente que o transporte coletivo de passageiros constitui servio pblico no s por expressa determinao constitucional (art 30, V, CF) como tambm pelo seu indiscutvel carter essencial para a coletividade. Mas ser que o mesmo pode ser dito do transporte individual de passageiros? Ser que o poder pblico tem obrigao de assegurar acesso a carro com motorista para o transporte individual de cada cidado? O tema ser retomado mais frente, mas a resposta no parece muito difcil...

    3.3. Livre empresa, inovao e ausncia de regulamentao da atividade econmica

    Antes de passar ao exame da legislao sobre o transporte individual de passageiros, conveniente firmar outra premissa importante: a ausncia de regulamentao de determinada atividade econmica em sentido estrito no importa em vedao ao seu exerccio, mas em possibilidade de atuao do particular. o que decorre do princpio da livre empresa, consagrado no art. 170, Pargrafo nico, da Constituio, segundo o qual assegurado a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgo pblicos, salvo nos casos previstos em lei.

    O princpio em questo projeta, no mbito da atividade econmica, a norma geral sobre a conduta dos particulares que vigora nas sociedades democrticas, e que se baseia no respeito liberdade: lcito fazer tudo aquilo que no seja proibido pelas normas vigentes.

    Existe uma sensvel diferena entre a forma de vinculao do Estado e dos particulares perante as normas jurdicas, que tambm vale no mbito da atividade

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    econmica: o primeiro se acha positivamente vinculado ordem jurdica,55 e s pode fazer o que essa lhe impe ou autoriza, enquanto os segundos so negativamente vinculados s leis, podendo atuar com plena liberdade, sempre que inexista vedao ou imposio legal de determinada conduta.56 Esta diferena tem fundamento poltico-filosfico na compreenso de que, no Estado de Direito, os poderes pblicos devem ser limitados, em prol da garantia dos direitos fundamentais, mas os particulares devem ser tratados como intrinsecamente livres.

    Essa liberdade do particular se torna ainda mais relevante no campo da inovao. Sabe-se que a existncia de um arcabouo normativo e institucional favorvel vital para estimular a inovao na sociedade, sem a qual no h progresso.57 A proteo e estmulo inovao , alis, um trao caracterstico do Marco Civil da Internet58 ao qual se sujeita a atividade da Consulente, cujo negcio se d no mbito digital. Nesse sentido, o art. 2, inciso IV, da Lei 12.965/2014 estabelece como fundamento do marco civil a livre iniciativa e livre concorrncia; o seu art. 3, inciso VIII, fixa como princpio a liberdade de modelos de negcios promovidos na internet; e o art. 4, inciso III, define como objetivo a promoo da inovao e do fomento ampla difuso de novas tecnologias e novos modelos de uso e acesso. Ora, condicionar a possibilidade do particular de inovar existncia de prvia regulamentao estatal da sua atividade no apenas inconstitucional.59 tambm desastroso, sob a perspectiva do desenvolvimento

    55

    Na contemporaneidade, a vinculao estatal ordem jurdica melhor captada pela ideia de juridicidade do que pela de legalidade, pois o primeiro termo expressa melhor a noo de que os poderes pblicos so vinculados positivamente no apenas s leis formais, como tambm ao ordenamento jurdico como um todo, especialmente Constituio e a seus princpios. Veja-se, a propsito, Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 137 ss. 56

    clssica, nessa matria, a citao de Guido Zanobini: o indivduo pode fazer tudo o que no lhe expressamente vedado, ao passo que a Administrao pode fazer apenas o que a lei expressamente lhe consente (LAttivit Legislativa e la Legge. In: Scritti Vari di Diritto Pubblico. Milano: Giuffr, 1955, pp. 206-207) 57

    Cf. Richard Stewart. Regulation, Innovation and Administrated Law: A Conceptual Framework. California Law Review, v. 69, 1981, pp. 1256 ss; Robert Cooter. Direito, Desenvolvimento: inovao, informao e pobreza das naes. In: Luciano Bennetti Timm e Pedro Paranagu (Orgs.). Propriedade intelectual, antitruste e desenvolvimento. Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp. 9- 34. 58

    Ronaldo Lemos. O Marco Civil como smbolo do desejo por inovao no Brasil. In: George Salomo Leite e Ronaldo Lemos (Orgs.). Marco Civil da Internet. So Paulo: Atlas, 2014, pp. 3-11.

