o aparelho cardiovascular na toxemia da gravidez · de hipertensão na primeira metade da gravidez;...

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O comprometimento do aparêlho cardiovascular na toxemia gravídica constitui assunto de grande interêsse. Contudo, se, no que diz respeito a um de seus aspectos, qual seja o da hipertensão arterial, tem sido já extensamente analisado, por outro lado muito pouca atenção tem-se dado ao processo toxêmico como possível fator etiológico de cardiopatia. Não obstante isso, existem atualmente evidências de que a toxemia gravídica pode determinar um comprometimento miocárdico a ela diretamente relacionado, e ser de tal magnitude em alguns casos, a ponto de levar a quadros graves de insuficiência cardíaca. Com o intuito de despertar maior interêsse para esse problema, resolvemos apresentar aqui algumas observações, nas quais pudemos constatar as repercussões da toxemia gravídica sôbre o aparêlho circulatório. Inicialmente, porém, traçaremos em linhas gerais as delimitações e os conceitos etiopatogênicos dessa complexa condição que, com freqüência, ensombrece a evolução da gestação. A TOXEMIA GRAVÍDICA A toxemia da gravidez, de acôrdo com Dexter e Weiss 1 , é uma. afecção vascular aguda caracterizada pelo aparecimento, na segunda metade da gravidez, de hipertensão arterial e de albuminúria, acompanhadas, na maioria dos casos, de edema generalizado. Isso pode ocorrer em pacientes com cifras tensionais normais ou já elevadas antes da gravidez, assim como em presença de uma função renal normal ou já comprometida. Por conseqüência, não basta o simples achado de O APARELHO CARDIOVASCULAR NA TOXEMIA DA GRAVIDEZ AARÃO B. BENCHIMOL * RAIMUNDO DIAS CARNEIRO ** Trabalho do Hospital dos Servidores do Estado. * Chefe do Serviço de Cardiologia do H. S. E. Docente da Fac. Nac. de Med. (Prof. L. Capriglione). ** Assistente do Serviço de Cardiologia do H. S. E.

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O comprometimento do aparêlho cardiovascular na toxemiagravídica constitui assunto de grande interêsse. Contudo, se, no quediz respeito a um de seus aspectos, qual seja o da hipertensão arterial,tem sido já extensamente analisado, por outro lado muito pouca atençãotem-se dado ao processo toxêmico como possível fator etiológico decardiopatia. Não obstante isso, existem atualmente evidências de quea toxemia gravídica pode determinar um comprometimento miocárdicoa ela diretamente relacionado, e ser de tal magnitude em alguns casos,a ponto de levar a quadros graves de insuficiência cardíaca.

Com o intuito de despertar maior interêsse para esse problema,resolvemos apresentar aqui algumas observações, nas quais pudemosconstatar as repercussões da toxemia gravídica sôbre o aparêlhocirculatório. Inicialmente, porém, traçaremos em linhas gerais asdelimitações e os conceitos etiopatogênicos dessa complexa condiçãoque, com freqüência, ensombrece a evolução da gestação.

A TOXEMIA GRAVÍDICA

A toxemia da gravidez, de acôrdo com Dexter e Weiss 1, é uma.afecção vascular aguda caracterizada pelo aparecimento, na segundametade da gravidez, de hipertensão arterial e de albuminúria,acompanhadas, na maioria dos casos, de edema generalizado. Isso podeocorrer em pacientes com cifras tensionais normais ou já elevadas antesda gravidez, assim como em presença de uma função renal normal oujá comprometida. Por conseqüência, não basta o simples achado de

O APARELHO CARDIOVASCULAR NA TOXEMIA DAGRAVIDEZ

AARÃO B. BENCHIMOL *RAIMUNDO DIAS CARNEIRO **

Trabalho do Hospital dos Servidores do Estado.* Chefe do Serviço de Cardiologia do H. S. E. Docente da Fac. Nac. de

Med. (Prof. L. Capriglione).** Assistente do Serviço de Cardiologia do H. S. E.

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hipertensão e albuminúria para se diagnosticar uma toxemia gravídica,senão que é indispensável que êsses dois dados se tenham acentuadode forma manifesta, em relação aos níveis presentes, antes ou durantea primeira metade da gravidez. Igualmente, a retenção aquosa nagravidez é comum e relativamente inócua, desde que não se acompanhede um processo vascular associado. Essas manifestações (hipertensãoarterial, albuminúria e edema) regridem, em geral, de maneira mais oumenos rápida, pouco antes ou imediatamente após o parto.

Como fatôres particularmente predisponentes ao aparecimento datoxemia contam-se qualquer tipo de hipertensão pré-existente e apresença de edemas; como menos importantes, figuram a gravidezgemelar, a primigestação, o hidrâmnios, o diabetes e outros.

O início dêsse quadro é, em geral, insidioso e só pode sersurpreendido se a paciente estiver sob vigilância. Um aumentodesproporcional de pêso (600 a 900 g. por semana), uma albumináriaque se intensifica e elevações transitórias da pressão arterial constituemfreqüentemente as primeiras manifestações.

