o caos no festival imagem-movimento e o audiovisual de macapá1 · vida de augusto, com a noção...
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O Caos no Festival Imagem-Movimento e o Audiovisual de Macapá1
Marcus André de Souza Cardoso (INCT-InEAC e Unifap)2
Ianca Moreira do Nascimento (Unifap)3
Resumo: Neste artigo apresentamos e problematizamos o material etnográfico obtido ao
longo de 18 meses junto ao coletivo cultural Espaço Caos – Arte e Cultura, que tem sede
e atua em Macapá. Focaremos nossa análise nas narrativas e práticas dos nossos
interlocutores no que refere-se a organização e realização do Festival Imagem-Movimento
– FIM. Para tal, lançamos mão de incursões ao campo, que consistiram em visitas
regulares três vezes por semana à sede do coletivo e participação ativa, como
colaboradores, na organização dos seus eventos. Além do trabalho de observação
participante, o material que compõe este artigo também foi obtido através da realização
de entrevistas semiestruturadas, captação de imagens e conversas informais. É a partir
desse conjunto de procedimentos que interpretamos as falas dos nossos interlocutores no
que refere-se aos significados que atribuem a esse empreendimento, como eles
experenciam organizar e promover o FIM, como se dá a organização interna do coletivo,
quais são as socialidades operantes naquele espaço, assim como o papel do Caos como
um agente promotor da democratização do “acesso à cultura” dentro do município.
Palavras-chave: Espaço Caos – arte e cultura. Festival Imagem-Movimento – FIM.
Audiovisual.
O Espaço Caos é um coletivo cultural que nasceu da junção de diversos grupos
artísticos no ano de 2013 e hoje conta com membros envolvidos com pichação, cinema,
fotografia, música e design. Sua sede é uma casa de dois andares, com um enorme quintal
e com todos os seus quatro cômodos divididos e ocupados por empreendimentos artísticos
que ocupam a casa localizada no centro da cidade de Macapá. Atualmente, é um coletivo
que fomenta diversas atividades culturais no município, em sua totalidade sem auxílio de
verbas públicas. Uma dessas atividades é a realização do Festival Imagem-Movimento -
FIM. O FIM ocorre em centros culturais e em espaços públicos do município, e conta
com a participação de importantes diretores de cinema do cenário nacional, que descem
em solo macapaense para ministrar cursos e apresentar suas obras. Concomitantemente,
acontecem oficinas de formação e aperfeiçoamento que acabam por exercer uma
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica,
realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 Professor na Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. 3 Acadêmica do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amapá, bolsista no Programa de Educação Tutorial – PET, voluntária no Programa Voluntário de Iniciação Cientifica – PROVIC.
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importante função no universo audiovisual da cidade. Esta importância pode ser estendida
para as outras atividades voltadas para o audiovisual que ocorrem periodicamente durante
todo o ano e que também são de responsabilidade dos realizadores do FIM.
O festival é visto tanto para seus organizadores quanto para seus frequentadores
como importante iniciativa que ajuda na fomentação do audiovisual e seu diálogo com a
cidade. Como podemos observar, há uma massiva fomentação do audiovisual em Macapá
que está concentrada na atuação dos agentes ligados ao Espaço Caos, sendo estes os
mesmos agentes que estão à frente da produção do Festival Imagem-Movimento – FIM.
Exploraremos a atuação destes agentes do audiovisual, as conexões entre Espaço Caos e
FIM, bem como a importância desta fomentação para o município em que atuam,
dialogando com os conceitos de missão, experenciamentos, circuito e cidadania, sempre
a partir da perspectiva de nossos principais interlocutores.
História do Festival Imagem-Movimento – FIM
O FIM se inicia no ano de 2004, como nos relata Augusto4, um de nossos
principais interlocutores e produtores do festival. Nasce como uma iniciativa de alguns
acadêmicos da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP – que participavam do
Diretório Central dos Estudantes – DCE – e que visavam movimentar a cena audiovisual,
inicialmente, apenas dentro da universidade. Esse é o ano em que Augusto está voltando
para Macapá, depois de se formar em jornalismo pela Universidade Federal do Pará –
UFPA. Augusto já volta com uma carga de conhecimento sobre audiovisual, dado o seu
envolvimento com alguns movimentos de fomentação do cinema em Belém: lá ele
organizava cineclubes de cinema, que são lugares, geralmente pequenos, que exibem
filmes de graça para as pessoas, visando estimular o contato com o cinema, sempre
discutindo e refletindo sobre o que foi exibido; também ajudava em mostras
cinematográficas, que são eventos maiores, mas que continuam voltados para o cinema.
