o caso do baile da vitória...o caso do baile da vitória foi a sorte que levou meu amigo hercule...

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  • Dezoito histórias de suspense de Agatha Christie compõem estes Primeiros Casos de Poirot, que trarão ao leitor um Poirot no início da carreira, quando estabelecia sua reputação de detetive profissional na Inglaterra. Foi aí que ele se viu envolvido no escandaloso caso de Victorie Ball, durante a Primeira Guerra Mundial.A maioria das histórias aqui apresentadas são narradas pelo amigo de Poirot, que fez às vezes de Watson.Os Primeiros Casos de Poirot — uma dúzia e meia de novos contos do famoso detetive belga. Todos com a marca de qualidade da rainha do romance policial, que garante o suspense e o sucesso.

  • OCasodoBailedaVitória

    FoiasortequelevoumeuamigoHerculePoirot,antigochefedepolíciabelga, a se envolver no caso Styles. Seu êxito granjeou-lhe a fama, e eleresolveu dedicar-se aos problemas criminais. Fui ferido na França elicenciado do exército, e inalmente voltei aos nossos aposentos emLondres.Sugeriram-me,comotinhaacompanhadoamaioriadoscasosemquePoirot atuara, que izesseumrelatóriodosmais interessantes.Nessemister, creio que não poderia haver um iníciomais apropriado, do que oestranhoenigmaquedespertoutantacuriosidadepúblicanaépoca,ocasodoBailedaVitória.

    EmboranãodemonstretãocabalmenteospeculiaresmétodosdePoirotcomo alguns casos mais obscuros, seus aspectos sensacionais, aspersonalidadesfamosasenvolvidasnoescândaloeatremendapublicidadeque a imprensa lhe concedeu, o tornamumacausecélèbre, e há bastantetempo creio que é justo que omundo tenha conhecimentoda atuaçãodePoirotemsuaresolução.

    Numa bela manhã de primavera, estava na companhia de Poirot, emseus aposentos. Meu amigo, elegante e apurado como sempre, com suacabeça que lembrava um ovo ligeiramente inclinado para um lado,passava, com meticuloso cuidado, uma nova pomada nos bigodes. Umavaidade inofensiva era um dos traços de Poirot, compatível e paralela aoseuamorpelaordemepelométodo.ODailyNewsmonger,queeuestiveralendo, escorregara para o chão, e estava emprofundameditação quandoelemechamou.

    —Emquerefleteassimcomtantaconcentração,monami?—Para ser franco, estava intrigadocomomisteriosocasodoBaileda

    Vitória.Osjornaissófalamnisso—indiquei-lheafolha.—Éverdade?— Quanto mais leio sobre o assunto, mais totalmente envolto em

    brumasparece-meomistério—edeclameientusiasmado:—QuemmatouLordeCronshaw?TerásidomeracoincidênciaamortedeCocoCourtenayna mesma noite? Teria sido um acidente? Ou teria ela ingerido

  • deliberadamente uma dose fatal de cocaína? — iz uma pausa eacrescenteimelodramaticamente:—Eisasperguntasquemefazia.

    Para meu aborrecimento, Poirot não compartilhou do meu interesse.Examinava-se no espelho, e murmurou apenas: — Decididamente, estapomada é uma maravilha para os bigodes! — mas percebendo o meuolhar, acrescentou rapidamente:— E que respostas deu a suas própriasperguntas?

    Antes que pudesse responder, a porta se abriu e nossa senhoriaanunciouo inspetor Japp.OhomemdaScotlandYarderaumvelhoamigonossoeoacolhemoscomentusiasmo.

    —MeucaroJapp—exclamouPoirot—,oqueotrazaqui?—Bem,MonsieurPoirot—disseJappsentando-seecumprimentando-

    mecomumaceno—, fuidesignadoparaumcasoquepareceencaixar-seemsuaespecialidade,evimaquiverselheapetecepôramãonamassa.

    Poirot tinha Japp em bom conceito, embora deplorasse sua falta demétodo.Quantoamim,achavaqueomaior talentododetetiveestavaemobterfavorescomosedispensassehonrarias!

    —ÉocasodoBailedaVitória—explicouJapp,numtompersuasivo.—Vamos,admitaquegostariadeparticipardasinvestigações...

    Poirotendereçou-meumsorriso:—Tenhocertezadequepelomenosomeu amigo Hastings adoraria. Estava agora mesmo falando sobre oassunto,n’est-cepas,monami?

    — Bem, o senhor também poderá participar — disse Japp comcondescendência.—Eu lhe digo, é umprivilégio estar por dentro de umcasocomoesse.Bem,vamosàquestão.Jáconheceospontosprincipaisdocaso,nãoé,MonsieurPoirot?

    —Sópelos jornais, e a imaginaçãodos jornalistas pode apresentar osfatoserradamente.Conte-metudo.

    Japp pôs-se à vontade, cruzou as pernas, e começou: — Como todossabem, na última quinta-feira realizou-se o grande Baile da Vitória. Todoarrasta-pés de segunda classe tem essa pretensão, nos dias de hoje,maseste foioartigogenuíno,ColossusHall,e todasaspessoas importantesdeLondresestavamlá,incluindoLordeCronshaweseusconvidados.

    —Odossierdocavalheiro,porfavor?—interrompeuPoirot.—Ouseja,seusdadosbiográficoscomodizemaqui.

    —ViscondedeCronshaw,oquintodesualinhagem,vinteecincoanos,

  • rico, solteiro, amante domundo teatral.Havia boatos de umnoivado comMiss Courtenay, do Albany Theatre, apelidada por seus amigos de Coco,queeraindiscutivelmenteumajovemfascinante.

    —Ótimo,continuez..—O grupo de Lorde Cronshaw consistia de seis pessoas: ele, o tio, o

    Honorável Eustace Beltane, Mrs. Mallaby, uma bela viúva americana, ojovematorChrisDavidsonesuaesposa,eporúltimo,MissCocoCourtenay.Era um baile a fantasia, como sabem, e o grupo de Lorde CronshawrepresentavaavelhaComédiaItaliana,oucoisasemelhante.

    —ACommediadell’Arte—murmurouPoirot.—Bem, as fantasias foram copiadas de um conjunto de estatuetas de

    porcelanaquefaziapartedacoleçãodeEustaceBeltane.LordeCronshaweraArlequim, Beltane era Polichinelo, sua companheiraMrs.Mallaby eraPulcinela, o casal Davidson, Pierrô e Pierrete, e naturalmente MissCourtenay era a Colombina. Mas logo nas primeiras horas da noitada,tornou-se evidente que algo estava errado. Lorde Cronshaw estavadescontente,

    com modos estranhos. Quando o grupo se reuniu para a ceia napequena salaqueele reservara, todosnotaramqueMissCourtenaye elenão se falavam.Eraóbvioqueela estivera chorandoeparecia àbeiradeumataquehisté-ricoArefeiçãonãofoiagradávelequandoseretiraramdasala ela virou-se para ChrisDavidson e pediu-lhe que a levasse em casa,poisestavacansada.Ojovematorhesitou,olhandoparaLordeCronshaw,efinalmenteostrêsretornaramàsalaondehaviamceado.

    Mas todos os seus esforços para conseguir uma reconciliação foramine icazes—prosseguiuJapp—eDavidsonterminouporarranjarumtáxieacompanharMissCourtenay,agoraemprantos,devoltaaoapartamentodela. Embora estivesse obviamente transtornada, ela não se abriu com orapaz, só repetindo com frequência que “faria o velho Cronch pagar porisso!” É a única pista que nos indica que sua morte pode não ter sidoacidental, e é muito pouco para nos basearmos. Quando a inal Davidsonconseguiu acalmá-la um pouco, era muito tarde para voltar ao ColossusHall,eseguiudiretoparaseuapartamentoemChelsea,aondesuaesposachegoulogodepois,trazendoas

    notíciasdaterríveltragédiaqueocorreulogoapósasaídadele.—LordeCronshawfoi icandocadavezmaiscarrancudocomopassar

    dotempo,afastou-sedogrupoeelesmaloviramduranteorestodanoite.

  • Foimaisoumenosàumaemeia,antesdadança,quandotodosdeveriamtirar suasmáscaras, queo capitãoDigby, umcompanheirode armasqueconheciaseudisfarce,viu-onumcamarote,olhandoosalão.

    —Olá,Cronch!—eleochamou.—Desçaemisture-seaosbons!Oqueestá fazendo aí feito uma coruja empalhada? Vão tocar agora umadaquelasbemanimadas!Venha!

    —Estábem—respondeuCronshaw.—Espereaí,senãoeuoperconamultidão— virou-se e saiu do camarote. O capitãoDigby, que estava emcompanhia deMrs. Davidson, esperou. Algunsminutos se passaram semqueLordeCronshawaparecesse.FinalmenteDigbyficouimpaciente:

    —Seráqueelepensaqueesperaremosporeleanoiteinteira?Nesse instante Mrs. Mallaby juntou-se a eles e explicaram-lhe a

    situação.—Ah,opobrehomemestámeiodesorientadoestanoite—exclamoua

    belaviúva.—Vamosprocurá-loetrazê-loparacá.Começaram a busca, mas só obtiveram êxito quando Mrs. Mallaby

    sugeriu que dessem uma olhada na sala da ceia. Imagine a cena que osesperava:láestavaoArlequim,semdúvidaalguma,mascaídoaochãocomumafacademesaenfiadanopeito!

    Jappcalou-se.Balançandoacabeça,Poirotdissecomoentusiasmodeumconnaisseur:— Une belle affaire! E não acharam nenhuma pista que indicasse a

    identidadedoassassino?Mascertamentequenão!—Bem—continuouoinspetor—,orestoosenhorsabe.Atragédiafoi

    dupla. No dia seguinte estava nas manchetes de todos os jornais, que apopular atriz,Miss Coco Courtenay, fora encontradamorta em sua cama,devidoaumadosefataldecocaína.Masterásidoacidenteousuicídio?Suacriada admitira, duranteo interrogatório, queMissCourtenay era viciadaemdrogas, e o veredicto foi demorte acidental. Entretanto, nãopodemosabandonarahipótesedesuicídio.Amortedaatrizfoiparanósumaduplainfelicidade, pois nos deixou no escuro quanto à causa de seudesentendimento com o morto na noite anterior. Antes que me esqueça,uma pequenina caixa esmaltada foi encontrada junto ao corpo de LordeCronshaw. Tinha o nome Coco escrito em brilhantes e estava cheia até omeio com cocaína. A criada a identi icou como pertencente a sua patroa,

  • que sempre a levava consigo, pois continha o suprimento da droga querapidamenteaestavaescravizando.

    —LordeCronshaweraumviciadotambém?—Muitopelocontrário.Faziagraveseveementesobjeçõesaqualquer

    espéciededrogas.Poirotbalançouacabeçapensativo.—Mas já que a caixa estava em seu poder, ele devia saber queMiss

    Courtenaytomavacocaína.Ébastantesugestivo,não,meucaroJapp?—Ah!—fezJappmeioatordoado.Eusorri.—Bem,esteéocaso—disseJapp.—Oquepensadele?—Nãoachounenhumapistaalémdasqueaimprensadivulgou?— Achei, sim. Isto — e Japp tirou do bolso um pequeno objeto e

    mostrou-oaPoirot.Eraumpequenopompomdesedaverdeesmeralda, comalguns ios repuxados, comose tivessesidoarrancado

    comviolência.—Encontramosistonopunhofechadodomorto—explicouoinspetor.

    Poirotdevolveuopompomsemcomentárioseperguntou:—LordeCronshawtinhainimigos?—Queeusaiba,não.Elepareciaserumsujeitomuitopopular.—Quemlucracomsuamorte?— Seu tio, Eustace Beltane, que herda o título e as propriedades. Há

    alguns fatos suspeitos contraele.Váriaspessoasa irmamterouvidoumaviolentadiscussãonasaladaceia,equeBeltaneeraumdosquediscutiam.Eofatodocrimetersidocometidocomumafacaqueestavasobreamesapareceindicarumatoimpulsivo,cometidoduranteumaexaltação.

    —OquetemMr.Beltaneadizersobreoassunto?—Disse que chamava a atenção de umdos garçons, que estavameio

    bêbado, e que o fato se passou por volta de uma hora. Como já vimos, otestemunho do capitão Digby limita-se a um intervalo de dez minutos, àhoradocrime.FoiesteoespaçodetempoquedecorreuentreomomentoemquefaloucomCronshaweadescobertadocorpo.

    — E de qualquer forma, suponho que Mr. Beltane, como Polichinelo,usasseumacorcundaeumagoladefolhos?

    —Não conheço bem os detalhes das fantasias— disse Japp olhando

  • paraPoirotcomcuriosidade.—Nãovejoarelaçãoquepossamtercomocaso.

    —Não?—HaviaumapontadezombarianosorrisodePoirot.Nosseusolhosbrilhavaaluzinhaverdequeeujáaprenderaareconhecer.—Haviaumacortinanasaladaceia,nãohavia?

