o campo simbÓlico da barquinha e santo daime: a … · cantar os hinos dentro do ritual, significa...

15
Cachoeira Bahia Brasil, 21, 22 e 23 nov/18 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A MÚSICA COMO MEMÓRIA DE UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL MOURA, Luiz Augusto Ferreira1 Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, [email protected] Resumo: Este trabalho buscou analisar elementos do campo cosmogônico e cosmológico das duas religiões ayahuasqueiras surgidas em solo acreano durante a primeira metade do século XX: Barquinha e Santo Daime, observando o período da construção social do estado do Acre, e como esses elementos simbólicos materiais e imateriais articulam musicalmente nos Hinos e Salmos destas duas religiões. A música dessas religiões agrupa diversos aspectos sociais e culturais hibridizados entre os principais grupos sociais que formaram o estado; entre eles os nordestinos, árabes, indígenas e europeus. A análise observa a música ayahuasqueira do Acre como um elemento impar na compreensão da Revolução Acreana, do Ciclo da Borracha e na geopolítica do estado, uma aura presente nos Hinos e Salmos da Barquinha e Santo Daime originários de um período “mítico” da formação social e cultural do Acre, entoados e cantados dentro dos rituais até o presente século XXI. A música é compreendida como uma comunicação com divindades, cujo principal papel, centra-se nos processos de Cura e doutrinação dos fiéis. Palavras-chave: Ayahuasca, Barquinha, Santo Daime, Amazônia O campo simbólico daimista, a geografia e a memória: A organização ritual da Barquinha e do Santo Daime, duas, das três religiões2 ayahuasqueiras institucionalmente brasileiras, situam-se dentro de uma cosmogonia diversificada, cuja composição ritual transita desde o rito ao panteão de santos católicos, Orixás do Candomblé, espíritos da floresta e os encantados3 (MERCANTE, 2005). A unificação desse panteão de origens diversificadas, dentro do conjunto ritual da Barquinha e do Santo Daime, nesta análise, não busca desqualificar os ritos xamânicos ayahuasqueiros, e principalmente vegetalistas, mas sim, e principalmente, compreender o contexto ao qual a ayahuasca é deslocada e as suas variadas formas de apropriação. Neste sentido a ayahuasca busca 1 Músico graduado pela Universidade Federal do Acre e pesquisador na área da Etnomusicologia em ritos e cultos xamânicos do ocidente amazônico. Atualmente desenvolve o mestrado no PPGM/UFPE acerca do uso ritual da ayahuasca na Barquinha em Rio Branco (AC) sobre a “psicografia musical” e memória ayahuasqueira. 2 Santo Daime (1935), Barquinha (1945) e União do Vegetal (1961) 3 Encantados dentro da Barquinha e Santo Daime, são seres divinos que vivem em um plano superior espiritual. Estão divididos em três graus hierárquicos: Céu (o primeiro), Mar (o segundo) e Terra (o terceiro). Essa divisão visa qualificar o grau de ação, poder e representatividade, sendo o Céu e o Mar “mundos” mais evoluídos que o nosso (Terra).

Upload: others

Post on 16-Oct-2019

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/18 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas

O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A MÚSICA COMO

MEMÓRIA DE UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL

MOURA, Luiz Augusto Ferreira1

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil,

[email protected]

Resumo: Este trabalho buscou analisar elementos do campo cosmogônico e cosmológico

das duas religiões ayahuasqueiras surgidas em solo acreano durante a primeira metade do

século XX: Barquinha e Santo Daime, observando o período da construção social do estado

do Acre, e como esses elementos simbólicos materiais e imateriais articulam musicalmente

nos Hinos e Salmos destas duas religiões. A música dessas religiões agrupa diversos

aspectos sociais e culturais hibridizados entre os principais grupos sociais que formaram o

estado; entre eles os nordestinos, árabes, indígenas e europeus. A análise observa a música

ayahuasqueira do Acre como um elemento impar na compreensão da Revolução Acreana, do

Ciclo da Borracha e na geopolítica do estado, uma aura presente nos Hinos e Salmos da

Barquinha e Santo Daime originários de um período “mítico” da formação social e cultural

do Acre, entoados e cantados dentro dos rituais até o presente século XXI. A música é

compreendida como uma comunicação com divindades, cujo principal papel, centra-se nos

processos de Cura e doutrinação dos fiéis.

Palavras-chave: Ayahuasca, Barquinha, Santo Daime, Amazônia

O campo simbólico daimista, a geografia e a memória:

A organização ritual da Barquinha e do Santo Daime, duas, das três religiões2

ayahuasqueiras institucionalmente brasileiras, situam-se dentro de uma cosmogonia diversificada,

cuja composição ritual transita desde o rito ao panteão de santos católicos, Orixás do Candomblé,

espíritos da floresta e os encantados3 (MERCANTE, 2005).