Como nos relata,
Quando eu voltei, eu lembro que eu fui pra um show do Tribo de
Jah que era no Trem (um bairro da cidade), eu tava meio
deslocado assim, eu falei “porra, nada pra fazer bacana aqui” já
tava nessa liga, né, de movimento cultural independente e tal, cine
clube de cinema e tal, que era o que eu fazia em Belém, aí eu fui
pro show da Tribo de Jah meio só pra ver uma coisa diferente aí
lá eu encontrei essa minha amiga, a Alana, que estudou o ensino
4 Todos os nomes que se seguem são ficcionais, visando manter a integridade de nossos interlocutores.
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médio comigo (...) o pessoal foi chegando pro show, fui
conhecendo, aí eu conheci um menino que era do DCE da
UNIFAP, aí ela apresentou “Olha, esse aqui é o Augusto ele
trabalha com vídeo, foto” aí “Porra, cara a gente tá montando aí
uma atividade cultural, a gente queria colocar alguma coisa de
cinema, mas a gente não saca e tal, precisava de alguém pra cuidar
dessa parte, tu topa? “Topo” (...) eles estavam pensando numa
coisa que eu sabia, tinha contato, aí eu trouxe vários filmes de
fora, ajudei o pessoal a produzir aqui, aí rolou o festival.
Augusto, em entrevista realizada no Espaço Caos. Parênteses
nosso, aspas dele.
Quando Augusto retorna à Macapá, vem não apenas com a intenção de ficar, mas
também de dar prosseguimento a sua relação com o audiovisual que havia se iniciado na
cidade de Belém. Quer dizer, se “iniciado”, haja vista que Augusto é filho de fotógrafo,
irmão de outro fotógrafo e que tinha o sonho de cursar fotografia, mas como não tinha o
curso em Macapá, resolveu cursar Jornalismo, posto que foi o curso que mais viu
similaridades com a fotografia. Desta maneira, ele parece ver no convite que lhe é feito,
a oportunidade para realizar suas aspirações em âmbito local. Notamos isso mais ainda,
quando percebemos que, daí em diante, Augusto só fortifica sua relação com o festival,
um festival que ajudou a construir. Hoje ele é o único integrante do FIM que está desde a
primeira edição do festival, acorrida há treze anos atrás. Augusto é uma pessoa
extremamente comunicativa, não atoa, é ele quem, atualmente, se responsabiliza por
procurar e firmar parcerias com instituições para o festival. É alguém muito conhecido na
cidade, tanto por jovens, por que já deu aulas em faculdades para várias pessoas, como
por pessoas de áreas mais formais, por que já foi servidor público do Estado.
Parece-nos um movimento interessante o de fazer a assimilação da trajetória de
vida de Augusto, com a noção de constituição de identidade trabalhada por Gilberto
Velho. Velho traça uma relação entre memória e projeto e sua importância para a
constituição da identidade (Velho, 2013). Segundo este antropólogo, o florescimento das
diversas ideologias individualistas que passam a fixar o sujeito como valor básico da
cultura no mundo ocidental, faz com que a trajetória de vida do indivíduo, passe a ser o
elemento fundamental, por que constituidor, em sociedades nas quais predominam as
ideologias individualistas. Apesar de Velho chamar a atenção para como, em termos
antropológicos, este processo não é uma regra e nem é natural, dado o fato de que
sociedades e culturas diferentes podem privilegiar outras unidades como fundamentais
que não, necessariamente, o sujeito, notamos como é importante a memória individual de
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Augusto, que organiza sua trajetória de vida, moldando os projetos que ele traça e nos
quais ele se empenha em concretizar, sendo um desses projetos o Festival Imagem-
Movimento, um projeto que, inclusive, molda a sua identidade enquanto ativista do
movimento cultural independente.
