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O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA - TABOSA, Leila Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 1-12 1 O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA TABOSA, Leila UERN/UNAM MÉXICO [email protected] RESUMO O presente ensaio propõe uma abordagem analítica do poema O Anjo Cigano, do livro ARAME FALADO, de Marcus Fabiano Gonçalves, a partir das influências da emblemática desenvolvida a partir da obra de Andreae Alciati (1492-1550). Palavras-chave: Poesia visual. Emblemática. Cultura cigana. ABSTRACT This paper proposes an analytical approach to the poem O ANJO CIGANO, in Marcus Fabiano Gonçalves' book ARAME FALADO, using the influences of the emblematic developed after Andreae Alciati's (1492-1550) works. Key words: Visual poetry. Emblematic. Gypsy Culture. “O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.” - essas palavras do Padre Vieira no Sermão da Sexagésima servirão aqui de guia para minha análise do poema O ANJO CIGANO, de Marcus Fabiano Gonçalves, que está presente no seu livro ARAME FALADO. Impossibilitada de empreender uma crítica abrangente de todo a obra, elegi este poema paradigmático pela relação que vislumbro entre sua tessitura expositiva e a emblemática barroca dos séculos XVI e XVII que venho pesquisando. Durante o exame, mencionarei outros poemas da obra que me atraíram por seus versos espirituosos e não raras vezes difíceis, características que, sem muito esforço, apresentam-se como predominantes do ARAME FALADO. O poema em questão se encontra no capítulo O Alfanje e a Foice do livro, dedicado a criações ligadas aos orientes arabo-muçulmano e sino-asiático. Assim, o primeiro a dizer a seu respeito é que tal ambientação capitular de

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Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 1-12

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O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA

TABOSA, Leila

UERN/UNAM – MÉXICO

[email protected]

RESUMO

O presente ensaio propõe uma abordagem analítica do poema O Anjo Cigano, do livro ARAME

FALADO, de Marcus Fabiano Gonçalves, a partir das influências da emblemática desenvolvida a

partir da obra de Andreae Alciati (1492-1550).

Palavras-chave: Poesia visual. Emblemática. Cultura cigana.

ABSTRACT

This paper proposes an analytical approach to the poem O ANJO CIGANO, in Marcus Fabiano

Gonçalves' book ARAME FALADO, using the influences of the emblematic developed after

Andreae Alciati's (1492-1550) works.

Key words: Visual poetry. Emblematic. Gypsy Culture.

“O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não

sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.” - essas palavras do Padre

Vieira no Sermão da Sexagésima servirão aqui de guia para minha análise do poema O

ANJO CIGANO, de Marcus Fabiano Gonçalves, que está presente no seu livro ARAME

FALADO. Impossibilitada de empreender uma crítica abrangente de todo a obra, elegi este

poema paradigmático pela relação que vislumbro entre sua tessitura expositiva e a

emblemática barroca dos séculos XVI e XVII que venho pesquisando. Durante o exame,

mencionarei outros poemas da obra que me atraíram por seus versos espirituosos e não

raras vezes difíceis, características que, sem muito esforço, apresentam-se como

predominantes do ARAME FALADO. O poema em questão se encontra no capítulo O

Alfanje e a Foice do livro, dedicado a criações ligadas aos orientes arabo-muçulmano e

sino-asiático. Assim, o primeiro a dizer a seu respeito é que tal ambientação capitular de

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plano suscita uma indagação sobre o lugar que os ciganos ocupariam para além desses dois

polos de alteridade à cultura ocidental.

À diferença de outros poemas também longos do ARAME FALADO, acredito que

em O ANJO CIGANO o autor sirva-se de modo mais livre e fecundo do dispositivo

retórico dos emblemas de Andreae Alciati (1492-1550). Desenvolvida no século XVI como

uma fórmula estilística constituída pela escolha de um tema imagético acompanhado de um

lema, a emblemática compunha-se de uma glosa poética na forma de um adágio ou de um

epigrama. Jurista e pensador humanista de enorme prestígio, Alciati desenvolveu os seus

emblemas essencialmente como uma coleção de alegorias morais e diversões eruditas. O

seu Livro de Emblemas alcançou tamanha difusão por toda a Europa que chegou a contar

centenas de edições desde o seu surgimento (1549, Lyon; 1621, Pádua) até o século XVIII.