    59 Ressalte-se, porm, que em certas atividades especialmente lesivas ao meio ambiente e sade humana

    certamente no esse o caso da Consulente os princpios ambientais da preveno e da precauo impem matizaes e temperamentos em relao ao princpio da livre empresa.

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    social, por asfixiar de modo intolervel a capacidade de inovao dos agentes econmicos, em detrimento de toda a sociedade.

    certo que a lei pode impor limitaes ao exerccio da atividade empresarial, desde que sejam proporcionais e no restrinjam em demasia a livre iniciativa e a livre concorrncia. Tais normas restritivas devem se voltar proteo de objetivos legtimos - dentre os quais certamente no figura a defesa corporativa de segmentos econmicos prejudicados pela concorrncia. Ademais, para que qualquer medida cerceadora da atuao da iniciativa privada na ordem econmica seja vlida, ela tem de ser editada pelo ente federativo competente, e se mostrar compatvel com o princpio da proporcionalidade,60 na sua trplice dimenso61: deve ser adequada para os fins a que se destina; necessria para o atingimento dos referidos fins, o que decorre da inexistncia de mecanismos mais brandos para que sejam alcanados os resultados pretendidos; e proporcional em sentido estrito, por propiciar benefcios que superem, sob o ngulo dos valores constitucionais em jogo, os nus impostos aos agentes econmicos e sociedade, que sofrero os efeitos da restrio imposta.

    Assentada mais essa premissa, passa-se, finalmente, anlise da legislao sobre transporte individual de passageiros.

    4. Transporte individual de passageiros como atividade econmica stricto sensu: interpretao da legislao vigente, restries regulatrias e competncia legislativa

    4.1 A interpretao constitucionalmente adequada da Lei n 12.587/2012

    60

    Sobre a aplicao do princpio da proporcionalidade na anlise de normas restritivas livre concorrncia, veja-se Eduardo Ferreira Jordo. Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit, pp. 63-80 61

    Sobre o princpio da proporcionalidade e os subprincpios em que se desdobra, veja-se Gilmar Ferreira Mendes. A proporcionalidade na jurisprudncia do STF. In: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. So Paulo: Celso Bastos, 1998, pp. 67-84; Suzana Toledo de Barros. O Princpio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 1996; Jane Reis Gonalves Pereira. Interpretao Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 324-383.

  • 25

    A norma bsica de regncia de transportes urbanos no pas a Lei n 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Poltica Nacional de Mobilidade Urbana. A referida lei, ao tratar dos transportes urbanos no seu art. 3, 2, assim disps:

    2. Os servios de transporte urbano so classificados: I- quanto ao objeto: a) de passageiros; b) de cargas; II- quanto caracterstica do servio:

    a) coletivo b) individual; III- quanto natureza do servio:

    a) pblico b) privado.

    Portanto, a mencionada lei, alm de aludir ao servio de transporte individual de passageiros de natureza pblica (art. 3, 2, inciso I, a, c/c incisos II, b, e III, a) tambm contm referncia expressa ao servio de transporte individual de passageiros de natureza privada (art. 3, 2, inciso I, a, c/c incisos II, b, e III, b).

    verdade que o art. 4 da Lei n 12.587/2012 aludiu ao transporte pblico individual de passageiros (inciso VIII)62, mas no contm referncia sua modalidade privada.63 Isso, porm, no significa que o legislador tenha deixado de reconhecer essa ltima modalidade. que o artigo 4, como consta no seu caput, estabelece definies para os fins da aplicao da Lei n 12.587/2012. Como a referida lei apenas previu o

