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O Amor do Palhaço Uma Paródia Encarnada Roteiro cinematográfico Ficção 15` Armando Praça

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O Amor do

Palhaço

Uma Paródia Encarnada

Roteiro cinematográfico

Ficção – 15`

Armando Praça

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Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não

desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que

não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história pra provar que sou

sublime."

Fernando Pessoa

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SINOPSE

Do fim ao começo do fim. Gretchen, personalidade da praia de Canoa

Quebrada, é encontrado morto atropelado numa estrada. Sua vida,

marcada pela inadequação e pelos efeitos de uma escolha mal sucedida,

retrocede no tempo formando um mosaico que desvenda sua trajetória até o

momento da fatídica decisão.O decadente percurso trilhado por Gretchen

passa pela forma como maculava seu corpo e seus sentimentos, pelo

alcoolismo, pelas tentativas frustradas de desenvolver uma carreira artística,

pelo trabalho doméstico como única alternativa, pela promessa de felicidade

que uma vida nova possibilita, pela vida como saltimbanco de circo e chega

até o dia em que, movido pela decepção de uma trágica apresentação e

pela percepção da oposição de interesses de vida e trabalho entre ele e seu

companheiro, decide abandonar a trupe do Circo Máximo e aventurar-se

sozinho pelas ruas de Canoa Quebrada.

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JUSTIFICATIVA

As características do circo moderno tal qual o conhecemos hoje foram

marcadas, fortemente, pela participação dos artistas populares e

saltimbancos que, durante a revolução industrial e com o declínio

comercial das feiras populares, perderam seus espaços de trabalho. Foi no

circo que esses artistas à margem desse processo civilizatório, encontraram

espaço para manterem vivas suas habilidades e sua arte vinda das ruas,

sem erudição e livre de qualquer intelectualismo. Apropriando-se

salutarmente de suas próprias desgraças criaram, nada mais nada menos,

que o Palhaço, como representação da inaptidão àquela nova realidade

produtivista, ainda que tenha sido no circo que as artes populares não

folclóricas começaram a se profissionalizar e a se comercializar. Ao longo

dos tempos o circo se difundiu pelo mundo, se modificou, ganhou ares

sofisticados de grande espetáculo em alguns casos, mas em sua maioria,

no Brasil inclusive, continua cumprindo seu papel de abrigar esses artistas

mambembes e preservar suas existências. Assim se deu com Gretchen,

personagem real resgatado em O Amor do Palhaço – Uma Paródia

Encarnada.

A história da sua vida e morte personifica a necessidade da sobrevivência

tão cara aos artistas populares de todas as áreas de atuação, assim como

a dificuldade de concretização do sonho de seus projetos artísticos.

Através desse personagem e dos erros das suas escolhas, temos a

dimensão da grandeza e da tragédia dos homens e mulheres que não

resistiram aos seus impulsos primitivos e se entregaram a aventura de fazer

arte, na vida ou no palco, e não vingaram. Gretchen é não só produto de

um meio hostil a sua sensibilidade, como vítima da sua convicção. Era ele

mesmo, em sua majestade, o bobo do povo. Condenado a ser palhaço

no circo, na vida, no sexo, na etnia, no bolso, na morte. Sua existência

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desimportante e despercebida confunde-se com a trajetória do Circo, dos

artistas e se repete no tempo. Teve o talento e não soube vender, mas

honrou seu destino até o fim, fez rir sem parar, esqueceu o racionalismo e

elaborou seu momento na mística, no sonho e na liberdade. Um palhaço

às avessas que, agonizando, desviava o olhar do espectador, tirava do

prumo, desequilibrava, instaurava o sublime no grotesco.