Essa tríade imagem-lema-glosa pode ser deparada de modo bastante frequente em

diversos passagens do ARAME FALADO, sobretudo nos poemas que adotam dicções mais

sentenciosas e declarativas. Originalmente, o emblema cultiva uma representação alegórica

apresentada com fins que ultrapassam o do mero símbolo, servindo-se tanto de uma

elucidação reveladora (diretamente voltada à decifração de algum hermetismo) como do

estabelecimento de novos nexos ocultos (estes já mais dispostos a afrontar os cânones

religiosos). Definido por Andreae Alciati (1492-1550) como um passatempo didático e

humanista, os emblemas empregaram epigramas latinos, redondilhas, hieróglifos, sextinas,

silvas e comentários, disseminando-se por todo o Ocidente como fonte de máximas,

conceitos e, sobretudo, de um novo estilo, muito mais conciso e incisivo, que recusava a

pompa e a prolixidez. Ademais, os emblemas chegaram também a ser utilizados como

espejos de príncipes, verdadeiros manuais de aconselhamento e etiqueta virtuosa

consultados pela nobreza.

Mas não haveria de ser a emblemática sempre acompanhada de figuras ou de

ilustrações? Na verdade, não. Até mesmo os emblemas de Alciati só foram ilustrados por

uma mera contingência editorial. Necessário é apenas que os emblemas tenham a

disposição para erigir uma imago realmente concentrada e consistente. Assim, apesar de o

livro de Marcus Fabiano ter cada abertura de capítulo belamente ilustrada pelo artista

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plástico gaúcho Antonio Augusto Bueno, O ANJO CIGANO não vem acompanhado de

nenhuma imago em particular, ficando a sua imaginação completamente a cargo do leitor,

assim como acontecia em outros livros de emblemas, sobretudo os espanhóis.

Considerando o amplo emprego pelo poeta dos registros visuais da língua e suas referências

à pintura e à fotografia dispersas pelo livro (atividade esta à qual ele também se dedica),

resta então compreender o seu poema a partir dos dois elementos restantes do esquema

emblemista, isto é, a partir do lema (a máxima de sua inscriptio) e da glosa (o

desenvolvimento analítico-expositivo da subscriptio).

O próprio título e a epígrafe de Lorca que o precede, funcionam como a inscriptio a

dispensar a figuração pictórica da imagem. Mas ao se referir a serafines y gitanos que

tocaban acordeones, quase nada permite que se conclua algo mais complexo a respeito

dessa figura misteriosa e surpreendente que é O ANJO CIGANO, devendo-se passar à sua

glosa, que é o próprio corpo desse poema que mescla uma notável erudição (mediada por

diversas ciências sociais), uma tomada de posição política (imbuída de uma postura crítica

a respeito da situação étnica dos ciganos) e até mesmo uma orientação metafísica (os

indícios teológicos apurados em fatura derrisória).

O ANJO CIGANO aborda a errância que envolve a história do povo gitano: seja no

sentido da sua falta de um lugar determinado pela fixidez sedentária, seja no sentido

daquele lugar mínimo garantido pela aceitação social. Em uma troca de mensagens com o

autor, ele me revelou a sua investigação que deu suporte ao poema. Disse-me que,

atualmente, pesquisas em genética das populações somaram-se a outras, em

sociolinguística, para resolver o velho enigma da origem do povo cigano. Exames de DNA

mitocondrial teriam comprovado, segundo o poeta, que os ciganos descendem de duas

castas originárias do subcontinente indiano que se tornaram nômades por volta do século X,

talvez por conta de uma rejeição social pelos brâmanes, talvez porque passaram a migrar

para a Pérsia em busca de ocupações provavelmente ligadas ao entretenimento daquela

corte. Após permanecerem por um longo período na Anatólia, os ciganos se dispersaram

pela Europa forçados a tanto pelas invasões mongóis do século XIII.

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Marcus Fabiano parte então do postulado de que essa prova segura de uma

hereditariedade genética comum corroborou uma antiga suspeita dos etnolinguistas, nascida

do fato de a palavra trusula, que originalmente significa tridente em sânscrito ser a mesma

empregada para designar a cruz em romani, a língua das comunidades ciganas pertencente

ao tronco indo-ariano. Chamo a atenção também para o fato de que o tridente é

precisamente o instrumento portado pelo deus Shiva, que, juntamente com Vishnu e

Brahma, são mencionados de modo nada acidental no poema. A imensa distância cultural

que existe entre Cristo e Shiva é a mesma que se estabelece entre o tridente e a cruz, algo

só compreensível uma vez considerado à luz de uma ampla miscigenação, étnica e cultural,

ensejada pela longa dispersão por territórios distantes.

