o abandono da constituição -...

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1 Wilson Roberto Theodoro Filho O Abandono da Constituição: Soberania e Poder Judiciário no paradigma biopolítico Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, para obtenção do título de Doutor em Direito. Linha de Pesquisa 2: Constituição e Democracia - Teoria, História, Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. Orientador: Professor Pós-Doutor Miroslav Milovic. Brasília, Março de 2011.

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Wilson Roberto Theodoro Filho

O Abandono da Constituição:

Soberania e Poder Judiciário no paradigma

biopolítico

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Faculdade de Direito da

Universidade de Brasília, para obtenção do título de Doutor

em Direito.

Linha de Pesquisa 2: Constituição e Democracia - Teoria,

História, Direitos Fundamentais e Jurisdição

Constitucional.

Orientador: Professor Pós-Doutor Miroslav Milovic.

Brasília, Março de 2011.

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SUMÁRIO.

Introdução. p. 6

CAPÍTULO I – A natureza ontológica do Estado de Exceção. p. 29

1. Soberania, Direito e Exceção. p. 30

2. Poder Constituinte e Constituído: ato, potência a e a forma pura da lei. p. 46

CAPÍTULO II – Arqueologia da Exceção: autoridade e força de lei. p. 73

1. Desenvolvimento histórico do Estado de Exceção e a força de lei. p. 74

2. O Iustitium – a origem ontológica do estado de exceção. p. 99

3. Auctoritas e Potestas. Auctoritas Principis. p. 111

CAPÍTULO III – A condição biopolítica do Homo Sacer. p. 128

1. Homo Sacer: Sacralidade e Soberania. p. 129

2. Biopolítica: a Sacralidade na Modernidade. p. 160

CAPÍTULO IV – Autoridade e Estrutura Lingüística da Exceção. p. 201

1. A estrutura formal da Exceção e o fundamento da autoridade apócrifa. p. 202

2. A forma lingüística da Exceção. p. 240

CAPÍTULO V – Exceção e Poder Judiciário. p. 271

1. A autoridade do poder judiciário nas democracias contemporâneas. p. 272

2. Autoridade soberana e soberania judiciária: o abandono da Constituição. p. 308

CONCLUSÃO. p. 368

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. p. 383

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RESUMO.

A perspectiva teórica de Giorgio Agamben fundamenta-se na idéia de que a

natureza ontológica do direito e da política ocidentais está diretamente vinculada à

produção soberana de biopolítica a partir da suspensão da ordem jurídica. Em face de tal

constructo, todavia, Agamben não elabora uma reflexão sobre o papel do poder judiciário,

da Constituição e do controle de constitucionalidade na efetivação da biopolítica e do

Estado de Exceção contemporâneos. A presente tese tem por objetivo desenvolver as

conclusões teóricas do próprio Agamben em vistas da lacuna levantada, e parte da hipótese

de que, se o autor está correto em afirmar que o paradigma biopolítico do campo de

concentração domina o funcionamento estrutural das democracias ocidentais, então o poder

judiciário e a Constituição contribuem, de algum modo, para a suspensão da ordem

político-jurídica e para a definição dos espaços biopolíticos da atualidade.

Palavras-chave: Giorgio Agamben; Estado de Exceção; Biopolítica; Poder Judiciário;

Constituição; Controle de Constitucionalidade.

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ABSTRACT.

Agamben´s theory proposes that the ontological nature of law and politics is directly

linked to the sovereign production of biopolitics, essentially grounded on the suspension of

law. He does not present, however, which roles the judicial branch of power, the

Constitution and the judicial review would have in the implementation of contemporary

biopolitics and of a State of Exception. This thesis intends to develop Agamben´s own

theoretical conclusions in light of the mentioned omission, based on the hypothesis that, if

Agamben is correct in his opinion that the concentration camp´s biopolitical paradigm is

the actual underlying structural rule in western democracies, then the judicial branch and

the Constitution collaborate somehow to the suspension of law and to the definition of

modern-day biopolitical spaces.

Keywords: Giorgio Agamben; State of Exception; Biopolitics; Judicial Branch;

Constitution; Judicial Review.

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“Não, o Supremo não governa. O Supremo é um fator de equilíbrio.

Surge como um poder moderador destinado a garantir a

estabilidade e os valores nacionais, que são perenes” .

(Marco Aurélio de Mello, Ministro do Supremo Tribunal Federal, em entrevista dada

ao Conjur (www.conjur.com.br) em 22 de Março de 2006.)

“Carta para os policias. Eu estou feliz porque entraram sem dar um

tiro. Estão de parabéns. Obrigado pela nossa segurança. Eu tenho 7

anos. Obrigado policial”.

(Recado recebido por um investigador na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, em

Novembro de 2010.)

“Por favor não quebrem. Aqui mora uma trabalhadora. Eu estou na

casa da minha filha”.

(Bilhete anônimo na porta de uma casa na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, em

Novembro de 2010.)

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Introdução.

A presente tese de doutorado está intimamente relacionada com o pensamento de

Giorgio Agamben, um dos principais filósofos da atualidade para as ciências humanas. Ou

melhor, esta tese somente existe em face do constructo teórico, multifacetado e

fragmentado, desse importante autor italiano. Ela é tributária da sua perspectiva ontológica

sobre política e direito, se constrói por entre seus interstícios e lacunas, e contém a

intenção, talvez pretensiosa, de complementá-la sob um ponto de vista jurídico e judiciário.

O texto, portanto, depende e sobrevive à base do pensamento de Agamben, de modo que,

necessariamente, se constitui também através dele.

Giorgio Agamben, a despeito de ter se formado em Direito pela Universidade de

Roma em 1965 – curiosamente, com uma tese a respeito do pensamento político de Simone

Weil1, possivelmente indicando já os rumos futuros que tomaria em seu pensamento –

tratou, na primeira etapa de sua carreira filosófica, de questões vinculadas à estética, à

lingüística, à filologia, à poética, dentre outros temas não necessariamente ligados ao

direito ou à política. A partir da década de noventa, entretanto, o filósofo, influenciado por

Martin Heidegger e Walter Benjamin, passa a analisar a política, e, por conseqüência, em

vista do contraste entre Benjamin e Carl Schmitt, também o direito2.

O pressuposto do pensamento de Agamben, nesse campo, é a avaliação ontológica

sobre o direito e a política. A preocupação de seu trabalho, inspirada por Heidegger, é a de

desvendar os modos concretos de funcionamento, os modos concretos de (ou do) “ser” da

política e do direito. Em diversas passagens de suas obras, o autor insiste em que desvela,

em que expõe, as “raízes ontológicas” da política e do direito. Nessa perspectiva, pretende

1 Não publicada. 2 Não há ainda, ao que parece, nenhum texto que trate da biografia parcial de Agamben – até porque as biografias, de fato, se reservam usualmente aos mortos. De todo modo, informações sobre a carreira do autor podem ser facilmente encontradas pela rede. Dentre exemplos, pode-se citar: http://www.egs.edu/faculty/giorgio-agamben/biography/ [Acessado em 17/09/2010]. A página da Wikipédia inglesa sobre o autor também não é má: http://en.wikipedia.org/wiki/Giorgio_Agamben [Acessado em 17/09/2010].

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compreender os modos efetivos de exercício do poder, inscritos na estrutura mesma de

funcionamento dessas duas dimensões ou sistemas humanos.

É difícil, entretanto, identificar o verdadeiro ponto de partida de Agamben, o início,

por assim dizer, de sua preocupação. O cerne de sua obra, que pode ser encontrado no

grande arcabouço teórico construído ao longo dos Homo sacer I e Homo sacer II, I3, revela

não só o tortuoso caminho da escritura deste autor, como a inevitável fragmentação de um

pensamento que se erigiu lentamente, em um primeiro momento a partir de artigos que,

paulatinamente, combinados e re-combinados, foram ajuntados em um todo teórico em que

a unidade é mais temática do que propriamente lógica e seqüencial4. Cada capítulo dos

livros de Agamben é um texto fechado em si, que sobrevive como unidade mesmo fora do

contexto do restante da obra na qual se insere.

Não que inexista unidade no pensamento do autor. Ela está presente no conjunto da

obra – mas não é, de modo algum, auto-evidente. Pelo contrário, demanda um esforço de

leitura atento, em busca das conexões que se estabelecem entre textos distantes entre si, e

dos vínculos que se constroem como pontes entre várias de suas idéias, sem, no entanto,

serem explicitamente expostos por Agamben. Há um certo hermetismo em cada texto

fechado apresentado – cada um dedicado a explanar um aspecto do pensamento – e que,

junto com os demais, forma uma obra igualmente hermética. Agamben não é um autor que

se preocupa em citar extensamente os pensadores e teóricos que o inspiraram. Pelo

contrário, suas referências são poucas, seguem a utilidade do argumento que está sendo

apresentado, e costumam se fechar assim que o próprio texto-capítulo também se fecha

sobre si mesmo5.

3 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad.: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.; e AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer, II, I. Trad.: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. 4 Assim, por exemplo, vários dos capítulos do Homo sacer, I, publicado originalmente em 1995 na Itália, constam também de seu livro Mezzi senza fine, de 1996 – organizados juntamente com outros textos que não constam do Homo sacer, I. A verdade é que cada capítulo de seus livros é um todo fechado em si, coerente e organizado internamente, cujas “bordas” tocam e se relacionam com vários outros textos de sua produção filosófica, muito além do capítulo anterior e do capítulo sucessor. Não à toa, a sensação de repetição de temas, e, até mesmo, de frases inteiras idênticas, durante a leitura de Agamben, é comum e constante. 5 Que parte desse hermetismo tenha se transferido para a maior parcela da presente tese pode ser atribuída à inevitável ação do pathos da reflexão que depende do próprio pensamento hermético para existir. Como é o

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Não há, portanto, um único ponto inicial para sua reflexão – em verdade, ela

começa por muitos e vários temas, ao mesmo tempo; temas espalhados por artigos que

ajuntados viraram livros, que agregados formaram um sistema filosófico de pensamento.

Mas esses pontos de partida múltiplos, co-existentes, co-presentes, são, felizmente, de

identificação pouco problemática. O texto de introdução ao Homo sacer, I traz em seu

interior já praticamente todas as referências teóricas principais, que são apropriadas e

desenvolvidas por Agamben sempre à luz do pressuposto ontológico inicial, da busca pelo

modo de ser da política e do direito.

A ordem de menções no referido texto introdutório não é de todo importante. Em

primeiro lugar, há a referência a Michel Foucault, e a seu conceito de biopoder6. A idéia de

biopolítica, ainda que originalmente tomada emprestada, é, provavelmente, junto com o

conceito de homo sacer, a mais famosa das elaboradas por Agamben. Pelos caminhos que o

autor envereda, bem diversos da idéia original de Foucault, a biopolítica torna-se o

paradigma, ou melhor, a raiz ontológica da política, e, principalmente, da política na

modernidade.

A segunda menção é a Hannah Arendt – inicialmente citada pela análise presente

em A Condição Humana7, sobre o processo que leva o homo laborans8, ou seja, a

caso da atual relação entre este texto e a filosofia de Agamben. Procurou-se, todavia, escapar desse hermetismo – onde, e quando, foi possível. 6 Apresentada em A Vontade de Saber. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber.Trad.: José Augusto Guilhon Albuquerque. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. Conforme sugerido por Foucault, a biopolítica representaria a tendência, concretizada nos Estados modernos, de colocar a vida biológica humana no centro das preocupações políticas estatais. O controle biométrico da população, o recolhimento de dados sobre a saúde física e mental do povo, a construção de políticas públicas voltadas para “moldar” a vida natural das pessoas tornam-se, dentre outros fatores, questões centrais para as organizações estatais. Ocorre a transição do que Foucault chama de “Estado Territorial” para o “Estado de População”, no qual o Estado volta-se para o controle e regramento do corpo, da saúde, de seus cidadãos, na medida em que a força política do povo, e do Estado, é vista como diretamente dependente da qualidade da vida biológica desse mesmo povo. 7 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad.: Roberto Raposo. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. De fato, sob uma perspectiva ligeiramente diferente da de Foucault e Agamben, e a despeito de não se utilizar da expressão “biopoder” ou “biopolítica”, Arendt também estuda o processo através do qual a política passou a ter em seu núcleo a preocupação com a vida e os modos de vida humanos, cuja manutenção e reprodução se tornaram seu elemento característico. A autora, tanto nesta obra como em outros artigos, traça uma extensa reflexão sobre quais foram as circunstâncias filosóficas, políticas, religiosas, científicas e históricas que conduziram à substituição da idéia de política como liberdade para política como

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existência humana biológica enquanto tal, a ocupar o centro da política na modernidade. A

preocupação, de fato, se estende para a reflexão sobre o totalitarismo, e, por conseqüência,

sobre o campo de concentração9. Agamben articulará, a partir daí, em que medida o campo

de concentração é a expressão máxima da biopolítica, e como a figura do refugiado

proposta por Arendt – homem totalmente desposado de seus direitos, sejam civis, sejam

humanos – é a imagem idêntica do homem preso ao campo de concentração, e,

potencialmente, de todos os homens sujeitos a um biopoder. O homem sem direitos é,

nesses termos, o homem submetido à exceção jurídica – e a biopolítica está para a política

assim como a exceção está para o direito.

A terceira menção é a Carl Schmitt – autor a que Agamben chega pela influência

decisiva de Walter Benjamin10, e de quem se utiliza principalmente do conceito de

soberania11, mas também da problemática acerca do “nomos da terra”12, especialmente em

seu aspecto relativo à forma pela qual o indivíduo humano é inscrito e diferenciado em uma

estrutura estatal, e, desse modo, integrado politicamente em um determinado povo. Os

conceitos de biopolítica (e, por conseqüência, como se verá, de vida nua), de soberania, de

campo de concentração e refugiados, de direito e exceção, são, junto com suas inter-

relações, os pilares teóricos cuja investigação constituirá e sustentará o pensamento de

Agamben.

conservação da existência humana. Lamentavelmente, a perspectiva é extensa demais para ser tratada na presente tese. De particular interesse para o tema, além de “A Condição Humana”, ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Trad.: Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. 8 O homo laborans corresponde, grosso modo, tanto à vida nua quanto ao homo sacer propostos por Agamben. 9 Temas desenvolvidos principalmente em Origens do Totalitarismo, extenso livro no qual a autora apresenta sua perspectiva acerca de totalitarismo, imperialismo e anti-semitismo. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad.: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 10 Cuja estranha admiração teórica pelo pensamento de Schmitt causa ainda hoje espanto e dúvidas quanto ao quê de fato pensava Benjamin sobre política. Assim, por exemplo, Derrida – que também é uma das influências de Agamben, ao analisar o famoso texto Crítica da Violência (ou Crítica do Poder), de Benjamin, entende que as idéias dele aproximam-se demasiadamente de uma justificação, ou aceitação teológica, do Holocausto. O pensamento de Benjamin, por outro lado, será ainda fundamental para Agamben na reflexão acerca das relações entre poder constituinte, poder constituído e soberania. Sobre este tema, e suas referências bibliográficas, ver a discussão no Capítulo I. 11 Conceito este que, menciona Agamben, é renegado por Foucault, em uma perspectiva analítica de poder liberto da totalização moderna realizada pelo direito. A via até Schmitt é, portanto, dupla. Agamben, por sinal, tampouco demonstra simpatia pela idéia de soberania.

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Antes de qualquer referência a Foucault, Arendt, Schmitt ou Benjamin, entretanto,

Agamben desenvolve uma reflexão acerca de como pensavam os gregos, Platão e

Aristóteles, sobre vida e política. Tal circunstância revela a técnica de pesquisa, ou de

raciocínio, de Agamben: a arqueologia dos conceitos. Arqueologia esta “ontologicamente

ontológica”.

Essa arqueologia, em verdade, é que pode ser considerada o verdadeiro ponto de

partida teórico de Agamben. A busca pela “raiz ontológica” do direito e da política, capaz

de explicar o fenômeno da biopolítica, e, por conseqüência, a condição biopolítica da

modernidade, está profundamente ancorada na análise de estruturas políticas e jurídicas

“extremas”13, limítrofes, independentemente de qualquer conexão histórica concreta com o

tempo atual.

De fato, o autor não parece muito preocupado com a História – ou melhor, ele

menciona a História para ilustrar a ontologia que acredita ter revelado, mas não utiliza a

História em sua reflexão ontológica em si. Pelo contrário, o seu foco é o modo de ser,

virtualmente “a-histórico”, da política e do direito. A sua tese é a de que, ao final, o que

política e direito são hoje já estava inscrito em seu interior desde o começo, desde que

existem política e direito. Nesse sentido, a política sempre foi biopolítica, e o direito

sempre foi exceção.

Tal conclusão, entretanto, é o resultado quase final de diversas e diversas leituras e

re-leituras do pensamento de Agamben, bem como de suas principais referências – não

convém, assim, queimar etapas, sob pena de que esta Introdução, para os leitores que

desconheçam o autor, se assemelhe a um papiro repleto de hieróglifos; é melhor que se

volte ao começo. A primeira das arqueologias de Agamben é, como citado, sobre o que

Aristóteles e a filosofia política grega tinham a dizer a propósito da relação e da diferença

entre política e vida. `

12 Sobre o tema, ver: SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra en el Derecho de Gentes Del “Jus publicum europaeum”. Trad.: Dora Schilling Thon. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1979. 13 Em diversas passagens de sua obra, Agamben menciona os “extremos”, ou os exemplos e institutos “limites”, como aqueles nos quais é possível entrever a concreta natureza ontológica da política e do direito.

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A evolução da política ocidental, em sua perspectiva, pode ser compreendida como

a paulatina introdução da idéia de vida, tomada tão-somente como vida biológica, nas

questões e nos debates ligados ao universo político humano. Ou seja, o cerne da política

atual tem como preocupação eminente e central as questões vinculadas à vida natural

humana, as quais, original e supostamente, não se ligavam aos problemas de natureza

política:

Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo.14

Logo, o universo político grego – que o autor considera o local de origem da

política e do pensamento político ocidentais – era aparentemente marcado pela existência

de uma clara distinção entre a vida natural e a vida política, ainda que ambas fossem

inerentes ao homem. No entanto, enquanto a vida biológica se relaciona à dor e ao prazer, a

vida politicamente qualificada se vincula à existência de uma comunidade que se constrói

em torno de conceitos de bem e mal, justiça e injustiça.

Tal distinção, portanto, excluía da atividade política os temas essencialmente

ligados à vida biológica. A vida não entrava e não devia entrar na cidade. Em outros

termos, a questão da vida não era politicamente tratada e nem sequer considerada como

relevante para os debates no espaço público. Era relevante, em verdade, a sua completa

exclusão do debate político:

A simples vida natural é, porém, excluída, no mundo clássico, da pólis propriamente dita e resta firmemente confinada, como mera vida reprodutiva, ao âmbito do oîkos (...). No início de sua Política, Aristóteles usa de todo zelo para distinguir o oikonomos (o chefe de um empreendimento) e o despótes (o chefe de família), que se ocupam da reprodução da vida e de sua subsistência, do político e escarnece daqueles que imaginam que a diferença entre eles seja de quantidade e não de espécie. E quando, em um trecho que deveria tornar-se canônico para a tradição política do Ocidente (...), define a meta da comunidade

14 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 9.

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perfeita, ele o faz justamente opondo o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (tò eû zên) (...).15

Entretanto, a política moderna caracteriza-se, em aparente oposição às suas origens

gregas, pela introdução da vida natural na vida política. Tal vida natural sai de seu

tradicional âmbito econômico e privado para penetrar no interior da pólis. Ou,

paralelamente, a pólis avança sobre a vida biológica, eliminando os espaços privados.

Deixa de existir a diferença entre a vida politicamente qualificada e a simples vida

biológica, na medida em que a vida natural converte-se em fato e tema político, e vice-

versa16.

As questões imanentes ao viver biológico dos homens passam não só a servir de

tema político, como, mais ainda, a ocupar o centro das questões e dos debates políticos

vinculados à atuação e funcionamento do Estado moderno. Em verdade, tornam-se o tema

político por excelência, tornam-se a política. Tal fenômeno se dá no interior da constituição

do chamado “Estado de população”, conforme proposto por Foucault:

É em referência a esta definição que Foucault, ao final da Vontade de Saber, resume o processo através do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa, por sua vez, a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica (...). Segundo Foucault, o “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade situa-se no ponto em que a espécie e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que está em jogo nas suas estratégias políticas. A partir de 1977, os cursos no Collège de France começam a focalizar a passagem do “Estado territorial” ao “Estado de população” e o conseqüente aumento vertiginoso da importância da vida biológica e da saúde da nação como problema do poder soberano, que se transforma então progressivamente em “governo dos homens” (...).17

A vida nua, nesse sentido, pode ser encarada como o elemento central dos espaços

públicos e políticos das democracias modernas18. Essa vida nua nada mais é do que a

15 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 10. 16 Em termos jurídicos clássicos, haveria uma dissolução e uma confusão das esferas pública e privada. 17 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 11. 18 Agamben, já ao final do Homo sacer, I, fornece uma explicação para a expressão “vida nua”, que corresponde à pura vida biológica isolada da esfera política, ainda que incluída na política por meio de sua exclusão (conforme será analisado mais à frente): ““Nua”, no sintagma “vida nua”, corresponde aqui ao termo haplôs, com o qual a filosofia primeira define o ser puro. O isolamento da esfera do ser puro, que constitui a realização fundamental da metafísica do Ocidente, não é, de fato, livre de analogias com o isolamento da vida nua no âmbito de sua política. Àquilo que constitui, de um lado, o homem como animal pensante, corresponde minuciosamente, do outro, o que o constitui como animal político. Em um caso, trata-se de isolar dos

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simples vida biológica presente em qualquer ser humano, simplesmente por ser –

ontologicamente – humano, independentemente de quaisquer formas de vida e vivência,

identidade e diferença, que concretamente existam entre as pessoas.

A vida nua pode ser referencialmente isolada em qualquer ser humano, na medida

em que não depende de quaisquer outras circunstâncias além da própria existência da vida

e, segundo Agamben, constitui o objeto da política moderna. As questões biológicas,

portanto, que anteriormente não recebiam nenhuma espécie de tratamento político no

interior da pólis, tornam-se o núcleo do debate público e do exercício do poder político, a

partir da Idade Moderna:

Por outro lado, já no fim dos anos cinqüenta (...) Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva o homo laborans e, com este, a vida biológica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena política do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sobre a ação política que Arendt fazia, aliás, remontar a transformação e a decadência do espaço público na sociedade moderna (...). A morte impediu que Foucault desenvolvesse todas as implicações do conceito de biopolítica e mostrasse em que sentido teria aprofundado ulteriormente a sua investigação; mas, em todo o caso, o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade (...).19

De acordo com o raciocínio que vem sendo apresentado, é a própria estrutura

jurídica, política e institucional das comunidades políticas modernas que instaura um

modelo biopolítico, ou seja, um modelo no qual a vida natural se encontra no cerne das

preocupações políticas e estatais. A isto corresponde o necessário isolamento, e

tematização, da vida nua, ou, em outras palavras, da vida que não se qualifica, que não se

caracteriza, por nada além do fato de ser simplesmente vida.

A transição para a Modernidade implica, tendo em vista a questão do poder nas

comunidades modernas, o estabelecimento de uma estrutura institucional e jurídica que se

ampara em preocupações de ordem eminentemente biopolíticas, ou seja, que tem a vida

multíplices significados do termo “ser” (que, segundo Aristóteles, “se diz de muitos modos”), o ser puro (òn haplôs); no outro, a aposta em jogo é a separação da vida nua das multíplices formas de vida concretas. Ser puro, vida nua – o que está contido nestes dois conceitos, para que tanto a metafísica quanto a política ocidental encontrem nestes e somente nestes o seu fundamento e o seu sentido?” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 187-188.

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nua, biológica – e o problema do seu valor, da sua dignidade – como atividade primordial,

como razão de funcionamento e fundamento de existência e atuação. Não à toa, a

segurança, como simples proteção à vida dos cidadãos, é um dos temas centrais do debate

político e jurídico da maior parte das sociedades atuais20.

Nesse sentido, os conceitos de soberania e de poder soberano, entendido este como

o poder que pode decidir e instituir uma situação de exceção21, de suspensão da ordem

jurídica, são fundamentais para a compreensão e funcionamento das ordens estatais

modernas, e servem de vínculo, de ponto de encaixe, entre a estrutura jurídica e

institucional das comunidades políticas modernas e a biopolítica:

A presente pesquisa concerne precisamente este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. O que ela teve de registrar entre os seus prováveis resultados é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder

19 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 11-12. 20 O vínculo entre segurança, polícia e poder executivo, quase evidente em qualquer simples análise, adquire novas conotações à luz da problemática proposta por Agamben. Ver, a respeito, o Capítulo I. Por outro lado, a histeria quase sempre desencadeada em torno do debate acerca da legalização do aborto, nos mais diversos países do mundo, possivelmente guarda alguma relação com a onipresença da preocupação biológica e biopolítica na mentalidade moderna. É a vida nua do feto – talvez a única completamente nua – que precisa ser politicamente protegida pelo Estado. Ou descartada, como na hipótese dos fetos especialmente preparados para inseminação artificial, que, após alguns anos, transformam-se em uma paródia de vida. Esse é, possivelmente, o cerne do problema biopolítico – a proteção política da vida, por si só, por ser vida, parece implicar, necessariamente, a possibilidade de eliminação política dessa mesma vida, também por si só, também por ser vida, em face do julgamento de seu suposto valor ou desvalor intrínseco. 21 Agamben pensa no conceito de soberania proposto por Carl Schmitt: “A definição schmittiana de soberania (“soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”) tornou-se um lugar-comum, antes mesmo que se compreendesse o que, nela, estava verdadeiramente em questão, ou seja, nada menos que o conceito-limite da doutrina do Estado e do direito, no qual esta (visto que todo conceito-limite é sempre limite entre dois conceitos) confina com a esfera da vida e se confunde com ela.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 19. Especificamente sobre a definição de Carl Schmitt, ela é idêntica ao mencionado por Agamben em seus parênteses. Interessante para compreender porque a soberania schmittiana é particularmente importante para o pensamento de Agamben é o parágrafo seguinte proposto por Schmitt, logo abaixo de sua definição: “Essa definição, em si, pode fazer jus ao conceito de soberania como um conceito limítrofe, pois conceito limítrofe não significa um conceito confuso como na turva terminologia da literatura popular, mas um conceito da esfera extrema. A isso corresponde que a sua definição não pode vincular-se ao caso normal, mas ao caso limítrofe. Na seqüência ficará claro que, aqui, deve entender-se, sob estado de exceção, um conceito geral da teoria do Estado, mas não qualquer ordem de necessidade ou estado de sítio. O fato de o estado de exceção ser adequado, em sentido eminente, para a definição jurídica da soberania possui um motivo sistemático, lógico-jurídico. A decisão sobre a exceção é, em sentido eminente, decisão, pois uma norma geral, como é apresentada pelo princípio jurídico normalmente válido, jamais pode compreender uma exceção absoluta e, por isso, também, não pode fundamentar, de forma completa, a decisão de que (sic) um caso real, excepcional.” In: SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad.: Elisete Antoniouk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.7. Como se pode perceber, Agamben deve muito a Schmitt.

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soberano. Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii. 22

A biopolítica, portanto, seria o resultado prático da própria idéia de soberania – sua

conseqüência e sua marca nos campos político e jurídico. O poder político existe onde há

vida nua – ou, o poder político existe na medida em que produz vida nua, desnudando a

vida de suas formas de existência concreta, reduzindo-a a seu mero componente biológico.

Sob outro ângulo, o poder soberano, atuando por meio da exceção jurídica, constitui a

forma pela qual os modelos biopolíticos se instauram na modernidade. Soberania, exceção,

biopolítica e vida nua são as várias faces de um mesmo fenômeno, profundamente

dependentes umas das outras.

Tal relação entre soberania e vida nua, biológica, porém, estaria já no cerne

primordial da política ocidental. A oposição aristotélica entre o viver da vida biológica, e o

viver bem da vida politicamente qualificada na pólis, termina por resultar em uma

implicação da vida natural na vida política. Implicação que se dá por meio de uma

exclusão, que, todavia, termina por trazer sempre o tema excluído de volta para dentro da

política. Ou seja, excluir a vida biológica da política significa, também, tornar o tratamento

dessa vida nua um problema político, que se insinua na pólis justamente por ter sido dela

excluído.

Dentro de tal lógica, parece que a questão política original sempre foi essa: como

tratar a vida natural no interior da vida politicamente qualificada? Ou, em outros termos: na

medida em que a vida natural existe como fato concreto, mas está teoricamente excluída da

política, pois difere da vida politicamente qualificada – que também existe como fato

concreto –, o que se pode, o que se deve fazer, no campo propriamente político, com tal

vida meramente biológica?

22 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 14.

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Se isto é verdadeiro, será necessário considerar com renovada atenção o sentido da definição aristotélica da pólis como oposição entre viver (zên) e viver bem (eû zên). A oposição é, de fato, na mesma medida, uma implicação do primeiro no segundo, da vida nua na vida politicamente qualificada. O que deve ser ainda interrogado na definição aristotélica não são somente, como se fez até agora, o sentido, os modos e as possíveis articulações do “viver bem” como télos do político; é necessário, antes de mais, perguntar-se por que a política ocidental se constitui primeiramente através de uma exclusão (que é, na mesma medida, uma implicação) da vida nua. Qual é a relação entre política e vida, se esta se apresenta como aquilo que deve ser incluído através de uma exclusão?

A estrutura da exceção, que delineamos na primeira parte deste livro, parece ser, nesta perspectiva, consubstancial à política ocidental, e a afirmação de Foucault, segundo a qual para Aristóteles o homem era um “animal vivente, e, além disso, capaz de existência política”, deve ser conseqüentemente integrada no sentido de que, problemático é, justamente, o significado daquele “além disso”. A fórmula singular “gerada em vista do viver, existente em vista do viver bem” pode ser lida não somente como uma implicação da geração (ginoméne) no ser (oûsa), mas também como uma exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis, quase como se a política fosse o lugar em que o viver deve se transformar em viver bem, e aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua. A vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens.23

O problema relativo à exclusão da vida nua do âmbito político poderia ser

comparado, nessa seara, à diferença que existe entre a capacidade humana de produzir som,

de ter voz, e a capacidade humana de articular esse som em uma linguagem. Na medida em

que a articulação da linguagem depende simultaneamente da manutenção e da exclusão da

voz individual de cada ser humano – porque, ao mesmo tempo em que a língua existe

apenas como uma abstração das vozes humanas individuais, somente permanece viva

quando efetivamente falada por homens24 –, também a vivência política dependeria da

inclusão e da exclusão simultânea da vida nua dos seres humanos que constituem a

comunidade política, pois nela não pode estar incluída a vida biológica de seus membros

para que ela se constitua como comunidade política, mas, sem a existência real da vida de

indivíduos que a ela pertencem, a comunidade simplesmente não existe25.

23 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 14-15. 24 Em termos mais simples, uma língua somente existe individuada enquanto modelo teórico não falado, mas sua vida concreta, ou seja, sua existência factícia, depende da realidade de que os homens a falem. Assim, o latim clássico existe, mas não “vive”. 25 Em complemento ao paralelo traçado entre linguagem e política, a comunidade política só existe (se constitui) sem a presença da vida nua biológica, mas apenas “vive” através dos homens reais, concretos, e de suas vidas nuas biológicas. Essa é uma das aporias centrais do pensamento de Agamben, em cuja possível e ainda inexistente solução ele enxerga uma das “saídas” para a política moderna. Por outro lado, a comparação da comunidade política e do próprio funcionamento da política com a linguagem é uma das sugestões centrais para a atual tese, a ser desenvolvida no Capítulo IV.

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O campo do político, portanto, mesmo em seus primórdios, quando pretendia não se

relacionar com o mero aspecto “vivente” do ser humano, justamente por tentar excluir a

vida biológica do seu rol de temas e questões, terminou por incluí-la de imediato no

conjunto das reflexões políticas. Isso porque, assim como é impossível articular a

linguagem sem a voz, é igualmente impossível articular a vida política sem a presença de

vida biológica.

A pergunta: “de que modo o vivente possui a linguagem?” corresponde exatamente àquela outra: “de que modo a vida nua habita a pólis?” O vivente possui o lógos tolhendo e conservando nele a própria voz, assim como ele habita a pólis deixando excluir dela a própria vida nua. A política se apresenta então como a estrutura, em sentido próprio fundamental, da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre o ser vivente e o logos. A “politização” da vida nua é a tarefa metafísica por excelência, na qual se decide da humanidade do vivente homem, e, assumindo esta tarefa, a modernidade não faz mais do que declarar a própria fidelidade à estrutura essencial da tradição metafísica. A dupla categoria fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva.26

A política moderna, tendo em vista principalmente sua configuração assumida nas

comunidades políticas ocidentais, diferenciar-se-ia, destarte, da política grega clássica, tão-

somente pela existência de uma tentativa clara e consciente de tematizar politicamente a

vida biológica. A emergência da vida biológica como núcleo central do debate e da atuação

políticas seria, desse modo, a marca da modernidade, em oposição à política clássica, que

mantinha este problema oculto.

Ao invés de uma vida politicamente qualificada oposta à vida biológica, a política

moderna tenta encontrar uma espécie de forma política da vida biológica, ou, em outros

termos, procura-se pela bíos da zoé – ou, pela forma de vida política da vida nua despida de

26 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 15-16. A idéia de que o elemento definidor da política seria o par amigo-inimigo é originalmente apresentada por Carl Schmitt – que vê o campo do político delimitado por essa distinção, como, por exemplo, o campo da estética é delimitado pela distinção belo-feio. A conclusão de Agamben é a de que, a partir do conceito de soberania proposto pelo próprio Schmitt, o verdadeiro cerne da política é a categoria vida nua-existência política (vida-nua excluída-existência política que depende da inclusão da vida nua), e não o par baseado na inimizade. Em relação à categoria de amigo-inimigo, ver: SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Trad.: Hans Georg Flickinger. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.