ABORDAGEM DO TEMA

Tradicionalmente os circos alternam em suas apresentações números em

que enaltecem o sublime e o grotesco da natureza e principalmente do

corpo humano. Utilizam-se para isso das acrobacias, do ilusionismo, dos

números de trapézio e outros, trazendo ao seu público, elementos que

causam profunda exaltação à capacidade física dos homens voadores,

das mulheres elásticas, e dos domadores de feras, para citar alguns. É

também no circo que o risível encontra no corpo e comportamento

humanos seu lugar mais apropriado. Através do palhaço, com seu andar

desengonçado, sua inabilidade completa, sua cara colorida e sua

ignorância, as platéias contemplam e divertem-se com o grotesco em sua

forma mais pura. Á ser filmado em Canoa Quebrada, praia de Aracati-Ce,

O Amor do Palhaço – Uma Paródia Encarnada, utiliza a linguagem e a

natureza dos espetáculos circenses, para contar a história e as desventuras

do personagem Gretchen, o palhaço dançarino do Circo Máximo.

Essa dualidade sublime X grotesco está presente em todo o percurso do

personagem Gretchen, que ao largar o circo e se dedicar a uma “carreira

solo”, percorre um tortuoso e decadente caminho até a morte. Sua

história, contada do fim para o começo, reforça a importância das

escolhas que fazemos na vida a todo instante. O roteiro é construído a

partir da mistura de seqüências que narram momentos aleatórios da vida

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do personagem a momentos de circo, em que são executados números

autênticos do repertório dos palhaços brasileiros. Números esses que

também contam metaforicamente os percalços vividos por Gretchen.

(Dando uma utilização dramática a reprises e entradas clássicas dos nossos

palhaços, além de refrescar e iluminar as linguagens circenses e

cinematográficas ao misturá-las).

Para que se elabore uma colagem desses momentos da vida do

personagem foge-se dos modelos narrativos convencionais, porém

mantendo a continuidade dramática e principalmente utilizando-se

fortemente dos símbolos do imaginário dos palhaços brasileiros.

ROTEIRO

1-ESTRADA - Ext./Entardecer

Sobre o asfalto áspero de uma estrada secundária, o entardecer

avermelha a paisagem. Invadindo a imagem, à esquerda, as unhas sujas,

os dedos negros e a mão largada ao chão antecipam o rosto sereno do

homem, Gretchen. Os cabelos ralos e esbranquiçados, os olhos

semiabertos, a face grudada ao sangue que suja o caminho. O corpo

caído desastradamente, aparecendo aos poucos. O peito nu, um calção

pequeno, pernas com pêlos rentes, descoloridos, a pele ressecada,

acinzentada e os pés descalços e maltratados deixam a imagem, à

direita, restabelecendo a paisagem por inteiro.

CRÉDITOS INICIAIS

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2- BECO – Ext. / Noite

Céu escuro, sem estrelas.

Riscando a escuridão a lâmpada pendurada precariamente a um poste

move-se como um pêndulo, balançando ao ritmo do vento que se ouve,

ora calmo, ora violento, misturado ao barulho das palhas dos coqueiros,

das ondas do mar e do burburinho distante de uma festa.

Parte do poste que sustenta a lâmpada e a parede deteriorada do beco

aparecem e desaparecem de acordo com o movimento da luz. Um vulto

pressionado contra a parede forma um relevo que se revela e se oculta

entre as sombras e luzes geradas pelo balançar da lâmpada. Gretchen,

em pé, prazerosamente balança o corpo em movimentos frenéticos

arrastando a cara contra o reboco áspero da parede, seu ombro mexe-se

denunciando a masturbação. Um solavanco mais brusco, um gemido alto,

leva Gretchen a olhar para trás e de cima para baixo ver o Homem

colado as suas costas, que trinca os dentes que lhe restam e aperta os

olhos, com mãos rudes puxa com força os quadris de Gretchen ao seu

encontro. A luz resvalante varre os corpos suados e seminus, o Homem

investe num movimento mais brusco e goza com os calcanhares

levantados do chão.

Gretchen, apoiada à parede recompondo-se, retira do decote da

camiseta algumas notas de valor irrisório, velhas e amassadas, e as entrega

ao Homem.

3- RUA PRINCIPAL DE CANOA QUEBRADA - Ext./Noite

Gretchen caminha indiferente às pessoas entre bares, barracas,

ambulantes e turistas, desviando enojado dos tipos humanos que

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compõem o ambiente promíscuo. O alto volume das músicas se confunde

com a algazarra das pessoas.

Ele observa as pessoas a sua volta como quem mira uma presa.

