o caráter oculto da saúde

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  • 5/11/2018 O Carter Oculto da Sade

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    No temos apenas a ciencia das doencas.jaque a doencanaoexiste sem saude, Ambas pertencem aquilo que um medico temde saber ou ao que ele, com os meios da ciencia modema, procu-ra saber. Aqui estamos perante a pergunta nao respondida: 0 que esaude? Sabe-se, mais ou menos, 0 que sao as doencas, Elas pos-suem, por assim dizer, 0 carater insurrecional da "falta". De acor-do com 0 seu aparecimento, elas sao um objeto, algo que promo-ve uma resistencia, a qual se deve quebrar. Pode-se colocar issosob uma lupa e julgar 0 grau de doenca atraves de todos os mo-dos que uma ciencia objetivante, em virtude da ciencia naturalmodema, colocou-nos a disposicao. No entanto, saude e algo quese subtrai a tudo isso de uma maneira peculiar. Sande nao e algoque se apresenta como tal num exame, mas algo que existe jus- .tamente por se subtrair a um exame. Saude nao e, entao, algo deque temos sempre consciencia, e nao nos acompanha de formapreocupante como a doenca, Nao e algo que nos advirta ouconvi-de ao continuo autotratamento. Ela pertence ao milagre do autoes-quecimento.

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    A e xp erle nc la da m o rte

    ..Na nossa reflexao nao ocorre apenas uma simples trans-formacao da imagem da morte, como chegou ate n6s no de-correr de milhares de anos da mem6ria humana, seja na for-ma da Interpretacao das reliqioes ou na forma das organiza-coes da vida do ser humano. Trata-se de urn processo atualmuito mais radical e especifico, 0do desaparecimento da ima-gem da morte na sociedade moderna. Isso e evidentementeo que exige a nossa reflexao. Trata-se de algo que se poderiadenominar urn reiterado novo Iluminismo, que agora atingetodas as camadas da populacao, para a qual 0 que formaa base geral principal e 0 dorninio tecnol6gico da realidadecom 0auxflio dos deslumbrantes exitos da ciencia natural mo-derna e dos modernos meios de Informacao. Isso produziuuma desmitoloqizacao da morte.

    Para ser mais exato, melhor seria falar de uma desmitolo-gizac;ao da vida - e, com isso, tambern da desmitologizacaoda morte. Pois essa e a ordem 16gica atraves da qual 0novoIluminismo se difunde pela ciencia. Ha algo de fascinante nofa to de a ciencia moderna nao ver mais 0ponto de origem davida no universe como urn fato milagroso ou urn jogo impre-visivel do acaso. Ao inves disso, ela design a causalidades na-turais clentiflcas decisivas que, num processo de evolucaocompreendido sem minucias, conduziram it origem da vidano nosso planeta com todos os seus desenvolvimentos. Poroutro lado, nao se pode deixar de ter presente que a revolu-cao industrial e suas consequencias tecnicas transformaram,de fato, a experiencia da morte na vida dos seres humanos.Nao e apenas 0 cortejo funebre que desapareceu da paisa-gem urbana - durante 0 qual qualquer urn tirava 0 chapeu di-ante da majestade da morte. Ainda mais profundo e 0efeito

    A e xp er le nc la d a m o rte 6 9da efetiva anonimizacao do morrer nas cllnicas modernas.Ao lade da perda da representacao publica do acontecimen-to, surge com isso 0afastamento do moribundo e seus paren-tes do ambiente domestico e familiar. A morte fica assim in-serida numa empresa tecnica de producao industrial. Ao ob-servar essas mudancas, ve-se que 0morrer tornou-se, aindaque de urn ponto de vista negativo, urn dos inumeros proces-sos de producao da vida economica moderna, E, no entanto,talvez nao haja nenhuma outra experiencia na vida do ser hu-mano que descreva tao nitidamente os limites impostos aodominic moderno da natureza com 0 auxflio da ciencia e datecnica, Sao precisamente os enormes avances tecnicos al-cancados na preservacao, muitas vezes artificial, da vida quemanifestam 0 limite absoluto de nosso ser-capaz-de-fazer. 0prolongamento da vida acaba por se tornar, em geral, urn pro-longamento do morrer e uma estaqnacao da experiencia doeu. Ela culmina no desaparecimento da experiencla da mor-teoA moderna quimica dos anestesicos destitui da posse de simesma a pessoa que sofre. A manutencao artificial das fun-coes vegetativas do organismo t~nsforma os seres humanosnuma peca de urn processo mecanico. A pr6pria morte tor-na-se uma sentence dependente da decisao do medico quetrata 0 paciente. Ao mesmo tempo, tudo isso exclui os sobre-viventes pr6ximos do morto do interesse e da participacao noacontecimento irrevogavel, Mesmo a ajuda espir itual ofereci-da pelas igrejas frequentemente nao encontram acesso aosmoribundos e nem aos seus pr6ximos.

    No entanto, a experiencia da morte ocupa uma posicaobern central na hist6ria da humanidade. Poder-se-ia ate mes-mo afirmar: ela introduz 0 seu tornar-se-humano. Ate ondea nossa mem6ria humana alcanca, podemos ver 0fato de aspessoas enterrarem seus mortos como a caracterfstica indis-cutivel do modo de vida humano. Ja em epocas bern remotasos enterros eram realizados conferindo-se infinitos cuidadosatraves de cerimonias, aderecos e arte, reservados it honra dosmortos. Para 0 leigo e sempre uma surpresa saber que todasas fascinantes obras artisticas daquela epoca que n6s admi-ramos eram, na verdade, oferendas. Com isso, 0 ser humane

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    se diferenciade todos os outros seres vivos, t~o difereAciadocomo 0e atraves da posse do seu sistema de lmguagem. Maso surgimento daquela caracteristica talvez seja ate mesmo a_n-terior ao da linguagem. De qualquer modo, a documentacaodo culto aos mortos remonta a pre-historia,numa epoca bernanterior a da transrnissao de sistemas linguisticoshumanos.