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todas as formas de vida. A justiça e a injustiça, o bem e o mal, que antes se localizavam na

vida política da comunidade, transmudam-se para a vida biológica individual do ser

vivente, tematizada e valorada politicamente. A qualidade das formas de vida, bem como

seu valor, migra da política para a biologia, e, por conseqüência, para um possível e suposto

juízo científico biológico.

Evidentemente, a política não pode encontrar na ciência biológica um critério

político satisfatório para a avaliação valorativa das formas de vida27. A incapacidade da

política em encontrar uma solução ao menos provisória para a cisão existente entre vida nua

e vida política, e para o problema da exclusão inclusiva que sustenta essa relação cindida,

constitui, para Agamben, tanto a base metafísica da política ocidental, como seu grande e

grave problema pendente.

Contrapondo, no trecho supracitado, o “belo dia” (euemería) da simples vida às “dificuldades” do bíos político, Aristóteles teria dado talvez a formulação mais bela à aporia que encontra-se na base da política ocidental. Os vinte e quatro séculos que desde então se passaram não trouxeram nenhuma solução, tanto menos provisória e ineficaz. A política, na execução da tarefa metafísica que a levou a assumir sempre mais a forma de uma biopolítica, não conseguiu construir a articulação entre zoé e bíos, entre voz e linguagem, que deveria recompor a fratura. A vida nua continua presa a ela sob a forma de exceção, isto é, de alguma coisa que é incluída somente através de uma exclusão. Como é possível “politizar” a “doçura natural” da zoé? E, antes de tudo, tem ela verdadeira necessidade de ser politizada ou o político já está contido nela como o seu núcleo mais precioso?28

Na perspectiva de Agamben, portanto, a política moderna democrática, por

exemplo, não é simplesmente o processo de formação das vontades das maiorias, mas sim a

permanente tematização da vida natural dessas maiorias. Seu vínculo com o direito se

realiza a partir da soberania, que é o elemento que, possibilitando a suspensão da ordem

jurídica, permite a emergência de um corpo biopolítico, ou seja, da política centrada na vida

biológica. Política e direito seriam, para ele, sincrônicos e co-dependentes, dois lados de

uma mesma moeda.

27 Deste problema resultam, nesta perspectiva, os racismos, o anti-semitismo, o arianismo, e vários outros “ismos”. 28 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 18.

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Esse é, grosso modo, um rápido resumo do pensamento de Agamben, embasado no

resumo que ele mesmo faz de si próprio. Que os temas por ora apresentados terão que ser

estendidos e explanados no corpo deste texto é uma circunstância impositiva. O esboço ora

traçado, entretanto, revela, desde já, a ausência que constitui a inspiração original para esta

tese29. No longo tratamento da relação entre política e direito, e, principalmente, ao abordar

essa relação na modernidade, o autor virtualmente não menciona nem a emergência das

Constituições30, nem o poder judiciário e sua relação com a Constituição.

E, por conseqüência, absolutamente não toca no problema da jurisdição

constitucional e do controle de constitucionalidade.

Ao tratar das relações entre política e direito, biopolítica e exceção, de um ponto de

vista institucional, Agamben identifica na emergência da biopolítica moderna a

transferência da possibilidade de instaurar-se a situação de exceção (que “pertencia” ao

poder legislativo – ou, ao menos, a uma atuação conjugada31 do poder executivo com o

poder legislativo) para o poder executivo, que cada vez mais, no desenrolar da

modernidade, dispensa (assume) a autoridade legislativa para implementar por iniciativa

própria a exceção, e, eventualmente, tornar-se, simultaneamente, o efetivo legislador e

“excepcionador”. Logo, também soberano.

A análise crítica de Agamben aponta, aparentemente, para a existência de uma

ilegitimidade constitutiva, ontológica, tanto da política quanto do direito. Nessa

29 É importante ressaltar que não há um motivo racional para a escolha do tema desta tese. O texto, suas hipóteses e objetivos, emergiram da leitura de Agamben, através dela, e não previamente – e, é justamente por isso que deve ser considerado como uma reflexão anexa, que toma Agamben por base e fundamento a partir dos quais se desenvolve. O motivo, ou motivos, para a escolha de Agamben, entretanto, quando não havia a princípio nem dúvida, nem tese, nem hipóteses, escapam ao conhecimento consciente do autor. Possivelmente nem existam. Esse, muitas vezes, é precisamente o rumo de pesquisa nas ciências humanas. Ainda que, muitas vezes, se afirme justamente o contrário. 30 Um curto tratamento sobre a idéia de Constituição é dado ao se apreciar a problemática do “refugiado”, do homem privado de seus direitos civis, que tampouco recebe a proteção de direitos humanos “universalmente válidos”. A questão, no entanto, é apreciada de fato pela perspectiva dos direitos humanos em sua potencial e falsa aceitação internacional incondicional, e não de um ponto de vista constitucional. Por outro lado, é bem verdade que Agamben lida extensamente com a problemática relativa a poder constituinte e poder constituído. Em nenhum momento, porém, traça sua reflexão sobre qual seria o papel, ou o locus, da Constituição, nesse cenário. 31 Que se dá por meio da cisão entre poder e autoridade. Ver Capítulo I.

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perspectiva, a política é já em seu começo biopolítica, o direito é já em seu começo

exceção. E sempre serão, enquanto forem política e direito. Se isto é aceito como

teoricamente verdadeiro, ou pelo menos aceitável, não parece possível, entretanto, condenar

o direito ao papel de original e eterno instaurador da situação de exceção jurídica – que, à

primeira vista, seria o seu contrário – sem avaliar qual é a função do poder judiciário em

sua lógica estrutural de funcionamento.

Que a análise da política seja em um primeiro momento restringida apenas ao

legislativo e ao executivo, ainda que questionável, é aceitável. Que a análise do direito se

restrinja exclusivamente a esses dois poderes, porém, é incrível (no sentido original da

palavra). É difícil imaginar uma razão, um motivo, para o fato de que Agamben

simplesmente não encontre um lugar, e nem mesmo se preocupe em refletir sobre isso, para

o poder judiciário em sua proposta teórica. Se por um lado o direito é a lei legislada –

vinculando-se, desse modo, ao poder legislativo –, ele é também aplicação da lei32 –

vinculando-se, por excelência, classicamente, ao poder judiciário.

A ausência desta reflexão causa ainda maior espanto diante da complicação, para

qualquer teoria de separação de poderes, que a emergência do fenômeno constitucional e

constitucionalista trouxe ao funcionamento institucional das comunidades políticas

ocidentais. A Constituição, por funcionar ao mesmo tempo tanto como fundamento

institucional da política quanto do direito33, tem a pretensão de ser, simultaneamente, a

decisão política acima da política que se desenvolve a partir dela, bem como a lei primeira

acima das demais leis, as quais retiram sua legitimidade não só de sua origem legislativa,

mas também da sua consonância material e formal com as disposições constitucionais.

A chamada tese da “supremacia da Constituição”, que tem conseqüências

simultaneamente políticas e jurídicas, é recorrente no pensamento constitucionalista

moderno, e, em especial, resulta em uma série de tentativas institucionais de garantir sua

32 O próprio Agamben, ao tratar do problema do estado de exceção em Schmitt, aborda a diferença entre a lei e a aplicação concreta da lei. Que, neste espaço, ele não tenha refletido sobre o papel do judiciário é, no mínimo, inexplicável. 33 Na medida em que o próprio Agamben também ressalta a profunda conexão entre direito e política, fica cada vez mais difícil tentar entender a ausência da Constituição em sua reflexão.

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existência e manutenção. Assim, o estabelecimento de cláusulas pétreas, as exigências de

quórum qualificado para alteração do texto constitucional, e a própria idéia de controle de

constitucionalidade – como mecanismo exercido no intuito de interpretar a Constituição em

garantia de sua condição de norma política e jurídica suprema – são recursos institucionais

comuns, encontrados na maior parte das democracias contemporâneas.

Grosso modo, a idéia de supremacia da Constituição, tomando-se o texto

constitucional como direito, é o exato oposto da exceção jurídica, da possibilidade de

suspensão do direito. Em verdade, o pressuposto constitucionalista pode ser encarado, nessa

perspectiva, como a pretensão de que não existam, simplesmente, exceções em relação à

Constituição34. Os mecanismos elencados no parágrafo anterior são, em última instância,

tentativas de impossibilitar a exceção constitucional35, tanto ao longo do tempo, quanto em

cada momento específico de aplicação da lei e da Constituição. Nada disso foi analisado

por Agamben, e esse é o interstício, a lacuna por onde se desenvolverá o presente texto.

A tese que se pretende articular é, genericamente, a de que, se o direito é, em sua

raiz ontológica, desde sempre exceção, então há, na conexão entre exceção e biopolítica,

um papel também exercido pelo poder judiciário, especificamente como órgão aplicador do

direito. Esse problema, latente na estrutura ontológica do direito, manifesta-se com especial

relevo a partir da emergência das Constituições na modernidade. Especificamente, essa tese

genérica divide-se em vários aspectos determinados, que constituem hipóteses mais

restritamente definidas. Assim, as seguintes hipóteses delineiam-se a partir de e constituem

a tese:

a. Na medida em que há um papel a ser exercido pelo poder judiciário na instauração

da exceção, então há também uma relação entre soberania e poder judiciário,

independentemente de onde a soberania se localizar, ou de quem for o soberano.

34 A não ser, é claro, a “exceção” motivada pela existência de um emergente poder constituinte, voltado para a afirmação de um novo texto constitucional. Esse fenômeno, entretanto, não pode ser efetivamente definido como exceção, mas sim se insere nas complexas relações que se desenvolvem a partir da possibilidade política de mudança institucional do direito e da política, fora do e contra o modelo institucional vigente.

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b. Se o direito é ontologicamente já e sempre exceção, então há, na sua lógica de

funcionamento, uma função para a Constituição. Portanto, há um fenômeno

estrutural que permite que a Constituição, e a própria idéia de sua supremacia,

tornem-se, ainda assim, exceção jurídica.

c. Esse fenômeno, independentemente de suas múltiplas formas de manifestação,

relaciona-se com a jurisdição constitucional e com a possibilidade de controle de

constitucionalidade. Isto porque é na interpretação da Constituição que subsiste a

possibilidade de sua suspensão, de sua exceção.

d. De um ponto de vista estrutural, é porque a Constituição é direito, que é linguagem

(e, por conseguinte, traz em seu interior, assim como a política, a cisão entre língua

e voz), que a interpretação, no momento da aplicação do direito – e não em qualquer

momento anterior ou posterior (para a interpretação) – pode suspender o próprio

direito, e instaurar a exceção. Na interpretação da Constituição, portanto, na

jurisdição constitucional, é que reside a possibilidade de suspensão da própria

Constituição, e, por conseqüência, de qualquer lei36, a partir da Constituição.

e. Nesse sentido, a análise lingüística da estrutura da exceção jurídica pode lançar luz

sobre como a exceção se constitui através da interpretação da Constituição, na

jurisdição constitucional, no discurso concreto do controle de constitucionalidade. É

na estrutura lingüística da exceção que podem residir os mecanismos interpretativos

de suspensão da Constituição a partir da interpretação da Constituição. Em tal

lógica, o momento de aplicação interpretativa da Constituição é substancialmente

35 Existe, é claro, a situação de exceção prevista constitucionalmente. O tema será abordado no Capítulo I, mas é de se notar que a exceção constitucionalmente prevista é substancialmente diferente do conceito amplo de exceção formulado por Agamben, que a diferencia claramente da exceção prevista e autorizada em lei. 36 Nesse sentido, parece que Agamben só trata da suspensão da lei, da situação de exceção, instaurada antes da aplicação da lei. Não há uma explicação, em seu arcabouço teórico, a despeito de o direito ser ontologicamente exceção, e de o paradigma biopolítico ser a matriz da modernidade, do porquê ainda assim as leis serem aplicadas diariamente por tribunais do mundo inteiro. Nem de como a exceção pode se constituir, de fato, no momento em que a lei é aplicada. Há, nesse ponto, um problema bem maior que o desta nota de rodapé, que será abordado no Capítulo I. Se, de fato, o direito é exceção, então essas circunstâncias precisam ser explicadas à luz da teoria proposta. É sobre esse problema que a presente hipótese se debruçará.

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diverso do momento de aplicação interpretativa da lei, porque a Constituição possui,

além de sua dimensão normativa, uma dimensão política.

f. O órgão ou pessoa que exercer a jurisdição constitucional, ou seja, que puder definir

o sentido da Constituição, mantém-se de algum modo em relação com o poder

soberano, quiçá não se torne ele próprio soberano. De todo modo, comprovando-se

a hipótese, estar-se-á diante de uma forma de articulação da soberania diferente da

identificada por Agamben, derivada da existência da Constituição em seus termos

modernos.

Cabe esclarecer que a hipótese acima explicitada derivou de, ou melhor, substituiu

uma hipótese anterior, relativamente mais simples: a de que a soberania, hodiernamente, ao

contrário de se localizar no poder executivo, conforme proposto por Agamben, seria

exercida pelas Cortes Constitucionais, em sua jurisdição constitucional. A questão parece,

já traçada a reflexão, bem mais complexa do que isto. Mas essa tese primeira foi

abandonada não por causa disso, já que não há problema nenhum em se alterar uma

hipótese no curso do próprio texto da pesquisa. A justificativa real para sua alteração

imediata é a de que essa tese primeira põe em pauta um problema externo ao pensamento

teórico de Agamben.

A partir dela, ter-se-ia o problema que deriva da própria pergunta: as Cortes

Constitucionais, em sua jurisdição constitucional, são soberanas? Tentar-se-ia, então,

resolver esse problema a partir do arcabouço teórico posto por Agamben. Essa construção,

desde o início, pareceu artificial e forçada. Isto porque o “casamento” entre a tese e a base

teórica é, no mínimo, “arranjado”, tendo em vista a forma como o presente texto foi lenta e

organicamente se construindo a partir do pensamento de Agamben, e não do cotejo deste

pensamento com um problema externo. A verdade é que essa primeira tese não passa de um

simulacro da tese profunda que ora se expõe, e que toca na lacuna efetivamente presente na

filosofia do autor, qual seja a absoluta ausência de uma reflexão sobre o papel do poder

judiciário no estatuto ontológico do direito, da exceção. Que isto não tenha sido percebido

desde o início, culpe-se o autor desta tese.

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Ressalte-se, uma vez mais, a característica fundamental do presente trabalho: ele se

constrói por onde o pensamento de Agamben tocou, mas não adentrou; se estende pelos

pontos ausentes, pelas questões que nascem da teoria, mas que não são nem postas, nem

respondidas, em relação a uma série de temas e aspectos que são fundamentais para a

compreensão do direito na modernidade sob a ótica de Agamben. Que se fale que o direito

hoje é algo, mas não se analise nem Constituição, nem poder judiciário, nem jurisdição

constitucional, nem supremacia constitucional... – é neste espaço vazio deixado por

Agamben que este texto, a partir de Agamben, avança e se elabora37.

Tal característica acarreta, do ponto de vista metodológico, quatro conseqüências

principais que cumpre expor. A primeira delas é que, se a tese pretende se construir a partir

de uma lacuna de sua base teórica, ou, melhor, em um campo aberto e deixado vazio pela

teoria, então, para se poder enxergar e identificar essa lacuna, é preciso apresentar essa base

teórica, de forma suficientemente extensa, ainda que resumida. Isto é necessário para se

deixar claro que a lacuna está no pensamento de Agamben, e não na presente pesquisa.

Ainda que assim não fosse, o pensamento de Agamben é tão intrincado, ramificado e

imbricado, que dificilmente é possível explicar com alguma densidade qualquer aspecto de

sua teoria sem explicá-los todos.

Em segundo lugar, assume-se a perspectiva teórica como pressuposto filosófico da

pesquisa – na medida em que o atual trabalho pretende acompanhá-la e alargá-la, ao invés

de confrontá-la. A tese é proposta a partir de Agamben, com Agamben, e não contra

Agamben, ou questionando Agamben. A crítica ao pensamento de base, portanto, não é

uma preocupação no presente texto, a não ser em três circunstâncias bem claras e definidas,

a saber: quando a crítica se relacionar à existência de uma lacuna no texto de Agamben38,

de modo que um ou mais de seus postulados teóricos não se sustente diante dessa mesma

lacuna; quando a crítica se relacionar à existência de um postulado teórico que não se

37 Poder-se-ia perguntar, com algum ceticismo, qual seria a utilidade deste texto. Ao que se pode responder, sem nenhum ceticismo, que sua utilidade é similar, ainda que menor, à do próprio pensamento de Agamben. 38 O que, por sinal, é a razão de existência geral da tese. Assim, curiosamente, e a contrario sensu, pode-se dizer que o presente trabalho, a princípio acrítico, constitui, de fato, uma ampla crítica a Agamben.

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coadune com os pressupostos teóricos e demais postulados propostos pelo próprio

Agamben; e quando a crítica emergir do confronto entre os postulados teóricos

“emprestados” de outros autores – os poucos que Agamben menciona – e as conclusões

tiradas não forem aceitáveis frente ao que foi proposto pelo autor original39.

A terceira delas relaciona-se à nomenclatura dos vários títulos que compõem a

divisão e subdivisão dos capítulos do atual estudo. Eles se referem, especificamente, à

proposta teórica de Agamben, e não têm a pretensão de se estender além de tal

enquadramento. Tal recurso estilístico é necessário, inclusive, para que não ocorra confusão

nem sobre qual ponto da obra de Agamben se está expondo, nem entre os conceitos dos

quais Agamben se apropria, e define de modos muito diferentes e particulares em relação

ao que usualmente se propõe em teoria política e jurídica clássicas. O conceito de direito

dele, por exemplo, jamais poderia ser considerado como “recorrente” na literatura jurídica.

A quarta delas, por fim, refere-se à forma como a apresentação do pensamento de

Agamben foi executada. Optou-se por não seguir rigidamente a ordem de apresentação dos

temas conforme proposta por Agamben na publicação de seus livros, mas sim por organizá-

los à luz da conveniência da exposição, à vista de se tentar obter a maior clareza possível no

raciocínio acerca do fio teórico que conecta os vários “artigos-capítulos” do autor40.

Assim, o “Capítulo I – A natureza ontológica do Estado de Exceção” dedica-se,

principalmente, à análise da Parte I do Homo Sacer, I. Nele serão expostos os conceitos

centrais de soberania, exceção e Estado de Exceção, conforme utilizados por Agamben para

construir sua teoria acerca de como funcionam o direito e a política a partir da lógica de

39 Evidentemente, há sempre um espaço de interpretação bastante amplo, de modo que essa será a mais rara das três modalidades críticas. De fato, os autores que Agamben utiliza para construir seu próprio pensamento servirão bem mais para a estruturação de comentários em relação ao que o próprio Agamben propõe do que propriamente para criticá-lo. O que, espera-se, tornará a exposição de seu raciocínio mais clara. Até porque ele não é um filósofo que demonstre particular preocupação com a clareza das teorias que articula. De todo modo, essa modalidade de crítica estará presente ao longo do texto. 40 É até questionável se existe de fato uma ordem de apresentação definida pelo próprio Agamben. Conforme já discutido, seus livros são bem mais coletâneas de artigos que giram em torno do mesmo tema, do que qualquer outra forma de organização filosófica sistemática. Assim, por exemplo, nem mesmo os Homo Sacer foram publicados em uma ordem seqüencial e lógica, e La comunità che viene (The Coming Community), que, a princípio, situa-se logicamente depois dos Homo Sacer, foi publicado bem antes de qualquer um deles, em 1990.

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suspensão do direito e da relação de abandono. A reflexão perpassa o tema do poder

constituinte e do poder constituído, sob os pontos de vista adotados por Schmitt e

Benjamin, e nela se apresentará, igualmente, o papel da Constituição à luz da idéia de

supremacia constitucional em contraste com o proposto por Agamben.

O “Capítulo II – Arqueologia da Exceção: autoridade e força de lei” dá seqüência à

análise do Estado de Exceção através da arqueologia histórico-ontológica traçada no Homo

Sacer II, I. Nele é resenhada tanto a transição da possibilidade de instauração de exceção

pelo poder legislativo para o poder executivo que ocorre na Idade Moderna, quanto os

institutos romanos e medievais que revelariam a natureza própria do estado de exceção e

seu vínculo com a soberania. Apresenta-se, ainda, a relação entre exceção e o conceito de

autoridade vinculado à soberania, que exerce papel fundamental no corpo do pensamento

do autor. Estes dois primeiros capítulos são, por assim dizer, os que cuidam do aspecto

mais jurídico da filosofia de Agamben, ainda que sem perder de vista seu vínculo profundo

com a política.

O “Capítulo III – A condição biopolítica do Homo Sacer” volta-se, essencialmente,

à exposição das Partes II e III do Homo Sacer, I, relativamente à apresentação do

personagem central da obra de Agamben: o homo sacer. Tal “figura-instituto-simulacro”,

buscada também por meio da arqueologia ontológica de institutos jurídico-políticos

romanos e medievais, consubstancia, para Agamben, a imagem do homem submetido à

biopolítica, ao poder soberano, e que, potencialmente, resume a condição de todo e

qualquer homem moderno. A reflexão acerca do homo sacer, bem como a respeito do papel

dos direitos humanos e da cidadania na modernidade, conduz à eventual análise do campo

de concentração, e à conclusão de que este constitui a matriz de funcionamento, de

organização do atual “nomos da terra” prevalecente no mundo contemporâneo. Desse

modo, é a lógica do campo de concentração que determina a lógica da política da

modernidade. Ao contrário dos Capítulos I e II, este Capítulo apresenta a perspectiva mais

política do pensamento de Agamben, a qual, entretanto, permanece sempre umbilicalmente

vinculada ao direito.

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O “Capítulo IV – Autoridade e Estrutura Lingüística da Exceção” se presta à

apresentação e desenvolvimento estrutural do conceito de autoridade proposto por

Agamben, bem como à avaliação da exceção sob uma perspectiva lingüística. A reflexão

semiótica sobre a exceção, conquanto sugerida por algumas passagens do próprio

Agamben, justifica-se frente à idéia de interpretação constitucional, que parece possibilitar

a instauração de uma situação de exceção justamente por meio dos caracteres lingüísticos

“importados” da exceção para o momento de aplicação da constituição, seja diretamente,

seja como instância de validação ou invalidação da constitucionalidade de uma lei. O

controle de constitucionalidade se revela, desse modo, como uma forma particular e

moderna de autoridade que se manifesta pelo discurso técnico-jurídico.

O “Capítulo V – Exceção e Poder Judiciário”, aproveitando-se do raciocínio

construído no Capítulo anterior, volta-se para a reflexão acerca do efetivo papel do poder

judiciário e da jurisdição constitucional para o pensamento de Agamben. A pretensão é a de

demonstrar, coerentemente, como esses dois elementos, a despeito da idéia de supremacia

constitucional, e, por meio da interpretação constitucional, enquadram-se na lógica

biopolítica proposta por Agamben, de modo que a jurisdição constitucional instaura uma

espécie de exceção jurídica que, apesar de se realizar no momento de aplicação da lei, é

similar e complementar – e, em verdade, tão grave quanto – a suspensão do direito

usualmente abordada por Agamben. Nesse sentido, o problema da soberania, e de quem é o

soberano, altera-se, de modo que se buscará, ainda, pensar acerca de onde está, ou o que é e

como funciona, a soberania que se articula na moderna circunstância constitucionalista,

principalmente tendo em vista a natureza jurisdicional, e não executiva ou legislativa, do

controle de constitucionalidade.

A Conclusão, por fim, tentará fazer um apanhado geral de como se preencheu, se é

que se “preencheu”, a lacuna originalmente identificada no pensamento de Agamben,

acerca do papel do poder judiciário, da Constituição e da jurisdição constitucional, em face

do estado de exceção e da biopolítica; pois, se a tese de Agamben está correta, se direito e

política modernos estão condenados a reproduzirem incessantemente exceção e biopolítica,

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então todos esses elementos, que integram simultaneamente a política e o direito modernos,

devem também ser, de algum modo, produtores de exceção e biopolítica.

De toda forma, há ainda uma última reflexão a ser feita, à guisa de conclusão, acerca

do significado que o próprio poder judiciário dá à Constituição e à interpretação

constitucional, em vista das possibilidades concretas de suspensão do direito e produção

judiciária de biopolítica. Tal questão, que se relaciona ao conceito de Constituição como

valor, e, de certo modo, de política como identidade, refere-se a um dos elementos mais

importantes do nexo entre biopolítica, Estado e campo de concentração no pensamento de

Agamben. Mas, ainda é cedo para tratá-la, e nem mesmo convém abordá-la por hora.

Antes, e primeiro, a filosofia de Agamben apresenta-se ao destrinche.

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Capítulo I – A natureza ontológica do Estado de

Exceção.

A apresentação da teoria de Agamben deve necessariamente principiar, após os

primeiros elementos-chave trazidos na Introdução, pela análise do conceito de soberania em

sua íntima conexão com o direito e com a possibilidade da instauração de uma situação de

exceção, ou de suspensão generalizada do direito. Nesta perspectiva, o direito é já desde

seu surgimento definido pela soberania, e a soberania é já desde sempre a possibilidade de

suspensão do direito. Isto porque o direito somente consegue se “normalizar”, ou seja,

definir seu campo de incidência sobre os fatos da vida, se potencialmente puder se

relacionar com qualquer um desses fatos. Tal relação é garantida por meio da suspensão do

direito – o que ainda não está incluso no direito pode eventualmente ser nele incluído por

meio da suspensão desse direito. Nesse sentido, toda inclusão seria exclusiva, e toda

exclusão, inclusiva.

A construção teórica sobre como exatamente isto ocorre perpassa os conceitos de

poder constituinte e poder constituído – além da dialética benjaminiana entre a violência

que instaura o direito e a violência que conserva o direito, bem como a relação entre

soberania e potência de ser ou de não ser. A suspensão do direito, nesse sentido, depende

estruturalmente da potência de não ser da soberania – ou do poder constituinte – e revela

aquilo que Agamben chama de a forma pura da lei, isto é, o modo da relação que se

estabelece entre soberania e lei, ou entre lei e indivíduo, que se funda no abandono, ou seja,

na inclusão-exclusiva e na exclusão-inclusiva. Em face de tal reflexão, apresenta-se ainda

uma interpretação de qual é o significado, do quê podem representar, à luz da ontologia da

exceção, os ideais de Constituição e de supremacia do texto constitucional, tendo em vista

principalmente a natureza especial da Constituição como lei que procura manter uma

conexão direta com o ato fundador da ordem jurídica que ela representa.

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1. Soberania, Direito e Exceção.

O conceito de soberania proposto por Agamben está indissociavelmente ligado ao

ordenamento jurídico e à possibilidade ou poder de suspendê-lo, ou seja, de declarar ou/e

instituir um estado de exceção. A idéia é exatamente a mesma originalmente proposta por

Carl Schmitt em sua Teologia Política, conforme apresentado na Introdução, e relaciona-se

à preocupação concreta de identificar, nem tanto o que é o poder soberano absoluto, mas

sim quem é o seu detentor41.

A definição clássica de soberania, à qual usualmente a teoria política se reporta ao

debater o tema, é ainda o conceito fornecido por Jean Bodin, formulado no século XVI, que

considera a soberania um poder perpétuo e absoluto. Tal definição não contraria a

perspectiva de Schmitt e de Agamben por ora tratada, na medida em que o soberano decide

sobre o estado de exceção justamente por ser o detentor de um poder absoluto; dessa forma,

Bodin escreveu que:

Sovereignty is the absolute and perpetual power of a commonwealth, which the Latins call maiestas; the Greeks akra exousia, kurion arche, and kurion politeuma; and the Italians segnioria, a word they use for private persons as well as for those who have full control of the state, while the Hebrews call it tomech shévet – that is, the highest power of command. (…) I have said that this power is perpetual, because it can happen that one or more people have absolute power given to them for some certain period of time, upon the expiration of which they are no more than private subjects. And even while they are in power, they cannot call themselves sovereign princes. They are bur trustees and custodians of that power until such time it pleases the people or the prince to take it back (…). We now turn the other part of our definition and to what is meant by the words “absolute power”. For the people or the aristocracy (seigneurs) of a commonwealth can purely and simples give someone absolute and perpetual power to dispose of all possessions, persons, and the entire state at his pleasure, and then to leave it to anyone he pleases, just as a proprietor can make a pure and simple gift of his goods for no other reason than his generosity. This is a true gift

41 “O esquema abstrato posto como definição da soberania (soberania como poder supremo, não derivado do soberano) pode-se deixar valer ou não, sem que, com isso, haja uma grande diferença prática ou teórica. Em geral, não se discute sobre um conceito em si, pelo menos na história da soberania. Discute-se sobre a aplicação concreta, isto é, discute-se sobre quem decide no caso de conflito e em que consiste o interesse público ou estatal, a segurança e ordem estatal, le salut public, etc. O caso excepcional, o caso não descrito na ordem jurídica vigente pode ser, no máximo, caracterizado como caso de extrema necessidade, como risco para a existência do Estado ou similar; mas não ser descrito como um pressuposto legal. Essa questão é que torna atual a pergunta sobre o sujeito da soberania, ou seja, a questão da soberania em si”. In: SCHMITT, Carl. Teologia Política. p.8.

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because it carries no further conditions, being complete and accomplished all at once, whereas gifts that carry obligations and conditions are not authentic gifts. And so sovereignty given to a prince subject to obligations and conditions is properly not sovereignty or absolute power.42

Muito pelo contrário, Carl Schmitt é grande admirador de Bodin e de sua proposta

teórica sobre a soberania dos príncipes, e se utiliza largamente de sua própria interpretação

particular acerca deste autor para construir seu conceito político de soberania como

possibilidade última e final de decisão sobre a suspensão do ordenamento jurídico in toto:

La primera exposición del moderno Derecho político, los Seis Libros de la República, de Bodinus (1577), muestra con claridad este punto decisivo. Quien tiene el poder supremo es soberano, no como funcionario o comisario, sino permanentemente y por derecho proprio: por virtud de su propia existencia; está ligado al Derecho divino y natural, pero no se trata de esto con la cuestión de la soberanía, sino de si el legítimo status quo debe ser un obstáculo insuperable para sus decisiones políticas, si alguien puede pedirle cuentas y quién decide en caso de conflicto. El soberano puede, cuando lo exijan tiempo, lugar y singularidades concretas, cambiar y quebrantar leyes. Asi revela justamente su soberanía. Siempre son ideas como: anulación, casación, vulneración, dispensa, suprecsión de leyes y derechos existentes, las de que habla Bodinus en el capítulo sobre la soberanía (cap. 8, lib. I). En el siglo XVII este esencial punto de vista es llevado a claridad sistemática con Hobbes y Pufendorf: la cuestión a que se llega es siempre: quis iudicabit: acerca de lo que exige el bienestar público y la utilidad común decide el soberano; en qué consiste el interés del Estado, cuándo es exigible una vulneración o abolición del Derecho existente, son cuestiones todas que no pueden ser fijadas normativamente; reciben su contenido concreto sólo mediante una decisión concreta de la instancia soberana.43

42 BODIN, Jean. On sovereignty: four chapters from six books of the commonwealth. Trad.: Julian H. Franklin. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 1-8. [Tradução livre: A soberania é o poder absoluto e perpétuo de um Estado, que os latinos chamam de maiestas; os gregos de akra exousia, kurion arché, e kuiron politeuma; e os italianos segnioria, uma palavra que eles usam para pessoas privadas tanto quanto para os que detêm controle completo do estado, enquanto os hebreus chamam-no de tomech shévet – ou seja, o mais alto poder de comando. (...) Eu disse que esse poder é perpétuo, porque pode acontecer que uma ou mais pessoas recebam o poder absoluto por um certo período de tempo, ao término do qual voltam a ser simples súditos privados. E mesmo enquanto estão no poder, eles não podem se chamar de príncipes soberanos. Ele são apenas comissários e custodiantes do poder até que agrade ao povo ou ao príncipe tomá-lo de volta (...). Nós agora passamos para a outra parcela de nossa definição e para o que significam as palavras “poder absoluto”. O povo ou a aristocracia (seigneurs) de um Estado podem pura e simplesmente dar a alguém o poder absoluto e perpétuo de dispor de todas as possessões, pessoas, de todo o estado a seu bel-prazer, e de então deixar tal poder a quem melhor lhe aprouver, do mesmo modo que um proprietário pode fazer uma pura e simples doação de seus bens por nenhuma outra razão que sua generosidade. Essa é uma verdadeira doação, porque ela não traz nenhuma condição, sendo já completa e finalizada de uma vez, enquanto doações que comportam obrigações e condições não são doações autênticas. Logo, a soberania dada a um príncipe sujeita a obrigações e condições não é propriamente nem soberania, nem poder absoluto.] Ressalte-se, nessa passagem, o vínculo da soberania com a maiestas latina (ou, como se verá, auctoritas principis). 43 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad.: Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 2006. p. 70. Em sua Teologia Política, tratando das apresentações históricas do desenvolvimento do conceito de soberania, Schmitt aborda novamente a perspectiva de Bodin, sob um ângulo complementar ao apresentado: “(...)

