o ato de criação : g. deleuze

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    18 de julho de 2007"O ato de Criao" por Gilles Deleuze

    O autor de O Anti-dipo, Imagem-Movimento e Imagem-tempo define a arte como ato de resistncia sociedade

    de controle em palestra a estudantes de cinema em 1987.

    Eu gostaria tambm de formular algumas perguntas.Formul-las a vocs e formul-las a mim mesmo. Seriaalgo como: o que exatamente vocs fazem, vocs,homens do cinema? E eu, o que exatamente eu fao,quando fao ou espero fazer filosofia?

    Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que ter uma idia em cinema? Se fazemos ou queremos fazercinema, o que significa ter uma idia? O que acontecequando dizemos: Ei, tive uma idia? Porque, de umlado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idia algo que acontece raramente, uma espcie de festa,pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idia no algo genrico. No temos uma idia em geral. Umaidia, assim como aquele que tem a idia, j estdestinada a este ou quele domnio.

    Trata-se ou de uma idia em pintura, ou de uma idia emromance, ou de uma idia em filosofia, ou de uma idia

    em cincia. E obviamente nunca a mesma pessoa quepode ter todas elas. As idias, devemos trat-las como

    http://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://www.webdeleuze.com/php/images/deleuze_a.jpghttp://intermidias.blogspot.com/2007/07/o-ato-de-criao-por-gilles-deleuze.html
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    potenciais j empenhados nesse ou naquele modo deexpresso, de sorte que eu no posso dizer que tenhouma idia em geral. Em funo das tcnicas que conheo,posso ter uma idia em tal ou tal domnio, uma idia em

    cinema ou uma idia em filosofia.O que ter uma idia em alguma coisa?

    Parto do princpio de que eu fao filosofia e vocs fazemcinema. Admitido isso, seria muito fcil dizer que afilosofia, estando pronta para refletir sobre qualquercoisa, por que no refletiria sobre o cinema? Umverdadeiro absurdo. A filosofia no feita para refletirsobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como umacapacidade de refletir-sobre, parece que lhe damosmuito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porqueningum precisa da filosofia para refletir. As nicaspessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinemaso os cineastas, ou os crticos de cinema, ou entoaqueles que gostam de cinema. Essas pessoas noprecisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idiade que os matemticos precisariam da filosofia pararefletir sobre a matemtica uma idia cmica. Se a

    filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela no terianenhuma razo para existir. Se a filosofia existe, porque ela tem seu prprio contedo.

    Qual o contedo da filosofia?

    Muito simples: a filosofia uma disciplina to criativa,to inventiva quanto qualquer outra disciplina, e elaconsiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos

    no existem prontos e acabados numa espcie de cu emque aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Osconceitos, preciso fabric-los. claro que os conceitosno se fabricam assim, num piscar de olhos. No nosdizemos, um belo dia: Ei, vou inventar um conceito!,assim como um pintor no se diz: Ei, vou pintar umquadro!, ou um cineasta: Ei, vou fazer um filme!.

    preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia

    quanto nas outras reas, do contrrio no h nada. Umcriador no um ser que trabalha pelo prazer. Um

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    criador s faz aquilo de que tem absoluta necessidade.Essa necessidade que uma coisa bastante complexa,caso ela exista faz com que um filsofo (aqui pelomenos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a

    inventar, a criar conceitos, e no a ocupar-se em refletir,mesmo sobre o cinema.

    Eu digo que fao filosofia, ou seja, que tento inventarconceitos. E vocs que fazem cinema, o que vocs fazem?

    O que vocs inventam no so conceitos isso no desua alada , mas blocos de movimento/ durao. Sefabricamos um bloco de movimento/durao, possvelque faamos cinema. No se trata de invocar umahistria ou de recus-la. Tudo tem uma histria. Afilosofia tambm conta histrias. Histrias com conceitos.O cinema conta histrias com blocos de movimento/durao. A pintura inventa um tipo totalmente diverso debloco. No so nem blocos de conceitos, nem blocos demovimento/durao, mas blocos de linhas/cores. Amsica inventa um outro tipo de bloco, tambm todopeculiar. Ao lado de tudo isso, a cincia no menoscriadora. Eu no vejo tantas oposies entre as cincias e

    as artes.