    Certamente nao e possivel reconstruir a representacao demundo que ftmdamentava os antigos costumes funebres. Po-rem, seja qual podera ter sido a representacao de vida e mor-te presente nos cultos aos mortos nas diferent~sfases de nos-sa pre-historia, poder-se-a afirmar que eles tinhamalqo emcomum: todos exprimem a ideia de que as pessoas nao po-diam e nao queriam admitir 0nao-rnals-estar-aqul do morto,o fato de ele ser extinto,0seu deflnltivonao-rnais-pertencer aesse mundo. Nisso ha uma incontestavel indicacao da relacaoentre 0nosso sentimento consciente e autoconsciente de exis-tencia da vida e a incompreensibilidade da morte. Para qual-quer vivente ha algo de incompreensivel no fato de que essaconsciencia humana, que se projeta para 0 futuro, desapare-ca. E assim, 0acontecimento desse desaparecimento e algoassustador aos olhos daqueles que 0presenciam. Com belosversos poeticos, Hans Carossa expressa algo do autoentendi-mento da existencia da vidahumana e do sentimento dessaexistencia e do seu final.Os versos sao: "Nos nao 0 ouvimosquando a melodia divinasussurra, nos 0 escutamos somentea partir do momento que ela emudece".

    Considerando 0nosso mundo cultural esclarecido, faz sen-tide falar ate mesmo de uma repressao sistematica da morte.Basta lembrar como antigos ritos e ordens culturais reserve-yam a morte urn lugar solene na vida social e como as pes-soas proximas ao falecido permaneciam guarnecidas na ~idacoletivae na continuacao da vida atraves de suas praticascerimoniais. Algumacoisa disso ainda esta presente n~s ~iasde hoje - no entanto, manifestacoes como as das carpideirasdas antigas culturas, que representavam dramaticamente aslamentacoes de todos, certamente nao seriam concebiveis esuportaveis ao ser humane civilizadode hoje.

    A e xp erte nc ia da m o rte 71Por outro lado, e necessario entender a repressao damor-

    te como uma atitude primitiva propriamente humana do in-dividuo, que ele adota para a sua propria vida. Com isso, eleapenas se subordina aos esforcos da sabedoria total da natu-reza para se reunir nesta tarefa de fortalecer, de qualquer ma-neira, 0querer-existir da criatura, tao logo ela seja ameacadapelamorte. A forca das ilusoes, com as quais os doentes gra-ves ou moribundosse apegam a vontade de viver, fala umalinguagem inconfundivel. Tem-se de perguntar 0 que signifi-ca, afinal,0 saber sobre a morte. Existe algo como uma pro-funda relacao entre saber e morte, 0 saber acerca da propriafinitude, quer dizer, da certeza de que urn dia vamos morrer,e, por outro lado, 0impetuoso e urgente nao-querer-saber des-se tipo de consciencia.

    Numa profunda retnterpretacao da mais antiga tradlcaomitica, 0 traqico poeta grego.Esquilo, no seu drama de Pro-meteu, tratou da questao da motte e seu significado para avida humana. Prometeu, 0 amigo dos hornens, chama aten-c;aopara 0 fato de 0 seu merito para com 0 ser humane naoter sido tanto a dadiva do fogo e 0 dominio de todo 0 tipo dehabilidade Jigadaao fogo, mas ter Ihes retirado 0 saber acer-cadomomento da sua morte. Antes de Prometeu ter conferi-doaos homens 0 dom de dissimular a propria morte, eles te-riam vivido miseravel e inativamente em cavernas e naoteriam criado nada daquela obra cultural duradoura que osdistingue de todos os outros seres vivos.o sentido profundo dessa historia e que 0poeta questio-

    na0mite do dominio do fogo e 0despertar das habilidades aele Jigadas e reinterpreta a ultimae mais profunda rnotivacaodesse mite como, por assim dizer,a verdadeira dadiva. Comisso, ele supera 0 orgulho cultural do antigo lIuminismo, daformacomo isso se apresenta na formaplatonica colocada naboca de Protaqoras "Entendimento artistico e fogo" (Kunst-verstand und Feuer EVTqvoC; ooof ouv T T U p f , Prot. 321d).E a motlvacao atraves da referencia a morte que confere aprofundidade de sentido ao drama de Esquilo. Aquela dadivaconsiste no fato de a previsao do ser humane em relacao aoseu futuro emprestar ao seu futuro 0 carater de urn presente

    , !