A noção de “ativista do movimento cultural independente” surge como uma
maneira analítica de entender os novos movimentos sociais que se pautam num ativismo
cultural oriundo da mesma onde democrática que dá origem aos coletivos culturais nas
grandes metrópoles. São movimentos sociais oriundos de locais invisibilizados
socialmente e, por isso, carentes de muitas políticas públicas e direitos. Nestes
movimentos há uma ênfase na diferença, que faz com que suas bandeiras de luta sejam
por uma igualdade que abarque as diferenças, garantindo a cidadania através de um
ativismo que envolve as singularidades, numa constante negociação em busca de um
denominador comum que coordene as mudanças sociais pelas quais lutam (YÚDICE,
2004, apud in GAMA, 2009). Esta forma de ativismo é vista tanto na pessoa de Augusto,
como na forma como o coletivo cultural Espaço Caos se organiza. Uma forma de ativismo
que está sempre colocando a cultura a serviço do social.
No terceiro ano de atuação, o FIM entra para o Guia Brasileiro de Festival de
Cinema, que consiste num catálogo distribuído em vários lugares no Brasil. Como
consequência disso, vários filmes começam a chegar sem que houvesse muita divulgação
por parte do festival, que ainda se encontrava em seu início. No ano de 2014, um produtor
de cinema do estado do Ceará vem como convidado para o festival e relata como a
produção audiovisual aumenta, quando resolveram premiar os produtores locais.
Instigados com a possibilidade de ver a produção audiovisual crescer, a equipe do Festival
dá vida ao Prêmio Gengibirra de Audiovisual, sendo gengibirra o nome da bebida mais
tradicional de Macapá e que é, principalmente, consumida quando o ciclo do Marabaixo,
a festividade mais tradicional da cidade, se inicia. Este é um prêmio exclusivo para os
produtores amapaenses; eles inscrevem seus filmes que, por sua vez, passam por uma
curadoria formada por alguns integrantes do festival. O filme selecionado leva junto do
prêmio, uma quantia simbólica de mil reais, que segundo os realizadores do Festival, pode
custear uma próxima produção audiovisual. Com o Prêmio Gengibirra, é a primeira vez
na cidade de Macapá que um festival de cinema oriundo daqui, consegue premiar algum
produtor local, posto que antes as premiações já ocorriam, ainda que não todo ano, mas
englobavam toda a produção de qualquer lugar. Esta é uma das maneiras mais diretas
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pelas quais os realizadores do FIM ajudam na fomentação do audiovisual atualmente,
entretanto, há outras formas pelas quais estendem sua fomentação.
Os produtores do FIM passam a ser, com o tempo, os responsáveis por várias
outras atividades voltadas para a fomentação do audiovisual no município, que vão muito
além do festival em si e do tempo em que ele ocorre, o tempo de uma semana. Os
realizadores do FIM passam também a serem os responsáveis pela a realização do Dia
Nacional da Animação – DIA –; do Clube de Cinema, que é o cine clube do FIM, uma
forma pela qual o FIM arranjou de continuar a exibir filmes durante o ano inteiro; há
também a comemoração do aniversário do Clube de cinema, posto que na sua
programação sempre se inclui o momento do audiovisual; os realizadores do FIM também
foram os responsáveis, em 2012, pela realização do Cinema Pela Verdade, um circuito de
cinema idealizado pelo Instituto Cultura em Movimento – ICEM – o qual visava exibir
cinco documentários voltados para o período da ditadura civil militar no Brasil; esses
documentários foram exibidos em várias universidades do país, de modo quem em
Macapá, a mostra ocorreu na UNIFAP.
Atualmente, o FIM conta com uma equipe de quatorze pessoas, sendo estes
números frutos de uma conta baseada naqueles que percebemos ajudando na produção do
último Festival, que ocorreu em dezembro de 2015. Num grupo do facebook – ferramenta
pela qual organizam seus encontros e postam todas as questões relacionadas ao festival –
há mais pessoas constando como integrantes da equipe. Desta maneira, percebemos que
os realizadores do FIM, que também são os realizadores do coletivo cultural Espaço Caos,
são os responsáveis por uma boa parte da fomentação da cena cultural da cidade, não
apenas no que concerne ao espaço que fornecem para a arte, a música, a fotografia e o
design, mas também para o cinema e a fomentação do audiovisual, sendo este último,
fomentado de uma forma muito mais singular e autônoma.
