o campeão do mundo ocidental / cavalgada para o mar / a sombra da ravina

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Livrinho de teatro nº 64

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livrinhos de teatro / 64

John Millington Synge dramaturgo, poeta e escritor, nasceu a 16 de Abril de 1871 em Rathfarnham, Dublin. Com as suas duas primeiras peças em um acto, Cavalgada para o Mar e A Sombra da Ravina, afi rmou-se como uma das fi guras centrais da literatura irlandesa. Em 1902, com W. B. Yeats e Lady Gregory, fundou o Abbey Theatre em Dublin, onde foi director e conse-lheiro literário. Em carta a Stephen MacKenna, Synge escreveu: «Não acre-dito na possibilidade de um teatro nacional puramente fantasioso, idealista... o drama só pode nascer das realidades fundamentais da vida, e estas nunca são de fantasia.» O realismo estilizado da sua escrita refl ectiu-se no tipo de ensino praticado na escola de representação do Abbey Theatre. Synge tinha doença de Hodgkin. Morreu com 37 anos, em Março de 1909, deixando in-completa a sua última peça, Deirdre of the Sorrows.

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j. m. synge

O Campeão do Mundo Ocidental

Cavalgada para o Mar

A Sombra da Ravina

Tradução de

Joana Frazão

< os clássicos >

ARTISTAS UNIDOSCOTOVIA

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títulos originais: The Playboy of the Western World

Riders to the Sea

In the Shadow of the Glen

autor: J. M. Synge

tradução:Joana Frazão

revisão:Madalena Alfaia

© desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Setembro de 2012

Estas traduções são publicadas com o apoio do

Ireland Literature Exchange (translation fund), Dublin, Irlanda

www.irelandliterature.com | [email protected]

ARTISTAS UNIDOSR. Campo de Ourique, 120

1250 – 062 Lisboawww.artistasunidos.pt

[email protected]

LIVROS COTOVIARua Nova da Trindade, 24

1200 – 303 [email protected]

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ÍNDICE

7 O Campeão do Mundo Ocidental 85 Cavalgada para o Mar 103 A Sombra da Ravina

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O CAMPEÃO DO MUNDO OCIDENTAL

comédia em três actos

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The Playboy of the Western World foi publicado em 1907 e estreou no dia 26 de Janeiro de 1907 pela Irish National Theatre Society no Abbey Theatre, em Dublin, numa encenação de W. G. Fay com interpre-tação de W. G. Fay, A. Power, Arthur Sinclair, Marie O’Neill, F. J. Fay, J. A. O’Rourke, J. M. Kerrigan, Sara Allgood, Brigit O’Dempsey, Alice O’Sullivan, Mary Craig, Harry Young e U. Wright.

The Playboy of the Western World estreou no Abbey Theatre, com W.G. Fay no protagonista e Maire O’Neill em Pegeen. A estreia re-velou-se tempestuosa, tendo provocado motins por toda a cidade. Foi no segundo acto, a partir do aparecimento do Velho Mahon, que as reacções se fi zeram sentir. Violentas manifestações vieram a suceder-se nas representações posteriores e podemos pensar que aquilo que tan-to ofendeu os espectadores terá sido o carácter profanatório da peça, a obscenidade da sua linguagem e a imagem que dá dos irlandeses. Mas o Playboy viria, daí a poucos anos, a ser uma das peças mais po-pulares do Abbey Theatre, tendo os protagonistas sido interpretados, no correr dos tempos, por todos os grandes actores irlandeses, como Sara Algood (irmã de Maire O'Neill), Siobhán McKenna, Brid Lynch e Cyril Cusack (que fez o papel durante mais de vinte anos). Em anos mais recentes, a extraordinária montagem realizada pela companhia Druid Theatre (enc. Gary Hines) veio renovar a intensa curiosidade desta peça seminal. É um texto representado regularmente em todo o mundo, de Pequim a Los Angeles. Em Portugal, a peça, com o título O Valentão do Mundo Ocidental e tradução de Egito Gonçalves, es-treou a 18 de Janeiro de 1957, numa produção do Teatro Experimental do Porto, com interpretação de Dalila Rocha, Vasco de Lima Couto, José Pina, Egito Gonçalves, Batista Fernandes, João Guedes, Cândida Maria, Fernanda Gonçalves, Inês Palma e Jaime Valverde e encenação de António Pedro. A peça veio a ser produzida em 1994, pelo Teatro da Malaposta, com José Airosa no protagonista e encenação de Rui Men-des. Em 2007, o Cendrev veio a fazer nova produção, dirigida por José Russo e com Nelson Boggio em Christie.