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    72 o c ar at er o c ul to d a s au detao apreensivel que ele nao consegue mais conceber 0pen-samento do fim.Alguern tern futuro enquanto ele nao souberque ele nao tern futuro. A repressao da morte e a vontade deviver.Nessa medida, 0saber acerca da propria morte encon-tra-se sob condicoes estranhamente peculiares. Pode-se ques-tionar, por exemplo, quando a crianca aprende a conceber amorte. Eu nao estou certo se na psicologia moderna ha umaresposta mats oumenos segura para isso, a qual pelo menospara a sociedade esclarecida de nosso circulo cultural viessea ter validade. lsso, provavelmente, pertence a relacao descri-ta entre vida e repressao da morte de que 0 saber acerca doproprio ter-de-morrer permanece como que encoberto, mes-mo quando se fixalentamente como urn saber interne muitoprofundo no ser humane namedida em que ele se desenvol-ve. E mesmo onde0saber mais claro e maduro acerca damor-te proxima se faz sentir e nao se deixa mais ocultar, a vonta-de de viver e a vontade de futuro sao, conhecidamente, taofortes que eles nao estao mais preparados para executar nemmesmo as formas legaisde urn ultimodesejo. Outros, por suavez, tratam 0 dispor de algo que lhes e proprio, 0 qual eles fi-xam no ultimodesejo, quase como uma especie de confirrna-

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    7 4 o c ar at er o c ult o d a s au dedade quase insaciavel do ser humano, nao apenas pr:servarna memoria a forma do falecido, a qual durante 0penodo dadespedida foi transformada, mas tarnbem forjar, com seusaspectos produtivos e positives, algo como uf!1a :?r~a tr~ns-formada em ideal e, logo, em ideal imutavel, E diflcil de dizero que e esta experlencia de uma especie de presence alteradado falecido que surge com a despedida definitiva.

    A partir dessas formas secularizadas de memoria, aindase pode compreender os profundos impulsos presen~es atrasdas ideias religiosas do alern e, sobretudo, a necessidade deacreditar na imortalidade da alma e no reencontro no alem,Essa representacao crista, que encontra semelhante corres-pondencia em varies cultos paqaos, expressa claramente comoa essencia do ser humane parece exigir a superacao da mor-teo Aquilo que aos espiritos crentes vive como uma certezaInabalavel talvez seja experimentado por outros antes comouma saudade melancolica - mas em nenhuma parte e trata-do como algo sem Importancia que e facilmente desconsi-derado. E como se a repressao da morte, da maneira comoela pertence a propria vida, devesse ser reparada por aquelesque ficam como se Ihes fosse algo natural. A crenca r~ligiosae a pura secularidade unem-se para homenagear a majestadeda morte. As propostas do Iluminismo cientifico encontramno misterio da vida e da morte uma fronteira intransponivel.Mais: nessa fronteira ha a expressao de uma verdadeira solida-riedade entre todos os seres human os, porquanto todos de-fendem 0misterio como tal. Aquele que vive nao pode acei-tar a morte. Aquele que vive tern de aceitar a morte. Nos so-mos caminhantes da fronteira entre esse mundo e 0 alern,

    Ter-se-a de esperar que tal experlencia-limite, sobre a qualapenas as mensagens religiosas permitem uma transcende~-cia e urn olhar para 0outro lado, deixe aos pensamentos fi -losoficos pouco espaco para seus questionamentos, funda-mentos e etapas racionais - mas, sobretudo, ter-se-a de espe-rar que a filosofia possa pensar 0ser humane perante a mor-te sem frequentemente olhar 0alem religioso (seja promessade salvacao ou condenacao, como 0juizo final). No entanto,para aquilo que entre nos se designa filosofia, isso

    A e xp e rle n ela d a m a rie 7 5que, em geral, a questao filosoflca somente pode ser coloca-da da perspectiva do paganismo grego e do monoteismo ju-deu-cristao-maometano.

    Dessa maneira, 0pensamento grego deve se questionar:se 0insepa ravel pertencimento mutuo entre vida e morte e suarigorosa exclusao mutua carregam todo 0 peso do factual,como e possivel pensar 0divino?-Na qualidade de imortal , oude imortais, os deuses devem ser, ao mesmo tempo, 0maiselevado, no sentido mais eleva do de ser vivo. Isso conduz 0pensamento a diferenciar no proprio ser vivo entre 0que naomorre e 0 que experimenta a morte: a alma e consideradacomo imortal e, assim, com a ceracterizacao atraves aa mes-rna palavra, athanatos, divide tambern a essen cia com osdeuses, com os imortais. 0 primeiro pensador grego que tra-tou com audacia da uniao interna nao apenas entre vida emorte, mas tarnbern de imortais e mortais, foi provavelmenteHeraclito em alguns de seus versos enigrnatlcos. Urn deles dizassim: "Imortais mortais, mortais imortais - vivos neste morrer,neste viver mortos" (Frag. 62). Seja como for que se pense asolucao desse enigma, ela nao e possivel sem que se pense apsique, a alma, na qual se consome a pessoa que se exclui a , Isi propna.o Fedon de Platao trata dessa consequencia naquelaconversa que 0 Socrates condenado a morte mantern com

    seus amigos no dia, em cuja noite ele tera de beber a taca deveneno. A serenidade religiosa com a qual Socrates analisa erebate a imortalidade da alma e a mais forte consolacao quea crianca que ha em nos, a qual nao se conforma completa-mente com nenhum argumento, encontrou no mundo anti-go. Com isso, 0Socrates prestes a morrer tornou-se urn exem-plo para todas as gerac;6es posteriores. Eu lembro aqui 0 sa-bio estoico e sua inabalabilidade perante a morte, como quedemonstrando, assim, ser, de fato, uma pessoa livre. Mesmoainda para 0 suicidio, 0 qual nao the era proibido, e exigido aprova da livre e resistente determinac;ao, pois, no aspecto reli-gioso, somente era permitida a morte atraves do continuo je-

    ou a morte atraves do lento sangramento em pleno es-de consciencia. Conhecido e tambern 0exemplo de Epi-

