o canto de ulisses

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preta de graxa pegajosa. Quando chego ao seu lado, Alex, sem ódio nem escárnio, esfrega em meu ombro a mão, a palma e o dorso, para limpá-Ia. Ficaria surpreso, o inocente bruto Alex, ao saber que é por esse ato que hoje eu o julgo - ele, e Pann- witz e todos os que foram como eles, grandes e pequenos, em Auschwitz e em toda a parte. 110 o CANTO DE ULISSES Éramos seis, raspando e pintando o' interior de uma cisterna enterrada no chão; a luz do dia chegava até nós só através da portinhola. Era um trabalho de luxo, ninguém nos controlava; só que estava frio, úmido; o pó da ferrugem irritava as nossas pálpebras e nos empostava a boca e a garganta num gosto como de sangue. Oscilou a escada de corda que pendia da portinhola: alguém vinha. Deutsch apagou o cigarro, Goldner acordou Si- vadjan; todos recomeçamos a raspar energicamente a sonora pàrede de chapa. Não era o capataz, era apenas Jean, o Pikolo do nosso Kommando. Jeanera um estudante alsaciano; apesar de seus vinte e quatro anos, era o mais jovem Haftling do Kommando Químico. Tocara a ele, portanto, a função de Pikolo: de man- dalete-escriturário, encarregado de limpar o barraco, entregar as ferramentas, lavar as gamelas, ter a contabilidade das horas de trabalho no Kommando. Jean falava corretamente francês e alemão. Ao reconhecer- mos seus sapatos no degrau mais alto da escadinha, paramos todos de raspar. - Also, Pikolo, was gibt es Neues? (E então, Pikolo, que há de novo?) - Qu'est-ce qu'i! .y a comme soupe aujourd'hui? (Que sopa tem hoje?) - ... qual é o humor do Kapo? E o negócio das vinte e cinco chicotadas em Stern? Como está o tempo lá fora? Leu o jornal? Que cheiro há na cozinha dos trabalhadores externos? Que horas são? 111

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Primeiro capítulo do livro É isto um homem? de Primo Levi

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preta de graxa pegajosa. Quando chego ao seu lado, Alex, semódio nem escárnio, esfrega em meu ombro a mão, a palma e odorso, para limpá-Ia. Ficaria surpreso, o inocente bruto Alex,ao saber que é por esse ato que hoje eu o julgo - ele, e Pann­witz e todos os que foram como eles, grandes e pequenos, emAuschwitz e em toda a parte.

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o CANTO DE ULISSES

Éramos seis, raspando e pintando o' interior de uma cisternaenterrada no chão; a luz do dia chegava até nós só através daportinhola. Era um trabalho de luxo, ninguém nos controlava;só que estava frio, úmido; o pó da ferrugem irritava as nossaspálpebras e nos empostava a boca e a garganta num gosto comode sangue.

Oscilou a escada de corda que pendia da portinhola:alguém vinha. Deutsch apagou o cigarro, Goldner acordou Si­vadjan; todos recomeçamos a raspar energicamente a sonorapàrede de chapa.

Não era o capataz, era apenas Jean, o Pikolo do nossoKommando. Jeanera um estudante alsaciano; apesar de seusvinte e quatro anos, era o mais jovem Haftling do KommandoQuímico. Tocara a ele, portanto, a função de Pikolo: de man­dalete-escriturário, encarregado de limpar o barraco, entregaras ferramentas, lavar as gamelas, ter a contabilidade das horasde trabalho no Kommando.

Jean falava corretamente francês e alemão. Ao reconhecer­mos seus sapatos no degrau mais alto da escadinha, paramostodos de raspar.

- Also, Pikolo, was gibt es Neues? (E então, Pikolo,que há de novo?)

- Qu'est-ce qu'i! .y a comme soupe aujourd'hui? (Quesopa tem hoje?)

- ... qual é o humor do Kapo? E o negócio das vinte ecinco chicotadas em Stern? Como está o tempo lá fora? Leuo jornal? Que cheiro há na cozinha dos trabalhadores externos?Que horas são?