    —Havia,sim,mas...—Comespaçosuficienteatrásparaocultarumhomem?— Bem, na verdade há um pequeno nicho, mas como soube? Não

    estevelá,esteve,MonsieurPoirot?—Não,meucaroJapp.Foimeucérebroquemesugeriuacortina.Sem

    elaatramanãoseriapossível,etemosqueprocurarsersempreracionais.Masdiga-me,omédiconãofoichamado?

    — Naturalmente, logo em seguida. Mas nada pôde ser feito, a mortedevetersidoinstantânea.

    Poirotbalançouacabeçacomimpaciência.— Sim, sim, eu compreendo. E esse médico não testemunhou no

    inquérito?—Testemunhou.— Elemencionou algum sintoma estranho? Nada havia no corpo que

    lheparecesseanormal?Jappencarouohomenzinho.—Mencionou,MonsieurPoirot.Nãoseiaondepretendechegar,masele

    disse que havia uma certa rigidez nos membros que não conseguiaexplicar.

    —Haha!—fezPoirot.—MonDieu!Japp,issodáoquepensar,não?PudeverquecertamenteJappnãopensaraemnada.— O senhor está pensando em veneno,monsieur? Por que diabos

    alguémenvenenariaumhomemedepoisenfiariaumafacanele?—Naverdadeissoseriaridículo—concordouPoirotcomplacidez.— Gostaria de examinar pessoalmente alguma coisa? Se quiser ver o

    aposentoondeocorpofoiencontrado...Poirotabanouasmãos.—Deformaalguma.Jámedeuainformaçãomaisimportante:aopinião

    deLordeCronshawsobreostoxicômanos.

  • —Entãonãohánadaquedesejever?—Sóumacoisa.—Oqueé?—Acoleçãodeestatuetasdeondeforamcopiadasasfantasias.Jappoolhouespantado.—Bem,osenhorémesmoestranho!—Podearranjaristo?—PodemosiragoraaBerkelySquare,sequiser.Mr.Beltane,ouLorde

    Cronshawcomodeveríamosdizeragora,nãoseoporá.Saímosimediatamentenumtáxi.OnovoLordeCronshawnãoestavaem

    casa, mas a pedido de Japp fomos levados à “sala das porcelanas”, ondeeramguardadasaspeçasmaisrarasdesuacoleção.Jappolhouemtorno,atarantado.

    —Nãovejocomovaiconseguiracharoqueprocura,monsieur.MasPoirotjátinhalevadoumacadeiraparaafrentedalareiraepulava

    sobre o assento com a agilidade de um coelho. De um lado do espelho,numapequenaprateleira,estavamseisestatuetasdeporcelana.Poirotasexaminoumeticulosamente,dirigindo-nosalgunscomentários.

    — Les voilà! A velhaComedia dell’Arte. Três casais: Arlequim eColombina, Pierrô e Pierrete, muito graciosos em verde e branco, ePolichinelo e Pulcinela, em lilás e amarelo. A fantasia de Polichinelo écomplicada, uma corcunda, folhos e franzidos, e um chapéu alto. É,bastantecomplicada, comoeupensava.—Erecolocandoasestatuetasnolugarcomcuidado,pulouparaochão.

    Japp tinha uma expressão desapontada, mas como era evidente quePoirot não tinha a intenção de fornecer explicações, o detetive não teveoutra saída senão se conformar. Quando já íamos saindo, o dono da casaentroueJappfezasapresentaçõesnecessárias.

    OsextoViscondedeCronshaweraumhomemdeunscinquentaanos,demaneirasafáveiseumrostoatraenteondeseviamsinaisdeumavidadissoluta. Era evidentemente um velho libertino, com um ar lânguido eposeur. Senti por ele uma antipatia instantânea. Cumprimentou-nos deformabastantecordial,declarandoterouvidograndeselogiosàperíciadePoirot.ecolocando-seànossadisposição.

    —Apolíciaestáfazendotodoopossível—dissePoirot.

  • —Mas receio que o mistério da morte de meu sobrinho nunca sejaesclarecido.Ocasoparece-mecompletamenteinsolúvel.

    Poirotoobservavacomatenção.—Conhecealguminimigodeseusobrinho?—Não,elenãoos tinha.Tenhocertezaabsoluta—ehesitouantesde

    acrescentar:—Seháoutrasperguntasquedesejefazer...—Sómaisuma—enumtomformalPoirotperguntou:—Asfantasias

    eramreproduçõesfiéisdasestatuetas?—Emtodososdetalhes.—Obrigado,milorde.Eratudoquedesejavasaber.Desejo-lheumbom

    dia.—Eagora?—perguntou Jappenquantodescíamosa ruaapressados.

    —PrecisovoltaràYard.—Bien!Nãoodeterei.Sóprecisoverificarmaisumpontoeentão...—Então?—Ocasoestaráencerrado.—Oquê?Falasério?SabequemmatouLordeCronshaw?—Parfaitement.—Quemfoi?EustaceBeltane?— Ora,mon ami, já devia conhecerminhas pequenas fraquezas,meu

    desejo de conservar os ios do mistério em minhas mãos até o últimomomento.Masnão tenha receio.Quando chegar a ocasião revelarei tudo.Nãodesejocolheros louros,oméritoseráseu,comacondiçãodequemepermitaconduzirodénouementàminhamaneira.

    — É bastante justo— disse Japp.— Isto é, será, se essedénouementchegar algum dia! Mas como digo sempre, o senhor é mais fechado queuma ostra, quando se trata de revelar seus segredos, não é mesmo?—PoirotsorriueJappacrescentou:—Bem,atémaistarde.PrecisoiràYard.

    Poirotchamouumtáxiqueiapassandoquandoodetetiveseafastou.—Aondeiremosagora?—pergunteicomacuriosidadeaguçada.—ParaChelsea,verocasalDavidson—edeuoendereçoaochofer.—OqueachadonovoLordeCronshaw?—perguntei.—OquepensaomeubomamigoHastings?—Meuinstintonãoconfianele.

  • —Pensaqueeleéo“tiomalvado”doslivrosdehistórias,não?—Evocê,não?— Eu? Acho que ele foi muito amável conosco — respondeu Poirot

    evasivamente.—Eletinhaseusmotivos!Poirotolhouparamim,sacudiuacabeçacomtristezaemurmuroualgo

    quemepareceuser:—Nenhummétodo!OcasalDavidsonmoravanoterceiroandardeumpretensiosoconjunto

    deapartamentos.Informaram-nosqueDavidsonsaíra,masqueasenhorapoderia nos receber. Fomos levados a uma sala comprida e baixa,decoradacomextravagantestapeçariasorientais.Oambienteeraabafadoe opressivo, comum aromapenetrante de incenso chinês.Mrs. Davidsonnosrecebeuquaseimediatamente;umamulherloura,pequenaedelicada,cuja fragilidade seria patética e atraente se não fosse pela expressãoastutaecautelosadeseusolhosazuisclaros.

    Poirot explicou nossa ligação com o caso e ela sacudiu a cabeçapenalizada.

    —PobreCronch... epobreCoco!Gostávamos tantodela, suamorte foiumgolpeterrívelparanós.Temalgumaperguntaamefazer?Érealmentenecessárioreviveroutravezaquelanoitehorrível?

    —Acredite-me,madame, não a importunaria desnecessariamente. NaverdadeoinspetorJappjámedeutodasasinformações.Sógostariadeverafantasiaqueusounobailedaquelanoite.

    Adamapareceualgosurpresa,ePoirotprosseguiunumtomsuave:— Compreenda, madame, trabalho pelo sistema de meu país. Lá nós

    sempre reconstituímos o crime. É possível que encenemos até umareprésentation,eparaissoasfantasiasserãoimportantes.

    Mrs.Davidsontinhaumaexpressãodedúvida.—Naturalmentejáouvifalaremreconstituiçõesdecrimes—disseela.

    —Masnão sabiaqueeramassim tãometiculososa respeitodedetalhes.Masvoubuscara fantasia—esaiudasala, retornandodentroempoucocomumdelicadotrajedecetim,verdeebranco.

    Poirotexaminou-oeodevolveucomumainclinaçãocortês:—Merci,madame!Vejoquetevea infelicidadedeperderumdosseus

    pompons

  • verdes,aquidoombro.— Ah, é verdade, caiu durante o baile. Apanhei-o e o dei ao pobre

    LordeCronshawparaqueoguardasseparamim.—Issofoidepoisdaceia?—Foi.—Nãomuitotempoantesdatragédia,então?UmlevetoquedealarmeapareceunosolhosclarosdeMrs.Davidsone

    elarespondeurapidamente:—Oh,não!Muitoantesdisso.Logodepoisdaceia,paraserprecisa.— Ah, sim. Bem, isso é tudo. Não a incomodaremos mais.Bonjour,

    madame.—Bem,estáexplicadoomistériodopompomverde—disseeuquando

    deixávamosoprédio.—Será?—Porquê?Oquepretendedizer?—Examineibemafantasia,Hastings.—E?—Ehbien,opompomperdidonãosedesprendeu,comodisseadama.

    Ao contrário, meu amigo, foi cortado, cortado com uma tesoura. Os iosestavamtodoscomomesmocomprimento.

    —Deusmeu!Istoestácadavezmaiscomplicado.— Ao contrário — retrucou Poirot placidamente —, o caso torna-se

    cadavezmaissimples.— Poirot!— exclamei agastado.— Qualquer dia desses voumatá-lo!

    Seuhábitodeconsiderartudomuitosimpleséextremamenteirritante!—Masquandochegoàsexplicações tudonãose revelaperfeitamente

    simples,monami?—É verdade, o que é aindamais irritante. Sinto que deveria ter sido

    capazdechegaràverdadesozinho.— E você é capar, Hastings! Se somente arrumasse suas ideias! Sem

    método...—Sei,sei—corteiapressadamentepoisconheciabemaeloquênciade

    Poirotquandosetratavadeseutemafavorito.—Diga-me,oquefaremosagora?Vairealmentereconstituirocrime?

  • — Não, o drama está encerrado, como poderíamos dizer. Mas eupretendoacrescentaruma...arlequinada.

    A quinta-feira seguinte foi o dia marcado por Poirot para essamisteriosarepresentação.Ospreparativosmeintrigaramimensamente.

    Levantaramumatelabrancaemumadasparedesdoaposento,ladeadapor pesadas cortinas. Daí a pouco surgiu um homem com umaaparelhagem de iluminação e inalmente um grupo de atores quedesapareceunoquartodePoirot,transformadoemcamarimprovisório.

    Pouco antes das oito chegou Japp, num estado de espírito poucootimista.PercebiqueodetetivenãoviacombonsolhososplanosdePoirot.

    —Sãomuitomelodramáticos, como todas as suas ideias.Masmal nãopodem causar, e pode ser que, como ele promete, poupem-nos muitotrabalho. Ele tem revelado muita perspicácia nesse caso, embora euestivesse na mesma pista, evidentemente — senti que Japp exageravanesse ponto. — Mas prometi dar-lhe completa liberdade de ação pararesolverascoisasaseumodo.Olhe,aívemopessoal.

    LordeCronshawfoioprimeiroachegar,acompanhadodeMrs.Mallaby,que eu ainda não conhecia. Era uma bonita mulher de cabelos escuros,visivelmentenervosa.Emseguida,entrouocasalDavidson.Eraaprimeiravez que via Chris Davidson, um homem bastante atraente, num estiloóbvio,altoemoreno,comagraçanatadeumator.

    Poirot arranjara um grupo de cadeiras em frente à tela, fortementeiluminada.Apagouasoutrasluzes,eoaposento icouescuro,aexceçãodatela.Avozdemeuamigoecoounaescuridão:—Mesdames,messieurs,umapalavra de explicação. Seis personagens des ilarão aqui. São bemconhecidosde todos:PierrôePierrete, obufãoPolichineloe suaelegantePulcinela,adoceegraciosaColombinaeArlequim,oduendeinvisível!

    Com estas palavras de introdução, começou o espetáculo.Separadamentecadapersonagemsaltavadiantedacortina, imobilizava-sepor alguns segundos, e desaparecia do outro lado. Depois que os seisdes ilaram, as luzes se acenderam e um sus-piro de alívio percorreu aplateia. Todos os componentes do grupo haviam estado apreensivos, semmesmo saber o que temiam. Pareceu-me que a representação fora umiasco. Se o criminoso, estava entre nós, e Poirot esperara que sedenunciasse à mera visão de um vulto familiar, o estratagema haviafalhadoenãoeradeadmirar.Entretanto,Poirotnãopareciadecepcionado,eadiantou-sesorrindo.

  • —Agora,mesdames,messieurspoderão fazer-meoobséquiodedaremas suas impressões sobre o que acabaram de ver? Um de cada vez, porfavor.Osenhorprimeiro,milorde.

    Ocavalheiropareciaperplexo.—Tenhoreceiodenãooterentendidobem.—Diga-mesimplesmenteoqueacaboudever.— Bem ... eu diria que vimos seis personagens, fantasiados como os

    atores daCommedia dell’Arte, des ilando em frente a uma tela... comoestávamosvestidosnaquelanoite.