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    76 o c ar at er o c ult o d a s au c ecuro que combatia 0medo da morte com argumentos e, aomesmo tempo, assim elevava a arte de viver a mais alta per-feicao. Lessing, tao bern como urn humanista como filho dornoderno lluminismo, salientou num conhecido tratado 0fatode a Antiguidade ter pensado e concebido a morte como airma do adormecer e nao como a terrivel caveira humanada ldade Media crista .Mas no s todos vivemos hoje, precisamente, sob as condi-coes do moderno lluminismo. Assim, nao nos e permitida ainsercao em mundos consoladores ornamentados, como des-critos por Lessing. 0 que constitui a dureza e rigor do moder-no lluminismo e ele se dever a uma ciencia que se desenvol-veu, ela propria, a partir da remodelacao crista da Antiguida-de paga. 0 aspecto alern-mundo de Deus infligiu ao conhe-cimento humane sua autoefirmacao, acabando, com isso, portransformar a propria tarefa do conhecimento. Uma nova men-talidade voltada a rnensuracao e urn novo ideal da construcaoracional fundam urn novo imperio. Ele e regido pelo ideal dosaber proprio do dominador que, enquanto pesquisa, expan-de constantemente os limites do dominavel. Mas, se e verdadeque tambern esse Iluminismo cientifico, como aquele do mun-do antigo, encontra seus limites na inconcebibilidade da mor-te, entao permanece tambem verda de que 0horizonte de per-guntas, no qual pode se movimentar 0 pensamento perante 0enigma da morte, e delimitado por tais doutrinas de salvacao,para nos os cristaos em todas as suas.varlacoes de igrejas e sei-tas. Ao pensamento reflexivo deve ser algo tao inconcebivelcomo evidente 0fato de a verdadeira superacao da morte naopoder residir senao na ressurreicao dos mortos - aos crentestrata-se da suprema certeza, aos outros algo inconcebivel, masnao mais inconcebivel que a propria morte.

    E x p e r i e n c ia c o r p o r a l e o b j e t iv a b i l id a d e

    Trata-se de uma modestissima tentativa de reflexao 0queeu gostaria de prop or aqui sobre 0 tema "Corpo e corporeida-de e objetivabilidade". Eu gostaria de tornar consciente aquiloque, no fundo, todos sabernos, atraves da ciencia rnoderna eseu ideal de objetivabilidade, e exigido de todos nos urn pode-roso distanciamento, sejamos medicos ou pacientes ou atemesmo apenas cidadaos atentos e preocupados.

    lsso vale tanto mais, quando se percebe que a nossa tra-dicao filosoflca - a qual eu pertenco enquanto discipulo daEscola de Marburgo, como fenomenoloqo e como discipulode Husserl e Heidegger - pouco fez para tornar consciente 0tema corpo e corporeidade e sua singular ocultacao, Nao epor acaso que 0proprio Heidegger teve de admitir nao ter re-fletido tanto sobre 0tema do corpo, nao ter the dedicado tan-to sua forca de reflexao, quanto em relacao a tantos outros te-mas importantes de nossa exlstencia, Eu tambern acreditonao ser urn acaso que a esfera da singularidade e de tudo 0que nos e percebido atraves da experiencia e forma de doa-cao do corpo, todo 0 rico tema das formas cinestesicas, comas quais 0corpo e experimentado e sentido, tenha sido consi-derado pelo admiravs! talento fenomenologico-analit ico deEdmund Husserl, e certo, como uma tarefa essencial, mas, ape-sar disso, como uma tarefa que chega as raias do desempe-nho posslvel,

    Quando se esta diante desse fato, coloca-se, entao, a ques-tao fundamental, se em 'nossa situacao mundial nao haveratarefas da existencia humana, cujo agravamento atraves doethos de rendimento da ciencia moderna coaja nos sa culturaocidental a urn autoexame critico. Nos devemos estar consci-

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    78 o c ar at er o c ult o d a s au deentes disso e eu ja me referi expressamente sobre 0 signifi-cado de irmos ao encontro de uma civilizacao mundial naqual perfectibilidades tecnicas se misturam com novas e dife-rentes correntes tradicionais de vida cultural e talvez nos con-duzam a novos impulsos para a reallzacao de nossas tare-fas para com a humanidade.

    "Corpo e corporeidade" - isso soa quase como urn jogo depalavras, C0l'l10 "Corpo e vida?" e, assim, acaba gerando paranos uma presence maqlca, Ela ilustra a absoluta indissolubili-dade entre corpo e vida. Deve-se ate mesmo se perguntar sehave ria a questao sobre a alma e urn discurso a respeito dealma se 0corpo nao experimentasse sua vitalidade e sua deca-dencia, Talvez Aristoteles ainda tenha razeo ate os dias atuais,quando afirma que a alma nao e outra coisa senao a vitaIida-de do corpo, esse em si mesmo plenificado ser-ai humane nomundo de nosso eu, 0qual ele denominou entelequie.