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Bodin menciona ainda, quanto ao contraste entre a soberania e a lei, o modo como

se estabelece a relação entre o príncipe soberano e o direito, a lei. Tal ponto é importante

para se compreender a inspiração de Schmitt na definição do soberano como quem decide

sobre a suspensão da ordem jurídica:

(...) persons who are sovereign must not be subject in any way to the commands of someone else and must be able to give the law to subjects, and to suppress or repeal disadvantageous laws and replace them with others – which cannot be done by someone who is subject to the laws or to persons having power of command over him. This is why the law says that the prince is not subject to the law; and in fact the very word “law” in Latin implies the command of him who has the sovereignty.44

A relação da soberania com o direito, portanto, é paradoxal, na medida em que o

soberano, por poder suspender o ordenamento jurídico como um todo, está ao mesmo

tempo inserido e excluído desse mesmo ordenamento – ou seja, o soberano está ao mesmo

tempo dentro e fora do arcabouço do direito; dentro por integrá-lo estruturalmente, fora, em

última instância, por não estar a ele sujeito de nenhum modo:

Contudo, em Bodin, esse conceito orienta-se no caso crítico, ou seja, excepcional. Mas é com sua definição, freqüentemente citada (...), que dá início à teoria do Estado moderna. Ele explica seu conceito com base em muitos exemplos práticos e, nisso, sempre retorna à questão: Até que ponto o soberano se submete às leis, e se obriga diante das corporações? A esta última questão, especialmente importante, Bodin responde no sentido de que as promessas são vinculantes, porque a força obrigacional de uma promessa repousa no Direito Natural; porém, no caso de necessidade, cessa a vinculação segundo os princípios naturais gerais. Em geral, ele diz que, frente às corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas ele não se vincula si la necessité est urgente. Em si, estas não são novas teses. O que é decisivo nas explanações de Bodin é que ele confere à explicação das relações entre governante e corporações/classes um sentido alternativo (ou isso ou aquilo), remetendo, assim, ao estado de necessidade. Esse era o aspecto impressionante de sua definição, que entendeu a soberania como unidade indivisível e resolveu, terminantemente a questão sobre o poder no Estado. Sua realização científica e o motivo de seu sucesso repousam no fato de ele ter inserido a decisão no conceito de soberania. (...) Assim, a competência para revogar a lei vigente – seja de forma geral ou no caso isolado – é o que realmente caracteriza a soberania, de forma que Bodin deduz disso todas as outras características (declaração de guerra e acordo de paz, nomeação dos funcionários públicos, última instância, direito de indulto etc.)”. SCHMITT, Carl. Teologia Política. p. 9-10. 44 BODIN, Jean. On sovereignty: four chapters from six books of the commonwealth. p. 11. [Tradução livre: (...) pessoas que são soberanas não podem estar sujeitas de modo nenhum aos comandos de outra pessoa, e devem ser capazes de “dar a lei” a seus súditos, e de suprimir ou repelir leis desvantajosas, substituindo-as por outras – tal não pode ser feito por alguém sujeito às leis ou a pessoas com poder de comando sobre si. É por isto que a lei estipula que o príncipe não está sujeito à lei; e, de fato, a própria palavra “lei” em latim supõe o comando daquele que é soberano.] Como a lei não vincula o soberano, ele pode suspendê-la, substituí-la, abandoná-la, ou mantê-la em suspenso do modo que bem desejar.

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O paradoxo da soberania se enuncia: “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento , então “ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in toto possa ser suspensa” (Schmitt, 1922, p. 34). A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou então: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”.45

Para Schmitt, a relação entre exceção e direito se mantém pela existência de

situações que estão fora e além das hipóteses gerais jurídicas46. A situação de exceção se

mostra quando é necessário, para o poder soberano, estabelecer uma circunstância média de

fatos da vida sobre a qual seja possível a incidência de uma regra jurídica47. Neste caso,

revela-se a necessidade da tomada de decisão pelo poder soberano, decisão essa que é

considerada por Schmitt como um elemento formal especificamente jurídico48.

É a decisão soberana, desse modo, que define a existência de uma normalidade

média sobre a qual incidem as regras jurídicas, e que, portanto, coloca uma ordem sobre o

45 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 23. 46 Newton Bignotto comenta esta questão em Schmitt, chamando atenção justamente à relação entre direito e exceção: “Schmitt não pretende com sua definição expor uma nova idéia do que seja a soberania, ou mesmo sua ligação direta com o problema da constituição, seu foco está nos casos limites, no problema dos meios de efetivação da vontade daquele que deve tomar as decisões que dizem respeito a aspectos essenciais da vida política como aquele da segurança, do interesse público, etc. (...), trata-se de pensar o lugar no qual “a aniquilação do direito se confunde com sua própria criação”. O ponto a ser ressaltado é o fato de que Schmitt nega aos sistemas jurídicos um conteúdo imanente, que os livraria da contingência que assola a vida política. O solo, para a formulação do problema da validade da norma, é o mesmo da construção da vida em comum dos homens. Na seqüência do texto, Schmitt adverte para o fato de que uma Constituição não pode prever quando será necessário reconhecer a exceção, “no máximo poderá dizer quem tem o direito de intervir nesses casos”. Nesses momentos, o soberano aparece nitidamente. “Ele está na margem da ordem jurídica normalmente em vigor, estando ao mesmo tempo submetido a ela, pois a ele incumbe decidir se a Constituição deve ser suspensa em sua totalidade”. Estamos, portanto, em um espaço paradoxal, uma vez que a ordem jurídica parece evocar o soberano para a cena política, ao mesmo tempo em que arrisca de ser extinta.” BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. In: Kriterion. nº118, Belo Horizonte, Dez./2008. p. 405-406. 47 Ou, em outros termos, o chamado caso-tipo ou fato típico. 48 “(...) Sendo o estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém, aqui, uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em sentido real. Em estado de exceção, o Estado suspende o Direito por fazer jus à autoconservação, como se diz. Os dois elementos do conceito “ordem jurídica” defrontam-se e comprovam sua autonomia conceitual. Assim como no caso normal, o momento autônomo da decisão pode ser repelido a um mínimo; no caso excepcional, a norma é aniquilada. Apesar disso, o caso excepcional também permanece acessível ao conhecimento jurídico, pois ambos os elementos, a norma e a decisão, permanecem no âmbito jurídico”. In: SCHMITT, Carl. Teologia Política. p.13.

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caos. É o soberano, então, quem define sobre o quê, quando e como o direito se aplica a

uma situação normal; em outros termos, é ele quem decide quanto ao que é normal e ao que

não é. Colocando a questão em outros termos, é o soberano quem decide se de fato ocorre

um estado de necessidade extremo, bem como sobre o que deve ser feito para resolver essa

espécie de situação e restaurar a “normalidade”.

A exceção é aquilo que não se pode reportar; ela subtrai-se à hipótese geral, mas ao mesmo tempo torna evidente com absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a decisão. Na sua forma absoluta, o caso de exceção se verifica somente quando se deve criar a situação na qual possam ter eficácia normas jurídicas. Toda norma geral requer uma estruturação normal das relações de vida, sobre as quais ela deve encontrar de fato aplicação e que ela submete à própria regulamentação normativa. A norma necessita de uma situação média homogênea. Esta normalidade de fato não é um simples pressuposto que o jurista pode ignorar; ela diz respeito, aliás, diretamente à sua eficácia imanente. Não existe nenhuma norma que seja aplicável ao caos. Primeiro se deve estabelecer a ordem: só então faz sentido o ordenamento jurídico. É preciso criar uma situação normal, e soberano é aquele que decide de modo definitivo se este estado de normalidade reina de fato. Todo direito é “direito aplicável a uma situação”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua integridade. Ele tem o monopólio da decisão última. Nisto reside a essência da soberania estatal, que, portanto, não deve ser propriamente definida como monopólio da sanção ou do poder, mas como monopólio da decisão, onde o termo decisão é usado em sentido geral que deve ser ainda desenvolvido. O caso de exceção torna evidente do modo mais claro a essência da autoridade estatal. Aqui a decisão se distingue da norma jurídica e (para formular um paradoxo) a autoridade demonstra que não necessita do direito para criar o direito (...).49

Dentro de tal lógica, a exceção se configura como elemento que é ao mesmo tempo

a condição de validade do direito e a condição de validade da autoridade do Estado que

estabelece esse direito, pois é o soberano quem, por meio da exceção, cria e garante a

situação “de fato” que configura a normalidade necessária para a vigência e a eficácia do

direito. A estrutura básica do direito, portanto, consistiria na suspensão desse mesmo

direito. O fato de a validade do direito ser suspensa durante a exceção é que permite que

esse mesmo direito seja válido para o caso normal.

A exceção é, segundo Agamben, uma espécie de exclusão, na medida em que se

constitui em uma situação singular e individual que se exclui da norma e da regra geral.

49 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 23. A presente citação corresponde a uma citação do texto de Schmitt na obra de Agamben. Optou-se pela utilização da citação de Schmitt

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Entretanto, a exclusão da exceção singular do âmbito da norma não implica perda total de

relação com essa mesma norma – pelo contrário, a exceção se mantém em relação com a

norma sob a forma de sua suspensão:

(...) A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.50

O direito lida com a situação de exceção, portanto, não se aplicando a ela. A

situação de exceção que é dele excluída termina por ser “re-incluída” no direito por meio

dessa “des-aplicação” do direito. O mecanismo de funcionamento da soberania, portanto,

revela-se complexo: a situação de exceção, que está fora do direito, é nele incluída por

meio da suspensão do direito, de modo que o direito se retira, ou, de outro modo, abandona

a exceção. “Não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá

lugar à exceção e somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relação

com aquela. O particular “vigor” da lei consiste nessa capacidade de manter-se em

relação com uma exterioridade. Chamemos de relação de exceção a esta forma extrema da

relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão”.51

A situação criada na exceção constitui um “limiar de indiferença” entre uma

situação de fato e uma situação de direito. Não pode ser considerada como uma simples

situação de fato, porque sua existência depende da suspensão do direito; mas tampouco

pode ser considerada como uma simples situação de direito, justamente porque ela existe

apenas na suspensão do direito52. A exceção soberana, portanto, cria e estabelece o espaço

de normalidade, no qual o ordenamento político-jurídico pode ter validade, a partir do

reproduzida do texto de Agamben por se tratar de uma tradução mais clara, neste ponto, do que a da versão brasileira da Teologia Política. 50 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 25. 51 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 26. Em outros termos, é possível ao direito manter-se em relação com aquilo que não é considerado normal, e que, portanto, não está nele incluído, justamente pela possibilidade de, “marcando” tal situação como excepcional, suspender a si próprio, e, desse modo, tratar da situação excepcional, e incluí-la, a partir da suspensão do direito. O direito suspende-se para alcançar o excepcional, o “a-normal”. 52 Ainda que, conforme anotado por Agamben, tal suspensão possibilite manter uma relação da situação excepcional com o direito, e, desse modo, abra espaço para a possibilidade de vigência da lei em situações definidas como normais.

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limiar de indiferença entre o que está fora e o que está dentro da ordem jurídica. Ela

funciona, desse modo, como a base original de qualquer ordenamento jurídico:

Dado que “não existe nenhuma norma que seja aplicável ao caos”, este deve ser primeiro incluído no ordenamento através da criação de uma zona de indiferença entre externo e interno, caos e situação normal: o estado de exceção. Para se referir a algo, uma norma deve, de fato, pressupor aquilo que está fora da relação (o irrelato) e, não obstante, estabelecer deste modo uma relação com ele. A relação de exceção exprime assim simplesmente a estrutura originária da relação jurídica. A decisão soberana sobre a exceção é, neste sentido, a estrutura político-jurídica originária, a partir da qual somente aquilo que é incluído no ordenamento e aquilo que é excluído dele adquirem seu sentido. Na sua forma arquetípica, o estado de exceção é, portanto, o princípio de toda localização jurídica, posto que somente ele abre o espaço em que a fixação de um certo ordenamento e de um determinado território se torna pela primeira vez possível. (...) Uma das teses da presente investigação é a de que o próprio estado de exceção, como estrutura política fundamental, em nosso tempo, emerge sempre mais ao primeiro plano e tende, por fim, a tornar-se a regra.”53

A relação entre direito e exceção soberana está calcada na similaridade de

funcionamento entre direito e aplicação do direito em comparação com a língua e fala

concreta, individual. Isso porque a validade da norma jurídica não se localizaria na

aplicação da norma a uma situação particular, mas sim no caráter geral da norma, que

pressupõe sua validade independentemente de qualquer situação individual específica. E,

do mesmo modo, a aplicação da norma a uma situação particular pressupõe, para sua

“validade”, a existência de, e correspondência com, uma norma geral. Assim também a fala

individual se ampara na existência de uma langue pura, cuja validade independe das falas

individuais54.

A estrutura da relação entre direito e exceção soberana, portanto, é semelhante à da

linguagem, o que interessa na medida em que um dos focos desta tese se calca na

perspectiva de interpretar o direito como sistema de significação, ou seja, como uma forma,

ele também, de linguagem geradora de signos e discursos específicos:

53 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 27. Em sentido similar, também a vida nua é o que estaria excluído da política, mas, simultaneamente incluída, através dessa exclusão – que é a forma por meio da qual a própria política se constitui. 54 Talvez seja por causa desta questão que Agamben ignora o problema da exceção em relação à aplicação concreta do direito, conforme discutido na Introdução. De toda forma, assim como não há língua viva sem a prática individual real da fala, tampouco há direito “vivo” sem normas concretamente aplicadas. Validade e vigência, afinal, são conceitos diferentes.

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(...) Aqui a esfera do direito mostra a sua essencial proximidade com aquela da linguagem. Como uma palavra adquire o poder de denotar, em uma instância de discurso em ato, um segmento da realidade, somente porque ela tem sentido até mesmo no próprio não-denotar (isto é, como langue distinta da parole: é o termo na sua mera consistência lexical, independentemente de seu emprego concreto no discurso), assim a norma pode referir-se ao caso particular somente porque, na exceção soberana, ela vigora como pura potência, na suspensão de toda referência atual. E como a linguagem pressupõe o não-lingüístico como aquilo com o qual deve poder manter-se em relação virtual (na forma de uma langue, ou, mais precisamente, de um jogo gramatical, ou seja, de um discurso cuja denotação atual é mantida indefinidamente em suspenso), para poder depois denotá-lo no discurso em ato, assim a lei pressupõe o não-jurídico (por exemplo, a mera violência enquanto estado de natureza) como aquilo com o qual se mantém em relação potencial no estado de exceção. A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão. Em toda norma que comanda ou veta alguma coisa (por exemplo, na norma que veta o homicídio) está inscrita, como exceção pressuposta, a figura pura e insancionável do caso jurídico que, no caso normal, efetiva a sua transgressão (no exemplo, a morte de um homem não como violência natural, mas como violência soberana no estado de exceção).55

Nessa lógica, a linguagem termina por converter o “não-lingüístico” em um

elemento pressuposto à própria linguagem. E o direito, similarmente, pressupõe o “não-

jurídico” como incluso no direito, realizando tal operação por meio da exceção soberana,

ou seja, mediante uma inclusão-exclusiva.

A situação de exceção, portanto, inclui-se na normalidade do direito justamente por

não fazer parte dela, de modo que o não-pertencimento da exceção ao caso normal é

demonstrado apenas no próprio interior da normalidade do direito, justamente como

exceção.

Normalidade e excepcionalidade, sob essa ótica, não passam de constructos

artificiais, que, erigidos pela decisão soberana, constituem a própria possibilidade de

existência do direito. Assim sendo, é o direito que estabelece o normal e o excepcional, que

não existem, de modo nenhum, fora dele, nem mesmo como situação fática pura.

A exceção soberana, destarte, realiza a inclusão no direito do “não-jurídico”, isto é,

de elementos fáticos que não poderiam, em nenhuma hipótese, ser incluídos no direito. Essa

55 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 28.

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inclusão se realiza por meio da forma da exceção, que resulta na suspensão do direito. Ou

seja, aquilo que não pertence ao direito é nele “re-inserido” por meio da suspensão desse

mesmo direito. A exceção é “(...) aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual

pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído”.56

Essa definição depende da diferenciação entre a idéia de pertencimento e a idéia de

inclusão. Tal distinção se ampara na teoria matemática dos conjuntos:

(...) Tem-se uma inclusão quando um termo é parte de um conjunto, no sentido em que todos os seus elementos são elementos daquele conjunto (...). Mas um termo pode pertencer a um conjunto sem estar incluído nele (...) ou, vice-versa, estar nele incluído sem pertencer a ele. Em um livro recente, Alain Badiou desenvolveu esta distinção, para traduzi-la em termos políticos. Ele faz corresponder o pertencimento à apresentação, e a inclusão à representação (re-apresentação). Dir-se-á, assim, que um termo pertence a uma situação se ele é apresentado e contado como unidade nesta situação (em termos políticos, os indivíduos singulares, enquanto pertencem a uma sociedade). Dir-se-á, por sua vez, que um termo está incluído em uma situação, se é representado na metaestrutura (o Estado) em que a estrutura da situação é por sua vez contada como unidade (os indivíduos, enquanto recodificados pelo Estado em classes, por exemplo, como “eleitores”).”57

Conclui-se que a exceção não pode ser incluída no todo do direito ao qual pertence

na forma de exceção mesmo, e nem pode pertencer ao conjunto do direito, no qual,

paradoxalmente, está desde sempre incluída, na forma de exceção. Isso se dá porque é o

poder soberano que define o normal e a exceção jurídicos, e inclui a segunda no direito por

meio do estado de exceção. A conseqüência disso é “(...) a crise radical de toda

possibilidade de distinguir com clareza entre pertencimento e inclusão, entre o que está

fora e o que está dentro, entre exceção e norma”.58

Em termos lingüísticos, Agamben propõe equiparar a inclusão ao sentido (ou

conotação), e o pertencimento à denotação. Uma palavra terá sempre, potencialmente, mais

possibilidades de sentido (possibilidades de conotação) do que quanto possa em ato

denotar, de modo que entre sentido e denotação há sempre uma sobra, um excesso (em

56 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 32 57 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 31 58 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 32

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outros termos, um significante sempre possui uma excedência constitutiva em relação a

seus significados).

A estrutura da soberania na linguagem representaria a tentativa de fazer coincidir

sentido e denotação, significante e significado, criando entre estes uma zona de indistinção,

“(...) na qual a língua se mantém em relação com seus denotata abandonando-os,

retirando-se destes em uma pura langue (o “estado de exceção” lingüístico)”.59

A conseqüência disto, para o direito, é que sempre haverá um excesso de elementos

que nele estão incluídos, sem a ele pertencer – assim como há uma série de sentidos

incluídos na linguagem (e, a princípio, qualquer sentido), que, todavia, somente pertencem

a ela enquanto “casos” excepcionais (um sentido poético, inédito, por exemplo). Tal

situação é tratada justamente por meio da exceção soberana, que inclui no direito, por meio

de sua suspensão, aquilo que à normalidade jurídica não pertence. A soberania constitui-se,

portanto, justamente, na decisão sobre o que está incluso e pertence, e o que está incluso

sem pertencer, ou seja, sobre o que é normal e o que é exceção.

Por isto, em Schmitt, a soberania se apresenta na forma de uma decisão sobre a exceção. A decisão não é aqui a expressão da vontade de um sujeito hierarquicamente superior a qualquer outro, mas representa a inscrição, no corpo do nomos, da exterioridade que o anima e lhe dá sentido. O soberano não decide entre lícito e ilícito, mas a implicação originária do ser vivente na esfera do direito, ou, nas palavras de Schmitt, a “estruturação normal das relações da vida”, de que a lei necessita. A decisão não concerne nem a uma quaestio iuris nem a uma quaestio facti, mas à própria relação entre o direito e o fato. Não se trata aqui apenas, como Schmitt parece sugerir, da irrupção da “vida efetiva” que, na exceção, “rompe a crosta de um mecanismo enrijecido na repetição”, mas de algo que concerne à natureza mais íntima da lei. O direito tem caráter normativo, é “norma” (no sentido próprio de “esquadro”) não porque comanda e prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na vida real, normalizá-la. Por isto – enquanto, digamos, estabelece as condições desta referência e, simultaneamente, a pressupõe – a estrutura originária da norma é sempre do tipo: “Se (caso real, p. ex.: si membrum rupsit), então (conseqüência jurídica, p. ex.: talio esto)”, onde um fato é incluído na ordem jurídica através da sua exclusão e a transgressão parece preceder e determinar o caso lícito. Que a lei tenha inicialmente a forma de uma lex talionis (talio, talvez de talis, quer dizer: a mesma coisa), significa que a ordem jurídica não se apresenta em sua origem simplesmente como sanção de um fato transgressivo, mas constitui-se, sobretudo, através do repetir-se do mesmo ato sem sanção alguma, ou seja, como caso de exceção. Este não é uma punição do primeiro, mas representa a sua inclusão na

59 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 33.

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ordem jurídica, a violência como fato jurídico primordial (permittit enim lex parem vindictam: Festo, 496, 15). Neste sentido, a exceção é a forma originária do direito.60

Nessa linha, Agamben propõe que o direito opera, originalmente, não a partir do

conceito de sanção, mas sim do conceito de culpa, tomado em sua acepção primeira que

indica um “estado, um estar-em-débito”. Esse estado é justamente o de ser incluído através

de uma exclusão, de estar em relação com o campo do qual se foi excluído, sem, todavia,

ser possível reconhecer integralmente essa condição61.

“ A culpa não se refere à transgressão, ou seja, à determinação do lícito e do ilícito,

mas à pura vigência da lei, ao seu simples referir-se a alguma coisa. Esta é a razão última

da máxima jurídica – estranha a toda moral – segundo a qual a ignorância da norma não

elimina a culpa” 62. A circunstância de ser impossível decidir se é a culpa que fundamenta a

norma, ou a norma que gera a culpa, expõe a indistinção entre o externo e o interno no

direito, entre normalidade e exceção, entre direito e vida, que está na base da decisão

soberana sobre a exceção. Na prática, tem-se que tanto faz se há culpa ou inocência, pois a

culpa se estabelece desde o princípio não por qualquer ato individual, mas pelo simples

“estar em relação com a norma”.

60 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 33-34. 61 Nessa perspectiva, e em relação aos vínculos que Agamben identifica entre direito, exceção e campo de concentração, Hannah Arendt menciona em que medida os judeus que iam para os campos de concentração nazista simplesmente por serem judeus – ou seja, por essa culpa inclusiva-exclusiva derivada do fato de ser judeu – viviam em condição pior do que a dos judeus que iam para os campos de concentração por terem sofrido uma sanção legal normal: “(...) Eles começaram explicando que havia duas categorias de judeus nos campos, os chamados “judeus em transporte” (Transportjuden), que constituíam o grosso da população e que nunca haviam cometido um crime, mesmo aos olhos dos nazistas, e os judeus “sob custódia” (Schutzhaftjuden), mandados para os campos de concentração alemães por alguma transgressão e que, sob o princípio totalitário de dirigir o terror do regime contra os “inocentes”, viviam consideravelmente melhor do que os outros mesmo quando mandados para o Leste a fim de tornar judenrein os campos de concentração do Reich. (Nas palavras da sra. Raja Kagan, uma excelente testemunha sobre Auschwitz, esse era “o grande paradoxo de Auschtwitz. Os que eram capturados cometendo algum crime eram mais bem tratados que os outros”. Não ficavam sujeitos à seleção e, como regra, sobreviveram.)”. In: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal.Trad.: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 235-236. Especificamente sobre este livro, trata-se de um relato jornalístico-teórico sobre o julgamento em primeira instância de Adolf Eichmann, um dos mais famosos nazistas vinculado à organização do Holocausto, pela “Casa da Justiça” de Israel. A autora, além de apresentar os fatos do julgamento, reflete sobre suas conseqüências teóricas e práticas para a compreensão do totalitarismo nazista e da matança indiscriminada ocorrida nos campos de concentração. 62 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 34.

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A vida, ou seja, o caso anormal e excepcional, é incluída no direito e se relaciona

com ele somente através de uma exceção. Essa vida encontra-se em um limiar entre fato e

direito, entre estar dentro e estar fora do ordenamento jurídico. É nesse limiar que se

localiza topologicamente a soberania, que decide sobre a indistinção no momento da

exceção. Nessa perspectiva, a existência eficaz do direito depende necessariamente da

exceção, na medida em que ele não possui nenhuma outra ancoragem na vida humana além

daquela que logra trazer para seu interior por meio da exclusão inclusiva realizada na

exceção.

É a decisão soberana, a seu turno, que desenha e forma o limiar de indiferença entre

direito e vida que permite ao direito se “alimentar”, e de tempos em tempos redefine esse

espaço no qual a vida é originariamente excepcionada e, portanto, inclusa, no ordenamento

jurídico. A culpa, nesse “constructo”, termina por funcionar como o conceito jurídico

central, e nada mais é do que a inscrição da vida natural na ordem jurídica. À luz de toda

essa reflexão, Agamben redefine o conceito de soberania:

Se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão. Retomando uma sugestão de Jean-Luc Nancy, chamemos bando (do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do soberano) a esta potência (no sentido próprio da dýnamis aristotélica, que é sempre também dýnamis mè energein, potência de não passar ao ato) da lei de manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem. Dele não é literalmente possível dizer que esteja fora ou dentro do ordenamento (...). É neste sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma: “não existe um fora da lei”. A relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável do nomos, a sua originária “força de lei” , é que ele mantém a vida em seu bando abandonando-a. E é esta estrutura do bando que trataremos de compreender aqui (...). O bando é uma forma de relação. Mas de que relação propriamente se trata, a partir do momento em que ele não possui nenhum conteúdo positivo, e os termos em relação parecem excluir-se (e, ao mesmo tempo, incluir-se) mutuamente? Qual a forma da lei que nele se exprime? O bando é a pura forma do referir-se a alguma coisa em geral, isto é, a simples colocação de uma relação com o irrelato. Neste sentido, ele se identifica com a forma limite da relação.”63

63 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 35-36.

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Agamben prossegue sua análise relativa à soberania voltando, assim como em sua

análise sobre a política, às referências gregas sobre o tema. Na sua interpretação do

pensamento político clássico grego, a soberania está vinculada ao nomos, à lei, que permite

a articulação entre bía e díke, violência e justiça – há uma soberania do nomos, uma

soberania da lei. A força da lei, em tal quadro, deriva da conexão existente entre violência e

justiça, ou, em outros termos, da justiça que legitima o uso da violência, que se permite o

uso da violência.

Em referência a Píndaro, que trata em poesia do conceito de nomos basileus como

soberano e justificador da violência64, Agamben propõe que “(...) o nomos soberano é o

princípio que, conjugando direito e violência, arrisca-os na indistinção (...)”, de modo que

“(...) o soberano é o ponto de indiferença entre violência e direito, o limiar em que a

violência traspassa em direito e o direito em violência”.65 O problema da soberania, no

pensamento clássico, prossegue no debate sofístico e em Platão. À distinção entre phýsis e

nomos, entre natureza e lei, que, para os sofistas, implicava uma superioridade da natureza

sobre a lei, Platão procura definir o poder da lei como conforme a natureza, e, portanto, não

64 Píndaro foi um poeta lírico grego, que provavelmente viveu de 518 a 438 a.C. Há no Homo Sacer uma tradução dos versos de Píndaro a partir dos quais o autor constrói sua perspectiva: “O nomos de todos soberano / dos mortais e dos imortais / conduz com mão mais forte / justificando o mais violento. / Julgo-o das obras Herácle...” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 195. Carl Schmitt, em sua obra “El Nomos de la Tierra”, menciona igualmente esta passagem de Píndaro: “El pasaje antes citado de PÍNDARO (fr. 169), transmitido sobre todo por HERÓDOTO (III, 38) y PLATÓN (Gorgias, 484b) y reconstruido com ayuda de varios escólios, habla del Nomos Basileus, del nomos como rey. (...) Em el pasaje de PÍNDARO (fr. 169) se trata del robo de reses, un acto del instaurador mítico del orden, HERACLES, mediante el cual creó éste un derecho a pesar de toda la violencia del acto. En PLATÓN, es el sofista CALICLES quien cita el pasaje de PÍNDARO y lo interpreta en el sentido de la mera <<disposición de una disposición>>. Según esta interpretación, el nomos no sería otra cosa que el derecho cualquiera del más fuerte; sería una expresión de lo que se llama hoy día en Alemania la fuerza normativa de lo fáctico, una expresión de la metamorfosis del Ser en un Deber, de lo efectivo en una ley. (…) El nomos, en su sentido original, sin embargo, es precisamente la plena inmediatud de una fuerza jurídica no atribuida por leyes; es un acontecimiento histórico constitutivo, un acto de la legitimidad, que es el que da sentido a la legalidad de la mera ley.” SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra en el Derecho de Gentes del <<Jus publicum europaeum>>. p. 56-57. Compare-se esta definição de nomos dada por Schmitt com os conceitos de violência instituidora do poder e força de lei a ser apresentados na seqüência da presente tese – a diferença, essencialmente, é a de que para Schmitt a força jurídica não deriva da lei, mas nasce a partir do ato constitutivo da ordem política no instante lógico-histórico da tomada da terra, inerente ao nomos. Essa força de lei é legítima em face do próprio ato da tomada da terra e fundamenta a legitimidade das leis que a seguem. 65 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 38.

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violento, tentando, desse modo, neutralizar a confusão “soberana” de bía e díke. Em outros

termos, é o pensamento sofista que funda o princípio da soberania:

Todo o tratado do problema da relação entre phýsis e nomos do livro X das Leis se destina a desmontar a construção sofística da oposição, como também a tese da anterioridade da natureza em relação à lei. Ele neutraliza a ambas afirmando a originariedade da alma e de “tudo aquilo que pertence ao gênero da alma” (intelecto, tékhne e nomos) em relação aos corpos e aos elementos “que erroneamente dizemos ser por natureza” (892b). Quando Platão (e, com ele, todos os representantes daquilo que Leo Strauss chama de “direito natural clássico”) diz que “a lei deve reinar sobre os homens e não os homens sobre a lei”, não pretende, portanto, afirmar a soberania da lei sobre a natureza, mas, ao contrário, apenas seu caráter “natural”, ou seja, não violento. Enquanto, em Platão, a “lei da natureza” nasce, portanto, para colocar fora de jogo a contraposição sofística entre phýsis e nomos e excluir a confusão soberana de violência e direito, nos sofistas a oposição serve precisamente para fundar o princípio da soberania, a união de Bia e Dike.”66

Logo, o favorecimento sofista da natureza sobre a lei é a base necessária para a

construção do conceito de soberania que depende da oposição entre estado de natureza e

sociedade organizada, prevalecente no pensamento político ocidental a partir de Hobbes.

“Se, para os sofistas, a anterioridade da phýsis justifica, em última análise, a violência do

mais forte, para Hobbes é precisamente esta mesma identidade de estado de natureza e

violência (homo hominis lupus) a justificar o poder absoluto do soberano. Em ambos os

66 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 41. Algumas observações de Hannah Arendt parecem corroborar a interpretação de Agamben sobre Platão, apesar de a autora pensar a “soberania natural platônica” em termos de uma tentativa do filósofo em estabelecer um princípio de autoridade no universo político grego, em detrimento da igualdade entre os cidadãos de uma polis: “Em seus esforços por encontrar um princípio legítimo de coerção, Platão foi guiado originalmente por um grande número de modelos baseados em relações existentes, tais como a relação entre o pastor e suas ovelhas, entre o timoneiro de um barco e seus passageiros, entre o médico e o paciente ou entre o senhor e o escravo. Em todos esses casos, ou o conhecimento especializado infunde confiança, de modo que nem a força nem a persuasão sejam necessárias para obter aquiescência, ou o regente e o regido pertencem a duas categorias de seres completamente diferentes, um dos quais já é, por implicação, sujeito ao outro (...). A plausibilidade desses exemplos repousa na natural desigualdade que prevalece entre o governante e o governado, mais evidente no exemplo do pastor, onde o próprio Platão conclui ironicamente que nenhum homem, mas somente um deus, poderia relacionar-se com seres humanos da mesma forma como o pastor se relaciona com suas ovelhas. Embora seja óbvio que o próprio Platão não se satisfizesse com esses modelos, para seu propósito, estabelecer a “autoridade”do filósofo sobre a polis, retornava repetidamente a eles, porque somente nesses casos de flagrante desigualdade o governo poderia se exercer sem a tomada do poder e a posse dos meios de violência. Aquilo que ele buscava era uma relação em que o elemento coercivo repousasse na relação mesma e fosse anterior à efetiva emissão de ordens; o paciente torna-se sujeito à autoridade do médico quando se sente doente, e o escravo cai sob o domínio de seu senhor ao se tornar escravo.” In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad.: Mauro W. Barbosa. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. p. 148-149. Parece, portanto, que o conceito de “autoridade” proposto por Arendt poderia ser interpretado, à luz dos parâmetros de Agamben, como o elemento que retira a violência da soberania. Tal perspectiva se coaduna com um dos conceitos de autoridade utilizados por Agamben. Sobre o tema, ver a seguir.

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casos (...) a antinomia phýsis/nomos constitui o pressuposto que legitima o princípio de

soberania, a indistinção de direito e violência (...)”. 67 No pensamento hobbesiano o estado

de natureza permanece vivo na figura do soberano, de modo que a soberania constitui a

inserção do estado de natureza na sociedade, e representa o limiar de indiferença entre

natureza e cultura, violência e lei. Essa indiferença é que pode ser definida como violência

soberana68.