A palavra cigano provém do grego Ἀθίγγανοι (athinganoi) que significa intocável.

Essa palavra, com um longo histórico de emprego no mundo cristão, alcançou o Império

Bizantino e aos poucos foi mudando para atsigan e tsigane, de onde se formou o francês

tzigane e o nosso português cigano. Enquanto isso, na Espanha, o cigano ficou conhecido

pelo nome de gitano, corruptela do gentílico egiptano, um equívoco alimentado pelo

próprio povo romi que, ao se aproximar de diversos povos, alegava uma ascendência ligada

à nobreza egípcia, com a qual compartilhava, em realidade, nada mais do que a tez

trigueira.

Tecido como uma grande glosa explicitadora do seu emblema, o poema dispõe

engenhosamente desses elementos dos imaginários eruditos e populares a respeito de

ciganos presentes nos submundos marginalizados de diversas sociedades e culturas.

Entretanto, o que o torna tão bem realizado é a atribuição dessa carga conflitiva, que pesa

sobre o povo cigano, aos anjos, essas entidades que lhe são praticamente antitéticas, signo

maior de uma pureza quase divina. Eis o verso que precisamente estabelece esse nexo

atributivo: “Um anjo cigano que lia mãos e falava fumando”. Tal verso opera aí como um

enunciado que apresenta o personagem central do poema, deixando evidente que tanto a

existência como as características dos anjos ultrapassam, e de longe, a teologia católica

para alcançar sendas de variados universos míticos e místicos, haja vista que tais entidades

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celestiais estão igualmente presentes no judaísmo, no islamismo, no espiritismo, no

budismo, no hinduísmo e até mesmo na umbanda.

O poema ainda recolhe da identidade gitana a prática da quiromancia, os lenços, o

fumo, as flores, os perfumes, as danças e os instrumentos musicais habitualmente presentes

em suas celebrações. Também as caravanas são lembradas no texto, pois foi em virtude da

alta mobilidade desse tipo de nomadismo organizado que os ciganos se dispersaram de

Bizâncio em direção à Andaluzia e ao Cáucaso. Depois do apagamento dos seus rastros e

de uma fixação massiva fixação na Romênia, não é nada surpreendente que se tenha

acreditado que o povo cigano fosse mesmo originário da Europa Oriental, crença essa

também discutida no poema pela referência a moldávios e transilvanos.

Pesquisador da Hermenêutica e da Antropologia, Marcus Fabiano parece sentir-se

muito à vontade com o pensamento de Santo Agostinho para colecionar e combinar, com

vigorosa precisão, diversos elementos da angelologia dos três monoteísmos abraamicos.

Identifiquei em O ANJO CIGANO elementos presentes no Gênesis, no Apocalipse, no

Corão e na Cabala. Entretanto, quando o poeta se refere aos serafins de seis asas e aos

querubins de quatro caras (leão, boi, homem e águia), demonstra estar seguindo

estritamente a classificação das hierarquias angelicais presente em Pseudo-Dionísio, o

Areopagita, na obra De Coelesti Hierarchia (séc. V) e em São Tomás de Aquino, na Suma

Teológica (séc. XIII). Por esse caminho, uma farta iconografia do mundo cristão é invocada

na composição do emblema desse anjo cigano, incluindo-se nela, subrepticiamente, até

mesmo o anjo caído, que, embora não seja explicitamente nomeado como Lúcifer, faz-se

presente quando o autor alude a certos anjos que “envergonhavam-se desse ofício e assim

sucumbiam”.

A palavra anjo provém do latim angelus que, por seu turno, origina-se do grego

aggelos (ἄγγελος), com significado de anunciador ou mensageiro, uma característica

reiterada no poema por dois epítetos atribuídos a tais entidades: o de postino (carteiro, em

italiano) e de o oficial de justiça [do altíssimo], isto é, o funcionário de um juízo incumbido

da entrega de mandados, citações e intimações. Ao se referir a um anjo fumante vale ainda

observar, para além da evidente ironia, que o poeta pode estar recordando a intervenção

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divina feita através de um sopro, o pneuma, muito embora esse sopro esteja aí nitidamente

marcado por características mundanas, tais como a do prazer físico e mesmo do vício. O

que temos então é o desenho de uma entidade essencialmente híbrida, integrada por cargas

axiológicas colidentes e por um acumulado de diversas camadas culturais que se

distribuíram entre duas naturezas ontológicas polares, a divina e a humana, a celeste e a

terrena.