Recebe de uma mão anônima notas de valor irrisório (as mesmas vistas na

seq. anterior). Retirando-se afobado enfia o dinheiro no decote da

camiseta e continua seu caminho entre as pessoas.

Dança de forma sensual e vulgar tocando alternadamente partes de seu

corpo: orelha, olhos e boca, e dedicando-os ao seu “público” num

oferecimento provocativo. Os lábios denunciam que ele canta, mas sua

voz se perde na profusão sonora do ambiente. Interrompe o show, diante

do desinteresse das pessoas e retira-se com olhar desafiador.

Já diante de um outro “público” que aplaude e ri, corta a coreografia

servindo-se de um copo de cachaça num só gole.

Caminha altivo arrastando seu corpo decrépito e tentado chamar as

atenções para si.

ANÔNIMO (gritando em off)

Maravilhosa!!!

Gretchen olha em volta aborrecido, à procura do seu “admirador”, fixa o

olhar na direção dele(câmera) e avança sorrindo sensual e agradecido.

Bêbado, caminha repetindo cambaleante sua coreografia baixa entre as

pessoas.

Dançando e balbuciando uma música inaudível, ele toca em seu peito,

barriga e bunda, oferecendo-se àquele “público”. Terminada a dança,

sorri reverenciando a audiência, que retribui oferecendo-lhe dinheiro. Ele

recebe deixando transparecer a humilhação e a amargura. Recompõe-se

em seguida, saindo sedutor e vulgar.

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4- BOTECO - Int./Amanhecer

Gretchen, deitado no chão interrompe, pelo lado de fora, a porta de

saída do bar já fechado.

O Dono do bar, um homem jovem, tenta abrir a porta, mas a cabeça de

Gretchen o impede. Ao forçar a passagem, ele obriga Gretchen, ainda

dormindo, a afastar-se um pouco, permitindo que a porta seja aberta

parcialmente.

O Dono do bar se abaixa e balança o corpo de Gretchen tentando

acordá-lo.

DONO DO BAR

Ei cara, acorda (pausa) acorda.

Gretchen remexe-se.

DONO DO BAR

Todo dia é a mesma coisa.

Ele abre os olhos lentamente, ergue o corpo e se apóia nos cotovelos, fica

pensativo, com o olhar perdido.

DONO DO BAR

Vai pra casa.

Gretchen permanece com o olhar perdido, atordoado.

GRETCHEN ( bêbado)

Sou uma estrela internacional.

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5- CIRCO - Int. e ext./Noite.

O palhaço, Mestre de Pista está no centro do picadeiro do circo, coberto

com uma lona colorida muito velha. Ao fundo do palco, lê-se, em letras

grandes e chamativas, Circo Máximo. Dirige-se à platéia, acomodada em

arquibancadas de madeira.

MESTRE DE PISTA (Gritando para a platéia)

Quem ?

Sentados entre as pessoas do público encontram-se os palhaços Augustola

e Branquinho.

AUGUSTOLA e BRANQUINHO (gritando, irritados )

Somos estrelas internacionais.

MESTRE DE PISTA

E como vocês se chamam?

AUGUSTOLA

Eu sou o Roberto Carlos e ele é a Roberta Close.

BRANQUINHO

Não, não, não, Eu sou o Chacrinha e ele é a Chacrete?

AUGUSTOLA

Não é nada disso, eu sou...

O Mestre de Pista interrompe a discussão

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MESTRE DE PISTA

E de onde vocês vieram?

AUGUSTOLA

Ah! De longe.

MESTRE DE PISTA

Do Rio de Janeiro?

BRANQUINHO

Muito mais longe.

MESTRE DE PISTA

Já sei. Vocês vieram de Hollywood?

AUGUSTOLA E BRANQUINHO

De muito mais longe ainda.

MESTRE DE PISTA

De onde vocês vieram então?

BRANQUINHO

Nós viemos do Aracati.

MESTRE DE PISTA

E por acaso o Aracati é longe?

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AUGUSTOLA

Isso é porque o senhor não veio a pé.