De fato, as assertivas de Hobbes acerca do estado de natureza – no sentido de que

sua existência permanece real entre os soberanos, na medida em que os homens abrem mão

de seus direitos individuais, que se mantêm válidos apenas para o soberano, parecem

permitir tal conclusão; até mesmo porque, no estado de natureza, todos os homens podem

ser considerados “matáveis” uns em relação aos outros. Hobbes disserta sobre o estado de

natureza:

Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. (...) Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil. Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. (...) Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e de injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça.69

67 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 41. 68 Se a idéia de que a natureza prevalece sobre a lei permite a articulação da soberania como elemento que insere o estado de natureza na sociedade política, é também plenamente possível imaginar que do conceito de soberania/autoridade platônico como elemento natural, pudesse derivar idêntica conseqüência, caso o “natural” fosse interpretado não como “não-violento”, mas sim no sentido de “natureza superior” proposto pelos sofistas – de forma que igualmente se tornassem indiferenciadas lei e natureza. Esta, inclusive, parece ser uma das possíveis interpretações da crítica a Platão traçada por Karl Popper em: POPPER, K. R. A Sociedade aberta e seus inimigos. Trad.: Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, 2.v. 69 HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999. p. 109-110. Sublinhe-se, nesta citação, a expressão “autoridade soberana”, já que, conforme se verá, Agamben trata a autoridade como um dos caracteres fundamentais da constituição da soberania.

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A constituição da comunidade política, nesta perspectiva, depende da existência de

um soberano – cuja situação peculiar sustenta a existência do estado de natureza no ponto

de autoridade política central da própria comunidade. Em outros termos, a comunidade se

constitui somente através da inserção do estado de natureza em seu núcleo mais

fundamental, representado, em Hobbes, pelo monarca absoluto e soberano.

A idéia do estado de natureza, destarte, não é externa à lei, mas se revela como um

princípio interno ao Estado, de modo que a sua exterioridade, configurada em direito de

natureza, constitui-se em núcleo do próprio sistema político. A soberania é o momento de

constituição do direito, que, a seu turno, depende da existência da natureza exterior para

poder se constituir. O nomos soberano, nesse sentido, relaciona-se intimamente tanto com o

estado de natureza, que lhe serve de princípio interno, como com o estado de exceção, que

surge no momento da suspensão do direito realizada pelo próprio nomos soberano:

Enquanto soberano, o nomos é necessariamente conexo tanto com o estado de natureza quanto com o estado de exceção. Este último (com a sua necessária indistinção de Bia e Dike) não lhe é simplesmente externo, mas, mesmo na sua clara delimitação, é implicado nele como momento em todos os sentidos fundamental. O nexo localização-ordenamento já contém, portanto, desde sempre em seu interior a própria ruptura virtual na forma de uma “suspensão de todo direito”. Mas o que então surge (no ponto em que se considera a sociedade tanquam dissoluta) é, na verdade, não o estado de natureza (como estágio anterior no qual os homens recairiam), mas o estado de exceção. Estado de natureza e estado de exceção são apenas as duas faces de um único processo topológico no qual, como numa fita de Moebius ou em uma garrafa de Leyden, o que era pressuposto como externo (o estado de natureza) ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção, phýsis e nomos. O estado de exceção, logo, não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura topológica complexa, em que não só a exceção e a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro.70

É o vazio jurídico do estado de exceção, portanto, que, no paradigma biopolítico,

estende-se e passa a coincidir com o ordenamento jurídico normal – a exceção torna-se,

nesse sentido, a estrutura primordial de organização política e jurídica, pois exceção e

ordenamento convertem-se na mesma e idêntica estrutura institucional, que se autofunda a

partir de ambos.

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2. Poder Constituinte e Constituído: ato, potência e a forma pura da lei.

A questão acerca da soberania, de seu conceito, de sua lógica e de seu

funcionamento – central na reflexão de Agamben, conforme se vem analisando – está

presente em um dos temas fundamentais do debate constitucional moderno, qual seja a

distinção entre poder constituinte e poder constituído – que é sempre abordada nas

discussões sobre constituição e constitucionalismo:

Talvez em nenhuma parte o paradoxo da soberania se mostre tão à luz como no problema do poder constituinte e de sua relação com o poder constituído. Tanto a doutrina quanto as legislações positivas sempre encontraram dificuldade em formular e manter esta distinção em toda a sua amplitude. “A razão disto” – lê-se em um tratado de ciência da política – é que, se pretende-se dar o seu verdadeiro sentido à distinção entre poder constituinte e poder constituído, é preciso necessariamente colocá-los em dois planos diversos. Os poderes constituídos existem somente no Estado: inseparáveis de uma ordem constitucional preestabelecida, eles necessitam de uma moldura estatal da qual manifestam a realidade. O poder constituinte, ao contrário, situa-se fora do Estado: não lhe deve nada, existe sem ele, é a fonte cujo uso que se faz de sua corrente não pode jamais exaurir.” (Burdeau, 1984, p.173).71

A relação entre poder constituinte e poder constituído, portanto, giraria em torno de

duas teses distintas e opostas: a primeira delas propõe que o poder constituinte detém uma

natureza irredutível e originária, que jamais pode ser constrangida por um ordenamento

jurídico concreto, de forma que o poder constituinte é sempre externo a qualquer espécie de

poder constituído72; a segunda tese, contrária, procura reduzir o poder constituinte ao mero

poder de revisão previsto em um determinado texto constitucional – o poder que permitiu o

surgimento da constituição em si é considerado como meramente factual, ou pré-jurídico.

Agamben, por outro lado, prefere ver a relação entre as duas espécies de poder, com

base em Walter Benjamin73, como a distinção entre o poder que “põe” o direito, e o poder

que “mantém” o direito. Há uma dialética entre a violência que põe e a violência que

70 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 43. 71 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 47. 72 Essa seria, grosso modo, a posição defendida por Carl Schmitt.

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conserva o direito, calcada na observação de que toda violência que mantém o direito

termina por enfraquecer, ao passar do tempo, a violência geradora do direito que deveria ser

nela representada – eventualmente, uma nova violência criadora põe fim à violência

conservadora e estabelece um novo direito. Sobre o tema, Benjamin reflete que:

A possibilidade do direito de guerra, quanto à situação jurídica, baseia-se exatamente nas mesmas contradições objetivas que a do direito de greve, a saber: no fato de que sujeitos jurídicos sancionam violências* cujos fins permanecem fins naturais para os autores da sanção e que, por isso, na hora H, podem entrar em conflito com seus próprios fins jurídicos ou naturais. Em primeiro lugar, porém, a violência da guerra almeja seus fins de maneira imediata, enquanto violência assaltante. No entanto, o que chama muita atenção é que mesmo – ou justamente – em contextos primitivos, onde apenas se conhecem esboços de relações político-jurídicas, e mesmo nos casos em que o vencedor se assegurou a posse de algo agora inexpugnável, a paz seja um cerimonial indispensável. De fato, a palavra “paz” – numa acepção em que ela se torna correlato da palavra “guerra” – designa, por assim dizer, a priori uma sanção de toda vitória, sanção necessária e independente de todas as demais relações jurídicas (...). A sanção consiste em reconhecer a nova situação como um novo “direito”, independentemente se ela necessita de fato alguma garantia para ter continuidade ou não. Portanto, se a violência* da guerra enquanto primitiva e arquetípica pode servir de modelo para qualquer violência* para fins naturais, a toda violência desse tipo é inerente um caráter legislador. (...) Se, na última guerra, a crítica do poder* militar se tornou ponto de partida para uma apaixonada crítica da violência em geral – crítica que pelo menos ensina que a violência não pode mais ser exercida de forma ingênua nem tolerada –, o poder* militar tornou-se objeto de crítica não apenas como poder instituinte de um direito, mas foi julgado de maneira talvez ainda mais arrasadora quanto a uma outra função. Pois o que caracteriza o militarismo, que só chegou a ser o que é por causa do serviço militar obrigatório, é uma duplicidade na função da violência*. O militarismo é a compulsão para o uso generalizado da violência como um meio para os fins do Estado. (...) Ali, a violência* se mostra numa função completamente outra que a de seu simples emprego para fins naturais. A compulsão consiste no uso da violência como meio para fins jurídicos. Pois a subordinação dos cidadãos às leis – no caso, à lei do serviço militar obrigatório – é um fim jurídico. Se a primeira função da violência passa a ser a instituição do direito, sua segunda função pode ser chamada de manutenção do direito. Uma vez que o serviço militar obrigatório é um caso de aplicação do poder* mantenedor do direito (que, em princípio, não se distingue dos outros casos de aplicação desse poder), sua crítica realmente eficaz não é tão simples como querem os pacifistas e os ativistas em suas declamações. Ela coincide com a crítica de todo e qualquer poder* judiciário, ou seja, com a crítica do poder* legal ou executivo, e não pode ser realizada por menos.74

73 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie (Escritos Escolhidos). Trad.: Celeste H.M. Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: Cultrix Editora da Universidade de São Paulo, 1986. p. 160-175. 74 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 164-165. Sobre o uso de asteriscos no texto, o tradutor informa que: “Optei por esta tradução do original “Zur Kritik der Gewalt”, uma vez que todo o ensaio é construído sobre a ambigüidade da palavra Gewalt, que pode significar ao mesmo tempo “violência” e “poder”. A intenção de Benjamin é mostrar a origem do direito (e do poder judiciário) a partir do espírito da violência. Portanto, a semântica de Gewalt, nesse texto, oscila constantemente entre esses dois

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Sobre a dialética de funcionamento e relação entre poder instituinte do direito e

poder mantenedor do direito – ou, em outros termos, entre poder constituinte e poder

constituído –, Benjamin afirma ainda que:

A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história. É a “filosofia” dessa história, porque somente a idéia do seu final permite um enfoque crítico, diferenciador e decisivo de suas datas temporais. Um olhar dirigido apenas para as coisas mais próximas perceberá, quando muito, um movimento dialético de altos e baixos nas configurações do poder* enquanto instituinte e mantenedor do direito. A lei dessas oscilações consiste em que todo poder* mantenedor do direito, no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente o poder* instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos antipoderes* inimigos (...). Isso dura até que novos poderes* ou os anteriormente oprimidos vençam o poder* até então instituinte do direito, estabelecendo assim um novo direito sujeito a uma nova decadência. A ruptura dessa trajetória, que obedece a formas míticas de direito, a destituição do direito e dos poderes* dos quais depende (como eles dependem dele), em última instância, a destituição do poder do Estado, fundamenta uma nova era histórica.75

Desse modo, Agamben entende que à tese de que o poder constituinte se resumiria

ao poder de revisão previsto no ordenamento estabelecido, faltaria a presença da violência

criadora do direito, que serve de base para a própria existência do ordenamento. Por outro

lado, a tese que contempla o poder constituinte como soberanamente externo a toda ordem

constituída não consegue dar um fundamento legítimo à sua exterioridade à ordem, de

modo que o relacionamento entre poder constituinte e constituído mantém-se sempre tenso

e ambíguo.

O poder soberano mantém-se em constante relação tanto com o poder constituinte,

quanto com o poder constituído, que, nessa perspectiva, dele derivam, e somente a partir

dele existem.

pólos; tive que optar, caso por caso, se “violência” ou “poder” era a tradução mais adequada, colocando um asterisco quando as duas acepções são possíveis. (N.T.)”. p.160. 75 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 174-175. Ainda sobre o tema, Benjamin completa que: “(...) A função do poder-violência, na institucionalização do direito, é dupla no sentido de que, por um lado, a institucionalização almeja aquilo que é instituído como direito, como o seu fim, usando a violência* como meio; e, por outro lado, no momento da instituição do fim como um direito, não dispensa a violência*, mas só agora a transforma, no sentido rigoroso e imediato, num poder* instituinte de direito, estabelecendo como direito não um fim livre e independente de violência (Gewalt), mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, sob o nome de poder (Macht). A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência”. p. 172.

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Nesta perspectiva, a célebre tese de Sieyès, segundo a qual “a constituição supõe antes de tudo um poder constituinte”, não é, como tem sido observado, um simples truísmo: ela deve ser entendida sobretudo no sentido de que a constituição se pressupõe como poder constituinte e, desta forma, exprime no modo mais prenhe de sentidos o paradoxo da soberania. Como o poder soberano se pressupõe como estado de natureza, que é assim mantido em relação de bando com o estado de direito, assim ele se divide em poder constituinte e poder constituído e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seu ponto de indiferença. Sieyès era, de sua parte, tão consciente desta implicação, a ponto de colocar o poder constituinte (identificado na “nação”) em um estado de natureza fora do liame social (...).76

O poder soberano institui o estado de direito abandonando-o, ou seja, suspendendo-

se enquanto estado de natureza. Mas, ao suspender-se, mantém-se em relação tanto com o

poder constituinte quanto com o poder constituído, na medida em que passa a localizar-se

no ponto onde é impossível identificar o quê constitui poder constituinte e o quê constitui

poder constituído, ou seja, no ponto onde é impossível identificar o que é direito e o que é

estado de natureza.

A confusão entre poder constituinte e poder constituído remete novamente ao texto

de Benjamin, que identifica na polícia, no poder policial, uma esfera na qual a instituição e

a manutenção do direito se misturam e se confundem:

Os dois tipos de poder* estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia, numa relação muito mais contrária à natureza que a pena de morte, numa mistura por assim dizer espectral. É verdade que a polícia é um poder* para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização dela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar decretos). A infâmia dessa instituição – sentida por poucos, porque raramente a competência da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis – consiste em que ali se encontra suspensa a separação entre poder* instituinte e poder* mantenedor do direito. Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder* da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder* instituinte de direito – cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito – e um poder* mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder* policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade, o “direito” da polícia é o ponto em que o Estado – ou por impotência ou devido a inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins

76 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 48-49.

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empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal, ao longo de uma vida regulamentada por decretos. Ao contrário do direito que, na “decisão” fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica, a observação da instituição da polícia não encontra nenhuma essência. Seu poder* é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civilizados. E, apesar de a polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absoluta – onde ela representa o poder* do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos – do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginativa do poder*.77

No sentido proposto por Agamben, portanto, a polícia benjaminiana pode ser

considerada como uma detentora do poder soberano. Ou, melhor ainda, os soberanos, os

Estados modernos, atuam exatamente como atua essa “espectral” polícia, reunindo em si o

poder executivo e o poder legislativo, agindo por meio de decretos, e intervindo em

situações jurídicas indefinidas, ou seja, em exceção. Entretanto, se para Benjamin tal fato

constitui um degenerescência do poder, para Agamben tudo isto decorre já da natureza

ontológica intrínseca do poder e do direito, e nada mais representa que seu “normal”

funcionamento.

Surge, de toda esta reflexão, o problema de se diferenciar o poder soberano do

poder constituinte, na medida em que ambos parecem se mesclar, e é impossível

estabelecer com segurança se estes se situam, ou inteiramente dentro, ou inteiramente fora,

do ordenamento jurídico constituído. O poder constituinte que funda a ordem jurídica se

mantém permanentemente presente no Estado, ou se esgota no poder constituído, ou, quiçá,

se confunde completamente com o poder soberano?

Schmitt considera o poder constituinte como uma “vontade política”, que é capaz de “tomar a decisão concreta fundamental sobre a espécie e a forma da própria existência política”. Como tal, ele está “antes e acima de qualquer procedimento legislativo constitucional” e é irredutível ao plano das normas e teoricamente distinto do poder soberano (Schmitt, 1928, p. 120). Mas se, como

77 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p.166-167. Fica muito clara, nesse trecho, a decisiva influência de Benjamin sobre Agamben, já que há uma nítida, ainda que pouco explorada, identificação da confusão “espectral” entre poder instituinte e poder mantenedor com o poder soberano que detém simultaneamente plenos poderes executivos e legislativos.

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acontece (segundo o próprio Schmitt) já a partir de Sieyès, o poder constituinte se identifica com a vontade constituinte do povo ou da nação, então não está claro o critério que permite distingui-lo da soberania popular ou nacional, e sujeito constituinte e sujeito soberano tendem a confundir-se. Schmitt critica a tentativa liberal de “conter e delimitar completamente através de leis escritas o exercício do poder estatal”, afirmando a soberania da constituição ou da charte fundamental: as instâncias competentes para a revisão da constituição “não se tornam em seguida a esta competência soberanas nem titulares de um poder constituinte”, e o resultado inevitável é a produção de “atos apócrifos” de soberania” (Ibidem. p. 151-152). Poder constituinte e poder soberano excedem, ambos, nesta perspectiva, o plano da norma (seja até mesmo da norma fundamental), mas a simetria deste excesso é testemunha de uma contigüidade que vai se diluindo até a coincidência.

Toni Negri, em um livro recente, pretendeu mostrar a irredutibilidade do poder constituinte (definido como “praxe de um ato constitutivo, renovado na liberdade, organizado na continuidade de uma praxe livre”) a qualquer forma de ordenamento constituído e, juntamente, negar que ele seja recondutível ao princípio da soberania. “A verdade do poder constituinte” – ele escreve – “não é aquela que (seja de que modo for) lhe pode ser atribuída pelo conceito de soberania. Não é esta, porque o poder constituinte não só não é (como é óbvio) uma emanação daquele constituído, mas nem ao menos a instituição do poder constituído: ele é o ato da escolha, a determinação pontual que abre um horizonte, o dispositivo radical de algo que não existe ainda e cujas condições de existência prevêem que o ato criativo não perca na criação as suas características. Quando o poder constituinte coloca em ação o processo constituinte, toda determinação é livre e permanece livre. A soberania ao contrário se apresenta como fixação do poder constituinte, portanto como fim deste, como esgotamento da liberdade de que este é portador.” (Negri, 1992, p. 31) O problema da distinção entre poder constituinte e poder soberano é, certamente, essencial; mas que o poder constituinte não promane da ordem constituída nem se limite a instituí-la, e que ele seja, por outro lado, praxe livre, não significa ainda nada quanto à sua alteridade em relação ao poder soberano. Se a nossa análise da estrutura original da soberania como bando e abandono é exata, estes atributos pertencem, de fato, também ao poder soberano, e Negri, na sua ampla análise da fenomenologia histórica do poder constituinte, não pode encontrar em parte alguma o critério que permite isolá-lo do poder soberano.

O interesse do livro de Negri reside, sobretudo, na perspectiva última que ele abre, ao mostrar como o poder constituinte, uma vez pensado em toda a sua radicalidade, cesse de ser um conceito político em sentido estrito e se apresente necessariamente como uma categoria da ontologia. O problema do poder constituinte se torna então aquele da “constituição da potência” (Ibidem. p. 383), e a dialética irresolvida entre poder constituinte e poder constituído deixa lugar a uma nova articulação da relação entre potência e ato, o que exige nada menos que repensar as categorias ontológicas da modalidade em seu conjunto. O problema se desloca, assim, da filosofia política à filosofia primeira (ou, se quisermos, a política é restituída à sua condição ontológica).78

78 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 50-51. A definição schmittiana acerca do conceito de poder constituinte é também similar ao que propõe Benjamin sobre o funcionamento da dialética entre poder instituinte e poder mantenedor do direito. À decisão concreta fundamental sobre a espécie e a forma da própria existência política de Schmitt, corresponde a idéia de ordem de destino: “(...) o direito positivo, quando está consciente de suas raízes, reivindicará o fato de reconhecer em cada indivíduo o interesse da humanidade e de fomentá-lo. Tal interesse consistiria na apresentação e conservação de uma ordem de destino.” In: BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p.165. De todo modo, a Constituição soberana de Schmitt é apenas a política, e não a jurídica – nesse sentido, o texto normativo

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A crítica feita a Toni Negri, expoente filósofo italiano de esquerda, acerca do

conceito de poder constituinte não parece acertada. Isto porque Negri trata do conceito de

poder constituinte de uma forma programática, voltada não para a avaliação de como o

conceito é tratado na teoria e na prática modernas, mas sim para a proposição de uma forma

inédita de se pensar e “praticar” o poder constituinte, democrática, aberta, não instituinte de

um poder constituído, e profundamente vinculada a conceitos tais como multidão e

intelecto geral79.

Tanto é assim que Agamben ignora uma afirmação de Negri feita poucas páginas

antes do trecho citado, para rapidamente criticar o poder constituinte de Negri:

Ao nos confrontarmos com a crise do conceito de poder constituinte, considerado como categoria jurídica, devemos indagar se, ao invés de tentar superar a crise, como o pensamento jurídico faz inutilmente, não seria melhor aceitá-la e, a partir desta aceitação, tentar compreender melhor a natureza do conceito. Ora, aceitar a crise do conceito significa desde logo negar que o conceito de poder constituinte possa de algum modo ser fundado e, com isto, privado da sua natureza de fundamento. Esta ruptura ocorre conclusivamente, já vimos, toda vez que o poder constituinte é subordinado à função representativa ou ao princípio da soberania, mas já começa a operar quando a onipotência e a expansividade do poder constituinte são submetidas a limitações e/ou finalismos constitucionais.

(...) Uma vez limitado e concluído, o poder constituinte é então retido em redes hierárquicas que articulam produção e representação, e assim reconstruído conceitualmente, não como causa, mas como resultado do sistema. Inverte-se o sentido do fundamento: a soberania como suprema potestas é evocada e reconstruída como fundamento, mas um fundamento oposto ao poder constituinte: é um vértice, enquanto o poder constituinte é uma base; é uma finalidade cumprida, enquanto o poder constituinte não tem finalidade; é um tempo e um espaço limitados e fixados, enquanto o poder constituinte é um procedimento absoluto. Tudo, em suma, opõe poder constituinte e soberania – e,

constitucional não seria soberano, mas tão-somente a Constituição encarada como decisão política fundamental de um povo. 79 A extensa reflexão de Negri busca construir uma alternativa teórica e prática para a noção de poder constituinte a partir de Marx e de alguns outros pensadores, tais como Maquiavel, Spinoza, Lênin, Rousseau – de modo similar à arqueologia feita pelo próprio Agamben. Trata-se, todavia, de uma alternativa que, a despeito de buscar as raízes ontológicas do poder constituinte, não se pretende exclusiva – como, por exemplo, é a avaliação ontológica do poder soberano feita por Agamben. Uma explicação razoável da perspectiva de Negri demandaria uma nova tese. Sobre o tema, ver, principalmente: NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad.: Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.; NEGRI, Antonio. Cinco Lições sobre Império. Trad.: Alba Olmi. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.; NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. Trad.: Berilo Vargas. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.; NEGRI, Antonio et COCCO, Giuseppe. Glob(AL) – Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Trad.: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

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finalmente, o caráter absoluto a que ambas as categorias aspiram, pois o caráter absoluto da soberania remete a um conceito totalitário, enquanto o caráter absoluto do poder constituinte remete ao governo democrático.80

Pode-se afirmar que Negri, apesar de atribuir apenas ao poder constituinte livre e

aberto sua natureza ontológica concreta e real, admite a possibilidade de “captura” do poder

constituinte pelo poder soberano – ou seja, da existência de um poder constituinte totalitário

e absoluto:

O poder constituinte debate-se entre essas alternativas. A sua temporalidade constitutiva é direcionada para a esperança e todo o leque de possibilidades abertas pelo futuro, para a produção de uma riqueza nova e de uma humanidade nova; ou é redirecionada para a história, como princípio supremo de um devir que submerge no passado, nas pré-condições necessárias do existente, e o passado produz o presente. (...) O que quero dizer é que, se o princípio constituinte for aberto, ele será revolucionário; se for fechado, ele será reacionário e conservador. Abertura e encerramento do tempo determinam o sentido substantivo do princípio constituinte.81

Ao poder constituinte “reacionário e conservador”, capturado pela soberania, parece

corresponder o poder constituinte proposto por Agamben, indiferenciável da soberania82.

Neste ponto, portanto, a discussão entre Negri e Agamben reporta-se tão somente a qual

seria a natureza ontológica final do conceito de poder constituinte: práxis livre e aberta para

Negri, exceção e abandono para Agamben. A disputa, portanto, aparentemente se vincula

exclusivamente ao significado da expressão “poder constituinte” – ou, quiçá, ao

“significado ontológico” deste poder constituinte.

Se, por um lado, Negri não nega que o poder soberano possa capturar o poder

constituinte e “anulá-lo”, por outro Agamben não admite a existência do poder constituinte

80 NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 24-25. 81 NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 331. 82 Tanto que Negri, comentando Schmitt, usa também o conceito de soberania como suspensão da lei: “(...) O soberano é aquele que pode “suspender a lei”; que pode, portanto, suspender a própria lei que confere a soberania, que pode fazer o poder constituinte consistir no princípio de sua própria negação.” Negri, entretanto, e ao contrário de Agamben, vê, justamente nessa característica, a possibilidade positiva de constituição de um verdadeiro poder constituinte: “De um modo totalmente nietzschiano, trata-se de sublinhar que a ação de suspender, longe de poder ser definida em termos negativos, funda e abre a possibilidade do positivo. Quanto mais a primeira decisão manifesta-se na negatividade, mais ela abre radicalmente um campo novo de possibilidades fundadoras, inovadoras, lingüísticas, constitucionais. Com isto, o ato constitutivo abre-se positivamente: a “palavra ou idioma de origem” (ursprungliche Wort oder Sprache) é liberada, e é nesta

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“livre e aberto” conforme proposto por Negri, pois, em seu entendimento, apenas o poder

constituinte que é ontologicamente exceção existiu e ainda existe. Apesar de Negri tentar

provar a ocorrência histórica concreta do seu conceito de poder constituinte, ele próprio

apresenta sua perspectiva como proposta alternativa e teórica ao poder constituinte

capturado pela soberania.

Assim, a breve crítica de Agamben parece, no mínimo, leviana. Que para ele seja

falsa a existência de um poder constituinte livre da soberania – ou que a “libertação” da

soberania não possa ser chamada de poder constituinte83, é, evidentemente, aceitável. Que a

crítica não tenha se dirigido para este ponto é de difícil compreensão. Agamben e Negri,

todavia, são autores que tocam em temas bastante semelhantes e em problemas muito

próximos: ambos discutem soberania e biopolítica, modernidade e potência constitutiva84.

Talvez seja isso, justamente, o que justifique a “rápida” recusa de Agamben ao pensamento

de Negri85.

dimensão criadora profunda que se articula o sentido de comunidade (...)” . In: NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p.34. 83 Libertação essa que, avaliada em termos biopolíticos, é vista por Agamben como o problema político fundamental do tempo presente. 84 A definição de biopolítica dada por Negri no âmbito de sua teoria sobre a “soberania imperial” (perspectiva que, a despeito de sua conexão com a presente tese, é por demais extensa e divergente para ser apresentada – mas que, de toda forma, pode ser resumida na idéia de que a soberania na atualidade é exercida internacionalmente, sem um ponto fixo de localização – não é possível identificar quem é o soberano – em atendimento às necessidades do capitalismo mundial, por meio justamente das técnicas de polícia e de exceção), inclusive, é bastante útil para aclarar a questão: “A seguir, a obra de Foucault nos permite reconhecer a natureza biopolítica do novo paradigma de poder. Biopoder é a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade. Como disse Foucault, “a vida agora se tornou objeto de poder”. A função mais elevada desse poder é envolver a vida totalmente, e sua tarefa primordial é administrá-la. O biopoder, portanto, se refere a uma situação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção e a reprodução da própria vida.” NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. p. 43. 85 Negri tampouco guarda “amores” por Agamben: “As culturas políticas européias dos séculos XIX e XX tentaram reduzir o conceito de soberania a um aparato absoluto que teria funcionado sem limites internos. Carl Schmitt é o autor que melhor soube formular esse conceito, renovando as primeiras teorias modernas sobre a soberania absoluta traçadas por autores como Jean Bodin e Thomas Hobbes. Vitae nescisque potestas (o poder de vida e morte) e, nesse contexto, a definição fundamental e unilateral do poder soberano. Giorgio Agamben, de forma semelhante pensou encontrar, na antiga forma do bando, a essência do estado soberano de exceção. Tudo isso não funciona mais. O final do século XX nos propôs uma teoria realista da soberania, entendida como efeito do choque entre múltiplos poderes. É o triunfo de Maquiavel e do republicanismo sobre Bodin e Schmitt. A crise da soberania é hoje séria e profunda. O rei está verdadeiramente nu. A soberania tende a tornar-se nada mais do que domínio ineficaz. (...) Do ponto de vista das análises dos diferentes regimes de produção, o Homo sacer evocado por Agamben aproxima-se mais do escravo em fuga do que de uma figura da arqueologia mítica do direito (...)”. NEGRI, Antonio. Cinco Lições sobre Império. p. 86-87. Colocar Agamben, não como crítico, mas ao lado de Schmitt e Bodin como “apoiador” de um conceito

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De todo modo, Agamben passa a avaliar a questão da potência vinculada à dialética

entre poder constituinte e poder constituído. A relação entre esses dois poderes seria similar

à que existe na relação proposta por Aristóteles entre potência e ato, tendo em vista

principalmente a forma de se conceber a existência e a autonomia da potência. “(...) No

pensamento de Aristóteles, de fato, por um lado, a potência precede o ato e o condiciona e,

por outro, parece permanecer essencialmente subordinada a ele (...)”.86 Entretanto, a

potência mantém sempre sua existência autônoma em relação ao ato, na medida em que

pode ser pensada além de uma mera possibilidade lógica.

A existência efetiva da potência passa pela possibilidade de a potência não se tornar

ato, ou seja, de, na constituição própria da potência, subsistir a potência de não ser ou fazer.

Em outros termos, a existência da potência implica a possibilidade da impotência: “(...)

“toda potência é impotência do mesmo e em relação ao mesmo (...) “O que é potente pode

tanto ser como não ser. Posto que o mesmo é potente tanto de ser quanto de não ser

(...)”. 87 Logo, a potência que existe independentemente do ato é justamente essa potência

que pode não passar ao ato. O problema da relação entre potência e ato, coloca-se, então, do

seguinte modo: “Ela se mantém em relação com o ato na forma de sua suspensão, pode o

ato podendo não realizá-lo, pode soberanamente a própria impotência. Mas como pensar,

nesta perspectiva, a passagem ao ato? Se toda potência (de ser ou fazer) é também,

originariamente, potência de não (ser ou fazer), como será possível o realizar-se de um

ato?”.88

Agamben, interpretando a afirmativa de Aristóteles de que “(...) “É potente aquilo,

para o qual, quando se realiza o ato do qual se disse ter a potência, nada será de potente

não ser (...)”.”.89, propõe que a potência somente pode transformar-se em ato no instante

absoluto de soberania, bem como pressupor que a estrutura de funcionamento da lógica do homo sacer não se estende sobre escravos em fuga e quaisquer outros desvalidos que somente são incluídos na comunidade política por meio de sua exclusão, são críticas tão inconseqüentes e eivadas de má-fé como a relativa ao poder constituinte de Negri traçada por Agamben. 86 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 52. 87 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 52. 88 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 53. 89 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 53.

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em que elimina a sua potência de não ser, ou seja, quando deixa de ser possível à potência

não se converter em seu ser ou fazer. “(...) Esta deposição da impotência não significa a

sua destruição, mas é, ao contrário, a sua realização, o voltar-se da potência sobre si

mesma para doar-se a si mesma (...)”.90. Dessa forma, a passagem da potência ao ato não é

uma destruição da potência em ato, mas sim uma espécie de conservação dessa mesma

potência, que se doa a si mesma para se tornar ato.

A estrutura da potência é também a estrutura da soberania:

Descrevendo deste modo a natureza mais autêntica da potência, Aristóteles legou, na realidade, à filosofia ocidental o paradigma da soberania. Dado que, à estrutura da potência, que se mantém em relação com o ato precisamente através de seu poder não ser, corresponde aquela do bando soberano, que aplica-se à exceção desaplicando-se. A potência (no seu dúplice aspecto de potência de e potência de não) é o modo através do qual o ser se funda soberanamente, ou seja, sem nada que o preceda e determine (superiorem non recognoscens) senão o próprio poder não ser. E soberano é aquele ato que se realiza simplesmente retirando a própria potência de não ser, deixando-se ser, doando-se a si.91

À luz de tal dialética, potência e ato constituem-se em dois aspectos do processo de

autofundação soberana do ser. O ser em ato depende da suspensão soberana da potência,

que suspende a si própria pela suspensão da sua possibilidade de não ser, doando-se a si

mesma para se converter em ato. “(...) A soberania é sempre dúplice, porque o ser se auto-

suspende mantendo-se, como potência, em relação de bando (ou abandono) consigo, para

realizar-se então como ato absoluto (que não pressupõe, digamos, nada mais do que a

própria potência). No limite, potência pura e ato puro são indiscerníveis, e esta zona de

indistinção é, justamente, o soberano”.92

Negri, que trabalha também a idéia de potência, por outro lado, vincula-a não à

estrutura da soberania, mas sim à do poder constituinte “livre e aberto”. Revela-se, desse

modo, e novamente, a efetiva contradição existente entre os dois autores, acerca do status

ontológico dos conceitos de poder constituinte e de soberania:

90 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 53. 91 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 54. 92 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 54.