    62

    O referido preceito define o transporte pblico individual de passageiros como servio remunerado de transporte de passageiro aberto ao pblico, por intermdio de veculo de aluguel, para a realizao de viagens individualizadas. O conceito no se estende ao servio prestado pelos motoristas credenciados pela UBER, pois no pode ser considerado aberto ao pblico o transporte que s possa ser realizado para consumidores previamente cadastrados junto a uma empresa privada.

    63 H, porm, aluso na lei ao transporte motorizado privado (art. 4, inciso X), em que o servio de

    transporte individual privado de passageiros se enquadra. O instituto assim definido pelo legislador: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realizao de viagens individualizadas por intermdio de veculos particulares.

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    transporte privado individual de passageiros, mas no o regulou ao contrrio do que fez com o pblico o legislador deve ter considerado desnecessrio definir o primeiro.

    certo que o transporte pblico individual de passageiros atividade privativa dos taxistas, nos termos do art. 2 da Lei n 12.468, que regulamentou a profisso de taxista, e que reza:

    Art. 2. atividade privativa dos profissionais taxistas a utilizao de veculo automotor, prprio ou de terceiros, para o transporte pblico individual remunerado de passageiros, cuja capacidade ser, no mximo, de 7 (sete) passageiros. (grifei)

    Contudo, no se concedeu aos taxistas o monoplio no exerccio de toda a atividade de transporte individual de passageiros que compreende as modalidades pblica e privada. O transporte individual privado de passageiros, previsto na Lei n 12.587 atividade desempenhada pelos motoristas parceiros da UBER no foi, nem poderia ter sido, retirado pelo legislador do mbito da livre iniciativa e livre concorrncia.

    A Lei n 12.587 no um primor de clareza e de tcnica legislativa. Mas do seu art. 12 se infere claramente que o transporte pblico individual de passageiros a atividade desempenhada pelos taxistas. Quando a lei foi editada, o referido preceito tinha a seguinte redao:

    Art. 12. Os servios pblicos de transporte individual de passageiros, prestados sob permisso, devero ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder pblico municipal, com base nos requisitos mnimos de segurana, de higiene, de qualidade dos servios e de fixao prvia dos valores mximos das tarifas a serem cobradas.

    Dito preceito legal foi alterado pela Lei n 12.865/2013, que tambm acrescentou o art. 12-A, e respectivos pargrafos, Lei n 12.587/2012. Confira-se a redao dos mencionados dispositivos:

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    Art. 12. Os servios de utilidade pblica de transporte individual de passageiros devero ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder pblico municipal, com base nos requisitos mnimos de segurana, de conforto, de higiene, de qualidade, de qualidade de servios, de fixao prvia dos valores mximos das tarifas a serem cobradas.

    12-A. O direito explorao de servios de txi poder ser outorgado a qualquer interessado que satisfaa os requisitos exigidos pelo poder pblico local.

    1. permitida a transferncia da outorga a terceiros que atendam aos requisitos exigidos pelo poder pblico local.

    2. Em caso de falecimento do outorgado, o direito explorao do servio ser transferido a seus sucessores legtimos, nos termos dos arts. 1.829 e seguintes do Ttulo II do Livro V da Parte Especial da Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Cdigo Civil). 3. As transferncias de que tratam os 1 e 2 dar-se-o pelo prazo de outorga e so condicionadas prvia anuncia do poder pblico municipal e ao atendimento dos requisitos fixados para a outorga.