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PREFÁCIO

Ao escrever O Campeão do Mundo Ocidental1, como nas mi-nhas outras peças, só usei uma ou duas palavras que não tenha ouvido entre as gentes do campo na Irlanda, ou pronunciado no meu próprio quarto de criança antes de saber ler os jornais. Um certo número de expressões que emprego, também as ouvi da boca dos pastores e pescadores ao longo da costa que vai de Kerry a Mayo, ou de mulheres pedintes e cantores de baladas mais perto de Dublin; e alegra-me reconhecer o muito que devo à imaginação popular destas pessoas admiráveis. Quem quer que tenha vivido em verdadeira intimidade com o campesi-nato irlandês saberá que os ditos e as ideias mais loucas nesta peça são na realidade insípidas, em comparação com as extra-vagâncias que se podem ouvir em qualquer choupanazinha no sopé de um monte em Geesala, ou em Carraroe, ou na Baía de Dingle. Toda a arte é colaboração; e há poucas dúvidas de que, nas eras felizes da literatura, as expressões belas e surpreenden-tes estavam tão à mão de semear do contador de histórias ou do dramaturgo como os ricos mantos e trajes da sua época. É pro-vável que, quando o dramaturgo isabelino pegava no tinteiro e se punha a trabalhar, usasse muitas expressões que tinha acabado de ouvir, sentado ao jantar, da mãe ou dos fi lhos. Na Irlanda, aqueles de nós que conhecem o povo têm o mesmo privilégio. Quando estava a escrever A Sombra da Ravina, há uns anos, re-cebi mais ajuda do que qualquer instrução me poderia ter dado de uma fresta no soalho da velha casa no Wicklow onde estava hospedado, que me permitia ouvir o que as criadas diziam na

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cozinha. Esta questão parece-me ter a sua importância, pois em países onde a imaginação do povo, e a linguagem que ele usa, é rica e viva, é possível a um escritor ser rico e copioso nas suas palavras, e ao mesmo tempo transmitir a realidade, que é a raiz de toda a poesia, de uma forma plena e natural. No entanto, na literatura moderna das cidades, a riqueza encontra-se apenas em sonetos, ou poemas em prosa, ou num ou dois livros muito elaborados que estão longe dos interesses comuns e profundos da vida. De um lado, temos Mallarmé e Huysmans produzindo esta literatura; e, do outro, Ibsen e Zola lidando com a realidade da vida em palavras tristonhas e pálidas. No palco é preciso que haja realidade, e é preciso que haja alegria; e é por isso que o tea-tro intelectual moderno falhou, e as pessoas se fartaram da falsa alegria da comédia musical, que lhes foi dada em lugar da alegria rica que se encontra apenas naquilo que existe de esplêndido e bravio na realidade. Numa boa peça, cada fala deveria ter um sa-bor tão rico como uma noz ou uma maçã, e tais falas não podem ser escritas por alguém que trabalhe entre pessoas que fecharam os lábios à poesia. Na Irlanda, por mais alguns anos, temos uma imaginação popular que é fogosa e magnífi ca, e terna; de manei-ra que aqueles de nós que desejem escrever começam com uma sorte que não é dada a escritores em lugares onde a Primavera da vida local foi esquecida, e a colheita não passa de uma memória, e a palha foi transformada em tijolos.

