o campo intelectual e a experiÊncia polÍtica entre os ... · formação, a atmosfera política e...
TRANSCRIPT
O CAMPO INTELECTUAL E A EXPERIÊNCIA POLÍTICA ENTRE OS
LETRADOS NA PROVÍNCIA DO PARÁ NO SEGUNDO IMPÉRIO
Eveline Almeida de Sousa
Mestranda em História Social da Amazônia
Universidade Federal do Pará
Email:[email protected]
Resumo: O artigo discute o pensamento intelectual brasileiro, na Amazônia
oitocentista, na dimensão do Campo intelectual (Pierre Bourdieu) e da experiência como
elementos que marcam a ação política, o discurso, e a atividade intelectual, tomando
como foco o campo intelectual da província do Pará. Considerando este pensamento
como resultado do cotidiano e dos debates ideológicos no universo letrado, no qual a
dinâmica local pode exercer um papel fundamental no processo de adaptação e
reformulações de idéias. Analisando, igualmente, as formulações e percepções dos
intelectuais como parte de um processo que é gestado na ação política e nas práticas do
cotidiano, elementos que constituem a experiência histórica e são evidenciados nos
posicionamentos, visões e projetos elaborados pelos letrados.
Palavras-chave: Intelectualidade - Amazônia – experiência
A intelectualidade é um tema consagrado no âmbito da historiografia sobre o
século XIX, no Brasil. A intrínseca relação da inteligência nacional com o Estado
Imperial, a construção dos elementos formadores da nação, a natureza e composição da
classe de letrados que atuaram no Império, são algumas das questões que inspiram as
análises para compreensão da sociedade Imperial, pelo viés da atividade intelectual e
suas especificidades. Nesse sentido, destaca-se a idéia de campo intelectual de Pierre
Bourdieu e experiência histórica discutida por Edward P. Thompson, como
possibilidades interessantes para dialogar com o tema da intelectualidade. Pois,
considera a vivência no cotidiano, a formação do indivíduo, o pensamento intelectual da
época, os espaços de produção de saber e obras culturais, elementos marcantes na ação
política, percepções e formulações construídas pelos autores.
Para discutir esta relação entre o campo e a atividade intelectual no Segundo
Império, tomamos como foco a província do Pará, destacando algumas falas de dois
autores: Henrique de Beaurepaire Rohan e Couto de Magalhães. Ambos exerceram o
cargo de presidente de província, entre 1855 e 1866, atuando na dinâmica social,
deixaram suas impressões em relatórios, obras, estudos, documentos oficiais, que nos
ajudam a perceber o olhar desses atores sobre a realidade da província. Através desses
discursos, podemos pensar a atividade intelectual, situando-a na noção de campo e
considerando a experiência histórica como fatores que influenciaram a produção de
obras culturais. Configura-se, portanto, este artigo, em mais uma contribuição que ajuda
a compreender a diversidade do universo letrado no Brasil Imperial.
Algumas considerações sobre campo, habitus e experiência
Desde o processo de emancipação política do Brasil, a relação entre intelectuais,
Estado e elites era estreita, principalmente, porque a Independência trouxe a
necessidade de gestação de uma cultura e uma identidade nacional. Relação esta que
teve um aprofundamento no Segundo Reinado com a consolidação do Estado Imperial,
os homens de letras ganharam maior destaque na elaboração de um projeto de
civilização nacional. Com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
1838, espaço destinado para produção do conhecimento e da história da nova nação,
lugar de promoção da inteligência brasileira, a tarefa de construir as bases da nação se
institucionalizou, atrelado ao projeto nacional do Estado Imperial, de conduzir a pátria
no caminho da civilização. O apoio direto do Imperador no fomento de uma cultura
erudita nacional, por meio do IHGB, era um sinal do compromisso do Estado em
engendrar o desenvolvimento de uma saber com as cores e as marcas da nação. O
Romantismo, por exemplo, teve grande relevância nesse processo, pois o projeto
romântico convergiu ao objetivo político de fundação de uma cultura genuinamente
nacional (SCHWARCZ, 2009).