A unificação desse panteão de origens diversificadas, dentro do conjunto ritual da Barquinha

e do Santo Daime, nesta análise, não busca desqualificar os ritos xamânicos ayahuasqueiros, e

principalmente vegetalistas, mas sim, e principalmente, compreender o contexto ao qual a

ayahuasca é deslocada e as suas variadas formas de apropriação. Neste sentido a ayahuasca busca

1 Músico graduado pela Universidade Federal do Acre e pesquisador na área da Etnomusicologia em ritos e cultos

xamânicos do ocidente amazônico. Atualmente desenvolve o mestrado no PPGM/UFPE acerca do uso ritual da

ayahuasca na Barquinha em Rio Branco (AC) sobre a “psicografia musical” e memória ayahuasqueira.

2 Santo Daime (1935), Barquinha (1945) e União do Vegetal (1961)

3 Encantados dentro da Barquinha e Santo Daime, são seres divinos que vivem em um plano superior espiritual. Estão

divididos em três graus hierárquicos: Céu (o primeiro), Mar (o segundo) e Terra (o terceiro). Essa divisão visa

qualificar o grau de ação, poder e representatividade, sendo o Céu e o Mar “mundos” mais evoluídos que o nosso

(Terra).

Page 2: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

traduzir e reorganizar, em novos contextos geográficos, as memórias e afetos que representam as

origens dos migrantes e imigrantes que chegaram ao Acre; a unificação dessa cosmogonia,

condicionou complexas formas de ritualizar esses seres divinos oriundos de outras partes do Brasil e

do mundo dentro de rituais ayahuasqueiros na Amazônia, principalmente no Acre.

Nessas duas religiões daimistas4, a música é quem norteia todo o roteiro ritual através de

canções que tem uma carga simbólica determinante dentro do contexto observado. As músicas são

entendidas como mensagens recebidas de divindades que habitam uma dimensão espiritual elevada,

entendida em ambas as religiões como o mundo Astral. Obtidas através de processos mediúnicos, os

Hinos e Salmos, são compreendidos dentro de um processo intitulado de recebimento; essas

músicas tem uma carga afetiva de grande valor para os daimistas, articulam memórias sacras,

dogmas e em um nível mais profundo, instruções de cura (física e espiritual). (MOURA, 2017)

Neste sentido, é importante salientar que os primeiros Hinos e Salmos foram recebidos

dentro de um contexto histórico importante tanto do surgimento institucional do estado do Acre,

quanto no surgimento dessas duas religiões. É interessante observar que as poesias dessas canções

articulam diversas palavras do período militar revolucionário acreano, e principalmente das crenças

do catolicismo popular nordestino e dos ritos afro-brasileiros, que chegaram ao Acre através das

grandes diásporas e migrações que ocorreram (e ocorrem) desde meados do século XIX puxados

pelo boom5 da borracha na Amazônia ocidental (FONSECA, 2011). A Barquinha e o Santo Daime

representam um locus que enquadram os processos interculturais que sustentam o campo ritual

dessas religiões na modernidade (OLIVEIRA, 2017), apropriando-se de elementos do folclore

seringalista, da natureza amazônica, das forças armadas da Revolução Acriana, do xamanismo

indígena, e principalmente, do vegetalismo peruano (GOULARD, 2004).

As dificuldades dos primeiros que chegaram a região foram muitas. A princípio, os

primeiros habitantes e trabalhadores dos seringais que extraiam o látex para os coronéis

seringalistas, eram analfabetos e foram “driblados” por uma extensa publicidade quanto a

“prosperidade amazônica” em pleno assolado sertão nordestino. Com a divulgação das fartas terras

amazônicas, as primeiras levas de nordestinos chegaram no Acre em meados de 1890 (FONSECA,

4 Segundo Sandra Goulard (2004) em sua tese, o termo “daime” surge como um ressurgimento do uso “sagrado” da

Ayahuasca. As religiões chamadas “ayahuasqueiras” eram tidas como cultos “inferiores” e seu uso, foi rotulado

como magia negra. Após Irineu Serra conhecer a ayahuasca com os Irmãos Costa na fronteira com o Acre e Peru

(cujo relato também narra ser um ritual de magia negra), Mestre Irineu recebeu a missão de fundar o Santo Daime

de uma entidade espiritual intitulada Clara, a Lua. O surgimento da palavra daime, dentro da cosmologia daimistas,

refere-se a Luz, daime força, daime saúde, etc.

5 O Primeiro Ciclo da Borracha na Amazônia aconteceu no final do século XIX e no início do século XX,

principalmente na região de fronteira do Acre/Peru/Bolívia. O ápice do ciclo foi entre 1879 e 1912, após o

surgimento do automóvel, quando a indústria automobilística potencializou o uso da borracha. A borracha é obtida a

partir do látex da seringueira, árvore originária da Amazônia.

Page 3: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

2011), sendo obrigados a adquirirem dívidas e os forçando a permanecer no Acre trabalhando no

extrativismo borracheiro. A cosmologia e cosmogonia do “retirante” nordestino se confunde e se

mistura com a própria formação cultural do Acre.