    Se pergunto a um erudito o que ele faz, tambm eleinventa. Ele no descobre a descoberta existe, pormno por meio dela que definimos uma atividadecientfica como tal , mas cria como se fosse um artista.Um erudito, coisa bem simples, algum que inventa oucria funes. E ele est sozinho nessa empreitada. Umerudito, na condio de erudito, nada tem a ver com

    conceitos. justamente para isso e felizmente queexiste a filosofia. Em compensao, existe uma coisa ques o erudito sabe fazer: inventar e criar funes. O que uma funo? Existe uma funo sempre que hcorrespondncia uniforme de pelo menos dois conjuntos.A noo de base da cincia e no desde ontem, masdesde muito tempo a noo de conjunto. Um conjuntono tem nada a ver com um conceito. Sempre que vocpuser conjuntos em correlao uniforme, voc obter

    conjuntos e poder dizer: Eu fao cincia.

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    Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer,se um cineasta pode falar com um homem de cincia, seum homem de cincia pode ter algo a dizer a um filsofoe vice-versa, na medida e em funo das atividades

    criativas de cada um. No que haja espao para falar dacriao a criao antes algo bastante solitrio , mas em nome de minha criao que tenho algo a dizer paraalgum. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que sedefinem pela sua atividade criadora, diria que h umlimite que lhes comum. O limite que comum a todasessas sries de invenes, invenes de funes,invenes de blocos de durao/movimento, inveno deconceitos, o espao-tempo. Se todas as disciplinas secomunicam entre si, isso se d no plano daquilo quenunca se destaca por si mesmo, mas que est como queentranhado em toda a disciplina criadora, a saber, aconstituio dos espaos-tempos.

    Em Robert Bresson [diretor francs, 1907], caso bastanteconhecido, raramente existem espaos inteiros. Soespaos que podemos chamar desconexos. H, porexemplo, um canto, um canto de um quarto. Depoisvemos um outro canto, ou ento um pedao da parede.

    Tudo ocorre como se o espao bressoniano seapresentasse como uma srie de pequenos fragmentoscuja conexo no est predeterminada. Existem grandescineastas que empregam, ao contrrio, espaos deconjunto.

    No digo que seja mais fcil manejar um espao deconjunto. Mas o espao de Bresson constitui um tipo deespao particular. Sem dvida, ele foi retomado mais

    tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, queo renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros aconstruir o espao com pequenos fragmentos desconexos,ou seja, pequenos fragmentos cuja conexo no predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todasas tentativas de criao, existem espaos-tempos. sisso que existe. Os blocos de durao/movimento deBresson tendero a esse tipo de espao, entre outros.

    A pergunta ento essa: esses pequenos fragmentos deespao visual cuja conexo no dada previamente so

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    conectados por meio de qu? Pela mo. No se trata deteoria nem de filosofia. No um processo dedutivo. Oque quero dizer que o espao de Bresson avalorizao cinematogrfica da mo no seio da imagem.

    A juno de pequenos trechos de espao bressoniano pelofato mesmo de serem trechos, pedaos desconexos doespao, pode ser exclusivamente uma juno manual. Daa exausto da mo em todo o seu cinema.

    Desse modo, o bloco de extenso/movimento de Bressonrecebe como caracterstica prpria desse criador, desseespao, o papel da mo, que irrompe em seus limites.Somente a mo capaz de operar efetivamente asconexes de uma parte a outra do espao. E Bresson sem dvida o mais importante cineasta a terreintroduzido no cinema os valores tteis. No s porqueele sabe captar as mos em imagens admirveis. Se elesabe captar admiravelmente as mos em imagens porque ele precisa delas. Um criador no um ser quetrabalha pelo prazer. Um criador s faz aquilo de que temabsoluta necessidade.

    Mais uma vez, ter uma idia em cinema no a mesma

    coisa que ter uma idia em outro assunto. Contudo hidias em cinema que tambm poderiam valer em outrasdisciplinas, que poderiam ser excelentes em romances,por exemplo. Mas elas no teriam, absolutamente, osmesmos ares. Alm disso, existem idias no cinema ques podem ser cinematogrficas. No importa. Mesmoquando se trata de idias em cinema que poderiam valerem romances, elas j esto empenhadas num processocinematogrfico que faz com que elas estejam

    predestinadas. Esse um modo de formular umapergunta que me interessa: o que faz com que umcineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, umromance? Parece-me evidente que porque ele temidias em cinema que fazem eco quilo que o romanceapresenta como idias em romance. E com isso se dograndes encontros.