Desta forma, imersos na estrutura do Império, os intelectuais cumpriam um
papel crucial na dinâmica da sociedade Imperial brasileira no século XIX, atuando na
administração pública, na Imprensa, na literatura, nos círculos políticos e intelectuais
em geral. Assim, dialogavam com uma gama de conceitos, idéias, interesses e valores
que se relacionavam com o pensamento europeu, caracterizados pela crença no
progresso e na civilização, porém, tendo em vista as especificidades nacionais, como a
construção da nação e da identidade nacional.
Os intelectuais foram um dos objetos de análise dos autores da História Social
Inglesa, como Edward P. Thompson e Raymond Williams. Em função da própria
atmosfera em que estes autores atuaram como intelectuais, escrever sobre o papel
desempenhado pelos homens de letras dentro da dinâmica social, foi uma tarefa que se
relacionava com o próprio clima político da segunda metade do século XX. Este
momento da historiografia inglesa, que ficou conhecido como História social ou
História vista de Baixo, trouxe novas abordagens na condução dos estudos históricos.
Tal movimento aprofundou os estudos acerca do Marxismo e do Socialismo,
investigando o desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, foram fundamentais para
redimensionar as pesquisas sobre as classes populares. Edward P. Thompson ressaltou a
experiência histórica como fator importante na atividade intelectual, considerando a
cultura e a ação política como elementos cruciais.
A trajetória intelectual de historiadores como Thompson e Williams, já sugere o
seu comprometimento político e social. Os autores viveram numa atmosfera intelectual
muito intensa de debates e mudanças, na Inglaterra entre os anos 1950 e meados da
década de 1980, quando atuaram intensamente na vida política e intelectual, para além
do âmbito acadêmico. Marxistas, ambos foram membros do Partido Comunista
Britânico (PCB) até 1956, descontentes com o Stalinismo e o Comunismo na Inglaterra,
ligaram-se diretamente a New Left, apresentando uma nova análise do marxismo,
fundaram juntamente com Stuart Hall a New Left Review. Nesses autores “encontra-se
a visão de uma história construída a partir das lutas sociais e da interação entre cultura e
economia, é central a idéia de resistência marcada pelo ‘capitalismo como sistema’”
(NEVEU, 2004, p. 47). Assim, foram críticos que atuaram e refletiram sobre seu tempo.
Ao analisar a trajetória dos poetas ingleses da década de 1790, em Os
Românticos, Edward P. Thompson relaciona o percurso dos escritores, Samuel Taylor
Coleridge e William Wordsworth, com o Jacobinismo na França e seus impactos na
Inglaterra, ressaltado a relação entre a experiência individual de cada poeta com o
pensamento filosófico em voga (como Godwinismo) e os processos políticos que se
desenhavam na Inglaterra, demonstrando como tais fatores marcavam profundamente a
sensibilidade poética dos românticos (THOMPSON, 2002). Seguindo a lógica deste
autor da história social, pode-se notar que, em relação ao Império brasileiro, onde os
literatos estavam atrelados ao Estado Imperial e as elites, acumulando várias funções,
como escritores, burocratas, presidentes de província, entre outras, havia diversas
variantes no processo de formação e atuação do intelectual.
Nessa perspectiva, é interessante pensar os intelectuais do Império brasileiro, a
partir das contribuições da história social inglesa no tocante a idéia de cultura e
experiência histórica. Articulando a cadeia de interações que imprimiam a gênese do
trabalho intelectual dos homens de letras no Império, levando em consideração a
formação, a atmosfera política e a experiência histórica desses agentes. No Império
brasileiro, os intelectuais viviam na convergência de um campo político, cultural e
intelectual, que interagiam constantemente e no qual cada intelectual ou grupo se inseria
de maneira peculiar.
Estes pensadores se inscrevem no conceito de intelectual orgânico de Antônio
Gramsci, enquanto um grupo de indivíduos que formavam uma categoria social
específica, representando um determinado grupo social, com o compromisso de
legitimá-lo ideologicamente e justificar a sua função social. Atuando na formação de
sua homogeneidade e consciência de grupo que representam (GRAMSCI, 1985, p.6-
10). Os homens de letras podem ser considerados sujeitos orgânicos atrelados ao Estado
Imperial. Contudo, esta relação não pode ser entendida como um limite na construção
do pensamento intelectual, a própria diversidade de letrados, que compreende desde
diversidade regional, passando pela formação, ofício, até as posições político-
partidárias, sugere a dimensão do fervilhar de idéias e indivíduos que coabitavam na
construção de um quadro multifacetado da inteligência nacional.