    Por outro lado, conhecemos a perspectiva exterior do rmm-do e, entre todas as suas formas de aparlcao, tambern nossasexperiencias corporais, cujo objeto a ciencia modema, comseu procedimento rnetodoloqico, trouxe para a objetivecao,uma investiqacao da qual a ciencia nao po d e se esquivar ecujos resultados a pratica nao deve ignorar. Mas isso nao ex-clui a possibilidade de percebermos os Iimites daquilo que,dessa maneira, e reconhecivel e a possibilidade de que issodesperte uma consciencia hermeneutica para se admitir os li-mites da objetivabilidade em geral. Assim, coloca-se a ques-

    22. Para entender 0 jogo de palavras a que 0 autor se refere e necessa-rio ter conhecimento da expressao em alernao. Naanterior, Leib und Lei-blichkeit, 0jogo e percebido: aose ler a traducao para 0 portuques "Corpoe corporeidade", percebe-se a semelhanc;aentre as duas palavras. Jll "Cor-po e vida" nao indica a sernelhanca presente em Leib und Leben, pois naose encontra uma palavra em portugues para Leben que seja semelhante a"corpo" e que traduza 0 seu respectivo significado (alem disso, Leib undLeben, enquanto expressao, significauma situacao ou lndlcacao de que hauma ameac;apara a vida e para0corpo, e por isso tambern pode ser urnmodo de intensiflcacao de urn momento importante; em portugues algocomo "vidaemorte"). Priorizando0 significadoda palavra em portuques, op-teipor "Corpo e vida" [N.T.].

    ~,

    E x p e r ie n c ia c o r p o ra l e o b je t iv a b iJ id ade 79tao: como ambas podem andar juntas, a experiencia do cor-po e a ciencia? Como uma emana da outra? Como uma, aciencia, e novamente alcancada pela outra - ou a experienciada singularidade se perde definitivamente em algum novobanco de dados ou em outras Instalacoes mecanicas?

    Esta e a questao perante a qual me encontro em minhameditacao. Aqui esta em jogo 0destino da nossa civilizacaoocidental. Quem sabe se e de que maneira sera possivel al-cancer urn novo e fecundo equilibrio entre a perfeicao de nos-so pensamento instrumental eos valores humanos de outrasculturas e a nossa propria tradicao semienterrada. A primeiraquestao que devemos enfrentar, se quisermos nos aproximarmais do enigma de nossa corporeidade, e: por que corporei-dade e tao recalcitrante e se protege de ternatizacao? Certa-mente, sempre se refletiu sobre 0enigma da corporeidade, jaque sempre houve doenca, Em todas as culturas existirammedicos ou pessoas sables que prestavam auxilio aos doen-tes, ainda que, frequenternente, -sem qualquer base equiva-lente a ciencia, Pergunta-se como a acao medica era inseridanum todo de ordem mundial social e de orientacao universal,e como isso se parece hoje.

    Assim, encontro-me diante da seguinte questao: 0 queacontece, realrnente, com a possibilidade de perceber 0cor-po tao somente como corpo - e tratar 0 corpo como corpo?o que significa, de fato, essa pequena forma e brevi dade deduracao de nossa vida na dimensao e na totaIidade do univer-so? Qual e 0nosso lugar na totaIidade do ente? Quando ques-tiono dessa maneira, qualquer urn se toma consciente de quese trata aqui de urn tema de importancla fundamental: corpoe sua separacao de algo como alma - seja entendido religio-samente ou de outra maneira, e urn inevitavel motive de refle-xao, Como a nossa corporeidade p6e-se em harmonia com 0eniqrnatico fenomeno da consciencia reflexiva, a qual, inde-pendente de toda fixacao corporal e temporal, sempre se ex-travia cada vez mais no indeterminado, continuando a refletiralern? Como isso se relaciona com a nossa tarefa enquan-to seres humanos, a de sermos seres naturais pensantes, e co-mo podemos conseguir com que nossa razao instrumental,

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    80 o c ar at er oe ul to d a saucesobretudo levando em conta a imensa dimensao de seu de-senvolvimento atual, voltea se conectar de forma produtiva enao larnentavel ao todo de nosso estar-no-mundo? Como epossivel, de fato, executar essa tarefa?

    Ocasionalmente intentei trabalhos sobre "Apologia daarte de curar" e outros temas semelhantes, nos quais eu par-tia da experiencia grega de mundo. E um procedimento cer-tamente natural partirde nossa origemocidental para delinearnossas reflexoes criticas sobre nosso futuro.Ao refletirsobretais coisas, a lembranca que ja hamuito tempo conduz meuspensamentos e uma famosa passagem do Fedro de Platao.Nelase afirma que, como haviam dito famosos medicos gre-gos, 0tratamento do corpo pelo medico nao e possivel sem 0tratamento da alma, ou ainda mais, que talvez nem sequerisso baste, mas que ele tambern nao e possivel sem 0 sabersobre 0ser total. 0 ser total e chamado emgrego: hole ousia.Quem entender essas palavras em grego, escutara na expres-sao "0 ser total" tarnbern "0 ser sao". 0 ser integral do todo eo ser sadie dapessoa sa, a sua saude, parecem estar estreita-mente ligados. Quando estamos doentes, tambern dizemosque algo nos falta.

    o que aprendemos deste fato linguistico?N6s temos deadmitir que somente a partir da perturbacao do todo ha a co-nexao entre uma consciencia genuina e uma autentica con-centracao do pensar. Eu sei apenas como a doenca, essefator de perturbacao de alguma coisa que quase nao perce-bemos quando de sua imperturbabilidade, torna-nos presen-te ao extremo nossa corporeidade. N6s estamos lidando aquicom um primado met6dico da doenca sobre a saude. Semduvida, a eleesta contraposto 0contraprimado ontol6gico doser-sao, a naturalidade do estar vivo, que faz com que, ao serpercebida, passamos, antes, a preferirfalar de bem-estar. Po-rem 0 que e 0bem-estar senao exatamente 0 fato de nao seestar direcionado a isso, mas estar, deslmpedidamente, aber-to e preparado para tudo?

