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O alimento enquanto tática e estratégia1
Autora: Beatrice Corrêa de Oliveira Gonçalves – Mestranda do Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Resumo: Ao falar sobre as práticas cotidianas, Certeau (1994) em “A Invenção do
Cotidiano” considera como um dos campos privilegiados de estudo o cozinhar. Para o
autor, preparar as refeições é uma maneira de fazer do tipo tática em que ao “fraco” é
possível criar e dar golpes naquilo que foi estabelecido pelos “fortes”. Em contraposição
à tática, Certeau (1994) considera como estratégia o cálculo das relações de força que se
torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de
um ambiente. Dessa forma, enquanto a estratégia tem um lugar próprio, a tática só se
insinua e tem por lugar o do outro.
A partir desses dois conceitos, pretendo neste artigo refletir sobre dois alimentos: o
mocotó, caldo feito de pé de boi e arroz produzido pelos moradores do Morro do
Mocotó em Florianópolis, e a ostra, que foi introduzida no litoral catarinense no final
dos anos 1980 a partir da iniciativa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Enquanto no caso da ostra, é possível observar as estratégias para que o estado se torne
referência no cultivo do molusco, no caso do mocotó, que começou a ser feito no Morro
do Mocotó com restos de carne que eram descartados pelos açougues, é possível
observar as táticas populares para produzir o prato e inclusive para transformá-lo em um
símbolo do lugar, já que o nome do Morro é também o nome do prato.
Palavras-chave: alimento; tática; estratégia.
Florianópolis é, atualmente, a maior produtora de ostras do Brasil. Chega a cultivar por
ano mais de duas mil toneladas. O cultivo do molusco é algo recente na ilha. As ostras
são de origem japonesa e foram trazidas por técnicos do Departamento de Aquicultura
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no final da década de 1980 com a
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de
2014, Natal/RN.
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proposta de oferecer uma nova fonte de renda para os pescadores da cidade. O projeto
ganhou força nos anos 2000, quando a cidade aumentou a produção de mil toneladas
ano para duas mil.
O aumento na produção fez com que o molusco entrasse no cardápio dos restaurantes da
cidade. Apesar do valor baixo, uma dúzia de ostras chega a ser vendida por menos de
R$ 6, o produto esteve sempre associado a um alimento requintado e para turistas. Há,
inclusive, um forte movimento, por parte do poder público, para incentivar essa
imagem. Nas fotos de divulgação da culinária local para os turistas há sempre a imagem
de pratos feitos com o molusco.
Assim como a ostra, há uma série de outros alimentos símbolos da cidade, que nem
sempre são lembrados enquanto tal. Na região central de Florianópolis, há um morro
que se tornou conhecido, ainda no final do século XIX, pelos pratos de mocotó, caldo
feito a partir do osso da pata do boi, dobradinha, bacon, linguiça e arroz. O alimento,
que começou a ser produzido, ainda no século XIX, a partir de restos de carne que eram
descartados, costumava ser preparado em festas para comemorar eventos importantes
para os moradores, como a abolição da escravatura.
No início do século XX, quando a cidade passou por uma série de transformações
urbanas, como a construção da Ponte Hercílio Luz em 1926, o mocotó do morro se
tornou ainda mais conhecido. Segundo os moradores, os operários que trabalharam na
construção da Ponte Hercílio Luz costumavam ir até o local para almoçar e de tanto
irem lá para comer o caldo, o morro deixou de ser conhecido como Morro do Governo e
passou a ser chamado de Morro do Mocotó.
A receita do mocotó é hoje um dos saberes que têm sido transmitidos às gerações que
moram no Morro e entre os novos moradores há muitos que aprenderam a fazer o prato
quando foram morar lá. Atualmente, não se faz tanto mocotó como se fazia antes,
apesar disso, o mocotó continua a fazer parte da história do lugar e dos próprios
moradores. Quando eles contam como foi feita a ocupação do Morro sempre se faz
referência ao prato. A comida também marca momentos importantes. Quando um
político visita o Morro, costuma-se preparar o prato para oferecê-lo.
Considerando o cozinhar enquanto um campo privilegiado de estudo, como define
Certeau (1994), procurei, neste artigo, pensar nos aspectos que aproximam e
diferenciam o mocotó do Morro do Mocotó da ostra que é cultivada e servida para os
turistas, pensando nesses dois alimentos enquanto símbolos da cidade. Dois conceitos
utilizados por Certeau (1994), tática e estratégia, tem me auxiliado a pensar em algumas
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questões. Por que o mocotó não costuma ser divulgado pelo poder público como parte
da gastronomia local? Por que a ostra japonesa cultivada na cidade recebeu a dimensão
de um alimento símbolo de Florianópolis e aquele que deve ser divulgado para o
turista? De acordo com os conceitos de Certeau, seria possível pensar no mocotó
enquanto uma tática e na ostra enquanto uma estratégia? Para tentar refletir sobre essas
questões proponho um diálogo entre os trabalhos de Certeau, Foucault e Bourdieu.