A idéia de campo intelectual, nesse sentido, ocorre na constituição de um espaço
social no qual circulam os produtores de obras culturas, onde estabelecem códigos,
valores, lógicos que fazem sentido no âmbito do campo entre aqueles que compartilham
o habitus. O campo intelectual se configura em um espaço social de trocas e
reproduções, onde atuam forças de uma natureza específica, os fenômenos funcionais e
estruturais ocorrem de maneira inteiramente específica no interior do campo literário
(BOURDIEU, 2004, p.170). O que caracteriza os autores no interior do campo
intelectual é o domínio de um capital cultural e simbólico, que direciona os dispositivos
de percepções da realidade, visões de mundo, apreensões sobre o ser social, é um
espaço de produção de bens simbólicos (BOURDIEU, 2002, p.8-9). No campo
intelectual se desenvolve as práticas socialmente compartilhadas pelo grupo, que
corresponde aos valores e aos esquemas de percepção e apreciação dispostos no habitus.
Deste modo, campo e habitus se relacionam na atividade literária, o campo enquanto
“um ponto de vista do qual se podia captar posições produtoras de visões e percepções”
(MICELI, 2003, p.65), e o habitus socialmente construído pelos agentes do campo é o
elemento gerador de todas as práticas.
A atividade intelectual na dimensão do campo é legitimada por um conjunto de
posições, posturas e visões socialmente construídas e compartilhadas, que se desdobram
em práticas culturais e comportamentos que se instituem no habitus. Na composição do
grupo intelectual do Império, o conjunto de visões e percepções construídas pelos
intelectuais, está associado a posição que ocupam no espaço social, no caso, do Império
como dirigentes políticos e produtores culturais, seja da história, da literatura, em
comprometimento com a construção da nação e dos valores da civilização e do
progresso no projeto Imperial.
O papel social exercido pelos intelectuais orgânicos se relacionava com os
projetos políticos que defendiam e advogam no meio social e literário por onde
circulam. Ao lado do campo intelectual, existem as práticas políticas como elemento
que representa a ação e revela a dinâmica das idéias, onde se relacionam a condição
intelectual e a experiência histórica dos autores.
A identidade nacional e a intelectualidade no Segundo Império
Os trabalhos desenvolvidos sob a chancela do Instituto Histórico, no que se
refere à construção da identidade nacional, na composição dos elementos
representativos da nação a natureza do Brasil, manifestavam na produção do saber a
preocupação em veicular e legitimar a idéia de nação. Nesse sentido, Lúcio Menezes
Ferreira (2006, p.271-176) chama a atenção para os mecanismos que atrelavam a
produção de saber aos objetivos do governo Imperial, nos patrocínios feitos pelo IHGB,
em pesquisas e viagens científicas pelo interior do Brasil, em saberes diversos, estava
imbuído o interesse do governo de mapear o Império, valorizar a nação, e “interiorizar a
civilização”. Tratava-se de práticas científicas e intelectuais fundadas no nacionalismo.
A construção da identidade, o estabelecimento do passado histórico e o projeto de
sociedade, eram temas que se relacionavam sob a égide da idéia de civilização. Para
Cristina Bertioli Ribeiro (2006, p.144), o progresso era uma preocupação constante, que
se observava na construção de um projeto de civilização, favorecido pelo Imperador
Pedro II, na busca de uma identidade propriamente nacional. Segundo Tânia Maria T.
Ferreira (2007, p.190-191), a idéia de civilização para a nacionalidade ajudava a
sedimentar a cidadania, como elemento que fortalecia a nação brasileira. O
Romantismo, sem dúvida, é o movimento emblemático dos objetivos nacionais,
ganhando assim, grande repercussão na composição do rosto da nação, a sensibilidade
romântica se estende até o fim do Império.