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Jean era benquisto no Kommando. O cargo de Pikolo cons­titui um degrau elevado na hierarquia dos "proeminentes"; oPikolo (que em geral não passa de dezessete anos) está isentodo trabalho braçal, tem livre acesso ao fundo do panelão dorancho, pode ficar o dia todo perto da estufa; portanto temdireito a meia ração suplementar, boas chances de tomar-seamigo e confidente do Kapo, do qual recebe oficialmente asroupas e os sapatos velhos. Bem, Jeanera um Pikolo excepcio­nal. Era astucioso, robusto e, ao mesmo tempo, manso, amigá­vel; embora levando, tenaz e valente, a sua secreta luta indivi­

dual contra o Campo e a morte, não deixava de entreter relaçõeshumanas com os companheiros menos afortunados; por outrolado, fora tão hábil e perseverante que conquistara a confiançade Alex, o Kapo.

Alex cumprira todas as suas promessas. Mostrara-se umbruto violento e traiçoeiro, encouraçado de sólida e compactaignorância e estupidez, a não ser quanto ao seu faro e à suatécnica de algoz experimentado. Aproveitava cada ocasião parase proclamar orgulhoso de seu sangue alemão e de seu triân­gulo verde; exibia um arrogante desprezo para com seusquímicos esfarrapados e famintos: - lhr Doktoren! lhr lntelli­genten! (Vocês doutores! Vocês inteligentes!) - debochavacada dia, ao ver-nos nos atropelando, estendendo as gamelas,na hora do rancho. Com os mestres externos era extremamente

condescendente e servil; com os SS mantinha relações de cordialamizade.

Ficava claramente· acanhado diante do Registro do Kom­mando e da relação diária dos trabalhos executados; foi este ocaminho que Pikoloencontrou para se tornar necessário. Umcaminho demorado, cauteloso e sutil, que o Kommando inteiroacompanhou ansiosamente durante um mês; por fim, a resis­tência do ouriço foi vencida e Pikolo confirmado em seu cargo,com alívio de todos os interessados.

Embora Jean não abusasse de sua posição, já tínhamos

constatado que uma palavra dele, pronunciada na entonação

e no momento certos, podia valer muito; ele já conseguira salvaralguns nós do chicote ou da demÍncia aos SS. Fazia uma semana

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que Jean e eu nos tornáramos amigos: tínhamos descobertoessa amizade na ocasião excepcional de um alarme aéreo; logo,porém, apanhados pelo ritmo feroz do Campo, só tínhamostrocado algum aceno apressado, no banheiro ou no lavatório.

Segurando-se com uma das mãos na escada oscilante, eleapontou para mim: - Aujourd'hui c'est Primo qui viendraavec moi chercher ia soupe (Hoje é Primo quem vai comigobuscar a sopa).

Até o dia anterior tocara a Stern, o transilvano vesgo, masele caiu em desgraça por não sei que história de vassourasroubadas no galpão, e Pikolo conseguira apoiar minha candida­tura como ajudante no Essenhoien, na função diária do rancho.

Subiu de volta; eu fui atrás dele, piscando os olhos naolaridade do dia. O ar era tépido, o sol levantava da terra gordaum leve cheiro de tinta e de breu que me lembrava a praia eos barcos dos verões da minha infância. Pikolo me alcançou

uma das alças do panelão e nos encaminhamos sob um clarocéu de junho.

Fiz menção de agradecer; ele me interrompeu, não havianecessidade. Viam-se os Cárpatos nevados. Respirei o ar fresco,sentia-me estranham ente leve.

- Tu es jou de marcher si vite. On a ie temps, tu sais(Estás louco ao andar com essa pressa. Temos tempo). O ran­cho situava-se a um quilômetro de distância; logo, devia-seretomar com o panelão de cinqüenta quilos seguro nas alças.Um trabalho um tanto cansativo, mas que incluía uma cami­nhada agradável na ida, sem levar carga, e a ocasião sempredesejada de se aproximar das cozinhas.

Encurtamos o passo. Pikolo, esperto, escolhera o trajeto demaneira a darmos uma larga volta, caminhando ao menos umahora, sem despertar suspeitas. Falávamos de nossas casas, deEstrasburgo e de Turim, de nossas leituras, de nossos estudos.De nossas mães: como são parecidas todas as mães! Tambéma mãe dele repreendia-o por não saber nunca quanto dinheirolevava no bolso; também a mãe dele ficaria atônita se pudessesaber que seu filho conseguira se safar; que dia após dia aindase safava.