    WolfgangBlankenburgutilizouuma veza expressao "estaai".ComHeidegger,todos n6s aprendemos que esse "esta ai"

    E x p e r ie n c i a c o r p o r al e o b j e ti va b il id ade 81nao possui 0carater da objetividade. Por isso, Blankenburg autilizounaturalmente para a caracterizacao da experiencia docorpo. De qualquer modo, permanece aqui 0 ponto decisi-YO, a saber, que nesse "esta ai" 0 ser humane esta presenteem seu estar-entregue, em seu estar-aberto e em sua abertu-ra, em sua receptividade espiritual para tudo que seja. Osgre-gos tinham para isso - eu devome desculpar, se utilizoconti-nuamente palavras gregas tao belas - a palavranous. Ela,ori-ginalmente, designava 0farejar do animal selvagem, quandoele nao sentia outra coisa senao que "algo esta ai". 1550 valeainda mais para os seres humanos, ter essa enorme possibili-dade de se entregar e permitir ao outro estar-ai completamen-teoApartirdai,0verdadeiro tema aqui tratado, "doenca e cor-poreidade", torna-me acessivel de um modo especial.

    Todos n6s sabemos como 0medico comeca: "Entao, 0que esta faltando?"? ou como alguern gostaria de saber de simesmo: "0 que esta me faltando na realidade't'"? Essa e umapergunta, a qual n6s como pacientes, empregando um ale-mao informal, poderiamos direcionar ao medico examinadorque nos assiste. Nao se trata de algo especial que 0 faltar dealguma coisa, a qual n6s nao sabemos 0que e, garanta-noso maravilhoso ser-ai humane no mundo da saude? Nofaltarpercebo tudo 0 que-estava al - nao, nao "tudo 0 que", mas"que tudo estava a1".lsso se designa bem-estar. Ou se dizlieuestou bem". Nisso residem, como presences verdadeiras, 0estar desperto e 0estar-no-mundo.Presence nao significaaquiaquele algo enlgrnaticode tempo, no seu sentidoestrito, comoconsequencia de pontos do agora contados no seu ser-agora.Aqui,presence significa,antes, algo que, com seu compareci-mento preenche um espaco. De modo que falamos de um

    23. Atraducao do sentido da expressao Na, wo {ehlt 's denn? e algo como"Entao, 0 que voce tern?", pergunta tipica feita pelos medicos. Nela Gada-mer quer explorar 0 sentido do verbo {ehlen, que basicamente significa"faltar", para ernprega-lo na sua analise. Para privilegiar 0 entendimento dolei torem relacao ao contexto da I inha de pensamento do autor , optei poruma traducao literal da expressao [N.T.].24. Cf.nota anterior [N.T.].

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    grande ator que ele tern presence, mesmo que esteja, naque-Ie momento, nos bastidores, enquanto os outros ao seu re-dortrabalham duro! Ou percebemos tambern no estadista,na forma de sua presence quando ele entra no salao. E urntipo de comparecimento, em que 0 nosso verdadeiro ser-aihumane no mundo atinge, por assim dizer, seu ielos, sua per-feicao. A palavra entelequie e a fascinante expressao encon-trada por Arist6teles para descrever isso. Ela exprime, por as-sim dizer, e~ si mesma, 0 completo ser-acabado e ser-plenodo sendo-ai humane no mundo. 0 que e a revolta contra isso,essa perturbacao que, quando alguern nao se sente bern", con-duz ao estranhamento, sim ao estranhamento, por fim, de tudoo que esta no exterior.

    Nos ultimos versos escritos por Rainer Maria Rilke, quemorreu ha sessenta anos num hospital suico, vitima de umagrave e incuravel doenca no sangue, ele, nas chamas lanci-nantes da dor que 0consumia, exprimiu como a dor the cau-sava uma alienacao de simesmo: "6 vida, vida, estar fora". Eness a dimensao que a doenca nos afasta do grande e vas-to exterior, do estar de fora de nossa experiencia de mundo,enos recolhe ao interior. 0 que aqui e experimentado ao ex-tremo contern uma verda de geral, que nao nos foi incuicadaapenas pela reliqiao crista, cuja hist6ria da paixao desde cedonos acompanha. Em todas as culturas se conhece algo sobrea interiorizacao atraves do sofrimento e suportabilidade dador. Assim, 0 nosso tern a se apresenta em sua singular am-bivalencia, a saber: de urn lado, 0maravilhoso revestimento,no qual nos deixamos envolver, de modo que nos tornamoa,leves e sentimos a total leveza da ascendente sensacao devida em n6s; de outro lado, conhecemos 0sentimento de pres-sao, algo a nos puxar para baixo ate os sinistros dernonios,dos quais n6s escutamos de nossos amigos medicos quandoeles descrevem a hipocondria e a depressao. Todos n6s co-nhecemos urn pouco disso. 0 que nao se passa com 0ser hu-

    25. Deacordo com a explicacao do seu sentido em nota anterior, a tradu-

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    8 4 o c ar at er o c ult o d a s au de o que parece trivial aquele que esta nessa expectativa de

    que as dores e doencas sejam passageiras, ou mesmo que de-saparecarn, e que elas nao sao urn problema. A medicina mo-derna se viu, entao, logicamente, confrontada sobretudo comdoencas cronicas, para as quais se colocam outras tarefas. Ne-las se depende do cuidado dedicado ao doente, no que tam-bern se exige 0 cuidado espiritual. 0 que significa essa novaimportancia