O aparecimento de cefaléia, perturbações visuais, vertigens, náusease vômitos e convulsões, seguidas ou não de estado comatoso,caracterizam já uma fase mais avançada da toxemia. Deve-se assinalar,contudo, que qualquer dêsses sintomas pode deixar de figurar nasíndrome toxêmica. As convulsões não constituem uma característicaessencial da síndrome; permitem, porém, distinguir pela sua presençaa forma eclâmptica da forma não convulsiva ou pré-eclâmptica. Emboraas crises convulsivas atestem a gravidade do processo, a evolução fatalde muitos casos ocorre na sua ausência, permitindo à autópsiacomprovar nesses casos o diagnóstico clínico pelos achadoscaracterísticos nos rins (espessamento da membrana basal capilar etumefação das células epiteliais dos glomérulos) e no fígado (necrosehemorrágica ou atrofia das trabéculas hepáticas). Não obstante ascaracterísticas lesões dêsses órgãos, as provas de função renal e hepáticapermanecem normais até que fases avançadas sejam alcançadas. Ahematúria está ausente na maioria dos casos e, quando presente, sugereuma complicação.

Do ponto de vista etiopatogênico admite-se que, em última análise,os sintomas e sinais da toxemia hipertensiva, com exceção da retençãoaquosa dependem., direta ou indiretamente, de uma intensavasoconstrição generalizada, a qual explica. não só a hipertensãoarterial, como também as alterações parenquimatosas dependentes dadiminuição da irrigação sangüínea nos diversos setores orgânicos. E’o que acontece, por exemplo, ao nível do rim provocando, por anoxemia

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do capilar glomerular, o aparecimento de albuminúria de maior oumenor intensidade. Testemunhando a natureza vasospástica da doença,observa-se ainda com muita freqüência, ao exame de fundo de ôlho, asalterações características da retinopatia angiospástica.

Uma vez que o edema pode preceder de muito a hipertensão e aalbuminúria, acreditam Dexter e Weiss 1 que dois fatôres devem intervirna gênese do processo toxêmico: de um lado, uma síndrome vascular,e de outro, fenômenos de retenção hidrossalina. Êsses dois fatôres secombinariam em graus variáveis de intensidade, para produzir o quadroclínico, o qual, nas suas fases finais, apresentaria edema e hipertensãocom albuminária em graus acentuados, enquanto, nas primeiras fases,predominaria um ou outro dêsses fatôres.

Assim encarado o problema, a toxemia da gravidez nada mais seriado que um tipo peculiar de hipertensão arterial com albuminúria porvasoconstricção generalizada, acompanhada de retenção aquosa. Asubstância vasoconstritora responsável por êsse processo é de naturezadesconhecida; por analogia com a hipertensão nefrógena, acreditou-se que a compressão das artérias renais 2 , ou dos ureteres e veiasrenais 3 pelo útero aumentado, condicionasse o mecanismo hipertensivopor isquemia renal, principalmente por ser a toxemia freqüente nagravidez gemelar, hidrâmnios, mola hidatiforme etc. Entretanto, aexperimentação e a clínica não apoiaram essa hipótese, uma vez que agravidez não acentua, em cadelas e coelhas, a hipertensão por isquemiarenal 4, como também a toxemia não se observa em pacientes comvolumosos aumentos do útero por fibromas, cistos e tumores em geral.Por outro lado, o conteúdo uterino (feto e placenta) usualmente é menornas toxemias do que nas grávidas normais 1.

A tendência atual é aceitar uma substância vasoconstritora vinculadaa uma atividade anormal do complexo feto-placentório, principalmenteporque, em geral, os sintomas só cedem após o esvaziamento uterino.A natureza dessa substância é desconhecida; difere, contudo, dahipertensina, uma vez que a hipertensão da isquemia renal não seacompanha habitualmente das elevadas albuminúrias e dos edemasque caracterizam a toxemia gravídica.

Quanto à retenção aquosa com formação de edema, procura-seexplicá-la à luz de distúrbios hormonais, tais como a baixa excreçãode substâncias estrogênicas e pregnandiol, assim como um aumentodas gonadotrofinas coriônicas do sôro e da urina. A hiperfunção dolobo posterior da hipófise 5, com seu conhecido hormônio de açãopressora e antidiurética, não foi confirmada experimentalmente. A hipo-

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proteinemia resultante da permeabilidade anormal dos capilaresglomerulares, embora não pareça desempenhar papel fundamental, deveintervir, em parte, nos casos prolongados e quando muito acentuada.Nesses casos se produzem nos tubuli, em conseqüência da proteinúria,as mesmas perturbações que se observam na nefrose lipóidica.