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Passa um SS de bicicleta. É Rudi, o Chefe de Setor. Alto,continência, tirar o boné. - Sale brute, celui-là. Ein ganz ge­meiner Hund (Sujo bruto, esse. Cachorro vagabundo).

- Para ti é indiferente falar francês ou alemão? - É.- Jean pode pensar em qualquer das duas línguas. Esteve ummês na Ligúria, gostou, gostaria de aprender italiano. Eu bempoderia lhe ensinar. Quer? Por que não? Vamos começar agoramesmo, qualquer coisa serve, o importante é não perder tempo,não desperdiçarmos esta hora.

Passa Limentani, o romano, arrastando os pés, com umagamela escondida por baixo do casaco. Pikolo cuida, pega al­guma palavra do nosso diálogo, repete-a rindo: - Zup-pa,cam-po, ac-qua.

Passa Frankel, o espião. Vamos apressar o passo, nuncase sabe. Esse faz o mal só por fazer.

. " O canto de Ulisses. Quem sabe como e por que veio­me à memória, mas não temos tempo para escolher, esta horajá não é mais uma hora. Se Jean é inteligente, vai compreender.Vai: hoje sinto-me capaz disso.

Quem é Dante? Que é a Divina Comédia? Que sensaçãoestranha, nova, a gente experimenta ao tentar esclarecer, empoucas palavras, o que é a Divina Comédia. Como está organi­zado o Inferno. O que é o "contrapeso", que liga a pena àculpa. Virgílio é a razão. Beatriz a Teologia.

Jean ouve atento. Eu começo, lento, cuidadoso:

"Lo maggior corno della fiamma anticaComincià a crollarsi mormorando,Pur come quella cui vento attatica.Indi, Ia cima in qua e in là menando,Come fosse Ia lingua che parlasse,Mise fuori Ia voce edisse: Quando ... "7

7 "Eis que a ponta maior da chama antiga/começou a mover-se, crepi­tando/tal a que um vento ríspido castiga. /E de um c outro lado seagitando/um som soprava, como que saído/de seu calor, c que dizia:'Quando ... " (Divina Comédia, XXVI Canto, Dante Alighieri). É ocanto em que Ulisses conta como morreu. (N. do T.)

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Aqui paro e tento traduzir. Um desastre: coitado de Dantee coitado do francês! O ensaio, porém, parece que está dandocerto; Jean se admira com a estranha comparação da línguacom a chama; sugere-me a palavra apropriada para traduzir"antica" .

E depois de "quando"? Nada. Um buraco na memória."Antes que a houvesse Enéias conhecido". Mais um buraco.Vem à tona algum fragmento inaproveitável: "nem a extremadavelhice de meu pai, nem mesmo o amor de Penélope ansiosae apaixonada ... " (Será que está certo?)

". " Ma misi me per l'alto mare aperto"Eu me meti pelo alto-mar aberto. Disto, sim, estou bem se­

guro, posso explicar a Pikolo por que "me meti" não é je memis, é bem mais forte, mais audaz, é como rebentar uma amar­ra, é nos jogarmos além de uma barreira; conhecemos bem esseimpulso. O alto-mar aberto: Pikolo viajou por mar, sabe o queé isso, quando o horizonte se fecha sobre si mesmo, livre, reto,puro, quando só há cheiro de mar: lembranças suaves, cruel­mente longínquas.

Chegamos à Central Elétrica, onde trabalha o Kommandodos que colocam os cabos. O engenheiro Levi deve estar lá.Está: enxerga-se apenas a sua cabeça, por cima da escavação.Abana para mim; É homem de fibra, nunca o vi abatido, nuncafala em comida.

"Mar aberto". "Mar aberto". Sei que rima com diserto.. '. quella compagna - picciola, dalla qual non fui diserto(junto à pequena e fraternal tripulação - pela qual nunca fuiabandonado), mas não lembro se esse verso vem antes, ou de­pois. E até a viagem, a viagem temerária além das Colunas deHércules, que pena, tenho que contá-Ia em prosa: um sacrilégio.Só consegui salvar um verso, mas vale a pena demorar-nos umpouco nele:

Accià che 1'uom piit oltre non si mettapara que além o homem não me meta. Si metta: precisei entrarno Campo de Concentração para me dar contar de que é amesma expressão de antes: e misi me. Mas não falo disso aJean, não estou seguro de que se trate de uma observação im­portante. Quantas coisas mais haveria que dizer, e o sol já está

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alto, já é quase meio-dia. Estou com pressa, com uma pressadanada.