Há esta forma mais singular e autônoma que identificamos na fomentação do
audiovisual no município, atribuímos o fato de que a história do FIM se caracteriza por
sua longa trajetória a qual inclui a passagem de vários agentes audiovisuais, e de um
caminho de construções de agentes bastante especializados e capacitados no que fazem.
Os vários agentes que passaram pelo festival, são aqueles que entram como voluntários
e, por isso, acabam entendendo o festival como algo passageiro; os que produzem o
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festival e que estão neste trabalho há anos, são os seus representantes legítimos5 por que
se entregam a causa e são reconhecidos como figuras de liderança. As figuras de liderança
encontram-se naqueles membros mais antigos, como Claudia e José Augusto, ela desde
2012 ajudando na produção do festival, e ele desde o primeiro FIM. Atualmente, o festival
conta com uma equipe grande que se divide em equipes de curadoria; gerenciamento de
páginas; eletricidade do festival; editores; os que se ocupam dos vídeos promocionais do
Festival e que produzem imagens de divulgação. Alguns desses trabalhos são realizados
por voluntarismo, outros pela equipe que faz parte do festival, que, ao fim e ao cabo,
acabam contribuindo nos trabalhos braçais que envolvem a realização do festival.
Relação FIM e Espaço Caos
O FIM já existia e atuava em Macapá muitos anos antes da existência do Espaço
Caos. A relação que existe entre Espaço Caos e FIM se dá por que o FIM estava entre os
cinco coletivos que há três anos atrás se uniram para procurar uma casa a qual lhes serviria
como a sede das atividades culturais que aqueles grupos gostariam de começar a fomentar
na cidade; portanto, o FIM era um dos grupos que fizeram parte do processo fundador do
Espaço Caos, um dos principais coletivos culturais atuantes na cidade de Macapá.
Como dizem seus realizadores “o FIM não termina quando acaba”, afirmam isso
por que o processo de produção do festival (re)começa pouco tempo depois que ele
termina. Desde 2013 os realizadores do festival possuem uma sede para as suas reuniões
de planejamento, um local no qual realizam as exibições mensais do Cine clube – o clube
de cinema do FIM –, e também onde realizam a comemoração anual do aniversário do
Clube, que em 2015 completou cinco anos de existência. Esta sede de suas atividades é o
Espaço Caos – Arte e Cultura que, como já mencionado, é um importante coletivo cultural
da cidade por que fomenta a cena cultural independente de uma forma muito atuante.
O FIM fez parte do processo de construção do Espaço Caos, assim como outros
diversos grupos também fizeram, todavia, desde que ingressamos ao campo, notamos
como os integrantes do FIM são também os integrantes mais importantes do Espaço Caos.
Quando uso o adjetivo “importante”, quero dizer que são aqueles integrantes que, dentro
do Caos, possuem uma figura de liderança, um papel importante na integração do coletivo
Espaço Caos, bem como na sua manutenção organizacional e financeira.
5 “Representantes legítimos” é um termo retirado do artigo de Antônia Gama (2009, p. 103), um termo que ela identifica em seu campo de pesquisa e que aqui utilizamos para representar aqueles que fazem parte da equipe do festival há anos e que, por isso, são vistos como figuras de liderança.
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As reuniões do FIM sempre ocorrem dentro do auditório da casa do Espaço Caos.
O auditório é a forma como os agentes do Espaço Caos chamam a sala que fica na parte
posterior da casa, ocupando uma parte da faixada do Espaço. Auditório é, pois, uma
categoria nativa, posto que para qualquer pessoa de fora do Espaço Caos que eu
perguntasse “onde fica o auditório do Caos? ”, me responderiam assustados: há um
auditório no Caos? Eu nunca o vi! É no auditório que ocorre, além das reuniões de
organização do Festival, as exibições do Clube de Cinema; é, ainda, a mesma sala que se
transforma no QG da produção do Festival, enquanto esse está acontecendo.
Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que o FIM ocupa um lugar de
suma importância dentro do Espaço Caos. Primeiramente por que seus realizadores
possuem um papel de suma importância para o Espaço Caos em si e, posteriormente, por
conta do fato de que este papel se estende para o lugar que o audiovisual ocupa dentro do
Espaço Caos. Vejamos: a atividade mais frequente do Espaço Caos é a exibição de filmes
pelo Clube de Cinema, uma atividade que acontecia quinzenalmente e que, esse ano,
passou a ocorrer mensalmente, mas que ainda sim, continua sendo bastante constante.