REPERCUSSÕES DA TOXEMIA

A toxemia da gravidez não sòmente determina uma grandemortalidade fetal, como também pode pôr em perigo a vida da mãe,quando se manifesta sob a forma eclâmptica. Contudo, o seu únicoefeito tardio é o desenvolvimento de uma doença hipertensivapermanente, com tôdas as características da hipertensão essencial, oque ocorre em cêrca de um têrço 6 a um quarto 1 dêsses pacientes. Issofoi atribuído, por alguns autores 6, à persistência das lesões glomerularesda toxemia; contudo, a maioria não acredita nessa interpretação,afirmando Dieckmann e Brown 1 que a toxemia da gravidez nãodetermina lesão renal permanente. Há uma grande tendência atual paraconsiderar a hipertensão permanente pós-toxêmica como manifestaçãode doença vascular hipertensiva essencial, representando a toxemiaum mero fator precipitante do processo. Aliás, não é raro o aparecimentode hipertensão na primeira metade da gravidez; trata-se provàvelmenteaqui, da forma essencial da doença, cuja tendência hipertensiva jáexistente foi despertada pela gestação.

Particularmente digno de atenção é o problema da gravidez empaciente já hipertensa. Como já vimos, essa condição constitui um dosprincipais fatôres predisponentes do processo toxêmico, o qual ocorreem cêrca de 50% dessas pacientes, enquanto, nas grávidas normais 1, aincidência é de 2%. Contudo, nas hipertensas que não se complicamde toxemia, a evolução da gravidez se processa normalmente, razãopela qual êsse fato não constitui contra-indicação formal à gestação. Omesmo não ocorre quando a toxemia gravídica se superpõe àhipertensão; nesses casos, pode-se agravar consideràvelmente o estadodas doentes, o que precisa ser reconhecido precocemente, a fim de seevitar graves complicações. Por conseguinte, impõe-se a vigilânciaestreita da hipertensa grávida, devendo-se levar em consideração nãosòmente a maior elevação das cifras tensionais, mas também o aumentodesproporcional de pêso, a acentuação da albuminúria, a presença decefaléia e escotomas e, mais que tudo, o aparecimento de alteraçõesretinianas frescas ao exame de fundo de ôlho (retinite angiospás-

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tica); êsses elementos devem servir de indicação para uma possívelinterrupção da gravidez, a qual está indicada tão cedo se constate aviabilidade do feto. Entretanto, se as condições clínicas não melhoraremfrancamente com as medidas terapêuticas adotadas, só se esperará pelaoportunidade de recorrer ao parto prematuro quando a probabilidadede um feto viável não ultrapasse de 15 dias. Caso contrário e esgotadoêsse prazo, deve-se provocar imediatamente o abôrto, tanto mais quehoje se sabe ser a duração da toxemia de maior importância que o graude intensidade da mesma, no que tange à agravação ulterior do estadohipertensivo. Aliás, tôda toxemia hipertensiva que se prolonga pormais de 3 semanas corre o risco de deixar como seqüela uma hipertensãoarterial definitiva e tôda toxemia albuminúrica franca que dura maisde 2 semanas põe em perigo a vida do feto.

Nos dois casos que passamos a apresentar, de hipertensas grávidascomplicadas de toxemia, puderam-se constatar as várias eventualidadesreferidas, inclusive o aparecimento de insuficiência cardíaca em umdêles (caso 2 ) .

Caso 1 - H. 13. A., 29 anos, parda, reg. 24.289. Compareceu ao H. S. E. em26-11-48, primigesta, de 3 meses, sabendo-se hipertensa há 2 anos. Foi internadaem 5-12-48 a fim de julgarmos das possibilidades de levar a têrmo a gestação.Suas cifras tensionais eram de 210-120 e pulso de 80 por minuto, regular. Nãohavia manifestações de insuficiência cardíaca. As provas de função renal foramtôdas satisfatórias, assim como a pielografia, descendente. Fundo de ôlho: grupoI (Wagener-Keith). Ao eletrocardiograma (27-11-48), evidência de moderadahipertrofia do ventrículo esquerdo pela presença de onda R elevada em posiçõesprecordiais esquerdas (fig. 1-A). Com 20 dias de repouso e medicaçãobarbitúrica, a pressão arterial desceu a 170-100, tendo atingido, em certaocasião, 156-88. Em virtude das condições favoráveis então presentes, julgou-se possível a continuação da gravidez, devendo, contudo, ser submetida aexames periódicos com freqüência. Ao comparecer ao ambulatório, em 16-2-49, sentindo-se perfeitamente bem, constatou-se que sua pressão arterial atingia250-140; referia apenas cefaléia leve e ocasional. Reinternada, verificou-se apresença, no fundo de olho, de edema retiniano e diversos espasmos focais(Wagener III) continuando a função renal satisfatória, apesar de se termanifestado albuminúria franca. Não obstante o repouso, a dieta acloretada emedicação vasodilatadora, não se conseguiu baixar a pressão, mantendo-se amínima sempre acima de 130. Agravaram-se as alterações eletrocardiográficaspelo aparecimento de modificações da onda T, que se tornou invertida em D

1,

VL e V 6, (fig. 1-13). Aos raios X observou-se aumento da área cardíaca, com

predominância do ventrículo esquerdo, mais evidente em OAE (fig. 2). Tendoa paciente aumentado excessivamente de pêso (3 kg, 600 em 23 dias), foicolocada em restrição dietética mais rigorosa e julgado conveniente submetê-la à cesariana depois de atingir o 8º mês. Em 13-4-49, porém, queixou-se deintensa cefaléia e escotomas, além de dôr epigástrica, tendo as cifras tensionaisatingido 270-150. Foi solicitado o obstetra, pelo que foi executada a cesariana,a qual decorreu normalmente.

