o anarquismo hoje-uma reflexao sobre as alternativas libertaria

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    Jorge E. Silva

    oANARQillSMO HOJEUma Reflexo Sobre as Alternativas Libertrias

    23edio revista

    chi mRio de Janeiro

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    SUMRIO1. Uma Realidade Sombria e Contraditria / 9

    2. O Declinio do Anarquismo, Algumas de suasCausas / 213. Uma poca de Desencontros / 33

    4. Dilemas do Anarquismo Contemporneo / 495. Possibilidades Atuais de uma Ao Libertria /61

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    Somos pois anarquistas porque queremosuma sociedade sem governo uma organizao livreindo do indivduo ao grupo do grupo federaoe confederao com desprezo das barreirase fronteiras sendo a associao baseada sobreo livre acordo e naturalmente determinadae regulada pelas necessidades aptides idiase sentimentos dos indivduos .Neno Vasco

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    1UM RE LID DE SOM RIE CONTR DITRIO criado arrebatou ao amo seu chicotee se fustigou com ele para assim poder ser amo .. Kafka

    Vivemos uma poca de profundas mudanas,da tecnologia s relaes sociais, da economia poltica. Transformaes que no tm no entanto,qualquer sentido de superao do Sistema- de suasinjustias e irracionalidades -, antes pelo contr-rio, so condicionadas pelos seus interesses estra-tgicos de preservar a Ordem Reinante.A derrocada do socialismo de estado, no Leste, uma dessas mudanas decisivas que marcaro anossa poca. Um processo de auto-reforma inicia-do pela oligarquia burocrtica, saiu do controle eacabou pulverizando um sistema estatista e autori-trio que alguns teimavam em chamar de socialis-ta. Este acontecimento, inegavelmente positivo paraos povos que se libertaram daquele sistema terro-rista de dominao, no deixou de ser contudo, ao9

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    mesmo tempo, uma vitria de setores dessa mes-ma burocracia que conseguiram preservar seu po-der. Mais uma vez, como tem ocorrido nas lti-mas dcadas, as classes dominantes vo se alter-nando no poder em resultado da exausto polticaou da sua luta interna. Como no caso das ditadu-ras ibricas e dos governos militares latino-ame-ricanos, no foi a luta dos explorados e domina-dos que determinou as mudanas e o fim dessesregimes. Quando o povo se apresentou no cen-rio, foi para sufragar os novos sistemas de domi-nao, ou para ser usado como carne para canhoem lutas fratricidas, como assistimos na Romnia, Gergia e Iugoslvia.Tambm a ideologia liberal saiu vitoriosa, poisa derrota simblica das idias de uma alternativasocial, que estiveram presentes nos primrdios daRevoluo Sovitica, ser por muito tempo o temacentral da propaganda capitalista e razo da des-crena e desesperana de muitos dos que lutamcontra este sistema.o socialismo autoritrio saiu do cenrio socialderrotado, dando dessa forma a sua derradeiracontribuio ao status quo; ao mesmo tempo queimpulsionou a uniformizao e homogeneizaodo sistema capitalista escala universal. Uma novaconjuntura assentada na mundializao da diviso

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    do trabalho e na segmentao do mundo - e de cadaregio - em guetos de riqueza cercados de misria.Um panorama internacional, marcado por umaconvergncia quase total entre os principais cen-tros de poder em tomo do Washington Consensuse administrado pelos Sete Mais que usaro seusorganismos internacionais: ONU, CEE, OTAN,FMI, BIRD, como instrumentos de gesto'; de pol-cia e companhia de seguros da Ordem Internacio-nal.

    A instrumentalizao da ONU durante a Guer-ra do Golfo e nos diversos conflitos regionais dosltimos anos; a manuteno e alargamento daOTAN aps a dissoluo do Pacto de Varsvia; arecusa dos EUA de desmantelar o arsenal nuclear;bem como as pretenses hegemonistas da Alema-nha dentro da CEE, so entre muitas outras mani-festaes, demonstrativas desta nova rearticulaodo Capitalismo Internacional sob o comando de Wa-shington.Neste contexto de restaurao principalmentenas sociedades de consumo, massificadas e mani-puladas por uma rede de propaganda e informaodirigida, as possibilidades de uma alternativa soci-al, se afunilam. J que os valores libertrios da au-tonomia, da solidariedade, do livre-pensamento edo autogoverno , so dificilmente inteligveis ouaceitos pela maioria dos cidados amestrados e de-11

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    samparados, perdidos num contexto social deindividualizao e atomizao extrema. Tomando-se assim incapazes de qualquer reflexo crtica,afundados que esto no minimalismo tico e no ci-nismo pragmtico. O que exprime a maior vitriado sistema: a homogeinizao ideolgica e cultu-ral das sociedades onde predominam o individua-lismo, a concorrncia e a esquizofrenia dionisacapara usar as palavras de Carlos Daz'.S os excludos dessa sociedade (e que no as-piram a se integrar no reino da sujeio conformis-ta), ou os que nela no se reconhecem - uma pe-quena e desarticulada minoria - podem se identi fi-car potencialmente com esses valores libertrios.Em termos objetivos essa a nossa margem deatuao nas sociedades do chamado Primeiro Mun-do. Mesmo que saibamos que esse conformismomajoritrio cc1ico e pode ser abalado, quer poralteraes socioeconmicas, quer pelo aprofun-damento gradual da crise civilizacional que vive-mos.Outra a situao vivida nos pases do hemis-frio sul - com algumas semelhanas em algunspases do Leste Europeu - onde a supercxplorao,a no-satisfao das necessidades bsicas e a fla-grante desigualdade social, que se traduz num ver-1. Carlos Daz. De Ia Razon Dialgica a Ia Razn Proftica.Mosteles: Ediciones Madre Tierra, 1992.

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    dadeiro apartheid social, abrem espaos para a con-tinuidade de movimentos sociais anticapitalistasmais amplos.Olhando ao nosso redor, no seria excesso depessimismo afirmar que nunca como hoje, as for-as do Estado e do Capitalismo foram to fortes eas tendncias libertrias da alternativa social, tofracas.No entanto, e apesar disso, persistem contradi-

    es e tenses fundamentais no sistema dominan-te, que se vo acumulando e adquirindo uma visi-bilidade crescente. Comeando pela misria abso-luta da maioria da populao mundial, que contrastacom a riqueza ostensiva e delapidatria de umaminoria; a prpria marginalizao de jovens, de-sempregados e velhos nos pases ricos, que apontaos limites de assimilao do sistema; o desenvolvi-mento da tendncia de crescimento dos empregosinformais e precrios; a desqualificao profissio-nal, o aviltamento do trabalho e o desemprego es-trutural, resultante da introduo da automao edas novas tecnologias e, por fim, a violncia e acriminalidade presentes em todas as grandes cida-des, demonstram a impossibilidade de solues noquadro do sistema capitalista.A natureza predatria da sociedade capitalista esua iluso no crescimento infinito, s pode levarao esgotamento de recursos, destruio do meioambiente, reverso destrutivo desta forma de pro-

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    gresso , que junto com a utilizao arbitrria e ir-racional das tecnologias, impe aos gestores da de-sordem industrial o uso instrumental de polticasde restries ambientalistas. nesse sentido quedeve ser entendida a panacia do desenvolvimen-to sustentvel , presente no discurso atual dos do-nos do Poder e em particular do Banco Mundial.Discurso ideolgico que, contudo, no aponta umasoluo harmoniosa para o problema da pobreza,do desenvolvimento humano e da utilizao dastecnologias, questes centrais da nossa poca.O capitalismo pode sentir a necessidade decontabilizar os prejuzos ou as ameaas futuras, masnopode assimilar os questionamentos radicais le-vantados por libertrios e ecologistas. Esses pro-blemas s podem ser resolvidos no contexto de umasociedade descentralizada e autogerida, capaz decriar e controlar formas tecnolgicas adequadas aum desenvolvimento integrado, auto-sustentado esolidrio. Nem o crescimento zero, nem o desen-volvimento sustentvel so possveis em uma eco-nomia determinada pelo lucro e em um mundomarcado pelo consumismo, pelo desperdcio dassociedades ri s e pelas necessidades bsicas nosatisfeitas das sociedades pobres.De Bopal e Chemobyl ao contrabando de plut-nio, a sociedade industrial manifesta-se intrinseca-mente desordenada e ameaadora para o futuro dospovos.