Além disso, tem-se a comemoração do aniversário do Cine Clube, que já se tornou uma
comemoração importante para seus realizadores, pois, é o momento de ressaltarem que o
clube de cinema do FIM é um dos mais antigos da cidade, como ressalta Augusto com
muito orgulho, quando perguntado sobre o surgimento do Cine Clube, um clube de
cinema completamente ligado a história do Festival.
O que se nota é que o FIM possui, claramente, um lugar físico para si dentro do
Espaço Caos, o qual seus realizadores ocupam de várias formas, mas sempre são
ocupações voltadas para as suas conexões com o audiovisual. No Espaço Caos também
ocorrem eventos voltados para o audiovisual com uma certa frequência. Para além disso,
ainda, ressalta-se o rompimento no tempo de atuação do Espaço Caos quando o FIM se
inicia.
O único momento do ano em que o Espaço Caos tem suas atividades
interrompidas durante uma semana inteira, é quando o FIM começa. Atividades são
suspendidas, nenhum outro evento ocorre e não se vê muita circulação de outros agentes
pelo quintal do Espaço Caos. Isso se dá por que a equipe que se empenha o ano inteiro
no Espaço Caos, passa a está empenhada na realização do FIM. As atividades são
suspensas para que os focos estejam no Festival. A pouco circulação pelo quintal da casa,
que sempre é movimentado, ocorre por que a maioria das pessoas se encontra dentro do
QG do Festival. O que notamos é a total ressignificação do auditório, que agora já não é
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mais denominado de auditório, mas sim de QG do FIM. Acompanhamos a mudança deste
espaço. Esta ressignificação de ambiental começa alguns dias antes do início do Festival.
Limpa-se toda a sala, retirado dela qualquer coisa que podia está ocupando o espaço da
sala; divide-se a sala bem ao meio com cortinas, de modo que a parte pela qual as pessoas
entram e deparam-se com o espaço, era a parte mais pública do QG, era onde fazíamos
trabalhos como dobrar os folders com a programação que seriam distribuídos no decorrer
do festival e nas panfletagens; no outro lado da sala, ficava a área mais particular, onde
se colocaram travesseiros, esteiras de palha, uma pequena mesa de ferro onde se fazia o
café, e uma estante onde se colocava diversos materiais do Festival, como as caixas com
folders, luminárias e vários outros equipamentos.
O QG é o espaço, portanto, onde todas as pessoas que fazem parte do FIM juntam-
se para trabalhar para o Festival, pessoas essas que durante todos os meses que antecedem
dezembro, reuniam-se conjuntamente no quintal do Espaço Caos, mas que agora estão
empenhadas, particularmente, em produzir um Festival de Cinema independente.
Reuniões acontecem lá, refeições acontecem lá, o gerenciamento das páginas na internet
do Festival, acontecem de lá. O QG é também o point de encontro, pois, todos encontram-
se de lá, para seguir para o lugar da cidade onde o Festival está ocorrendo naquele dia.
Desta maneira, o lugar do audiovisual na cidade de Macapá, encontra-se
extremamente relacionado e representado pelos agentes do coletivo cultural Espaço Caos,
o lugar que sedia eventos e exibições voltadas para o audiovisual durante o decorrer do
ano, e o local no qual os produtores do FIM planejam-se e dão vida ao festival. O que
decorre disto é uma associação direta da imagem do Espaço Caos ao FIM, ou vise e versa,
como se fossem coisas indissociáveis, todavia, esta é uma associação renegada pelos
produtores mais ligados ao festival, como se percebe na fala de Claudia
O FIM já tem uma história de vida muito anterior ao Caos, e se o
Caos acabar o FIM vai continuar existindo. São partes totalmente
dissociáveis, né (...) O caos é a união de várias coisas, mas os
grupos que já integraram a casa, ou ainda integram a casa, eles
são independentes nas suas vontades e nas suas demandas, né, na
sua criação, eles são independentes do Caos.
Claudia, em entrevista realizada no Espaço Caos.