É interessante observar que esse período de “martírios” é um importante potencializador da

fé humana dentro do catolicismo popular nordestino sertanejo, que naquele período, e até hoje no

século XXI, são constantemente assolados pela seca e o sofrimento do árido sertão; outra

característica importante nesse contexto pode ser vista na composição dos soldados que batalharam

na Revolução Acreana, em grande parte seringueiros, indígenas e os economicamente mais

desfavorecidos. Muitos deles, e suas gerações seguintes, foram seguidores de Mestre Irineu Serra,

fundador do Santo Daime nos primeiros anos iniciais de seu surgimento,

Nesse contexto, é importante observar esses elementos na construção da Aura desse período

tido como mítico entre os daimistas e os acreanos; a saudade da terra natal, e a felicidade de uma

nova terra farta para viver, delimita a organização social em torno de sentimento e percepções

compartilhadas. Walter Benjamin diz que “no interior de grandes períodos históricos, a forma de

percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo em seu modo de existência”

(BENJAMIN,1927; p.159), nesse sentido, essa Aura, ou, esse período mítico compartilhado entre

os daimistas e acreanos, é definido como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e

temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”

(BENJAMIN,1927; p. 170).

A própria ideia de miração6 que se tem durante os rituais ayahuasqueiros, compartilha da

ideia de Aura assim definida por Benjamin acima (BENJAMIN,1927), percebidas na poética dos

Hinos Santo Daime e Salmos da Barquinha, enfatizando batalhas espirituais, lutas, guerras astrais,

exércitos de Jesus Cristo, soldados da paz etc.

Os hinos e salmos podem ser percebidos como uma narrativa dessa Aura. Estruturados em

complexos arranjos poéticos, eles dialogam com o que se veem no dia-a-dia nas ruas, dentro e fora

da vida ritual. A história espiritual se organiza dentro de livros que agrupam o conjunto de

sofisticadas obras musicais, os Hinários. Esses blocos musicais unem essas músicas recebidas pelos

daimistas de forma bastante peculiar; dividem-se em funções (cura, instrução, concentração, etc) e

organiza musicalmente todo o espaço ritual e rotina dos daimistas.

Não somente a música e toda a sua organização técnica e teórica (harmônica, melódica,

rítmica, etc.) são determinantes na vida dos daimistas acreanos. Dentro do vasto campo geográfico

6 A miração é o momento do transe da ayahuasca. É compreendida como o momento onde o espírito se encontra em um

plano superior ao mundo físico; o espírito “desprende-se” da ilusão do mundo material, carnal e eleva-se ao plano

Astral onde receberá instruções e curas por divindades.

Page 4: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

do estado do Acre, a memória pode ser acessada em vários momentos e lugares: nas ruas, nas

vestimentas, na arquitetura, até mesmo na própria culinária. Michel Pollak, diz que a memória pode

ser compreendida em diversos “enquadramentos” dentre eles os materiais (bustos, ruas, bairros,

estátuas, igrejas, livros, etc) e imateriais, neste caso abordado: a música (POLLAK, 1989).

O enquadramento dessas memórias é utilizado para doutrinar e/ou delimitar relações de

poder tanto no campo da espiritualidade religiosa quanto na vida social. Dentro da compreensão

daimista, o ritual não está centrado somente dentro da igreja, ele transita com a pessoa além dos

portões institucionais dos templos, está dentro de casa, e em todos os lugares que o fiel possa

transitar; lugares determinantes da prática da caridade e da fraternidade daimista.

IMAGEM 1: Existe em Rio Branco um Bairro chamado Irineu Serra, em homenagem ao fundador da

religião do Santo Daime. A presença do Santo Daime na história da região implica em uma coesão entre o

ritual religioso e a própria vida cotidiana. Marisa Peirano (2006) diz que o sentido do ritual está diretamente

conectado com a rotina. Foto tirada por Luiz Augusto Moura durante a pesquisa de campo em 2018.

Dentro deste complexo mosaico cultural, as religiões daimistas enquadram suas memórias e

as acessam durante os rituais nessa Aura contida nas obras musicais. Os hinos e salmos, extrapolam

as barreiras puramente estéticas. A importância dessas músicas dentro do contexto ritual (em um

sentido micro[indivíduo] e macro [rotina do indivíduo]), representam o contato mágico com o

divino (KASTRUP, 2016); seguir as instruções que as músicas reúnem, fazem dos daimistas

pessoas “auráticas”, ou seja, portadores de virtudes e valores humanos que os fundadores7 tinham.

Os fundadores (tidos como Mestres) receberam “mensagens” do mundo Astral durante os primeiros

rituais ayahuasqueiros em solo acreano, cuja época está fundada anteriormente ao próprio

surgimento da religião, e também das primeiras décadas da estruturação do estado federativo do

Acre. (MOURA, 2017)

Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas

obras. O processo hierárquico dessas duas religiões passou a se constituir, primeiramente, pela

7 Os fundadores da Barquinha e do Santo Daime são o Mestre Raimundo Irineu Serra (Santo Daime) e Mestre Daniel

Pereira de Matos (Barquinha).

Page 5: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

necessidade de uma tradição oral, mecanismo esse que determinou a necessidade da música e sua

centralidade, e principalmente a memorização dos hinos/salmos, fundamentais dentro do conjunto

ritual. Esses cânticos (agrupados nos hinários) são controlados e materialmente restritos aos

padrinhos e madrinhas, mestres e os irmãos de longa data (LABATE; PACHECO, 2009).