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Nos 7 dias subseqüentes a pressão manteve-se elevada (210-180),tendo regredido as alterações da onda T em eletrocardiograma realizado4 dias após (fig. I-C).

Fig. 1 - H. B. A., 29 anos (reg. 24.289), primigesta de 3 mêses,sabendo-se hipertensa há 2 anos. O primeiro ECG mostroumoderada hipertrofia ventricular esquerda (A). Em 11-4-49, empleno processo toxêmico, surgiram alterações da onda T em D

1VL e posições precordiais esquerdas (B), quais desapareceramlogo após o esvaziamento uterino (C). Essas alterações sugeremcomprometimento miocárdico no decurso da toxemia gravídica.

Trata-se, por conseguinte, de um caso de toxemia gravídica que seinstalou em paciente portadora de hipertensão essencial, a despeito detôdas as precauções tomadas, tendo o eletrocardiograma reveladocomprometimento miocárdico. Possìvelmente, o processo vascular hi-

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pertensivo se tornará mais grave depois do ocorrido, pelo queacreditamos ser de utilidade submetê-la posteriormente à simpatectomiatoracolombar, que tem dado bons resultados nesses casos 8, permitindo,inclusive, a evolução normal de ulteriores gestações.

Caso 2 - A. M. J., parda, 27 anos, reg. 9250. Hipertensa há mais de 6 anos,tendo tido, de 4 anos a esta data, 2 gestações interrompidas rio 7º e 8º meses,respectivamente, por toxemia gravídica, além do um abôrto incompleto emabril de 19-18. Antes dêsse abôrto levou uma gestação a têrmo, tendo dado àluz um feto normal. Em setembro de 1948, no curso da 5º gestação, foi-nosenviada para que a acompanhássemos, em virtude de suas cifras tensionaiselevadas. Nessa ocasião, sua pressão oscilava entre 170 e 180 para a máxima e100 e 132 para a mínima. Em 10-8-1919, no 8º mês da gestação, constataram-se sinais de insuficiência cardíaca, pelo que se julgou conveniente a suainternação. Ao exame verificou-se pulso de 100 por minuto, ritmo de galope,estertores subcrepitantes nas bases, e pressão arterial 180-130. Sinais de grandehipertrofia ventricular esquerda ao eletrocardiograma e raios X (fig. 3). Fundode ôlho: grau III (Wagener-Keith). Albuminúria acentuada com raras hemácias;densidade 1023. Pielograma descendente normal. Submetida a repouso,digitalização e regime acloretado, conseguiu-se a completa compensaçãocirculatória e, como a pressão se mantivesse em níveis mais baixos (170-100),julgamos que a paciente poderia tolerar bem o trabalho de parto, o que de fatoocorreu no dia 1-4-49, tendo dado à luz um feto em boas condições de vitalidade.O eletrocardiograma feito em 14-4-49 mostrava, além de grande hipertrofiado ventrículo esquerdo, sinais de impregnação digitálica (fig. 3). Posteriormente,manteve-se o equilíbrio circulatório, apesar de se suspender a digital, a pressãoarterial conservou-se em tôrno de 160-110, tendo, em um novoeletrocardiograma, se verificado o desaparecimento da ação digitálica, conformese observa na mesma fig. 3. O exame de fundo de ôlho revelou regressão parcialdas alterações retinianas.

Fig. 2 - Aumento da área cardíaca, com predominância do ventrículo esquerdo,bem evidente em O. A. E. Mesma paciente da figura 1.

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Fig. 3 - A M J, 27 anos (reg. 9.250), hipertensa há mais de 6 anos, multíparacom 2 gestações interrompidas no 7 º e 8 º mês por toxemia gravídica. Nocurso da 5 ª gravidez, apresentou, no 8 º mês, sinais de insuficiência cardíaca,além de manifestações toxêmicas. O exame radiológico e o eletrocardiograma(março de 1949) mostraram acentuada hipertrofia ventricular esquerda.Digitalizada e sob o tratamento higieno-dietético, conseguiu dar à luz por partonormal um feto em boas condições de vitalidade. Posteriormente restabeleceu-se o equilíbrio circulatório, que se manteve o mesmo sem o uso de cardiotônicos,tendo no ECG realizado em 28-4-1949 desaparecido os sinais de impregnaçãodigitálica evidentes em traçado prévio (11-4-1949)

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Nesse caso assistimos, pois, a uma toxemia da gravidez agravar umestado hipertensivo prévio, levando-o à insuficiência cardíaca. Contudo,foi possível controlar o processo toxêmico e a insuficiência cardíaca,possibilitando, dêsse modo, levar a têrmo a gestação. Até que pontoessa descompensação dependeu da toxemia ou da sobrecargacirculatória da gravidez em coração já lesado, é difícil afirmar.