O grupo que já pertencia ao FIM e que ajuda no processo de surgimento do Espaço
Caos, enxerga o espaço que conquistaram dentro do coletivo como uma conquista deles
próprios no que concerne a independência e liberdade para realizar atividades culturais
alternativas, dentre essas atividades, a fomentação do audiovisual. Afirmar que Espaço
Caos e FIM são as mesmas coisas é simplificar demais todas as relações que envolvem
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ambos, e, numa perspectiva dos realizadores, simplificar a longa história que o FIM
possui. Daí, é muito mais provável que seus realizadores ainda vejam o Espaço Caos
como um laboratório para suas ações, do que como um corpo cultural autônomo, que é o
que ele vem se transformando. A prova disso, é que algumas pessoas que entraram
fazendo parte do FIM, hoje estão mais distantes do festival, por que envolvidas com
empreendimentos artísticos que surgiram no Espaço Caos.
Para finalizar, é importante entender que a interelação entre Espaço Caos e FIM,
faz com que o lugar do audiovisual cresça na cidade em paralelo a visibilidade que o
Espaço Caos conquista enquanto coletivo, proporcionando inúmeras atividades artísticas
no município que incluem o audiovisual e que são produto do trabalho cultural feito pelos
mesmos realizadores do FIM. Estes são fatores que fazem com que a visibilidade do
audiovisual cresça junto com o coletivo Espaço Caos, mas, ainda sim, sendo fruto de
movimentos diferentes. Desta maneira, é tão importante tudo o que os agentes culturais
do FIM, fazem no Espaço Caos, quanto tudo o que o Espaço Caos passa a representar
para o audiovisual. Resta-nos, ainda, falar sobre o audiovisual no Festival Imagem-
Movimento e sua relação com o município.
Festival Imagem-Movimento e o audiovisual em Macapá
A linha do tempo segundo a qual começamos a manter contato com o Festival
Imagem-Movimento, não é seguida numa ordem cronológica. Primeiro conhecemos os
agentes culturais que constroem o Espaço Caos – Arte e Cultura, e soubemos do contato
de alguns com o audiovisual. Num momento posterior, tivemos a oportunidade de
acompanhar a realização do Festival Imagem-Movimento do ano de 2015, por que
ingressamos ao campo no meio do ano, pulando, por isso, todo o processo de reunião que
começa muito tempo antes, no início do ano. Todavia, todo esse processo de produção,
que se caracteriza pelas várias reuniões, nos foi possível acompanhar este ano, para o FIM
que ocorrerá em dezembro de 2016 e que já começou a ser planejado. O que se segue,
portanto, são relatos e analises pautados, por um lado, nas experiências em campo junto
com a produção no último FIM e, por outro lado, nas reuniões de planejamento para o
FIM 2016.
Geralmente é Claudia quem, em meados do mês de março, começa a convocar as
pessoas que fazem parte do grupo do facebook, para, em reunião no auditório do Espaço
Caos, começarem a planejar o FIM que está por vir. Este período de dois meses, após o
término do último festival, é o período que eles denominam de férias e do qual não abrem
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mão. Como vários integrantes do FIM são também integrantes do Espaço Caos, já deve-
se imaginar que nesse período de “férias”, do mês de dezembro até março, o Espaço Caos
também aproveite para dar uma amenizada nas atividades culturais.
Na primeira reunião fazem um balanço avaliativo do último FIM. Este é o
momento no qual todas e todos avaliam suas participações e o desempenho do Festival.
Para Augusto, por exemplo, o FIM do ano de 2015 foi um dos melhores da história do
Festival, segundo ele, todos os dias o público não decepcionou; a parceria que
conseguiram firmar com o dono de uma importante franquia de cinema local, fez com
que eles lançassem o longa-metragem do diretor pernambucano Camilo Cavalcanti, numa
enorme sala de cinema que abriga inúmeras pessoas. Augusto vê isso como um passo
enorme para o Festival, e aconselha que, para 2016, procurem novamente esta parceria.
Seu argumento é o de que isso faz com que o público espere sempre mais do festival e,
consequentemente, que o festival tenha mais responsabilidade em não decepcionar.