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    Ao nvel poltico h uma tendncia generalizadapara a restrio das liberdades e garantias conquista-das em outras pocas. O que se reflete diretamenteno ordenamento jurdico, com a reintroduo deconceitos e prticas autoritrias e inquisitoriais nodireito penal e processual e com o desmantelamentodos direitos sociais e trabalhistas que as lutas oper-rias impuseram a partir do sculo 19. ,A democracia representativa se esvazia face inexistncia de escolhas reais e transformao daseleies em simples competies de marketingonde o resultado sempre incuo para as elites eburocracias dominantes. Uma crise de legitimida-de que ampliada pela crescente burocratizaodo Estado e pelo fato das decises econmicas epolticas mais importantes serem tomadas, tanto nonvel privado, como no nvel internacional, fora dochamado controle do Estado de Direito. O mesmoocorrendo com a maioria das decises eufemis-ticamente chamadas de tcnicas e com aquelas queso tomadas no complexo de segurana, onde pre-domina o princpio do segredo. A corrupo, porsua vez, afirma-se como tendncia endmica doestado moderno, do Japo ao Brasil, da Venezuela Espanha, da Frana a Portugal, comprometendoas vrias correntes polticas com prticas fraudu-lentas e ilegais, sem que com isso seja afetada es-sencialmente a credibilidade que os cidados-es-pectadores tm em seus partidos. At porque faz

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    muito tempo as oligarquias polticas da representa-o abdicaram de mascarar com a aritmtica do votoseu mandato eleitoral, como j foi demonstrado htempos pelo anarquista ibrico Ricardo Mclla'. Alei do nmero um falso instituto democrtico,tanto mais que at as maiorias eleitorais esto en-colhendo a olhos vistos, sendo o governo efetiva-mente exercido por .minorias, credenciadas mi-noritariamente nas chamadas eleies democrti-cas e o Poder por organizaes e instituies queesto longe do controle dos cidados.Mesmo face a esta realidade cada vez mais vis-vel no mundo contemporneo, a descrena na pol-tica que se traduz no crescente abstencionismo emquase todos os pases, no contexto atual s servepara reforar o cinismo individualista do egocen-trismo dominante: cada um por si, e deus contratodos .Afirma-se assim a tendncia para um estatismoautoritrio de novo tipo, afastado do modelo de Es-tado de Direito clssico e mais ainda do WelfareState, um Estado no mais preocupado com a par-ticipao e os direitos dos cidados. Mas to-s emgarantir as condies de produo, reproduo emovimento do Capital: um novo tipo de Estado-Polcia, que vem perdendo a sua dimenso nacio-2. Ricardo Mella. La Ley dei Nmero. Biblioteca Tierra yLibertad, 1945.

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    nal para se tomar a repartio local deumanovafor-ma deEstadosupranacional em gestao.Os fenmenos incontrolados da violncia e daguerra demonstram, de forma inequvoca, que ne-nhum Estado ou governo mundial poder adminis-trar sociedades cindidas pela misria e injustia. Aruptura dos laos tradicionais da solidariedade so-cial, agravada por uma cultura de concorrncia, spode levar a uma guerra de todos contra todos, quese manifesta na indiferena perante os miserveis,no consumo generalizado de drogas, na violnciadesesperada das grandes cidades, em guerrasfratricidas como na Iugoslvia, nos genocdios dafrica. As metrpoles - mesmo dospases ricos-com seus bolses crescentes de miserveis e mar-ginalizados tendem a constituir-se como um cen-rio de violncia onde nenhum exrcito particular,ou condomnio das elites, desses que proliferam emMadri, Rio de Janeiro, ou Los Angeles, poderogarantir uma existncia segura e despreocupadacomo a que as classes dominantes se habituaram ausufruir no passado.Neste panorama sombrio, o caminho que esta-mos a percorrer pode abrir, mesmo assim, novaspossibilidades: o esvaziamento do sentido socialdo Estado e sua crise de legitimidade, pode facili-tar a reaproximao dosmovimentossociais dopen-samento e da prtica antiestatista libertria.

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    Tambm a derrocada do mito do socialismo deEstado, deixa em aberto o campo da alternativa realaos sistemas de dominao, onde se poder afir-mar o socialismo libertrio. Com a derrota da es-tratgia leninista de tomada do poder, de utilizaodo Estado para a criao de um socialismo poretapas, e da derrocada do mito da excelncia daeconomia- centralmente planejada, que s gerouinstabilidade, desigualdade e burocracia, a perti-nncia dos valores anarquistas, do socialismo or-gnico, federalista e descentralizado, toma-se ain-da maior para os que no abdicam de pensar e lutarpor uma alternativa ao que a estO capitalismo que persiste como barbrie per-dura ante uma contradio bsica do nosso tempoque pode ser resumida nas palavras de Marcuse:

    A revoluo mais necessria, parece ser a maisimprovvel .Improvvel porque somente fortes movimentossociais autnomos e libertrios poderiam romper

    radicalmente a teia de um sistema repugnante queenvolve todas as classes e grupos sociais. E hojeeles so minoritrios.A partir daqui, de uma realidade adversa mascontraditria, o anarquismo pode lutar por retomaro seu papel nos movimentos sociais - nos velhos enos novos movimentos -, o que vai depender, pelo18

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    menos em grande parte, da vontade lucidez e aodos libertrios.Por mais que os idelogos do Poder e a corte deaclitos arrependidos, proclamem o fim da Hist-ria, ela teima em afirmar que s morrer com o pr-prio homem. Mesmo que no possamos descartar ahiptese j um dia levantada por Mannheim de omundoestar entrando numa fase de aparncia esttica, unifor-me e inflexvel.

    Mesmo assim o futuro ser sempre uma possi-bilidade em aberto onde os seres humanos, com to-das as condicionantes culturais e materiais, pode-ro realizar suas utopias. Para ns anarquistas, osocialismo libertrio, a comunidade orgnica, con-tinua sendo um imperativo para a humanizao dassociedades.

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    2o DECLNIO DO ANARQUIS~O,LGUM S DE SU S C US S

    M as uma grande idia no pode germinar num s diapor mais rpida que seja a elaborao e a difuso de idiasdurante os perodos revolucionrios .Piotr Kropotkin

    o declnio histrico do anarquismo tem sido,ao longo de dcadas, apresentado por seus opo-sitores - em particular os marxistas - como umadecorrncia do processo histrico de transio desociedades pr-capitalistas para o capitalismo, e desubstituio dos artesos pelo proletariado indus-. trial. Essa tese, que tem como expoentes historiado-res do tipo de Eric Hobsbawm, dificilmente resistea uma anlise mais detalhada. Apresentando-sesob o rtulo de cientificidade da histria e sua neu-tralidade, mas logo denunciada pelos impulsosexegticos da dogmtica leninista de Hobsbawmsempre que se refere ao anarquismo, chegando sraias da m-f e da distoro em vrias de suas

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    obras'. Outros historiadores mais conhecedores doanarquismo como Rudolf de Jong ou Carlos daFon-secaj demonstraram como o movimento anarquis-ta do sculo 20 estava amplamente implantado en-tre os trabalhadores industriais e nos principais cen-tros operrios da poca:

    Que Paris, Toulouse, Barcelona, Milo, Rio deJaneiro, So Paulo, Buenos Aires, Montevidu ou T--quio a ocupem lugares de grande importncia consti-tui a negao das razes rurais do movimento?',Mas se para os pensadores liberais ou para osmarxistas o declnio do anarquismo uma natu-

    ral inevitabilidade histrica, para muitos anarquis-tas um incompreensvel acidente; nos dois casostm ficado sistematicamente ocultas as razes queexplicam tal declnio.Para compreendermos a situao atual doanarquismo, os principais problemas com que se con-fronta e as possibilidades que se abrem, teremos derever sua fase de declnio, que se estendeu pelas d-cadas de 20 e 30 e culminou com a derrota da Revo- .luo Libertria de 1939 na Espanha.3. Consultar, entre outros as referncias ao anarquismo emRebeldes P rim itivos (Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1978) e Revoluaonno s (So Paulo: Editora Paz e Terra, 1985), ambos deEric Hobsbawm.4. Carlos da Fonseca. P ara 7 JlaA ll lis e do Mouim etzto L ibertdno eda sua H istria (Lisboa: Antgona, 1988).

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    A conjugao de mltiplos fatores adversos, queos anarquistas foram incapazes de entender ou decontornar na conjuntura poltica e social da poca, o que explica esse esvaziamento progressivo domovimento.a) Se existe uma causa que deva ser apontadaem primeiro lugar essa a resultante das transfor-maes sofri ds pelo capitalismo e pelo Estado,nessas primeiras dcadas do sculo 20.A intensificao das lutas operrias a partir definais do sculo 19, o espectro da Revoluo Soei-al e as mudanas tecnolgicas e organizacionaislevaram o Capital a iniciar umapoltica redistributivanos pases industrializados, o que permitiu umaexpanso do processo produtivo e, acima de tudo, aadeso dos trabalhadores ao sistema. O acesso aoconsumo tornou-se assim o antdoto contra a re-volta e foi um fator primordial para a adeso dostrabalhadores lgica normativa do capitalismo.O surgimento do Estado intervencionista, que seinsere neste processo de mudanas estruturais - sejana sua verso corporativista- fascista, seja na de Esta-do de Direito Social-, levou ao reconhecimento dosdireitos econmicos e sociais dos trabalhadores e auma demarcao de limites ao capitalismo de livreconcorrncia e livre explorao do sculo 19.A educao e a sade pblica tornaram-se ob-jetivos de Estado e os direitos trabalhista: descan-