As concepções de literatura e arte veiculadas no Império brasileiro
desenvolveram-se juntamente com a ordem política, que marcou a nação desde a
transferência da sede do Império Português para a colônia tropical. A literatura que se
debruça sobre a intelectualidade oitocentista, aponta, em geral, dois movimentos pilares
da construção do nacionalismo no Brasil, o Romantismo e a chamada Geração de 1870.
O Romantismo, sem dúvida, é o movimento emblemático dos objetivos nacionais,
ganhando assim, grande repercussão na composição do rosto da nação, a estética
romântica se caracteriza justamente por associar os elementos nacionais genuínos na
confecção da identidade, direcionando a nação ao progresso.
O romance como instrumento pelo qual se constrói uma idéia de nação,
caminha em direção ao progresso que é apresentado, contraditoriamente,
como motor necessário do mundo e fonte de seus males (NAXARA, 2004,
p.291)
A relação entre Romantismo e nacionalismo se inscreve em uma dinâmica de
pensamento internacional, para J. Guinsburg (1993, p.14-18), o movimento romântico
é muito mais amplo, relaciona-se uma forma de pensamento e visão de mundo
próprias do século XIX, é um espírito do tempo, no qual a história exercesse um
papel fundamental, pois integra o estudo do desenvolvimento dos povos em seus
caracteres nacionais.
A partir da Geração de 1870, com o advento das idéias raciológicas, vários
eruditos, principalmente ligados à crítica literária, passaram a investigar a questão da
miscigenação das raças na composição social e histórica do Brasil, a fim de encontrar o
verdadeiro elemento nacional. Assim, Lilia Schwarcz Moritz (1993, p.42) defende que
as idéias desenvolvidas para explicar a situação racial no Brasil eram inspiradas nos
conceitos europeus, como o evolucionismo e o positivismo, contudo, possuíam um alto
grau de originalidade e adaptação, pois, tais teorias não eram incorporadas e aplicadas
de todo à realidade brasileira, eram adequadas ao país, introduzidas de maneira crítica e
seletiva. Renato Ortiz (1994, p.14-15, 31-34), traduz o clima de diversidade de idéias,
afirmando que no Brasil, as teorias européias, como o evolucionismo e positivismo,
adquirem novos contornos e peculiaridades, devido à especificidade nacional. Para ele,
as idéias que formam o pensamento dos intelectuais brasileiros no fim do século XIX
possuíam um caráter sincrético, pois os letrados mergulharam em várias correntes de
pensamento, para selecionar aquelas que comportavam a idéia e os problemas da
identidade nacional brasileira.
Pensando na tentativa de associar as várias dimensões da dinâmica social à
experiência histórica, o texto de Angela Alonso (2000) traz importante contribuição. A
autora adota um viés político de análise, investigando o papel político e reformista que
os intelectuais da geração de 1870 desempenharam. Ela ressalta a capacidade deste
grupo de contestar e reivindicar reformas políticas, nas diversas áreas onde atuavam. A
proposta consiste em pensar o movimento intelectual a partir de uma abordagem da
ação política, no quadro de idéias e nas práticas sociais. A autora defende que formas de
pensar e agir estão em íntima conexão, e tenta compreender como a cultura se vincula a
experiência, analisando-a mediante a experiência compartilhada de seus membros, a
experiência da geração de 1870 é diretamente política. Para ela o movimento da geração
de 1870 tinha um sentido de “intervenção política e contestação, que auxiliou numa
crítica ao status quo Imperial, movimento que ela denomina de reformismo, que buscou
instrumentos para intervir nos principais problemas brasileiros” (2000, p.51). Desta
forma, Alonso coloca os intelectuais da geração de 70 para além da crítica literária e dos
problemas puramente ideológicos, dimensionando-os no centro da ação política.