Também começam a pensar num mote para o festival. Mote é o tema central que
vem a nortear todo o festival; portanto, ao redor do mote gira toda a propaganda que dá
uma face ao festival que virá. As pessoas na reunião começam a pensar os fatos que estão
ocorrendo na atualidade e que julgam importantes, por exemplo, nesta primeira reunião
falou-se muito dos desastres naturais que vem acontecendo, como o caso da cheia de
Mariana (MG), e pensou-se em abordar a relação humanos x natureza. Posteriormente,
também pensam nas parcerias que irão buscar para ajudarem a construir o Festival, tanto
sediando espaços, disponibilizando materiais que o festival não possui, quanto para ajudar
na parte cultural e promocional do festival. Definem prazos para que as respostas de todas
as deliberações comecem a chegar. Depois da primeira reunião, os encontros posteriores
passam a acontecer quinzenalmente. Sempre no auditório do Espaço Caos. Desta
maneira, o andamento do festival é feito em conjunto.
O festival começa a ganhar vida quando a produção começa a buscar: buscar
parcerias, grupos e pessoas; e quando começam a chamar: chamar diretores ou diretoras
que foram pensados em reunião para fazerem a proposta de convida-los para participar
do Festival. Estes são dois passos fundamentais. Há instituições que ajudam o festival
desde as primeiras edições, o SESC é o maior exemplo. Eles sediam as cadeiras que a
produção utiliza para as exibições em espaços públicos, e também sediam o Bob, uma
tela de exibição que, com a entrada de ar, infla-se o suficiente para ganhar metros de
altura e espessura. Quando é necessário, faz-se documentos de solicitação e os entregam
em espaços culturais, pedindo alguns dias de utilização do espaço. O FIM possui uma
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parceria com alguns grupos locais que os ajudam em slogans, cobertura do evento e
ajudantes para o festival. Estes são os colaboradores voluntários, e formam uma boa parte
da equipe que trabalha no festival.
O FIM sempre foi visto por seus representantes legítimos como um festival de
caráter voluntário. Por isso mesmo, são incontáveis os números de pessoas que já
ajudaram o festival em algum momento nestes treze anos. Segundo Claudia “essa
rotatividade, ela sempre esteve presente, né, pelo ou menos desde que eu conheço a
história do FIM, os membros entram e saem a hora que a disponibilidade da pessoa
mandar”. Quanto a este aspecto, eles identificam pontos positivos e negativos. Um ponto
positivo é que eles sentem-se, de fato, como os responsáveis pelo festival, sentem que a
sua missão é fazer este festival acontecer todos os anos e esforçam-se para isso, portanto,
sentem-se parte do festival; um ponto negativo, é que o núcleo de representantes legítimos
do festival acaba sendo pequeno, e diminuiu mais com o afastamento de algumas pessoas
que também eram importantes; daí eles procurarem tanta ajuda para que o festival possa
acontecer.
Ser visto por seus realizadores como um festival de caráter voluntário, faz com
que seus representantes legítimos, entre outras coisas, se enxerguem como aqueles que
promovem a profissionalização do audiovisual no município; nesta perspectiva, segundo
Augusto em reunião com acadêmicos da UNIFAP no QG, uma das intenções do festival
é “aproximar gerações”, gerações essas que podem proporcionar uma troca de
experiências. Fazer parte do festival como voluntário, para aqueles que se propõem, faz
com que eles se aproximem de um universo que os interessa. Um universo que se torna
mais acessível quando o festival se inicia.
O processo de busca de diretores convidados não se dá de uma forma tão diferente.
Depois de escolherem quem será o convidado, manda-se, através do email do FIM, um
convite para a (o) diretora (o). No email vão todas as explicações possíveis e plausíveis
sobre o festival e sobre como a produção custeia as passagens, estadia e alimentação. Esta
busca por parcerias é uma das principais caraterísticas de um festival feito de forma
independente, todo o dinheiro voltado para as pessoas convidadas pelo festival, é
fornecido pelos seus próprios produtores. Diante disso, chamamos a atenção para a
importância que as relações assumem no festival. Augusto, como já dito, é alguém muito
comunicativo e sempre que pode, utiliza-se disso para conseguir mais coisas para o
festival. Camilo Cavalcante, o diretor convidado do FIM 2015, me relatou em uma de
nossas conversas, como conheceu Augusto: foi em São Paulo, num evento de cinema do
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qual ele participava como convidado. Me contou que Augusto foi até ele ao termino do
evento, explicando que era um dos produtores de um festival independente e que gostaria
do contato de Camilo, para que conversassem mais. Esta foi a ponte para que o diretor
viesse exibir seu longa-metragem pelo FIM. Saiu daqui completamente satisfeito, pois,
relatou que está havia sido a segunda vez que seu longa tinha lotado uma sala, a outra
tinha sido em Recife.