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Insistindo assim em considerar o conceito de poder constituinte como conceito de um procedimento absoluto – onipotente e expansivo, ilimitado e inconcluso –, podemos começar a avaliar a originalidade da estrutura. Antes, devemos enfrentar novamente uma crítica, que se traduz na seguinte objeção: o que significa esse caráter absoluto, considerado dessa forma, senão o caráter absoluto de uma ausência, de um vazio infinito de possibilidades, ou de uma abundância de possibilidades negativas? Parece-nos que, nesta objeção, a má-compreensão da ausência seja multiplicada pela incompreensão do conceito de possibilidade: esta objeção pode ser rechaçada. Se o conceito de poder constituinte é o conceito de uma ausência, por que então esta ausência deveria ser resolvida num vazio de possibilidade ou numa negatividade plena? De fato, aqui tocamos num ponto central do debate metafísico, relativo ao tema da potência e de sua relação com o poder. Ora, a alternativa metafísica para a definição da potência – na longa tradição que vai de Aristóteles ao Renascimento, de Schelling a Nietzsche – é precisamente aquela da ausência ou do poder, do desejo ou da posse, da recusa ou do domínio. Às vezes esta alternativa é fechada: é o que se dá quando o poder é assumido como fundamento, como fato físico pré-existente, como ordem finalizada ou como resultado dialético. Outras vezes, ao contrário, a alternativa é aberta. Uma grande corrente do pensamento político moderno, de Maquiavel a Espinosa e Marx, situa-se em torno desta segunda alternativa, que é fundamento do pensamento democrático. Nesta tradição, a ausência de pré-constituições e finalidades combina-se com a potência subjetiva da multidão, constituindo então o social em materialidade aleatória de uma relação universal, em possibilidade de liberdade. A constituição do social é uma potência baseada na ausência, isto é, no desejo, e o desejo nutre, incansável, o movimento da potência. A potência humana determina um deslocamento contínuo do desejo, aprofunda a ausência em que o evento inovador tem lugar. A expansividade da potência e a sua produtividade baseiam-se num vazio de limitações, numa ausência de determinações positivas, nesta plenitude da ausência. O poder constituinte se define emergindo do turbilhão do vazio, do abismo da ausência de determinações, como uma necessidade totalmente aberta. É por isto que a potência constitutiva não se esgota nunca no poder, nem a multidão tende a se tornar totalidade, mas conjunto de singularidades, multiplicidade aberta. O poder constituinte é esta força que se projeta para além da ausência de finalidade, como tensão onipotente e crescentemente expansiva. Ausência de pressupostos e plenitude da potência: este é um conceito bem positivo de liberdade.93

Deixando de lado o que pode significar uma “materialidade aleatória de uma relação

universal” – até porque Negri não é pródigo em esclarecer seus conceitos – é interessante

observar que, enquanto Agamben vê na potência aristotélica a realidade de a soberania ser

exceção e abandono, Negri volta-se para uma tradição alternativa da potência, pretendendo

que o poder constituinte, ao se estruturar como uma espécie de ponto vazio em torno de

uma potência de ausência, desprovida de pressupostos e finalidades, possa funcionar como

instituidor democrático da liberdade.

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Tanto que, para Negri, essa potência deve necessariamente permanecer sempre

como potência, sem nunca se institucionalizar, sem nunca consolidar uma ordem concreta.

O poder constituinte somente é poder constituinte enquanto permanece não

institucionalizado, como potência:

(...) Quando o poder constituinte desencadeia o processo constituinte, toda determinação é liberada e permanece livre. A soberania, ao contrário, apresenta-se como fixação do poder constituinte, como termo deste, como esgotamento da liberdade de que ele é portador: oboedientia facit auctoritarem. Não, a indicação lingüística “expressão da potência” não pode significar em nenhum caso “instituição do poder”. No momento em que a potência se institucionaliza, ela deixa de ser potência, declara jamais tê-lo sido. (...) (...) Que a potência, ao se institucionalizar, não possa senão negar a si mesma, parece-nos uma primeira afirmação relevante e irredutível. (...) Para muito além das banalidades apologéticas do institucionalismo contemporâneo, se queremos compreender a potência do princípio constituinte, devemos rechaçar toda a filosofia que, mesmo heroicamente, chegue a conclusões institucionalistas. Isto porque não há dimensão vertical ou totalizante no ato constitutivo: estão antes presentes e ativos a resistência e o desejo, a pulsão ética e a paixão construtiva, a articulação do sentido da insuficiência do existente e o extremo vigor da reação a uma intolerável ausência de ser. É assim que a potência se forma como poder constituinte, não para ser institucionalizada, mas para construir mais ser – ser ético, ser social, comunidade. Eis-nos aqui a descobrir novamente o nexo estreitíssimo e profundo que existe entre poder constituinte e democracia. O desejo de comunidade é o espectro e a alma do poder constituinte – desejo de uma comunidade tão real quanto ausente, trama e motor de um movimento cuja determinação essencial é a exigência de ser, repetida, premente, surgida de uma ausência. “O que é potente pode ser e não ser”.94

É estranho que Negri encerre sua reflexão com uma afirmação sobre a potência

vinda da tradição aristotélica, que, a princípio, parece querer renegar. Porque todo o seu

raciocínio é no sentido de que somente é potente aquilo que permanece como potência, ou

seja, é potente o que sempre pode “não ser”, mas não o que veio efetivamente a “ser”. Se a

potência não pode jamais se institucionalizar, então ela não pode vir a “ser” concretamente,

mas apenas pode “não ser”. De todo modo, o autor indica que, em sua perspectiva, a

soberania é o mecanismo que institucionaliza o poder constituinte, que esgota sua potência,

ou melhor, que faz sua potência nunca ter existido, que faz o poder constituinte nunca ter

sido poder constituinte.

93 NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 25-26.

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Se esta interpretação está correta, então parece que Agamben tem mais razão acerca

da natureza ontológica do poder constituinte, pois, a despeito de todos os exemplos

históricos dados por Negri, sobre a Revolução Francesa e a Americana, sobre o

Renascimento e a contemporaneidade, não há nenhum experiência histórica concreta de um

poder constituinte que não tenha efetivamente se institucionalizado em algum momento

histórico determinado. E, para ele, se o poder se institucionalizou, nunca terá sido

realmente poder constituinte. Dessa forma, o conceito de poder constituinte de Negri

revela-se muito mais como uma proposta, uma alternativa, do que a efetiva realização

política do conceito na história do Ocidente.

Por outro lado, se fosse utilizado o conceito aristotélico de potência, inclusive na

forma empregada por Agamben, o conceito de poder constituinte de Negri talvez pudesse

ter um pouco mais de ancoragem histórica. Isto porque, se o que é potente pode ser ou não

ser, sem deixar de ter sido potente por ter passado a ato, ou seja, por ter sido, então é

possível imaginar que existiu poder constituinte potente de ausência, que, todavia,

eventualmente se institucionalizou e deixou de ser poder constituinte. Mas, no caso, deixar

de ser é muito diferente de nunca ter sido, conforme propõe Negri – e seria possível

identificar exemplos históricos desses fenômenos nas circunstâncias da Revolução Francesa

e da Americana. Nessa hipótese, então, a teoria de Negri se contraporia à de Agamben a

partir do raciocínio de que o que este último identifica como soberania potente de ser ou de

não ser nada mais é que a soberania capturando e institucionalizando o poder constituinte,

extirpando sua potência de ausência95. E o que Agamben não admite é justamente a

existência desse poder constituinte diferenciado da soberania.

A questão realmente importante nessa discussão, entretanto, não é nem tanto qual

dos dois autores teria “razão ontológica”, mas sim como se evitar a exceção soberana, no

caso de Agamben, ou a captura do poder constituinte pela soberania, no caso de Negri.

Agamben, conforme mencionado pouco atrás, deixa a questão em aberto, e a coloca como

94 NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 38-39. 95 Importante observar que essa institucionalização da potência pela soberania não corresponde necessariamente à instituição do poder constituído. O poder constituinte institucionalizado pela soberania poderia muito bem permanecer sem se converter em poder constituído, gerando, desse modo, a situação de exceção generalizada e informal entrevista por Agamben.

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problema político fundamental da modernidade. Negri, por outro lado, parece entender que

seu conceito de poder constituinte é ontologicamente suficiente em si para tanto.

Independentemente de toda a ancoragem do poder constituinte em conceitos tais como

multidão, intelecto geral marxista, práxis livre, potência de ausência, desejo de ser,

comunidade, e infinitos outros espalhados pelos livros de Negri, não há, efetivamente, um

único mecanismo concreto para impedir que um dia a multidão se “disperse”, que o

intelecto geral deixe de pensar, que a práxis deixe de ser livre e o poder constituinte se

institucionalize, capturado pela soberania.

Não há, portanto, uma explicação de por quê “(...) a potência constitutiva não se

esgotaria nunca no poder, nem a multidão tenderia a se tornar totalidade, mas conjunto de

singularidades, multiplicidade aberta”. Tal circunstância, antes de revelar uma

“incapacidade” de Negri, mostra a enorme dificuldade, tanto dele quanto de Agamben, cada

um com as suas peculiaridades teóricas, em tratar do problema abordado. Tanto assim que

Agamben, ao tentar fornecer algumas possibilidades futuras além da política moderna,

dedica diversos capítulos de seu livro The Coming Community96 ao conceito de

singularidade, em oposição a uma identidade totalitária e comunitária. Em defesa de Negri,

96 AGAMBEN, Giorgio. The Coming Community. Trad.: Michael Hardt. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009. Sobre o tema da singularidade, ver especialmente os capítulos Outside e Tiananmen. Interessante observar, ainda, que o tradutor da obra para o inglês é Michael Hardt, co-autor e colaborador próximo de vários livros de Antonio Negri. A singularidade pode ser considerada como o irredutível a uma e qualquer identidade, e é o substrato no indivíduo que está além de qualquer possibilidade de identificação – assim, por exemplo, existe em cada indivíduo uma singularidade que está além de sua identificação como brasileiro, homem, militar, eleitor, palmeirense, etc. “WHATEVER is the figure of pure singularity. Whatever singularity has no identity, it is not determinate with respect to a concept, but neither is it simply indeterminate; rather it is determined only through its relation to an idea, that is, to the totality of its possibilities. Through this relation, as Kant said, singularity borders all possibility and thus receives its omnimoda determinatio not from its participation in a determinate concept or some actual property (being red, Italian, Communist), but only by means of this bordering. It belongs to a whole, but without this belonging´s being able to be represented by a real condition: Belonging, being-such, is here only the relation to an empty and indeterminate totality”. p. 67. [Tradução livre: “Qualquer uma” é a figura da singularidade pura. A “qualquer uma” singularidade não tem identidade, não é determinada a respeito de um conceito, mas tampouco é simplesmente indeterminada; quiçá, é determinada apenas através de sua relação a uma idéia, qual seja, a totalidade de suas possibilidades. Através dessa relação, como disse Kant, a singularidade confina (margeia) com todas as possibilidades, e recebe, deste modo, sua omnimoda determinatio não de sua participação em um determinado conceito ou em uma propriedade (característica) atual (ser vermelho, italiano, comunista), mas unicamente através desse confinamento (margeamento). Ela pertence a um todo, mas sem que esse pertencimento possa ser representado por uma condição real: pertencimento, ser-tal, é aqui tão somente a relação com uma totalidade vazia e indeterminada.] Tal singularidade constitui um vazio, uma ausência, que, todavia está presente em todo ser humano, e que, aparentemente, tanto para Negri quanto para Agamben, é uma das pré-condições para uma política livre da soberania.

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ainda, sublinhe-se que tampouco Agamben faz alguma proposta sobre como seria possível

fazer prevalecer a singularidade em face de tendências totalitárias de identidade e de

identificação comunitárias.

Em retorno ao pensamento de Agamben, a estrutura da potência aristotélica

demonstra que o poder constituinte mantém-se sempre em relação de bando com o poder

constituído, já que ele precisa abandonar-se para passar a ato e constituir o poder

constituído – o que não é uma decorrência inevitável ou necessária da existência do poder

constituinte, já que este pode manter-se indefinidamente como tal, sem nunca passar a ato,

a poder constituído (justamente porque pode manter-se indefinidamente como potência de

não ser ou fazer97). Em tal circunstância, a política revela sua natureza ontológica, e o

próprio poder político se mostra como uma categoria ontológica.

A inerência de um princípio de potência a toda definição da soberania já foi notada. Mairet observou, neste sentido, que o estado soberano se baseia sobre uma “ideologia da potência”, que consiste no “reconduzir à unidade os dois elementos de todo poder... o princípio da potência e a forma do seu exercício” (Mairet, 1978, p. 289). A idéia central aqui é que “a potência existe já antes de ser exercitada, e que a obediência precede as instituições que a tornam possível” (Ibidem. p. 311). Que esta ideologia tenha, na verdade, caráter mitológico, é sugerido pelo próprio autor: “Trata-se de um verdadeiro e próprio mito, cujos segredos não penetramos ainda hoje, mas que constitui, talvez, o segredo de todo poder.” É a estrutura deste arcano que pretendemos trazer à luz na figura da relação de abandono e da “potência de não”; porém mais do que com um mitologema no sentido próprio, topamos aqui com a raiz ontológica de todo poder político (potência e ato são, para Aristóteles, sobretudo categorias da ontologia, dois modos “em que o ser se diz”).98

A soberania, manifestada na estrutura do bando soberano, invoca, conforme já

discutido em relação ao vínculo existente entre violência e justiça, o problema da forma da

lei. Inspirado na obra de Kafka, em sua famosa fábula literária sobre a lei e o processo99,

Agamben propõe que a forma pura da lei se realiza no momento em que a lei não prescreve

absolutamente nada, ou seja, quando se delineia como puro bando. Em tal situação, a lei

nada exige, e se expõe como pura potência de lei.

97 E, também por isso, se estendermos o raciocínio a Negri, é possível afirmar que a institucionalização do poder constituinte pela soberania não representa necessariamente a institucionalização do poder constituído. É justamente o poder constituinte livre da soberania, proposto por Negri, que não existe na teoria de Agamben. 98 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 55. 99 KAFKA, Franz. O Processo. 1º ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

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Nessa hipótese, a forma pura da lei está também vinculada à exceção soberana:

assim como esta, a lei em sua forma pura se aplica por meio de sua própria “des-aplicação”,

e mantém aqueles a ela submetidos em seu bando, abandonando-os fora de si mesma. A lei

que vigora em potência inclui aqueles que estão a ela submetidos por meio de sua exclusão,

e os exclui por meio de sua inclusão. Essa seria a raiz primeira de qualquer lei. E, conforme

já sublinhado, exprime uma relação análoga à do homem com a linguagem:

(...) também a linguagem mantém o homem em seu bando, porque, enquanto falante, ele já entrou desde sempre nela sem que pudesse dar-se conta. Tudo aquilo que se pressupõe à linguagem (na forma de um não-lingüístico, de um inefável etc.) não é, aliás, nada mais que um pressuposto da linguagem, que, como tal, é mantido em relação com ela justamente enquanto é dela excluído. (...) Como forma pura da relação, de fato, a linguagem (como o bando soberano) pressupõe de antemão a si mesma na figura de um irrelato, e não é possível entrar em relação ou sair da relação com o que pertence à forma mesma da relação. Isto não significa que ao homem falante seja interdito o não-lingüístico, mas apenas que ele jamais pode alcançá-lo na forma de um pressuposto irrelato ou inefável, e, sim, em vez disso, na própria linguagem (...)100

A lei em sua forma pura, enquanto potência, é uma lei que vigora sem significar.

Essa é, segundo Agamben, a definição do bando soberano: vigência sem significado. É a lei

que vigora sem significar que caracteriza a existência do bando soberano – e, nisto se

encontra a estrutura original da soberania, da relação soberana. A essa estrutura

corresponde o ponto zero do conteúdo, do significado de uma lei, que termina por vigorar

apenas enquanto forma.

A lei que vigora sem significar não prescreve nem veta nenhum fim determinado,

nenhum comportamento específico – em tal cenário, qualquer ato, qualquer comportamento

pode acarretar qualquer conseqüência, de modo que essa lei aproxima-se completamente da

situação do estado de exceção. Em tais condições, a forma da lei torna-se indiscernível das

formas de vida, e não é mais possível separar direito de vida. Na circunstância em que a lei

vigora, por toda parte, desprovida de qualquer conteúdo, apenas como pura forma legal,

essa mesma lei se confunde com a vida, e fica impossível separar uma da outra.

100 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I p. 58.

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Se, conforme nossas análises precedentes, vemos na impossibilidade de distinguir a lei e a vida (...) o caráter essencial do estado de exceção, então a confrontar-se estão aqui duas diversas interpretações deste estado: de um lado aquela (...) que nele vê uma vigência sem significado, um manter-se da pura forma da lei além do seu conteúdo; do outro, o gesto benjaminiano, para o qual o estado de exceção transmutado em regra assinala a consumação da lei e o seu tornar-se indiscernível da vida que devia regular. A um niilismo imperfeito, que deixa subsistir indefinidamente o nada na forma de uma vigência sem significado, se opõe o niilismo messiânico de Benjamin, que nulifica até o nada e não deixa valer a forma da lei para além do seu conteúdo.101

Essas duas teses, de acordo com Agamben, estabelecem o marco a partir do qual é

possível pensar a relação entre vida e direito. Essas duas possibilidades do estado de

exceção, cada uma a seu modo específico, revelariam duas formas para a constituição do

estado de exceção, que se relacionariam à idéia de um estado de exceção virtual, no qual a

lei é indiscernível da vida, e à idéia de um estado de exceção efetivo, no qual a vida se

reduz inteiramente à lei:

Vimos em que sentido a lei, tornada pura forma de lei, mera vigência sem significado, tende a coincidir com a vida. Enquanto, porém, no estado de exceção virtual, se mantém ainda como pura forma, ela deixa subsistir diante de si a vida nua (...). No estado de exceção efetivo, à lei que se indetermina em vida contrapõe-se, em vez disso, uma vida que, com um gesto simétrico mas inverso, se transforma integralmente em lei. À impenetrabilidade de uma escritura que, tornada indecifrável, se apresenta então como vida, corresponde a absoluta inteligibilidade de uma vida totalmente reduzida a escritura.102

No estado de exceção, no qual a lei vigora sem significar, acaba por se tornar

impossível distinguir a transgressão da lei de sua execução e cumprimento. Nesse cenário,

o agente que age de acordo com a norma e aquele que a viola acabam coincidindo, sem a

existência de resíduos em suas formas de atuar103. A vigência sem significado representa,

nesse sentido, o abandono do indivíduo à totalidade absoluta da lei, fora de qualquer

jurisdição. A soberania, portanto, pode ser definida como a “(...) lei além da lei à qual

somos abandonados”.104

101 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 61. 102 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I p. 62-63. 103 “(...) (quem passeia após o toque de recolher não está transgredindo a lei mais do que o soldado que, eventualmente, o mate a esteja executando) (...)”. In: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 65. 104 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 66.

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A pura forma da lei constitui, em face de todo o exposto, a circunstância central do

estado de exceção, na medida em que é ela que gera a indiscernibilidade entre lei e vida.

Nesse estado de exceção vigora uma violência que não pode ser identificada nem como

violência que põe o direito, nem como violência que conserva o direito – conforme

proposto por Benjamin, na medida em que sua violência “(...) não conserva nem

simplesmente põe o direito, mas o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se dele

(...)”. 105 (esta seria, de fato, a violência da polícia benjaminiana). Dessa forma, Agamben

entende que:

(...) Dado que a violência soberana abre uma zona de indistinção entre lei e natureza, externo e interno, violência e direito; não obstante, o soberano é precisamente aquele que mantém a possibilidade de decidi-los na mesma medida em que os confunde. Enquanto o estado de exceção se distinguir do caso normal, a dialética entre violência que põe o direito e violência que o conserva não será verdadeiramente rompida, e a decisão soberana aparecerá aliás simplesmente como o meio em que se realiza a passagem de uma a outra (neste sentido, pode-se dizer que a violência soberana põe o direito, já que afirma a licitude de um ato de outra forma ilícito, e simultaneamente o conserva, já que o conteúdo do novo direito é somente a conservação do velho). Em todo caso, o nexo entre violência e direito é, mesmo na sua indiferença, mantido.106

A conseqüência da lógica ontológica que perpassa as relações entre direito, política

e estado de exceção resulta em que este último se converteu, nos tempos atuais, em uma das

principais técnicas políticas de governo, e até mesmo no verdadeiro paradigma de governo

da modernidade. Agamben entende, portanto, que o estado de exceção não constitui uma

mera questão de fato, vinculada apenas ao mundo político – ou, ainda, um ponto de

indiferença entre política e direito, mas sim um verdadeiro problema jurídico-constitucional

no qual está em jogo a referência à vida pelo direito, e sua conseqüente inclusão-exclusiva.

À luz da relação entre poder constituinte (poder instituidor do direito), poder

constituído (poder mantenedor do direito), poder constituinte institucionalizado que ainda

não se tornou poder constituído (poder instituidor e mantenedor do direito

simultaneamente? ou, quiçá, apenas instituidor que se recusa a se instituir em definitivo?), e

poder soberano, como interpretar, face ao constitucionalismo moderno, a teoria acerca da

105 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 72. 106 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 72.

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supremacia da Constituição? E, ainda, exclusivamente frente à discussão traçada por

Agamben e por ora interpretada, o que é e onde se insere a Constituição nesse universo de

poderes?

A produção de um texto constitucional é, na teoria clássica, ato privativo de um

poder constituinte107. Deixando de lado as divergências teóricas entre Agamben, Negri e

Schmitt, ou esse poder constituinte será ele mesmo idêntico ao poder soberano, ou será ele

soberano, ou terá ele o respaldo do poder soberano para produzir uma Constituição. A

promulgação do texto é, em tese, o ato de esgotamento do poder constituinte – e marca sua

conversão em poder constituído108. Em outros termos, a promulgação de uma Constituição

seria, para Benjamin, o ato violento, místico e fundador de uma nova ordem jurídica.

107 Dos vários autores até agora apresentados, Schmitt é quem mais refletiu acerca da doutrina constitucional propriamente dita. Sobre a validade de uma Constituição ele discorre que: “En realidad, una Constitución es válida cuando emana de un poder (es decir, fuerza o autoridad) constituyente y se establece por su voluntad. La palabra <<voluntad>> significa, en contraste con simples normas, una magnitud del Ser con origen de un Deber-ser. La voluntad se da de un modo existencial: su fuerza o autoridad reside en su ser. Una norma puede valer cuando es justa; entonces la concatenación sistemática conduce al Derecho natural y no a la Constitución positiva; o bien una norma vale porque está positivamente ordenada, es decir, por virtud de una voluntad existente. Una norma nunca se establece por sí misma (éste es un modo fantástico de hablar), sino que se reconoce como justa porque es derivable de preceptos cuya esencia es también justicia y no sólo positividad, es decir, verdadera realidad ordenadora. Quien dice que la Constitución vale como norma fundamental (no como voluntad positiva), afirma con ello que es capaz de portar, en virtud de ciertas cualidades de contenido, lógicas, morales y otras, un sistema cerrado de preceptos justos. Decir que una Constitución no vale a causa de su justicia normativa, sino sólo de su positividad, y que sin embargo, funda como pura norma un sistema o una ordenación de puras normas, es una confusión llena de contradicciones.” SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 34-35. Especificamente sobre o pode constituinte, Schmitt o define do seguinte modo: “I. Poder constituyente es la voluntad política cuya fuerza o autoridad es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de la propia existencia política, determinando así la existencia de la unidad política como un todo. De las decisiones de esta voluntad se deriva la validez de toda ulterior regulación legal-constitucional. Las decisiones, como mías, son cualitativamente distintas de las normaciones legal-constitucionales establecidas sobre su base.” (p. 93-94). 108 Diz-se em tese porque, conforme anotado por Agamben, a existência de uma Constituição não impede que, por meio da técnica da exceção, o poder constituinte permaneça como poder constituinte permanentemente. Curioso observar que, à luz do que Negri leciona, um poder constituinte que se propõe a estabelecer uma Constituição poderia ser considerado desde esse momento como capturado pela soberania e institucionalizado. Carl Schmitt, não à toa o maior teórico da decisão sobre a exceção como elemento político fundamental, afirma que o poder constituinte nunca se esgota em poder constituído, mesmo após o estabelecimento de uma Constituição: “I. Permanencia del Poder constituyente. El Poder constituyente se ejercita mediante el acto de la decisión política fundamental. La ejecución y formulación de ésta puede abandonarse a encargados especiales, por ejemplo, a una llamada Asamblea nacional constituyente. También puede existir, a base de las normas legal-constitucionales así surgidas, un dispositivo legal-constitucional para <<reformas>> o <<revisiones>> de leyes constitucionales. Pero el Poder constituyente mismo debe ser distinguido de éstas. No es susceptible de traspaso, enajenación, absorción o consunción. Le queda siempre la posibilidad de seguir existiendo, y se encuentra al mismo tiempo y por encima de toda Constitución, derivada de él, y de toda determinación legal-constitucional, válida en el marco de esta Constitución. (…) el Poder

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Um texto constitucional, portanto, a despeito de pressupor um poder constituinte,

integra o poder constituído. E, se a dialética de Benjamin entre violência que institui o

direito e violência que mantém o direito está correta, então a Constituição é

simultaneamente, na modernidade, a passagem da instituição para a manutenção, e o mais

potente dos mecanismos de manutenção do direito. Não obstante faça parte do poder

constituído, seu texto tem uma importância fundamental acima das demais leis que

integram a ordem jurídica: ele constitui não só a parcela de poder constituído que o poder

constituinte definiu como mais importante, como contém a forma de exercício do poder

constituinte derivado109.

Schmitt trata especificamente da relação entre poder constituinte e poder

constituído, ao avaliar o poder de reforma da Constituição. Sua perspectiva se ampara em

uma separação da idéia de Constituição – encarada como a decisão política fundamental

acerca da unidade de um povo – em contraste com a idéia de leis constitucionais – ou,

como se vem chamando, de texto constitucional. As leis constitucionais, o texto

constitucional, têm validade a partir da Constituição, mas com ela não se confundem; desse

modo, o poder de reforma (usualmente chamado de poder constituinte derivado), somente

pode promover alterações no texto constitucional, mas não na Constituição em si, na

decisão política fundamental.

Sólo es posible un concepto de Constitución cuando se distinguen Constitución y ley constitucional. No es admisible disolver primero la Constitución en una pluralidad de leyes constitucionales concretas y después determinar la ley constitucional por algunas características externas o acaso por el procedimiento de su reforma. De este modo se pierden un concepto esencial de la Teoría del Estado y el concepto central de la Teoría de la Constitución. (…) I. La Constitución en sentido positivo surge mediante un acto del poder constituyente. El acto constituyente no contiene como tal unas normaciones cualesquiera, sino, y precisamente por un único momento de decisión, la totalidad de la unidad política considerada en su particular forma de existencia. Este acto

constituyente no se extingue por un acto de su ejercicio. Mucho menos, se apoya en ningún título jurídico.” SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 108. 109 Que, em face do que pensam os autores analisados, é na verdade uma forma de poder constituído, e não de poder constituinte. De fato, a terminologia deriva do vínculo entre Constituição e poder constituinte. Mas considera-se, presentemente, que nem toda alteração do texto constitucional deve ser considerada ato de um poder constituinte – pois poder constituinte é o que institui (ou que se recusa a instituir), não o que simplesmente reforma o que já está instituído.

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constituye la forma y modo de la unidad política cuya existencia es anterior. No es, pues, que la unidad política surja porque se haya <<dado una Constitución>>. La Constitución en sentido positivo contiene sólo la determinación consciente de la concreta forma de conjunto por la cual se pronuncia o decide la unidad política. Esta forma se puede cambiar. Se pueden introducir fundamentalmente nuevas formas sin que el Estado, es decir, la unidad política del pueblo, cese. Pero siempre hay en el acto constituyente un sujeto capaz de obrar, que lo realiza con la voluntad de dar una Constitución. Tal Constitución es una decisión consciente que la unidad política, a través del titular del poder constituyente, adopta por sí misma y se da a sí misma. (…) La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por cuanto que no surge de sí misma. Tampoco vale por virtud de su justicia normativa o por virtud de su cerrada sistemática. No se da a sí misma, sino que es dada por una unidad política concreta. Al hablar, es tal vez posible decir que una Constitución se establece por sí misma sin que la rareza de esta expresión choque en seguida. Pero que una Constitución se dé a sí misma es un absurdo manifiesto. La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da. Toda especie de normación jurídica, y también la normación constitucional, presupone una tal voluntad como existente. Las leyes constitucionales valen, por el contrario, a base de la Constitución y presuponen una Constitución. Toda ley, como regulación normativa y también la ley constitucional, necesita para su validez en último término una decisión política previa, adoptada por un poder o autoridad políticamente existente. Toda unidad política existente tiene su valor y su <<razón de existencia>>, no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su existencia misma. Lo que existe como magnitud política, es, jurídicamente considerado, digno de existir. (…) Es necesario hablar de la Constitución como de una unidad, y conservar entre tanto un sentido absoluto de Constitución. Al mismo tiempo, es preciso no desconocer la relatividad de las distintas leyes constitucionales. La distinción entre Constitución y ley constitucional es sólo posible, sin embargo, porque la esencia de la Constitución no está contenida en una ley o en una norma. En el fondo de toda normación reside una decisión política del titular del poder constituyente, es decir, del Pueblo en la Democracia y del Monarca en la Monarquía auténtica.110

As duas características mencionadas constituem o cerne da proposta da supremacia

da Constituição. Ela é a lei mais alta de todas e também o fundamento de validade e de

legitimidade da lei e da política. Ou seja, a Constituição dá existência, simultaneamente, ao

direito e à política da comunidade, sendo que todas as demais leis, inclusive seu texto,

defluem sua validade e legitimidade necessariamente dela.

110 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 45-47. A significação prática da separação entre Constituição e leis constitucionais, para Schmitt, é a de que conquanto se possam reformar as leis constitucionais, não se pode suprimir a decisão fundamental sobre a unidade política sem que se destrua completamente a Constituição por um novo ato do poder constituinte. Em outros termos, não é possível a alteração do ato mítico fundador da ordem político-jurídica sem um novo ato mítico fundador. É desimportante, para a presente discussão, se Schmitt está certo ou não sobre a pré-existência necessária da unidade política para a eventual ação de um poder constituinte/soberano/mítico.

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A Constituição é o fundamento de validade da ordem jurídica, pois é feita com a

intenção de resguardar, tanto em seu texto quanto em sua vigência como decisão política, a

violência mística do ato que instituiu o direito. Por ser uma lei superior às demais, nenhuma

outra lei pode contrariá-la, e, em verdade, todas as outras leis devem e/ou podem ser

julgadas à sua luz. E, por ser também uma lei superior às demais, a alteração de seu texto

(de suas normas constitucionais) pelo poder constituído deve ser dificultada.

Disto decorrem os mecanismos de revisão e alteração constitucionais extremamente

comuns no Ocidente, os quais, lançando mão da técnica do quórum qualificado e da

necessidade de vários rounds de votação pelo poder legislativo, procuram dificultar a

alteração do texto constitucional e resguardar, desse modo, seu próprio fundamento mítico

de resquício materializado do ato instituidor daquela ordem jurídica111. A chamada

“intangibilidade” do texto constitucional relaciona-se com o conceito de “lei

constitucional” avaliado por Schmitt:

III. Reforma dificultada, como característica formal de la ley constitucional. La nota formal de la Constitución o (indistintamente) de la ley constitucional, se hallará en que los cambios constitucionales están sometidos a un procedimiento especial con condiciones más difíciles. Mediante las condiciones de reformas dificultadas se protege la duración y estabilidad de las leyes constitucionales y <<se aumenta la fuerza legal>>. (…) Se califican, sin embargo, de Constituciones rígidas aquellas en que está prevista constitucionalmente la posibilidad de reformas o revisiones constitucionales; pero esta reforma o revisión se encuentra ligada a supuestos o procedimientos especiales de mayor dificultad.112

111 Sob essa ótica, portanto, a Constituição pode ser interpretada, no cerne da dialética entre violência que instaura e violência que mantém o direito, como um mecanismo que objetiva preservar a qualidade fundadora de sua violência original no interior do poder constituído. Benjamin observaria, com razão, que, a despeito disso, não se afasta a certeza de que eventualmente a violência fundadora degenera em mera violência mantenedora do direito, incapaz de sustentar a “grandeza criativa” de seu ato fundador original. 112 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 41-42. Em relação à natureza “constituída” do que é chamado de poder constituinte derivado, Schmitt define ainda que: “(...) La competencia para reformar las leyes constitucionales es una competencia incluida en el marco de la Constitución, fundada en la misma, y no sobrepasándola. No envuelve la facultad de dar una nueva Constitución (…).” (p. 44). Há, ainda, passagem na qual o autor repudia completamente a possibilidade de existência de um “poder constituinte derivado”: “(…) Todo lo que se verifica en regulación legal-constitucional a base de la Constitución, y en el marco de las competencias constitucionales a base de la regulación legal-constitucional, es, en esencia, de naturaleza distinta a un acto del Poder constituyente. Ni aun las facultades y competencias constitucionales del <<pueblo>>, esto es, de los ciudadanos con derecho a voto (…). Es especialmente inexacto caracterizar como Poder constituyente, o pouvoir constituant, la facultad, atribuida y regulada sobre la base de una ley constitucional, de cambiar, es decir, de revisar determinaciones legal-constitucionales. También la facultad de reformar o revisar leyes constitucionales (…) es, como toda facultad constitucional, una competencia legalmente regulada, es decir, limitada en principio. No puede sobrepasar el marco de la regulación legal-

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A supremacia do texto constitucional, entretanto, não se confundiria, na perspectiva

de Schmitt, com a intangibilidade da Constituição in toto, ou seja, como decisão

fundamental acerca da unidade política. É, todavia, por causa da distinção entre

Constituição e lei constitucional que a suspensão da ordem jurídica não implica

necessariamente o rompimento da Constituição – porque, quando há a suspensão do direito,

é sobre as leis e as leis constitucionais que incide a exceção, mas não sobre a Constituição

como decisão, em si, intangível:

b) La Constitución es intangible, mientras que las leyes constitucionales pueden ser suspendidas durante el estado de excepción, y violadas por las medidas del estado de excepción. (…) Todo esto no atenta a la decisión política fundamental ni a la sustancia de la Constitución, sino que precisamente se da en servicio del mantenimiento y subsistencia de la misma. Por eso sería absurdo hacer de la intangibilidad de la Constitución una intangibilidad de cada una de las leyes constitucionales y ver en cada una de las prescripciones legal-constitucionales un obstáculo insuperable para la defensa de la Constitución en su conjunto. Esto, en la práctica, no sería más que colocar la ley particular por encima del conjunto de la forma de existencia política, cambiando en su contrario el sentido y finalidad del estado de excepción.113

Ademais, o poder constituinte, em sua tentativa de institucionalizar e eternizar seu

ato fundador, pode definir passagens do texto constitucional que em teoria não seriam

jamais alteráveis ou suprimíveis. A lógica da supremacia da Constituição levada ao

extremo deságua nas chamadas cláusulas pétreas, que nada mais são que “leis” dentro da lei

constitucional que não seriam passíveis de nenhuma espécie de alteração pelo poder

constituído (ou constituinte derivado, conforme já discutido). Ao “aumento da força legal”

que menciona Schmitt para o procedimento de reforma dificultado, corresponderia uma

“intangibilidade absoluta” de uma determinada prescrição constitucional (a que Schmitt

chamaria de prescrição legal-constitucional).