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    so, frias, assistncia social e reforma, passaram afazer parte das polticas de governo. O movimentooperrio conseguiu impor algumas das suas reivin-dicaes histricas, mas a troco de uma sujeioao Estado que se traduziu na institucionalizao dosconflitos laborais, atravs de regras de arbitragemditadas por esse mesmo Estado. Os governos cria-ram um novo departamento da conciliao social:o Ministrio do Trabalho, que juntamente com tri-bunais e outros rgos especializados passaram ainterferir nas lutas operrias, na tentativa de desar-ticular a ttica radical do confronto de classes apli-cada pelo sindicalismo revolucionrio e pelo anar-co-sindicalismo. ,O ordenamento jurdico passou a reconhecercomo direitos as organizaes operrias, as reu-nies, as manifestaes e greves, mas deu-lhes umenquadramento legal que lhes retirava todo o poten-cial conflitivo. Em contrapartida a ao direta, a sa-botagem, o boicote e a greve de solidariedade pas-saram a ser criminalizadas e reprimidas de forma ain-da mais violenta, estabelecendo-se claramente o li-mite admissvel para o sindicalismo: a representa-o corporativa dos problemas operrios.Tambm o Capital passou a aceitar o s indicalismodentro desses limites, usando um duplo critrio denegociao: ao fazer concesses s exigncias desindicatos confiveis e reprimir as que tivessem umadinmica radical. Os episdios do pistoleirismo

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    capitalista nessa poca, da Espanha aos EUA, sopor demais conhecidos. O sindicalismo que nasce-ra como emanao da vontade de emancipao domovimento operrio, e sua forma auto-organizativapor excelncia, tomou-se a partir de ento re-flexo das intervenes - diretas e indiretas - doEstado e seu ordenamento jurdicoO direito trabalhista, a institucionalizao dasnegociaes sindicais, sujeitas a ardilosas anlisesjurdicas e econmicas, favoreceram a burocra-tizao dos sindicatos e em muitos casos exigiram-na. S atravs da criao de estruturas administra-tivas e de assessoria de especialistas do acordo:advogados, economistas, socilogos e um sem-n-mero de funcionrios exteriores ao movimento ope-rrio, poderiam os sindicatos enquadrar-se nestecontexto de negociao e nele obter vantagens. Atentao corporativista que nunca chegou a desa-parecer do sindicalismo, mesmo nas fases em quese potenciavam mais as formas revolucionrias doconfronto de classes - tendo inclusive originadoem quase todos os pases histricas polmicas en-tre anarquistas e sindicalistas -, tomavam-se agorapreponderantes',5. Mesmo no movimento anarquista e anarco-sindicalistaocorreram divergncias com os chamados sindicalistaspuristas , que desejavam restringir a luta operria a objeti-vos corporativistas. A famosa polmica de Malatesta duran-

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    A combatividade dos sindicatos e dos militan-tes operrios, passava a no ter correspondnciadireta com a eficcia na conquista de melhoriascontratuais. Os mais eficazes passaram a ser os maishbeis nas negociaes, o que normalmente se tra-duzia na cedncia sistemtica perante as imposiesestratgicas do Capital.Estavam assim criadas as condies para a derro-ta do sindicalismo anarquista, que se sustentava naconscincia revolucionria, na ao direta e na auto-organizao. Tornava-se impossvel um sindi-calismo onde no cabiam funcionrios e dirigentesprofissionais e para quem - evocando a consigna dosindicalismo revolucionrio dos EUA da IWW - tra-balhadores e capitalistas no tm nada em comum .Neste panorama de conciliao, em que o Esta-do ganhava uma autonomia relativa em relao sclasses dominantes, assumindo um rosto pacifica-dor, independente, social, deixava de haver condi-es para a inteligibilidade do discurso antiestatistados anarquistas. A maioria dos trabalhadores co-meou a ver o Estado como uma entidade benefi-cente que garantia a educao, a sade, a habitaoe a velhice dos cidados e no mais como aparelhocentral de gesto da dominao.te o Congresso Anarquista de Amsterd de 1907, colocandoos limites do sindicalismo, corresponde posio maisdivulga da no movimento anarquista.

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    b) Uma segunda causa pode ser apontada: oaparecimento de ditaduras terroristas em vrias re-gies do mundo. Desde logo o nazifascismo e suasvariantes ibricas, bem como os governos de ocu-pao resultantes da expanso alem. As ditadurasna Amrica Latina de Vargas e Pern e na Rssiados burocratas comunistas.A represso desencadeada tomava impossvela sobrevivncia do anarquismo como movimentoamplo e aberto, principalmente das organizaesanarco-sindicalistas. O anarco-sindicalismo quefoi a estratgia que abriu caminho influncia ge-neralizada das idias anarquistas na maioria dspases, no tinha condies de sobreviver em talsituao de represso. S um movimento estru-turado clandestinamente baseado em grupos de afi-nidade poderia resistir . Mas, mesmo nesse caso,a sobrevivncia dependeria a longo prazo de apoioexterno, seja na forma de auxlio material, seja nade territrio de exlio e articulao. E os anarquis-6. Mas mesmo esse caminho, como est claro pela histriada Confederao Nacional do Trabalho (CNT), tambm no uma soluo: La Organizacin sindical confederal quesiempre tuvo vocacin de masividade, debe cerrar sus filase estruturarse a nivel de Grupos de seleccin, inicindose as,un declive queva de148 ai 59 (. ..) como escreveu JuanGomezCasas no seu livro Histria deI Anarcosndicalismo enEspana (Madri: Editorial Aguilera, 1977).27

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    tas jamais dispuseram de forma continuada des-sas condies'.A priso, morte e exlio de um nmero incalcu-lvel de militantes, juntamente com a impossibili-dade de manter a propaganda e interveno no mo-vimento social, iria levar, em muitos pases, ao qua-se esvaziamento do movimento e a uma rupturaentre geraes.Quando se tomou possvel a rearticulao, osanarquistas estavam cindidos em duas geraes dis-tanciadas por dcadas, que s com dificuldade secomunicavam e se relacionavam.

    , c) Finalmente a terceira causa teve a ver,com avitria do leninismo na Revoluo Russa e a sub-seqente criao dos partidos comunistas. Ao setomar a estratgia da vitria sobre a burguesia - ouao ser interpretado como tal- reintroduziu o mar-xismo com carisma revolucionrio no movimentooperrio internacional. A iluso de que era esse omelhor, ou o mais eficiente, caminho para chegarao socialismo, somado falta de informao sobreos rumos da revoluo sovitica, levou muitos anar-quistas e outros trabalhadores ao leninismo. Umaadeso mais pragmtica que terica, que os faziaver na sociedade russa uma concretizao das idi-7. Basta recordar o controle exercido pelo Estado francssobre os anarquistas espanhis exilados, tentando impedir aluta contra a ditadura de Franco.8

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    as libertrias. E os empurrava para a criao de or-ganizaes que misturavam na sua forma e no seudiscurso os princpios anarquistas com um maxi-malismo ou leninismo incipiente. Em muitos pa-ses os partidos comunistas nasceram de rupturasno seio da corrente social-democrata, mas em qua-se todos houve uma participao significativa detrabalhadores oriundos do anarco-sindicalismo. Nocaso de Portugal e do Brasil, os partidos comunis-tas foram uma criao de anarquistas. Esta atraopelo leninismo viria a ser ainda maior entre os in-telectuais anticapitalistas que se deixaram conquis-tar pela idia de criar o socialismo a partir do Esta-do, uma manifestao de despotismo esclarecido,baseada na concepo de que o marxismo seria acincia da transformao social; e que aos inte-lectuais estaria reservado um papel especial na van-guarda dirigente. Nascia assim o socialismo dosintelectuais , to bem dissecado por Makhaiski.Mas foi no movimento operrio que as divisesintroduzi das pelas divergentes concepes de so-cialismo, teriam maiores conseqncias, j que di-minuram a prpria capacidade de resistncia sditaduras que se comeavam a instalar. Esta situa-o se agravou aps a adoo pelos comunistas deuma estratgia internacional definida pelo CO-MITERN e ISV de infiltrao e ciso dos sindica-tos de orientao anarco-sindicalista.A ao insidiosa dos comunistas foi determi-nante para desarticular o anarco-sindicalismo e pos-

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    sibilitou-lhes a criao dos sindicatos atrelados,correias de transmisso do partido, j que para oleninismo era essa a funo instrumental das orga-nizaes operrias.Com o agudizar da represso e, na medida emque os comunistas conseguiram sobreviver na clan-destinidade, tomaram-se para muitos trabalhado-resa nica fora capaz de articular as lutas operri-as contra as ditaduras e o capitalismo. Soma-se aisso a maleabilidade ttica que os levava a no des-prezar a luta pelas pequenas reivindicaes e a in-tegrar conceitos conservadores e nacionalistas emseu discurso, o que se adequava a um movimentosocial em que se expandia reformismo. Comea-va assim a dar-se a hegemonia comunista nos mei-os operrios, processo que estava concludo nos fi-nais da dcada de 40.A derrota da Revoluo, na Espanha, foi o cul-minar desta tendncia e sua mais evidente demons-trao. Aquele que foi o mais avanado esboo detransformao sociallibertria, foi empalmado en-tre fascistas e stalinistas, ante a indiferena coni-vente dos Estados democrticos, na mais sinistracombinao de foras contra-revolucionrias denossa poca. Essa seria a ltima grande mobilizaopopular das idias anarquistas e a mais trgica dasderrotas. O socialismo libertrio, que desde o s-culo 19 tinha tido um dos seus basties na Penn-sula Ibrica, era esmagado aps uma guerra civil

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    que levaria morte e ao exlio centenas de milha-res de militantes. Episdio da histria social con-tempornea que rene contraditoriamente os erros,os limites e as possibilidades criadoras do anar-quismo. Nunca o anarquismo teve um papel to de-cisivo nas mudanas profundas de uma sociedadequanto na Revoluo Espanhola, mas tambm nun-ca ficou to prximo de se descaraterizar como al-ternativa s instituies estatizantes e burocrticas.A participao de alguns de seus mais conhecidosmilitantes no governo, mesmo no colhendo a adesode parte do movimento, nem chegando a gerar umanarquismo poltico de feio maximalista, foium colaboracionismo que acabou deixando seqe-las profundas no movimento libertrio . Dessa ex-perincia tambm no conseguiram os anarquistasextrair uma teoria e uma prtica adequada para li-dar com o fenmeno do Estado e do Poder, nemdesenvolveram a partir das realizaes construti-vas da Revoluo - para empregar as palavras deGaston Leval-, uma alternativa de autogesto gene-ralizada para as modernas sociedades complexas.Hoje, poderemos a partir destas mesmas causasque se combinaram para debilitar o movimento8. Sobre este terna continua valendo a pena ler o texto crti-co de Csar M. Lonrenzo, Los Anarquistas Espaiioles y elPoder (Paris: Ruedo Ibrico, 1972). Ou sobre outro nguloo livro de Diego Abad Santillan, Por qu Perdi mos Ia Guerra(Buenos Aires: Irnn, 1940).