    A evoluo legislativa evidencia que, ao tratar do transporte pblico individual de passageiros, o legislador mirou os servios de txi. Mas demonstra, tambm, que, at pela nova tica do legislador, o servio de txi no configura propriamente servio pblico, mas sim de servio de utilidade pblica, que so institutos diferentes. O servio pblico, como visto, titularizado pelo Estado, mas pode ser eventualmente prestado por particulares, mediante concesso ou permisso, sempre precedidas de licitao pblica, nos termos do art. 175 da Constituio. J o servio de utilidade pblica se enquadra no campo da atividade econmica, mas se sujeita a intensa regulao e fiscalizao estatal, em razo do interesse pblico inerente sua prestao. Os servios de utilidade pblica, nas palavras de Alexandre dos Santos Arago, so atividades da iniciativa privada para as quais a lei, face sua relao com o bem-estar da coletividade e/ou por gerarem desigualdades ou assimetrias informativas para os usurios, exige autorizao prvia para que possam ser exercidas, impondo ainda a sua contnua sujeio regulao do poder pblico autorizante, atravs de um ordenamento jurdico setorial.64

    64

    Alexandre dos Santos Arago. Direito dos Servios Pblicos. Op. cit., pp. 191-192.

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    Vale destacar que, muito antes da inovao legislativa, Celso Antnio Bandeira de Mello j ressaltara que no h servio pblico prestado pelos txis, mas servio de utilidade pblica, inserido no mbito da iniciativa privada:

    (...) os servios prestados pelos txis e quanto a isto nada importa que o sejam por autnomos ou por empresas possuem especial relevo para toda a coletividade, tal como se passa, alis, com inmeras outras atividades privadas, devendo por isso ser objeto de regulamentao pelo Poder Pblico, como de fato ocorre, mas obviamente isto no significa que sejam categorizveis como servios pblicos.(...) Nem a Constituio, nem a Lei Orgnica dos Municpios, nem a lei municipal regente da matria qualificam os servios de txi como servios pblicos. Contudo, a Constituio foi expressa em qualificar como servio pblico o servio municipal de transporte coletivo local de passageiros (art. 30, V), no se podendo, como bvio, considerar casual a explcita meno a coletivo. Nisso, a toda evidncia, ficou implcito, mas transparente, o propsito de excluir o transporte individual de passageiros da categorizao de servio pblico.65

    A concluso no poderia ser diferente. que, como se demonstrou no item 3.2 deste Parecer, h dois critrios relevantes para a caracterizao do servio pblico: o regime jurdico e a natureza da atividade. Nenhum dos dois compatvel com o enquadramento da atividade de transporte individual de passageiros como servio pblico.

    Quanto ao regime jurdico, no h prvia licitao, seguida de concesso ou permisso aos taxistas, como impe a Constituio para os servios pblicos (art. 175, CF). No bastasse, o ttulo que enseja o exerccio da atividade em questo pode ser alienado ou transmitido causa mortis (art. 12-A, 1 e 2 da Lei n 12.587/2012), o que absolutamente inconcilivel com a lgica do servio pblico. O prestador do servio o taxista no obrigado a assegurar a sua continuidade: nada o impede de deixar o seu txi parado, por longos perodos, se assim preferir. No h, por outro lado, o inescusvel dever do Estado de prest-lo (o servio de transporte individual de passageiros) ou

    65

    Celso Antnio Bandeira de Mello. Servios Pblicos e Servio de Utilidade Pblica Caracterizao dos Servios de Txi Ausncia de Precariedade na Titulao para prest-los Desvio de Poder Legislativo. In: Pareceres de Direito Administrativo. So Paulo: Malheiro, 2011, pp. 216-217.

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    promover-lhe a prestao66 fator que o STF reputou essencial para a caracterizao do servio pblico no julgamento do RE 220.999-7, no trecho acima reproduzido.