J. M. S.21 de Janeiro de 1907

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PERSONAGENS

Christopher MahonVelho Mahon, pai dele, ocupante ilegal de terras

Michael James Flaherty, chamado Michael James, um taber-

neiro

Margaret Flaherty, chamada Pegeen Mike, fi lha dele

Viúva Quin, uma mulher de cerca de trinta anos

Shawn Keogh, primo dela, um jovem agricultor

Philly Cullen e Jimmy Farrell, pequenos agricultores

Sara Tansey, Susan Brady e Honor Blake, raparigas da aldeia

Um pregoeiroAlguns camponeses

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A acção tem lugar perto de uma aldeia, na costa bravia de

Mayo. O primeiro acto decorre numa noite de Outono, os

outros dois actos no dia seguinte.

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ACTO I

Cena: taberna rural ou shebeen2, muito tosca e desarrumada.

Há uma espécie de balcão à esquerda; acima vêem-se pra-

teleiras, com muitas garrafas e jarros. Barris vazios ao alto,

junto ao balcão. Ao fundo, um pouco à direita do balcão, há

uma porta que dá para o exterior, e depois, mais à direita,

um banco corrido de espaldar com prateleiras por cima, com

mais jarros, e uma mesa em frente à janela. À direita há uma

grande lareira aberta, com um fogo de turfa, e uma peque-

na porta para o quarto interior. Pegeen, uma rapariga com

ar bravio mas bonita, cerca de vinte anos, está a escrever à

mesa. Traz o vestido habitual das camponesas.

Pegeen (lentamente, à medida que escreve) Seis metros de te-cido para fazer um vestido amarelo. Um par de botinas de tacão alto com cordões e passadores de latão. Um chapéu apropriado para um dia de casamento. Um pente de dentes fi nos. A enviar junto com três barris de cerveja na carreta de Jimmy Farrell para o Senhor Michael James Flaherty na tar-de da próxima feira. Com os melhores cumprimentos desta quadra. Margaret Flaherty.

Shawn Keogh (um jovem gordo e loiro entra quando Pegeen as-

sina; olha em volta atrapalhado quando vê que ela se encontra

sozinha) Onde está o patrão?Pegeen (sem olhar para ele) Está a chegar. (Endereça a carta.)

Para o Senhor Sheamus Mulroy, Comerciante de Vinhos e Bebidas Espirituosas, Castlebar.

Shawn (pouco à vontade) Não o vi na estrada.

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Pegeen Como havias de o ver (lambe o selo e cola-o na carta) se faz noite escura de há meia hora para cá?

Shawn (voltando-se outra vez para a porta) Fiquei um boca-dinho lá fora a pensar se devia seguir em frente ou entrar para te ver, Pegeen Mike (aproxima-se do fogo), ouvia-se a respiração e os suspiros das vacas no sossego da noite, e nem um passo em lado nenhum desde o portão até à ponte.

Pegeen (pondo a carta no envelope) Está lá em cima na encru-zilhada, tinha encontro com o Philly Cullen e mais alguns que vão com ele ao velório da Kate Cassidy.

Shawn (olhando para ela desconcertado) E ele vai para tão longe na noite escura?

Pegeen (com impaciência) Vai pois, e deixa-me sozinha nas costas do monte. (Levanta-se e põe o envelope no aparador;

depois dá corda ao relógio.) Não estarão as noites longas demais, Shawn Keogh, para se deixar uma pobre rapariga entregue a si própria contando as horas para o raiar do dia?

Shawn (com humor desajeitado) Se assim é, quando nos casar-mos daqui a pouco não terás razões de queixa, que eu pouca vontade tenho de ir a velórios ou casamentos na escuridão da noite.

Pegeen (com um bom humor sarcástico) Estás muito seguro, Shaneen, de que eu vou casar contigo.

Shawn E não fi zemos nós um acordo sólido? Estamos só à espera de que o Padre Reilly receba a dispensa3 dos bispos, ou da cúria romana.

Pegeen (olhando para ele, provocadora, enquanto lava as mãos no

aparador) Seria de espantar, Shaneen, que o Santo Padre agora reparasse em gente como tu; se eu fosse a ele muito me havia de ralar com este sítio, onde só dás de caras com o Linahan Ruivo, que é vesgo de um olho, o Patcheen, que manca de um pé, ou os doidos dos Mulrannies, que foram expulsos da Califórnia e

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perderam o juízo. Somos um rico bando nos tempos que cor-rem para andarmos a desassossegar o Santo Padre lá no trono.