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    anarquista, entender as perspectivas abertas peladerrocada de dois mitos: o do Estado Socialista e odo Estado do Bem-Estar Social. Agora, mais de 60anos aps a Revoluo de 1936, talvez os anarquis-tas possam refletir sobre todo esse perodo de es-peranas e derrotas dos movimentos libertrios.Mesmo que hoje tenham desaparecido as duascausas fundamentais do dec1nio do anarquismo,isso ocorre em uma fase em que o pensamento e aprtica libertria atingiram seu ponto mnimo equando a homogeneizao ideolgica do sistemacapitalista atingiu seu pice. Certamente por essarazo o desgaste do Estado e da representao po-ltica s tenha gerado um generalizado desinteres-se cnico com os destinos da sociedade e no maisuma busca de uma alternativa ao existente.Essa descrena generalizada, contraditoriamen-te, pode representar o comeo de uma nova espe-rana: se no mais acreditamos no Estado e na de-mocracia representativa, ento podemos nos auto-organizar e comear a imaginar formas inovadoraspara as sociedades. E a nos reencontramos com o

    velho desafio do anarquismo

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    3UM POC DE DESENCONTROS

    Os bois passam debaixo da cangaos cegos vo aonde a gente queira lev-los.Mas o homem que nasce livretem o seu prprio caminho ...Herbert Read

    A partir dos anos 40 o anarquismo tomou-se umaplida imagem do que fora no passado, no pos-suindo sequer o vigor, a combatividade e a obstina-o dos primeiros grupos que se formaram na dca-da de 60 do sculo 19. A fragilidade do movimento- que seprolonga at agora -manifesta-se na sua quaseausncia dos movimentos sociais, na incapacidadeassociativa e na sua reduzida influncia no pensa-mento critico atual. Derrotado na Espanha, enfraque-cido pelas mortes e prises, dividido pelas mgoasdo exlio, o anarquismo perdeu a sua ltima grandereferncia. Por todo o lado, na Europa e na Amri-ca, os movimentos sociais reapareciam enfeudadosa populismos estatizantes ou atrelados estrat-gia comunista das correias de transmisso , sen-do meros instrumentos da poltica partidria.

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    Gradualmente o anarquismo perdia a sua prin-cipal vitalidade das dcadas anteriores que lhe eradada pelos camponeses das diferentes comunida-des do estado espanhol, pelos operrios de Barce-lona, Rio de Janeiro, Buenos Aires, pelos ncleoslibertrios da sia e pelos internacionalistas quecorriam a Amrica e a Europa agitando as idiasde uma sociedade sem Estado.Os grupos que persistiam em pases como Fran-a e Itlia era o que sobrava desse velho movi-mento proletrio e revolucionrio que tinha agita-do a Europa nos ltimos 100 anos, mas a sua in-capacidade de penetrao nos movimentos soci-ais e entre a juventude era uma constatao evi-dente.Foi ento, que de forma imprevisvel, no finaldos anos 60, irromperam novamente as idiaslibertrias, a partir de uma gerao quase sem con-tatos com o movimento anarquista histrico.A crtica da sociedade industrial, a ecologia, opacifismo e o comunitarismo nascidos no movimen-to contracultural da Amrica do Norte, desenvol-veram-se em paralelo ao anticapitalismo radical dosjovens estudantes e proletrios da Europa de 68.Os valores libertrios que os anarquistas tinhamassumido no movimento social, ao longo de dca-das, emergiam novamente de forma criativa e es-pontnea. Esta nova gerao, ao se aproximar do

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    velho movimento iria se confrontar com o proble-ma da distncia que os separava dos militantes pro-vindos das lutas dos anos 30, na sua quase totalida-de operrios autodidatas. Seria complexa e dificilessa integrao: a viso do mundo, o discurso, aestratgia, a origem social- e at os comportamen-tos - eram distintos, dificultando que a experinciae a histria que esses velhos militantes representa-vam se somasse ao voluntarismo e criatividadedas novas geraes.Passaram a coexistir dois movimentos parale-los, com suas publicaes e grupos claramenteidentificveis, que umas vezes se completavam,mas em outras conflitavam. Com o tempo acaba-ram por estabelecer alguns contatos, ligaes e co-laboraes entre si, sem no entanto vencer definiti-vamente essa barreira que os separava. No era oresultado do envelhecimento ou dogmatismo dosvelhos militantes, como alguns afirmavam, mas to-s a barreira inexorvel do tempo que afastava es-ses experimentados ativistas da realidade da prti-ca social; e que aos jovens impedia de apreender oconhecimento e a experincia que o movimentohistrico havia acumulado. Os grupos surgidos apartir do comeo dos anos 70, iriam ainda ser mar-cados por uma fraqueza congnita, j que eramconstitudos por estratos sociais que se definem porsua transitoriedade e descontinuidade: jovens e es-5

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    tudantes. No conseguindo superar o maior pro-blema com que se debatia o anarquismo nas lti-mas dcadas, o da sua implantao nos movimen-tos sociais.O anarquismo, ao contrrio do marxismo, noacredita na existncia de um sujeito histrico ni-co e predestinado, em uma classe ou grupo socialcapaz de realizar, em funo de um destino histri-co, a mudana social. As foras sociais que os li-bertrios consideravam mobilizveis para um pro-

    jeto de mudana eram mais vastas e plurais. DesdeBakunin e Kropotkin, sempre estiveram no centrodo pensamento anarquista, ao lado do proletariado,, dos camponeses, todos os explorados e excludos,os marginais e jovens, mas enquanto pessoas con-cretas, sujeitos capazes de assumirem sua liberdadee se autodeterminarem historicamente . No entan-to, condio necessria para a concretizao deum projeto de transformao social, que esses su-jeitos sejam parte de grupos e classes sociais comuma afinidade de interesses e com uma estabilida-9. Um dos textos mais traduzidos de Kropotkin, Apelo aosJovens exemplifica bem essa atitude dos anarquistas, quan-do convoca os jovens de origem burguesa a participarem naluta pela transformao social. Afinal, Kropotkin, Bakunine Malatesta, tinham sua origem social nas classes dominan-tes e nem por isso deixaram de ter toda uma vida de dedica-o luta dos explorados e marginalizados.6

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    de e continuidade estrutural, que possibilitem for-mas de associao e de luta a prazos mais longos.O movimento anarquista s ter condies deretomar uma presena significativa nos movimen-tos sociais, se participar das suas lutas, principal-mente as que nascem das condies bsicas de pro-duo e da resistncia s relaes de dominao.J que as fbricas, os escritrios e os outros locaisde trabalho dos assalariados, sero sempre - en-quanto no existir a robotizao total da produoe prestao de servios - o centro das relaes fun-damentais de dominao e, conseqentemente, oncleo potencial da resistncia ao capitalismo, ondepode germinar uma alternativa social. O anarquismono conseguiu at hoje retomar sua relao histri-ca com os movimentos sociais e, particularmente,com a luta operria. O renascimento do anarco-sindicalismo na Espanha, nos anos 70, foi um casoni co que resultou de uma longa histria do anarco-sindicalismo e da tradio libertria neste pas. Masmesmo a, no se traduziu em uma recriao da es-tratgia anarco-sindicalista, adaptando-a s profun-das transformaes da economia e da prpria con-dio operria, que haviam sido decisivas para de-bilitar o movimento.Os problemas com que se tem debatido a Con-federao Nacional do Trabalho (CNT), aps suareconstruo em 1977, resultam em parte - j que37

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    temos de reconhecer que existiram tentativas deinfiltrao e cerco por parte do Estado -, de duascausas: a primeira foi a incapacidade da CNT rom-per com o fantasma da histria e se abrir ao novomovimento libertrio que renascia nos anos 70,na Espanha; por outro lado do fato de a estratgiaanarco-sindicalista, como se definiu historicamen-te, no se mostrar operante em uma sociedadeem que o Capital e o Estado tinham passado pormutaes profundas. Esta constatao no signi-fica aceitar como certa e inevitvel a teoria que osindicalismo morreu ou , hoje, inevitavelmenteintegrador e menos ainda, que no existe espaopara uma estratgia autnoma de confrontoanticapilista nas atuais relaes de trabalho. Em-bora tenhamos de reconhecer que essa margem sereduziu na maioria dos pases de capitalismomaduro, onde a conscincia da sujeio desapa-receu perante a perspectiva de acesso ao consu-mo, e onde uma nova e radical diviso se cria nomundo do trabalho: a que nasce da oposio entreos garantidos e os excludos das relaes de pro-duo.Mesmo assim a existncia de organizaesanarco-sindicalistas na Espanha, na Frana e naSucia, e de diversos ncleos sindicalistas revolu-cionrios em outros pases, no deixam de ser umdesafio que se mede pela distncia que vai desse