    —Esqueça-sedaquelanoite—interrompeuPoirot.—Aprimeirapartede sua declaração é a que interessa agora.Madame, a senhora concordacomLordeCronshaw?—eleseviraraparaMrs.Mallaby.

    —Eu...concordo,sim,naturalmente.— Concorda que viu seis personagens representando a comédia

    italiana?—Ora,certamente.—MonsieurDavidson?Osenhortambémconcorda?—Concordo.—Madame?—Concordo.—Hastings?Japp?Estãotodosdeacordo?Elecorreuosolhospelogrupo.Seurostoestavaumtantopálidoeseus

    olhos,verdescomoosdeumgato.— Pois os senhoresestão todos errados! Seus olhos os enganaram há

    pouco, como os enganaram na noite do Baile da Vitória! Ver “com osprópriosolhos”nemsempreé ver a verdade.Éprecisover comosolhosdamente,éprecisoutilizarascelulazinhascinzentas.Saibamagora,quenanoitedobaileenestanoite,viramcincopersonagens,enãoseis!Olhem!

    Asluzesapagaram-senovamente.Umvultopulouparaafrentedatela:Pierrô.

    —Queméaquele?—perguntouPoirot.—SeráPierrô?—Éele,sim—todosnósexclamamos.—Olhemnovamente.Comumgestorápidoohomemlivrou-sedoseuamplotraje,eas luzes

  • fortes nos revelaram o cintilante Arlequim! No mesmo instante ouviu-seumaexclamaçãoeoruídode

    umacadeiraquecaía.—Maldito seja— a voz deDavidson estava cheia de ódio.—Maldito

    seja!Comoadivinhou?OuvimosoestalidodealgemaseavozcalmadeJapp,noseutomo icial:

    — Christopher Davidson, eu o prendo sob a acusação de assassinato doViscondedeCronshaw.Qualquercoisaquedisserpoderáserusadacontravocênotribunal.

    Umquartodehorahaviadecorrido.Umapequenamasrequintadaceiafora servida e Poirot, com um largo sorriso, era agora o an itrião cordialrespondendoàsperguntasansiosas.

    —Foi tudomuito simples.As circunstâncias emqueopompomverdefoi descoberto sugeriam que fora arrancado da fantasia do assassino.Deixeide ladoahipótesedePierrete,pois énecessáriomuita força ísicapara introduzir uma faca de mesa sem ponta num corpo de homem, econcentrei-me em Pierrô. Mas Pierrô deixara o baile quase duas horasantes do crime. Teria ele retornado para matar Lorde Cronshaw? Ou oteria morto antes de sair? Seria isso possível? Quem havia visto LordeCronshaw depois da ceia daquela noite? Só Mrs. Davidson, cujotestemunho eu descon iava ser uma mentira deliberada para explicar aperda do pompom, que ela deve ter cortado da própria fantasia parasubstituiroqueforaarrancadopelomortodotrajedomarido.MasentãooArlequim,queforavistonocamaroteàumaetrinta,nãoeraoverdadeiroLorde Cronshaw. Por um momento considerei a possibilidade de Mr.Beltane ser o criminoso. Mas seu traje complicado tornava umaimpossibilidadepráticaterelerepresentadooduplopapeldePolichineloeArlequim... Por outro lado, paraDavidson, um jovemdamesma altura dohomem assassinado e ator pro issional, a encenação não apresentarianenhumadificuldade.

    — Mas um ponto me preocupava — prosseguiu Poirot. — Como omédico legista não havia percebido que o assassinado morrera há duashoras e não há dezminutos?Ehbien, ele havia percebido, sim,mas comoninguémperguntara: “Háquanto tempoestehomemestámorto?”, e pelocontrário, asseguraram-lhe que o homem estivera vivo há dez minutosatrás,haviasimplesmentecomentadonoinquéritoquenãosabiaexplicararigidez anormal do cadáver! Tudo con irmava minha teoria. Davidson

  • matou Lorde Cronshaw logo depois da ceia, quando, como todos selembram, foi visto retornando com o mesmo para a sala de refeições.ImediatamentedepoissaiucomMissCourtenay,deixando-aàportadeseuapartamento (emvezde entrar para acalmá-la comoa irmou), e voltou atoda pressa para o Colossus Hall, agora fantasiado de Arlequim, umatransformaçãorápida,efetuadacomasimplesretiradadotrajedePierrô.

    O tio domorto inclinou-se para a frente, perplexo:—Mas nesse casoele deve ter vindo ao baile preparado para matar sua vítima. Mas quemotivooimpeliu?Nãoconsigoperceberummotivo.

    — Ah, agora chegamos à segunda tragédia ... a morte de MissCourtenay. Há um fato evidente que ninguém parece ter notado: MissCourtenay morreu de uma dose fatal de cocaína, mas sua provisão dadrogaestavaempoderdeLordeCronshaw.Onde,então,elaobteveadoseque a matou? Só uma pessoa poderia ter-lhe fornecido a droga mortal:Davidson.Eissoesclarecetudo.ExplicasuaamizadecomocasalDavidson,,sua súplica a eleparaquea levassepara casa. LordeCronshaw,que eraum inimigo quase fanático dos tóxicos, descobriu que ela era viciada emcocaína e suspeitou de que o fornecedor fosse Davidson. Esteindubitavelmentedeveterne-gadomasLordeCronshawresolveraobteraverdade de Miss Courtenay durante o baile. Ele podia perdoar adesgraçadamoça,mas na certa não teria clemência com um homemquevivia do trá ico de drogas. Com receio de ser desmascarado e preso,DavidsonfoiaobaileresolvidoasilenciarCronshawaqualquerpreço.

    —AmortedeCocofoiacidental,então?—Acredito que tenha sido um “acidente” astutamente preparado por

    Davidson.ElaestavafuriosacomCronshaw,primeiroporsuascensurasesegundo por tê-la privado da cocaína. Davidson forneceu-lhe mais, eprovavelmente sugeriu que aumentasse a dose para desa iar o “velhoCronch”.

    —Maisumacoisa—disseeu.—Eonicho,eacortina?Comosoubedesuaexistência?

    — Ora,mon ami, este ponto foi o mais simples. Os garçons haviamentradoesaídodopequenoaposentosemnadanotar.Entãoobviamenteocorpo não poderia estar caído nomeio da sala, onde foi encontradomaistarde. Deveria haver um local onde pudesse ter sido escondido. Pordedução pensei num nicho atrás de uma cortina. Davidson carregou ocorpo para lá, e mais tarde, depois de chamar a atenção para si no

  • camarote,tornoualevá-loparaomeiodasala,antesdesair inalmentedobaile. Foi um dos seus movimentos mais brilhantes, ele é um homeminteligente!

    MasnosolhosdePoiroteraevidenteasuaconclusão inal:MasnãotãointeligentequantoHerculePoirot!

  • AAventuradaCozinheiradeClapham

    Na época em que morava com meu amigo Hercule Poirot, era meuhábitoler-lheemvozaltaasmanchetesdojornalmatutinoDailyBlare.

    O Daily Blare aproveitava todas as oportunidades para fazersensacionalismo.Rouboseassassinatosnãoseescondiamnaobscuridadedas últimas páginas. Ao contrário, agrediam o leitor em letras garrafaislogonaprimeirapágina:

    BANCÁRIO FOGE COM 50 000 LIBRAS EM TÍTULOS NEGOCIÁVEIS.MARIDO INFELIZ SUICIDA-SE COM CABEÇA DENTRO DO FORNO. BELADATILÓGRAFADE21ANOSDESAPARECIDA.ONDEESTÁEDNAFIELD?

    — Bem, Poirot, faça sua escolha. Um bancário foragido, um suicídiomisterioso,umadatilógrafadesaparecida.Qualdeleslheapetece?

    Meuamigosacudiuacabeçapacificamente:—Nenhumdessescasosmeatrai,monami.Hojesinto-meinclinadoao

    descanso,àtranquilidade.Sóumenigmamuitointeressanteseriacapazdearrancar-medaminhapoltrona.E tenhoproblemaspróprios, importantespararesolver.

    —Queproblemas?—Meuguarda-roupa,Hastings.Senãomeengano,háumamanchade

    gordura em meu terno cinzento. É só uma pequena mancha, mas é osu iciente para me incomodar. E meu sobretudo, preciso entregá-lo aoscuidados deKeatings. Ah, emeus bigodes, creio que a ocasião é propíciaparadar-lhesalgumaatenção.Precisoapará-loseaplicar-lhesapomada.

    —Bem—disseeuandandoatéajanela—,tenhodúvidadequepossadedicar-seaessasdeliciosasocupações.Acampainha tocou.Você temumcliente.

    —Amenosqueo caso sejade importância capital, nãomeenvolverei—declarouPoirotcomdignidade.

    Um instante depois, uma senhora gorda e corada, com a respiraçãoofegantepeloesforçodesubirasescadas,invadiunossaintimidade.

    —OsenhoréMonsieurPoirot?—elaperguntoudeixando-secairnumapoltrona.

  • —Sim,souHerculePoirot,madame.—Nãosepareceemnadacomaimagemque iz—declarouasenhora

    olhando-ocomalgumdesagrado.—Osenhorpagouaosjornaisparaqueoelogiassem dizendo que é um grande detetive, ou escreveram issoespontaneamente?

    —Madame!—exclamouPoirot,levantando-se.—Sintomuito,desculpe,massabecomosãoos jornaisdehojeemdia.

    Começa-se a ler um artigo interessante intitulado: “O que a noiva disse asuaamigasolteirona”eacaba-sevendoqueépropagandadetinturaparaocabelo!Masosenhornão icouofendido,nãoé?Poisprecisoquemefaçaumfavor:osenhortemqueacharaminhacozinheira.

    Poirot olhou para ela com olhos arregalados. Sua eloquênciaabandonou-o pela primeira vez na vida. Virei a cabeça para esconder olargosorrisoquenãoconseguiaabafar.

    —Aculpatodaédessamalditapensãodedesemprego—prosseguiuadama. — Põe ideias na cabeça das empregadas, agora só querem serdatilógrafasenãoseioquemais.Naminhaopiniãoéprecisoacabarcomessapensão.Egostariadesaberdequeasminhas

    empregadas podem se queixar; uma tarde e uma noite de folga umavez por semana, e os domingos de quinze em quinze dias. Não lavamroupa, comemamesma comidaque a família, e saibaquenaminha casanãoentramargarina,sómanteigaedamelhor!

    Ela parou sem fôlego e Poirot aproveitou a oportunidade, falando-lhecomsuaexpressãomaisaltivaearrogante:—Receioqueestejaenganada,senhora. Não faço investigações a respeito das condições do trabalhodoméstico.Souumdetetiveparticular.

    —Seidissomuitobem—disseanossavisitante.—Nãolhedissequequeria que o senhor procurasse aminha cozinheira? Ela saiu de casa naquarta-feira,semmedizerumapalavra,enuncamaisvoltou.

    — Sinto muito, madame. mas não me envolvo com esta espécie deinvestigação.Desejo-lheumbomdia.

    Nossavisitantefungoudeindignação.—Éassim,meudistintosenhor?Édemasiadoorgulhoso,hem?Só lida

    com segredos de estado e joias de condessas, não é? Deixe-me dizer-lhequeumaboaempregadaévitaleimportantíssimaparaumamulhercomoeu. Nem todas nós podemos ser elegantes damas envoltas em peles,

  • brilhantes e pérolas. E uma boa cozinheira é tão importante para mimquantoasjoiasparaalgumadistintadama.

    Por alguns instantes Poirot pareceu se debater entre sua dignidade eseusensodehumor.Afinaldeuumarisadaesentou-senovamente.

    —Madame,asenhoraestácertaeeuestavaerrado.Seusargumentossãorazoáveiseinteligentes.Estecasoseráumanovidadeparamim.Nuncaprocureiumaempregadadesaparecida.Naverdade,esseéoproblemadeimportância capital a que me referia antes de sua chegada.En avant! Asenhora diz que essa maravilhosa cozinheira saiu na quarta-feira e nãovoltou.Istoé,anteontem.

    —Sim,foiseudiadefolga.—Masmadame, é provável que lhe tenha acontecido algumacidente.

    Perguntounoshospitais?—Foi exatamente o que ocorreu ontem,mas estamanhã elamandou

    buscarobaú.Esemmeenviarumaúnicapalavra!Seeuestivesseemcasa,nãooteriaentregue. Imaginesó, tratar-medessa forma!Mastinha idoaoaçougue...

    —Asenhorapodedescrevê-laparamim?—É umamulher demeia-idade, gorda, cabelos escuros começando a

    icar grisalhos, de aspecto muito respeitável. Ficou dez anos no últimoemprego.Chama-seElizaDunn.

    —Easenhoranãotevenenhumadiscussãocomelanaquarta-feira?—Nenhuma.Éporissoqueachotãoestranho.—Quantasempregadastem,madame?—Duas. A copeira, Annie, émuito boazinha. Umpouco distraída e de

    cabeça meio virada por causa dos rapazes, mas é uma boa empregadaquandobemdirigida.