A centralidade da música dentro dos rituais, pode ser compreendida pela agravante

dificuldade da leitura e escrita dos primeiros irmãos que receberam os hinos, que posteriormente,

décadas depois, passariam a grafa-los nos hinários. Os hinos gravados no coração (KASTRUP,

2016 e GOULARD, 2004), representam também, dentro dos rituais daimistas da Barquinha e do

Santo Daime, uma importante noção coletiva quanto ao compreendimento do processo evolutivo

espiritual da cosmologia daimista.

Em uma cultura primariamente oral, a memorização dessas canções tornou-se elemento

primordial na composição hierárquica. Memoriza-las significa ter recebido o merecimento de gravar

aquela música no coração, podendo acessa-la dentro de si a qualquer momento os seus mistérios. A

memorização coletiva também estimula a memorização individual. Ela é exercitada constantemente

através da repetição dos cânticos e de partes principais das estrofes, um exercício de performance

musical estritamente conectado nas instruções dadas pelos fundadores.

As músicas dessas duas religiões além de estarem conectadas na cosmogonia do catolicismo

popular, das crendices da Amazônia, encantos do oriente e divindades do panteão do candomblé e

da umbanda, os hinos/salmos narram “misteriosamente” a biografia dos fundadores e das

divindades que enfrentam batalhas no mundo Astral, buscando compartilhar com os daimistas neste

plano material, os caminhos rumo à Deus e aos líderes daimistas que estavam presentes nas lutas

que construíram o estado do Acre. A ideia do surgimento da Barquinha, concentra-se no período

onde Mestre Daniel era marinheiro e soldado da marinha brasileira, onde comandou por muitos

anos um Barco que rodou o mundo durante a primeira e segunda guerra mundial.

É importante observar que a construção cosmológica da Barquinha se deu através da

separação e cooperação entre as instancias legais e jurídicas externas, além da própria estrutura

hierárquica interna que estruturou a ideia de caridade da religião (GOULARD, 2004). Tanto na

confecção da bebida quanto da “produção musical”, a divisão das atividades pré-definidas durante

os rituais entre homens e mulheres, organizam e estruturam a compreensão do caminho espiritual

que se busca alcançar por meio da caridade. A busca pela cura física e espiritual é um complexo

agrupamento de “cumprimento as regras” que se dividem desde a coleta do cipó (pelos homens) e

as folhas (pelas mulheres) até o cantar dos hinos/salmos pelos puxadores e respondidos

responsorialmente em uníssono pelos irmãos dentro da igreja (KASTRUP,2016).

Page 6: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

Dentro desta perspectiva coletiva, no campo econômico e social da Arte, Becker observa

essa coletividade como um fenômeno definidor de fronteiras produtivas quanto aos processos de

confecção e difusão de bens artísticos. Articulando a ideia de uma teoria da ação coletiva, Becker

(1977) define uma cadeia de agentes colaboradores que através de determinados mecanismos e

divisões, desenham o caminho que a obra ou produto artístico terá de seguir para êxito no consumo.

No caso dos Hinos e Salmos, não foi visto dentro deste contexto abordado, intenções

econômicas ou similares; foi perceptível uma sistemática cadeia de produção e organização dessas

canções por meios mediúnicos, cuja função centra-se no merecimento de graças espirituais que

podem ser alcançadas através de interpretações corretas das obras.

A difusão dessas músicas tem um centro definido, o puxador, o Padrinho ou Madrinha. Os

irmãos daimistas são quem devem descobrir e alcançar o merecimento de desvendar o mistério

dessas canções dentro da miração. A pessoa que recebe o Hino/Salmo é apenas um mediador dessa

mensagem, entendido muitas vezes também até como um artista. Mesmo sem intenções comerciais

e econômicas, há trocas de capitais simbólicos, prestígio, e muitas vezes, elevações hierárquicas.

Não de forma economicamente explicita, mas dentro de um contexto de prestígio dentro da

Barquinha e do Santo Daime “o artista trabalha no centro de uma ampla rede de pessoas em

cooperação cujo trabalho é essencial para o resultado final” (BECKER, 1977; p. 206).

Ainda quanto a redes colaborativas dentro dos processos de difusão e criação da arte

(observando neste ponto a música daimista dentro deste contexto de produção e difusão “estética” e

simbólica), a concepção de arte daimista se nivela ao que Becker diz quanto a arte como uma

forma de ação coletiva, sendo que, até o êxito final de determinada obra, toda a cadeia produtiva

do hino/salmo passa por uma institucionalização ritual que legitimará o “produto” e o difundirá

nas sessões, registrará no hinário e posteriormente, gravado no coração.

Esses processos de legitimação das músicas transitam com as convenções quanto a

pertinência dessa obra no contexto ritual, e principalmente, os elementos que esta obra tem em

diálogo com a memória histórica coletiva. Os ensinamentos que determinados hinos/salmos

oferecem, são observados, assim como Becker observa no campo da arte, através de convenções

que “ditam as abstrações a serem utilizadas para transmitir ideias ou experiências particulares [...].