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    sindicalismo autnomo ao sindicalismo atrelado,corporativista, e burocrtico 10.Mesmo assim temos de reconhecer com luci-dez os limites atuais da prtica sindical que tendema se desvirtuar na prtica da negociao - esse odrama da Confederao Geral do Trabalho (CGT) naEspanha -, ou a se encurralar na intransigncia doconfronto, impedindo os ganhos imediatos, que soum componente necessrio a essa forma de organi-zao. Ao contrrio da viso simplista de algunsanarquistas, o sindicalismo burocrtico e corpo-rativo predominante atualmente, no um produtoda traio de dirigentes reformistas, mas a expres-so do movimento operrio que aderiu aos valorese lgica do capitalismo. A burocracia sindical, talcomo a burocracia poltica, s reflete a imagem dosmovimentos sociais contemporneos.Esta reavaliao das relaes anarquismo xsindicalismo e a definio de uma estratgia atualpara a ao no mundo do trabalho, no deixam deser importantes, mesmo levando em considerao asituao atual na maioria dos pases; as perspecti-10. Nos livros Capital Sindicatos e Gestores (So Paulo:Edies Vrtice, 1987) e Transnacionalizao do Capital eFragmentao dos Trabalhadores (So Paulo: Boitempo,2000), Joo Bemardo, um marxista heterodoxo portugus,prximo dos libertrios em muitos aspectos, d uma con-tribuio importante para a compreenso do papel contem-porneo dos sindicatos na gesto capitalista da mo-de-obraassalariada.

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    vas para os anarquistas so, quando muito, ade con-tribuir para a criao de ncleos de autonomia eauto-organizao nos locais de trabalho, aplicandoas idias e tticas do anarco-sindicalismo adequa-das a cada situao.Hoje o sindicalismo para ser revolucionrio, te-ria de se tomar mais abrangente, mesmo ao nvelreivindicativo, rompendo as amarras do reaciona-rismo corporativo. Alm das tradicionais lutas sa-lariais, de reduo de horrio, de melhoria das con-dies de trabalho e contra o desemprego, teria depassar a intervir no redimensionamento do papeldo trabalhoe da funo do trabalhador. E, indo maisalm, atuar nas questes que envolvem o mundodo trabalho, como os transportes, habitao; urba-nismo, consumo e qualidade de vida, j que soaspectos fundamentais, se partirmos de uma visointegrada das relaes de dominao e de suasconseqncias na existncia cotidiana dos assala-riados . O sindicalismorevolucionrio teria de reto-mar a tradio perdida de ser o espao de constru-o de relaes de afinidade e solidariedade e decriao de uma contracultura de resistncia. Rom-pendo a barreira contempornea estabelecida entreos trabalhadores garantidos e excludos, entre os11. O estudo de J M. Carvalho Ferreira As NovasTecnologias, o Trabalho e os Desafios do Sindicalismo,publicado em Tecnologia e Liberdade (Lisboa: Sementeira,1988), analisa este problema. 40

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    que possuem trabalho precrio e trabalho seguro,criando formas de organizao e luta solidria jun-to com os desempregados e aposentados.As mudanas estruturais por que est passandoa sociedade capitalista tem como uma de suas con-seqncias mais importantes o declnio da coesoe conscincia dos trabalhadores, bem como a per-da da identidade constru da ao longo do sculo 19e primeiras dcadas do sculo 20. O Estado do Bem-Estar, a sociedade de consumo e as tecnologias demassificao, em particular o rdio e a televiso,podem ser apontados como algumas das razes fun-damentais para esta realidade que se manifesta deforma clara no Primeiro Mundo ej adquire os mes-mos contornos nos pases do sul industrializados eurbanizados. Onde o espao comunitrio e da so-cializao d lugar realidade miditica da televi-so onipresente. Se em um primeiro momento o sin-dicalismo e o anarquismo conseguiram se apropri-ar da tecnologia da imprensa e a partir dela cons-truir uma cultura operria e libertria, o mesmo pro-cesso no ocorreu-em relao ao rdio, televiso,ao vdeo e agora em relao informtica, que fo-ram usados quase exclusivamente pelo sistema paraunificar ideolgica e culturalmente toda a socieda-de, destruindo as diferenas e neutralizando a re-sistncia cultural que se haviagerado a partir dacritica anticapitalista. Essa estratgia teve um ou-tro desdobramento que foi o da fragmentao do

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    espao coletivo cotidiano das classes dominadas,induzidas por essas mesmas tecnologias a se fe-charem sob o espao individual e privado do lar. Areconstruodesse espao perdido da sociabilidade,da comunicao e da cultura dos de baixo , pos-sivelmente o maior desafioqueumprojetolibertrioter de enfrentar.O anarco-sindicalismo, .principal responsvelpela criao dessa cultura operria em muitos pa-ses, foi um exemplo de criatividade dos operrioslibertrios e de sua adaptao s necessidades deluta da poca em que surgiu. Foi tambm a aplica-o concreta de estruturas autocontrolveis eautodirigidas sociedade industrial.Sua recriao atual, ter de afastar qualquer pre-tenso hegemonista ou de imitao saudosista, econsiderar que uma das estratgias possveis deluta anticapitalista. Talvez a que maiores poten-cialidades ainda tem entre os setores sociais sujei-tos s condies de explorao violenta ou em re-gies domundo onde o cotidianodemisria e explo-rao mantm desperto o instinto combativo dosassalariados. 'Mas no se pode perder de vista que toda a an-lise social, centrada exclusivamente sobre as rela-es de produo, no d conta de muitos proble-mas j levantados no passado e, menos ainda, dosque adquiriram maior importncia nos ltimosanos, atravs dos novos movimentos sociais, nas-cidos como resposta auto-organizativa a situaes

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    e conflitos diferenciados. O anarquismo, que j nopassado se manifestava e agia nas mais diferentesreas, do antimilitarismo e pacifismo ao naturismo,do esperanto s experincias educacionais, deveriaestar especialmente atento s potencialidadeslibertrias destes novos movimentos. Mas, semdeixar de lhes apontar a principal limitao que ade ,se assumir como uma viso fragmentada dos pro-blenias estruturais da sociedade, perdendo a noodo todo social.Da organizao dos consumidores ao ambien-talismo, da ecologia ao feminismo, do antimilita-rismo s prises, muitos so os objetivos e as for-mas de associao que potenciam a auto-organiza-ode diferentes setores da sociedade em defesados seus interesses e, certamente, em todos os ca-sos pode haver uma proposta e uma presena li-bertria que potencie a articulao e globalizaode cada uma dessas lutas.A ecologia social e o antimilitarismo, pelas suastradicionais afinidades com os valores libertrios,so reas onde a militncia anarquista mais se tmexprimido, mas tambm a as potencialidades solimitadas, se for perdido o sentido da estratgia glo-bal de ruptura . No possvel construir uma al-12. no carter social, radical e libertrio que se distingue aviso de ecologia social formulada por um Murray Bookchindo ambientalismo incuo. Ler Remaking Society (Montreal:Black Rose Book, 1989) ou EZAnarquismo en Ia Sociedadde Consumo (Barcelona: Editorial Kairs, 1974).

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    ternativa social a partir do espao fragmentado daparticularidade e da diferena, mas somente a par-tir da cooperao em torno de um projeto de mu-dana que una diferentes grupos e tendncias soci-ais. Caso contrrio acabaro engolidos - como te-mos assistido nos ltimos tempos - pelo movimentopermanente de integrao, atravs do qual o siste-ma tende a recuperar em seu beneficio toda a criti-ca parcelar. .Tambm as lutas relativas s liberdades se tmtornado mais comuns nos chamados pases demo-crticos, sendo decisivas para impedir a expansodo Estado autoritrio. Os anarquistas no se po-dem omitir com o incuo pretexto de que em mui-tas delas esto em causa apenas regras jurdicas, jque so estes espaos de liberdade que o movimentosocial imps ao Estado, como seus direitos que es-to ameaados.As garantias penais e processuais, os direitos dospresos, o direito de asilo e de emigrao, so entremuitos outros, os que os Estados vm paulatina-mente eliminando ou reduzindo. A nossa crtica aoEstado se concretiza no estabelecimento de metasimediatas para a luta social nesta rea. Contraria-mente a uma recusa abstrata ou a uma concepodoutrinria, devemos apoiar uma prtica radicalantiestatista, que em cada caso e situao se oponha expanso e hegemonia das relaes de Poder e favo-rea a autonomia e a criao de espaos de liberdadea partir da prpria sociedade.44