    —Acozinheiradava-sebemcomela?— Tinham as suas diferenças, é natural. Mas em geral, entendiam-se

    bastantebem.— E essa moça não pode fornecer nenhuma pista que esclareça o

    mistério?—Eladizquenão,masosenhorsabecomosãoasempregadas.Têma

    suapanelinha.—Bem,bem,vouinvestigarocaso.Ondereside,madame?

  • —EmClapham.NaPrinceAlbertRoad,número88.—Bien,madame.Desejo-lheumbomdia,epodeesperarqueireiasua

    residênciahojemesmo.Mrs. Todd, era esse o nome de nossa nova amiga, despediu-se. Poirot

    olhouparamimumtantopesaroso:—Bem,Hastings,pelomenoséumcasodiferente:“ODesaparecimento

    da Cozinheira de Clapham”. Mas nunca, nunca, nunca mesmo, o nossoamigoJappdevesaberdisto!

    Ele então dedicou-se a remover a mancha de gordura de seu ternocinzento com o auxílio de um ferro quente e de um mata-borrão.Lamentandodeixarosbigodesparaumoutrodia,saímosparaClapham.

    A Prince Albert Road era uma rua de casas exatamente iguais,pequenasmasrespeitáveis, comcortinasengomadasderendaenfeitandoas janelas e aldravas de bronze bem polidas nas portas. Tocamos acampainhadonúmero88eumabonitacopeirinhanosabriuaporta.Mrs.Toddveioaovestíbulonosreceber.

    —Fique aí, Annie—ela ordenou.—Este senhor é umdetetive e vailhefazeralgumasperguntas.

    OrostodeAnnierevelousualutaíntimaentreoalarmeeoentusiasmo.—Obrigado,madame—dissePoirotcomumainclinaçãodecabeça.—

    Gostariadeinterrogarsuacopeiraagora,easós,sepossível.Depois de nos conduzir a uma pequena sala de estar, Mrs. Todd nos

    deixoucomóbviarelutância.Poirotcomeçouseuinterrogatório.— Voyons, Mademoiselle Annie, tudo que puder nos dizer será de

    máximaimportância.Sóasenhoritapodenosforneceralgumapistaparaocaso.Semasuaajuda,nadapodereifazer.

    Amoçaperdeuoaralarmadoeseuentusiasmotornou-seevidente.—Poisnão,senhor—disseela.—Voulhedizertudoquesei.Ótimo— Poirot deu-lhe um largo sorriso de aprovação.—Bem, para

    começar, qual a sua opinião? Posso ver de saída que é uma moça deinteligência excepcional! Como a senhorita explica o desaparecimento deEliza?

    Assimencorajada.Annienãosefezderogada.—Paramimela foi vítimade tra icantesdeescravasbrancas, senhor.

    Elaprópriaestavasempremeprevenindocontraeles:“Não

  • cheirenada,nemaceitedoces,nãoimportaqueocamaradapareçaserumcavalheiro”.Eraoqueelasempredizia.Eagoraelesapegaram,tenhocerteza!DevetersidomandadaparaaTurquiaoualgumdaquelespaísesdoOrienteondegostamdemulheresgordas!

    Poirotconservouumaseriedadeadmirável.—Massefosseesseocaso,eérealmenteumaótimasugestão,elateria

    mandadobuscarseubaú?— Bem, não sei, senhor. Ela precisaria de suas coisas, mesmo lá no

    estrangeiro.—Quemveiobuscarobaú?—Foiummensageiro,senhor.—Foivocêquemarrumouabagagem?—Não,senhor.Estavatudoarrumadoebemamarradocomcordas.— Ah, isto é bem interessante. Mostra-nos que ela não tencionava

    regressarquandodeixouacasanaquarta-feira.Percebeisso,não?— Percebo, sim, senhor— Annie parecia um pouco desapontada, —

    Nãohaviapensadonisso.Masmesmoassimpodemtersidoostra icantesdeescravas,nãoacha?—elaper-

    guntouesperançosa.—Nãohádúvida—dissePoirotmuito sério, e acrescentou:—Vocês

    dormiamnomesmoquarto?—Não,senhor.Temosquartosseparados.—Elizaalgumavezlhedissequenãogostavadoemprego?Vocêsduas

    estavamsatisfeitasaqui?—Elanuncafalouemsair.Oempregoébom...—amoçahesitou.—Sejafranca—dissePoirotcombondade.—Nadadireiasuapatroa.—Bem,senhor,apatroaéenjoada,masacomidaéboaefarta.Elanão

    émãofechada.Sempreháumpratoquentenaceia,afolgaéboa,enãoháeconomiademanteiga.Edequalquer forma, seElizaquisessevariar,nãosairia assim sem avisar. Ora, a patroa poderia exigir dela um mês deordenadoporfazerumacoisadessas!

    —Eotrabalho,nãoépesado?—Bem, ela é exigente. Está sempremetendo o nariz nos cantos para

    versenãohápó.Etambémháoinquilino.Massótomaocafédamanhãeojantar,comoopatrão.Elespassamodianacidade.

  • —Vocêgostadeseupatrão?—Eleélegal.Émuitocaladãoeumtantounhadefome.—SuponhoquenãoserecordadaúltimacoisaqueElizadisseantesde

    sair?—Lembro-me, sim. Ela disse: “Se sobrar alguma compota de pêssego

    do jantar, nós poderemos fazer uma ceia com bacon e batatas fritas”. Elaeramalucaporcompotadepês-segos.Talvezatenhampegoassim...

    —Elasempresaíaàsquartas-feiras?—Saía.Minhatardedefolgaénaquinta,eadelaerana:quarta.Poirot fezmais algumasperguntas edeclarou-se satisfeito.Annie saiu.

    Mrs. Todd entrou afogueada, o rosto animado pela curiosidade. Elacertamente ressentira-se de ter sido excluída da nossa entrevista comAnnie.Entretanto,Poirotteveocuidadodeapaziguá-ladiplomaticamente:

    — É muito di ícil para uma mulher inteligente como a senhora,madame, suportar compaciência os rodeios que nós, os detetives, somosobrigadosausar.Paraosderaciocíniorápidoédi ícilser indulgentecomosignorantes.

    Tendo assim suavizado com tato qualquer leve ressentimento deMrs.Todd,Poirot

    conduziuoassuntoparaomaridoeconseguiuainformaçãodequeestetrabalhavanumafirmadacidadeenãovoltariaantesdasseis.

    — Certamente seu marido está muito preocupado com esse casoinexplicável,nãoéverdade?

    —Não,elenuncasepreocupacomcoisaalguma—declarouMrs.Todd.—“Bem,minhaquerida,arranjeoutra.Elaéumaingrata,estamosmelhorsemela”,foioqueeledisse!Étãocalmoqueàsvezesmeirrita.

    —Eosoutrosmoradoresdacasa,madame?— Refere-se a Mr. Simpson, nosso inquilino? Bem, enquanto lhe

    fornecermosocafédamanhãeojantar,paraeleestátudobem.—Qualéaprofissãodele,madame?— Ele trabalha num banco — e ela mencionou um nome. Tive um

    ligeirosobressalto,lembrando-medonoticiáriodoDailyBlare.—Eleéjovem?—Unsvinteeoitoanos,creio.Éumrapazamáveletranquilo.— Gostaria de trocar algumas palavras com ele, e também com seu

  • marido, se for possível. Voltarei à noite para esse im. Se me permitir,gostariadesugerir-lheumpequenodescanso,madame.Asenhoraparecefatigada.

    — E é natural que esteja! Primeiro a preocupação com Eliza, depoisontemgasteiumdiainteirofazendocompras,eosenhorsabecomoissoéfatigante. Com uma coisa e outra, e tanto trabalho em casa, porquenaturalmenteAnnienãopodefazertudo ...eéatéprovávelqueresolvairembora...bem,comtodaessaconfusão,estoumesmoexausta!

    Apósmurmúriosdesimpatia,Poiroteeunosdespedimos.—Quecoincidênciacuriosa—disseeu—,tantoSimpsoncomoaquele

    caixa desaparecido são do mesmo banco. Acredita que haja algumaligação?

    Poirotsorriu.— De um lado um caixa dá um desfalque e foge, e de outro uma

    cozinheira desaparece. É di ícil ver alguma ligação; a não ser que Davis,visitandoSimpson,seapaixonasseporElizaeaconvencesseaacompanhá-loemsuafuga.

    Euri,masPoirotpermaneceusério.—Elepodiafazerumaescolhapior—censurou-meele.—Lembre-se,

    Hastings,noexílioumaboacozinheirapodeserumconsolomaiordoqueumacarinhabonita!—Fezumapausaeprosseguiu:—Éumcasocurioso,cheio de aspectos contraditórios. Estou interessado, estou decididamenteinteressado.

    Naquelanoitevoltamosaonúmero88daPrinceAlbertRoad,efalamoscomToddeSimpson.Oprimeiroeraumhomemdearmelancólico,queixocomprido,deunsquarentaepoucosanos.

    — Ah, sim, Eliza — disse com ar distraído. — Elisa era uma boacozinheira,muitoeconômica.Paramiméumagrandequalidade.

    — O senhor pode imaginar a razão pula qual ela saiu de forma tãorepentina?

    —Bem, sabe como são as empregadas—disse o despreocupadoMr.Todd.—Minha esposa leva tudomuito a sério. Fica exausta de tanto sepreocupar.Oproblemaédefácilresolução.Ésóarranjaroutra,eudisseaela.Émuitosimples,nãoadiantachorarsobreoleitederramado.

    Mr.Simpsonnãofoidemaiorajuda.Eraumrapazdeóculos,discretoecalado.

  • —Creioqueaconheci—disseele—,umamulherdemeia-idade,nãoera? É a outra empregada, a Annie, que costumo ver. É uma boa moça,muitoprestativa.

    —Asduasdavam-sebem?Mr.Simpsonrespondeuquenãopodiasaber,masachavaquesim.—Bem,nãoconseguimosnadade interessanteaqui,monami—disse

    Poirot enquanto saíamos da casa. Nossa partida fora retardada por umaexplosão de tagarelice deMrs. Todd, que repetiu tudo que já dissera demanhãcomlongosdetalhes.

    — Está desapontado? — perguntei. — Esperava descobrir algumacoisa?

    Poirotsacudiuacabeça:—Haviaumapossibilidade—disseele—masnãoaconsideravamesmomuitoprovável.

    NamanhãseguintePoirotrecebeuumacarta.Ficouroxodeindignaçãoquandoa leu,epassou-aàsminhasmãos: “Mrs.Todd lamentacomunicarque não precisará dos serviços deMonsieur Poirot, a inal. Depois dedebater o assunto com seu marido, viu quão tolo fora contratar umdetetive para resolver um simples problema doméstico. Anexo segue umguinéuempagamentoàconsulta.”

    —Há!— fez Poirot furioso.— E pensam que se livrarão de HerculePoirot com essa facilidade! Como um favor muito especial consenti eminvestigaroseumiserávelproblemazinho,eelesmedespedem commeça!Se nãome engano, aqui andou amão deMr. Todd,mas eu digo não!Milvezes,não!Gastareiosmeusprópriosguinéus, trezentoseoitentaecincomilsenecessário,maschegareiaofundodestecaso!

    —Estácerto—disseeu.—Mascomo?Poirotacalmou-seumpouco.—D’abordvamoscolocarumanúncionosjornais—disseele.—Deixe-

    mepensar.Algomaisoumenosassim:“ElizaDunn,comunique-secomesteendereço. Trata-se de assunto de grande interesse seu.” Coloque-o nomaior número possível de jornais, Hastings. Enquanto isso farei algumaspequenas investigações por minha conta. Vá, vá, temos que agirrapidamente!

    Sótorneiavê-loànoite,quandoteveacondescendênciademerevelaroqueandarafazendo:—Fizalgumasperguntasdiscretasna irmadeMr.Todd. Ele não se ausentou na quarta-feira, e goza de bom conceito. JáSimpsonestavadoentenaquinta-feira enão foi aobanco,masnaquarta

  • estava lá. Tinha relações super iciais de amizade com Davis, nada deprofundo. Parece que por aí não conseguiremos nada. Não, temos quecentralizartodasasnossasesperançasnoanúncio.

    O anúncio apareceu pontualmente em todos os principais jornais dacidade. Segundo as ordens de Poirot, deveria ser publicado durante umasemana. Sua ansiedade sobre esse caso banal de uma cozinheira sumidaeraestranhíssima,masconcluíqueeleconsideravaumaquestãodehonraperseverar até obter um resultado. Vários casos interessantes foram-lheoferecidos naquela semana, mas ele não os aceitou. Todas as manhãsexaminava sôfrego a correspondência, para inalmente deixá-la de ladocomumsuspirodesapontado.

    Maspor imnossapaciência foi recompensada.Naquarta-feiraqueseseguiuàvisitadeMrs.Todd,nossasenhoriainformou-nosqueumapessoadenomeElizaDunnnosprocurava.

    — Enfin! — exclamou Poirot. — Faça-a subir imediatamente, nesseminuto!

    Aessaspalavrasanossasenhoriasaiuapressada, e voltou instantes depois com Miss Dunn. Nossa visitante

    ajustava-se àdescriçãoquedela izeraapatroa: alta, gorda, edeaspectomuitorespeitável.