Chegado o mês de dezembro, após todas as reuniões serem feitas, todas as
parcerias terem confirmado, toda a propaganda ter sido feita, todos os produtores
nacionais terem chegado e após o QG ter sido montado, se inicia o Festival. Um festival
que promove exibições em locais fechados, em salas de exibições de cinemas locais, em
espaços públicos da cidade, em bairros centrais, em bairros periféricos e, no seu último
dia, num coletivo cultural. Tudo, absolutamente, de graça e acessível a todos que queiram
assistir às exibições.
Quando o FIM se inicia, a movimentação da cidade se altera, por que os espaços
públicos são ocupados e movimentados. A mostra de abertura é sempre realizada numa
praça pública da cidade, no último ano, foi realizada na Praça da Bandeira, com a
participação de uma companhia de circo, com a cobertura colaborativa de um grupo de
produtores locais e com a participação de mais de cem pessoas. O mesmo movimento
acontece na “Mostra Muralha”, ocorrida no entorno do monumento Fortaleza de São.
A ocupação dos espaços urbanos é quesito fundamental para se traçar uma relação
com a cidade. Uma relação que muitas vezes é precária, principalmente, quando se trata
de uma cidade que está com praças sendo “revitalizadas” há anos e, por isso, rodeadas
por muros. O FIM é o promotor desta ocupação e deste movimento de levar o audiovisual
há cidade e sua população. Muito costumeiramente, vê-se pessoas que estavam apenas
passando, pararem para assistir à exibição. O fato de mais de cem pessoas comparecerem
à praça no primeiro dia de festival, demonstra como a ocupação dos espaços públicos é
bem-vinda quando estimulada, assim como o fato de eles exercerem o movimento de ir
até a população, os caracteriza como os responsáveis pela democratização do acesso à
cultura dentro do município. Isto pode ser mais comprovado quando percebemos os
bairros periféricos que o festival ocupa. Fomos para o bairro do Copala realizar exibições
cinematográficas no segundo dia de FIM. Este é um bairro completamente estigmatizado
no município e é também o bairro de um novo membro da equipe da equipe de produção
do Festival.
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Da mesma forma, percebemos como o festival mobiliza um circuito de produtores
audiovisuais e artistas locais. Esta mobilização se dá pelo fato de que o festival, quando
busca parcerias, também busca aqueles que queiram colaborar de alguma forma, de modo
que muitos têm a oportunidade de se apresentarem para um enorme número de pessoas,
ou de trabalharem na equipe de um festival, através da participação no FIM. Portanto, o
Festival traz consigo uma gama de oportunidades não só para os produtores audiovisuais
locais, como para uma boa parcela de artistas locais, movimento, assim, a cena cultural
do município.
Macapá é um município ausente em políticas públicas voltadas para a área
cultural. Todavia, é importante ressaltar que esta ausência de políticas públicas nuca foi
um motivo para que o grupo FIM e o coletivo cultural que fazem parte, o Espaço Caos,
parassem suas atividades culturais; ao contrário, sempre foi um importante fator para que
continuassem a fomentar a cena cultural independente do município. Quando
movimentos culturais surgem na cidade, eles preenchem uma lacuna deixada por
instituições públicas não apenas por que promovem o acesso à cultura, como por que
criam espaços para que artistas locais se tornem visíveis, sendo essa visibilidade existente
apenas com o trabalho de ativistas culturais. É necessário lembrar que o ativismo cultural
enxerga na cultura a peça central da mudança social que desejam promover, e que veem
nas diferenças a chave para se chegar numa concepção de igualdade que abarque as
diferenças. É este ponto de vista que faz com que os agentes do FIM proporcionem, para
artistas das mais variadas áreas, a oportunidade de fazerem parte do festival e, com isso,
serem os agentes que promovem muito mais que um festival de cinema: eles promovem
a democratização do acesso à cultura, bem como, demonstram, na prática, como a cultura
– aqui, mais especificamente o audiovisual – pode se tornar a peça central de intervenções
sociais.
Bibliografia
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