O CORAÇÃO NA TOXEMIA

Passemos, agora, a tratar pròpriamente do comportamento docoração na toxemia. Parece não ser rara a ocorrência de manifestaçõescardíacas nessa condição. Nas formas graves são mesmo relativamentecomuns a ortopnéia, a asma cardíaca e o edema agudo pulmonar. Essaúltima síndrome seria, segundo Moore e

Lawrance 9, a responsável pela morte de um têrço das pacientescom eclâmpsia. Que essas manifestações estão na dependência datoxemia é sugerido pelo seu aparecimento em pacientes sem hipertensãoprévia, podendo acompanhar-se de dilatação aguda de coração, quesubseqüentemente volta ao seu tamanho normal 10. Discute-se,atualmente, se êsses sintomas dependem exclusivamente de umainsuficiência miocárdica. Para Dexter e Weiss 1, a retenção de líqüidosno tecido pulmonar por fatôres inerentes à toxemia contribuiria emparte para o seu aparecimento. De acôrdo com êsses autores, adescompensação cardíaca, nesses casos, não dependeria de uma“miocardite” ou de quaisquer outras lesões “orgânicas” do miocárdio,mas sim das alterações da dinâmica circulatória, próprias dos últimosmeses da gravidez (aumento do volume sangüíneo, do débito cardíacoetc.) associadas à hipertensão arterial aguda, combinação essaparticularmente desfavorável para um miocárdio não hipertrofiado.Contudo, mais modernamente, os estudos eletrocardiográficos enecroscópicos 10,12 vieram comprovar, na toxemia, a existência de lesãomiocárdica, embora manifestações clínicas de insuficiência cardíacanão fôssem observadas na maioria dêles. Aliás, Polak 13, em 1926, jáassinalava, em um estudo necroscópico de 102 casos de eclâmpsia, apresença de processos degenerativos do miocárdio em 94 dêssespacientes.

Cumpre, na verdade, referir que os estudos eletrocardiográficosrealizados na toxemia da gravidez são, até certo ponto, discordantes, nãotendo alguns autores encontrado anomalias dignas de nota. Nós mesmos,nos 10 primeiros casos de toxemia em que emitimos parecer baseadosem sòmente um exame clínico e eletrocardiográfico, sem contrôleposterior, não encontramos alterações que pudessem ser atribuí-

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das à toxemia, embora alguns casos apresentassem curva de hipertrofiaventricular esquerda ligada à prévia hipertensão arterial. Entretanto,trabalhos outros, realizados com contrôles periódicos, não só durantea gestação, como também no post partum, demonstraramindiscutìvelmente o comprometimento cardíaco em grande número depacientes com essa condição. Assim é que Wallace e col.11a, em 12casos de toxemia sem eclâmpsia, observaram sinais de lesão miocárdicaem 50% dêles, sendo que, nas 2 pacientes em que havia insuficiênciacardíaca, as alterações ejetrocardiográficas se assemelhavam às deinfarto anterior; nas 4 em que as modificações eletrocardiográficasforam de menor monta não houve manifestações de insuficiênciacardíaca. Szekely e Snaith 11b, em 19 casos, só encontraram 6 semlesão miocárdica.

Por conseqüência, os estudos modernos tendem a demonstrar arelativa freqüência do comprometimento miocórdico na toxemiacardíaca, podendo, em certos casos, levar a quadros graves deinsuficiência cardíaca.

De acôrdo com Dexter e Weiss o coração é, em geral, normal quandoa toxemia é de grau leve, mas, nas formas graves, freqüentemente elase associa à insuficiência cardíaca. Êsses mesmos autores salientaramo fato das alterações eletrocardiográficas aparecerem ou se acentuaremno período post partum, às vêzes depois de instalada a insuficiênciacardíaca.

Antes de passarmos à apresentação de dois casos de toxemiagravídica em que as manifestações cardíacas foram da mais altaimportância, queremos salientar alguns achados de grande interêsseprático, dependentes do edema pulmonar e que precedem a instalaçãodas crises de insuficiência ventricular esquerda. Referimo-nos àdiminuição da capacidade vital e à acentuação da trama vascular comdiminuição da transparência das bases ao exame radiológico. Êssesdados são considerados como sinais de alarme 1, pelo que se impõe ainstituição de medidas terapêuticas preventivas.