É preciso observar, nesse sentido, que, a despeito de a Constituição possuir

elementos e intenções que a diferenciam de algum modo do restante do ordenamento

constitucional en que descansa. (…) Inexacto por eso el intento de equiparar el pouvoir constituant con esta facultad de revisión regulada en ley constitucional, y designarla como <<concepto formal>> de Constitución o de pouvoir constituant. (…)” (p. 114). 113 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 50.

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jurídico, não se pode dizer que ela não seja ao menos também uma lei como as demais, nem

que ela não integre o poder constituído e atue no sentido de manter esse próprio poder114.

Ou, em outros termos, a Constituição é uma parcela do poder constituído que se volta para

uma tentativa de conservação de si próprio, da própria Constituição. Logo, o texto

constitucional é a lei que pretende se conservar como lei, por vontade do poder constituinte

que a fundou. Ela faz parte do poder constituído, mas pretende manter um vínculo com o

poder constituinte, como mecanismo de preservação da violência fundadora do ato de

instituição da ordem jurídica que ela própria prefigura.

Disso deflui, de imediato, que a Constituição não é soberana – e que tal afirmação

pode consistir no máximo em uma ficção. Nem é soberano, necessariamente, quem ela

definir como soberano. Soberano será quem puder revogá-la, e, por meio da constituição de

um novo poder constituinte, fundar uma nova ordem jurídica; ou quem puder suspendê-la,

seja declaradamente ou não. Na visão de Agambem, nesse caso, soberano são os poderes

executivos das democracias ocidentais. Soberana seria também a polícia benjaminiana. E

Schmitt concorda inteiramente com a impossibilidade de se compreender a Constituição

como soberana:

La forma de expresión según la cual no dominan los hombres, sino normas y leyes, que en este sentido deben ser <<soberanas>>, es muy vieja. Para la moderna teoría de la Constitución, viene al caso el siguiente proceso histórico: En la época de la Restauración monárquica en Francia, y bajo la Monarquía de Julio (así, pues, de 1815 a 1848), han calificado especialmente los representantes del liberalismo burgués, los llamados <<doctrinarios>>, a la Constitución (la Charte), de <<soberana>>. Esta notable personificación de una ley escrita tenía el sentido de elevar la ley con sus garantías de la libertad burguesa y de la propiedad privada por encima de cualquier poder político. De este modo, se soslayaba la cuestión política de si era soberano el Príncipe o el Pueblo; la respuesta era sencillamente: no el Príncipe ni el Pueblo, sino la <<Constitución>> es soberana (…). Es la respuesta típica de los liberales del Estado burgués de Derecho, para

114 Mesmo na lógica de Schmitt, com a qual não se concorda de todo, ainda assim a Constituição teria um sentido relativo e legal, tanto como lei suprema quanto como conjunto de prescrições legais-constitucionais: “La palabra <<constitución>> reconoce una diversidad de sentidos. (...) Si se quiere llegar a una inteligencia hay que limitar la palabra <<constitución>> a Constitución del Estado, es decir, de la unidad política de un pueblo. En esta delimitación puede designarse al Estado mismo, al Estado particular y concreto como unidad política, o bien, considerado como una forma especial y concreta de la existencia estatal; entonces significa la situación total de la unidad y ordenación políticas. Pero <<Constitución>> puede significar también un sistema cerrado de normas, y entonces designa una unidad, sí, pero no una unidad existiendo en concreto, sino pensada, ideal. (…) Junto a esto, domina hoy una fórmula según la cual se entiende por Constitución una serie de leyes de cierto tipo. Constitución y ley constitucional recibirán, según esto, el mismo trato. Así, cada ley constitucional puede parecer como Constitución.” SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 29.

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los cuales tanto la Monarquía como la Democracia deben limitarse en interés de la libertad burguesa y de la propiedad privada (…). Guizot, un representante clásico del Estado liberal de Derecho, habla de la <<soberanía de la Razón>>, de la Justicia y de otras abstracciones, reconociendo acertadamente que sólo puede llamarse <<soberana>> una norma cuando no es voluntad y mandato positivo, sino Verdad, Razón y Justicia racional, y, por tanto, tiene determinadas cualidades; pues de otro modo, es soberano precisamente aquel que quiere y manda.115

Deflui, ainda, da circunstância de a Constituição ser (também) uma lei, que ela está

estruturalmente sujeita aos problemas ontológicos que Agamben identifica em todas as leis

e no direito como um todo. Isto quer dizer que a sua estrutura ampara-se na captura da vida,

por meio da exceção – e seu funcionamento deve igualmente se basear na lógica da

inclusão-exclusiva e da exclusão-inclusiva que caracteriza o bando soberano. Entretanto, e

neste ponto está a lacuna no pensamento de Agamben, existem duas diferenças profundas

entre a lei constitucional e as demais leis, vinculadas às circunstâncias já mencionadas de

que: a Constituição tem a pretensão de guardar em seu interior uma parcela da violência

fundadora do direito em um grau bem mais amplo que as demais leis; a Constituição é a

instância de validade e de legitimidade das demais leis que lhe estão abaixo e integram o

restante do ordenamento jurídico.

Isto quer dizer, em primeiro lugar, que a suspensão da Constituição ocorre em uma

situação na qual há um resquício da violência fundadora maior que na hipótese de

suspensão de uma lei simples, meramente ligada ao poder constituído – há, em decorrência

disto, conseqüências não avaliadas por Agamben e que serão vistas oportunamente,

vinculadas à legitimação discursiva mesmo da suspensão. Em segundo lugar, nas

comunidades políticas nas quais há uma Constituição, e nas quais não se está em uma

situação de exceção declarada, a suspensão de uma lei, a exceção jurídica, está sempre

potencialmente sujeita ao crivo da avaliação constitucional pelo poder judiciário – seja para

proibir a exceção, seja para convalidar a exceção, seja para realizar a exceção116. Ou, em

115 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 33. 116 Assim, por exemplo, enquanto Agamben menciona a prisão de Guantánamo e o Patriot Act como hipóteses claríssimas de exceção jurídica não declarada (que de fato são), não traça nenhum comentário acerca das decisões dos tribunais e da Suprema Corte norte-americanos que eventualmente desautorizaram a produção executiva de exceção e de vida nua por inconstitucionalidade (não há menção nem mesmo às decisões que os autorizaram). Isto é possível justamente porque, como os Estados Unidos não são a Alemanha de Hitler, e têm uma Constituição, a exceção executiva jurídica está sempre potencialmente sujeita a ser

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outras palavras, ao crivo da análise da constitucionalidade do ato executivo administrativo

que constituiu a exceção.

A exceção não declarada, nas comunidades políticas onde há Constituição, portanto,

conquanto possa ocorrer ao largo do texto constitucional, está sempre potente de ocorrer

com a Constituição – em um processo no qual a Constituição está já ela também

potencialmente suspensa. Evidentemente, se a Constituição não estiver já de fato, ainda que

não de direito, suspensa, não há que se falar em exceção geral e não declarada. Como este

fenômeno ocorre, e quais são suas características, será visto ao longo dos Capítulos IV e V

da presente tese.

Apresentou-se, neste Capítulo, o fundamento ontológico principal a respeito da

soberania, do direito e do Estado de Exceção. Ficou bastante claro que a lógica do

raciocínio de Agamben é muito diferente da que usualmente se utiliza para definir o direito,

ou a soberania, e avança por caminhos teóricos extremamente complexos. No Capítulo que

se segue, debruçar-se-á sobre a seqüência do pensamento de Agamben, que, apesar de não

perder de vista sua perspectiva ontológica, procura vincular essa “essência do ser” de seus

conceitos com uma arqueologia que se pretende histórica, apta a demonstrar as

manifestações concretas que corroborem as idéias de direito como exceção e de soberania

como bipolítica e relação de abandono.

controlada pelo poder judiciário. Na prática, conquanto possa ocorrer exceção que jamais chegue ao conhecimento do poder judiciário, é também possível afirmar, como ainda se analisará, que muitas vezes a exceção ocorre por meio ou pelo próprio poder judiciário.

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Capítulo II – Arqueologia da Exceção: autoridade e

força de lei.

Apresentada a estrutura ontológica básica do estado de exceção, Agamben

desenvolve seu raciocínio no sentido de, em primeiro lugar, fornecer uma narrativa

histórica do estado de exceção na modernidade, que se inicia com os institutos do estado de

sítio e do estado de guerra tipicamente presentes na teoria jurídica européia.

A partir da identificação da existência de um estado de exceção permanente e não

declarado, em contraposição a um estado de exceção formalmente implementado, o autor se

ampara na idéia de força de lei, dotada de um caráter místico e mítico que se reporta à

própria violência fundadora do direito, como o elemento que permite a implementação não

declarada da suspensão da ordem jurídica. A força de lei guarda profunda relação não só

com a dialética entre poder constituinte e poder constituído, mas também com as

constituições modernas e o princípio constitucionalista da supremacia da Constituição.

Em um segundo momento, e em coerência com sua arqueologia, Agamben vai

buscar nos institutos romanos do iustitium e da autoridade a mesma força de lei e a mesma

potência de suspensão da ordem jurídica identificadas anteriormente – isto porque, se sua

tese sobre o ser do direito está correta, tais elementos deverão estar presentes, desde

sempre, na lógica estrutural mesma de funcionamento do direito.

O escorço sobre tais conceitos romanos termina por revelar uma nova série de

conexões profundas entre autoridade, força de lei, suspensão da ordem jurídica e poder

político. De todo modo, seu interesse reside de fato nas manifestações modernas da exceção

– e é neste ponto que sua narrativa se inicia.

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1. Desenvolvimento histórico do Estado de Exceção e a força de lei.

Uma das preocupações centrais da obra de Agamben é a de compreender a relação

que liga, e ao mesmo tempo abandona o ser vivente, apenas enquanto ser vivente, ao

direito. Em face de tal objetivo, corre paralela à análise ontológica do Estado de Exceção,

uma avaliação da história concreta de seu desenvolvimento. Assim, “Entre os elementos

que tornam difícil uma definição do estado de exceção, encontra-se, certamente, sua

estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência. Dado que é o oposto do

estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de

exceção, que é a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais

extremos”.117

Segundo o autor, ao longo do século XX, os regimes políticos totalitários se

caracterizaram pela implementação de um estado de exceção permanente, como técnica de

governo mesmo. Em outros termos, a suspensão do direito tornou-se, ao invés de

excepcional, normal. A estruturação dessa espécie de estado de emergência, ainda que não

declarada tecnicamente, alastrou-se – em face da natureza biopolítica da modernidade –

inclusive para os regimes ocidentais democráticos contemporâneos:

(...) No decorrer do século XX, pôde-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como uma “guerra civil legal” (Schnur, 1983). Tome-se o caso do Estado nazista. Logo que tomou o poder (...), Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de

117 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.12.

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constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.118

Há, portanto, uma distinção entre um “estado de exceção real”, circunstancialmente

implementado, e um “estado de exceção fictício”, ou, ainda, um “estado de exceção

desejado”, empregado conscientemente como método de governo. Nessa segunda forma, o

significado biopolítico do estado de exceção como “(...) estrutura original em que o direito

inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão (...)”.119 revela-se de modo

extremamente perceptível, na medida em que a técnica da exceção desejada anula o estatuto

jurídico dos indivíduos, que, fora do mundo jurídico, tornam-se objeto tão somente de uma

dominação biopolítica factual.

Apesar de intrinsecamente relacionado ao estado de guerra, e, por conseqüência, ao

estado de sítio, o estado de exceção não pode ser efetivamente considerado como um

direito especial, ou como uma situação jurídica diferente, mas definida, como é, por

exemplo, o direito de guerra. A técnica da exceção, conforme visto, baseia-se não na

implementação de regras jurídicas, mas sim na suspensão da ordem jurídica como um todo.

E é justamente nesse ponto que ela se afasta tanto do estado de sítio como das situações de

guerra:

118 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.12-13. A narrativa de Hannah Arendt acerca da relação do Estado nazista com as leis corrobora a de Agamben – o que ele chama de estado de exceção permanente, a autora denomina estado permanente de ilegalidade: “ Essas decepções de estadistas e diplomatas são comparáveis às anteriores desilusões de benévolos observadores e simpatizantes em relação aos novos governos totalitários. O que eles haviam esperado era o estabelecimento de novas instituições e a criação de um novo código de leis que, por mais revolucionário que fosse o seu conteúdo, levasse a uma estabilização de condições tendente a refrear o ímpeto dos movimentos totalitários, pelo menos nos países onde já haviam tomado o poder. (...) Mais perturbador ainda era o modo pelo qual os regimes totalitários tratavam a questão constitucional. Nos primeiros anos de poder, os nazistas desencadearam uma avalanche de leis e decretos, mas nunca se deram o trabalho de abolir oficialmente a Constituição de Weimar; chegaram até a deixar mais ou menos intactos os serviços públicos – fato que levou muitos observadores locais e estrangeiros a esperar que o partido mostrasse comedimento e que o novo regime caminhasse rapidamente para a normalização. Mas, após a promulgação das Leis de Nuremberg, verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis. Em vez disso, continuou “a constante caminhada na direção de setores sempre novos”, de modo que, afinal, “o objetivo e a alçada da polícia secreta do Estado”, bem como de todas as outras instituições estatais ou partidárias criadas pelos nazistas, não podiam “de forma alguma definir-se pelas leis e normas que as regiam”. Na prática, esse estado de permanente ilegalidade era expresso pelo fato de que “muitas das normas em vigor já não [eram] do domínio público”. Teoricamente, correspondia ao postulado de Hitler, segundo o qual o “Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre lei e ética”, porque, quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos, então não há mais a necessidade de decretos públicos”. In.: ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 443-444. 119 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.14.

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A história do termo “estado de sítio fictício ou político” é, nesse sentido, instrutiva. Remonta à doutrina francesa, em referência ao decreto napoleônico de 24 de dezembro de 1811, que previa a possibilidade de um estado de sítio que podia ser declarado pelo imperador, independentemente da situação efetiva de uma cidade sitiada ou diretamente ameaçada pelas forças inimigas (...). A origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera; état de guerre, em que a autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar; état de siège, em que “todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva responsabilidade” (...) A história posterior do estado de sítio é a história de sua progressiva emancipação em relação à situação de guerra à qual estava ligado na origem, para ser usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando, assim, de efetivo ou militar a fictício ou político (...) A idéia de uma suspensão da constituição é introduzida pela primeira vez na Constituição de 22 frimário (...) do ano VIII que, no artigo 92, declarava: Dans le cas de révolte à main armée ou de troubles qui menaceraient la sécurité de l’État, la loi peut suspendre, dans les lieux et pour le temps qu’elle détermine, l’empire de la constitution. Cette suspension peut être provisoirement déclarée dans les mêmes cas par um arrêté du gouvernement, le corps législatif étant en vacances, pourvu que ce corps soit convoqué au plus court terme par un article du même arrêté. A cidade ou região em questão era declarada hors la constitution. Embora, de um lado (no estado de sítio), o paradigma seja a extensão em âmbito civil dos poderes que são da esfera da autoridade militar em tempos de guerra, e, de outro, uma suspensão da constituição (ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais), os dois modelos acabam, com o tempo, convergindo para um único fenômeno jurídico que chamamos estado de exceção.120

O estado de exceção tomado como técnica de governo possibilitou a transformação

dos regimes democráticos em regimes nos quais há uma permanente situação de exceção

jurídica, em decorrência da expansão dos poderes do poder executivo deflagrada a partir

das duas guerras mundiais, e do consequente incremento das situações de exceção que

120 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.16-17. Observe-se a conexão entre a expressão “medida extraordinária de polícia” com a análise da polícia feita por Benjamin. Agamben fala ainda da expressão “plenos poderes”, comumente utilizada na reflexão sobre a exceção: “A expressão “plenos poderes” (pleins pouvoirs), com que, às vezes, se caracteriza o estado de exceção, refere-se à ampliação dos poderes governamentais e, particularmente, à atribuição ao executivo do poder de promulgar decretos com força de lei. Deriva da noção de plenitudo potestatis, elaborada no verdadeiro laboratório da terminologia jurídica moderna do direito público, o direito canônico. O pressuposto aqui é que o estado de exceção implica um retorno a um estado original “pleromatico” em que ainda não se deu a distinção entre os diversos poderes (legislativo, executivo etc.). Como veremos, o estado de exceção constitui muito mais um estado “kenomatico”, um vazio de direito, e a idéia de uma indistinção e de uma plenitude originária do poder deve ser considerada como um “mitologema” jurídico, análogo à idéia de estado de natureza (...). Em todo caso, a expressão “plenos poderes” define uma das possíveis modalidades de ação do poder executivo durante o estado de exceção, mas não coincide com ele.” (p. 17).

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acompanharam essa expansão. O estado de exceção pôde se converter em técnica de

governo por já ser, originariamente, o paradigma constitutivo da ordem jurídico-política.

A expansão dos poderes do executivo, intimamente relacionada ao estado de

exceção, deu-se, na perspectiva de Agamben, principalmente mediante a possibilidade de o

executivo arrogar-se poderes tipicamente legislativos, por meio da promulgação de decretos

e disposições autorizados pela delegação de poderes atribuída pelas leis de plenos poderes.

“Entendemos por leis de plenos poderes aquelas por meio das quais se atribui ao executivo

um poder de regulamentação excepcionalmente amplo, em particular o poder de modificar

e de anular, por decretos, as leis em vigor”.121. Tais leis, em princípio, deveriam ser

possíveis apenas em situações extremas de necessidade ou emergência, na medida em que

contradizem a hierarquia entre lei e regulamento, e que, ao delegarem uma competência

supostamente exclusiva do legislativo ao executivo, rompem um dos liames fundamentais

das constituições democráticas, amparadas na separação e independência dos poderes.

A conseqüência de tal situação é a eventual erosão do poder legislativo, que se torna

mero ratificador das proposições legislativas emanadas do poder executivo – isto quando,

na prática, não ocorre de essa própria ratificação ser sempre concedida e até mesmo já

pressuposta antes de qualquer intervenção do poder legislativo. Tal prática, extremamente

comum nas democracias contemporâneas, é uma das marcas do estado de exceção como

paradigma normal de governo, na medida em que se percebe a abolição das distinções entre

os poderes legislativo e executivo.

O problema do estado de exceção, como mecanismo que pretende incluir a vida no

interior do ordenamento jurídico por meio da suspensão desse ordenamento, e que reflete a

oposição entre norma e vida, bem como o problema da referência à vida pela norma,

mostra-se também na dúvida teórica, doutrinária e prática, sobre a conveniência ou não de

se normatizar constitucionalmente a possibilidade da exceção:

121 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.18-19. Exemplo semelhante de mecanismo pode ser encontrado nos antigos decretos-lei e nas atuais medidas provisórias vigentes no Brasil.

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Um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais mostra uma divisão – clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa – entre ordenamentos que regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não regulamentar explicitamente o problema. (...) Também a doutrina se divide, respectivamente, entre autores que defendem a oportunidade de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e outros, dentre os quais se destaca Carl Schmitt, que criticam sem restrição a pretensão de se regular por lei o que, por definição, não pode ser normatizado. Ainda que, no plano da constituição formal, a distinção seja indiscutivelmente importante (visto que pressupõe que, no segundo caso, os atos do governo, realizados fora da lei ou em oposição a ela, podem ser teoricamente considerados ilegais e devem, portanto, ser corrigidos por um bill of indemnity especial); naquele da constituição material, algo como um estado de exceção existe em todos os ordenamentos mencionados; e a história do instituto, ao menos a partir da Primeira Guerra Mundial, mostra que seu desenvolvimento é independente de sua formalização constitucional ou legislativa.122

Ainda em face de tal questão, Agamben identifica uma grande similitude entre o

problema da inclusão do estado de exceção no ordenamento jurídico como possibilidade

legal, e o problema da similar inclusão do direito de resistência nesse mesmo ordenamento.

Tal identidade deriva da circunstância de que, em ambas as hipóteses, discute-se a inclusão,

no direito, de algo que não é em si jurídico:

O problema do estado de exceção apresenta analogias evidentes com o do direito de resistência. Discutiu-se muito, em especial nas assembléias constituintes, sobre a oportunidade de se inserir o direito de resistência no texto da constituição. Assim, no projeto da atual Constituição italiana, introduzira-se um artigo que estabelecia: “Quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão”. A proposta (...) encontrou grande oposição. Ao longo do debate, prevaleceu a opinião de que era impossível regular juridicamente alguma coisa que, por sua natureza, escapava à esfera do direito positivo e o artigo foi rejeitado. Porém, na Constituição da República Federal Alemã, figura um artigo (o art. 20) que legaliza, sem restrições, o direito de resistência, afirmando que “contra quem tentar abolir esta ordem [a constituição democrática], todos os alemães têm o direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis”.

Os argumentos são, aqui, exatamente simétricos aos que opõem os defensores da legalização do estado de exceção no texto constitucional ou numa lei específica aos juristas que consideram sua regulamentação normativa totalmente inoportuna. Em todo caso, é certo que, se a resistência se tornasse um direito ou terminantemente um dever (cujo não cumprimento pudesse ser punido), não só a constituição acabaria por se colocar como um valor absolutamente intangível e totalizante, mas também as escolhas políticas dos cidadãos acabariam sendo juridicamente normalizadas. De fato, tanto no direito

122 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 22-23. Curioso observar como Agamben parece aceitar a distinção, que de certo modo remonta a Schmitt, entre Constituição material e Constituição formal, ou seja, entre Constituição “política” e norma constitucional.

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de resistência quanto no estado de exceção, o que realmente está em jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. Aqui se opõem duas teses: a que afirma que o direito deve coincidir com a norma e aquela que, ao contrário, defende que o âmbito do direito excede a norma. Mas, em última análise, as duas posições são solidárias no excluir a existência de uma esfera da ação humana que escape totalmente ao direito.123

Curiosamente, na medida em que Agamben vincula a questão relativa à

normatização da situação de exceção à soberania, Negri liga justamente o direito de

resistência a seu conceito democrático e aberto de poder constituinte – de modo que o

direito de resistência pode ser considerado, em seu entendimento, como um dos

fundamentos mais radicais para a existência concreta de um poder constituinte livre, não

capturado por uma soberania institucionalizadora:

Esta longínqua conexão entre Carl Schmitt e Hannah Arendt, que inclui fortes semelhanças, pode ser verificada, por outras e transversas vias, quando o pensamento destes autores sobre o poder constituinte é confrontado com o de um outro autor, talvez precursor teórico e um inspirador problemático das teorias de ambos – John Cadwell Calhoun. Também neste caso o poder constituinte é definido como poder negativo, desencadeando uma singular e radicalíssima dialética. A problemática de Calhoun é desenvolvida no âmbito do debate constitucional em torno dos Estados Federados americanos antes da Guerra da Secessão. A declaração de que o governo – entendido como capacidade constituinte, como expressão da comunidade – é ontologicamente anterior à constituição, e que o ato constituinte é capacidade de impor a escolha entre a guerra e a paz, de impor eventuais compromissos e, portanto, capacidade de organizar o direito público confederado como trégua, esta declaração é de tal forma intensa (como sublinha Arendt) que pode ser reconduzida pura e simplesmente ao direito de resistência, organizado no procedimento constitucional. Ao direito de resistência: eis-nos diante deste ponto de referência tão elementar quanto fascinante. Este poder negativo por antonomásia, cuja força prefiguradora dificilmente pode ser eliminada da história do constitucionalismo moderno. O direito de resistência que, embora negativo, manifesta-se como expressão radicalmente fundadora da comunidade. É exatamente neste ponto que, enquanto Schmitt se abandona ao fascínio de uma abstração já privada de princípios, no pensamento de Arendt se afirma uma espécie de bloqueio insuportável diante da descoberta de que “nada se assemelha tanto à virtude quanto um grande crime”, nada se assemelha tanto ao poder constituinte quanto a negação mais radical e profunda, mais desesperada e feroz.124

123 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.23-24. 124 NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 35-36. Hannah Arendt, especificamente, trata da questão relativa ao direito de resistência ao apreciar a distinção entre contestação civil, desobediência civil e ação criminosa – considerando a desobediência civil como um fenômeno de caráter eminentemente político, associativo e democrático, e que teria ou deveria ter um nicho constitucional próprio. Suas idéias, portanto, não são tão diferentes das de Negri quanto este gostaria que fossem e erroneamente afirma que são. Sobre o tema, ver ARENDT, Hannah. Crises da República. Trad. José Volkman. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. p.49-90.

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Exceção e resistência, portanto, parecem se mostrar como dois lados de uma mesma

moeda: sendo a exceção a forma de “tomada” do não-jurídico, da vida, pela soberania como

vista por Agamben – que, desse modo, se constitui tanto a si própria, quanto à política e ao

direito; e a resistência a forma de inserção da sociabilidade da comunidade na política

(também um elemento não-jurídico), que permite a constituição e manutenção não

institucionalizada do poder constituinte democrático proposto por Negri.

Outro problema prático-teórico é relativo a quem decide sobre a declaração do

estado de exceção. Na tradição francesa, a atribuição pertence, comumente, ao Parlamento;

na alemã, ao chefe de Estado. A questão relaciona-se, evidentemente, tanto às cláusulas de

“pleno poderes”, quanto à expansão geral dos poderes do executivo ao longo do século XX.

Na prática, Agamben considera que “(...) o princípio democrático da divisão dos poderes

hoje está caduco e que o poder executivo absorveu de fato, ao menos em parte, o poder

legislativo. O Parlamento não é mais o órgão soberano a quem compete o poder exclusivo

de obrigar os cidadãos pela lei: ele se limita a ratificar os decretos emanados do poder

executivo”.125. Percebe-se, então, que a técnica de governo da exceção prefere lançar mão

de leis delegadas e decretos excepcionais, como forma de governo, ao invés de

simplesmente declarar a existência de um estado de exceção.

Por outro lado, vinculado à dúvida acerca da conveniência de se incluir ou não o

estado de exceção no ordenamento jurídico, há o debate sobre a tópica do estado de

exceção: ele está incluído no interior do ordenamento jurídico, ou trata-se de um fenômeno

político exterior e extrajurídico? A primeira perspectiva é justificada pela idéia de que a

necessidade que funda o estado de exceção atua como fonte autônoma de direito, ou pela

tese de que o estado de exceção é um direito subjetivo (seja natural, seja constitucional) do

Estado à sua autoconservação. Já a segunda visão se embasa no raciocínio de que o estado

de exceção e a necessidade que o fundamenta são elementos factuais extrajurídicos:

(...) Julius Hatschek resumiu os diversos pontos de vista na oposição entre uma objektive Notstandstheorie (teoria objetiva do estado de necessidade), segundo a qual todo ato realizado em estado de necessidade e fora ou em oposição à lei é contrário ao direito e, enquanto tal, juridicamente passível de acusação, e uma

125 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.32.

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subjektive Notstandstheorie (teoria subjetiva do estado de necessidade), segundo a qual o poder excepcional se baseia “num direito constitucional ou pré-constitucional (natural)” do Estado (Hastchek, 1923, p. 158 e seg.), em relação ao qual a boa fé é suficiente para garantir a imunidade jurídica.126

Para Agamben, porém, a mera oposição entre dentro e fora é incapaz de esclarecer a

verdadeira natureza do estado de exceção. Não é possível compreender a suspensão do

ordenamento jurídico simplesmente como interna ou externa ao direito. É possível

inscrever a suspensão do direito no próprio direito? Por outro lado, se o estado de exceção é

apenas uma situação de fato, por que o ordenamento jurídico não apresenta soluções

plausíveis para a situação de emergência?

Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica. Donde o interesse das teorias que, como a de Schmitt, transformam a oposição topográfica em uma relação topológica mais complexa, em que está em questão o próprio limite do ordenamento jurídico. Em todo caso, a compreensão do problema do estado de exceção pressupõe uma correta determinação de sua localização (ou deslocalização). Como veremos, o conflito a respeito do estado de exceção apresenta-se essencialmente como uma disputa sobre o locus que lhe cabe.127

A idéia do estado de exceção está comumente associada à de necessidade. Em tese,

o juízo positivo sobre a existência da situação de necessidade justificaria e legitimaria o

estado de exceção, de modo que a situação de exceção se reduziria à subsistência da

necessidade. A situação de emergência, de necessidade, portanto, teria o condão de

justificar a transgressão da lei, em casos específicos, por meio de uma exceção – a

necessidade não estaria sujeita ao direito, na medida em que casos particulares de

emergência escapam da obrigação de respeitar a lei. Nesse sentido, “(...) A necessidade não

é fonte de lei e tampouco suspende, em sentido próprio, a lei; ela se limita a subtrair um

caso particular à aplicação literal da norma (...)”.128.

126 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 38-39. 127 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.39. 128 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.41.

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Na perspectiva de uma teoria da necessidade, destarte, o fundamento da exceção não

é tanto a necessidade em si, mas sim a idéia de que a exclusão de uma situação particular da

obrigação de se observar determinada lei não implica necessariamente um julgamento da

lei, mas sim um julgamento sobre a conveniência de não se aplicar a lei àquela situação

específica, porque, no caso, sua aplicação seria prejudicial e contrária ao “espírito” daquela

lei. “Em caso de necessidade, a vis obligandi da lei desaparece porque a finalidade da

salus hominum vem, no caso, a faltar. É evidente que não se trata aqui de um status, de

uma situação da ordem jurídica enquanto tal (o estado de exceção ou de necessidade), mas

sim, sempre, de um caso particular em que vis e ratio não se aplicam”.129.

A teoria da necessidade conforme apresentada – preponderante durante a Idade

Média européia –, porém, é diferente do estado de exceção moderno. Na primeira, o

objetivo da exceção é abrir o sistema jurídico para uma situação fática que deve ser

excluída da aplicação concreta da norma, em face da existência de uma contradição entre a

aplicação e o objetivo da lei130. Curiosamente, como a exceção é considerada

“excepcional”, não há necessidade de contemplar, no ordenamento jurídico, a possibilidade

concreta da exceção. Já o estado de exceção moderno se funda na “(...) tentativa de incluir

na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona de indiferenciação em que fato e

direito coincidem”.131

É no estado de exceção moderno, portanto, que a necessidade tende a ser incluída na

ordem jurídica, e a ser encarada como uma das manifestações da própria lei. “(...) O

princípio de que a necessidade define uma situação particular em que a lei perde sua vis

obligandi (...) transforma-se naquele em que a necessidade constitui, por assim dizer, o

fundamento último e a própria fonte da lei”.132 É nesse sentido que foi possível construir a

tese jurídica de que a necessidade é, apesar de estranha ao ordenamento jurídico, fonte

129 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.42. 130 Talvez justamente por enxergar na aplicação da lei apenas essa possibilidade de exceção, Agamben ignore o papel do poder judiciário em seu paradigma biopolítico fundado na exceção como técnica de governo. Ver-se-á, mais adiante, entretanto, que a exceção jurídica no momento de aplicação do direito pelo poder judiciário na jurisdição constitucional é diferente da simples consideração acerca da conveniência casual de aplicação ou não da lei a um fato concreto. 131 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.42. 132 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.43.

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primária e originária da lei, além da própria legislação. Assim, Santi Romano, citado por

Agamben, pôde escrever que:

A necessidade de que aqui nos ocupamos deve ser concebida como uma condição de coisas que, pelo menos como regra geral e de modo conclusivo e eficaz, não pode ser disciplinada por normas anteriormente estabelecidas. Mas, se não há lei, a necessidade faz a lei, como diz uma outra expressão corrente; o que significa que ela mesma constitui uma verdadeira fonte de direito [...]. Pode-se dizer que a necessidade é a fonte primária e originária do direito, de modo que, em relação a ela, as outras fontes devem, de certa forma, ser consideradas derivadas [...]. É na necessidade que se deve buscar a origem e a legitimação do instituto jurídico por excelência, isto é, do Estado e, em geral, de seu ordenamento constitucional, quando é instaurado como um dispositivo de fato, por exemplo, quando de uma revolução. E aquilo que se verifica no momento inicial de um determinado regime pode também se repetir, ainda que de modo excepcional e com características mais atenuadas, mesmo depois desse regime ter formado e regulamentado suas instituições fundamentais (Romano, 1909, p. 362).133

Curiosamente, o estado de exceção, tomado como manifestação da necessidade,

revela-se – como um ato equiparável à revolução e à instauração de novos regimes – ilegal,

mas ao mesmo tempo jurídico e constitucional, cuja realização depende da criação de novas

normas em uma nova situação institucional. Tanto que Romano diz que “A fórmula [...]

segundo a qual o estado de sítio seria, no direito italiano, uma medida contrária à lei,

portanto claramente ilegal, mas ao mesmo tempo conforme ao direito positivo não escrito,

portanto jurídico e constitucional, parece ser a mais exata e conveniente”.134.