    No aspecto material, evidente que que o transporte individual de passageiros seja o pblico, seja o privado no tem a nota da essencialidade, que o STF reputou essencial na deciso proferida no RE 220.999-7. fundamental assegurar a todos o acesso ao transporte, mas a universalizao almejada do transporte coletivo, e no do individual. Este ltimo consiste em atividade que, pelo seu custo, tem como pblico alvo a parcela mais bem aquinhoada da populao. Como observou ironicamente Floriano de Azevedo Marques Neto, seria risvel um programa taxi para todos ou o subsdio nas tarifas do transporte individual.67

    Portanto, conclui-se que no h, na legislao de regncia, a publicizao do transporte individual de passageiro, que permanece, na sua totalidade, no mbito da atividade econmica em sentido estrito. O transporte individual de passageiros compe-se, de todo modo, de duas modalidades: a pblica, que configura servio de utilidade pblica, sujeita assim a intensa regulao estatal, e que prestada de modo privativo pelos txis; e a privada, prevista na lei, que no foi ainda regulamentada o que, pelo princpio da livre empresa (art. 170, Pargrafo nico) no impede a sua prestao pelos particulares interessados em faz-lo.

    Porm, ainda que se entenda que o transporte pblico individual de passageiros prestado pelos txis corresponde a um autntico servio pblico, isso no impede que se reconhea a sua coexistncia com a atividade econmica, ainda no regulamentada, de transporte privado individual de passageiros. Num ou noutro caso, tem-se um cenrio de assimetria regulatria, fenmeno comum no Direito Econmico contemporneo, que ocorre no pas em diversas outras reas, como a dos portos, telefonia e energia eltrica, em que h regimes jurdicos distintos aplicveis aos prestadores de setores diferentes de determinada atividade econmica em sentido amplo.68

    66

    A expresso de Celso Antnio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 601. 67

    Floriano de Azevedo Marques Neto. O Estado contra o mercado: Uber e o consumidor, publicado em 11/06/2015, disponvel em www.migalhas.com.br/dePeso/16.MI221670,91041-Estado+contra+mercado+uber+e+o+consumidor. 68

    Cf. Vitor Rhein Schirato. Livre Iniciativa nos Servios Pblicos. Op. cit., pp. 288-293; Alexandre dos Santos Arago. Direito dos Servios Pblicos. Op. cit., pp. 434-435.

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    Pode-se at entender que os preceitos da Lei n 12.587/2012 comportam outra exegese, diferente da que foi acima sustentada, que no abre espao para o exerccio da atividade de transporte individual privado de passageiros. Nesse caso, porm, ser necessrio recordar e aplicar espcie o que foi exaustivamente discutido no incio deste parecer: os princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia so vetores fundamentais de interpretao das normas que disciplinam as atividades econmicas seja as que definem o seu regime, seja as que demarcam as fronteiras entre atividades econmicas em sentido estrito e os servios pblicos.

    Ora, uma interpretao da Lei n 12.587/2012 que no reconhecesse iniciativa privada a faculdade de levar aos consumidores alternativas para o transporte individual de passageiros se afastaria das referidas diretrizes hermenuticas vinculantes, violando gravemente os princpios da livre iniciativa e da livre concorrncia. Portanto, impe-se, at por fora do princpio da interpretao conforme Constituio, a adoo da exegese da Lei n 12.587/2012 acima sustentada, que preserva a possibilidade do exerccio de atividades econmicas como a da UBER e dos seus motoristas parceiros. Isso ficar ainda mais claro aps a leitura do prximo item.

    4.2. A debilidade dos argumentos em favor da proibio dos servios da Uber e de seus motoristas parceiros

    As atividades da Consulente e de seus motoristas credenciados se sujeitam regulao estatal, como todas as demais atividades econmicas desenvolvidas no pas. Como j se demonstrou, antes que advenha essa eventual disciplina, o exerccio das atividades plenamente lcito, luz do princpio da livre empresa (art. 170, Pargrafo nico) e independe de qualquer autorizao ou licena estatal. Neste item, pretendo demostrar como so frgeis os argumentos substantivos contrrios ao funcionamento das atividades de transporte individual privado de passageiros relacionadas a UBER.