Caso 3 - M. T. M. R., com 29 anos de idade, reg. 12870. Deu à luz umacriança na Maternidade de Cascadura, no dia 19-5-1948, por parto normal,conquanto, no período final de sua gravidez, se tivessem manifestado grandesedemas, que ràpidamente se generalizaram, e cefaléia. No 4º dia post partum apaciente foi enviada para casa, embora, nessa ocasião, se julgasse resfriadapelo aparecimento de tosse, pontada no hipocôndrio esquerdo e pequenaelevação de temperatura. No 6º dia do puerpério passou a apresentar dispnéiaa pequenos esforços, além de acentuação dos edemas pré-existentes, agravando-se ràpidamente êsse quadro a ponto de ser obrigada a manter-se em atitudeortopnéica. Ao ser internada no H. S. E., em 1-6-1948,

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apresentava-se muito pálida, dispnéica, taquicárdica, ainda com edemas, fígadoa 5 dedos da reborda costal com pressão arterial de 140-100, alternânciaauscultatória, estase pulmonar e derrame pleural bilateral. Fundo de ôlho. A

11,

(Gans). A radiografia de entrada em 3-6-48 evidenciou (fig. 4) grande aumentoglobal da área cardíaca, com estase hilar e pequena coleção líqüida na grandecavidade pleural de ambos os lados (mais à direita). Foi submetida durante 12dias a tratamento cardiotônico na dose diária de 1/4 de mg. de estrofantina,por via venosa, com desaparecimento, no fim, dêsse período, de todos os sinaisde descompensação, tendo novo exame radiológico, em 22-6-48, reveladocampos pulmonares e diâmetros cárdio-aórticos normais (fig. 4). Aoeletrocardiograma foram observadas, desde os primeiros traçados (fig. 5),alterações da onda T, consistentes inicialmente (4-6-48) em achatamento etendência à inversão dessa onda nas derivações periféricas e precordiaisesquerdas. Essas alterações se acentuaram progressivamente nos dois traçadossubseqüentes, evidenciando-se, em 24-6-48, inversão aguda de T em D

1, D e

precordiais a partir de V 4. Em virtude da presença, nesse traçado, da onda Q

em VL e da pequena diminuição da amplitude de R de V 2, para V

3, foram

feitas as precordiais altas (fig. 6), que evidenciaram, ao nível de V 5 deflexão

negativa inicial com r embrionário e inversão de T, alterações essas muitosemelhantes às de enfarte alto da parede anterior. Em 5-7-48 (figs. 5 e 6) otraçado mostrava acentuada regressão das alterações anteriormente verificadas,tendo-se positivado as ondas T e se reduzido a deflexão negativa em V, alto.Ao ter alta, em 6-7-48, achava-se em perfeito equilíbrio circulatório, mesmosem uso de cardiotônicos, com pressão arterial de 110-70, tendo o exame deurina revelado vestígios de albumina, anteriormente com traços

Fig. 4 - M. J. M. R. , 29 anos (reg. 12.870). Em A, radiografia feita no dia dainternação, mostrando grande aumento da área cardíaca, estase hilar e pequenoderrame pleural bilateral, mais acentuado à direita. Após tratamentocardiotônico durante 12 dias, observou-se (B) normalização dos diâmetroscárdio-aórticos e dos campos pulmonares.

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Fig. 5 - M. J. M. R. No 1 º traçado achatamento e tendência à inversão da ondaT em periféricas e precordiais esquerdas, que se acentuaram nos 2 traçadossubseqüentes, evidenciando-se, em 24-6-1948, inversão aguda de T em D

1 ,D

2 e precordiais a partir de V

4, onda Q em VL e diminuição da amplitude R de

V 2 para V

3. Em 5-7-1948, já havia regressão pràticamente total das alterações

de T.

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acentuados. E’ digno de nota que as maiores alterações do eletrocardiograma(24-6-48) não coincidiram com os períodos de acentuada insuficiência cardíaca,uma vez que essa já se achava em plena regressão quando aquelas foramregistradas.

Fig. 6 - Precordiais altas na paciente M. J. M. R. no 2 º espaço intercostal,evidenciando-se, em 24-6-1948 (A), nível de V

5, deflexão negativa inicial e

inversão de T, tendo-se positivado, em 5-7-1948 (B), as ondas T e reduzindo adeflexão negativa em V

5.

Êsse caso é bem ilustrativo do tipo de cardiopatia que pode sobrevirna toxemia da gravidez, instalando-se após o parto e evoluindo, empouco tempo, para uma grave descompensação cardíaca. Possìvelmente,muitos casos do tipo ainda mal individualizado da chamada “cardiopatiapost partum” 15 estariam na dependência de fatôres dessa natureza.Nessa última cardiopatia, contudo, o aparecimento da insuficiênciacardíaca é mais tardio (2 a 6 semanas após o parto), as anomaliaseletrocardiográficas não são evolutivas, são freqüentes osfenômenos embólicos, é refratária às medidas terapêuticas habituais,e tem evolução prolongada, embora o prognóstico possa serfavorável. Quanto à possibilidade de um infarto do miocárdio, queas alterações eletrocardiográficas poderiam fazer suspeitar, a idadeda paciente, a falta de manifestações dolorosas características e aregressão rápida daquelas alterações permitem afastar essa condição.Em alguns casos em que foi possível o exame necroscópico 10, 12, 15b

as coronárias foram encontradas normais e não obstruídas, revelandoo exame histopatológico do miocárdio, necrose focal e edema ouinfiltração celular, tendo-se atribuído a essas lesões as alteracõeseletrocardiográficas encontradas 11a. Como a glomerulonefriteaguda pode apresentar alterações eletrocardiográficas idênticasàs descr i tas e manifes tações de insuf ic iên-

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cia ventricular esquerda, deve-se levá-la em consideração nodiagnóstico diferencial. A ausência de hematúria acentuada, aintegridade da função renal e própria evolução do processo que não secronifica, auxiliam essa distinção.