As convenções ditam a forma na qual materiais e abstrações serão combinados” (BECKER, 1977;

p.213), porém, é importante salientar que essas convenções não são solidas e imutáveis, pois

“embora padronizadas, as convenções raramente são rígidas e imutáveis. Elas não especificam um

conjunto inviável de regras ao qual todo mundo deve se referir ou estabelecer questões sobre o que

fazer” (BECKER 1977; p.214).

Page 7: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

A reorganização desse material simbólico que está conectado nas memórias e nos

ensinamentos dos hinos/salmos, passam por um processo de legitimação onde “as convenções

artísticas cobrem todas as decisões que devem ser tomadas em relação a obras produzidas num dado

mundo artístico, mesmo que uma convenção particular possa ser revista para uma determinada

obra” (BECKER, 1977; p.212). Sendo assim, todo o processo hegemônico dos “receptores” dos

hinos/salmos, devem passar pela “aceitabilidade” e principalmente quanto a capacidade da

memorização de determinada canção.

Para que isso ocorra, uma série de dispositivos (materiais como: acústica, instrumental,

técnica, etc.) e agentes são acionados para que determinado hino/salmo consiga acessar a memória

coletiva construída na musicalidade e sonoridade dessas religiões. Quanto as questões teóricas

dentro do âmbito musical, os hinos/salmos dividem-se de forma bastante similar: I grau, II grau, IV

grau, V grau podendo cadenciar para o VII grau maior ou voltar para o I grau, cair para a relativa

menor, para o II grau e a tônica novamente. É interessante observar que há um constante contraste

das tensões e resoluções harmônicas, criando uma atmosfera muitas vezes tensa e ao mesmo tempo

calma.

Tal como Becker percebe essa dinâmica sônica dentro do campo da produção musical

ocidental, tanto a Barquinha quanto o Santo Daime, que dialogam com essa esfera harmônica

costumeira aos nossos ouvidos, a música nessas duas religiões se estruturam entre tensões e

resoluções, que dentro da miração do daime, reforçaria a ideia de dualidade tão presente na

cosmologia dessas duas religiões. As dualidades tão importantes para os daimistas tais como o certo

e errado, o sagrado e profano, o erro e o acerto, céu e inferno, apresenta-se na harmonia de forma

bastante contundente, que para o músico durante a performance “ao usar uma organização

convencional de tons tal como uma escala, o compositor [receptor] pode criar e manipular as

expectativas, gerando tensão e descontração quando finalmente a expectativa é satisfeita (BECKER,

1977; p. 213).

O poder dos Mestres: A música como doutrina, acessando a memória

coletiva

Distribuídas e agrupadas, isoladas ou não, tanto na Barquinha, quanto no Santo Daime, os

Hinos/Salmos são fundamentais dentro do processo doutrinário e até mesmo político dessas

religiões. Assim como dito acima, essas músicas derivadas de diálogos entre dois campos

dimensionais: Visível e Invisível (a “sensitividade” Humana), ou também, como mensagens do

mundo Astral. O próprio processo de recebimento dos hinos está encoberto, como dizem os irmãos,

Page 8: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

de mistérios. O enquadramento desses diálogos, nesta análise, é compreendido assim como na tese

de Sandra Goulard (2004), como uma “psicografia musical” (GOULARD, 2004), cujo processo de

transe está estritamente conectado em um canal independente e indiferente ao da

criação/composição; o recebimento de hinos, aqui poderia também ser compreendido como um

transe, um processo apenas mediado pelo ser humano, que assim como Kastrup:

Receber um hino é absolutamente diferente de compor uma música,

isso por que em uma composição, ainda que possa existir o fator da

“inspiração” ou até mesmo da “intuição”, o compositor é sujeito do

processo de autoria, estando apto a experimentar, alterar, influenciar

a música em todas as suas dimensões: rítmica, harmônica, melódica

e poética; sentindo-se de alguma forma o seu proprietário, aquele

que “faz”, “cria” e/ou “inventa” (KASTRUP, 2007)

Ainda dentro da conceitualização do recebimento dos Hinos/Salmos, Gustavo Pacheco e Bia Labate

(2009), aprofundam o discurso dentro da música, observando o campo simbólico que alicerça os

símbolos e signos responsáveis pela “coesão social” de cada canção, os quais no início deste texto

foram abordados.

Musicalmente, o fenômeno do recebimento é considerado como um processo performático,

já que, além dele ser um fenômeno recorrente, ou seja, se replica (de formas variadas, porém

especificas quanto a sua função), ele segue uma forma ritual “pré-organizada”. Rose Hikiji observa

como a prática musical como objeto de análise das sociedades, podem revelar significantemente os

significados dos grupos pela esfera da sensibilidade (HIKIJI, 2005; p.272). A música daimista que

absorve sonoridades da floresta, dos animais, das aguas e da geografia que circula todo o campo

geográfico da Aura dessas religiões, é percebido, assim como por Hikiji, como diferentes razões

sensoriais (HIKIJI, 2005; p.275). Ao relatar sobre os Suyá, sobre o barulho e o silencio, dizendo

que, o barulho para o grupo é característico do coletivo, do eufórico, e o silencio seria associado a

raiva, aos amantes e feiticeiros ( HIKIJI, 2005; p.274), o “barulho” dentro da Barquinha revelaria a

presença de uma entidade em terra, trabalhando para a caridade, a dinâmica das palavras, da oração

e da comunhão do pensamento, já o silencio, a conversa com o seu Eu superior (GOULARD,

2004), um momento de concentração cuja principal função está no conhecimento externo, através

do autoconhecimento.