Shawn (escandalizado) Se assim for, não seremos piores aqui do que noutro lugar qualquer, nem piores nos tempos que correm do que sempre fomos.

Pegeen (com sarcasmo) Não seremos piores, é? E onde arran-jas tu agora gente como o Daneen Sullivan, que arrancou o olho a um guarda4, ou o Marcus Quin, paz à sua alma, que apanhou seis meses por estropiar ovelhas, e como ele não havia igual para contar histórias da santa Irlanda, até as velhinhas se desfaziam em lágrimas até o chão fi car regado. Onde encontras tu gente como eles, pergunto eu?

Shawn (timidamente) Se não encontras, talvez seja pelo me-lhor; porque (dando particular ênfase às palavras) o Padre Reilly gosta pouco que essa gente ande aí a vaguear e a dar conversa às raparigas.

Pegeen (impaciente, atirando a água da bacia pela porta fora)Pára de me atormentar com o Padre Reilly (imitando a voz

dele), que só te estou a perguntar como hei-de passar estas doze horas de escuridão sem morrer de medo. (Olha lá para

fora, pela porta.)Shawn (timidamente) E se eu te fosse buscar a Viúva Quin?Pegeen Uma assassina daquelas? Não vais, não senhora.Shawn (aproximando-se dela, apaziguador) Parece-me que o

patrão há-de fi car aqui contigo quando te vir tão transtorna-da; vai ser uma longa noite e muito escura, e eu senti lá em cima no tojo da vala um tipo que gemia sem parar, como um cão raivoso, e talvez haja razões para teres medo.

Pegeen (virando-se para ele, ríspida) O quê? Viste um homem?Shawn (recuando) Não, não o conseguia ver; mas ouvi-o ge-

mer, e era de partir o coração. Devia ser homem novo, pela maneira de falar.

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Pegeen (avançando para ele) E não foste lá ver se estava feri-do, ou o que tinha ele afi nal?

Shawn Não fui, Pegeen Mike. Era um sítio escuro e deserto para se ouvir uma coisa assim.

Pegeen Saíste-me cá um valente. E se encontrarem o corpo dele esticado lá em cima no orvalho da madrugada, o que vais tu dizer à guarda, ou ao Juiz de Paz?

Shawn (fulminado) Não pensei nisso. Por amor de Deus, Pegeen Mike, não digas que eu te falei dele. Não contes ao teu pai e aos homens quando eles chegarem; se souberem desta história, vai ser um belo falatório hoje à noite na vela.

Pegeen Talvez lhes conte, talvez não conte.Shawn Estão a chegar à porta. E então, vais fi car calada?Pegeen Cala-te tu. Pegeen vai para trás do balcão. Michael James, taberneiro

gordo e jovial, entra, seguido por Philly Cullin, que é ma-

gro e desconfi ado, e por Jimmy Farrel, que é gordo e afec-

tuoso, à volta dos quarenta e cinco anos.Homens (juntos) Que Deus te abençoe. Que a bênção de Deus

esteja nesta casa!Pegeen Que Deus vos abençoe também. Michael (para os homens, que vão até ao balcão) Agora sentem-

-se e façam por descansar. (Dirige-se a Shawn, junto ao fogo.) E como estás tu, Shawn Keogh? Vens ao velório da Kate Cassidy, do outro lado do areal?

Shawn Não, Michael James. Eu vou para casa, direitinho para a cama.

Pegeen (falando detrás do balcão) Faz ele bem. E você não tem vergonha, Michael James, de desaparecer a noite inteira, e deixar-me aqui sozinha no estabelecimento?

Michael (bem-humorado) Não é a mesma coisa estar fora a noite inteira ou só uma parte? E que fi lha mais estranha me

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saíste, se queres que volte para casa pelas Medas das Mulhe-res Mortas com um grão na asa.

Pegeen Se eu sou uma fi lha estranha, estranho é o pai que me deixa sozinha nestas doze horas de escuridão, a empilhar a turfa com os cães a ladrar, e os vitelos a mugir, e os meus próprios dentes a bater de medo.