Caso 4 - E. A. B., com 31 anos de idade, parda, registro 26.345. Primípara,foi internada na Maternidade do H. S. E. em 9-2-1949, no 7º mês de gestação,com o diagnóstico de toxemia gravídica. Referia pirose e vômitos freqüentesnos 3 primeiros meses de gravidez, e que, há 15 dias, começaram a surgiredemas nos membros inferiores e também na face e braços, porém menosacentuados. Há 4 dias atrás, apareceu cefaléia frontal intensa, tem sido internada2 dias após quando ocorreu a primeira crise convulsiva, que se repetiu 3 vêzesno mesmo dia. Fêz, então, medicação à base de cloral o sôro glicosadohipertônico, apresentando melhoras objetivas e subjetivas. No dia 11-2-1949constatamos, ao exame, cifras tensionais elevadas (190-120), pulso regular,80 por minuto, aorta discretamente palpável na fúrcula e bulhas cardíacasnormais com acentuação de A

2. Ruídos respiratórios normais. O

eletrocardiograma feito nesse dia revelou inversão da onda T em

Fig. 7 - E. A. B.,31 anos (reg. 26.345) internada em toxemia gravídica. Traçadosfeitos antes (A) e depois (B) do parto prematuro, não apresentando alteraçõesque permitissem suspeitar comprometimento miocárdico. Em 11-2-1949,observam-se ondas em V

1 e V

2 bifásica em V 3, persistindo a inversão apenas

em V 1 no traçado posterior.

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V 1 e V

2 bifásica em V

3. (fig. 7-A). Albuminúria de 7 g. por mil. Aumento

moderado do diâmetro transverso do coração ao exame radiológico, com tramavascular acentuada em ambas as bases (fig. 8). Ao exame de fundo de ôlho:constrição arteriolar generalizada com alguns espasmos localizados e edemade retina; a papila era normal. No dia seguinte, a paciente deu à luz um fetomorto, por parto espontâneo, após o qual as, melhoras se acentuaram aindamais, os edemas desapareceram e a. pressão arterial normalizou-se com odecorrer do puerpério. Novos eletrocardiogramas realizados logo

Fig. 8 - Aumento moderado do diâmetro transverso do coração, com acentuaçãoda trama vascular em ambas as bases. Radiografia no 7 º mês da gravidez dapaciente E. A. B.

após o parto (fig. 7-13) e com intervalo de dois e quatro dias mostraram ondaT invertida sòmente em V

1, sem outras modificações. Com êsses elementos,

julgamos não haver comprometimento miocárdico nessa paciente. No 6º diado puerpério, como as condições obstétricas e circulatórias fôssem satisfatórias,foi permitido que a mesma sentasse no leito. Ao tentar fazê-lo, foi acometidasubitamente de opressão precordial, angústia e tosse, tornando-se extremamentepálida, instalando-se logo um quadro de colapso periférico seguido de mortedentro de 20 minutos, a despeito da terapêutica instituída. Com o diagnósticode embolia pulmonar maciça e cor pulmonale agudo fatal, foi encaminhadoo pedido de necropsia. Essa, realizada quatro horas após a morte pelo Prof.Penna de Azevedo, mostrou, ao exame macroscópico, grande dilatação dascavidades direitas do coração e endocardite fibrosa crônica da mitral, alémde hiperemia do fígado e útero em involução. O exame dos cortes histológicosdos pulmões, em fragmentos múltiplos, mostrou numerosas células de tipomorfológico diferente no interior dos capilares interalveolares (fig. 9-A e B),enchendo totalmente a luz dos mesmos, e bloqueando a rêde capilar pulmonar.Tais células, por vêzes, chegam a fazer hérnia para fora

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do vaso; elas se apresentam ora sob a forma de células arredondadas isoladasvolumosas, pobres de citoplasma, contendo um só um núcleo de cromatinadensa, hipercromático e por vêzes contraído, desprovido de nucléolo, de volumevariável (fig. 9-A) ; ora sob a forma de massa sincicial, cujos núcleos são deaspecto vesiculoso, mais pobres de cromatina (fig. 9-B). Essas célulascomprometem, de modo difuso, tôda a rêde capilar sangüínea dos pulmões e,pelas suas características gerais e particulares, comparam-se às célulasplacentárias e reproduzem, no quadro histológico pulmonar, o aspecto conhe-

Fig. 9 - Cortes histológicos do pulmão, mostrando bloqueio da rede capilarpulmonar por células placentares que se apresentam, em A, volumosas pobresde citoplasmas, com um só núcleo de cromatina densa, e hipercromático. EmB, essas células se apresentam sob forma de uma massa sincicial, cujos núcleossão de aspecto vesiculoso e contendo pouca cromatina.