Cuidado, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, eu precisoque compreendas:

"Considerate Ia vostra semenza:Fatti non foste a viver come bruti,ma per seguir virtude e conoscenza."8

É como se eu também ouvisse isso pela primeira vez: comoum toque de alvorada, como a voz de Deus. Por um momento,esqueci quem sou e onde estou.

Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom:compreendeu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais:talvez (apesar da tradução pobre e do comentário banal e apres­sado) tenha recebido a mensagem, percebido que se refere aele também, refere-se a todos os homens que sofrem e, espe­cialmente, a nós: a nós· dois, nós que ousamos discutir sobreestas coisas, enquanto levamos nos ombros as alças do rancho.

"Li miei compagni fec'io SI acuti ... "

("E tanto os companheiros fiz agudos ... "). Esforço-me, emvão, por explicar quantas coisas significa esse "agudos". Nova­mente uma lacuna, desta vez irreparável.

"Lo lume era di sotto della luna ... "

("E sobre o mar o resplendor da lua ... ") - ou algo assim,mas, e antes? Nem idéia, keine Ahnung, como se diz aqui. Queme perdoe o Pikolo, esqueci no mínimo quatro estrofes.

- Ça ne fait rien, vas-y tout de même (Não faz mal, tocaadiante).

"Quando mi apparve una montagna, brunaPer Ia distanza, e parvemi alta tantoChe mai veduta non ne avevo alcuna."9

Sim: "tão alta", não "muito alta"; oração consecutiva. Eas montanhas, quando a gente as vê aO longe, ó Pikolo, Pikolo,

8 "Relembrai vossa origem, vossa essência;/vós não fostes criados parabichos,/e sim para o valor e a experiência."9 "De repente, a montanha aparec~u/cinzenta, na distância; alta, tãoalta/como jamais tinha visto alguma".

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diga alguma coisa, fale, não me deixe pensar nas minhas mon­tanhas, que me apareciam na penumbra do crepúsculo quandoeu retomava de trem para casa!

Basta, vamos adiante com a poesia. Nessas lembranças agente pode pensar; falar, não. Pikolo espera e olha para mim.

Eu renunciaria à minha ração de sopa para poder ligar"non ne avevo alcuna" com os versos finais. Esforço-me porreconstruir essa ligação por meio das rimas, fecho os olhos,mordo os dedos; não serve, o resto é silêncio. Dançam-me pelacabeça outros versos: "La terra lagrimosa diede vento ... " ("Aterra lacrimosa abriu-se em vento ... ") ... não, é outra coisa.É tarde já, é tarde, chegamos. à cozinha, vou ter que concluir:

"The volte il fe' girar con tutte l'acque;alla quarta levar Ia poppa in susoe Ia prora ire in giit, come altrui piacque"lO

Seguro Pikolo, é absolutamente necessário e urgente queescute, que compreenda o que significa esse "come altrui piac­que", antes que seja tarde demais: amanhã, ou ele ou eu pode­remos estar mortos ou não nos rever nunca mais, devo falar­lhe, explicar-lhe o que era a Idade Média, esse anacronismotão humano e necessário e no entanto inesperado, e algo mais,algo grandioso que acabo de ver, agora mesmo, na intuição deum instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estaraqui, hoje ...

Já estamos na fila da sopa, no meio da multidão sórdida

e e.,.sfarrapadados carregadores de sopa dos outros Kommandos.Os 'recém-chegados aglomeram-se atrás de nós. - Kraut undRiÜben? - Kraut und Rüben. - Anuncia-se oficialmente quea sopa, hoje, é de couves e nabos: - Choux et navets. ­Kaposzta és répak.

"Infin che'l mar fu sopra noi richiuso." (Até que o marfechou-se sobre nós).

10 "Três vezes o girou no torvelinho;/na quarta levantou a popa aoalto/e mergulhou a proa, porque assim quis/uma vontade superior ...••

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