Para Certeau, assim como o ato enunciativo, que opera através da apropriação e da
reapropriação, o cozinhar também é uma prática que se insere no contexto da
bricolagem. Seria, dessa forma, uma tática em que o consumidor combina elementos
heterogêneos e encontra formas de fazer que vão além do que , por exemplo, o mercado
determina ou daquilo que seria considerado saudável ou “bom para a saúde”.
Para Certeau (1994), os modos de fazer cotidianos, e nesse caso o cozinhar, vão além da
passividade e da disciplina, como havia proposto Foucault (1993) em “A Microfísica do
Poder”. Segundo Certeau, “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não
autorizada” (1994, p.38).
Para o autor, as táticas são articuladas sobre os detalhes do cotidiano e se estabelecem a
partir de uma noção de antidisciplina e de operações multiformes e fragmentadas.
Segundo Certeau, há uma lógica que organiza essas táticas que se aproxima do que o
autor denomina como “arte”. Ela não tem um lugar próprio e por conta disso, se insinua
no lugar do outro. “As táticas de consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido
do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas.”
(CERTEAU, 1994, p.45)
No caso do mocotó, o alimento se constitui enquanto uma tática quando passa a
representar uma parcela da população pobre da cidade que foi afastada das regiões mais
nobres ainda no século XIX, quando se iniciou um processo de modernização de
Florianópolis, na época chamada de Desterro. O Morro do Mocotó foi um dos primeiros
a ser ocupados na capital e cresceu sem qualquer infraestrutura do Estado. Houve
apenas nos anos 2000 um projeto de revitalização do Morro, que foi custeado pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Nesse lugar, o mocotó não só alimenta, mas identifica e dá nome ao lugar. É a comida
que ganha uma centralidade a ponto dela ser a referência para se falar da história do
lugar. Ela é a comida que o político precisa comer para dialogar com os moradores para
pedir votos. É o caldo feito daquilo que para muitos é descartado, mas que para os
moradores os deixa ainda mais fortes.
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No Morro do Mocotó, saber cozinhar está associado a uma arte de fazer, como define
Certeau. Não é algo que se aprenda em cursos é o que se aprende no dia a dia. É, dessa
forma, uma prática cotidiana que depende de um conjunto de procedimentos, ou seja, de
esquemas de operações e manipulações. “Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou
cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e
das surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte
de dar golpes no campo do outro [...]”. (CERTEAU, 1994, p.104)
Em contraposição ao que Certeau chama de tática, o autor considera como estratégia “o
cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’” (CERTEAU, 1994, p.46). A
estratégia tem, dessa forma, um lugar próprio e pode ser observada, segundo o autor, em
questões relacionadas à nacionalidade política, econômica ou científica.
No caso da ostra, é possível pensar na inserção do molusco no litoral catarinense como
uma forma de tática, tanto do poder público quanto da própria UFSC. Esses dois
sujeitos de poder estão, constantemente, trabalhando para promover o alimento,
inclusive o elegendo como um símbolo da cidade. Ao falar da ostra, costuma-se sempre
fazer referência à gastronomia francesa, elaborada e requintada, e, dessa forma, associar
a cidade ao prato é buscar esse mesmo requinte para Florianópolis.
Quando se apresentam receitas de pratos com ostras é a figura do chef quem diz como o
molusco deve ser preparado. Ou seja, há um discurso oficial, aquele que é legitimado
para falar sobre ele, porque passou pelo crivo acadêmico, já que a maior parte dos chefs
têm formação universitária.
Bourdieu também usa o conceito de estratégia ao falar sobre o casamento bearnês. O
autor considera que há uma lógica que, de certa forma, organiza as estratégias e que há
procedimentos comuns entre elas. Certeau avalia que a análise de Bourdieu abre
precedentes para a teoria das práticas, já que o autor buscaria explicar a gênese das
práticas a partir da adequação às estruturas, mas o autor a condiciona a casos
específicos. No casamento bearnês, por exemplo, as estratégias dependeriam de um
duplo vínculo dessas práticas a um lugar próprio (um patrimônio) e um princípio
coletivo de gestão (a família, o grupo). (CERTEAU, 1994, p.123)
Dessa forma, segundo Certeau, Bourdieu não via em situações que fugiam a estrutura de
sociedades tradicionais a mesma lógica. Certeau também avalia que o termo estratégia
adotado por Bourdieu é limitado porque não cabe ao indivíduo neste contexto escolher
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entre as estratégias possíveis, mas apenas repetir o passado. Haveria, nesse caso, um
sujeito passivo.