    No cogito do problema do cineasta que adapta um

    romance notoriamente medocre. Ele pode precisar doromance medocre, e isso no impede que o filme seja

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    genial; seria interessante abordar essa questo. Masproponho uma questo diferente: o que acontece quandoo romance um grande romance e revela-se essaafinidade pela qual algum em cinema tem uma idia que

    corresponde quilo que era uma idia em romance?Umdos casos mais belos o de Akira Kurosawa [diretorjapons, 1910-1998]. Por que ele tem essa familiaridadecom Shakespeare e Dostoivski? Por que preciso um

    japons para entrar em familiaridade com esses autores?

    Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco filosofia. Nos personagens de Dostoivski, produz-semuitas vezes algo bastante curioso, que pode dizerrespeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles somuito agitados. Um personagem sai de casa, desce at arua e diz: Tnia, a mulher que amo, me pede ajuda. Voucorrendo, ela morrer se eu no for. Ele desce a escadae encontra um amigo, ou v um co atropelado, eesquece, esquece completamente que Tnia o espera, beira da morte. Ele se pe a falar, cruza com outrocamarada, vai at sua casa tomar ch e, de sbito, diznovamente: Tnia me espera, preciso que eu v.

    O que significa tudo isso? Em Dostoivski, os personagensso perpetuamente vtimas da urgncia e, ao mesmotempo em que eles so vtimas dessas urgncias, que soquestes de vida ou morte, eles sabem que h umaquesto ainda mais urgente, embora no saibam qual. E isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maiorurgncia um incndio, preciso que eu v , eles sedissessem: No, existe algo ainda mais urgente. Nomoverei um dedo at saber do que se trata. O idiota

    [romance de Dostoivski filmado por Kurosawa]. afrmula de O idiota: Veja, h um problema maisprofundo. Qual problema, no saberia dizer ao certo. Masme deixe. Tudo pode arder... preciso encontrar esseproblema mais urgente.

    Isso Kurosawa no aprendeu de Dostoivski. Todos ospersonagens de Kurosawa so assim. Eis um beloencontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoivski, pelo

    menos porque pode dizer: Temos um assunto emcomum, um problema em comum. Os personagens de

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    Kurosawa metem-se em situaes impossveis, masateno: h um problema mais urgente. E preciso queeles saibam qual esse problema.

    Viver talvez o filme de Kurosawa que v mais longenesse sentido. Mas todos os seus filmes vo nessesentido. Os sete samurais, por exemplo: todo o espao deKurosawa depende dele, necessariamente um espaooval, castigado pela chuva. Em Os sete samurais, ospersonagens so pegos numa situao de urgncia: elesaceitaram defender o vilarejo e do comeo ao final dofilme eles so afligidos por uma questo mais profunda,que ser proferida no final, pelos chefes dos samurais,quando eles partem: O que um samurai? O que umsamurai, no em sentido genrico, mas naquela poca?.Algum que no serve mais para nada.

    Os senhores no precisam mais deles, e os camponeseslogo sabero defender-se sozinhos. Durante todo o filme,em que pese a urgncia da situao, os samurais soatormentados por essa questo, digna de O idiota: ns,samurais, o que somos ns?

    Uma idia em cinema desse tipo to logo se acheempenhada num processo cinematogrfico. Ento vocpoder dizer: tive uma idia, mesmo se voc a tomaemprestada de Dostoivski.

    Uma idia algo bem simples. No um conceito, no filosofia. Mesmo que de toda idia se possa tirar, talvez,um conceito. Penso em Vincente Minnelli [diretor norte-americano, 1902-1986], que tem uma idia extraordinria

    sobre o sonho. Ela bem simples, podemos verbaliz-la,e est empenhada num processo cinematogrfico que aobra de Minnelli.

    A grande idia de Minnelli sobre o sonho que ele dizrespeito sobretudo queles que no sonham. O sonhodaqueles que sonham diz respeito queles que nosonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempreque h o sonho do outro, h perigo. O sonho das pessoas

    sempre um sonho devorador, que ameaa nos engolir.Que os outros sonhem algo perigoso. O sonho uma

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    terrvel vontade de potncia. Cada um de ns mais oumenos vtima do sonho dos outros. Mesmo quando setrata da jovem mais graciosa, ela uma terrveldevoradora, no por sua alma, mas por seus sonhos.