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    86 o c ar at er o c ult o d a s au c e brio a procura de novas situacoes do mesmo. Trata-se de urn

    enigma e tanto 0fato de uma leve vacilacao do equilibrio naoser nada e ainda 0fato de uma vacilacao, que quase chega aderrubar 0 individuo, volte a encontrar, sem consequencias,uma situacao de equilibrio possivel de ser atingida - e que, aocontrario, quando se ultrapassa 0 limite do equilibrio, che-ga-se a urn estado de desqraca irreversivel. Esse modelo pa-rece-me exatamente 0modelo de origem do nosso modo deser humane corporal, e nao somente corporal. Mas a expe-riencia de nossa corporeidade que reside nisso e elucidativa.E 0ritmo do dormir e estar acordado, 0 ritmo do estar doentee da convalescence e, entao, por fim, 0ate de capotar e 0mo-vimentar-se da vida apagando-se e se transformando no nadado ser-diferente. Essas sao estruturas temporais que modu-lam todo 0nosso curso de vida. Elas confirmam a palavra dogrande medico gregG Alcmeon: os homens nao sao capa-zes de associar nova mente 0 final ao comeco, por isso elestern de morrer. Sao palavras que descrevem clara e adequa-damente a ritmica do estar vivo, a partir do final dessa ritmi-ca, de sua situacao-lirnite e de sua situacao final. A ordem rit-mica de nossa, como costumamos dizer, vida vegetativa, aqual todos n6s vivemos, nunca se tornara totalmente substi-tuivel pela corporeidade "instrumental" - tampouco como ja-mais poderemos eliminar a morte. N6s podemos reprimi-la naconsciencia, 0filme The loved one i1ustrou-nos isso de formainesquecivel. N6s podemos ocultar e reprimir, fazer e substituirmuitas coisas, mas, mesmo 0medico que, com os recursosfantasticos da substituicao mecanico-automatica de aparelha-gens, sabe como ajudar a superar as fases criticas da vida or-ganica, ve-se, no final, perante a opressora decisao de quan-do ele tera a permissao de ou devera abdicar daquela ajudainstrumental para a manutencao da vida em estado vegetati-YO, a fim de honrar a pessoa como ser humano. Nessas situa-coes-l imtte - eu emprego urn conceito importante introduzi-do por Karl Jaspers - encontramos ensinamentos para to-das as nossas limitacoes. E,assim, n6s tambern temos de nosquestionar, 0que significa para n6s a ciencia e a sua capaci-dade de objetivacao. 0 que pode fazer a intervencao, 0 que

    E x p e r il ln c i a c o r p o r al e o b je t iv a b il id ade 87pode alcancar a nossa pr6pria acao, 0que podem obter a de-pendencia da ajuda do outro e a talvez ainda mais acentuadadependencia da autoajuda, a fim de que 0 ritmo original denossa ordenada vitalidade coloque e recoloque a seu servicoinclusive as dimens5es de desempenho de nossa vida na so-ciedade atual, essa aparelhagem automatizada, burocratiza-da e tecnicizada?

    Hoje em dia, n6s percebemos muito - e talvez isso sejaurn dos primeiros sinais de esperance perante uma situacaomundial critica - e n6s ouvimos muito falar-se de urn desper-tar de uma consclencia ecol6gica. Parece-me notavel que,com isso, sirvamo-nos de uma palavra que, na troca vital dosseres humanos, ainda nao ocupe urn grande espaco. A pala-vra grega oikos significa a casa natal. Assim tambem falamasda economia domestica, Aprende-se a gerenciar a casa, comseus meios, com suas forces, com seu tempo. Mas a palavrapossui uma abranqencia ainda maior. Ela abrange nao somen-te a capacidade de se entender bern consigo mesmo, mas tam-bern de se entender bern urn com os outros. Aprender a real-mente aceitar 0 estado de dependencia em relecao ao outro con-siderando, ao mesmo tempo, 0pr6prio ser-ai humane de cadaurn, parece-me a ajuda que 0ser humane pode encontrar parasi mesmo, assim como ele, de acordo com as possibilidades,sabe escutar, por assim dizer, 0 ritmo interior de vida que elerealiza consigo, e sabe nao dar muita atencao ao ritmo desuas palpltacoes e aos mais leves de seus desvios, preservan-do-se atraves de reacao inconsciente, de urn relaxamento ins-tintivo e da recuperacao da leveza do pr6prio ser-ai humaneno mundo e do ser-capaz-de-fazer.

    Entao, eu imagino que n6s deveriamos ver como os pro-blemas que sao colocados pela corporeidade, precisamentepor causa da nao tematizacao e do sernpre apenas relativa-mente epis6dico carater da perturbacao dessa corporeidade,como esses problemas tambem podem nos ensinar sobre 0modo de lidar com toda a nossa aparelhagem civilizadorae todas as suas possibilidades instrumentais. Para isso, saonecessaries as outras habilidades para a economia domesti-ca, que talvez sejam mais importantes que as poupancas que

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    88 o c ar at er o c ult o d a s au desempre voltam a se consolidar numa bern conduzida econo-mia dornestica. Essas outras habilidades significam muitomais, elas abrangem nao apenas eu mesmo nas minhas habi-lidades, elas referem-se a casa. A casa e 0 coletivo, 0 habitualeo habitado, no qual 0ser humane se sente "em casa", Naose trata de uma novidade, todos n6s sabemos disso. N6s jaesquecemos demais disso, no seu significado paradlgrnatico,e, nessa medjda, teremos de recorda-lo,