    — Vim em resposta ao anúncio— ela explicou.— Embora creia quedeva haver alguma confusão. Talvez o senhor não saiba que já recebiminhaherança.

    Poirot a estivera observando com atenção. Ofereceu-lhe uma cadeiracomumgestogalante.

    —Averdadeéquesuaex-patroa,Mrs.Todd,estavamuitopreocupadacomvocê.Receavaquelhehouvesseacontecidoalgumacidente.

    ElizaDunnpareceuficarextremamentesurpresa.—Entãoelanãorecebeuminhacarta?—Nãorecebeunenhumalinha—elefezumapausaeacrescentou,em

    tompersuasivo:—Vamos,conte-metodaahistória.Eliza Dunn não precisava de encorajamentos. Iniciou imediatamente

    sua longanarrativa:—Estavaquasechegandoemcasanaquarta-feiraànoite quando fui abordada por um cavalheiro. Era um homem alto, debarbas e um grande chapéu. “A senhora é Miss Eliza Dunn?”, eleperguntou e respondi que era. “Estive perguntando pela senhora no

  • número 88 e eles me disseram que poderia encontrá-lo aqui quandochegasse. Miss Dunn, vim da Austrália especialmente para encontrá-la.Sabeporacasoonomedesolteiradesuaavómaterna?”,eeudisse:“JameEmmott”.“Exa-tamente”,disseeleeacrescentou:“Emboraasenhoratalveznãosaiba,suaavóteveumagrandeamiga,ElizaLeech.EstaamigaemigrouparaaAustráliaonde casou-se comumricoproprietário. Seusdois ilhosmorreram na infância e ela herdou a fortuna do marido. Há dois mesesatráselamorreu,epeloseutestamentoasenhoraherdouumacasanessepaíseumaquantiaconsiderávelemdinheiro”.

    — Eu iquei tonta, completamente tonta— prosseguiuMiss Dunn.—Fiqueimeiodescon iadaaprincípio,eeledeveterpercebido,poissorriuedisse:“Asenhora fazbememacautelar-se,MissDunn.Aquiestãominhascredenciais”, e entregou-me uma carta de uns advogados de Melbourne,Hurst e Crotchet, e um cartão. Ele era Mr. Crotchet. “Há algumascondições”, disse ele, “a nossa cliente era um pouco excêntrica, sabe. Olegado está dependendo da senhora poder tomar posse da casa (é emCumberland) antes do meio-dia de amanhã. A outra condição não éempecilho,ésóumacláusulaestipulandoqueasenhoranãodeveriaestartrabalhando como doméstica.” Fiquei desapontada, e perguntei: “MasMr.Crotchet, eu sou cozinheira. Não lhe informaram lá em casa?” “Ora, ora”,disse ele, “nem imaginava uma coisa dessas. Pensei que a senhora fosseuma dama de companhia, ou coisa semelhante. Isto é uma pena, umagrandepena,realmente”.

    — “Vou perder todo o dinheiro?”, perguntei ansiosa. Ele re letiu poruns dois minutos e disse: “Há meios de burlar a lei, Miss Dunn. Nós,advogados,temospráticanesseassunto.Achoqueasaídaemseucasoéasenhoradeixaroempregoestamanhã”.“Masprecisodarummêsdeavisoprévio”,eudisseeelerespondeu:“MinhacaraMissDunn,asenhorapodesairdeumempregoaqualquermomento,dandoummêsdesaláriocomoindenização. Sua patroa compreenderá, em vista das circunstâncias. Oproblemanoseucasoétempo!AsenhoraprecisapegarotremquesaideKing’s Cross às onze e cinco para o norte. Posso adiantar-lhe umas dezlibras para a passagem, e na estação a senhora poderá escrever umbilhete para sua patroa. Eumesmo o entregarei e explicarei tudo a ela.”Naturalmente eu concordei e uma hora depois estava no trem, tãoatordoadaquenãosabiaseestavaacordadaousonhando.Quandochegueia Carlisle, já começara a achar que tinha sido vítima de algum conto dovigário,destesqueaparecemnos jornais.Masfuiaoendereçoqueeleme

  • dera,eerarealmenteumescritóriodeadvogadoseeratudoverdade,umacasabemboazinhaeumarendadetrezentaslibrasporano.Osadvogadossabiam muito pouco. Tinham acabado de receber uma carta de umcavalheiroemLondresdando-lhes instruçõesparameentregaremacasae cento e cinquenta libras para os primeiros seis meses. Mr. Crotchetenviou-meminhas coisas,mas não recebi uma palavra da patroa. Penseique ela estivesse zangada e invejasse aminha boa sorte. Ela icou comomeu baú e mandou-me as roupas embrulhadas em papel. Masnaturalmente, se ela nunca recebeu meu bilhete, deve ter achado muitoatrevimentodaminhaparte!

    Poirotouviracomatençãoa longahistória.Eagorabalançavaacabeçacomoseestivessecompletamentesatisfeito.

    — Obrigado,mademoiselle.Houve, comodisse,umapequena confusão.Permita-me compensá-la por este aborrecimento — e entregou-lhe umenvelope. — Vai voltar imediatamente a Cumberland? Permita-me umpequenoconselho:Nãoseesqueçadaarteculinária.Ésempreútil terumaprofissãoaquerecorrerseascoisascorreremmal.

    —Émuitocrédula—elemurmurouquandoanossavisitantepartiu.—Mastalveznãomaisqueamaioriadesuaclasse—seurostoadquiriuumaexpressãograve.—Venha,Hastings,nãohá tempoaperder.ArranjeumtáxienquantoescrevoumbilheteparaJapp.

    Poirotesperavanaentradaquandovolteicomotáxi.—Aondevamos?—pergunteiansioso.—Primeiro,mandarestebilheteporummensageiroespecial.Feito isso, Poirot retomou o táxi e deu ao chofer outro endereço: —

    PrinceAlbertRoad,88,emClapham.—Entãovamosvoltarlá?—Maisoui. Embora francamente receio que seja tarde demais.Nosso

    pássarojádevetervoado,Hastings.—Queménossopássaro?Poirotsorriu.—OdiscretoMr.Simpson.—Oquê?—exclamei.—Ah,vamos,Hastings.Nãomedigaqueosfatosnãoestãobemclaros

    paravocê!

  • —Perceboqueacozinheira foiafastadadeliberadamente—eudisse,ligeiramente melindrado. — Mas por quê? Por que Simpson desejariaafastá-ladacasa?Elasabiaalgumacoisaarespeitodele?

    —Absolutamentenada.—Eentãoporque...—Porqueelequeriaumobjetoqueeradela.—Dinheiro?Aherançaaustraliana?—Não,meuamigo,algobemdiferente—elefezumapausaedisseem

    tommuitosério:—Umvelhobaúdefolhadeflandres.Dirigi-lhe um olhar descon iado. Sua declaração me parecia tão

    fantástica que suspeitei de uma brincadeira, mas sua expressão era deperfeitaseriedade.

    —Elepodiacomprarumbaúnovo,sequisesse—protestei.— Ele não queria um baú novo. Queria um baú com um passado

    respeitável,quenãolevantassesuspeitas.— Olhe aqui, Poirot — exclamei —, isto é demais, está brincando

    comigo!Elemeolhou.— Faltam-lhe os miolos e a imaginação de Mr. Simpson, Hastings.

    Escute:nanoitedequarta-feira,Simpsonlivra-sedacozinheira.Umcartãoe uma folha de papel de carta impressos são fáceis de obter, e ele estádisposto a gastar cento e cinquenta libras e um ano de aluguel paraassegurarosucessodeseusplanos.MissDunnnãooreconhece.Abarba,o chapéueo sotaqueaustraliano são su icientesparaenganá-la. Foi tudoque Simpson fez na quarta-feira, exceto apropriar-se de cinquenta millibrasemtítulosnegociáveis.

    —Simpson?MasfoiDavis...— Permita-me continuar, Hastings. Simpson sabe que o roubo será

    descoberto na quinta-feira à tarde. Ele não vai ao banco, mas ica àespreita, esperandoporDavis à horado almoço. Talvez tenha admitidooroubo a este, e prometido devolver-lhe os títulos. De qualquer forma,consegueatrairDavisaClapham.Éodiade folgadacopeira,eMrs.Toddfoiàscompras.Nãoháninguémemcasa.

    Quandooroubofordescoberto,relacionarãoofatoaodesaparecimento

  • deDavis.Davisseráoladrão,eMr.Simpsonestaráemperfeitasegu-rançaepoderávoltaraotrabalhonodiaseguintecomoumhonestofuncionário...

    —EDavis?Poirotfezumgestoexpressivoesacudiuacabeçadevagar.— É di ícil acreditar em tamanho sangue frio, mas não consigo

    encontrar outra explicação,mon ami. O problema principal de umassassino é desfazer-se do corpo, e Simpson já planejara tudo comantecedência.OcomentáriodeElizaDunnsobreacompotadepêssegos,aosair quarta-feira de manhã, indicava sua intenção de regressar, e noentanto seu baú estava pronto e amarrado quando vieram buscá-lo. FoiSimpsonquempediu à companhia de transportes que viesse buscá-lo nasexta,efoiSimpsonquemo“arrumou”naquintaàtarde.Quemsuspeitariade alguma coisa? Uma empregada sai de uma casa e manda buscar suabagagem, já pronta e endereçada em seu nome provavelmente paraalguma estação de estrada de ferro próxima a Londres. Na tarde desábado,Simpson,emseudisfarceaustraliano,

    retira a bagageme adespachanovamentepara algumnovo endereçoonde icará até que as autoridades a resolvam abrir pormotivos óbvios.Tudo que poderão descobrir é que um homem barbado a despachou dealgumaestaçãopertodeLondres.Nadahaveráquearelacioneaonúmero88daPrinceAlbertRoad.Ah!Aquiestamos.

    Os prognósticos de Poirot haviam sido corretos. Simpson partira doisdiasatrás.Masnãoescapariaàsconsequênciasdeseucrime.Comaajudadotelégrafo,foidescobertonoOlympia,acaminhodaAmérica.

    Um baú de folha de landres, endereçado a Mr. Henry Wintergreenatraiu a atenção dos funcionários da estrada de ferro em Glasgow.Abriram-noeencontraramocorpodoinfelizDavis.

    O cheque de um guinéu de Mrs. Todd nunca foi descontado. Poirotmandouemoldurá-loependurou-onaparededasaladeestar.

    — É um pequeno lembrete para mim mesmo, Hastings. Nuncadesprezareio trivial,oprosaico.Umaempregadadomésticadesaparecidaleva aumassassino impiedoso.Naminhaopinião, foi umdosmeus casosmaisinteressantes.

  • OMistériodaCornualha

    — Mrs. Pengelley — anunciou nossa senhoria e retirou-sediscretamente.

    Muitos espécimes estranhos vinham procurar Poirot, mas na minhaopinião, amulher que estava em pé junto à porta, segurando com dedosnervosososeumelancólicoboádepenas,eraomaisinverossímildetodos.Seuaspectoeraabsolutamenteprosaico:umamulhermagraeabatidadeunscinquentaanos,vestidacomumcostumecinza,agolafechadaporumbroche,eocabelogrisalhoescondidosobumchapéupoucoatraente.Nascidadesdointerior,veem-secentenasdeMrs.Pengelleys,todososdias.

    Poirotlevantou-seerecebeu-acomamabilidade,percebendoseuóbvioembaraço.

    —Madame,sente-se,porfavor.Esteéomeucolega,ocapitãoHastings.Elasentou-se,balbuciandosemjeito:—OsenhoréMonsieurPoirot,odetetive?—Aseuserviço,madame.Masnossavisitanteaindacontinuavareceosa.Suspirou,torceuasmãos

    eruborizou-seaindamais.—Possoajudá-laemalgumacoisa,madame?—Bem,eupensei...istoé...—Prossiga,madame.Prossiga,porfavor.Assimencorajada,Mrs.Pengelleydecidiu-se:—M.Poirot,oproblemaé

    quenadaquerocomapolícia.Não,eunãorecorreriaàpolíciaemhipótesealguma!Masmesmoassim,estoumuitopreocupada.Enãoseisedeveria...—elaparouderepente.

    — Nada tenho a ver com a policia. Minhas investigações sãoestritamenteconfidenciais.

    Mrs.Pengelleyanimou-se.—É istomesmoque desejo, uma investigação con idencialNão quero

    falatórios,mexericos,ounotíciasnosjornais.Essagentemalévoladeforma

  • ashistóriasatéqueumafamíliadecentenãotenhamaiscoragemdeandarcomacabeçaerguida!Enemaomenostenhocertezadecoisaalguma,ésóestaideiahorrívelquenãomesaidacabeça—elaparoupararespirar—Epossoestar caluniandoopobreEdward,umaaçãohorrorosaparaumaesposa.Masouve-sefalardecadacoisahojeemdia...