6- RUA PRINCIPAL DE CANOA QUEBRADA - Ext./Dia

OBS: Toda seqüência abaixo deverá ser feita usando um travelling circular.

Ao barulho das ondas agitadas do mar, Gretchen caminha pelo centro da

rua, cambaleante, ainda bêbado, como se boiasse numa extrema

luminosidade, que deixa tudo a sua volta esbranquiçado, indefinível.

Os olhos apertados, incomodados pela forte claridade, são eventualmente

protegidos pelo antebraço.

A língua umedece os lábios ressecados. Ele engole seco, faz careta, como

quem sente um gosto amargo na boca.

Os pés trôpegos arrastam-se pela terra levantando poeira. Os quadris

rebolam sutilmente, descompassados.

Gretchen, de costas, interrompe a caminhada, espreguiçando-se

desajeitado, dá um próximo passo no instante em que se ouve uma onda

quebrar na praia.

7- CIRCO - Int. e ext./Noite.

O palhaço Mestre de Pista chega ao picadeiro irritado com a dupla

Augustola e Branquinho.

MESTRE DE PISTA

Vocês estão despedidos.

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BRANQUINHO

Então, nós estamos indo embora. Traga nossa bagagem!

MESTRE DE PISTA

O que você tem?

AUGUSTOLA

Eu tenho duas televisões, três vídeos cassetes, um aparelho de som,

uma moto...

O Mestre de Pista sai de cena e volta com uma lata de lixo cheia dos

cacarecos e revirando as coisas, larga a lata aos pés dos palhaços.

MESTRE DE PISTA

Tá aqui sua bagagem. Vocês têm um minuto pra saírem daqui.

O Mestre de Pista volta ao bastidor.

A dupla de palhaços dá voltas no picadeiro apoiados um no ombro do

outro.

AUGUSTOLA

E agora! Como é que vamos arrumar dinheiro?

BRANQUINHO

Já sei. Vamos morrer para ganhar dinheiro!

AUGUSTOLA

Como assim? Como pode?

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BRANQUINHO

Você finge que tá morto, a pessoa passa, a gente fala: “Oh, ele morreu

e a gente precisa de dinheiro pra enterrar ele!” A pessoa dá o dinheiro

e a gente sai fora!

AUGUSTOLA

Ah, então vamos lá!

Os palhaços param no centro do picadeiro.

Branquinho distancia-se e aponta o dedo indicador para Augustola.

BRANQUINHO

Atenção heim! Pum!

AUGUSTOLA

Hum, começou a baixaria!

O Mestre de Pista entra novamente no picadeiro assustando os

palhaços.

MESTRE DE PISTA

O que vocês ainda estão fazendo aqui?

Saiam agora.

Branquinho corre em direção à platéia (câmera), Augustola apanha a lata

de lixo, corre seguindo Branquinho e atira todo o conteúdo da lata na

direção do público(câmera), porém ao invés de lixo, voam pedaços de

papel colorido.

8- QUINTAL E FUNDOS DO BAR - Int. e ext./Dia

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Gretchen mais jovem, olhos brilhando, asssusta-se e em seguida ri-se

sozinho, distraído da música e das vozes das pessoas no bar lá ao fundo,

dos sons da cozinha e do quintal.

DONA DO BAR (off)

Hum, Desce daí nega. Acorda!

Gretchen, abrindo um largo sorriso acompanha com o olhar o percurso de

Jacinta que se aproxima trazendo um prato bem cheio de comida.

Gretchen olha para o prato.

GRETCHEN

Calculado, hein!

Jacinta afasta com as mãos as cascas de verdura, vísceras de peixe,

cascas de ovo e vasilhas sujas, abrindo um espaço na mesa para pôr o

prato na frente de Gretchen.

JACINTA

Prato de trabalhador.

Gretchen, sentado num tamborete, desmancha o sorriso com um muxoxo.

GRETCHEN

Uma porra!

Jacinta ri e volta ao bar.

Gretchen cruza delicadamente as pernas e apanha uma colher

esquecida ali. Sacode-a e concentra-se na refeição; desolado come uma

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galinha jogando no chão os restos e os pedaços menos nobres: pescoço,

asa, pés.