    No h dvida de que as atividades em questo podem causar impactos econmicos negativos sobre os prestadores de servio de txi, que, por fora da legtima competio pelo mercado consumidor, podem vir a perder parte da sua clientela. Ocorre que, como j ressaltado, a ampliao da concorrncia tende a ser benfica ao consumidor,

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    e a tentativa de criao de reserva de mercado para os taxistas que lembra a lgica pr-moderna das corporaes de ofcio, abolidas com a Revoluo Francesa no se afigura fundamento legtimo para a restrio concorrncia e livre iniciativa.

    importante ressaltar este ponto, pelo elevado risco de captura69 do legislador e das autoridades pblicas pelos interesses dos donos de frotas de txis e taxistas, que tm grande poder de mobilizao e de presso poltica, e tm conseguido empreg-los contra o interesse de toda a sociedade, que milita em favor da existncia de maior concorrncia no setor de transporte individual de passageiros.

    Registre-se que o STF j assentou que interesses meramente corporativos no justificam a imposio de restries liberdade profissional tambm em jogo no presente caso, no que concerne aos motoristas parceiros da UBER em raciocnio que igualmente aplicvel liberdade de iniciativa econmica. Em deciso proferida ainda em 1970, o STF invalidou a regulamentao do exerccio da profisso de corretor de imveis, sob o fundamento de que o seu objetivo no era proteger o interesse pblico, mas to somente beneficiar os corretores j registrados, o que chegou a ser comparado a uma tentativa de ressurreio das corporaes de ofcio pr-revolucionrias:

    No se justifica, assim que, com fundamento em que a atividade se acha regulamentada em lei (...), possa o art. 7 referido permitir que, realizado o servio lcito, comum, o beneficirio desse servio esteja livre de pagar remunerao, porque esta se reserva aos membros de um determinado grupo de pessoas. Admitir a legitimidade dessas regulamentaes seria destruir a liberdade profissional no Brasil. Toda e qualquer profisso, por vulgar que fosse, poderia ser regulamentada, para que a exercessem somente os que obtivessem atestao de rgos da mesma classe. E ressuscitadas, sombra dessas

    69

    Eduardo Ferreira Jordo assim resumiu as causas do sucesso das presses lobistas dos agentes econmicos sobre os entes reguladores, que explicariam a criao e implementao de muitas restries concorrncia francamente contrrias ao interesse pblico: Em primeiro lugar, interesses compactos e organizados tendem a prevalecer sobre interesses difusos, tendo em vista o menor custo da sua mobilizao. Isto importa uma tendncia a que os interesses das empresas reguladas prevaleam sobre aqueles dos consumidores na competio pela regulao. Em segundo lugar, tomada a regulao como um bem adquirvel no mercado poltico, h uma tendncia a que ela seja obtida pelo grupo que a valorar mais intensamente e este o caso das empresas reguladas, afetadas de modo geralmente mais intenso e concentrado pelas polticas regulatrias do que a massa dos consumidores (Restries Regulatrias Concorrncia. Op. cit., pp. 84-85). O texto clssico sobre esta matria da captura dos reguladores de George J. Stigler. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, v. 2, n 1, 1971, pp. 2-21).

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    regulamentaes, estariam as corporaes de ofcio, nulificando inteiramente o princpio da liberdade profissional.70

    Mais recentemente, em deciso que afastou a exigncia legal de inscrio dos msicos na Ordem dos Msicos do Brasil, a Suprema Corte reiterou o ponto:

    que as exigncias de cunho formal no podem servir a um grupo, no podem se prestar reserva de mercado, s se justificando a imposio de inscrio em conselho de fiscalizao profissional, mediante a comprovao da realizao de formao especfica e especializada, nos casos em que a atividade, por suas caractersticas, demande conhecimentos aprofundados de carter tcnico ou cientfico, envolvendo algum risco social.71 (grifei)

    Por outro lado, alguns dos argumentos muitas vezes empregados para justificar as chamadas regulaes de entrada72 so absolutamente impertinentes ao caso Uber. A hiptese no , evidentemente, de monoplio natural73, pois o mercado de transporte individual de passageiros comporta facilmente a atuao de muitos agentes, de maneira competitiva.