As formulações intelectuais no âmbito da província do Pará
As idéias raciológicas tiveram eco na Amazônia, especialmente a partir da
década de 1860, para discutir o elemento indígena e a mestiçagem e seus efeitos na
formação da população em geral, o que se tornou um objeto fulcral entre intelectuais
(BASTOS, 1866; VERÍSSIMO, 1970; MAGALHÃES, 1874). Os homens letrados que
pensavam a realidade da Amazônia, na tarefa de compreender as especificidades da
região, orientavam os discursos sobre os melhoramentos na região tendo as vista as
noções de civilização e progresso, considerando o projeto nacional. Entre as questões de
relevância nos discursos intelectuais na província do Pará, destacaram-se o trabalho, a
tensão entre a agricultura e extrativismo (OLIVEIRA FILHO, 1979, p.120-121;
SAMPAIO, 1994, p.60-62), o alto grau de miscigenação das raças (VERÍSSIMO,
1970), e importância do controle dos grupos subalternos após a Cabanagem (RICCI,
2007; PINHEIRO,1998), entre outras preocupações que ocupavam o pensamento
intelectual. As populações indígenas, por exemplo, formava um grupo social
fundamental nas relações de produção e sociais na região, pois, imprimiam seus hábitos
e costumes no cotidiano da província, estabelecendo um alto grau de miscigenação, as
suas influências se perpetuavam entre as gerações da província. De maneira geral,
segundos os intelectuais era esta influência, que prejudicava o advento da civilização
entre na província do Pará. Portanto, o pensamento erudito associado ao campo
intelectual, estava intimamente relacionado à vida política e a dinâmica do cotidiano.
Era comum a circulação dos intelectuais por várias regiões do Império, enquanto
administradores e encarregados de trabalhos específicos, a serviço do governo Imperial,
o contato com outros lugares possibilitava novas experiências, colocando-os mediante
configurações sócio-culturais diversas da sua. Nesse sentido, Maria Regina Celestino de
Almeida (1998) faz uma consideração importante. Ao analisar as imagens do Padre
João Daniel, sobre os indígenas da Amazônia no século XVIII, a autora argumenta que
ao entrar em contato com os índios, os referenciais teóricos e ideológicos do jesuíta
modificaram-se ligeiramente mediante a vivência no cotidiano. O contato direto com o
Outro, neste caso os indígenas, não deixou de influenciar as formulações ortodoxas do
agente civilizador, levando-o a observações contraditórias. Segunda ela: “O fato de que
verdades preestabelecidas modificam-se, embora lenta e imperceptível, através das
experiências de vida e da acurada observação empírica” (p.2). As formulações
intelectuais, portanto, estão em constante diálogo e confronto entre as idéias pré-
concebidas e a vivência no cotidiano local.
Em meados dos anos 1850 a província viveu uma relativa tranqüilidade em
relação aos efeitos do movimento cabano, que tem como marco o ano de 1835, mas teve
desdobramentos até a década de 1840. A província desenvolvia uma economia em
grande medida endógena, entre a produção extrativa e agrícola, para Roberto Santos
(1980, p.35-40) a economia era frágil e vulnerável dependente de condições externas
favoráveis, os momentos de prosperidade econômica ocorriam em favor do mercado
externo, como no caso da borracha, que deslocou mão-de-obra da lavoura para a coleta
da seringa. À revelia da concentração de trabalhadores em direção aos seringais
especialmente a partir de 1870, outras atividades econômicas estiveram combinadas
com o extrativismo, praticadas por grupos de trabalhadores multifacetados, escravos,
índios, brancos pobres, e nordestinos depois de 1870. Portanto, o perfil de grande parte
da população na província, era multifacetado, grupos diversos interagindo
cotidianamente, estabelecendo sociabilidades, conflitos e negociações na dinâmica
social da região.
Destacamos entre a década de 1850, a presença de Henrique de Beaurepaire
Rohan, designado pelo Imperador para assumir a presidência da província em 1856. Foi
tenente coronel, engenheiro, nasceu em 1912 e morreu em 1894, viveu momentos
marcantes do século XIX, atuou como engenheiro de obras no Paraná, estudou na
Academia Real militar, e foi presidente das províncias do Pará, Mato-Grosso e outras.
Vindo de uma família nobre, esteve sempre engajada no mundo das letras, logo, sua
educação privilegiou uma formação intelectual, era sócio do IHGB (GUILLS , p 34).