    —Porfavor,asenhoraestásereferindoaseumarido?—Refiro-me,sim.—Edequesuspeita?—Nãogostonemdepensar,M.Poirot.Masouve-sefalaremcadacoisa

    queacontece,semqueaspobresvítimasnemsequersuspeitem...Jácomeçavaadesesperarqueasenhoraconseguissechegaraocentro

    daquestão,masapaciênciadePoiroterainesgotável.— Fale sem receio, madame. Pense em sua satisfação se pudermos

    provarquesuassuspeitassãoinfundadas.—Temrazão,equalquercertezaémelhordoqueestadúvidacruel.M.

    Poirot,estoucomummedohorríveldeestarsendoenvenenada.—Oqueafazpensarnisso?Mrs. Pengelley abandonou suas reservas e tornou-se eloquente,

    soterrando-nos sob uma montanha de informações que seriam maisapropriadasaosouvidosdeummédico.

    —Entãosentedoresemal-estarapósasrefeições?—perguntouPoirotpensativo.—Oquedizseumédico,madame?

    — Diz que é gastrite aguda, M. Poirot. Mas posso perceber que estáperplexo epreocupado,mudando sempre amedicação, semquenadadêresultados.

    —Asenhorafalou-lhedeseusreceios?—Não.Ahistóriapodeseespalhar.Etalvezsejagastrite.Dequalquer

    forma é muito estranho que eu passe muito bem quando Edward seausenta nos ins de semana. Até Freda, aminha sobrinha, notou isso,M.Poirot.Ea latadopreparadoparamatarervasdaninhas,queo jardineirodiznuncaterusado,estápelametade.

    Ela lançou a Poirot um olhar suplicante. Ele sorriu-lhetranquilizadoramenteepegoulápisepapel.

    — Vamos agir com método, madame. Em primeiro lugar, onde asenhoraeseumaridoresidem?

  • —EmPolgarwith,umapequenacidaderuraldaCornualha.—Vivemláhámuitotempo?—Háquatorzeanos.—Asenhoraeseumaridomoramsós?Nãotêmfilhos?—Não.—Masnãomencionouumasobrinha?—Mencionei,sim.ÉFredaStanton, ilhadaúnicairmãdemeumarido.

    Elaviveuconoscoduranteoitoanos.Mudou-senasemanapassada.—Ah,eoqueaconteceunasemanapassada?— Há tempos o ambiente em casa não era agradável, não sei o que

    aconteceu a Freda. Ela andava grosseira e impertinente, com um gênioterríveleacabouestourando.Resolveusairdecasaealugouumquartonacidade. Não a vejo desde então. Mr. Radnor diz que é melhor deixá-laacalmar-sesozinha.

    —QueméMr.Radnor?Mrs.Pengelleyficounovamenteenleada.—Oh,eleésóumamigo,umrapazmuitoagradável.—Háalgumacoisaentreeleesuasobrinha?—Absolutamentenada—elafoienfática.Poirotmudoudeassunto.— Presumo que a senhora e seu marido estão em boas condições

    econômicas,não?—Estamossim,razoavelmentebem.—Odinheiroéseuoudeseumarido?—Oh,étododeEdward.Nãotenhonenhumarendaprópria.— Madame, compreenda. Para sermos e icientes, precisamos ser

    francos.Temosqueprocurarummotivo.Seumaridonãoaenvenenariasópourpasser letemps!Sabedealgumarazãoqueopoderia levaradesejarlivrar-sedasenhora?

    —Háaquela louradesavergonhadaquetrabalhaparaele—avozdeMrs.Pengelleytraiuseurancor.—Meumaridoédentista,M.Poirot,efazquestãodeterumaassistentedeboaaparêncianumuniformebrancobemajustado,paraatenderosclienteseajudá-lonoconsultório.Ouvifalarqueandaenrabichadoporela,maselenegacomveemência.

  • —Quemcomproualatadeveneno,madame?—Meumarido,háumano.—Esuasobrinha,temalgumarenda?— Acho que recebe umas cinquenta libras por ano. Ficaria bem

    satisfeitaemvoltaredirigiracasaparaEdward,seeuoabandonasse.—Jápensounisso,então?—Nãotencionopermitirqueelemefaçadeboba.Asmulheresnãosão

    maisasescravassubmissasdopassado,M.Poirot.—Congratulo-a por seu espírito independente,madame.Mas sejamos

    metódicos,asenhoraretornaaPolgarwithhoje?— Volto, sim. Vim numa excursão. Saímos de lá às seis da manhã e

    voltamosnotremdascinco.— Bien! Não tenho nenhum caso importante no momento. Posso

    dedicar-meaoseupequenoenigma.Amanhã ireiaPolgarwith.Asenhorapoderia apresentar omeu caroHastings como um parente distante, ilhode um primo em segundo grau, e eu serei o seu excêntrico amigoestrangeiro. Nesse meio tempo, só coma o que for preparado por suasprópriasmãos,ousobsuasupervisão.Temconfiançaemsuaempregada?

    —TenhocertezadequeJessieéumaótimamoça.—Atéamanhã,então,madame.Nãopercaoânimo.Apósdespedir-sedasenhora,Poirotvoltoupensativoàsuacadeira.Não

    estava porém tão absorto em seus pensamentos que deixasse de notarduasminúsculaspenasarrancadasdoboápelosdedosnervososdadama.Recolheu-asmeticulosamenteecolocou-asnacestadepapéis.

    —Oqueachadestecaso,Hastings?—Asituaçãopareceseria.—Certamente,seassuspeitasdela.foremprocedentes.Masnãoserão

    fantasias? Pobre do marido que comprar uma lata de preparado paramatar ervas daninhas, nos dias de hoje! Se sua mulher for detemperamentonervosoesofrerdegastrite,estaránumaenrascada!

    —Essaésuaopiniãosobreoassunto?—Voilà, eu não sei, Hastings. Mas o caso me interessa, interessa-me

    muitíssimo. Julgar-se-iaumcasobanal,dehisterismo.MasentretantoMrs.Pengelley não parece o tipo de mulher histérica. Sim, se não estouenganado, temosaquiumdolorosodramahumano.Diga-me,Hastings,em

  • sua opinião, quais são os sentimentos de Mrs. Pengelley em relação aomarido?

    —Talvezlealdade,mescladaaomedo—sugeri.—Entretanto,normalmenteumamulherécapazdeacusaraqualquer

    pessoa no mundo com exceção do marido. Ela manterá sua crença nohomemqueamacontratodasasevidências.

    —Aexistênciaaquideumaoutramulhercomplicaoquadro.—Éverdade,aafeiçãopodetransformar-seemódio,soboestímulodociúme.Masoódioalevariaàpolíciaenão

    a mim. Ela iria querer provocar um escândalo. Não, vamos usar nossaspequenascélulascinzentas.Porqueelameprocurou?Paraqueprovassequeestavaerrada,ouparaqueprovassequeestava certa?Ah,aquitemosalgoquemeescapa,ofatordesconhecido.SeráanossaMrs.Pengelleyumasoberba atriz? Não, poderia jurar que foi sincera, e portanto estouinteressado.VejaohoráriodostrensparaPolgarwith,porfavor.

    O trem mais conveniente para nós saía de Paddington à uma ecinquenta e chegava a Polgarwith logo depois das sete horas. A viagemdecorreusemincidentes,eacordeideumagradávelcochiloparadepararcomapequenaesombriaestação.LevamosnossasmalasaoDuchyHotel,edepoisdeuma ligeira refeição,Poirot sugeriuquesaíssemospara fazerumavisitaaminhapretensaprima.

    AcasadosPengelleys icavaumpoucoafastadadaestrada,portrásdeumjardimantiquadoeaprazível.Abrisanoturnatrazia-nosoperfumedosgoivos e dos resedás, e era quase impossível associar ideias de violênciacomesseambienteencantador.Poirottocouacampainhaegolpeouaportacom a aldrava. Como ninguém respondesse, tocou novamente. Desta vez,após umbreve intervalo, uma empregada de olhos vermelhos, soluçandoviolentamente,abriu-nosaporta.

    — Gostaríamos de verMrs. Pengelley— explicou Poirot.— Podemosentrar?

    Amoçanosolhouespantada.A inal,comfranqueza,perguntou-nos:—Então ainda não sabem? Ela estámorta. Faleceu esta noite, há umameiahora.

    Atordoados,ficamosolhandoparaela,paralisados.—Dequeelamorreu?—pergunteifinalmente.— Aposto quealguém sabe — e ela deu uma espiada por sobre o

  • ombro.—Senãofossepelofatodealguémprecisarvelarapatroa,eufariaasmalas agoramesmo e iria embora.Nãome compete dizer nada, e nãovou dizer nada, mas todomundo sabe. A cidade toda comenta. E seMr..Radnor não escrever para a polícia, alguém o fará, não importa o que odoutordiga.Acasonãoviopatrãomexendoessanoitenalatadeveneno?E ele pulou quando viu que eu estava olhando! E o mingau da patroaestavaalijuntinhonamesa,

    à espera dela! Eu é que não como nem mais um pedacinho de pãoenquantoestivernessacasa,nemquemorradefome!

    —Ondemoraomédicoqueatendeusuapatroa?— É o Dr. Adams. Mora na segunda casa da outra quadra na High

    Street.Poirotretirou-sebruscamente.Estavamuitopálido.—Paraalguémquenãoiadizernada,aquelamoçafalouumbocado—

    comentei.Poirotbateucomopunhofechadocontraapalmadamão.— Fui um imbecil, um imbecil criminoso, Hastings! Vangloriando-me

    dasminhas pequenas células cinzentas, e deixei um ser humanomorrer,umavidaquepoderiatersidosalva.Nuncaimagineiquetalcoisapudesseocorrer tão cedo. Que o bom Deus me perdoe, mas na verdade nemacreditei que pudesse mesmo acontecer. A história dela me pareceufantasiosa.Bem,chegamos.Vamosveroqueomédicopodenosadiantar.

    ODr.Adamseraomédicorural típico,cordialecorado,dosromances.Recebeu-noscompolidez,masàprimeiramençãodenossopropósito,seurostoficouroxo.

    — É uma idiotice, uma completa e total idiotice! Por acaso nãoacompanhei a doença? Foi gastrite, pura e simples gastrite. Esta cidade éum poço de mexericos. Um monte de velhas tagarelas se reúnem einventam essas histórias fantásticas. De tanto lerem esses jornaissensacionalistas, não sossegarão enquanto não descobrirem umenvenenamentoaquimesmo.Bastaumalatadeinseticidaejáestãovendoum envenenador em ação! Eu conheço Edward Pengelley, ele nãoenvenenaria nem o cachorro de sua avó! E por que haveria de querermataraesposa?Dê-meummotivo.

    — Há um fato que talvez o senhor desconheça, doutor — e muitoresumidamente, Poirot deu-lhe uma ideia da visita de Mrs. Pengelley.

  • Ninguémpoderia icarmaisespantadoqueoDr.Adams.Seusolhosquasesaltaramdasórbitas.

    — Que Deus me proteja! — ele exclamou. — A pobre mulher deviaestarmaluca.Porqueelanãomefalou?Eraomaisrazoável.

    —Talvezosenhorrissedesuasideias.—De formaalguma!Achoquesouumapessoadeespírito lexível,de

    ideiasarejadas.Poirot olhou para ele e sorriu. O médico estava evidentemente mais

    perturbado do que queria admitir. Quando deixamos sua casa, Poirotsoltouumagargalhada.

    —Eleéobstinadocomoumamula.Dissequeégastrite,etemquesergastrite.Mesmoassim,nãoestátranquilo.

    —Quefaremosagora?—Vamosvoltaràestalagemenosprepararparaumanoitedehorror

    naquelascamasdeprovíncia.Acamainglesaordináriaédecausarpena!—Eamanhã?— Rien à faire. Voltaremos a Londres e aguardaremos os

    acontecimentos.— Onde está sua ousadia? — disse eu desapontado. — E se não

    acontecernada?—Vaiacontecer!Eulheprometo.Ovelhomédicopodeassinartodosos

    atestados de óbito domundo que não impedirá as línguas de falarem. Epodetercertezadequefalarão.

    TomamosotremparaLondresàsonzehorasdamanhãdodiaseguinte.Antes de irmos para a estação, Poirot manifestou o desejo de ver MissFreda Stanton, a sobrinha que a morta mencionara. Achamos comfacilidade a casa onde alugara um quarto. Em sua companhia estava umjovemaltoemorenoquenosapresentoucomoMr.JacobRadnor.

    Miss Freda Stanton era uma linda moça, uma beleza típica daCornualha, de cabelos e olhos escuros e faces coradas. O brilho de seusolhostraíaumgênioviolentoqueseriapoucoprudenteprovocar.

    —Pobre titia—disseelaquandoPoirot seapresentoueexplicousuamissão.—Queinfelicidade!Passeiamanhãlamentandonãotersidomaiscompreensivaepaciente.

    —Vocêaguentoumuitacoisa,Freda—interveioRadnor.

  • —É verdade, Jacob,mas conheçomeu gênio estourado. A inal era sóuma tolice dela, devia ter achado graça e não ter-me importado.Naturalmentetambémeratolicesuaacharquetitioaestavaenvenenando.Elapassavamalapóstodoalimentoqueelelheoferecia,mastenhocertezade que era só sugestão. Pensava que iria sentir-semal e acabava por sesentirmalmesmo.