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    Todas estas possibilidades, em aberto, para nossainterveno, esto condicionadas pela capacidade denos articularmos e associarmos, j que s movi-mentos sociais organizados tm condies paratransformar qualquer situao social. Nossa fragi-lidade organizativa: incapacidade de associao ecoordenao em cada regio e mais ainda interna-cionalmente; so por demais evidentes para noserem vistas como um dos problemas-chave do quegenericamente chamamos de movimento libertrio.No se solucionando isto, ser impossvel qualquerativismo proficuo ou qualquer resultado duradou-ro para a nossa militncia ou a transmisso de umacultura libertria entre geraes.O processo de globalizao da sociedade in-dustrial, est entrando em um momento decisivo,onde o intemacionalismo e a solidariedade dos po-vos o nico antdoto contra a xenofobia e a gue-tizao de um mundo repartido entre o desperdcioda abundncia, no Norte, e a mais absurda das mis-rias no Sul..Usando as palavras de Noam Chomsky:

    O principal hoje que se a resistncia popular qui-ser ter alguma significncia, ter que ser internacionaL.,isto comea a ser compreendido e preciso que hajaalgum tipo de reao em escala internacional, um tipode solidariedade transnacional entre pobres e trabalha-dores.45

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    Por essa razo podemos afirmar que, de formaimediata, teremos de encarar a questo da associa-o, articulao e coordenao de nossas prticas. Oque passa tambm pela clarificao do papel da or-ganizao libertria, que , antes do mais, o de cria-o de um espao coletivo, livre e fraterno, onde seforjem novas relaes sociais e se viva de acordocom os valores da cultura libertria, como aconte-ceu no passado quandoos trabalhadores e os pobres no estavam nem de lon-ge to isolados e nem submetidos ao monoplio ideo-lgico da mdia dos negcios? .

    Foi por isso que a esperana e a utopia se reprodu-ziam nesses espaos libertados onde viviam os ex-cludos. esta uma das funes que temos de recupe-rar para as associaes libertrias, ao mesmo tempoque se assumam como um ncleo de difuso das idi-as anarquistas e de articulao da luta de resistnciaanticapitalista.As formas concretas podem ser diversas, das or-ganizaes anarco-sindicalistas s federaes degrupos de afinidade, das redes de informao s as-sociaes de ateneus e centros de cultura. O funda-mental federalizar e coletivizar prticas e expe-rincias isoladas, ampliando assim as possibilida-13. Noam Chomsky, Ano 501. A Conquista Continua (SoPaulo: Scritta, 1993).

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    des de interveno social. A ruptura com o isola-mento e o individualismo do cidado-consumidor-espectador - papel que o Sistema nos quer impor - o passo mais decisivo no caminho da reconstru-o do espao coletivo da alternativa social.S atravs de um associativismo libertrio querespeite a autonomia, singularidade e diferena en-tre cada indivduo ou grupo, mas que seja capaz depotencializar, acima de tudo, o que temos em co-mum, fundamento de qualquer relao de afinida-de, solidariedade e apoio mtuo, poderemos criaruma dinmica nova no movimento, e concretizar-mos de imediato as formas organizacionais que pro-pomos para a sociedade.Este o modelo reconhecido por qualquer anar-quista, mas que tantas vezes negamos ao adotar pos-turas dogmticas e arrogantes, confrontos perso-nalizados, criticismos inconseqentes, resultantes dodescomprometimento com a tica anarquista. Essatica que nos leva a exigir uma adequao dos meiosaos fins - um ponto importante da nossa critica aosocialismo autoritrio - deve assumir um papel cen-tral na militncia libertria, condicionando impe-rativamente nossa prtica social. Uma realidade emque esto presentes tenses permanentes, resultan-tes das presses do meio social, da introjeo dosvalores dominantes e das limitaes pessoais, masque ser sempre o critrio determinante para a ava-liao da coerncia de cada um de ns.47

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    A tica anarquista e os valores libertrios tomam-se, assim, pontos da ruptura radical com as ideolo-gias autoritrias, constituindo a mais profunda cli-vagem com o socialismo autoritrio. A rebeldia, atransformao social s podem ser um produto davontade livre de sujeitos autodeterminados e solid-rios vivendo dentro de uma dada realidade histri-ca e social; jamais produto das condies materiaisde produo. Essas sempre potenciaro a ma-ximizao da alienao e da sujeio.Nenhum materialismo vulgar poder explicarMiguel Angiolillo. Um operrio italiano refugiadoem Londres, que depois de conhecer os depoimen-tos' de anarquistas espanhis vtimas de priso etortura, decide, em 1896, calma e pacientemente, pro-curar o primeiro-ministro de um pas estranho e as-sassin-lo, morrendo no garrote aps realizar o quepara ele era imperativo pessoal de solidariedade.

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    4DILEM S DO N RQUISMOCONTEMPORNEO

    Uma sociedade que se auto-organiza sem autoridadeest sempre ao nosso alcance como uma sementedebaixo da neve enterrada pelo peso do Estado

    e sua burocracia ... ColinWardAo contrrio do que muitos gostariam, o anar-quismo no uma espcie extica em extino;em todos os pases ele est presente na manifesta-o ruidosa na praa pblica ou na recusa silen-ciosa. Mas certamente poderemos afirmar que en-quanto movimento com o mnimo de organicidade,o anarquismo desapareceu nos ltimos 50 anos.Existem coletivos, publicaes e associaes emmuitos pases, mas no mais um movimentofederalizado e internacionalista que se relacionede forma ativa e se afirme como alternativa soci-al. A incapacidade organizativa, a reduzida atua-o do anarquismo nos movimentos sociais e acristalizao terica, so essas as questes cen-

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    trais que os libertrios tm de enfrentar nos tem-pos presentes.Existe uma relao direta entre estes dois as-pectos j que, quer o pensamento individual, quera elaborao de um conhecimento coletivo, estoligados indissociavelmente participao da prxisde um grupo ou classe social. Como alguns liber-trios gostam de afirmar os anarquistas so teri-cos da sua prtica e prticos da sua teoria. emfuno do agir sobre a realidade que qualquer teoriasocial se vai elaborando, enriquecendo e autocor-rigindo. Cada sucesso ou fracasso, impe uma rea-valiao do nosso pensar. -,Esta relao primordial entre teoria e prtica,sempre existiu no movimento anarquista histrico,essa foi uma das razes por que no se constituiuuma intelligentsiaespecializada em pensar a mu-dana social, entre os libertrios. No marxismo essaruptura gerou, na maioria dos casos, um pensamentoessencialmente ideolgico e contemplativo, tipica-mente acadmico e nesse sentido intil para o mo-vimento anticapitalista.Da sua priso na Saxnia escreveu Bakunin umacarta em que dizia:Encontro-me agora no ponto zero, quero dizer queestou condenado condio de ser exclusivamentepensante, ou seja, no-vivente .

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    Se existe corrente socialista que assumiu a aTese de Marx contra Feuerbach: Os filsofos selimitaram a interpretar o mundo diferentemente,cabe transform-lo , foram os libertrios. Noanarquismo, os intelectuais do movimento sem-pre se assumiram mais como militantes do quecomo pensadores, sua radicalidade e a opo pelacoerncia impossibilitaram que o anarquista pro-duzisse essa subespcie de tericos contem-pladores. Mesmo os que como intelectuais brilhan-tes como Kropotkin, Rec1us ou Santilln acaba-ram no dispondo do tempo e meios que lhes pos-sibilitassem procurar suas cadeiras em alguma bi-blioteca do exlio. Mas certamente dificil en-contrar movimento social que tenha conseguidoproduzir tantos autodidatas crticos e pensadoresquanto o anarquismo, usando a deliciosa expres-so do historiador do anarquismo Edgar Rodrigues- tambm ele um autodidata- que movimento con-seguiu produzir um engraxate e intelectual comoOssep Stefanovetch, ucrniano anarquista que vi-veu no Brasil?A prpria natureza heterodoxa do anarquismoimpede a sua recuperao como mera ideologia,at porque desde Proudhon se recusava a constru-o de um sistema fechado e auto-suficiente:

    Acolhamos, encorajemos todos os protestos, de-somemos as excluses, todos os misticismos: no olhe-mos jamais uma questo como esgotada, e quando ti-51

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    vermos usado at o nosso ltimo argumento, recome-cemos, se for preciso, com eloqncia e ironia'? .o que tambm o diferenciava daquela correnteque se proclamava do socialismo cientfico e queera uma manifestao da imensa arrogncia edogmatismo intelectual._ No entanto, na medida em que o anarquismo sefoi 'afastando da realidade social, perdendo suasrazes nos movimentos sociais, tambm ele se en-caminhou para a cristalizao terica, que se tra-duziu no seu fechamento como pensamento dou-trinrio, em uma reflexo acadmica sem qualquercontedo de crtica social ou em um niilismo chi-que para consumo da classe mdia.O antidogmatismo essencial do anarquismo,tambm no justifica que nos possamos agarrar aalgumas idias gerais e excluir o sentido da dvidasistemtica. Pelo contrrio, exige-nos uma neces-sria recriao permanente, o que nos impe umaguado sentido autocrtico. A complexidade soci-al atual, os problemas sociais e polticosque hoje te-mos de encarar e a ampliao permanente do co-

    nhecimento, deve-noslevar a novas elaboraeste-ricas e a novas estratgiasde ao. No como formade adaptao realidade - do tipo libertarista ps-14. Carta de 17 de maio de 1846 de P.-J.Proudhon a KarlMarx que originou a ruptura entre ambos os pensadores.