O que chama a atenção na passagem de Beaurepaire pelo Pará é o espaço que ele
concede em seus escritos às populações indígenas (também demonstrado nos relatórios
das províncias de Mato-grosso e o Paraná), nas suas percepções da realidade local que
demonstram um espírito tipicamente oitocentista, conservador e pragmático,
igualmente, manifesta em seu perfil as características de um homem moderno
influenciado pelo pensamento iluminista. Enquanto membro de um grupo de
intelectuais, falando de um horizonte social da cultura, ele dedica uma atenção especial
a formação do espírito ilustrado,
Não há duvida, senhores, que precisamos de um theatro digno da capital
da província (...) a única diversão de que pode dispôr a classe mais
ilustrada da população. As representações dramáticas, proporcionando um
entretenimento agradável e innocente, tem a vantagem não só de inspirar a
dedicação a literatura e bellas artes, como também o de prestar um serviço
a sociedade fomentando diversas pequenas indústrias que formam o
patrimônio das famílias pobres (ROHAN,1856, p. 16).
O presidente condena o modo de vida das populações amazônicas, pois são
contrárias ao desenvolvimento da civilização. Ao tratar das condições de insalubridade
em que viviam os moradores das vilas do interior, pois seu modo de vida favorece a
proliferação de doenças, adverte
Ali, expostos a todos os intempéries, privados de uma alimentação
conveniente, sem meio algum therapeutico, sacrificão-se, sacrificão suas
mulheres e filhos e, se, a troco de tão rude trabalho, adquirem algumas
arrobas do ambicioso produto, regressão a seus lares, com todos os
germens da miséria e da morte (ROHAN, 1857, p. 7).
A crítica do presidente também se sustenta na idéia de que as constantes mudanças
das famílias, que se lançavam às áreas produtores de goma elástica era um costume
contrário aos impulsos da civilização.
Da convivência com a dinâmica social da província, Henrique de Beaurepaire
Rohan, reafirmou suas posições e os compromissos com a civilização, como forma de
desenvolvimento do espírito. Orientado por uma perspectiva racional da realidade
guiada pelo progresso e os valores morais. O que demonstra sua sintonia com o
campo literário com o qual dialogava. Enquanto membro do Instituto Histórico, ele
manifestava a sua direção ideológica combinada com os objetivos do IHGB, como a
escrita da história. Ao pedir ao estudante de pintura Histórica, Constantino Chaves
Pedro da Motta, pensionista da província, que fizesse “um painel tomando como
assunto a heróica dedicação do fallecido vice-presidente Angelo Custodio Corrêa”,
ele ressalta as seguintes recomendações:
Para que a verdade histórica não fosse prejudicada na mais insignificante
circunstância, deliberei que o pensionista fosse a Cametá, a fim não só de
tomar a paisagem da patria do Ilustre finado, como para obter todo e
qualquer esclarecimento que julgasse necessário, para a execução de seu
projeto. Quando o Brasil, senhores, lamenta a perda de tão distinto
cidadão, é justo que a província do Pará se interesse nos testemunhos de
gratidão devidos a memória do homem, que, depois de relevantes serviços
prestados a ordem publica, morreu com resignação no seu posto de honra.
(ROHAN, 1857, p. 17).
Nesse trecho ele ressalta uma operação de criação da memória, semelhante
aos elementos destacados por Januário da Cunha Barbosa, nos discursos de fundação
do IHGB, “era um conhecimento do passado que deveria estimular o patriotismo”,
nas palavras de Manoel Luiz Salgado (2007, p.103). Deste modo, as percepções de
Beaurepaire Rohan aparecem dilatadas na crença no progresso, e nos objetivos da
nacionalidade. A formação recebida na Academia Militar, tinha como eixo moral, em
meio a uma educação técnica e profissional, viabilizar os planos de desenvolvimento
para o país, objeto com o qual o engenheiro estava comprometido.
Seguindo na década de 1860, outro intelectual de grande relevância para a
cultura e a etnografia nacional chegou ao Pará, o General Couto Vieira de Magalhães,
tal qual Henrique de Beaurepaire Rohan, viera assumir o cargo de presidente da
província em 1864. Sua militância no universo das letras se manifesta principalmente
nos estudos culturais, etnográficos e lingüísticos, associado a sua função de agente
administrativo, político, sócio do IHGB e monarquista convicto. Márcio Couto
Henrique (2003, p.12) o descreve como “político do Império, um dos inventores do
folclorismo entre nós, um dos mais importantes gestores de uma das concepções de
identidade brasileira no século XIX”.