    Desconfiem do sonho do outro, porque se vocs foremapanhados no sonho do outro, estaro em maus lenis.

    Uma idia cinematogrfica , por exemplo, a famosadissociao entre o ver e o falar no cinema relativamenterecente, quer seja tomo os casos mais conhecidos HansJuergen Syberberg [diretor alemo], os Straub [osdiretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulherDanile Huillet], Marguerite Duras [escritora e diretorafrancesa, 1914-1997]. O que h de comum e por que uma idia propriamente cinematogrfica fazer umadisjuno entre o visual e o sonoro? Por que isso nopode ser feito no teatro? Poder, pode, mas ento, salvose o teatro dispuser de meios, se dir que ele a tomou deemprstimo ao cinema. O que no necessariamenteruim, mas assegurar a disjuno entre ver e falar, entre ovisual e o sonoro, uma idia to cinematogrfica queisso responderia questo de saber em que consiste, porexemplo, uma idia em cinema.

    Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa.Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim,aquilo de que nos falam est sob aquilo que nos fazemver. Esse terceiro ponto importantssimo. Logo se vque o teatro no teria acesso a tal expediente. O teatropoderia adotar as duas primeiras proposies: nos falamde alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo deque nos falam pe-se ao mesmo tempo sob aquilo que

    nos fazem ver e isso imprescindvel, se no as duasprimeiras operaes no teriam nenhum sentido ouinteresse podemos diz-lo de outro modo: a palavra seergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemosafunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo queessa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falavaafunda-se na terra.

    O que isso seno aquilo que somente o cinema pode

    fazer?

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    ordem.

    As declaraes da polcia so chamadas, a justo ttulo,comunicados. Elas nos comunicam informaes, nos

    dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemosou temos a obrigao de crer. Ou nem mesmo crer, masfazer como se acreditssemos. No nos pedem para crer,mas para nos comportar como se crssemos. Isso informao, isso comunicao; parte essas palavrasde ordem e sua transmisso, no existe comunicao. Oque equivale a dizer que a informao exatamente osistema do controle. Isso evidente, e nos toca de pertohoje em dia. verdade que entramos numa sociedade quepodemos chamar sociedade de controle. Um pensadorcomo Michel Foucault analisara dois tipo de sociedadesbastante prximas de ns: as sociedades de soberania eas sociedades disciplinares. A passagem tpica de umasociedade de soberania para uma sociedade disciplinarcoincidiu, segundo ele, com Napoleo. A sociedadedisciplinar definia-se as anlises de Foucault, com todomrito, por causa disso tornaram-se famosas pelaconstituio de meios de enclausuramento: prises,escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares

    tinham necessidade disso.

    Essa anlise engendrou ambiguidades em certos leitoresde Foucault, pois se pensou que essa era sua ltimapalavra. Evidentemente que no. Foucault jamais pensou,e ele o disse com bastante clareza, que as sociedadesdisciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava queentraramos num tipo de sociedade nova. claro queexiste todo tipo de resqucio de sociedades disciplinares,

    que persistiro por anos a fio, mas j sabemos que nossavida se desenrola numa sociedade de outro tipo, quedeveria chamar-se, segundo o termo proposto por WilliamBurroughs e Foucault tinha por ele uma viva admirao, de sociedades de controle.

    Entramos ento em sociedades de controle que diferemem muito das sociedades de disciplina. Aqueles quevelam por nosso bem no tm ou no tero mais

    necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todoseles, as prises, as escolas, os hospitais, so temas de

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    discusso permanente. No seria melhor estender otratamento aos domiclios? Sim, esse sem dvida ofuturo. As oficinas, as fbricas no comportam maisempregados. No seria melhor regimes de empreitada e

    de trabalho a domiclio? No existem outros meios depunir os infratores seno a priso? As sociedades decontrole no adotaro mais os meios de enclausuramento.Nem mesmo a escola.

    Vale a pena investigar os temas que nascem, que sedesenvolvero em 40 ou 50 anos e que nos explicam queo espantoso seria conjugar escola e profisso. Seriainteressante saber qual ser a identidade da escola e daprofisso ao longo da formao permanente, que onosso futuro e que no implicar necessariamente oreagrupamento de alunos num local de clausura. Umcontrole no uma disciplina. Com uma estrada no seenclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas,multiplicam-se os meios de controle. No digo que esseseja o nico objetivo das estradas, mas as pessoas podemtrafegar at o infinito e livremente, sem a mnimaclausura, e serem perfeitamente controladas. Esse onosso futuro.Suponhamos que a informao seja isso, o

    sistema controlado das palavras de ordem que tm cursonuma dada sociedade.