Para Certeau, tanto Bourdieu quanto Foucault fazem, o que ele chamou de um
isolamento “etnológico”, em que buscam trabalhar casos específicos, no caso de
Foucault os panópticos e no de Bourdieu o casamento entre os bearneses. Mas a partir
desses exemplos, eles fazem uma inversão lógica em que nada escapa a esses modelos,
ou seja, o panóptico vê tudo e as estratégias, conceito utilizado por Bourdieu, trabalham
para reproduzir a ordem já estabelecida.
Mesmo que Foucault se interesse pelo efeito dos seus procedimentos sobre
um sistema, e Bourdieu, pelo princípio único que têm nas estratégias os seus
efeitos, ambos executam a mesma manobra quando transformam práticas
isoladas como afásicas e secretas na peça-mestra da teoria, quando fazem
dessa população noturna o espelho onde brilha o elemento decisivo de seu
discurso. (CERTEAU, 1994, p.134).
Apesar dessas imposições, há, segundo Certeau (1994) sempre “maneiras de fazer” que
jogam com o jogo do outro. Nesse sentido, ao invés de pensar apenas na disciplina
imposta pelo poder público, Certeau fala de uma sabedoria popular. Para isso, o autor
usa o conceito de trampolinagem, “[...] palavra que um jogo de palavras associa à
acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim, e como trapaçaria, astúcia
e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais”.
(CERTEAU, 1994, p.79)
Para o autor, há maneiras de jogar e de desfazer o jogo do outro e isso acontece de
forma sutil e tenaz a partir das representações estabelecidas para fazer com e a partir
delas. “A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno
que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha”. (CERTEAU, 1994,
p.100).
Com relação ao uso e consumo de bens, Certeau (1994) propõe que ao invés de se
estudar apenas as representações dadas a esses objetos e aos comportamentos dos
sujeitos é preciso pensar no que esses consumidores “fabricam” a partir desses bens.
Nesse sentido, o autor entende “fabricação” enquanto uma produção e uma poética.
[...] esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua
ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos
próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma
ordem econômica dominante. (CERTEAU, 1994, p.39, grifos do autor)
Para o autor, a marginalidade não está apenas em pequenos grupos porque haveria uma
marginalidade de massa que une os não produtores de cultura por meio de atividades
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não assinadas, mas simbolizadas. Apesar de o autor se referir a essa marginalidade de
massa, ele observa que as formas de ação entre os grupos são diferentes e que haveria
aquelas formas menos ou mais autorizadas de acordo com as relações de força em jogo.
Diferentemente do que propõe Bourdieu (2007) em “A Distinção” em que o autor fala
de um gosto de classe, Certeau avalia que os consumidores não devem apenas ser
analisados a partir dos bens culturais que consomem e sim a partir dos repertórios que
criam com eles. Dessa forma, o autor coloca que ao invés de pensar nos programas ou
no tempo que as pessoas passam em frente à televisão seria importante pensar no que
elas fabricam a partir das imagens e da informação que elas recebem.
Certeau valoriza a noção de uso dos bens e considera que o consumo se aproxima de
uma astúcia. “[...] uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos
próprios, mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos. (CERTEAU, 1994,
p.94)
Outra crítica feita por Certeau com relação ao trabalho de Bourdieu é que ao buscar as
estruturas que organizam essas práticas, ele busca regularidades e as tenta explicar por
meio da aquisição, que nesse caso acontece através da educação. Dessa forma, seria
necessário uma interiorização das estruturas (pela aquisição) e uma exteriorização do
adquirido (habitus) em práticas.
Nesse modelo, as estruturas podem mudar ao longo do tempo, mas o que é adquirido
não. Dessa forma, segundo Certeau, a imobilidade desse processo faz com que o
sistema socioeconômico seja fielmente reproduzido nas práticas e o habitus esteja
associado à lei da reprodução. Além disso, dentro desse modelo há um ator passivo.
“[...] o habitus, que desempenha aqui o papel central: ele sustenta a explicação de uma
sociedade pelas estruturas”. (CERTEAU, 1994, p. 126)
Certeau, entretanto, vê agência nos sujeitos. Nesse sentido, por mais que a ostra neste
trabalho tenha sido associada à ideia de estratégia, já que ela faz parte da política de
divulgação da cidade por parte do poder público, ela não deve ser vista unicamente
enquanto tal. É preciso saber o que se fabrica a partir dela, quais são as táticas dos
consumidores ao prepará-las.
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Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp,
2007.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
1994.
CERTEAU, Michel. GIARD, Luce. MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano. 2.
Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.