    Eu nao gostaria de cair na suspeita de que as minhas me-ditacoes apenas refletem a vontade irreprimivel de urn homemmuito idoso de desenvolver perspectivas futuras em meioa escuridao. Eu penso, antes, ter razao em afirmar que de-vemos negar, com toda a seriedade, a possibilidade de a vidahumana viver sem futuro. Essa e, como eu penso, nossa par-te como ser humano, de fazer com que 0 futuro esteja sem-pre mantido novamente aberto e de abrir novas possibilida-des. Se parto desse sentir fundamental, e porque certamenteha muitas coisas, pequenas e grandes, que deveriamos, len-tamente, voltar a exercitar mais. Em longo prazo, talvez, nos-sa sociedade progressista tarnbem consiga elevar novamen-te ao nivel da naturalidade da pr6pria consciencia de valoreso sentido de parcimoniosidade em relacao a si e as pessoasmais chegadas, assim como a responsabilidade para consigoe para alern de si mesmo. Nao e totalmente impossivel queo medo, a penuria e a necessidade, com 0passar do tempo,levem-nos a razao. E bern provavel que is so possa aconte-cer tambern no plano global. N6s ainda estamos, certamen-te, muito longe disso atualmente. Os assim chamados paisessubdesenvolvidos ainda nao podem absolutamente acreditarque haja problemas ecol6gicos para a humanidade que pos-sam atingi-los. Eles consideram nossas preocupacoes comomedidas de protecao dos beati possidentes. Sem duvida, naoantevemos caminhos e saidas, mas, mesmo assim, teremosde nos perguntar se nao havera sempre possibilidades. Temosai, por exemplo, a dissolucao da pessoa. No interior da cien-cia medica, ela se realiza atraves da objetivacao da multiplici-dade de dados. Isso significa que na investiqacao clinica dehoje se e como que montado a partir de urn fichario. Em caso

    E x p e r ie n c i a c o r p o r al e o b je t iv a b il id ade 89de montagem correta, os val o res obtidos sao realmente os dapessoa. Mas a questao e se 0valor da pessoa tambern la esta.

    1550, evidentemente, nao e 0 caso da situacao do pacien-te na aparelhagem da clinica. Na grande aparelhagem da nos-sa clvilizacao todos nos somos pacientes. 0 ser da pessoa e,claramente, algo renegado em toda a parte, mas que sempre,em toda a parte, volta a pertencer a recuperacao do equillbrioque 0ser humane necessita para si mesmo, para a sua casa epara 0 seu sentir-se-em-casa. Isso vai alern da area de respon-sabilidade medica e inclui oconjunto da insercao da pessoana vida familiar, social e profissional. Essa tarefa nao me pa-rece colocada de forma abstrata, mas, continuamente, de for-ma concreta. Trata-se sempre de como inserir seu pr6prio au-toequilibrio no grande todo social, no qual se adquire colabo-racao e participacao. Assim, parece-me haver muitos pontos,nos quais estamos em condicoes de nao apenas perceber ascarenclas rna is constrangedoras, mas tarnbem de encontraras possibilidades abertas para tornar mais humanas as col-sas que se disseminaram na nossa ordem social instrumenta-Iizada. As vezes, isso se tome visivel no encontro com urn serhumano. Como, por exemplo, quando urn politico que, de re-pente, fala de tal maneira que nao conseguimos, de modo al-gum, esquivar-nos as suas ideias e objetivos, porque nos sen-timos compreendidos.

    No entanto, a nossa exlstencla social e tao organizadae coagida que 0encontro se torn a dificil e raramente da urnborn resultado. Eu nao quero aqui cornecar a enumerar to-das as possibilidades da relacao humana entre os homens.Com as minhas ultimas reflexoes acima aludo a coisas quese relacionam com 0meu pr6prio pensamento e com aqui-10 que chama de experiencia herrneneutica. E uma precondi-cao da existencia humana - que deve ser realizada. Eu pensoaqui na precondicao de que 0 outro talvez nao apenas tam-bern tenha urn direito.irnas, antes, de que, talvez, possa tertarnbern, de vez em quando, direito. Ha urn ensaio maravilho-so de Seren Kierkegaard com 0titulo Sobre 0efeito edificeri-tedo pensamento de nunca termos rezeo contra Deus. Hi!uma grande consolacao nisso, porque n6s mesmos, tao fre-

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    quentemente, nao temos razao e porque nos e tao dificilde re-conhecer isso. Nos temos, por assim dizer, de aprender a reco-nhecer em todos os nossos erros e em todas as nossas pre-suncoes que eles sao apenas possibilidades condicionadasde real superioridade e de inevitavel suscetibilidade. Assim,eu penso que se deve estender a relacao entre medico e paci-ente, que se encontra sob 0 paradoxo da impossibilldade deobjetivabilidade da corporeidade, a toda a experiencia denossa propria llmitacao. Isso nao e urn caso especial. Hoje,vejo 0 problema da moderna razao instrumental especial-mente na sua aplicacao a coisas, com as quais todos nos,como educadores ou na familia, na escola e em todas as insti-tuicoes da vida publica, tern os de lidar. Nos nao podemos enao devemos simular a nossa juventude urn futuro de con-forto abundante e de crescente comodidade, mas the propor-cionar uma alegria na responsabilidade compartilhada e nareal convivencia e solidariedade dos seres humanos. Sem du-vida, falta isso na nos sa sociedade e no convivio de muitaspessoas. Os jovens, precisamente, sentem isso. Ha urn pro-verbio antiquissimo sobre isso: a juventude tern razao.

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