Jimmy (lisonjeiro) Quem havia de te fazer mal, uma bela rapa-riga, e rija, que partia a cabeça a quaisquer dois homens cá da terra?

Pegeen (enervando-se) Que tal os rapazes das colheitas, com as línguas a arder por bebida, e os dez caldeireiros5 acampados na ravina da frente, e os mil milicianos – o diabo que os carregue! – a vadiar pelos campos? Há muito quem me possa fazer mal, e eu não fi co aqui sozinha, agora faça o meu pai o que quiser.

Michael Se tens assim tanto medo, então o Shawn Keogh fi ca contigo. É a vontade de Deus que agora seja ele a tomar con-ta de ti, parece-me.

Voltam-se todos para Shawn.

Shawn (terrivelmente embaraçado) De bom grado o faria, Michael James, mas tenho medo do Padre Reilly; e o que diriam o Santo Padre e os Cardeais de Roma se soubessem?

Michael (com desprezo) Deus te valha! Não te podes sentar à lareira com a luz acesa e a rapariga do outro lado da sala? E é mesmo isso que vais fazer, pois ouvi falar de um sujeito esqui-sito lá em cima na crista da vala, a enlouquecer ou quem sabe às portas da morte, e ela estaria mais segura com alguém aqui.

Shawn (com um desespero queixoso) Tenho medo do Padre Reilly, já disse. Não se ponha agora a tentar-me, que nós estamos quase casados.

Philly (com frio desprezo) Fecha-o no quarto dos fundos. Há-de lá fi car e sem pecado nenhum para contar ao padre.

Michael (para Shawn, pondo-se entre ele e a porta) Vamos, anda.

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Shawn (em plenos pulmões) Não me impeça, Michael James. Deixe-me sair pela porta, estou-lhe a pedir, por amor de Deus Todo-Poderoso. Deixe-me sair. (Tentando esquivar-se

e passar por ele.) Deixe-me sair daqui, e que Deus lhe conce-da a indulgência na sua hora de necessidade.

Michael (alto) Pára com essa barulheira, e senta-te ao pé do fogo. Dá-lhe um empurrão e vai até ao balcão a rir.Shawn (voltando para trás, a torcer as mãos) Ó Padre Reilly e san-

tos de Deus, onde me vou eu esconder agora? Ó São José e São Patrício e Santa Brígida e São Tiago, tenham piedade de mim!

Shawn vira-se, vê a porta desimpedida e tenta alcançá-la.

Michael (apanhando-o pela aba do casaco) Já ias andando, era?Shawn (aos gritos) Deixe-me, Michael James, deixe-me, velho

pagão, deixe-me ir, ou lanço-lhe a maldição dos padres e dos bispos de mitra escarlate nas cúrias romanas. (Com um mo-

vimento brusco, liberta-se do casaco e desaparece porta fora,

deixando o casaco nas mãos de Michael.)Michael (voltando-se e exibindo o casaco) Bom, eis o casaco

de um homem cristão. Ah, hoje é dia de glória santifi cada na solidão do oeste; e quis Deus que eu te arranjasse um homem decente, Pegeen; não terás razões para o espiar, nem com vinte rapariguinhas a mondar-te os campos.

Pegeen (tomando a defesa do que é seu) Que direito tens tu de brincar com um pobre rapaz por ele dar ouvidos ao padre, quando a culpa é tua, que não pagas a um ajudante de cinco tostões que esteja aqui comigo e me dê ânimo para o traba-lho? (Arranca-lhe o casaco e vai para trás do balcão com ele.)

Michael (desconcertado) E onde arranjava eu um ajudante de cozinha? Queres que mande o pregoeiro a gritar pelas ruas de Castlebar?

Shawn (abrindo uma fresta da porta e enfi ando por lá a cabeça,

em voz baixa) Michael James!

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Michael (imitando-o) O que foi?Shawn O sujeito esquisito que estava moribundo lá em cima

cansou-se de espreitar pela crista da vala. Tenho para mim que lhe veio roubar as galinhas. (Olha por cima do ombro.) Valha-me Deus, agora vem atrás de mim (entra a correr), e se ouviu o que eu disse ainda me mata, e eu que vou para casa sozinho na escuridão da noite.