    No se trata, tampouco, de situao em que a limitao concorrncia possa ser justificada pelo objetivo de promoo da universalizao do servio, pela via de subsdios cruzados.74 Nesses casos, restries concorrenciais podem ser legtimas, visando a evitar

    70

    STF, Pleno, RE 65.968, Rel. Min. Amaral Santos, julgado em 04/03/1970. 71

    STF, Pleno, RE 414.426, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 10/10/2011. 72

    Nas palavras de Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo, a regulao de entrada consiste alternativa ou cumulativamente em limites com relao ao nmero de agentes econmicos em determinado mercado, bem como em requisitos mnimos para a respectiva entrada e permanncia (Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e Saneamento Bsico. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 150). 73

    O monoplio natural no uma criao legal, nem o resultado de uma prtica lesiva concorrncia, mas um conceito econmico, que pode ter utilidade jurdica. Ele ocorre quando o custo da atividade econmica se torna muito maior quando se busca promover a concorrncia, o que a torna economicamente invivel. Nesse cenrio, no se justifica a instaurao da competio no mercado, pois ela pode gerar aumento nos preos e se revelar prejudicial ao prprio consumidor. Um exemplo tradicional o do transporte ferrovirio, em que a duplicao das ferrovias tende a acarretar custos exorbitantes e injustificveis para os prestadores, que acabam sendo repassados aos consumidores. Veja-se, a propsito, Paul Wonnacott e Ronald Wonnacott. Economia. Trad. Celso Seji Gondo et alli. 2 ed. So Paulo: Pearson, 2004, pp. 584-600. 74

    Veja-se, a propsito, Carlos Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo. Regulao Jurdica, Racionalidade Econmica e Saneamento Bsico. Op. cit., p.152; Diogo R. Coutinho. A universalizao do servio

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    que novos competidores, atuando apenas na parte economicamente mais atrativa do setor o que comumente designado como cream skimming , acabem comprometendo a equao econmica que permite ao prestador original o oferecimento de subsdios cruzados aos mais desfavorecidos, ou aos setores deficitrios da atividade, visando universalizao do servio. Porm, a hiptese claramente inaplicvel, j que no se pretende universalizar o transporte individual de passageiros, nem tampouco se exige que taxistas cobrem menos dos passageiros mais carentes ou que recebam valores menores por corridas durante a madrugada, ou em regies mais longnquas ou inspitas.

    Outra justificativa para a regulao a assimetria de informaes.75 O consumidor, com muita frequncia, no tem acesso s informaes necessrias para fazer as suas escolhas conscientes sobre servios e produtos, o que justifica a regulao estatal para exigir a disponibilizao dessas informaes ou para suprir a sua falta de outro modo. As licenas concedidas a motoristas de taxi, historicamente, serviram tambm a esse fim: os passageiros no conheciam os motoristas, mas supunha-se que poderiam confiar nos que detivessem a autorizao estatal, pois estes, hipoteticamente, reuniriam os requisitos para prestao do servio a contento. Porm, a inovao tecnolgica trazida pela UBER propiciou a criao de mecanismo muito mais eficaz para a superao da assimetria de informaes do que os mecanismos vigentes da burocracia estatal, que vm se revelando cada vez mais falhos.