    —Qualfoiacausadesuadesavençacomsuatia,mademoiselle?Miss Stanton hesitou, olhando para Radnor. O jovem percebeu a

    indireta:—Preciso ir, Freda, vejo-a estanoite.Adeus, senhores. Suponhoqueestãoacaminhodaestação,nãoé?

    PoirotrespondeuafirmativamenteeRadnorsaiu.— A senhorita está noiva? — perguntou Poirot com um sorriso

    malicioso.FredaStantoncoroueadmitiuqueeraverdade.—Efoiporissoquebrigueicomtitia—elaacrescentou.—Elanãoaprovavaocasamento?—Nãoerabemisso.Sabe,ela...—amoçahesitou.—Sim?—encorajou-aPoirotdelicadamente.— Parece-me uma coisa terrivelmente desagradável dizer isto dela,

    agoraqueestámorta,masnuncaentenderá,senãolhecontar.TitiaestavacompletamenteapaixonadaporJacob.

    —Éverdade?—É, não é um absurdo? Ela tinhamais de cinquenta e ele ainda não

    tem trinta! No entanto ela estava enrabichada por ele. Precisei dizer-lheclaramente que era em mim que ele estava interessado. Ela icoutranstornada,nãoqueriaacreditarde formaalguma, e foi tãogrosseiraeofensiva que eu perdi a cabeça, Conversei com Jacob sobre o assunto econcordamosqueeramelhoreumeafastarumpouco,atéela recobraracalma.Pobretitia,achoqueelanãoestavamuitoequilibrada,também.

    —Realmente,éoqueparece.Obrigada,mademoiselle, por ter sido tãofrancacomigo.

    Paraminhasurpresa,Radnorestavaanossaesperaembaixo,narua.—PossoadivinharoqueFredaestavalhecontando—disseele.—Foi

    algomuito desagradável, iquei extremamente embaraçado, como podemimaginar.Nemprecisodizerquenãocolaboreiabsolutamenteparaisso.A

  • princípio iquei satisfeito com suas atenções, imaginei que a velhaaprovasse minhas intenções em relação a Freda. O caso todo foilamentável,eextremamentedesagradável.

    —QuandoosenhoreMissStantonpretendemsecasar?—Embreve,espero.M.Poirot,vouserfrancoagoracomosenhor.Sei

    umpoucomaisdoqueFreda.Elaacreditaqueotioéinocente,maseunãotenho tanta certeza. Mas uma coisa lhe digo: vou manter minha bocafechadasobreesseassunto.Deixemosascoisascomoestão.Nãoqueroqueotiodeminhamulhersejajulgadoeenforcadoporassassinato.

    —Porquenoscontatudoisso?— Porque ouvi falar no senhor, e sei que é um homem inteligente. É

    muitopossívelqueapresenteumaacusação contra ele.Mas faço-lheumapergunta:dequeadiantará?Apobremulhernãolucraránadacomisso,eseriaaúltimaaterdesejadotalescândalo.Ora,elavirarianatumba,sóempensar.

    —Talvezosenhortenharazão.Gostariaentãoqueeuabafasseocaso?—Eraaminhaideia.Admitocomfranquezaqueépormotivosegoístas.

    Tenho minha reputação a proteger, minha alfaiataria está agora sefirmando.

    —Amaiorpartedoshomenséegoísta,Mr.Radnor,emboranemtodosadmitam o fato tão francamente. Farei o que me pede, mas para sersincero,nãocreioqueconsigaabafarocaso.

    —Porquenão?Poirotergueuumdedoemadvertência.Eradiadefeira,epassávamos

    pelomercado.Umburburinhoanimadoenchiaoar.—A voz do povo, eis omotivo,Mr. Radnor. Ah, precisamos correr ou

    vamosperderotrem.—Muito interessante, não acha, Hastings?—disse Poirot enquanto a

    composição resfolegava para fora da estação. Ele tirara do bolso umpequeno pente e ummicroscópico espelhinho e arranjava o bigode, cujasimetriaforaligeiramenteafetadadurantenossacorrida.

    — Se você acha... — disse-lhe eu. — Para mim é um caso sórdido edesagradável.Nãovejonenhummistérioaqui.

    —Concordo.Nãohámistério.—Achaquepodemosaceitaraversãodamoçasobreaextraordinária

    paixãodatia?Parece-mepoucoverossímil,elaeraumamulhereducadae

  • respeitável.—Nadaháde extraordinárionessapaixão, é um fatobanal. Se ler os

    jornais com. atenção, verá quantas vezes uma respeitável e educadasenhora dessa idade abandona o marido com o qual viveu vinte anos, ealgumas vezes todos os ilhos, para ligar sua vida à de umhomemmuitomaisjovemdoqueela.Vocêadmiralesfemmes,Hastings.Derrete-sediantedetodasasmulheresbonitasquetêmobomgostodelhesorrir,masnadasabe sobre a psicologia delas.No outono da vida de umamulher semprechega o momento de loucura em que ela sente fome de. romance, deaventura, antes que seja tarde demais. E não é por ser a esposa de umprósperodentista,numaaldeiarural,queescaparádessesentimento!

    —Evocêcrê...—Queumhomemastutopodetirarpartidodessemomento.— Não considero Pengelley um homem astuto — comentei. —

    Despertou os mexericos de uma cidade inteira. Mas suponho que tenharazão, deve ter sido por uma in luência que os dois únicos homens quesabemdealgumacoisa,Radnoreomédico,queremabafarocaso.Gostariadeterconhecidoosujeito.

    —Éfácil.Voltepelopróximotremeinventeumadordedente.Lancei-lheumolharperscrutador.—Gostariadesaberoqueachoudetãointeressantenessecaso.—Meuinteressepodeserresumidoporumcomentárioseu,Hastings.

    Lembra-se de ter dito, após conversarmos com a empregada, que paraalguémdispostoanãodizercoisaalguma,elafalaraumbocado?

    —Ah!— izeu,aindanoar,einsistiemminhacensuraanterior.—PorquenãotentouverPengelley?

    —Monami,concedo-lheumprazodetrêsmeses.Depoispodereivê-loàvontade,naprisão.

    Pela primeira vez julguei que os prognósticos de Poirot não serealizariam. O tempo passou e não ouvimos mais falar no caso daCornualha. Outros assuntos nos ocuparam, e quase esquecera a tragédiados Pengelley, quando um pequeno parágrafo nos jornais atraiu minhaatenção. Fora expedido ummandado para a exumação do corpo deMrs.PengelleypeloMinistériodeNegóciosInteriores.

    Poucosdiasdepois, o “MistériodaCornualha”eraassuntode todososjornais. Aparentemente osmexericos nunca haviam diminuído, e quando

  • fora anunciado o noivado do viúvo com Miss Marks, sua assistente, ofalatório do povo indignado recrudescera, até que uma petição foraenviada aos canais competentes e o corpo fora exumado. Encontraramgrandesquantidadesdearsênico,eMr.Pengelleyforapresoeacusadodoassassinatodaesposa.

    Poirot e eu assistimos às audiências preliminares. Os testemunhosforam os esperados. O Dr. Adams admitiu que os sintomas deenvenenamento por arsênico podiam ser facilmente confundidos com osdeumagastrite.Operito legaltestemunhou;acriadaJessieforneceuumaenxurradade informações,amaiorpartedasquais foirejeitada,masquecertamente fortaleceu o caso contra o prisioneiro. Freda Stanton admitiuqueatiapassavamalquandoingeriacomidapreparadapelomarido.JacobRadnordeclarouqueaoentrarnacopa,semseanunciar,viraomarido,nodia damorte deMrs. Pengelley, colocar a lata do exterminador de ervasdaninhas na prateleira, junto ao prato demingau da esposa! EntãoMissMarks, a loura assistente, fora chamada, e aos prantos admitira quehouvera “algo” entre ela eopatrão, oqualhaviaprometido casar-se comela na hipótese damorte damulher. Pengelley reservou sua defesa, é ojulgamentofoimarcado.

    JacobRadnoracompanhou-nosàhospedaria.—Euestavacerto, comovê—dissePoirot.—Avozdopovofalou,ecomveemência.Estecasonãopoderiaserabafado.

    —É,temrazão—suspirouRadnor.—Vêalgumachancedeleescapar?—Bem,elereservousuadefesa.Podeteralgumtrunfonamanga,como

    dizemvocêsingleses.Quernosfazercompanhia?Radnoraceitouo convite.Pedidoisuísques comsodaeumaxícarade

    chocolate. Este último pedido foi recebido com um ar consternado, e tivedúvidasseseriaatendido.

    —Tenhomuitaexperiêncianessesassuntos—prosseguiuPoirot.—Sóvejoumaescapatóriaparaonossoamigo.

    —Equalé?— A sua assinatura nesse papel — e com um gesto rápido e

    inesperado, como um prestidigitador, Poirot apresentou-lhe uma folhadatilografada.

    —Oqueéisso?—SuaconfissãodoassassinatodeMrs.Pengelley.

  • Houveummomentodesilêncio,eentãoRadnordeuumarisada.—Osenhordeveestardoido!—Não,meuamigo,não estoudoido.O senhor transferiu-separa essa

    cidade e iniciou seu pequeno negócio. Mas tinha pouco capital, e Mr.Pengelley estava numa bela situação. Conheceu a sobrinha dele e elasimpatizoucomosenhor.Masopequenodotequetalvezrecebessedotio,no casamento, era muito pouco para si, e decidiu livrar-se tanto do tio,comodatia.Comoúnicaherdeira,elareceberiaodinheiroéosenhorseriaumhomemrico.

    —Quantaastúciaosenhorempregou!—prosseguiuPoirot..—Cortejoua mulher de meia-idade, sem atrativos, até que se transformasse numaescrava obediente. Fê-la descon iar do marido. Sob. sua in luência eladescobriu que ele a traía, e depois passou a descon iar de que estavasendo envenenada. O senhor ia à casa deles com frequência, e teveoportunidade de introduzir arsênico em sua comida, tendo entretanto ocuidado de só agir quando o marido estava presente. Sendomulher, elanãoconservousuassuspeitassóparasi;faloucomasobrinha,eétambémprovável que tenha falado às amigas. Sua única di iculdade estava emcortejar as duas mulheres ao mesmo tempo, sem que descon iassem dasuafalsidade.Masnemisso foimuitodi ícil.Explicouàtiaquecortejavaasobrinha para afastar as suspeitas do marido. E a jovem, que nuncaconsiderouatiacomorival,foifácildetranquilizar.MasentãoMrs.

    Pengelleyresolveumeconsultar,semnadalhedizer.Seelaobtivesseacerteza de que o marido estava tentando envenená-la, sentir-se-iajusti icadaemabandoná-lo,emligaravidadelaàsua,oqueacreditavaserseudesejo.E issoabsolutamentenãoconvinhaaosenhor!Nãoqueriaumdetetive estorvando-lhe os passos. Um momento favorável se apresenta:Mr.Pengelleytrazomingauparaaesposaeosenhorintroduzadosefatal.O resto foi fácil. Aparentemente ansiosopor abafar o caso, o senhor sub-repticiamentefomentaofalatório.MasnãocontoucomHerculePoirot,meuastuciosojovem!

    Radnor estava mortalmente pálido, mas ainda tentou manter umaatitudedetranquilidade.

    —Muitointeressanteeengenhoso,masporqueestámecontandotudoisso?

    —Porquenãorepresentoalei,monsieur,esimMrs.Pengelley.Porela,dou-lhe uma chance de escapar. Assine este papel e terá vinte e quatro

  • horas de dianteira, vinte e quatro horas antes que eu leve o assunto àpolícia.

    Radnorhesitou.—Osenhornãopodeprovarnada.— Não posso? Eu sou Hercule Poirot. Olhe pela janela,monsieur. Vê

    aquelesdoishomensnarua?Elestêmordensdenãoperdê-lodevista.Radnorlevantouumadaspersianaserecuoucomumimpropério.—Vê,monsieur?Éasuaúnicachance.—Quegarantiapossoterdeque...—Quemantereiaminhapalavra?Dou-lheapalavradeHerculePoirot.

    O senhor vai assinar? Ótimo. Hastings, quer ter a bondade de levantar apersianadaesquerda?ÉosinalparaquedeixemMr.Radnorirempaz.

    Pálido, soltando impropérios, Radnor saiu apressadamente. Poirotbalançouacabeçalentamente:

    —Éumcovarde!Comoeuesperava.— Poirot, desta vez não agiu com correção — protestei. — Sempre

    declarou-se contra o sentimentalismo. E agora, a esse pretexto, deixaescaparumpoderosoassassino!