Na província do Pará, o general desenvolveu sobremaneira suas atividades de
folclorista, antropólogo, analista e observador social, tomando as populações
indígenas e mestiças como objeto central de seus trabalhos, inclusive, foi no Pará que
coletou grande parte do material, de sua principal obra O selvagem, quando a
experiência influencia a produção de obras culturais. Ao analisar as percepções de
Couto de Magalhães, é possível notar em alguns momentos diferentes posturas da
maioria dos intelectuais. Como no caso da índole da população amazônica, que em
geral é encarada enquanto avessa ao trabalho na lavoura por preguiça, o autor
contraria esta perspectiva. Em uma de suas viagens pelo Tocantins ele observa um
grupo de pescadores, que saia do meio da mata a noite, e afirma
O paraense trabalha tanto, como qualquer outro homem do nosso Império,
a pretendida facilidade de estender a mão e colher os produtos da natureza
não é tão grande como se diz; é, pelo menos, equivalente ao esforço da
lavoura em outras províncias, no entanto seus resultados são muito
menores, porque não se pode estabelecer onde colhão os produtos de uma
industria fixa. (...) Há certas mentiras, que a custa de serem repetidas
muitas vezes, passam afinal como verdade. Esta da preguiça dos paraenses
é uma delas. (MAGALHÃES, 1864, p.16)
Neste excerto, o autor discorda da perspectiva de que o trabalho no extrativismo seja
mais ameno que na lavoura, é uma atividade que está sujeita a uma série de
intempéries e sofrimentos. No entanto, ele reitera a importância do desenvolvimento
da lavoura e da indústria para o desenvolvimento do Império, são atividades de
destaque em seu discurso, pois atuam como pilares na construção do progresso.
O povo da nossa província é dos mais atrasados que tenho visto no Brasil,
e vive disseminado em palhoças, que não oferecem nem indispénsaveis
confortos da vida. (...) Perguntava a mim mesmo: como é que esta gente se
sustenta? E os fatos me ião respondendo, que eles nascidos no meio da
abundância, estendiaão a mão para colher os frutos; e, como pássaros e
animais selvagens, que na natureza encontram tudo, não se ocuppãono do
dia d'amanhã Deos Provicenciará. A indústria é resultado de esforço da
inteligencia do homem para satisfazer uma necessidade que aparece.
Portanto, em quanto não existir a necessidade, não haverá industria.
(MAGALHÃES, 1864, p.7).
O autor novamente retoma a idéia de que o homem paraense vive de acordo com o
tempo da natureza, sem a preocupação com o amanhã. Desta forma, a aparente
contradição deixa claro que o eixo central da sua posição é a defesa da indústria,
como forma de desenvolvimento.
A educação se configura em um tema estrutural no pensamento do general, é o
princípio transformador, apontado muitas vezes como a principal causa dos
problemas do Pará, a falta de instrução é que compromete o desenvolvimento dos
povos.
crear necessidade, civilizando o povo e dando-lhe instrução, são meios de
fazer apparecer industria; são lentos é certo, mas também seguros. (...) a
uns e outros (produtores do Pará) falta a necessária instrução, mas
especialmente ao grande proprietário faltão as idéias e usos necessários ao
emprego de machinas para melhoramento dos produtos agrícolas
(MAGALHÃES, 1864, p. 8).
Ele apresenta uma visão estratégica e utilitarista em relação a instrução,
acredita no grêmio da civilização como um valor moral, ele atribui a indústria, e a
uma educação industriosa, valores estratégicos como meios de desenvolvimento e
aproveitamento da mão-de-obra local.
Fica evidente nos escritos de Couto de Magalhães, o seu olhar antropológico
sob as populações que compunham esse mosaico da mestiçagem paraense. Ao
produzir O Selvagem o autor considerou os índios como os legítimos representantes
da identidade nacional, que através de melhoramentos poderiam ser conduzidos
marcha da civilização (HENRIQUE, 2003, p.7). As preocupações de Couto de
Magalhães estão fixadas na construção da legitimidade e da singularidade nacional.