No seu início, o poema situa o leitor em um ambiente desértico, em uma atmosfera

caracteristicamente bíblica, mas que é logo desvirtuada por elementos fantásticos, na qual

anjos e najas eclodem de ovos, em uma perspicaz alusão tanto ao ovo da serpente como ao

ovo de anjo. Tais anjos, contudo, ainda têm a sua invisibilidade muito bem resguardada

contra a “impudica facúndia” do olho nu curioso e perscrutante. O texto é constituído de

versos em prosa encadeados por belas e às vezes raras sequências de rimas toantes e

aliterações. Entretanto, o domínio ecfrástico do autor, ao entrelaçar traços descritivos e

narradores em uma dicção cortante e lapidar, reclama uma alta agilidade de leitura ao

percorrer entre figuras e conceitos, imagens e doutrinas, referências explícitas e alusões.

Todo esse movimento seguramente requer um nível elevado de atenção interpretativa, pois

esse poema, para ser fruído em toda sua densidade, ainda exige que se detectem algumas

menções a ilustres representantes da cultura cigana, tais como a do guitarrista de jazz

Django Reinhardt e da Santa Sara Kali, a mítica virgem negra que teria sido a parteira ou a

escrava de Maria.

Com efeito, essa opulenta evocação cultural e histórica só se volve palatável graças

àquele elemento satírico que quase sempre Marcus Fabiano introduz em suas criações, o tal

grano salis muito bem identificado pelo crítico e tradutor norte-americano Richard Zenith

na sua apresentação do ARAME FALADO. A imensa carga mítica que poderia recair sobre

um poema acerca de anjos e de ciganos passa então a ser aliviada por um tom sofisticado e

bufo que inclusive aceita prosseguir rumo a um ambiente de verdades incômodas e

delicadas. A aversão de grande parte da Europa pelos ciganos torna fácil encontrar na

literatura, no jornalismo e no cinema de diversos países o uso, sem pejos nem cerimônias,

do termo cigano como um verdadeiro insulto. Será que isso se deve à tolerância da ética

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romi aos pequenos furtos? Se isso o poeta não nos responde, tampouco deixa de registrar. A

respeito de seu anjo cigano ele diz: “por seus hábitos esquivos, diziam tê-lo visto

roubando”.

Acossado pela perseguição racial, esse anjo cigano torna-se a presa de uma

desconfiança generalizada por onde quer que passe. Não é demais recordar o leito histórico

dessa circunstância. Recentemente, os ciganos também foram alvo do genocídio nazista ao

serem deportados aos milhões para campos de prisão e extermínio. Mas como um ente

quase humano, cuja casta alastrou-se pelo mundo, ele logrou sobreviver e acabou indo

parar na umbanda brasileira e até na Grécia Antiga, lá aprendendo com o clinâmen, o

desvio das partículas em queda imaginado pela doutrina atomista de Epicuro. Nessa altura,

ao aproximar-se do seu fim, o poema realiza um enlace transtemporal ao unir negros e

gregos e ao associar a discriminação dos primeiros com a ideia de um desvio físico (um

drible? uma ginga?) elevado à condição de estratégia de sobrevivência das minorias

oprimidas e dos itinerantes tratados como indesejáveis em diversos lugares e momentos. O

poema logo encerra-se dizendo que, o anjo cigano, “com os párias aprendeu a viver

desviando-se.” Outra vez aqui é preciso retirar a palavra pária, empregada pelo poeta, da

sua acepção mais genérica de homem excluído. Acredito que o autor esteja arrematando o

poema com a mesma concepção da ancestralidade indiana dos ciganos que desenvolveu

desde o início, pois, no sistema de castas do hinduísmo, rigidamente hierárquico em sua

interpretação da Lei de Manu e dos Vedas, os párias são justamente aqueles indivíduos

intocáveis e impuros (dalits) por serem desprovidos de quaisquer direitos na sociedade

bramânica (DUMONT, 1992).