O recebimento pode acontecer nos mais variados momentos: durante as sessões de daime,

em sonhos, dentro de ônibus, em casa etc; mesmo assim, receber um Hino/Salmo significa dialogar

com um campo simbólico e musical cujos elementos estão presentes dentro da conjuntura social

diária do grupo. Jorge La Barre diz que “as construções de significados são sempre fruto de

Page 9: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

interpretações com qualquer finalidade” e complementa dizendo que “na produção da história

[poderíamos dizer a história ayahuasqueira], mais do que a memória talvez, é preciso não esquecer

a importância do próprio esquecimento” (LA BARRE, 2012). O esquecimento de um Hino/Salmo

“censurados” e posteriormente “esquecido” dentro de processos hegemônicos, são entendidos

muitas vezes por não englobarem características e símbolos específicos deste campo simbólico

compartilhado pela memória coletiva, como a ausência de elementos poéticos, históricos,

cosmogônicos e muitas vezes melódicos e métricos.

Esse “esquecimento” é um fator importante e responsável por diversas cisões e fissuras

dentro dessas religiões. A não publicação desses hinos¸ proporcionou uma “multiplicação” de

igrejas da Barquinha e Santo Daime por padrinhos e madrinhas que acreditavam na idoneidade de

seus hinos e hinários; outro fenômeno parecido encontrado na literatura, caracteriza outros grupos

que passaram por esse mesmo processo, mas não dentro de religiões institucionalizadas, como

grupos “neo-ayahausqueiros”, por não se enquadrarem em nenhuma dessas doutrinas e negarem

esse passado “erudito” e mítico daimista (GOULARD, 2004).

Marisa Peirano observa que o domínio dos ritos se refere a esfera da ação social (PEIRANO,

2006) sendo que, os rituais “não se separam de outros comportamentos de forma absoluta, eles

simplesmente replicam, refletem, enfatizam, exageram ou acentuam o que já é usual” (PEIRANO,

2006; p. 10).

Receber e transmitir nesse contexto um Hino/Salmo, deverá estar estritamente conectado em

uma cosmologia que dialogue com o campo geográfico amazônico, com o campo simbólico

construído desde meados do século XIX no Acre, e principalmente, na musicalidade que fora

trazida para o Norte do Brasil nos primeiros anos do ciclo da borracha, tais como os ritmos afros

(tambor de mina, ijexá, samba de roda, marujada, capoeira etc.), as romarias das procissões

católicas, e também, os ritmos indígenas presentes.

Tanto na Barquinha quanto no Santo Daime, a geografia que os circunscrevem e o panteão

de entidades que são louvados, são características intrínsecas da espiritualidade dos fundadores

dessas duas religiões. O período da formação do estado do Acre é concomitante com a época do

recebimento dos primeiros Hino/Salmo; a poética dos Hinos/Salmos recebidos tanto por Raimundo

Irineu Serra fundador do Santo Daime em 1935, que fora soldado da borracha no primeiro surto

gumífero, quanto o próprio Daniel Pereira de Matos fundador da Barquinha em 1945, marinheiro da

Marinha Brasileira e ex-combatente da Revolução Acriana, consagraram na poética elementos

vividos e vistos durante o período do surgimento do estado, e também, dessas religiões.

A própria ideia de “fardamento” (iniciação a religião), “lutar no espiritual”, “soldados de

Juramidã”, “Firmeza no combate” etc., são enquadramentos das memórias coletivas construídas

Page 10: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

naquele período inicial, reproduzidos na música. Poderíamos concordar com La Barre, quanto ao

conceito da música como um signo vazio, pronto para ser preenchido com as representações mais

pertinentes para terminadas ocasiões e conveniências (LA BARRE, 2012).

Observemos um pequeno trecho de um Salmo da Barquinha:

“Troco-troco, vem chegando...

Troco-troco já chegou,

Reforço e cavalarias, que Jesus Cristo Mandou”

(Mestre Daniel) [grifos meus]

A forte presença de elementos do militarismo cantados nos Hinos/Salmos, são

característicos e fazem parte da identidade dos mestres fundadores. Esse agrupamento de

informações históricas hoje são narradas na poética dos Hinários8, que analisados, replicam em

“lutas espirituais” grande parte da memória histórica da instauração do Estado Federativo do Acre, e

posteriormente estado anexado ao Brasil em 1962.