Desta forma, o autor construiu um inventário de costumes e tradições indígenas
baseados nos trabalho de campo, do contato etnográfico com esses grupos
logicamente, há uma tradução da cultura indígena. Contudo, é importante
compreender como esta perspectiva se inscreve em novo momento de produção do
conhecimento nacional, o que ocorre no próprio IHGB. E está relacionado a uma
análise mais científica da realidade social, e dos fenômenos culturais. É uma nova
orientação no interior do campo, que movimenta as formulações e as práticas
intelectuais.
Estas falas de dois sócios do IGHB apresentam elementos compartilhados por
ambos no interior do campo intelectual, como a crença na civilização e nos valores do
progresso, dimensionam o lugar social dos homens de letras na dinâmica do Império.
Embora, as formas de percepções dos elementos locais da província apontam caminhos
distintos de formulações e discursos. Tal diversidade se relaciona com a experiência
histórica, a formação e a trajetória política. Desta forma, o diálogo entre as idéias de
campo e experiência histórica contribui na compreensão da atividade intelectual no
Império, em sua diversidade de idéias e práticas.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Um tesouro descoberto: imagem do índio nas
obras de João Daniel. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 3, n° 5.
ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da Geração de 1870.
RBCS. Vol. 15 nº 44 outubro/2000.
BOURDIEU, Pierre. Campo de poder, campo intelectual, itinerário de um conceito.
Editorial Montressor, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno
Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004.
FERREIRA, Lúcio Menezes. Ciência nômade: o IHGB e as viagens científicas no
Brasil Imperial. Hist. cienc. saude-Manguinhos, abr./jun. 2006, vol.13, no.2.
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad.: Carlos
Nelson Coutinho. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
GUILLS, Ana Maria Rufino. Henrique de Beaurepaire Rohan: razão e sensibilidade
no século XIX. Monografia de conclusão de curso. Paraná: Universidade Tuiuti do
Paraná.
GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
HENRIQUE, Marcio Couto. O general e os tapuios: linguagem, raça e mestiçagem em
Couto de Magalhães (1864-1876). Dissertação de Mestrado. Belém: Universidade
Federal do Pará, 2003.
MICELI, Sérgio. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura. São
Paulo, Revista Tempo social – USP, Abril/2003.
Nação e cidadania no Império: novos horizontes. José Murilo de Carvalho (Org.).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
NAXARA, Márcia Regina C. Cientificismo e sensibilidade romântica; em busca de
um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: UnB, 2004.
NEVEU, Érik; MATTELART, Armand. Introdução aos estudos culturais. São Paulo:
Parábola editorial, 2004.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. O caboclo e o Brabo – notas sobre duas
modalidades de força de trabalho na expansão da fronteira amazônica no século XIX.
In: Encontros Com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v. 11, 1979.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense,
1994.
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Nos subterrâneos da Revolta: Trajetória, lutas
e tensões na Cabanagem. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 1998
RIBEIRO, Cristina Bertioli. Folclore e Nacionalismo na Literatura Brasileira do século
XIX. Tempo, Jan. 2006, vol. 10, nº 20, 143-158.
RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do
patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, 2007, vol.11, no. 22.
SAMPAIO, Patrícia de Melo. Fios de Ariadine: Tipologia de fortunas e heranças
sociais em Manaus, 1849-1880. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
Fluminense, 1994.
SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A.
Queiroz, 1980.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. 10ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão
racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
THOMPSON. Edward P. Os românticos: A Inglaterra na Era revolucionária. Trad.
Sérgio Moraes Rêgo Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Fontes:
BASTOS, A.C. Tavares. O Valle do Amazonas, estudo sobre a livre navegação do
Amazonas. Rio de Janeiro: B. L. Garnie, 1866.
MAGALHÃES, Couto de. Ensaio de anthropologia: região e raças selvagens do
Brasil. Memória onde se estuda o homem indígena debaixo do ponto de vista physico e
moral, e como elemento de riqueza. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & C.,
1874.
Pará - Relatório de 15/08/1856 – Henrique de Beaurepaire Rohan.
Pará – relatório de 15/08/1857 - Henrique de Beaurepaire Rohan.
Pará – Relatório de 15/08/1864 - Couto de Magalhães.
Pará - Ofício de 08/05/1866 – Couto de Magalhães.
VERÍSSIMO, José. Estudos amazônicos. Belém: Ed. da UFPA, 1970.