O estado de exceção pode ser considerado, então, o mecanismo e o local onde

procedimentos de fato, ações extrajurídicas, convertem-se em direito, ao mesmo tempo em

que a ordem jurídica se indetermina em simples fato. Direito e fato tornam-se

indiscerníveis, porque o fato se converte em direito, e o direito é suspenso e eliminado de

fato, de forma que um termina atenuando e atenuando-se no outro. Logo, a definição do

estado de exceção a partir da necessidade fracassa:

Donde as aporias de que nenhuma tentativa de definir a necessidade consegue chegar a algum resultado. Se a medida de necessidade já é norma jurídica e não simples fato, porque deve ela ser ratificada e aprovada por meio de uma lei, como Santi Romano (e a maioria dos autores com ele) considera

133 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.43-44. 134 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.44.

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indispensável? Se já era direito, por que se torna caduca se não for aprovada pelos órgãos legislativos? E, se, ao contrário, não era direito mas simples fato, como é possível que os efeitos jurídicos da ratificação decorram não do momento da transformação em lei, e, sim, ext tunc? (...)

Mas a aporia máxima, contra a qual fracassa, em última instância, toda a teoria do estado de necessidade, diz respeito à própria natureza da necessidade, que os autores continuam, mais ou menos inconscientemente, a pensar como uma situação objetiva. Essa ingênua concepção, que pressupõe uma pura factualidade que ela mesma criticou, expõe-se imediatamente às críticas dos juristas que mostram como a necessidade, longe de apresentar-se como um dado objetivo, implica claramente um juízo subjetivo e que necessárias e excepcionais são, é evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais.

O conceito de necessidade é totalmente subjetivo, relativo ao objetivo que se quer atingir. Será possível dizer que a necessidade impõe a promulgação de uma dada norma, porque, de outro modo, a ordem jurídica existente corre o risco de se desmoronar; mas é preciso, então, estar de acordo quanto ao fato de que a ordem existente deve ser conservada. Um movimento revolucionário poderá declarar a necessidade de uma nova norma, abolindo os institutos vigentes contrários às novas exigências; mas é preciso estar de acordo quanto ao fato de que a ordem existente deve ser derrubada, em conformidade com essas novas exigências. Num caso como no outro [...] o recurso à necessidade implica uma avaliação moral ou política (ou, de toda forma, extrajurídica) pela qual se julga a ordem jurídica e se considera que é digna de ser conservada e fortalecida, ainda que à custa de sua eventual violação. Portanto, o princípio da necessidade é sempre, em todos os casos, um princípio revolucionário (Balladore-Pallieri, 1970, p. 168)

A tentativa de resolver o estado de exceção no estado de necessidade choca-se, assim, com tantas e mais graves aporias quanto o fenômeno que deveria explicar. Não só a necessidade se reduz, em última instância, a uma decisão, como também aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito.135

A análise das teorias relativas ao estado de exceção promovida por Agamben

culmina em uma última reflexão sobre a equiparação do estado de exceção ao conceito de

lacuna no direito. Na grande maioria dos sistemas jurídicos modernos, compete ao juiz

pronunciar uma decisão sempre, em qualquer hipótese, mesmo se a lei nada disser a

respeito e for omissa. O princípio é o de que a lei pode ter lacunas, mas não o ordenamento

jurídico como um todo, que é completo e sempre oferece alguma resposta para as questões

que se lhe apresentam136.

Por analogia, a questão da necessidade é vista como uma lacuna no direito público,

que é remediada pelo poder executivo por meio do estado de exceção. Agamben,

135 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.46-47. 136 Nesse aspecto, a teoria da completitude do ordenamento jurídico – e, por conseqüência, do princípio da impossibilidade do non liquet – mostra muito bem em que medida o direito moderno tem a pretensão de se

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entretanto, não admite que a suspensão do direito possa ser encarada como o preenchimento

de uma lacuna na lei, na medida em que a resposta não está contida no ordenamento, mas

sim se resolve em sua suspensão – trata-se, em verdade, de uma lacuna fictícia, externa ao

direito e artificialmente produzida:

Mas, na verdade, em que consiste a lacuna em questão? Será ela, realmente, algo como uma lacuna em sentido próprio? Ela não se refere, aqui, a uma carência no texto legislativo que deve ser reparada pelo juiz; refere-se, antes, a uma suspensão do ordenamento vigente para garantir-lhe a existência. Longe de responder a uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal. A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor.137

Eis, aí, o mecanismo de funcionamento do estado de exceção: a aplicação da norma

é suspensa, sem que, todavia, ela deixe de estar em vigor. Tal questão remete já ao

problema anteriormente tratado, relativo à forma da lei, à norma que vigora sem significar.

O efeito que a lei que vigora sem significar, ou seja, a lei que suspensa vigora, produz, é

interpretado por Agamben à luz da idéia da “força de lei”. O autor procura desenvolver tal

conceito, que sugestivamente corta com um X na palavra “lei”, a partir do pensamento de

Carl Schmitt e de Derrida.

manter em relação mesmo com o que não pode se relacionar; ou seja, tem a pretensão de eventualmente abarcar todo e qualquer aspecto ou circunstância da vida e dos fatos humanos. 137 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.48-49. Ainda em referência à circunstância de Agamben não traçar uma análise sobre a exceção constituída no momento de aplicação do direito, é interessante observar que o fato de o ordenamento jurídico ter sido suspenso e deixar de ser aplicado, conquanto possa significar para o poder executivo que nada é necessariamente aplicável, e, portanto, tudo é possível – não representa para o poder judiciário, principalmente nas situações de exceção existente mas não declarada, que a referência à lei, e, principalmente, à Constituição, é desnecessária. A lei vigente, não mais aplicável, todavia, permanece como marco discursivo para o poder judiciário – que a “des-aplica” supostamente “aplicando-a”. Mesmo no Estado nazista ainda havia juízes – e tais juízes, ao decidir, faziam referência à lei, e justificavam-se frente a ela, mesmo quando o conteúdo de sua decisão não se reportava à lei, ou se reportava à própria exceção (que, no caso, era declarada; de todo modo, o caso nazista ainda assim é excepcional, pois havia uma gama ampla de questões cuja decisão era exclusiva do partido, e que não podiam ser apreciadas por juízes e tribunais tradicionais). Na situação de exceção não declarada, porém, em uma democracia moderna, por exemplo, o juiz terá que necessariamente tomar sua decisão, ainda que excepcional, em referência à lei, e, eventualmente, à Constituição. A forma como a exceção pode se constituir através do poder judiciário – ou seja, como e porque a técnica de governo por meio da exceção explorada pelo poder executivo se harmoniza com o poder judiciário – será apreciada no Capítulo V.

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A teoria de Schmitt se destaca por ser uma das primeiras a propor algo semelhante

ao estado de exceção – consubstanciado em seu conceito de ditadura – como um paradigma

constitutivo de governo. A idéia do estado de exceção é apresentada em dois momentos

distintos por Schmitt:

(...) No livro de 1921, o estado de exceção é apresentado através da figura da ditadura. Esta, que compreende em si o estado de sítio, é, porém, essencialmente “estado de exceção” e, à medida que se apresenta como uma “suspensão do direito”, se reduz ao problema da definição de uma “exceção concreta [...], um problema que, até agora, não foi devidamente considerado pela doutrina geral do direito” (ibidem, p. XVIII). Na ditadura, em cujo contexto se inscreve o estado de exceção, distinguem-se a “ditadura comissária”, que visa a defender ou a restaurar a constituição vigente, e a “ditadura soberana”, na qual, como figura da exceção, ela alcança, por assim dizer, sua massa crítica ou seu ponto de fusão. Na Politische Theologie (Schmitt, 1922), os termos “ditadura” e “estado de sítio” podem então desaparecer, sendo substituídos por estado de exceção (Ausnahmezustand), enquanto a ênfase se desloca, pelo menos aparentemente, da definição de exceção para a de soberania. A estratégia da doutrina schmittiana é, pois, uma estratégia em dois tempos, e será preciso compreender com clareza suas articulações e objetivos.138

O tema central de ambos os livros citados se vincula à inscrição do estado de

exceção em um contexto jurídico. A preocupação schmittiana é a de revelar que, apesar da

suspensão do direito não possuir forma jurídica, ela ainda assim mantém uma relação com a

ordem jurídica. Isso porque a ditadura, em qualquer uma das suas duas formas, mantém,

todavia, um padrão de referência relativo a um contexto jurídico, e se diferencia da

anarquia e do caos, revelando-se como ordem, ainda que não propriamente jurídica. Logo,

Schmitt propõe justamente a inscrição da suspensão do direito no direito.

No primeiro momento teórico, a inscrição é possibilitada pela distinção proposta

entre normas de direito e normas de realização do direito – que atuam na ditadura

comissária – e pela distinção entre poder constituinte e poder constituído, em relação à

ditadura soberana. A ditadura comissária, que se constitui com o objetivo de salvaguardar a

ordem existente, opera a suspensão da aplicação da ordem jurídica, que, no entanto, não

deixa de vigorar, na medida em que essa suspensão não passa de uma mera exceção

singular e factual. “(...) No plano da teoria, a ditadura comissária se deixa, assim,

138 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.53-54.

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subsumir integralmente pela distinção entre a norma e as regras técnico-práticas que

presidem sua realização”.139

De fato, Schmitt, a partir de Bodin, trata da ditadura comissária, em um primeiro

momento teórico, como o exercício de uma comissão “dada” pelo soberano a um

comissionado para a realização de um objetivo político-jurídico específico. O poder do

comissionado, ou seja, do ditador comissário, é um poder derivado, que somente existe em

face do poder soberano que o instituiu com uma finalidade e uma temporalidade pré-

definidas no momento mesmo da comissão:

(...) Bodino no solo tiene el mérito de haber fundamentado el concepto de soberanía del derecho político moderno, sino que también ha revelado la conexión del problema de la soberanía con el de la dictadura, y ha dado una definición – indudablemente limitándose tan solo a una dictadura comisarial – que todavía hoy tiene que reconocerse como fundamental. Después de formular en el capítulo VIII del Libro primero de los Six libres de la République (la souveraineté esta la puissance absolue e perpétuelle d’une République que les Latins apellent majestatem, etc.), examina el concepto en numerosos ejemplos. El lugarteniente del príncipe no es soberano, por grandes que sean los poderes que se le hayan confiado. Nominalmente, el soberano sigue siendo el señor frente a todo súbdito encargado de un cometido estatal, ya haya sido conferido este cometido a un funcionario regular o a un comisario. Porque el soberano puede en todo caso revocar el poder conferido y asumir la actividad del comisionado. (…) Aun cuando en un Estado obtenga faculdades ilimitadas un hombre solo o una autoridad singular y no exista ningún recurso jurídico contra sus medidas, este no es, sin embargo, un poder soberano, si no es permanente, porque se deriva de otro y el verdadero soberano no reconoce por encima de él más que a Dios. El funcionario o comisario de una república democrática o de un príncipe, por poderoso que sea, siempre tiene facultades tan solo derivadas; el soberano es el pueblo o, en la monarquía, el príncipe. Bodino no distingue entre la soberanía del Estado y la del titular del poder del Estado. El no contrapone al Estado un órgano supremo, como sujeto independiente. Quien tiene el poder absoluto es soberano, y quien lo es tiene que ser apreciado en cada caso singular, pero no por razón de una mera apreciación fáctica de influencia política (…) Lo decisivo es una relación jurídica, a saber: el carácter derivado del poder, por vigoroso que sea de hecho.140

A ditadura soberana, por outro lado, não tem por objetivo manter a existência da

ordem constitucional, mas sim visa implementar uma situação concreta na qual seja

139 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.55. 140 SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta la Lucha de Clases Proletaria. Trad.: José Díaz García. Madrid: Alianza Editorial, 2003. p. 57-58. Sobre a relação entre a atuação do ditador comissário para a realização (ou aplicação) técnica da norma emanada de um poder soberano do qual a comissão retira sua autoridade, ver o Capítulo 2, que trata dos principais exemplos históricos dessa espécie de ditadura ao longo do século XVIII na Europa.

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possível a emergência de uma nova ordem constitucional. Tal operação depende da

diferença entre poder constituinte e poder constituído, na medida em que o poder

constituinte, muito além de simples poder concreto, mantém com qualquer texto

constitucional o papel de poder fundador e legitimador. “Embora juridicamente

“disforme” (formlos), ele representa “um mínimo de constituição” (ibidem, p.145),

inscrito em toda ação politicamente decisiva e está, portanto, em condições de garantir

também para a ditadura soberana a relação entre estado de exceção e ordem jurídica.”.141

Schmitt propõe, portanto, que enquanto a ditadura comissária pode ser encarada

como uma espécie de mandato em nome do poder soberano, ou, melhor ainda, do poder

soberano instaurado em um poder constituído – mandato este dele derivado e por ele

necessariamente limitado –, a ditadura soberana, diferentemente, é uma manifestação

mesma e direta do poder constituinte, eventualmente necessária para possibilitar

factualmente a atuação desse mesmo poder constituinte e sua eventual institucionalização

de um poder constituído que represente a vontade do soberano142 – em outros termos, o

ditador desta ditadura é, enquanto atuante, soberano:

Los representantes que actúan en nombre del pouvoir constituant son, pues, comisarios dependientes de una manera formal incondicionada, cuya misión no está, sin embargo, limitada en su contenido. Como contenido proprio de la misión es preciso considerar la formación básica más general de la voluntad constituyente y, por tanto, el proyecto de una Constitución. Pero esto no es debido a la natureza jurídica de la Constitución, porque también las medidas de hecho pueden ser tomadas como voluntad del pueblo. Los representantes extraordinarios, es decir, aquellos que ejercen de una manera inmediata el pouvoir constituant , pueden tener todo el pleno poder que les plazca, al contrario que los representantes ordinarios. Por ello, es preciso distinguir siempre el ejercicio del pouvoir constituant de su sustancia, pues, de no ser así, el pouvoir constituant sería constituido de nuevo en su representante extraordinario. Si los representantes extraordinarios tienen el encargo de bosquejar una Constitución, según la interpretación que se dé al contenido del encargo, pueden proclamar por sí la Constitución o bien someterla al referéndum del pueblo. En todo caso, si esto acontece, el encargo está cumplido. Pero puede darse el caso de que se impida el ejercicio del pouvoir constituant del pueblo e la situación de las cosas exija, ante todo, una eliminación de estos impedimentos, con el fin de eliminar la coacción que presenta resistencia al pouvoir. La voluntad libre del pueblo puede convertirse en no libre por medios artificiales y coacción externa o mediante la agitación general y el desorden. Aquí és preciso distinguir dos casos.”Para que el pueblo pueda efectuar el acto

141 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.55. 142 De uma Constituição, por exemplo.

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constituyente en la plenitud de su soberanía, ha de poder elegir, según Borgeaud, entre un régimen anterior y uno nuevo. Después de una revolución, la tradición se rompe, la vieja Constitución deja de existir y con el fin de que la pueblo le sea sometida una nueva ejerce ya nuevamente de hecho una parte de su soberanía, a través de aquellos que presentan la nueva Constitución. Porque la necesidad de orden es demasiado grande para que el juicio del pueblo siga permaneciendo libre en una situación semejante de las cosas.” Esto puede justifier l’accion d’un pouvoir révolutionnaire édictant une charte provisoire, pero debe cesar cuando se haya constituido el nuevo gobierno y se haya restablecido el orden. Pero, en segundo lugar, esta misma consideración puede hacerse también valer antes del desorden causado por la revolución, cuando el orden existente es considerado como el obstáculo para el libre ejercicio del pouvoir constituant, de manera que siempre hay la posibilidad de nuevas revoluciones y siempre es posible hacer de nuevo una apelación al pouvoir constituant. El cometido de despejar el camino mediante la eliminación revolucionaria del orden existente invocaría entonces, igualmente, el pouvoir constituant y se haría dependiente del mismo. En ambos casos existe una comisión de acción, como en la dictadura comisarial, y en ambos casos el concepto sigue dependiendo funcionalmente de la idea de una Constitución justa, pues también en la dictadura revolucionario está suspendida la Constitución que introduce la dictadura, así como el mismo pouvoir constituant siempre presente. Pero en tanto que la dictadura comisarial es autorizada por un órgano constituido y tiene un título en la Constitución existente, la dictadura soberana se deriva solamente quod exercitium y de una manera inmediata del pouvoir constituant informe. Es una verdadera comisión, como la invocación de una misión del Dios transcendente. Apela al pueblo siempre presente, que en todo momento puede entrar en acción, lo que le da también una significación jurídica inmediata. Mientras está reconocido el pouvoir constituant, siempre existe un “mínimo de Constitución”. Pero como para que el poder constituyente del pueblo pueda hacerse actual tiene que empezar este mismo pueblo por crear las condiciones exteriores, el contenido en sí problemático de la voluntad constituyente en el estado de cosas que sirve para justificar esa dictadura, no tiene una existencia actual, según su proprio presupuesto. Por ello, este poder dictatorial es soberano, pero únicamente como “transición” y, debido a su dependencia respecto del cometido a desempeñar, lo es en absoluto una aristocracia soberana. El dictador comisarial es el comisario de acción incondicionado de un pouvoir constitué; la dictadura soberana es la comisión de acción incondicionada de un pouvoir constituant.143

Em um segundo momento teórico, porém, Schmitt, em sua “Teologia Política”

realiza a inscrição do estado de exceção na ordem jurídica operacionalmente por meio da

distinção entre a norma e a decisão. “(...) Suspendendo a norma, o estado de exceção

“revela (offenbart) em absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a

decisão” (Schmitt, 1922, p. 19). Os dois elementos, norma e decisão, mostram assim sua

autonomia”.144 A exceção mantém-se em relação com a ordem jurídica justamente porque

pode o soberano decidir – formalmente, juridicamente – pela suspensão dessa ordem.

143 SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta la Lucha de Clases Proletaria. p. 191-193. 144 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.56.

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É justamente porque a norma e a decisão pertenceriam ambas ao contexto jurídico,

que é possível compreender e inscrever no direito o caso da exceção. Schmitt completa,

desse modo, o escorço teórico inicialmente traçado sobre as ditaduras comissária e

soberana: é por meio da decisão do soberano, que decide a respeito da suspensão da ordem

jurídica, que é possível a articulação da ditadura comissária, na qual há uma situação

concreta e específica excepcionada, bem como da ditadura soberana, na qual o direito como

um todo é suspenso para possibilitar a eventual emergência de uma nova ordem jurídica,

consoante a vontade do detentor do poder constituinte.

O vínculo entre estado de exceção e soberania, por fim, revela-se na medida em que

é soberano quem decide, em última instância, sobre quando existe a situação de emergência

e de exceção, e é essa decisão soberana que garante a ancoragem da exceção na ordem

jurídica. Assim:

(...) enquanto a decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro (o que corresponde à norma anulada e suspensa), o “soberano está fora [steht ausserhalb] da ordem jurídica normalmente válida e, entretanto, pertence [gehört] a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão in totto da constituição” (ibidem, p. 13).

Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode também ser definido pelo oximoro êxtase-pertencimento.145

A oposição entre normas do direito e normas de realização do direito, central na

ditadura comissária, denuncia uma distinção entre a norma e sua aplicação concreta, que é

um momento autônomo em relação à norma em si. Dessa forma, é possível a suspensão da

norma sem que esta deixe de vigorar. “(...) Representa, pois, um estado da lei em que esta

não se aplica, mas permanece em vigor”.146 Na ditadura soberana, entretanto, na qual a

constituição anterior não mais subsiste, e a nova constituição se sustém minimamente na

forma do poder constituinte, há uma lei que se aplica, mas que formalmente não está em

vigor.

145 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.56-57. 146 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.58.

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Já na oposição entre norma e decisão, fundamental para o conceito de ditadura

soberana, tem-se que:

Schmitt mostra que elas são irredutíveis, no sentido que a decisão nunca pode ser deduzida da norma sem deixar resto (restlos) (Schmitt, 1922, p.11). Na decisão sobre o estado de exceção, a norma é suspensa ou completamente anulada; mas o que está em questão nessa suspensão é, mais uma vez, a criação de uma situação que torne possível a aplicação da norma (“deve-se criar a situação em que possam valer [gelten] normas jurídicas” (ibidem, p. 19]). O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real.

Podemos então definir o estado de exceção na doutrina schmittiana como o lugar em que a oposição entre a norma e a sua realização atinge a máxima intensidade. Tem-se aí um campo de tensões jurídicas em que o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa. Mas também nessa zona extrema, ou melhor, exatamente em virtude dela, os dois elementos do direito mostram sua íntima coesão.147

Novamente Agamben compara a estrutura do direito com a da linguagem:

A analogia estrutural entre linguagem e direito é aqui esclarecedora. Assim como os elementos lingüísticos existem na língua sem nenhuma denotação real, que só adquirem no discurso em ato, também no estado de exceção a norma vige sem nenhuma referência à realidade. Porém, assim como a atividade lingüística concreta torna-se inteligível pela pressuposição de algo como uma língua, a norma pode referir-se à situação normal pela suspensão da aplicação no estado de exceção.

De modo geral, pode-se dizer que não só a língua e o direito, mas também todas as instituições sociais, se formaram por um processo de dessemantização e suspensão da prática concreta em sua referência imediata ao real. Do mesmo modo que a gramática, produzindo um falar sem denotação, isolou do discurso algo como uma língua, e o direito, suspendendo os usos e os hábitos concretos dos indivíduos, pôde isolar algo como uma norma, assim também, em todos os campos, o trabalho paciente da civilização procede separando a prática humana de seu exercício concreto e criando, dessa forma, o excedente de significação sobre a denotação que Lévi-Strauss foi o primeiro a reconhecer. O significante excedente – conceito-chave nas ciências humanas do século XX – corresponde, nesse sentido, ao estado de exceção em que a norma está em vigor sem ser aplicada.148

É estranho que Agamben, ao longo desta análise de Schmitt, não tenha avaliado a

reflexão dele acerca da manifestação da ditadura na martial law moderna. No capítulo final

de La Dictadura, há uma ampla reflexão acerca do uso do estado de sítio a partir do século

147AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 58.

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XIX, e, a despeito de Schmitt não ser explícito, a martial law parece revelar uma

circunstância que ensejaria o surgimento de uma ditadura comissária, mas que,

factualmente, é mais próxima de uma ditadura soberana.

A descrição da martial law, nesse caso, lembra sobremaneira a própria reflexão de

Agamben acerca da indistinção entre vida e direito que se instaura em uma situação

biopolítica de exceção generalizada:

(...) Para distinguir netamente toda esta esfera de la acción militar fáctica de la realizada con arreglo al derecho militar por el consejo de guerra, aparece la martial law. Es una especie de situación ajurídica, en la que el ejecutivo – es decir, la autoridad militar interventora – puede proceder sin tener en cuenta las barreras legales, conforme lo exija la situación de las cosas, en interés de la represión del adversario. A pesar de su nombre, el derecho de guerra no es, en este sentido, derecho ni ley, sino un procedimiento dominado esencialmente por un fin fáctico, en el que la regulación jurídica se limita a precisar los presupuestos bajo los cuales entra en acción (solicitud de las autoridades civiles, requerimiento para dispersarse, etc.). Como fundamento jurídico para la situación ajurídica se hace valer que en tales casos todos los demás poderes estatales resultan impotentes e ineficaces y, especialmente, los tribunales no pueden ya actuar. Entonces debe entrar en acción el único poder todavía eficaz, que es el militar, como una especie de sustitutivo (some rude substitute), cuya acción debe ser a la vez juicio y ejecución. La idea de que en la guerra y el motín actúa la autoridad militar como sustitutivo de los tribunales, a cuyo efecto la martial law presupone una especie de justitium, ha estado siempre viva en el sentimiento jurídico anglosajón (…).149

A martial law, conforme explicada por Schmitt, de toda forma, enquadra-se como

um momento de transição do estado de sítio (ou de uma ditadura comissária) para uma

ditadura soberana que implementa uma circunstância de exceção permanente e não

declarada oficialmente, de uma lei que vigora sem significar e é dotada de natureza

eminentemente biopolítica150.

148 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.58-59. 149 SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta la Lucha de Clases Proletaria. p. 223. A menção ao justitium é, aqui, de grande interesse, pois tal instituto romano será amplamente explorado por Agamben ao avaliar a estrutura ontológica do estado de exceção. 150 Ainda discutindo a martial law e sua relação com o direito, Schmitt menciona o instituto prussiano dos atos oficiais compostos, que não só possibilitavam a relação entre ação militar fática e direito, como combinavam fato e direito: “(…) En la práctica administrativa prusiana existe un acto oficial compuesto semejante, en virtud del cual un proceso fáctico contiene en sí simultáneamente una disposición jurídica expresada a través del hecho, adoptada por motivos de razón jurídica práctica a favor del ciudadano afectado, con el fin de posibilitarle un recurso jurídico. En el caso de un traspaso total del poder ejecutivo, no sería ya posible, naturalmente, ningún recurso jurídico, porque entonces a través del hecho no solamente se expresaría la disposición, sino que también se expresaría simultáneamente la denegación del recurso jurídico, tal vez

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A compreensão dos efeitos e da forma de funcionamento dessa lei que vigora sem

significar, ou que significa sem vigorar, é paulatinamente desenvolvida por Agamben a

partir do famoso texto “Força de Lei”, de Jacques Derrida151. Este, originado de uma

conferência na qual Derrida pretendeu realizar uma leitura possível do ensaio Crítica da

Violência – Crítica do Poder, já mencionado anteriormente, teve o efeito, na visão de

Agamben, de, além de suscitar um debate entre filósofos e juristas, trazer ao palco a

problemática da fórmula que dá nome ao texto, ou seja, o significado da expressão “força

de lei”.

Derrida identifica a “força de lei”, em um primeiro momento, com a idéia de um

“fundamento místico da autoridade”. Amparado em Montaigne, ele sublinha que as leis não

são seguidas porque são justas, mas sim porque são leis, porque têm autoridade de lei152.

Esse fundamento místico teria a sua origem no ato violento e performativo de fundação do

direito – ou seja, no ato que institui o direito. O ato fundador é místico na medida em que

delimita o ponto além do qual nenhum discurso é possível: “O discurso encontra ali seu

limite: nele mesmo, em seu próprio poder performativo. É o que proponho aqui chamar,

deslocando um pouco e generalizando a estrutura, o místico. Há ali um silêncio murado na

admisible, de manera que el acto podría contener una riqueza fantástica de composiciones. El concepto de acto oficial compuesto tiene una historia curiosa, que todavía no se ha escrito y que aquí solo podemos esbozar brevemente. Esa práctica del tribunal administrativo superior prusiano es tan solo una débil repercusión de una combinación de forma jurídica e hecho, de una especie de jurisprudencia que, políticamente, puede tener tanto un lado conservador-gubernamental como un lado revolucionario. Allí donde todavía está viva la representación de que mediante un determinado acto se coloca uno fuera de la ley, allí donde su autor se convierte ipso facto en proscrito, hostis, rebelde o enemigo de la patria, dicho autor es según esta idea, un fuera de la ley, y objeto sin más ejecución por parte de cualquiera”. In: SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta la Lucha de Clases Proletaria. p. 226-227. O fora da lei mencionado por Schmitt nada mais é que o homo sacer de Agamben, e todo o mecanismo dos atos oficiais compostos pode ser considerado como uma técnica de exceção não declarada. 151 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 152 “Visivelmente, Montaigne distingue aqui as leis, isto é, o direito, da justiça. A justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis não são justas como leis. Não obedecemos a elas porque são justas, mas porque têm autoridade. A palavra “crédito” porta toda a carga da proposição e justifica a alusão ao caráter “místico” da autoridade. A autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento. Esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional. E ainda resta pensar no que significa crer”. In: DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 21.

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estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é

exterior à linguagem”. 153

Essa “força de lei”, que nasce do ato violento fundador do direito não é ainda

justiça, mas apesar de violenta, tampouco constitui mera violência injusta. Ela seria o

pressuposto necessário à lei, ao direito, para que possam ainda eventualmente vir a ser

justos:

A. A primeira é “to enforce law", ou ainda, “enforceability of law or of contract”. Quando se traduz em francês “to enforce law” por “aplicar a lei”, perde-se aquela alusão direta, literal, à força que vem do interior, lembrando-nos que o direito é sempre uma força autorizada, uma força que se justifica ou que tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável. Não há direito sem força, Kant o lembrou com o maior rigor. A aplicabilidade, a “enforceability” não é uma possibilidade exterior ou secundária que viria ou não juntar-se, de modo suplementar, ao direito. Ela é a força essencialmente implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida em que ela se torna lei, da lei enquanto direito. (...) A palavra “enforceability” chama-nos pois à letra. Ela nos lembra, literalmente, que não há direito que não implique nele mesmo, a priori, na estrutura analítica de seu conceito, a possibilidade de ser “enforced”, aplicado pela força. Kant o lembra desde a Introdução à doutrina do direito (no § E, que concerne ao “direito escrito”, das stricte Recht). Existem, certamente, leis não aplicadas, mas não há lei sem aplicabilidade, e não há aplicabilidade ou “enforceability” da lei sem força, quer essa força seja direta ou não, física ou simbólica, exterior ou interior, brutal ou sutilmente discursiva – ou hermenêutica –, coercitiva ou reguladora etc. Como distinguir entre essa força da lei, essa “força de lei”, como se diz tanto em francês como em inglês, acredito, e por outro lado a violência que julgamos sempre injusta? Que diferença existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em toda caso julgada legítima (não apenas o instrumento a serviço do direito, mas a própria realização, a essência do direito), e, por outro lado, a violência que julgamos injusta? O que é uma força justa ou uma força não violenta?154

É inspirado nessa idéia de “força de lei” que é menos que justiça, mas mais que pura

violência, que Agamben dá seqüência à sua arqueologia da lei que vige sem significar. O

sintagma “força de lei” remonta à tradição romana e medieval, e apresenta, a princípio, o

sentido geral de eficácia, de capacidade de obrigar. Entretanto, a partir da era moderna, no

contexto da Revolução Francesa, a força de lei “(...) começa a indicar o valor supremo dos

153 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 25. 154 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 7-9. Agamben certamente não concorda com a idéia de que não existe lei sem aplicabilidade.

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atos estatais expressos pelas assembléias representativas do povo”.155 A força de lei

representa, nessa lógica, a intangibilidade da lei, vinculada à impossibilidade, que se

estende até ao soberano, de anulá-la ou modificá-la156. Nesse sentido, há uma distinção

entre a eficácia da lei e a força da lei em si:

(...) a doutrina moderna distingue a eficácia da lei, que decorre de modo absoluto de todo ato legislativo válido e consiste na produção de efeitos jurídicos, e força de lei que, ao contrário, é um conceito relativo que expressa a posição da lei ou dos atos a ela assimilados em relação aos outros atos do ordenamento jurídico, dotados de força superior à lei (como é o caso da constituição) ou de força inferior a ela (os decretos e regulamentos promulgados pelo executivo) (...) Entretanto, é determinante que, em sentido técnico, o sintagma “força de lei” se refira, tanto na doutrina moderna quanto na antiga, não à lei, mas àqueles decretos – que têm justamente, como se diz, força de lei – que o poder executivo pode, em alguns casos – particularmente, no estado de exceção – promulgar. O conceito “força de lei”, enquanto termo técnico do direito, define, pois, uma separação entre a vis obligandi ou a aplicabilidade da norma e sua essência formal, pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua “força”. Assim, quando, em Roma, o príncipe começa a obter o poder de promulgar atos que tendem cada vez mais a valer como leis, a doutrina romana diz que esses atos têm “vigor de lei” (...).157

Na visão de Agamben, a confusão existente no estado de exceção em relação aos

poderes tipicamente legislativos, que passam a se misturar com atribuições executivas, é

instrumentalizada justamente pela possibilidade teórica de se separar a “força de lei” da

própria lei. É em face de tal circunstância que pode existir um estado de lei no qual a norma

está em vigor, mas não se aplica (por não possuir força de lei), ou um estado de lei no qual

atos que não têm valor de lei (ou seja, não estão em vigor) adquirem a força de lei. Essa

força de lei, desse modo, converte-se em um elemento indeterminado, que pode ser

reivindicado tanto por movimentos revolucionários, como pela própria autoridade estatal.

Nesse sentido, “O estado de exceção é uma espaço anômico onde o que está em jogo é uma

força de lei sem lei (...). Tal força de lei, em que potência e ato estão separados de modo

radical, é certamente algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio da

qual o direito busca se atribuir sua própria anomia”.158

155 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 59-60. 156 A intangibilidade da lei está evidente e diretamente relacionada com a idéia de supremacia da Constituição. 157 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.60. 158 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.61.

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O elemento místico identificado por Derrida, que remonta ao ato violento instituidor

do direito, destarte, termina por se estender para dentro e para fora das leis, ao sabor da

decisão soberana – que dele dispõe na forma da exceção jurídica.

A existência de uma força de lei separada da lei, e que transita anomicamente para

atos “apócrifos” no estado de exceção, revela, de modo contundente, a separação entre a

norma e a aplicação dessa norma. É porque não é possível derivar simplesmente de uma

norma sua aplicação, que ocorre de a força de lei, de a aplicabilidade da lei ser transferida

para fora dela:

(...) no caso do direito, é perfeitamente evidente (...) que a aplicação de uma norma não está de modo algum contida nela e nem pode ser dela deduzida, pois, de outro modo, não haveria necessidade de se criar o imponente edifício do direito processual. Como entre a linguagem e o mundo, também entre a norma e sua aplicação não há nenhuma relação interna que permita fazer decorrer diretamente uma da outra.