A interculturalidade9 da Barquinha é um fenômeno importante que deve ser considerado em

quaisquer que sejam as análises teóricas usadas para os estudos deste contexto. A região na qual a

Barquinha surgiu foi um polo econômico atraente para diversos povos do mundo, dentre eles os

árabes durante a comercialização da borracha. Visível na arquitetura dos casarões de madeira de Rio

Branco, além da importante contribuição das técnicas comerciais e arquitetônicas, os árabes

introduziram na música o apreço pelos “exóticos” comas musicais que auditivamente são

percebidos nas afinações dos violões da Barquinha, que durante a experiência ritual, insinuam um

certa “psicodelia” polifônica ao buscarem uma equalização da dinâmica harmônica durante a

performance.

8 Compilado de obras musicais que narram fatos históricos dos seres divinos, dos fundadores, da própria história local,

e, principalmente, responsável por transmitir toda a doutrina, ensinamentos e disciplina para os Irmãos das

doutrinas.

9 A utilização desse termo visa unificar o panteão dessas religiões, acreditando que o uso do termo “sincretismo”,

aparentemente cairia em uma interpretação errônea de substituição de seres por outros, ou melhor, de representação

de uma entidade por outra, fenômeno que não é visto na Barquinha e no Santo Daime, pois cada ser divino, tem a

sua importância e seu espaço consagrado no Astral. (OLIVEIRA, 2016)

Page 11: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

IMAGEM 2: Antigos Casarões da Gameleira, as bordas os telhados característicos da cultura árabe. Foto tirada

por Luiz Augusto Moura durante os trabalhos de campo de 2018.

Além dessa característica sônica, a presença do oriente e ocidente se hibridizam em um

mosaico sonoro variado: bandolins, citaras, violões, flautas, atabaques, meia-lua, chocalhos, baixos

elétricos etc. ( LABATE; PACHECO, 2009; MOURA, 2017) outros instrumentos são sempre bem

vindos a colaborar nesta experiência; em uma análise mais contextual sobre esse fenômeno, a

própria ideia de Barquinha remete a navegadores de terras distantes, que não param, estão sempre

em transito, sendo os marinheiros (irmãos) os mais diversificados. A ideia de que a música ritual da

Barquinha é um complexo enquadramento de memórias, tanto dos antigos quanto dos presentes

“viajantes”, reforça na performance musical a importância da parte instrumental e timbristica que

colore a cosmologia da performance ritual, remetendo nas levadas instrumentais (como guarânias),

indumentárias, nas afinações e na própria sonoridade do canto, a representatividade sônica do

oriente.

É possível também compreender a música da Barquinha como o complexo sistema

organizador da religião. Nela se alicerça os ensinamentos, as memórias, o futuro e toda a

cosmologia que cerca os grupos daimistas. A música na Barquinha cria o contexto, que, assim como

La Barre ao articular sobre o contributo da Sociologia para a Etnomusicologia reflete que “é todo o

sentido da ideia de “música em contexto”, assim como da “música como contexto” para relembrar a

articulação de Alam Merriam entre “música na cultura” e “música como cultura” (LA BARRE,

2012; p. 116 [grifo meu]).

Page 12: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

IMAGEM 1: A Imagem representa uma sofisticada organização musical e uma preocupação com a aparelhagem e

acústica. A busca por uma experiência sonora mais “lapidada”, é outra característica dessa constante busca pela

“evolução” espiritual através da música.

(Foto tirada por Luiz Augusto Moura durante os trabalhos de campo de 2018 em Rio Branco, Acre.)

CONCLUSÃO:

A proposta dessa reflexão, surgiu a partir de uma análise musical feita da captação do áudio

dos hinos durante o mês de junho, julho e agosto de 2018 na Barquinha Príncipe Espadarte dirigido

pela Madrinha Francisca Gabriel. A compreensão musical torna-se significante quando observada

dentro do contexto cultural e social das pessoas que vivem e constroem diariamente as suas relações

através das reflexões e ensinamentos extraídos da música. A própria criação e/ou recebimento de

todo enquadramento simbólico dessas religiões abordadas, seguem esse parâmetro “estético” e

construtivo. A ideia da poética e ritual que os Hinos/Salmos estão inseridos, ou melhor, que inserem

as pessoas nos ritos, refletem e ecoam do passado, a história e a hegemonia dos fundadores que

passaram a constituir um panteão de dinvidades nos templos daimistas. Neste ponto, a própria ideia

dos fundadores Mestres Irineu Serra e Daniel, inspiram nos irmãos a necessidade da busca pela

caridade, da fraternidade, do perdão, da harmonia e da solidariedade.

A existência física dos fundadores no passado, torna-se importante para a própria analise

subjetiva e individual de cada irmão dentro da igreja, ou seja, a inspiração que vem dos mestres,

pelas suas dificuldades, pelas suas vitórias, e pelo “patriotismo” de uma terra que lutou para ser

brasileira, inspira os irmãos dentro da religião. Essas análises sublinham nortes a serem observados

quanto aos estudos das poéticas dos hinos; o recebimento que ocorre no vegetalismo peruano, os

Ícaros, seguem uma lógica parecida quanto ao fenômeno recorrente no diálogo entre o

Page 13: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

“Invisível/Visível”, no caso dos Ícaros, as músicas são mistérios de cada planta específica, ou de

cada espirito que habita ou vive na planta. Nas religiões Ayahuasqueiras brasileiras, a bebida é

quem media o acesso ao campo simbólico constituído na cosmologia construída pelas migrações,

ritualmente conhecido como Astral.