Durante um momento apreciável, olham para a porta com

curiosidade. Alguém tosse lá fora. Depois entra um jovem

magro, Christy Mahon, muito cansado, assustado e sujo.

Christy (em voz baixa) Que Deus vos abençoe a todos!Homens Que Deus o abençoe também!Christy (dirigindo-se ao balcão) Posso pedir um copo de cer-

veja à dona da casa? (Põe uma moeda no balcão.)Pegeen (servindo-o) Jovem, você é um dos caldeireiros acam-

pados ali na ravina?Christy Não; mas estou estafado de caminhar.Michael (em tom protector) Então chegue-se aqui para ao pé

do fogo. Tem ar de quem está morto de frio.Christy Deus lhe pague. (Pega no copo e vai um pouco para a

direita, depois pára e olha em volta.) A polícia vem cá muitas vezes, patrão?

Michael Se você tivesse vindo a melhores horas, teria visto «Li-cença para venda de Cervejas e Bebidas Espirituosas, a serem consumidas nas instalações», escrito em letras brancas por cima da porta, e porque havia a polícia de me espiar, se não há uma casa decente num raio de quatro milhas, de modo que, à excep-ção de uma viúva, todo o cristão aqui é cliente de boa-fé6?

Christy (aliviado) Então é casa segura. (Vai até à lareira, sus pi-

rando e gemendo. Depois senta-se, pousando o copo ao lado,

e começa a trincar um nabo, demasiado infeliz para sentir

que os outros olham para ele com curiosidade.)

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Michael (indo para junto dele) Tem medo da polícia? Andam à sua procura, é?

Christy Andam à procura de muita gente.Michael Lá isso é, com a colheita estragada e as guerras termi-

nadas7. (Recolhe algumas meias, etc., que estão junto ao fogo,

e leva-as dali, furtivamente.) Parece-me que é furto, será?Christy (em tom lúgubre) Tinha ideia que era outra palavra,

mais forte.Pegeen Que rapaz tão estranho. Nunca lhe deram umas pal-

madas na escola, amigo, para aprender o nome dos seus actos?Christy (envergonhado) Sou lento a aprender, sempre fui aluno

medíocre.Michael Ainda que seja burro, devia saber que furto é assal-

tar e roubar. É por coisa assim que o procuram?Christy (com um lampejo de orgulho familiar) E eu que sou

fi lho de um grande agricultor (tomado subitamente de es-

crúpulos), paz à sua alma, que não há muito tempo podia ter comprado a vossa casa com o que encontrasse no fundo do bolso, e sem dar pela diferença de peso.

Michael (impressionado) Se não é roubo, talvez seja coisa im-portante.

Christy (lisonjeado) Sim; talvez seja coisa importante.Jimmy O homem tem cara de mau. Talvez tenha ido atrás de

uma rapariga numa noite de solidão.Christy (chocado) Oh, Deus me livre, senhor; sempre fui um

rapaz decente.Philly (voltando-se para Jimmy) És um tolo, Jimmy Farrell.

Ele disse que o pai era agricultor não há muito tempo, e aqui o temos agora num triste estado. Se calhar tiraram-lhe as ter-ras, e ele fez o que qualquer homem decente faria.

Michael (para Christy, misteriosamente) Foram meirinhos?Christy O diabo é que foi.

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Michael Agentes?Christy O diabo é que foi.Michael Proprietários?Christy (petulante) Ah, nada disso, garanto-lhe. Vêem-se

histórias dessas em qualquer jornalzeco duma cidade de Munster. Mas não me vem à lembrança ninguém, nobre ou humilde, juiz ou jurado, que tenha feito o que eu fi z.

Aproximam-se todos com regalada curiosidade.Philly Bom, este rapaz é um quebra-cabeças vivo.Jimmy Melhor que o circo do Dan Davies, ou os santos mis-

sionários que fazem sermões sobre a vilania do homem. Tenta outra vez, Philly.