Em meio a outras, essa tomada de posição, todavia, não é excepcional no ARAME

FALADO. O espelho literário dos poemas de Marcus Fabiano depende intimamente do seu

engajamento estético e político, impossível de ser aqui apreciado em sua extensão. Apenas

a título de exemplo, recordo, no mesmo capítulo de O ANJO CIGANO, os contundentes

versos dedicados à memória do poeta palestino Mahmoud Derwich em SHUKRAN. Na

correspondência que ensejou a elaboração do presente ensaio, o poeta certa vez empregou a

o termo pseudoanagógico para caracterizar os seus poemas que tratam de alegorias,

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conceitos e sentimentos associados à experiência do divino. Mas se o poeta, ao usar o

prefixo pseudo, declara que finge, não sei se devo confiar plenamente nessa sua

autodefinição – ela pode muito bem envolver o fingimento de um fingimento e, assim, estar

ocultando algum real sentimento místico, tido talvez por inconfessável. Corroborariam essa

minha dúvida os poemas OS DADOS DE DEUS e CARTA À POETA QUE EXAMINA

SEUS MEDOS – OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO

ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES

QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA.

O presente ensaio critico nasceu de uma proposta de entrevista que seria

posteriormente abandonada pelo autor. Ainda em Natal, na UFRN, onde foi Professor por

um breve período, o poeta exprimia o seu desconsolo com o esgotamento da poesia visual

brasileira. Referia-se não apenas ao concretismo, como também às suas fontes e aos seus

epígonos. Era ainda a época de elaboração do Arame Falado e ele contava sobre a sua

descoberta decisiva da emblemática ibérica em um congresso sobre Teoria da Metáfora em

Portugal, no ano de 2006 e das pesquisas teóricas e iconográficas que empreendeu nas

bibliotecas de Paris, onde residia. De fato, as vanguardas modernas que reclamaram a

inovação das poéticas da visualidade, sobretudo a partir de Mallarmé, ignoraram

solenemente o imenso patrimônio da emblemática (LÓPES, 1987; LEAL, 2010). E mesmo

que o Brasil tenha conhecido uma escassa circulação de livros durante o Siglo de Oro, o

expediente associativo do discurso emblemático foi aqui amplamente responsável pela

nutrição do imaginário assim chamado barroco. Além do milenarismo dos sermões de

Vieira, os emblemas plasticamente preservaram-se entre nós em painéis, azulejos, púlpitos,

entalhes, altares, telas, painéis, retábulos e outros suportes que fazem da arte sacra e do

humanismo ibero-americano um tesouro cultural e intelectual de difícil decifração

(TRINDADE, 2001). Não trato aqui, portanto, de identificar Marcus Fabiano como um

poeta emblemista exótico e extemporâneo. Procuro, isso sim, reconhecer nele alguém que

soube aliar a investigação à criação poética para revitalizar e habilmente incorporar uma

tradição decisiva na construção da identidade cultural luso-brasileira (AMARAL JR., 2008a

e b). Uma leitura de sua obra poética, mesmo célere, já de plano revela uma abundância de

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fontes, teorias, interesses e estilos que jamais poderiam ser enfeixados na perspectiva única

dos emblemas. No entanto, ignorar a excepcionalidade dessa influência no terreno

disputadíssimo da visualidade seria tratar como irrelevante algo que merece ser destacado

como inovador pelos resultados que produziu no campo da poesia brasileira.

Em um universo literário saturado pela platitude quotidiana e pelo lirismo

romântico, a presença dos poemas de Marcus Fabiano distingue-se por sua agudeza.

Enfrentar a metafísica sem incidir no vulgarmente supersticioso demanda uma segura

compreensão filosófica do sentido existencial da experiência mística. Ao mesmo tempo,

isso ainda reclama uma paradoxal distância crítica, como essa do autor, que não aparenta

abordar o seu tema sob o influxo de arroubos ou arrebatamentos. Como diz em seu poema

A MÁQUINA DO FUNDO, Marcus Fabiano preocupa-se com a soldagem entre forma e

substância em um dispositivo de ecos que se propõem a instaurar uma cadência específica

em versos irregulares que revezam assonâncias, aliterações e rimas toantes cautelosamente

escolhidas para evitarem os OO, reiterando assim que o anjo cigano “recusava a auréola e

a trombeta” - forma anelar da primeira, silhueta do grafema que exprime o som da

segunda. A tônica acústica dominante do poema é o som do A (Á/Â/Ã). Na resposta ao e-

mail no qual lhe propus um longo questionário sobre O ANJO CIGANO, o poeta disse-me

que procurou com insistência “algo do som timpânico, daquela frequência grave e surda

do ruído provocado pela percussão auscultatória dos pulmões, capaz de expressar tanto o

fluido do pneuma armazenado na caixa torácica quanto a oca carnalidade das vísceras.”