    No modelo UBER, o passageiro tem acesso de antemo ao nome e foto do motorista, sabe o modelo e a placa do carro que o transportar, e pode visualizar as avaliaes do condutor realizadas pelos passageiros anteriores, que so disponibilizadas no aplicativo. Tem conhecimento tambm da rota que ser seguida, alm de estimativas do preo do servio, do tempo de espera para a chegada do veculo e da durao da viagem. Portanto, o consumidor tem acesso a uma gama muito mais completa e confivel de informaes do que a propiciada pelos mecanismos regulatrios hoje vigentes para o servio de txi. O ponto foi destacado, com propriedade, pela Comisin Federal de

    pblico para o desenvolvimento como uma tarefa para a regulao. In: Calixto Salomo Filho (Coord.). Regulao e Desenvolvimento. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 76. 75

    Cf. Cass Sunstein. After the Rights Revolution. Reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press, 1990, pp. 52-53.

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    Competncia Econmica do Mxico rgo que atua na defesa da concorrncia daquele pas, que assinalou:

    El uso de esta tecnologia se h constitudo como una herramienta efectiva para resolver de una forma eficaz los problemas de informacin assimtrica (...) entre conductores y pasajeros (...) Estas nuevas plataformas construyen un nuevo producto en el mercado, ya que ofrecen al pasajero, adems de movilidad, atributos nuevos y diferenciados en cuanto a: (i) confiabilidade y seguridade personal, (ii) certidumbre en cuanto al cobro que se va a realizar y el mtodo de pago (iii) confort y convenincia, (iv) bsqueda y tempos de espera e (v) informacin sole el traslado.76

    Finalmente, cabe refutar o argumento de que os motoristas credenciados pela Consulente violariam a legislao ou praticariam concorrncia desleal, por no se submeterem aos requisitos impostos nas normas vigentes aos taxistas e seus veculos. O argumento no se sustenta. Reitere-se que o servio prestado pelos motoristas parceiros da UBER no configura transporte individual pblico de passageiros como so os txis mas modalidade privada de transporte. Por isso no deve, evidentemente, estar sujeito aos mesmos regramentos impostos aos txis, que tm natureza jurdica diversa.

    A submisso s mesmas regras impostas aos txis desnaturaria a inovao proporcionada pelo novo servio e frustraria o direito de escolha dos consumidores. Com efeito, a homogeneizao regulatria retiraria dos passageiros a possibilidade de optar entre os txis e outra alternativa de transporte individual, pois a suposta alternativa tornar-se-ia idntica opo original. Em outras palavras, para combater uma suposta concorrncia desleal, frustrar-se-ia exatamente o objetivo principal da proteo concorrncia: a garantia da liberdade de escolha do cidado.

    De resto, comum a disputa por mercado travada por agentes de natureza diversa, submetidos a regimes jurdicos distintos. A TV por assinatura compete com a TV aberta e elas esto sujeitas a regramentos jurdicos diferentes. O nibus disputa com o metr, o transporte areo com o rodovirio, a venda de CDs compete com os servios de streaming de msicas. A diversidade favorvel e no prejudicial concorrncia, na medida que 76

    Pleno de la Comisin Federal de Competencia Econmica, Opinin OPN-008-2015, de 4/06/2015.

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    amplia o leque de opes do consumidor, e com isso o empodera no mercado e na sociedade.

    Todas estas consideraes no infirmam a legitimidade da regulao estatal do servio prestado pela UBER e pelos motoristas que credencia. Mas demonstram que no h razo substantiva plausvel para eliminar essa alternativa de transporte do cardpio dos consumidores brasileiros, pela sua explcita proibio ou por regulao to limitativa que impea, na prtica, o funcionamento da atividade.

    4.3. (In)competncia legislativa dos municpios, estados e distrito federal

    As cidades em que opera a Consulente So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia e Belo Horizonte possuem, todas elas, legislao tratando dos servios de txi, cuja interpretao, muitas vezes impregnada por uma viso excessivamente corporativista e distanciada de qualquer preocupao com os princpios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrncia, tem dado azo a medidas judiciais e administrativas contra as atividades da UBER e de seus motoristas credenciados. Mais do que isso, nessas localidades h forte presso sobre o Poder Legislativo, exer