Algumas galinhas bicam o que é jogado por ele.

Jacinta volta trazendo uma pilha de pratos sujos e descarrega-os sobre a

pia do quintal, já cheia.

JACINTA

Nêga, quando acabar aí, limpa essa mesa e essa pia...

Gretchen larga no prato o osso que roia, levanta-se recolhendo o lixo da

mesa e jogando-o dentro de seu prato.

GRETCHEN

Essa louça, esse pano, esse chão, essa imundície...

JACINTA

Vixe! Que sujeita atrevida, passa a noite enchendo o rabo de cachaça,...

GRETCHEN

Bebo porque meu número exige. Faz parte da função.

JACINTA

Que função o quê criatura? Deixa dessa tua besteira. Teu tempo já passou.

Esquece essa carreira.

GRETCHEN

Esqueça você mãezinha. Pare! Você só faz me confundir...eu queria

minha vida assim.

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Gretchen retira-se irritada.

9- QUINTAL - Ext./Dia

Por trás do lençol pendurado no varal, vê-se crescendo a sombra de

Gretchen, mais jovem ainda, que se aproxima e abre o pano como uma

cortina e altivo passa pelo varal cantarolando.

Ele atravessa o quintal de chão de terra arrodeado por uma cerca velha,

onde cordas de varal se entrecruzam no ar em todas as direções,

aproxima-se de uma das cordas laterais movendo-se entre os panos e

iniciando uma dança.

Atravessa novamente o quintal girando e brincando com uma peixeira nas

mãos, faz evoluções no ar, simula golpes em si mesmo e atira a arma como

um atirador de facas.

No meio do quintal rodopia dando voltas em torno de si, sacudindo ao

vento as peças de roupa e descobrindo na brincadeira a possibilidade de

reproduzir ali um velho número de seu repertório.

Violento, exibe a boca escancarada com uma gilete sobre a língua. Altera

as peças de roupa aleatoriamente no varal, sempre cantarolando uma

música indefinida e tocando alternadamente as partes de seu corpo:

boca, nariz, orelha, peito, bunda, etc. montando o picadeiro possível, com

os panos e as roupas de cores e estampas variadas.

Rodopia com uma lata velha nas mãos, como se recolhesse gratificações

pela sua apresentação e admira-se da quantidade de moedas que fora

depositada ali. Põe a lata na cabeça como se fosse um chapéu e banha-

se com o cobre.

Gretchen tem sua dança ora revelada, ora ocultada pelos panos e pelo

percurso que faz entre eles. Vemos seu corpo ou sua sombra por trás dos

panos sempre dançando e cantarolando. À medida que passa nas

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brechas formadas pelas peças de roupa, ele sorri cumprimentando e

reverenciando um público imaginário.

10- QUARTINHO - Int./Dia

Glória, uma moça jovem, escorada a soleira de uma porta que dá para

um quintal, observa Gretchen.

Gretchen, no quartinho que começa a ocupar, vai tirando de dentro de

uma maleta de circo vários objetos: perfumes, maquiagem, e roupas de

picadeiro, guardando-as nas gavetas abertas da pequena cômoda; único

móvel além do espelho de camarim onde se lê Hollywood and me, escrito

com letras recortadas. Depara-se com o sapato velho do palhaço

Augustola, guardado sob suas roupas, no fundo da mala.

Ele toma-o nas mãos e admira-o, pensativo.

GLÓRIA

Você é... artista?

Gretchen segura o sapato contra o peito. (A palavra artista é dita ao

mesmo tempo pelos dois personagens)

GRETCHEN

Artista?...Sou.

GLÓRIA

Por aqui todo mundo é artista. Um bando de veado, maconheiro.

GRETCHEN

Eu sou artista de verdade.

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GLÓRIA

De...circo?

Gretchen observa por um instante a simplicidade do quartinho,

caminhando em direção a cômoda, guarda o sapato numa das gavetas

e mira-se no espelho.

GRETCHEN

É. Eu era artista de circo, também.

Ele fecha as gavetas da cômoda e vira-se, ficando emoldurado pela

janela e cobrindo parcialmente uma deslumbrante paisagem de dunas e

coqueiros.