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    moderno -, mas sim como meio de responder ne-cessidade de crtica dessa realidade.Conjugar o sentido utpico do anarquismo coma reflexo terica e uma prtica social, essencialpara que o pensamento libertrio adquira uma di-menso social revolucionria. Caso contrrio fica-r reduzido a uma tica de comportamento ou a umaseita messinica sem qualquer condio de inte-rao com os acontecimentos reais.Quanto s novas teorizaes que tm ocorridonos ltimos anos, um pouco por todo o lado, na li-nha libertarista norte-americana de um RobertNozick , h muito se afastou dos valores radicaisdo anarquismo para se aproximar do liberalismo,que no tem correspondncia com a realidade cni-ca do sistema dominante. Mais do que um pensa-mento reformista - j que nem radicais so em suasexigncias de reforma -, um pensamento acomo-dado, incapaz de questionar profundamente a rea-lidade e apostar na vontade e desejo utpicos quesempre estiveram presentes nos movimentos soci-ais dos oprimidos.

    Ao contrrio do que apregoam os libertaristas,o pensamento anarquista clssico sobre o Estado e oPoder, mantm toda a sua pertinncia, e o conceito15. Para conhecer este tipo de anarco -capitalismo to po-pular nos Estados Unidos e que atraiu alguns ditos libertriosem outros pases, ler Anarquia Estado e Utopia (Rio deJaneiro: Zahar, 1991).

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    libertrio de uma comunidade autogovemada, des-centralizada e federalizada mais atual que nunca.A intuio e lucidez na critica do socialismo auto-ritrio e do Estado foi confirmada pela histria dosregimes das burocracias vermelhas.O que no nos impede de reconhecer que as idi-as expostas por Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Ma-latesta e Landauer, entre outros, no tiveram os de-senvolvimentos posteriores que se faziam necess-rios. Muitas questes abertas pela experincia daRevoluo Sovitica e da Revoluo Libertria naEspanha, bem como muitas outras surgi das com asmutaes ocorridas na sociedade industrial (das no-vas tecnologias ecologia) esto em aberto. Umateoria do Poder; uma concepo libertria de orga-nizao; a anlise das formas de autogesto; os pro-blemas de escala e da complexidade tecnolgicana sociedade contempornea; um entendimento dosmecanismos psicolgicos da agressividade e da do-minao; as relaes de micropoder na famlia enos grupos, um estudo das potencialidades liber-tadoras da robtica e da telemtica, so, entre ou-tros, temas que precisam de ser aprofundados apartir de uma perspectiva libertria.Enquanto o anarquismo esteve no centro dosmovimentos sociais e se afirmava como pensamentorebelde, manteve sua capacidade de atrao sobreuma intelectualidade desvinculada e critica. At ocomeo do sculo 20, conhecidos pensadores se inte-

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    ressavam pelas idias e as principais figuras do mo-vimento, como Kropotkin e Reclus, encontravam-se envolvidas nos grandes debates intelectuais dapoca. Nos anos 20 ainda muitos pensadores da im-portncia de Buber, Lukcs e Benjamin estavamprximos de posies libertrias, o mesmo ocor-rendo com muitos escritores e artistas . Aps osanos 30;' a atrao exerci da pelo socialismo pssiveZ abriu caminho hegemonia do marxismo-leninismo nos meios intelectuais, passando o anar-quismo a persistir como referncia s em algunsmeios dissidentes: dos tericos do conselhismo, pa-cifistas, ou escritores como Pert, Breton, Orwell,Huxley e.Camus.Um movimento inverso, emboraminoritrio, ha-veria de ocorrer, quando a conscincia dos crimescometidos pelas burocracias vermelhas, aproximoudo anarquismo importantes intelectuais oriun-dos do marxismo, entre os quais Herbert Read,Daniel Gurin, Murray Bookchin, Noam Chomskye Paul Goodman. Com eles o pensamento libertrioganhou importantes contribuies em novas reasda arte, educao, urbanismo e ecologia social.Mas foi s a partir dos anos 60, que assistimos auma ruptura ampla dos intelectuais com o autori-tarismo comunista, quer pelo conhecimento da rea-16. Para conhecer as relaes entre o anarquismo e os intelectuaisjudeus da Europa Central ler o livro de Michel Lowy, Redeno eUtopia (So Paulo: Companhia das Letras, 1989).

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    lidade do stalinismo, quer pela influncia da ex-ploso libertria ocorrida no final dessa dcada, sque essa ruptura haveria de tomar duas direes:de um lado uma maioria intelectual que adotou apostura acomodada de conivncia tcita ou adesoexplcita ao capitalismo, sob o eufemismo de ade-so aos valores democrticos; de outro uma mino-ria que persisti u com uma po si o cri tica e autrro-,ma, vindo vrios a se aproximar dos valores li-bertrios e da tradio anarquista, mesmo que emalguns casos tenham permanecido com posies os-cilantes e contraditrias, j que por pruridos mar-xistas ou por preconceitos acadmicos, acabavamno reconhecendo explicitamente essa vinculao,Dos situacionistas a Guattari, Bosquet e Castoriadis,a contribuio a um pensamento libertrio contem-porneo ainda feita com preconceitos e mal-en-tendidos em relao corrente social que mais pen-sou e lutou por esses valores.No est em causa a eliminao do sentido cri-tico sobre o prprio anarquismo, ou a identificaoaprioristica do libertrio com aquele que se diz seranarquista, mas certamente contraditrio se po-sicionar como libertrio e ostensivamente ignorarum pensamento e uma prtica social que se tradu-ziram na histria contempornea, essencialmente,no movimento anarquista.Pelo contrrio, entre os anarquistas sempre hou-ve uma procura permanente das fontes do pensa-

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    mento libertrio, dos herticos do passado aos dopresente, de lllich a Marcuse e Reich, uma posioaberta heterodoxia. Mesmo que em alguns casostambm tenham ocorrido resistncias a essas criti-cas libertrias que no eram de matriz anarquista,como se por esse fato, fossem menos fundamentaispara ns.Essa forma de preconceito, tambm leva.aodogmatismo e traduz-se na maioria dos casos, emuma recusa de toda a produo terica que sejaexterior ao movimento. Uma obstinada cegueiraque impossibilita uma leitura proveitosa, porexemplo, do pensamento de raiz marxista, princi-palmente aquele elaborado por intelectuais antiau-toritrios. Esta intransigncia no leva em contao que Kropotkin um dia caracterizou como a lutapermanente de duas tendncias na histria e nasociedade: uma corrente autoritria e uma corren-te libertria. E que esta ltima no pode ser redu-zida a uma expresso pura pelo contrrio pro-duto de diferentes prticas e da reflexo contnua,e tantas vezes contraditria, em que cada grupo eindivduo, de forma cooperativa, vo acrescentan-do algo de novo, numa superao permanentede dvidas e dificuldades. Usando as palavras deColin Ward:

    A escolha entre as solues libertria e autoritriano consiste em uma luta catastrfica definitiva, mas57

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    em uma srie de compromissos atuais, muitos delesinconclusos, que ocorrem e ocorrero, ao largo de toda ahistria? .

    No entanto, sintomtica a dificuldade do anar-quismo absorver o novo pensamento libertrio. Ti-rando algumas excees na Itlia, Frana e EUA,onde tem estado, presente nos coletivos anarqqis-tas, assumindo a uma contemporaneidade radicalna Espanha depois do perodo dinmico do fim dosanos 70, quando publicaes como aBicicleta trou-xeram esse novo rosto do pensamento libertrio,logo se voltou a um discurso carregado de fantas-mas e saudades.Esta cristalizao ideolgica do anarquismo,como teoria definida e acabada, leva a uma con-cepo sectria e religiosa. Vctor Garcia, velhomilitante anarquista, colocou o dedo na ferida numacritica cida ao ortodoxismo quando escreveu:

    ''El anarquismo debe vigorizar-se y actualizar-se,condicin imprescindible si deseamos tener auditorio.El anarquismo organizado, en particular, ha sufridouna exagerada tirania por palie de vestales, exgetasy Torquemadas que no han permitido nunca el reexa-men y Ia renovacin de unas tticas por miedo a quese resintieran los principios y Ias finalidades. Esta17. Colin Ward. Esa Anarquia de Cada Dia. (Barcelona:Tusquests Editores, 1982).

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    imposicin oficialista ortodoxa no ha permitido elairear nuestros recintos que se han llenado de teleraiiasmientras el mundo intelectual y la cincia continuabauna marcha vertiginosa que nos costar esfuerzos su-premos si queremos darle alcance. Todo el que no serenueva, muere ... 18o anarquismo nasceu da dissidncia e da he-terodoxia. Em Godwin, Bakunin ou Malatesta noencontramos esse sectarismo e ortodoxia; essa ten-tao que no esteve de todo ausente em outras po-

    cas acabou sufocada pela diversidade e radicalidadeheterodoxa. Anarquistas, sindicalistas, individua-listas, pacifistas e insurrecionalistas, foram a ex-presso dessa pluralidade libertria que fizeram doanarquismo uma manifestao viva do pensamen-to antidogmtico. Estas so algumas das caracte-rsticas que temos de preservar, sendo a tolernciaum componente bsico do movimento antiauto-ritrio, sem ela no possvel pensar qualquer for-ma de associativismo ou qualquer forma de reno-vao.