(e-mail de 07/04/2014). Esse som timpânico do Ã/Â faz-se presente desde a aliteração que

dá título ao poema até a sua parte final, alternando-se em duas séries de AA tônicos que

reverberam os termos Anjo e cigAno: a primeira, formada pelo grupo de palavras fumAndo,

humAno, brAnco, bAnjos, DjAngo; e a segunda, integrada por caravAnas, roubAndo,

cÂnones, transilvAnos, BrAhma, umbAnda, clinÂmen e desviAndo-se.

Ao arquitetar esse minucioso emblema das relações entre o divino e humano,

Marcus Fabiano incita-nos, com seus chistes e fraturas, seu sarcasmo e sua acuidade, sua

profusão sonora e sua precisão conceitual, a inquirirmos mais sobre o anjo e o cigano.

Tendo a reflexão sobre a própria linguagem como matéria primordial de grande parte de

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seus textos, o autor combina a ironia com a profundidade analítica em uma obra que, graças

ao seu rigor, já mereceu elogios de críticos da dimensão de Richard Zenith, Carlos Felipe

Moisés e Alcir Pécora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCIATO, Andrea. Los emblemas de Alciati traducidos en rimas españolas (Lyon 1549).

AMARAL Jr., Rubem, Programa emblemático do recebimento das santas relíquias na

igreja de S. Roque, em Lisboa (1588), en Actas del V Congreso Internacional de la

Sociedad Española de Emblemática Paisajes Emblemáticos: la construcción de la imagen

simbólica en Europa y América, César Chaparro, José Julio García, José Roso, Jesús Ureña

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AMARAL Jr., Rubem, Emblemática mariana no convento de São Francisco de Salvador,

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2 vols. Valencia, Biblioteca Valenciana, 2008, vol. I, pp. 203-216.

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DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo:

EDUSP. 1992

GONÇALVES, Marcus Fabiano. Arame Falado. Rio de Janeiro: 7Letras. 2012

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O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA - TABOSA, Leila

Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

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Fachadas de cal ponían

cuadrada y blanca la noche.

Serafines y gitanos

tocaban acordeones.

Federico García Lorca

O ANJO CIGANO

o bem e o mal ainda na mesma barra. no berçário congeminavam ninhadas de anjos e najas.

fora dos ovos, na jacente areia desértica, as serpentes feneciam como vermes, enquanto os

anjos afluíam ao firmamento eterno. azuis e sobre as nuvens, eram infensos ao olho nu e

sua impudica facúndia, translúcidos pois do mesmo tom de seu fundo. no alto treinavam

flanquear beiras protegendo suas plumas. tornavam-se perscrutantes como o periscópio das

corujas. havia serafins de seis asas e querubins de quatro caras (leão e touro, homem e

águia). logo abaixo, os arcanjos eram reputados devotos postinos, oficiais de justiça do

altíssimo, mensageiros de seus urgentes desígnios. os mais briosos envergonhavam-se

desse ofício e assim sucumbiam. outros cuidavam de glorificar seus estilos. dentre estes,

destacava-se um anjo cigano que lia mãos e falava fumando. ria alto, era quase humano.

lenço no lugar dos cachos, pardo em vez de branco. tornara-se exímio com violinos e

banjos. soprava acordes à guitarra de Django e só fazia seus anúncios dançando. recusava a

auréola e a trombeta. era mais de perfumes e rosas vermelhas. assistiu Sara Kali como

parteira e correu o mundo em incontáveis caravanas. por seus hábitos esquivos, diziam tê-lo

visto roubando. aos poucos misturou-se a outras quinas e cânones. entre moldávios e

transilvanos falava de Shiva, Vishnu e Brahma. pretos e gregos o iniciaram nos couros da

umbanda e no apedrejamento do clinâmen. com os párias aprendeu a viver desviando-se.