GLÓRIA

E o que é que tu faz?

GRETCHEN (parte em off)

Faço de tudo: canto, represento drama, comédia, imito o povo, declamo

verso, rima...

OBS: O final da última fala é dita simultaneamente à fala do palhaço

Augustola na seqüência seguinte.

11- CIRCO - Int. e ext./Noite

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O palhaço Augustola de microfone em punho, com enorme satisfação,

narra o espetáculo próximo a cortina que separa o bastidor e o palco,

onde há a enorme inscrição Circo Máximo.

AUGUSTOLA

E o espetáculo tem prosseguimento. Agora para vocês, ela que canta;

dança; representa comédia e drama; imita o povo; declama verso e rima;

assobia e chupa cana; a palhaça dançarina Gretchen.

Ao som dos aplausos e gargalhadas da platéia, Gretchen, bem jovem,

entra usando uma mistura de roupas de palhaço e bailarina, com uma

enorme peruca pixaim e no rosto a pintura de um coração vermelho

cobrindo quase toda a cara e em volta dos olhos duas grandes estrelas

pintadas em tons de azul e branco.

A palhaça bailarina dança sensualmente ao som de uma música brega,

oferecendo alternadamente cada parte do seu corpo apontando para

alguém da platéia de acordo com a letra da canção.

CANÇÃO

...a minha boquinha é sua, e a minha orelhinha é sua, o meu peitinho é

seu, e o meu umbiguinho, é seu também...

A coberta do circo rasga inesperadamente provocando uma histeria

coletiva no público, que ao mesmo tempo aplaude, ri e vaia

descontroladamente.

Gretchen estática e apavorada com a reação das pessoas, fixa o olhar no

rasgo da lona.

O céu muito estrelado daquela noite é revelado através do buraco na

coberta que balança fortemente com o vento.

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Augustola e Branquinho surgem cada um de um canto do circo portando

instrumentos musicais bizarros feitos de lata e papelão e se dirigem ao

picadeiro.

O som da música brega é substituído por uma melodia tipicamente

circense, porém composta por sons absurdos(sonoplastia) que os palhaços

retiram de seus instrumentos.

Eles improvisam um número para garantir a atenção do público, simulando

admiração com o som produzido pelo instrumento um do outro.

Os palhaços fazem um rodízio com os instrumentos e desenvolvem assim

uma coreografia, onde eles, além de fingirem que tocam, assobiam e

dançam. Com gestos e aproximações tentam tirar Gretchen da

perplexidade passiva e incorporá-lo ao espetáculo.

O público continua descontrolado em gritos, risadas, e vaias.

Augustola e Branquinho não conseguem conter o riso enquanto tentam

controlar a situação e entram no jogo da platéia.

AUGUSTOLA

Não é pra rir não pessoal.

BRANQUINHO

Tava tudo combinado! A gente ensaiou foi muito essa parte, não foi não

dançarina? Difíiiiicil!

Augustola em meio ao espetáculo demonstra preocupação e cuidado ao

perceber o desconforto de Gretchen.

AUGUSTOLA

E ela já merece o aplauso de vocês.

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Os dois palhaços, empolgados, esquecem de tocar, contudo a música

continua, e confraternizam entre eles e a platéia, fazendo malabares com

os instrumentos, retirando objetos que revelam truques de circo de dentro

deles, dançando, apontando a lona rasgada ironicamente e zombando

da bailarina palhaça infeliz imóvel no centro do picadeiro.

12- CAMARIM - Int./Noite

No camarim improvisado dentro de um apertado trailer de circo,

Augustola, sem camisa, retira a maquiagem de palhaço sentado de frente

para o espelho enfeitado com recortes de revistas, fotos de artistas, e a

frase Hollywood and me escrita com letras de papel recortadas.

O ruído da porta anuncia a chegada de Gretchen, visto através do

espelho, ainda maquiado, mas sem peruca, sem camisa, vestido apenas

com parte do figurino do espetáculo.

GRETCHEN

Pensou que eu não vinha mais?...

Já passou.