Philly Forjou guinéus de ouro em chumbo, rapaz, ou talvez moedas de um xelim?

Christy Não senhor, não foi moeda falsa, nem sequer das mais pequenas.

Jimmy Terá casado com três mulheres? Ouvi dizer que um pu-nhado deles fi zeram isso, entre os pios luteranos que pregam no norte8.

Christy (tímido) Nunca casei com nenhuma, quanto mais com duas ou três.

Philly Se calhar andou a combater pelos Bóeres, como aquele outro, que condenaram a ser enforcado, esquartejado e es-ventrado9. Esteve lá no leste, rapaz, a travar guerras sangren-tas pelo Kruger e pela liberdade dos Bóeres?

Christy Nunca tinha saído da minha paróquia fez terça-feira oito dias.

Pegeen (vindo do balcão) Então ele não fez foi nada. (Para

Christy.) Se não cometeu assassínio, se não fez nada de mau nem ruim, nem foi moeda falsa, assalto, carnifi cina, ou coisa do género, não há nada de que valesse a pena fugir. Você não fez coisíssima nenhuma.

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Christy (ferido nos seus sentimentos) Não é simpático dizer isso a um pobre viajante órfão, com a prisão atrás dele, a forca à frente, e o buraco do inferno a abrir-se-lhe aos pés.

Pegeen (fazendo sinal aos homens para se calarem) Isso é só conversa. Você não fez coisíssima nenhuma. Um rapaz man-so como você nem a goela de uma porca aos guinchos havia de cortar.

Christy (ofendido) Isso não é verdade.Pegeen (com raiva fi ngida) Ah não é verdade? Quer que lhe

parta a cabeça com o pau da vassoura?Christy (girando à volta dela, com um grito agudo de terror)

Não me bata. Foi assim que matei o meu pobre pai, fez ter-ça-feira oito dias.

Pegeen (estupefacta) Que matou o seu pai?Christy (acalmando-se) Valha-me Deus, matei sim senhor,

e que a Santa Mãe Imaculada interceda pela sua alma.Philly (recuando com Jimmy) Eis um tipo valente.Jimmy Ah, Deus do céu!Michael (com grande respeito) Isso é crime de forca, caro se-

nhor. Teve decerto bons motivos para fazer tal coisa.Christy (num tom muito razoável) Ele era um homem ruim,

Deus lhe perdoe, estava a fi car velho e com mau feitio, e eu já não o podia aturar.

Pegeen Deu-lhe um tiro?Christy (abanando a cabeça) Nunca usei armas. Não tenho

licença, e sou homem temente à lei.Michael Foi com uma faca de punho, talvez? Dizem que no

mundo lá fora usam facas sangrentas.Christy (alto, escandalizado) Toma-me por algum carniceiro?Pegeen Não o terá enforcado, como o Jimmy Farrell en-

forcou o cão por causa da licença, que fi cou ali a ganir e a serpentear durante três horas na ponta do cordel, e ele

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jurava que o cão estava morto e os polícias juravam que tinha vida?

Christy Nada disso. Só levantei a sachola e deixei-lhe cair a folha no cocuruto da cabeça, e ele tombou-me aos pés como um saco vazio, e nem um gemido lhe saiu ou um queixume que fosse.

Michael (fazendo sinal a Peggen para encher o copo a Christy)E como é que não o enforcaram? Depois enterrou-o, foi?

Christy (refl ectindo) Sim. Depois enterrei-o. Não estava eu a cavar batatas no campo?

Michael E os polícias nunca vieram atrás de si nos onze dias que esteve fora?

Christy (abanando a cabeça) Nem um, nunca, e eu andei sempre em frente, encarando porco, cão ou demónio bem no meio da estrada.

Philly (assentindo com ar entendido) Só com um homicida comum de todos os dias é que esses tipos arriscam o coiro, e este homem deve ser terrível quando perde as estribeiras.

Michael Pois deve. (Para Christy.) E onde foi, caro senhor, que fez a coisa?

Christy (olhando para ele com desconfi ança) Oh, longe daqui, patrão, num recanto ventoso de montes altos, bem longe.

Philly (acenando, aprovador) É um homem discreto, e tem toda a razão.