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cido de embolia por células placentárias nos pulmões (êmbolos de PelsLeusden), de observação freqüente na intoxicação gravídica, principalmentena forma eclâmptica. Não foram vistos êmbolos de tal natureza no fígado enos rins. No miocárdio encontraram-se, além de tais êmbolos, lesões que serãodescritas em publicação à parte por Penna de Azevedo.

Êsse caso, por conseguinte, mostra a possibilidade de uma toxemiagravídica determinar um quadro grave de embolia pulmonar, levandoà morte em breve prazo. Essa eventualidade já tem sido assinalada nadependência de embolismo por líqüido amniótico 16 ou por trombosedas veias dos membros inferiores; contudo, parece constituireventualidade rara o cor pulmonale agudo condicionado por embolismode células placentárias; embora essas células sejam com freqüênciaencontradas nos pulmões das pacientes que falecem com toxemiagravídica 17, não são em geral suficientemente numerosas para chegara bloquear a rêde capilar pulmonar. No caso presente, dado o seunúmero excessivo, chegaram, inclusive, a franquear os capilarespulmonares e a se localizar em pleno tecido miocárdico, onde foramencontradas lesões que posteriormente serão descritas.

Êsses últimos achados adquirem importância primordial, uma vezque não é de todo improvável que as alterações miocárdicas observadasna toxemia possam depender dessas lesões.

RESUMO

Uma breve revisão com atualização do problema clínico eetiopatogênico da toxemia gravídica foi feita pelos autores comointrodução ao estudo das repercussões dêsse processo sôbre o aparêlhocardiovascular. Foi analisada a questão do desenvolvimento de umadoença hipertensiva permanente pós-toxêmica, hoje considerada pormuitos como manifestação de doença vascular hipertensiva essencial.Particularmente, salientou-se o papel predisponente de uma hipertensãoprévia sôbre o aparecimento das manifestações toxêmicas, agravandoessas, por sua vez, aquêle processo hipertensivo. Em seguida, discutemo comprometimento cardíaco pròpriamente dito na toxemia, analisandoo quadro clínico, as alterações eletrocardiográficas e histopatológicasque têm sido assinaladas nessa condição.

Dentre 14 casos estudados de pacientes com toxemia gravídica, foramselecionados 4, cujas observações são apresentadas por manifestaremcomprometimento cardiovascular. Dessas pacientes, em duas a toxemiaincidiu em grávidas já prèviamente hipertensas (casos 1 e 2) e, nessas,pôde-se observar o aparecimento de sérias manifestações nadependência direta do processo toxêmico, além do agravamento das

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cifras tensionais principalmente no caso 1. No caso 3 predominou alesão miocárdica, que evoluiu em pouco tempo, após o parto, parauma grave descompensação cardíaca, verificando-se em menos de ummês regressão total do quadro clínico, radiológico e das alteraçõeseletrocardiográficas. Por último, no caso 4, verificou-se a possibilidadede a toxemia determinar um quadro gravíssimo de cor pulmonale agudocondicionado por embolismo de células placentárias, as quaisdeterminaram bloqueio da rêde capilar pulmonar, levando à morte emcurto prazo. Essas células, dado o seu número excessivo, chegaraminclusive a franquear os capilares pulmonares, tendo sido encontradasem pleno tecido miocárdico.

SUMMARY

The modern concepts regarding the pathogenesis as well as certainclinical aspects of toxemia of pregnancy are briefly reviewed, as anintroduction to the study of the effects of toxemia on the cardio-vascularsystem. The development of a permanent post-toxemic hypertensivedisease considered by most authors as a manifestation -of essentialhypertension is discussed. The role of a previous hypertensive state isemphasized, not only as predisposing to the appearance of pregnancytoxemia, but also acting as an aggravating factor. A detailed discussionis then presented of the evidences of cardiac involvement in toxemiaof pregnancy, as shown by the clinical picture, the electrocardiographicchanges and the pathologic findings in this condition.

Fourteen instances of toxemia were studied with a selection of 4cases showing cardiovascular changes, which are presented in detail.In two of these patients (cases 1 and 2) the toxemic manifestation;were superimposed on a pre-existing hypertension and determinedserious symptoms in addition to further elevation of the blood pressure,particularly in case 1.

Case 3 showed severe myocardial changes which led to a rapidlyprogressive, advanced state of heart failure in the immediate post-partalperiod. Complete recovery was observed in less than a month not onlyin the clinical picture but also in the electrocardiographic and radiologicfeatures. Finally, the last case (n.º 4) illustrates the

possibility of the appearance of a most severe type of acute corpulmonale in the course of toxemia of pregnancy; the patient died ofpulmonary embolism which at autopsy was shown to be due to massiveobstruction of the pulmonary capillaries by placentary cells. Numerouscells of this type were forced through the pulmonary circulation andwere found in myocardial tissue.

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