Augustola, com parte da maquiagem desfeita, olha para Gretchen pelo

espelho e continua a retirar a maquiagem firmemente com chumaços de

algodão.

AUGUSTOLA

Não pensei nada.

Gretchen gira o corpo de Augustola e senta-se escanchado no colo dele.

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GRETCHEN

Deixa. Isso é comigo.

Ele toma o algodão sujo das mãos de Augustola e começa a retirar

cuidadosamente a maquiagem do rosto do palhaço. Augustola relaxa,

sorri e põe as mãos sobre as coxas de Gretchen.

AUGUSTOLA

Hoje foi o melhor apurado da temporada. Estou pensando que a gente dá

a entrada numa lona nova para o circo e se prepara pra arredar o pé de

novo antes de vencer a segunda prestação.

Quero te levar na Bahia. Antes de você chegar, eu fui lá.

Gretchen continua tirando a maquiagem do palhaço reclinado na

cadeira de olhos fechados.

GRETCHEN

Com essa ilusão você me mantém, né? Isso é truque seu.

A gente vive de déu em déu sem sair desse camarim.

Gretchen olha em volta.

GRETCHEN (sorrindo)

Bahia, é? Eu não pensei em chegar nem no tal Recife.

Augustola ergue-se um pouco na cadeira, segura Gretchen pelos braços,

sacudindo-o e ironizando com os trejeitos do palhaço que interpreta.

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AUGUSTOLA (com voz de palhaço)

Você está assim, mas é do cansaço, da depressão, do fracasso, né não?

GRETCHEN (sorrindo)

Eu não sirvo mais.

Gretchen empurra Augustola de encontro ao encosto da cadeira fecha os

olhos dele e volta a retirar a maquiagem restante.

GRETCHEN

Aqui vive cheio de turista pela beira da praia, cheio de dólar, se eles se

agradassem de nós, podia ser uma chance da gente ir ficando.

Vamos esperar um pouco mais por aqui.

Augustola reabre os olhos movendo a cabeça para facilitar a remoção da

pintura em seu rosto.

AUGUSTOLA

Outro dia veio um aí todo empolgado querendo fazer uma entrevista,

apavorado perguntando onde estavam as feras.

Surpreso, Gretchen para de limpar o rosto de Augustola.

GRETCHEN

E onde é que eu tava?

AUGUSTOLA

Você tava pendurado no orelhão.

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Resignado, Gretchen volta a deslizar o algodão sobre o rosto de Augustola

mais bruscamente, tentando omitir sua decepção.

GRETCHEN

Nem que seja uma vez eu vou viver a vida que eu pedi a Deus.

Gretchen retira as últimas manchas de tinta da cara de Augustola que

permanece imóvel e joga o algodão imundo no balcão do espelho.

Augustola percebe que ele terminou, abre os olhos e encara Gretchen

fixamente por um tempo. (longa pausa)

Gretchen avança e beija a boca de Augustola delicadamente,

manchando o contorno da boca dele de batom vermelho. Levanta-se e

sai. Augustola apanha o mesmo algodão e limpa suavemente em volta de

sua boca, observando através do espelho, Gretchen sair do trailer sem

olhar pra trás.

13- CIRCO - Ext./Noite

Gretchen desce os degraus do trailer e passa por Branquinho, que absorto

ouve a canção Bolero, cantada pela voz máscula de um homem velho,

através do auto falante do circo. Branquinho está sentado numa cadeira

de balanço ainda com a roupa do espetáculo brincando com um

cachorro vira-lata. À medida que Gretchen vai caminhando, a sua

imagem vai perdendo o foco, e aos poucos tudo mais vai se desfocando

também.

Bolero (Batatinha – Roque Ferreira)

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Por muitos anos vivi / Do palco ao camarim / Pra você / Me aplaudir / E se

orgulhar de mim / Fui bailarina da festa / Dancei para lhe contentar / Sorria

/ A rodar a rodar / Gastei a ilusão e a pintura / Nesta ribalta de sonhos

azuis / Num papel que destrói / Mas seduz / Aí um dia sem eu perceber /

Veio um bolero, me arrebatou / Remocei / Vivo em paz / Terminou.