    18. Carlos Daz. Vitor Garcia: EI Marco Pala dei Anar-quismo. (Mostoles: Madre Tierra, 1993).

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    5POSSmILID DES TU ISDE UMA AO,.L,mERTRIA

    O s homens temem este desconhecido no qual entrariamse renunciassem atual ordem de vida conhecida.Sem dvida bom temer o desconhecido quandonossa situao conhecida boa e segura; mas esteno o caso e sabemos sem margem de dvidaque estamos beira do abismo .Liev Tolstoi

    Mesmo neste momento de maior arrogncia dosistema capitalista que se travestiu em sociedadedemocrtica, e s por esse nome quer ser conheci-do, quando a ideologia do Poder e da Sujeio seescuta em todo o lado, no se descortinam argu-mentos a favor de um sistema essencialmente infa-me.Sua irracionalidade econmica e social por de-mais evidente. A pequena ilha de abundncia, cer-cada de pobreza, pode at ser o paraso, ou umpobre sucedneo, para os que a vivem. S queno passa disso, uma ilha que abasteci da e finan-ciada pelos que vivem fora dela. Uma multidode esfomeados, desesperados ou dos conforma-61

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    dos na misria que povoam as grandes regies doplaneta. Como possvel falar de progresso, de-senvolvimento e xito do gnero humano nestecontexto, em que uma parte da Humanidade nose solidariza com a maioria da populao?Como admitir como poltica ou eticamenteadmissvel um sistema social que perpetua tal rea-lidade?Que futuro aponta essa realidade?Certamente no a ampliao da sociedade deconsumo, em escala universal, mesmo que se am-plie para novas ilhas no oceano do apartheid soci-al. Os recursos escassos e a crise ecolgica provo-cada pela economia do lucro e do desperdcio spermitem visualizar uma planificao autoritria emescala mundial, com o controle rigoroso dos recur-sos, da destruio ambiental e da prpria popula-o . Em resumo, um sistema ainda mais autorit-rio e injusto.O contraponto a esse futuro ser sempre umapossibilidade, criada a partir da vontade, desejo econscincia dos de baixo dos excludos deste sis-tema, mas tambm de todos os estratos sociais paraquem aHumanidade maior que o Estado evocan-do as palavras de Martin Buber. Dos que tm cons-cincia que as opes so mais vastas e que o futu-19. Este foi o tema e preocupao central da Conferncia da ONUno Cairo, de 1994, onde os pases do Primeiro Mundo tentaramimpor aos paises do Sul o controle da expanso demogrfca.

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    ro e o mundo so criados pelos seres humanos e,como tal, sempre estaro abertos nossa ao cria-dora.Do ponto de vista do anarquismo, do movimen-to dos que recusam todas as formas de dominao,no podemos deixar de considerar uma prova daperenidade do inconformismo e da rebeldia, a per-sistncia do movimento e das idias nesta poca derestaurao e conformismo. O aparecimento de no-vos grupos no Leste europeu e em pases do Ter-ceiro Mundo, bem como a aproximao de intelec-tuais dos princpios libertrios, sinalizam a perti-nncia da reflexo anarquist sobre o poder, a do-minao e o Estado, abrindo possibilidades para oressurgir de um socialismo libertrio, orgnico efederalista. A prpria generalizao nas redes so-ciais de conceitos como autonomia, apoio mtuo,descentralizao, democracia direta, federalismo,que afloram dentro das chamadas organizaes no-governamentais (ONGs), principalmente nos pa-ses do Sul, permitem ter a esperana que as socie-dades se aproximem em suas buscas do modelolibertrio, mesmo que essa forma de organizaono assuma os contornos idealizados pelos mili-tantes do passado.A crtica do jogo poltico como mentira, ocul-tao e falsa conscincia, e do Estado como a buro-cracia da inutilidade, que se manifesta tambm nos

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    movimentos sociais, reabre o caminho libertrio dosprojetos sociais autogestionrios.A idia libertria manifestou-se sob vrias for-mas no passado, da Antigidade aos movimentosreligiosos e messinicos; no presente se manifestanas experincias autogestionrias da Amrica La-tina, no movimento ecolgico, feminista e pacifis-ta, no sendo propriedade de nenhum grupo. Masningum foi to longe como os anarquistas na ten-tativa de modelar um projeto sociallibertrio, fa-zendo convergir a igualdade e a liberdade, o indi-vduo e a comunidade, a autonomia e a coopera-o. Por isso podemos dizer que o anarquismo uma sntese dos ideais, que revolucionaram a po-ca moderna, uma utopia subversiva que questionaradicalmente a realidade sobre valores fundamen-tais ainda no realizados.Mas estar o anarquismo condenado sua con-dio de utopia?Certamente que o pensamento libertrio tam-bm feito de desejo e utopia, mas como disseBakunin:

    Foi na busca do impossvel que o homem realizoue reconheceu o possvel .No entanto, o anarquismo tambm uma prxise um projeto social concreto, que se assumindo

    como uma viso otimista da Humanidade, prope64

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    que as comunidades valorizem a vertente da auto-organizao, do apoio mtuo, da liberdade e igual-dade e recusem as formas heterogestionrias, cen-tralizadoras e autoritrias de organizao social.Por que reconhecer no capitalismo o ltimo edefinitivo modo de produo, e no Estado, com suademocracia representativa, a derradeira forma dascomunidades se organizarem? ~Por que no retomar e aprofundar a tradio li-bertria, descentralizadora e federalista, que per-

    sistiu em vrias pocas e civilizaes?A realidade contraditria que estamos vivendoabre novas possibilidades ao renas cimento do pen-samento e de prticas libertrias que podem contri-buir 'para responder a essas perguntas. Certamenteque esta mesma realidade pode forjar novas sujei-es e autoritarismos: poderes supranacionais, in-tegrismos religiosos, nacionalismos dementes, vio-lncia autofgica, determinismos biolgicos a par-tir da manipulao gentica etc.Como Carlos Daz, poderamos dizer:As que estamos lejos de entonar risuenamente,

    com el famoso Iibertario italiano, eso de que 'anrqui-co es el mundo, anrquico el pensamiento y caminamoshacia Ia anarquia' No. Hay ms apoltronamiento y msinercia que espritu de busqueda y que insatisfaccin'? .2 Carlos Daz. Las Teorias Anarquistas Bilbao: Zero,1976).

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    Perdida a inocncia e o otimismo do sculo 19,quando os movimentos sociais e os anarquistas, emparticular, esperavam o amanh radioso sabemoshoje que o futuro est em aberto,nenhummovimen-to irresistivel da histria ser capaz de nos prepararalgo melhor do que aquilo que ns mesmos seja-mos capazes de construir a partir de hoje. Se osanarquistas forem capazes de passar o testemu-nho de sua histria, afirmarem na prtica socialseus valores e contriburem para recriar uma con-tracultura libertria, talvez os movimentos soci-ais possam reencontrar, nessa radicalidade liber-tria, um dos referenciais que procuram de formadesnorteada. A imprevisibilidade histrica ou oceticismo no so obstculos definitivos ao vo-luntarismo anarquista. Quando Fanelli , o libertrioitaliano companheiro de Bakunin, chegou Es-panha em 1868, sem sequer falar o espanhol, aca-so poderia prever que estava contribuindo para acriao da mais importante base do movimentoanarquista: o movimento libertrio da PennsulaIbrica?No existe um que fazer para os anarquistas.Existem muitas possibilidades de fazer, traduzindoas diferentes situaes e perspectivas, em que cadagrupo ou indivduo libertrio se encontram, masque passa antes de tudo por preservar a lucidez cri-tica, pensar permanentemente a realidade, agir so-bre essa mesma realidade, assumir a solido da re-

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    sistncia em tempos dificeis, lutando para criar oslaos do espao comunitrio alternativo.A prxis libertria contempornea dever se tra-duzir cada vez mais na critica do Poder, da Polti-ca, do Estado e do Capital. Mas tambm na inter-veno construtiva a partir da realidade local, nadefesa da auto-organizao e da democracia djretaque sustentem um amplo federalismo regional e in-ternacional dos povos. E, na criao de comunida-des, cooperativas e outras formas autogestionriasde vida, produo e consumo. Contribuindo assimpara uma cultura libertria que abra, desde j, no-vos espaos de liberdade, de autonomia e cria-tividade para os que recusam o sistema dominante.Esses so alguns dos caminhos para quebrar aquietude que a sociedade do espetculo nos impe.Podemos recusar a condio de espectador impo-tente e agir, de forma silenciosa, atravs da deso-bedincia civil, atravs do discurso, do fanzine, dasabotagem annima, da revista, do livro, da aoradical do sindicalismo libertrio, das cooperati-vas autogestionrias, da manifestao antimili-tarista, das experincias educacionais ou das listasde discusso libertrias dentro das redes de compu-tadores. Tudo pode ainda ser feito.Temos razo para crer que os nossos valores: co-operao, apoio mtuo, solidariedade, liberdade eigualdade correspondem possibilidade de humani-zao da histria das sociedades .:

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    Por essa razo o anarquismo mantm toda a suaatualidade, acima de modas e conjunturas, at por-que a tica e a rebeldia libertrias possuem a di-menso eterna de Prometeu e esto umbilicalmenteligadas ao desejo de realizao integral de nossahumanidade. Embora sua concretizao subversi-va s possa ocorrer dentro do contexto real da his-tria e das .sociedades. Sendo esse o maior desafioque se coloca ao projeto sociallibertrio dos anar-quistas.