    —Nãofoiporsentimentalismo.Foipornecessidade—retrucouPoirot.— Meu amigo, não percebeu que não tínhamos nem uma única provacontra ele? Queria que me erguesse e convencesse doze impassíveiscidadãos de que eu,Hercule Poirot,sabia a verdade?Eles ririamdemim.Minha única oportunidade era assustá-lo e obter sua con issão. Aquelesdoisdesocupados,queestão lá fora, forammuitoúteis.Abaixeapersiana,Hastings,por favor.Nãohavia razãopara levantá-la. Foiparteda mise enscene. Bem, bem, devemosmanter nossa palavra. Eu disse vinte e quatrohoras, não foi? O pobreMr. Pengelley terá que suportarmais um dia desuplício, e bem omerece, pois quemmandou enganar a esposa? Sou umgrande defensor da família, como sabe.Mas tenho grande fé na ScotlandYard.Elesoagarrarão,monami.Elesoagarrarão!

  • AAventuradeJohnnieWaverly

    —O senhor pode compreender os sentimentos de umamãe— disseMrs.Waverly,talvezpelasextavez,lançandoaPoirotumolhardesúplica.Meu amigo, sempre solidário com as mães a litas, fez-lhe um gestotranquilizador.

    — Mas compreendo, madame. Compreendo perfeitamente. TenhaconfiançanoPèrePoirot.

    —Apolícia...—principiouMr.Waverly.Sua esposa o interrompeu: — Não quero mais nada com a polícia.

    Con iamosnela,evejaoquesucedeu.Masouvi falar tantoemM.Poiroteem sua maravilhosa perícia, que achei que poderia nos ajudar. Ossentimentosdeumamãe...

    Poirotcortouessassúplicascomumgestoeloquente.AemoçãodeMrs.Waverly era obviamente genuína, mas destoava de seu rosto arguto, detraços decididos. Quando soube mais tarde que era ilha de umpreeminentelíderdaindústriametalúrgicadeBirmingham,quedeboydeescritórioascenderaàsuaimportanteposição,

    compreendiqueelaherdaramuitasdasqualidadespaternas.Mr.Waverlyeraumhomemalto, robustoe jovial.Ficouempécomos

    pésbemseparados,umespécimetípicodesenhorrural.—Suponhoqueouviufalarnocaso,M.Poirot?Aperguntaeraquasesupér lua.Jáháalgunsdiasosjornaissófalavam

    no sensacional rapto do pequeno JohnnieWaverly, o ilho e herdeiro detrêsanosdeMarcusWaverly,Esq.,deWaverlyCourt,Surrey,deumadasfamíliasmaisantigasdaInglaterra.

    — Conheço os fatos principais, naturalmente. Mas peço lhe que mecontetodaahistória,monsieur,Ecomdetalhes,porfavor.

    —Bem, tudocomeçouhádezdias,quandorecebiumacartaanônima.Sãoumascoisasnojentas,não?Masnãolhedeiatenção.Omissivistatinhaa audácia de exigir o pagamento de vinte e cincomil libras, vinte e cincomil,M.Poirot,poisemcasocontrárioraptariaJohnnie.Naturalmentejogueio papel na cesta do lixo sem pensar duas vezes. Julguei fosse uma

  • brincadeira de mau gosto. Cinco dias depois recebi outra carta: “Se nãopagar, seu ilho será raptado no dia vinte e nove.” Isso foi a vinte e sete.Adaestavapreocupada,maseunãoconseguialevaroassuntoasério.Quediabos, estamos na Inglaterra. Ninguém anda por aí raptando criançasparaexigirresgate!

    —Nãoécomum,realmente—concordouPoirot.—Continue,monsieur.— Mas Ada não me deixou em paz, e sentindo-me um perfeito tolo

    expusoassuntoàScotlandYard.Elesnãolevaramocasoasério.Comoeu,acharam que era alguma brincadeira de mau gosto. No dia vinte e oitorecebiumaterceiracarta:“Vocênãopagou.Perderáseu ilhoaomeio-diadeamanhã,diavinteenove.Teráquepagarcinquentamilparareavê-lo.”Fui novamente à Scotland Yard. Desta vez icarammais impressionados.Admitiram que as cartas tivessem sido escritas por algum lunático queprovavelmente tentaria algum golpe na hora aprazada. Asseguraram-meque tomariam todas as precauções possíveis. O inspetor McNeill e seushomensiriamaWaverlynodiaseguinteeficariamapostos.

    —Volteiparacasabemmaistranquilo—prosseguiuele.—Masaindacom a sensação de estar sob um cerco. Dei ordem para que nenhumestranho fosse admitido na casa, e para que ninguém saísse. A noitedecorreu sem incidentes. Mas de manhã, minha esposa teve uma graveperturbação. Alarmado por seu aspecto, chamei o Dr. Daker, que icouperplexo ante seus sintomas e, embora hesitasse em sugerir umenvenenamento, pude perceber o que estava em sua mente. Ele metranquilizouquenãohaviamaiores perigos,mas ela deveria permanecerna cama dois dias. Quando voltei a meu quarto, tive a surpresa deencontrar um bilhete preso a meu travesseiro. Na mesma caligra ia dosdemais, continha trêspalavras: “Aomeio-dia.”M.Poirot, iquei indignado!Alguém,dentrodaminhacasa,estavaenvolvidonocaso.Deviaserumdosempregados. Reuni-os e interroguei-os. Eles se mantiveram irmes. MissCollins, a dama de companhia de minha esposa, informou-me ter visto ababádeJohnniesaindodapropriedadedemanhãbemcedo.Acusei-aeelaconfessou.Deixaraomeninocomsuaajudanteesaíraparaencontrarumamigo, algum namorado. Que falta de compostura! Ela negou ter preso obilhete ao travesseiro, e talvez estivesse falando a verdade, não sei. Masjulguei que não podia correr o risco da própria babá da criança estarmetida na trama. Não havia dúvida de que um dos empregados estava.Finalmenteperdiapaciênciaedespedia tur-ma, toda,babáecompanhia.Dei-lhesumahoraparafazerasmalasedeixaracasa.

  • As bochechas vermelhas de Mr. Waverly icaram ainda mais coradasquandoelerecordousuajustaindignação.

    — Sua decisão não terá sido pouco prudente,monsieur? — sugeriuPoirot.—Erabempossívelqueestivesseagindodeacordocomosplanosdoinimigo.

    Mr.Waverlyolhou-oespantado.—Nãovejocomo.Minhaideiafoidemandartodaacriadagempassear.

    TelegrafeiaLondresparaquememandassemnovoscriadosànoite.Nesseínterim só estariam na casa pessoas daminha con iança: a secretária deminha esposa, Miss Collins, e o mordomo, Tredwell, que me acompanhadesdeaminhainfância.

    —EestaMissCollins,háquantotempoestáemsuacasa?— Só um ano — disse Mrs. Waverly. — Ela tem sido uma auxiliar

    inestimávelcomodamadecompanhiaesecretária,etambémadministraacasacommuitaeficiência.

    —Eababá?—Estavaconoscoháseismeses.Tinhaexcelentes referências.Apesar

    dissonuncasimpatizeirealmentecomela,emboraJohnnieaadorasse.— Mas pelo que entendi, ela já havia partido quando ocorreu a

    catástrofe,nãofoi?MonsieurWaverly,querterabondadedecontinuar?Mr.Waverlyprosseguiu:—OinspetorMcNeillchegouporvoltadasdez

    e meia. A essa altura, os empregados já se haviam retirado da casa. Oinspetor declarou-se satisfeito com as providências que tomáramos ecolocou vários homens no parque guardando todos os acessos à casa, eassegurou-me que, se tudo não fosse uma brincadeira, sem dúvidanenhumaapanharíamosmeumisteriosomissivista.Johnnie,eueoinspetorfomos para o aposento que chamamos de sala do conselho, e o inspetortrancou aporta à chave.Há ali umgrande relógiodepêndulo e confessoquecomeceia icarnervosíssimoquandoosponteirosseaproximaramdasdoze.Quandoorelógiobateuaprimeirabadalada,agarreiJohnnieaocolo.Tinha a impressão de que alguém poderia cair do céu para pegá-lo.Quando soou a última badalada, ouvimos um alvoroço do lado de fora,gritos e homens correndo. O inspetor levantou a vidraça e um guardaaproximou-seofegante.“Nósopegamos,senhor.Eleestavaesgueirando-seentreosarbustos.Tinhaclorofórmioemseupoder”—disseele.Corremospara o terraço onde dois guardas seguravam um camarada mal vestidocomardemalfeitor,quesedebatianumainútiltentativadeselibertar.

  • —Umdospoliciaisentregou-nosumpacotequearrancoudomeliante—prosseguiuMr.Waverly.—Continhaumrolodealgodãoeumvidrodeclorofórmio. Fiquei indignado. Havia um bilhete endereçado a mim.Rasguei o envelope e li: “Você devia ter pago. Para recuperar o seu ilhoteráquenosentregarcinquentamillibras.Apesardetodasasprecauçõeselefoiraptadoàsdozehorasdodiavinteenove,comoprometi.”Deiumagargalhada, de puro alívio, mas nesse mesmo instante, ouvi o ronco domotordeumcarroeumgrito.Vireiacabeçaeviumcarrocinzento,baixoe comprido disparando numa velocidade louca em direção ao portão sul.Fora o homemque estava à direção quem gritara,mas o queme deixouparalisado de horror foi a visão de uma cabecinha loura a seu lado. EraJohnnie.

    Oinspetorsoltouumimpropério.—“Omeninoestavaaqui,nãofazuminstante”—elegritoueolhouparanós.Estávamosostrêslá:eu,TredwelleMissCollins.—“Quandooviupelaúltimavez,Mr.Waverly?”

    Eu me concentrei, tentando me recordar. Quando o guarda noschamara, eu saíra correndo com o inspetor, esquecendo-me de Johnnie.Nesse instante o relógio do campanário da igreja começou a bater.Estremecemos. Com uma exclamação o inspetor tirou o seu relógio dobolso.Eramexatamentedozehoras.Decomumacordocorremosàsaladoconselho.Orelógiodepênduloacusavamaisdezminutos.Alguémdevetê-lo adiantado deliberadamente, pois ele sempre marcara as horas comabsolutaprecisão.

    Mr.Waverlycalou-se.Poirotsorriueajeitouumpequenotapetequeopaiansiosoafastaradolugar.

    —Umproblemainteressante,obscuroeatraente—murmurouPoirot.— Farei as investigações com todo prazer. Certamente o golpe foiplanejadoàmerveille.

    Mrs.Waverlyendereçou-meumolhardecensura.—Masomeumenino?—suavozeraumqueixume.Poirotapressadamenteretomouumarsérioecompungido,assumindo

    umaexpressãosolidária:—Eleestáemsegurança,madame.Eleestábem.Fiquetranquila,esses

    meliantesterãotodoocuidadocomele.Acriançarepresentaagalinhadosovosdeouroparaeles.

    —Mr.Poirot,estoucertadequesóháumasaída:pagar.Aprincípiofuicontra.Masagora...Meussentimentosmaternos...

  • —Mas nós interrompemos a história domonsieur— interveio Poirotapressadamente.

    —Orestoo senhordevesaberpelos jornais—disseMr.Waverly.—Naturalmente o inspetor McNeill correu logo ao telefone e enviou umadescrição do carro e dos seus ocupantes. A princípio julgamos que opegaríamos.Umcarro,correspondendoàdescrição,comumhomemeumgaroto pequeno, havia atravessado várias aldeias, evidentementedirigindo-separaLondres.Haviamparadoumavez,etranseuntesnotaramqueomeninochoravaepareciatermedodeseuacompanhante.Quandooinspetor McNeill me deu a notícia de que o carro fora interceptado edetidosseusocupantes,quasedesmaieidealívio.Masosenhorconheceosacontecimentos posteriores. Omenino não era Johnnie, e omotorista eraum ardoroso fã de crianças, que levava para passear um menino queapanhara nas ruas de Edenswell, uma aldeia a quinze milhas de nossapropriedade.Graçasaoengano,àexcessivacon iançadapolícia,perdemostodasaspistas.Senãotivesseminsistidocomtantapersistênciaemseguirocarroerrado,talveztivéssemosachadoomenino.

    — Acalme-se,monsieur. A polícia é uma organização de homenscorajososeinteligentes.Oerroquecometeramémuitonatural.Notodofoiuma trama inteligente. Soube que o homem preso no parque insiste emdefender-se negando tudo. Declara que o bilhete e o pacote foram-lheentregues para levar aWaverly Court por um homem que lhe deu umanota de dez xelins e lhe prometeu outra se entregasse a encomendaexatamenteaosdezminutosparaomeio-dia,Eledeveriaaproximar-sedacasapeloparqueebaternaportalateral.

    —Nãoacreditoemumaúnicapalavra—disseMrs.Waverly,revoltada.—Étudomentira.

    — En verité, não é uma história convincente — disse Poirot com arpensativo.—Mas até agora elemantém com irmeza suas declarações, eouvi falar que também fez certa acusação, não foi?— e dirigiu um olharinquiridorparaMr.Waverlyquetornouaficarcorado.

    —Ocamaradateveaimpertinênciade ingirterreconhecidoTredwellcomoohomemquelheentregaraopacote,“sóqueodesgraçadoraspouobigode”,disseele.Imaginem,Tredwell,quenasceuemnossapropriedade!

    PoirotdeuumpequenosorrisoàindignaçãodeMr.Waverly.—Masfoiosenhorpróprioquemsuspeitoudequeummoradordesu