Pegeen Cá está um rapaz com o bom senso de Salomão para tomar como ajudante, Michael James, se é verdade que anda à procura de um.

Philly A guarda tem medo dele, e se o rapaz cá estivesse nin-guém havia de aparecer a cheiriscar, nem que os cães lambes-sem whisky de contrabando na fossa de estrume no pátio.

Jimmy A bravura é um tesouro num lugar solitário, e tenho para mim que um jovem capaz de matar o pai havia de desa-fi ar um demónio astuto de forquilha, lá nas lajes do inferno.

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Pegeen Eles dizem a verdade, e se eu tivesse cá em casa esse rapaz, não havia de temer os degoladores de khaki que an-dam à solta10, nem os mortos-vivos.

Christy (inchando de surpresa e triunfo) Bom, Deus seja louvado!Michael (com deferência) O que acharia de fi car aqui e ser

ajudante, caro senhor, se lhe déssemos um bom salário e não o esfalfássemos com a carga de trabalho?

Shawn (avançando, pouco à vontade) Seria um estranho es-pécime para introduzir num lar decente e sossegado como o da Pegeen Mike.

Pegeen (muito ríspida) Mas tu calas-te? Quem é que falou contigo?

Shawn (recuando) Um homicida com mãos manchadas de sangue…

Pegeen (zangando-se com ele) Cala-te, disse eu; aqui não es-tamos para as tuas tontices. (Para Christy, com voz melosa.) E você, jovem, julgo que faria bem em fi car, pois todos da-ríamos o nosso melhor para lhe satisfazer as necessidades.

Christy (completamente pasmado) E estaria ao abrigo das per-se guições da lei?

Michael Estaria, pois. Mesmo que não tenham medo de si, os polícias de cá são tipos decentes e amigos da pinga, não haviam de tocar num cão rafeiro a meio da noite sem avisar.

Pegeen (com muita simpatia e persuasão) Mas fi que cá duran-te um tempo. Deve estar desfeito de tanto andar, com os pés em sangue das bolhas, e a sua pele parece um carneiro do Wicklow, precisa de uma esfrega.

Christy (olhando em volta com satisfação) É uma bela sala, é. Se não me estão a intrujar, acho que fi co, sim senhor.

Jimmy (levanta-se de um salto) Agora, com a graça de Deus, a rapariga já fi ca em segurança durante a noite, com um

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homem que matou o pai para afastar o perigo da porta, por isso vamos lá, Michael James, senão quando chegarmos ao velório já terão bebido o melhor.

Michael (dirigindo-se à porta com os homens) Com a sua li-cença, caro senhor, gostaríamos só de saber por que nome o havemos de chamar.

Christy Christopher Mahon.Michael Então Deus o abençoe, Christy, e bom descanso até

à nossa volta, quando o sol subir ao meio-dia.Christy Deus vos abençoe a todos.Homens Deus o abençoe. Saem todos, excepto Shawn, que se demora à porta.Shawn (para Pegeen) Queres que fi que aqui contigo para que

não te façam mal?Pegeen (brusca) Não disseste que tinhas medo do Padre Reilly?Shawn Agora acho que já não havia mal em fi car, se ele tam-

bém cá está.Pegeen Quando fazias falta, não fi cavas, pois agora que já não

fazes, larga-te daqui e depressa.Shawn Mas eu disse que foi o Padre Reilly…Pegeen Vai-te embora, vai ter com o Padre Reilly (em tom

zombeteiro), ele que te meta nas santas irmandades, e deixe este rapaz para mim.

Shawn Se eu encontrar a Viúva Quin…Pegeen Anda, estou-te a dizer, e não acordes as pessoas com

tanto barulho. (Enxota-o lá para fora e aferrolha a porta.) Este rapaz havia de gastar a paciência aos santos da paz. (Anda por ali atarefada, depois tira o avental e prende-o à

janela a fazer de cortina. Christy observa-a timidamente.

Depois vem ter com ele e fala com um bom humor afectuo-

so.) Agora estique-se aí ao pé da lareira, jovem. Deve estar desfeito da viagem.

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