    O que a obra de arte pode ter a ver com isso?

    No falemos de obra de arte, mas digamos ao menos queexiste a contra-informao. Em pases sob ditaduracerrada, em condies particularmente duras e cruis,existe a contra-informao. No tempo de Hitler, os judeus

    que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros anos contar sobre os campos de extermnio faziam acontra-informao. O que preciso constatar que acontra-informao nunca foi suficiente para fazer o quequer que fosse. Nenhuma contra-informao foi capaz deperturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso devital importncia. A nica resposta seria que a contra-informao s se torna eficaz quando ela e ela o pornatureza ou se torna um ato de resistncia. E o ato de

    resistncia no nem informao nem contra-informao. A contra-informao s efetiva quando se

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    torna um ato de resistncia.

    Qual a relao entre a obra de arte e a comunicao?

    Nenhuma. A obra de arte no um instrumento decomunicao. A obra de arte no tem nada a ver com acomunicao. A obra de arte no contm, estritamente, amnima informao. Em compensao, existe umaafinidade fundamental entre a obra de arte e o ato deresistncia. Isto sim. Ela tem algo a ver com ainformao e a comunicao a ttulo de ato de resistncia.

    Qual a relao misteriosa entre uma obra de arte e umato de resistncia, uma vez que os homens que resistemno tm nem o tempo nem talvez a cultura necessriospara relacionar-se minimamente com a arte?

    No sei. Andr Malraux [escritor e diretor francs,1901-1976] desenvolve um belo conceito filosfico: elediz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela anica coisa que resiste morte. Voltemos ao comeo: oque fazemos quando fazemos filosofia? Inventamosconceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito

    filosfico. Reflitamos... O que resiste morte? Bastacontemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristopara descobrir que a resposta de Malraux uma boaresposta. Poderamos dizer ento, de forma mais tosca,do ponto de vista que nos interessa, que a arte aquiloque resiste, mesmo que no seja a nica coisa queresiste. Da a relao to estreita entre o ato deresistncia e a obra de arte. Todo ato de resistncia no uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faa

    parte dele. Toda obra de arte no um ato deresistncia, e no entanto, de uma certa maneira, elaacaba sendo.

    O que ter uma idia em cinema?

    Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operamessa disjuno entre voz sonora e imagem visual, queeles tomam da seguinte maneira: a voz se ergue, se

    ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa soba terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos

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    mostrando, imagem visual que no tinha nenhumarelao direta com a imagem sonora. Ora, qual esse atode fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda naterra? Resistncia. Ato de resistncia. E em toda a obra

    dos Straub, o ato de fala um ato de resistncia. DeMoiss e Aaro ao ltimo Kafka [Amrica, romancefilmado por Straub], passando por no cito pela ordem No reconciliados ou Bach [Crnica de Anna MagdalenaBach]. O ato de fala de Bach sua msica, que um atode resistncia, luta ativa contra a repartio do profano edo sagrado.Esse ato de resistncia na msica culminanum grito. Assim como h um grito no Woyzeck[pea doalemo Georg Bchner de 1836], h um grito em Bach:

    Fora! Fora! Ide embora, no vos quero ver!. Quando osStraub o pem em relevo, esse grito, o de Bach ou o davelha esquizofrnica de No Reconciliados, tudo isso hde testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistnciapossui duas faces. Ele humano e tambm um ato dearte. Somente o ato de resistncia resiste morte, sejasob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma deuma luta entre os homens.

    Qual a relao entre a luta entre os homens e a obra de

    arte?

    A relao mais estreita possvel e, para mim, a maismisteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizerquando afirmava: Pois bem, falta o povo. O povo falta eao mesmo tempo no falta. Falta o povo quer dizer queessa afinidade fundamental entre a obra de arte e umpovo que ainda no existe nunca ser clara. No existeobra de arte que no faa apelo a um povo que ainda no

    existe.

    Especial para a Trafic, traduo de Jos Marcos Macedo,publicado na Folha de S. Paulo de 27/06/1999.