A análise dos hinos, Salmos e Hinários, é um verdadeiro estudo de história. Memórias,

palavras e versos recebidos em diversos períodos, narram dentro da cosmologia acreana, a própria

história de formação social e cultural daquele povo, que, ao longo do tempo, receberam os

mecanismos para o recebimento, cujo campo simbólico se replica e acompanha o pensamento linear

do tempo e espaço material/espiritual.

BIBLIOGRAFIA:

ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo

centrado na União do Vegetal, 231 páginas, trabalho dissertativo para conclusão de pós-graduação

em religiões, Instituto Metodista de Ensino Superior São Bernardo do Campo, SP, 1995.

ARAÚJO, Maria Gabriela Jahnel. Cipó e Imaginário entre Seringueiros do Alto Juruá. Revista de

estudos da Religião. n.1, p.41-59, 2004.

BECKER, Howard. Arte como ação coletiva: Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro, Zahar,

1977.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica in: Walter

Benjamin. Obras Escolhidas, vol. I (Magia e Técnica, Arte e Política). São Paulo, Brasiliense, pp.

165-196, 1994.

BOURDIEU, P. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu. (org. Renato Ortiz)

Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo. Ed. Ática. 1983.p.7-36{1972}

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, São Paulo: Perspectiva, 2007

DALL MOLIN, Gabrielle. A Performance e os estados alternativos de consciência nos rituais da

ayahuasca. Campinas. v1. n7, p.28-36, 2017.

FONSECA, Dante Ribeiro da. O trabalho do escravo de origem africana na Amazônia. Revista

Veredas Amazônicas, NOV, Nº 01, VOL I, 2011.

Page 14: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

FIGUEIREDO, Napoleão. Presença africana na Amazônia. Afroasia, Salvador 12, p.145-160,

1976.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Publifolha, 2000.

GARRIDO, RG e SABINO, BD. Ayahuasca: entre o legal e o cultural. Saúde, Ética & Justiça.

2009;14(2):44-53.

GOULART, Sandra Lucia. Contrastes e continuidades em uma tradição Amazônica: as

religiões da Ayahuasca. Tese de Doutorado. Campinas, SP, 2004

HIKIJI, Rose. Possibilidades de uma audição da vida social, in: Martins et al. (orgs.), O

imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 271-294. (2005)

KASTRUP, Lucas Fonseca Rehen . Texto e contexto da música no Santo Daime: Algumas

considerações sobre a noção de “Eu”. MANA pg.469-492, 2016.

KASTRUP, Lucas Fonseca Rehen. Receber não é compor: Música e emoção na religião do Santo

Daime. Relig. soc. v.27, no.2, Rio de Janeiro Dec. 2007.

LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. Música Brasileira de Ayahuasca. Campinas,

Mercado de Letras, 2009.

MERCANTE. Marcelo S. Mercante. Barquinha: Religião ayahuasqueira, afro-brasileira ou afro-

amazônica? PLURA, Revista de Estudos de Religião, v.6, n.2, p.100-115, 2015.

MERCANTE, Marcelo S. Mercante. Consciência, miração e cura na Barquinha. Revista de

Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.1, n.2,jul.-dez., p.116-138, 2010.

MOURA, Luiz Augusto Ferreira. A Barquinha a Afro-Amazônia musical. Anais IV Jornada de

Etnomusicologia, Belém, 2017.

MOURA, Luiz Augusto. Música e Espiritualidade: O processo de musicalização dentro das

comunidades Ayahuasqueiras do Acre. 30 páginas. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade

Federal do Acre, 2016.

OLIVEIRA, Isabela Lara. Breve histórico da ressignificação da ayahuasca na religião santo

daime. INTERthesis, Florianópolis, v.7, n.2, p. 316-342, jul/dez. 2010

Page 15: O CAMPO SIMBÓLICO DA BARQUINHA E SANTO DAIME: A … · Cantar os hinos dentro do ritual, significa invocar os mistérios contidos musicalmente nessas obras. O processo hierárquico

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2,

n. 3, 1989

PEIRANO, Marisa. Temas ou teorias: O estatuto das noções de ritual e de performance.

Campos 7(2):9-16, Brasília, 2006

SENADO FEDERAL, O estado independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos históricos.

Edições do Senado Federal – Vol. 56, Brasília, 2005.

SAMPAIO, Patrícia M. (org.). O fim do silêncio – presença negra na Amazônia. Belém: Açaí /

CNPq, 2011. 298 p.

SANTODAIME.ORG.Disponível em: < http://www.santodaime.org/site/religiao-da-

floresta/discipulos/daniel-pereira-de-matos>.Acesso 13 de setembro de 2017.Daniel Pereira de

Matos e a Barquinha. Veiculado em: 2015

SOUZA, Sérgio Luiz de; BRITTO, Leonardo Lucas. Uma interpretação das relações étnico-raciais

na Amazônia ocidental: organizações negras e hierarquia social em porto velho no século XX.

2016.