O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a conseqüente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.159

A violência que integra a “força de lei”, portanto, acompanha o trânsito dessa

mesma força para atos que não eram lei – e, haurindo legitimidade da sua “aceitação

mística”, todavia, culmina em um exercício de violência virtualmente abstrato e

incompreensível fora da estrutura ontológica da exceção soberana.

Nessa perspectiva, entretanto, a Constituição, como a lei que maior resquício guarda

da violência fundadora da ordem jurídica, e que, por conseqüência, contém, dentre todas as

leis, a maior parcela deste fundamento místico de autoridade chamado por Derrida de

“força de lei”, exerce um papel mais forte e perturbador ainda que o das demais leis. A

159 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.62-63.

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Constituição funciona estruturalmente, nessa lógica, como o signo da autoridade mística

fundadora da ordem jurídica que granjeia força de lei às demais leis. Ela é o símbolo escrito

e presente da violência silenciosa do ato fundador. A força das demais leis depende e

somente existe se consoante à força de lei da Constituição. Em tese, portanto, uma lei

somente tem força de lei se for constitucional – e, mesmo que por algum tempo uma lei

inconstitucional tenha força de lei, sua inconstitucionalidade eventualmente declarada

deveria eliminar do mundo todo e qualquer efeito que esta lei tenha realizado160 – como se

ela nunca tivesse possuído força de lei.

Se a força de lei pode se separar das leis e transitar anomicamente para atos

apócrifos de soberania, a força de lei que eventualmente se decalque da Constituição tem a

pretensão de não só ser superior à força das demais leis, como a de representar a violência

silenciosa do ato fundador. A força de lei constitucional, em seu aspecto violento,

apresenta-se não como violência mantenedora do direito (que ela, todavia, pode ser), mas

como emblema da violência instituidora do direito (que ela, todavia, também pode ser).

Esta circunstância a diferencia e a qualifica em relação às demais leis do ordenamento

jurídico: a força de lei que eventualmente transite da Constituição para qualquer outro ato

ou lei tem a pretensão de não ter sofrido a degenerescência da violência mantenedora de

direito identificada por Benjamin.

Disto resulta que a vigência sem significado da Constituição – ou de algo que se

pretenda como emblema do ato violento fundador da ordem jurídica – bem como o seu

sentido sem vigência, não podem ser equiparados ao mesmo fenômeno quando este ocorre

como uma lei não constitucional. Isto porque a simples lei mantém uma relação

exclusivamente com o poder constituído, enquanto a Constituição suporta ainda um

pretenso vínculo direto, simbólico e textual com o poder constituinte.

160 É evidente que se tem notícia dos diversos mecanismos de interpretação constitucional que, inclusive no Brasil, permitem que a declaração de inconstitucionalidade não tenha efeitos ex tunc, e que mesmo uma lei inconstitucional tenha sua força de lei reconhecida por algum período. Tal é possível, todavia, justamente pelo trânsito apócrifo da força de lei, que de algum modo é reconhecido e autorizado pelo poder judiciário ao realizar seu juízo de constitucionalidade. Trata-se, evidentemente, de exceção jurídica que se pretende passar por direito.

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Parece, portanto, que a terrível descrição de Agamben acerca do desprendimento da

força de lei, que se vem apresentando, reporta-se, em verdade, à liberação e trânsito da

“força de lei constitucional”, e não da força de lei de qualquer lei. Esta diferença é

importante, porque a força de lei que se desprende de uma simples lei pode ainda ser

julgada frente à força de lei constitucional; mas a força de lei que se desprende da

Constituição, ontologicamente, desconhece qualquer limite além da força e da violência

fundadora que simboliza161.

Por fim, em uma situação concreta na qual as leis tenham sentido sem vigência, ou

vigência sem sentido, isto é, vigência sem força ou força sem vigência, mas a Constituição

ainda vigore e tenha sentido, não há que se falar em exceção generalizada – porque

potencialmente até mesmo a mais brutal exceção legal pode ser submetida ao crivo do

controle de sua constitucionalidade. No entanto, em uma situação na qual a Constituição

vigore sem ter sentido, ou tenha sentido sem vigorar, é nessa circunstância, de fato que tudo

se torna possível, pois qualquer coisa, qualquer ato, qualquer violência, qualquer

arbitrariedade pode, eventualmente, receber a força de lei constitucional, em toda sua

mística autoridade162, e ter essa força judicialmente convalidada como efetivamente

constitucional.

161 Na prática, quer-se dizer que a força de lei constitucional não tem obstáculos, enquanto a simples força de lei sempre pode ser obstaculizada pela avaliação de sua constitucionalidade. Tal diferença, que não foi traçada por Agamben, permite distinguir, por exemplo, uma situação na qual há exceção executiva porque os atos excepcionais não chegam a sofrer um juízo de constitucionalidade, de uma situação na qual há exceção (seja executiva, seja qualquer outra) generalizada convalidada pelo trânsito da força de lei constitucional para si. Conquanto esta diferença seja, a princípio, apenas de grau, ela possibilita que se avalie com maior precisão a concreta existência de exceção e biopolítica nos Estados modernos – impedindo, por exemplo, como Agamben muitas vezes faz, que se situem exatamente no mesmo plano as mortes em auto-estradas (como controlar a constitucionalidade disto?) e campos de estupro étnicos (que, efetivamente, apenas ocorrem quando a exceção é absoluta e, de fato, vida e direito, indeterminam-se completamente). 162 Neste ponto, e para fazer justiça a Agamben, ele provavelmente consignaria que em todo o Ocidente moderno as Constituições ou vigoram sem ter sentido, ou têm sentido sem ter vigência, e que, como sua análise não é histórica, mas ontológica, sua descrição é válida para qualquer lei, genericamente, inclusive para as Constituições. Conquanto se possa concordar com isto, é importante observar que as distinções por ora traçadas abrem espaço para a avaliação do papel do poder judiciário e do momento de aplicação da lei para a existência de uma exceção generalizada e não declarada – justamente a lacuna do pensamento do autor que se explora no atual texto.

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2. O Iustitium – a origem ontológica do estado de exceção.

O uso apócrifo da força de lei é uma das marcas essenciais do estado de exceção, na

medida em que nele vigora a força sem a lei, e a lei sem a força. Agamben procura

identificar a forma paradigmática da situação de exceção em algum exemplo histórico que

demonstre que o Estado de Exceção moderno não é nada “excepcional”, mas que, em

verdade, consistiria no funcionamento normal do direito encarado como categoria

ontológica.

Nesse sentido, o direito conduziria sempre ao estado de exceção, sendo que a

diferença do direito moderno para outras de suas manifestações ontológicas é

exclusivamente relacionada à sua maior eficácia – ou, em outros, termos, à radicalização

dos procedimentos biopolíticos de produção de vida nua e de exceção jurídica.

Ele elege como exemplo histórico, no caso, o instituto romano do iustitium163, que

funcionava do seguinte modo:

Quando tinha notícia de alguma situação que punha em perigo a República, o Senado emitia um senatus consultum ultimum por meio do qual pedia aos cônsules (ou a seus substitutos em Roma, interrex ou pró-cônsules) e, em alguns casos, também aos pretores e aos tribunos da plebe e, no limite, a cada cidadão, que tomassem qualquer medida considerada necessária para a salvação do Estado (rem publicam defendant, operamque dent ne quid respublica detrimenti capiat). Esse senatus-consulto tinha por base um decreto que declarava o tumultus (isto é, a situação de emergência em Roma, provocada por uma guerra externa, uma insurreição ou uma guerra civil) e dava lugar, habitualmente, à proclamação de um iustitium (iustitium edicere ou indicere). O termo iustitium – construído exatamente como solstitium – significa literalmente “interrupção, suspensão do direito”: quando ius stat – explicam etimologicamente os gramáticos – sicut solstititum dicitur (iustitium se diz quando o direito pára, como [o sol no] solstício); ou, no dizer de Aulo Gellio, iuris quase interstitio quaedam et cessatio (quase um intervalo e uma espécie de cessação do direito). Implicava, pois, uma suspensão não apenas da administração da justiça, mas do direito enquanto tal. É o sentido desse paradoxal instituto jurídico, que consiste unicamente na produção de um vazio jurídico, que se deve examinar aqui, tanto do ponto de vista da sistemática do direito público quanto do ponto de vista filosófico-político.164

163 Não faz mal sublinhar, uma vez mais, que Schmitt comparou a manifestação do estado de sítio na Prússia com o iustitium. 164 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.67-68.

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A emissão de um senatus-consulto dependia da existência de uma declaração de

“tumulto”. Tal condição, que não se reduz a uma mera situação de guerra (ainda que o

tumulto possa ser causado por uma guerra), se caracteriza pela existência de um estado de

desordem e de agitação na urbe romana, usualmente vinculado a insurreições e crises

intestinas. O tumulto, portanto, é a crise que possibilita, à luz do direito público romano, a

adoção de medidas excepcionais, ou, em outros termos, a suspensão do direito.

Agamben sublinha que usualmente o senatus-consulto é interpretado como uma

espécie de “férias judiciárias”. Entretanto, o pensamento romanista tradicional não teria

sido capaz de formular uma interpretação adequada para este instituto. Mommsen, por

exemplo, aproximou o senatus-consulto a um suposto direito de legítima defesa estatal. Já

Plaumann o equipara a uma “quase-ditadura” possível no sistema constitucional romano.

Tais perspectivas, entretanto, são incapazes de explicar a circunstância de que, durante o

senatus-consulto, não é criada nenhuma nova magistratura, mas sim cada cidadão parece

ser investido de um imperium flutuante e anômalo, indefinível à luz do ordenamento

jurídico normal.

Foi Adolphe Nissen, para Agamben, quem se aproximou de uma definição mais

clara e consistente do instituto:

Em 1877, Adolphe Nissen, professor da Universidade de Estrasburgo, publica a monografia Das Iustitium. Eine Studie aus der römischen Rechtsgeschichte. O livro, que se propõe a analisar um “instituto jurídico que até agora passou quase despercebido”, é interessante por muitas razões. Nissen é o primeiro a ver de modo claro que a compreensão usual do termo iustitium como “férias judiciárias” (Gerichtsferien) é totalmente insuficiente e que, no sentido técnico, também deve ser distinguido do significado mais tardio de “luto público”. Tomemos um caso exemplar de iustitium – aquele de que nos fala Cícero em Phil. 5, 12. Diante da ameaça de Antônio, que se dirige para Roma preparado para combater, Cícero fala ao Senado com estas palavras: tumultum censeo decerni, iustitium indici, saga sumi dico oportere (afirmo que é necessário declarar o estado de tumultus, proclamar o iustitium e estar pronto: saga sumere significa mais ou menos que os cidadãos devem tirar suas togas, vestir-se e estar preparados para combater). Nissen tem razão ao mostrar que traduzir aqui iustitium como “férias jurídicas” simplesmente não teria sentido; trata-se, sobretudo, diante de uma situação de exceção, de pôr de lado as obrigações impostas pela lei à ação dos magistrados (em particular, a interdição determinada pela Lex Sempronia de condenar à morte um cidadão romano iniussu populi). Stillstand des Rechts, “interrupção e suspensão do direito” é a fórmula que, segundo Nissen, traduz literalmente e define o termo iustitium. O

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iustitium “suspende o direito e, a partir disso, todas as prescrições jurídicas são postas de lado. Nenhum cidadão romano, seja ele magistrado ou um simples particular, agora tem poderes ou deveres” (...). Quanto ao objetivo dessa neutralização do direito, Nissen não tem dúvidas:

Quando o direito não estava mais em condições de assumir sua tarefa suprema, a de garantir o bem comum, abandonava-se o direito por medidas adequadas à situação e, assim como, em caso de necessidade, os magistrados eram liberados das obrigações da lei por meio de um senatus-consulto, em caso extremo também o direito era posto de lado. Quando se tornava incômodo, em vez de ser transgredido, era afastado, suspenso por meio de um iustitium (...) O iustitium responde, portanto, segundo Nissen, à mesma necessidade que Maquiavel exprimia sem restrições quando, no Discorsi, sugeria “romper” o ordenamento jurídico para salvá-lo (“Porque quando, numa república, falta semelhante meio, se as ordens forem cumpridas, ela vai necessariamente à ruína; ou, para não ir à ruína, é necessário rompê-las” (...). Na perspectiva do estado de necessidade (Notfall), Nissen pode, então, interpretar o senatus consultum ultimum, a declaração de tumultus e o iustitium como sistematicamente ligados. O consultum pressupõe o tumultus e o tumultus é a única causa do iustitium. Essas categorias não pertencem à esfera do direito penal, mas à do direito constitucional e designam “a cesura por meio da qual se decide constitucionalmente o caráter admissível de medidas excepcionais (...)”.165

A natureza essencial do instituto, ademais, pode ser compreendida a partir da

análise do temo “ultimus”, que tanto define o senatus consultum ultimae necessitatis quanto

a vox ultima, que se constitui na declaração dirigida a todos os cidadãos romanos para a

salvação da república. O ultimus representa aquilo que se encontra absolutamente além, no

ponto mais extremo. O senatus consultum ultimum, portanto, é o ponto mais além e

extremo em relação à própria ordem jurídica, que, no iustitium, é suspensa. Logo, esses

dois institutos marcam o limite final da ordem constitucional romana.

Desse modo, o iustitium não mantém nenhuma relação real com o instituto da

ditadura romana166. Isso porque enquanto a situação da ditadura era caracterizada pela

165 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.72-73. O paralelo entre os pensamentos de Agamben e Negri – que, a despeito de serem diferentes, coincidem estruturalmente em muitos pontos – mostra-se novamente no fato de que, enquanto Agamben vincula Maquiavel à suspensão do direito e ao iustitium, Negri o liga ao poder constituinte livre e democrático, que, conforme já visto, compartilha várias semelhanças estruturais com a soberania e o poder constituinte de Agamben (menos ser livre e democrático, evidentemente). Sobre o tema, ver NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. p. 57-148. 166 Que, para Carl Schmitt, pode ser simplesmente definida como ditadura comissária instaurada pela aristocracia soberana romana: “(...) Dentro de los arcana, se distingue entre los arcana imperii y los arcana dominationis, refiriéndose los primeros al Estado, es decir, a la situación de poder existente de hecho, en los tiempos normales. A los arcana imperii pertenecen, por tanto, los distintos métodos empleados en las distintas formas de Estado (monarquía, aristocracia, democracia) para mantener tranquilo al pueblo (…). Los arcana dominationis, en cambio, se refieren a la protección y defensa de las personas que ejercen la dominación durante acontecimientos extraordinarios, rebeliones y revoluciones, y a los medios para

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atribuição de um amplo imperium ao ditador, não há, no iustitium, a criação de nenhuma

nova magistratura – de fato, o poder atribuído aos magistrados durante o iustitium, em si

ilimitado, não deriva da atribuição própria de um novo imperium, mas sim da suspensão

das leis que tolhiam seu poder e ação. A ditadura, portanto, constituiria uma exceção casual

e momentânea, enquanto o iustitium configurava a suspensão completa da ordem jurídica

como um todo.

Essa mesma diferença marca o estado de exceção moderno:

Isso vale na mesma medida para o estado de exceção moderno. O fato de haver confundido estado de exceção e ditadura é o limite que impediu Schmitt, em 1921, bem como Rossiter e Friedrich depois da Segunda Guerra Mundial, de resolverem as aporias do estado de exceção. Em ambos os casos, o erro era interessado, dado que, com certeza, era mais fácil justificar juridicamente o estado de exceção inscrevendo-o na tradição prestigiosa da ditadura romana do que restituindo-o ao seu autêntico, porém mais obscuro, paradigma genealógico no direito romano: o iustitium. Nessa perspectiva, o estado de exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico do direito, mas, sim, como um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito.167

A suspensão do direito, efetivada pelo iustitium, confunde e neutraliza,

simultaneamente, tanto a esfera pública quanto a esfera privada. O magistrado torna-se

simples cidadão, e o cidadão pode arrogar-se de atribuições de magistrado – de forma que

deixa de existir uma diferença entre o jurídico e o não-jurídico, bem como entre público e

privado.

arreglárselas con estas cosas. No obstante, se observa expresamente que entre las dos clases de arcana no hay una diferencia grande, porque el Estado ni puedo permanecer incólume sin que permanezca incólume el príncipe o el partido dominante (…). Especialmente, la dictadura se describe como un arcanum dominationis específico de la aristocracia; debe tener por fin amedrentar al pueblo, estableciendo una autoridad contra la cual no haya ninguna apelación (…). Pero todavía se establecen más diferencias. En cuanto se separen los arcana dominationis, como los medios indispensables de toda dominación estatal, (…) del abuso de poder, de la tiranía, (…) más pondrán ambas clases de arcana en una oposición conceptual a los jura imperii y dominationis. Los jura imperii son los distintos derechos de soberanía, enumerados desde Bodino como característicos del summum imperium, especialmente el derecho de dar leyes; constituyen los fundamentos (fundamenta) de los arcana, y son los mismos en cada Estado, mientras que los arcana tienen que cambiar según la situación de las circunstancias (…). Compreende bajo los jura dominationis el derecho público de excepción (…)”. SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta la Lucha de Clases Proletaria. p. 46-48. 167 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.75. Conforme já visto, isto não é de todo verdade. Schmitt vincula o estado de sítio ao iustitium romano, principalmente em sua característica de poder produzir hostis. Na verdade, seu “erro interessado” não está em vincular o estado de exceção à ditadura e não ao iustitium,

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Esta é a indeterminação entre fato e direito, vida e lei, com a qual Agamben se

preocupa. Nessa circunstância, torna-se impossível avaliar a natureza dos atos cometidos

durante o iustitium, ou, em outros termos, a natureza dos atos humanos praticados em um

vazio jurídico. Do mesmo modo, as conseqüências posteriores de tais atos, tanto quanto a

questão sobre como aferir a responsabilidade derivada de tais atos, não são claras:

É nessa perspectiva que se deve considerar também a impossibilidade (comum às fontes antigas e às modernas) de definir com clareza as conseqüências jurídicas dos atos cometidos durante o iustitium com o objetivo de salvar a res publica. O problema era de especial relevância porque dizia respeito à possibilidade de punir com a morte um cidadão romano indemnatus. Cícero, a respeito do assassinato dos partidários de Caio Graco por parte de Opimio, já define como “um problema interminável” (infinita quaestio) a punibilidade do assassino de um cidadão romano que não tinha feito senão executar um senatus consultum ultimum (De Or., 2, 3, 134); Nissen, por sua vez, nega que o magistrado que tivesse agido em resposta a um senatus-consulto, bem como os cidadãos que o tivessem seguido, pudessem ser punidos quando terminado o iustitium; porém, é contestado pelo fato de que Opimio teve, apesar de tudo, que enfrentar um processo (mesmo que absolvido depois) e de que Cícero foi condenado ao exílio em conseqüência de sua sangrenta repressão à conjuração de Catilina. Na realidade, toda a questão está mal colocada. Com efeito, a aporia só se esclarece quando se considera que, à medida que se produzem num vazio jurídico, os atos cometidos durante o iustitium são radicalmente subtraídos a toda determinação jurídica. Do ponto de vista do direito, é possível classificar as ações humanas em atos legislativos, executivos e transgressivos. Mas, evidentemente, o magistrado ou o simples particular que agem durante o iustitium não executam nem transgridem nenhuma lei e, sobretudo, também não criam direitos. Todos os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de que o senatus consultum ultimum não tem nenhum conteúdo positivo: limita-se a exprimir uma opinião introduzida por uma fórmula extremamente vaga (videant consules...), que deixa o magistrado ou o simples cidadão inteiramente livre para agir como achar melhor e, em último caso, para não agir. Caso se quisesse, a qualquer preço, dar um nome a uma ação realizada em condições de anomia, seria possível dizer que aquele que age durante o iustitium não executa nem transgride, mas inexecuta o direito. Nesse sentido, suas ações são meros fatos cuja apreciação, uma vez caduco o iustitium, dependerá das circunstâncias; mas, durante o iustitium, não são absolutamente passíveis de decisão e a definição de sua natureza – executiva ou transgressiva e, no limite, humana, bestial ou divina – está fora do âmbito do direito.168

mas sim em compreender o iustitium apenas como uma manifestação da exceção que se instaura em uma ditadura – seja comissária, seja soberana. 168 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.77-78. Incompreensível, nesta questão, porque Agamben não consegue perceber a existência de “atos judiciários”.

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A partir da análise relativa ao iustitium, portanto, Agamben propõe que é possível

tirar algumas conclusões a respeito da estrutura do estado de exceção moderno, e, em

verdade, da sua própria lógica de funcionamento ontológico.

Em primeiro lugar, o estado de exceção não é uma ditadura, mas sim um espaço

vazio de direito, uma região de anomia em que as determinações jurídicas, e a própria

distinção entre esfera pública e esfera privada, ficam suspensas. Logo, o estado de exceção

não deriva de uma situação de necessidade ou emergência que poderia supostamente ser

encarada como a fonte originária do direito, nem configura o exercício de um direito do

Estado à própria defesa a partir da restauração de um estado originário “pleromatico” do

direito169. O estado de exceção não mantém um vínculo direto com a ordem jurídica, na

medida em que ele é um espaço sem direito, uma zona de anomia que resulta da suspensão

do direito.

Em segundo lugar, Agamben entende que “Esse espaço vazio de direito parece ser,

sob alguns aspectos, tão essencial à ordem jurídica que esta deve buscar, por todos os

meios, assegurar uma relação com ele, como se, para se fundar, ela devesse manter-se

necessariamente em relação com uma anomia”.170 O vazio jurídico que exsurge no estado

de exceção, se, por um lado, é imponderável pelo direito, por outro adquire uma relevância

estratégica decisiva para o funcionamento do próprio direito.

Em terceiro lugar, há o problema fundamental dos atos cometidos durante a

suspensão do direito, cuja definição não é possível à luz do direito. Nessa lógica, “(...) À

medida que não são transgressivos, nem executivos, nem legislativos, parecem situar-se, no

que se refere ao direito, em um não-lugar absoluto”.171 Sua compreensão escapa a

169 Esta seria, grosso modo, a perspectiva de Schmitt. Conforme visto em nota anterior, a exceção jurídica faria parte dos arcana dominationis, que permitiriam ao Estado lançar mão da suspensão do direito em face da necessidade, quando estivesse em risco sua própria sobrevivência. Nessa hipótese, o soberano exerceria plenamente seus poderes, ou comissionaria alguns desses poderes a um agente apto a debelar a crise – estabelecendo, desse modo, uma ditadura comissária. Não à toa, o iustitium é vinculado, em seu pensamento, ao estado de sítio, à martial law. 170 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.79. 171 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 79.

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qualquer referência jurídica real – justamente porque constituem atos cometidos em uma

circunstância na qual simplesmente inexistia ordem jurídica concreta.

Em quarto lugar, é justamente em relação à indefinibilidade de tais atos, e à sua

localização nessa espécie de “não-lugar”, que corresponde à idéia da força de lei

anteriormente desenvolvida. Agamben propõe então que a suspensão da lei implica a

liberação de “(...) uma força ou um elemento místico, uma espécie de mana jurídico (...) de

que tanto o poder quanto seus adversários, tanto o poder constituído quanto o poder

constituinte tentam apropriar-se”.172 É a força da lei separada da lei, ou, em outros termos,

o imperium flutuante, ou a vigência sem aplicação da norma, que constituem as formas

pelas quais o direito tenta incluir em si próprio a sua própria ausência, e a assegurar uma

relação vinculante, ao mesmo tempo que dele se apropria, com o estado de exceção.

Isto quer dizer, então, que para ser possível ao direito incluir a vida em seu interior,

isto é, para que mesmo os fatos que não foram “normalizados” ou “esquadrados” pelo

direito possam ser eventualmente “alcançados”, é necessária a possibilidade da exceção, no

sentido de que a força instituidora do poder constituinte possa ser eventualmente re-ativada

– ou, em outros termos, a força mantenedora do poder constituído possa ser desativada173 –

para que tais fatos sejam abordados pelo direito por meio da ausência e suspensão do

direito, em exceção. O direito, portanto, abandona, retira-se, para “incluir em si”, mas

igualmente “inclui abandonando-se”, retirando-se de sua potência constitutiva de não ser174.

Essa forma de relação que se ampara na ausência, e que inclui o que está excluído do

direito por meio da exclusão do direito em sua suspensão, é o que se denomina relação de

bando, ou bando soberano.

De modo irônico, todavia, também o que está normalizado pelo direito o está

sempre em abandono – pois toda inclusão primeira se dá no estado “kenomatico” de

ausência de direito do poder constituinte, ou seja, toda inclusão primeira se dá com a

172 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 79-80. Essa força de lei, como já visto, haure sua força da referência ao ato e à violência fundadoras da ordem jurídica, e, como se defende presentemente, corresponde no mundo moderno à força de lei constitucional. 173 De qualquer modo, que alguma força de lei se torne flutuante e anômica. 174 Ou, mais simplesmente, deixando de ser poder constituinte, soberano, para se tornar poder constituído.

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definição do que é normal pelo poder soberano. A inclusão somente ocorre na suspensão175.

E, mais ainda – justamente por ter sido incluído na ordem jurídica, o fato incluso, sujeito à

suspensão soberana do direito, está desde já excluído – pois é no esgotamento da potência

da soberania, em seu se doar a si própria, em seu excluir-se do que define, para, esgotando

sua potência de não ser, defini-lo, que o direito se normaliza. Nesta complexa lógica, que,

evidentemente, tem mais valor teórico que preponderância prática real – revela-se, para

Agamben, a circunstância de que o ser do direito é, em última instância, abandono, tanto do

que está incluído, mas excluso, quanto do que está excluído, mas incluso – sendo que é a

suspensão do direito a chave que opera essa relação.

O iustitium, portanto, pode ser considerado, já na Roma republicana, como a

primeira manifestação efetiva do estado de exceção. Entretanto, a história constitutiva do

termo revela que ocorreu uma “(...) singular evolução semântica que leva o termo iustitium

– designação técnica para o estado de exceção – a adquirir o significado de luto público

pela morte do soberano ou de um seu parente próximo. Realmente, com o fim da

República, o iustitium como suspensão do direito para se enfrentar um tumulto desaparece

e o novo significado substitui tão bem o velho que a própria lembrança desse austero

instituto parece apagar-se”.176 Agamben pretende compreender como o termo que

designava a suspensão do direito em situações de crise política pôde se transformar em uma

cerimônia fúnebre real.

Após criticar as explicações formuladas por Versnel, que vincula a fenomenologia

do luto aos períodos de crise política e falência das instituições sociais, nos quais a eunomia

175 É preciso ter em mente, nesse ponto, um certo grau de abstração. É evidente que a simples produção legislativa de novas leis, dentro dos trâmites legais normais previstos em uma ordem jurídica, não pode ser equiparada à exceção e ao abandono, simplesmente. Assim, quando se propõe que o direito define o que é o normal, quais são os fatos da vida por ele abarcados, é necessário pensar nessa normalização em termos amplos, e não como pequenas e definitivas individualizações concretas. É a situação que não guarda nenhuma relação, nem mesmo tênue, com o campo do normal jurídico, que somente pode ser incluída por meio da suspensão do direito. Dessa forma, por exemplo, a mera edição de um novo código de leis civis não pode ser considerada como a inclusão de fatos não normalizados, por se tratar tão-somente de uma mudança no poder constituído – a não ser que tal novo código civil traga uma alteração completamente alienígena à Constituição (como lei máxima), que, ainda assim, receba força de lei (ou, em outros termos, tenha sua constitucionalidade reconhecida). Isto ocorreria, por exemplo, caso se re-introduzisse concretamente, oficialmente ou não, a escravidão ou a pena de morte no Brasil. 176 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 101.

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se converte em anomia177, a cultura em natureza e caos, e de Seston, que, apesar de intuir

que o funeral do príncipe guarda semelhanças com o estado de exceção, limita-se a propor

que no próprio iustitium original já estava pressuposto um elemento de luto178, Agamben

constrói seu raciocínio a partir da tese trazida por Augusto Fraschetto, a quem, segundo ele,

caberia

... o mérito de haver evidenciado o significado político do luto público, mostrando que a ligação entre os dois aspectos do iustitium não está num pretenso caráter de luto da situação extrema ou da anomia, mas no tumulto que os funerais do soberano podem provocar. Fraschetti desvenda sua origem nas violentas desordens que haviam acompanhado os funerais de César, definidos significativamente como “funerais sediciosos” (...). Como, na época republicana, o iustitium era a resposta natural ao tumulto,

por meio de semelhante estratégia, pela qual os lutos da domus Augusta são assimilados a catástrofes citadinas, explica-se a assimilação do iustitium a luto público [...]. Disso resulta que os bona e os mala de uma só família passam a pertencer à esfera da res publica (...).

Fraschetti pode mostrar como, de modo coerente com essa estratégia, a partir da morte de seu sobrinho Marcelo, cada abertura do mausoléu da família devia implicar para Augusto a proclamação de um iustitium.

Realmente, é possível ver no iustitium-luto público nada mais que a tentativa do príncipe de apropriar-se do estado de exceção, transformando-o num assunto de família. Mas a relação é muito mais íntima e complexa.

Tome-se, em Suetônio, a famosa descrição da morte de Augusto em Nola, no dia 19 de agosto de 14 d.C. O velho príncipe (...) continua obstinadamente e de modo quase petulante a perguntar (identidem exquirens), com aquela que não é simplesmente uma metáfora política, an iam de se tumultus foris fuisset, se não haveria do lado de fora um tumulto que concernia a ele. A correspondência entre anomia e luto torna-se compreensível apenas à luz da correspondência entre morte do soberano e estado de exceção. O elo original entre tumultus e iustitium ainda está presente, mas o tumulto coincide agora com a morte do soberano, enquanto a suspensão do direito torna-se parte integrante da cerimônia fúnebre. É como se o soberano, que havia concentrado em sua “augusta” pessoa todos os poderes excepcionais, da tribunicia potestas perpetua ao imperium proconsolare maius et infinitum e que se torna, por assim dizer, um iustitium vivo, mostrasse, no instante da morte, seu íntimo caráter anômico e visse tumulto e anomia libertarem-se fora dele na cidade. Como Nissen havia intuído e expressado numa fórmula nítida (...), “as medidas excepcionais desapareceram porque se tornaram a regra” (...). A novidade constitucional do principado pode ser vista, então, como uma incorporação direta do estado de exceção e da anomia diretamente na pessoa do soberano,

177 A equalização e eventual confusão das pessoas, independentemente de suas classes sociais, posição política e econômica, que ocorre durante os períodos de crise, terminaria por resultar em uma situação de anomia, ou seja, de ausência de lei, de suspensão do direito. 178 Sendo incapaz de explicar, para Agamben, como o estado de exceção se tornou luto. Esta crítica a Versnel e a Seston, e a própria referência a eles, de todo modo, parece desnecessária para a exposição subseqüente de Agamben.

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que começa a libertar-se de toda subordinação ao direito para se afirmar como legibus solutus.179

A situação anômica que resultava na existência de um tumulto, que por sua vez

justificava a proclamação do estado de exceção via iustitium, é incorporada na figura do

soberano. De fato, o soberano, tomado como aquele que decide sobre a proclamação do

estado de exceção, contém em si o tumulto e a anomia, na medida em que é ele quem

decide quando há efetivamente o tumulto180. Nesse sentido, a soberania liberta-se de

quaisquer restrições jurídicas, pois a ela compete suspender o próprio direito que poderia

limitá-la, sempre que assim for considerado necessário pelo soberano. A morte do

soberano, nesses termos, implica a liberação da anomia181 contida em sua figura, e por isso

o luto requer a proclamação do estado de exceção, que constitui a solução soberana para o

tumulto anômico resultante da dissolução da figura soberana.

A natureza anômica do soberano, segundo Agamben, revela-se já à época romana na

teoria neopitagórica do soberano como “lei viva” (nomos empsychos). De acordo com o

tratado de Diotogene sobre a soberania, a teoria se apóia em três enunciados centrais: o

príncipe é o mais justo, e o mais justo é também o mais legal; não há rei sem justiça, mas a

justiça é sem lei; a justiça é legítima, e o príncipe soberano, que se tornou a causa da

justiça, é uma lei viva182. Evidentemente, se o soberano é uma lei viva, então nenhuma lei

179 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 104-106. Se, por um lado, Agamben critica Versnel por pressupor o luto no tumulto, por outro elogia a pressuposição do tumulto no luto em uma base exclusivamente histórico-ocasional (a eventual ocorrência do tumulto no luto de César). Apesar de se considerar correta a relação entre soberania e anomia, não se mostra importante, neste caso, que o luto esteja pressuposto no tumulto, ou o contrário. Em verdade, a conclusão mais lógica seria a de que luto e tumulto mantêm-se em relação topológica complexa organizada pela soberania. 180 Já que também é ele quem decide quando não há o tumulto, ou seja, quando a situação é normal e consoante à ordem jurídica vigente. 181 Anomia, compreendida aqui, como o potencial de suspender o direito e produzir exceção – ou seja, de criar uma situação anômica, ausente de leis – que caracteriza o poder soberano. 182 “A tese de que “o soberano é uma lei viva” havia encontrado sua primeira formulação no tratado do Pseudo-Archita Sulla legge e la giustizia, o qual foi conservado por Stobeo juntamente com o tratado de Diotogene sobre a soberania. Que a hipótese de Gruppe, segundo a qual esses tratados teriam sido compostos por um judeu alexandrino no primeiro século de nossa era, seja correta ou não, é certo que estamos diante de um conjunto de textos que, sob a aparência de categorias platônicas e pitagóricas, tentam fundar uma concepção da soberania totalmente livre das leis e, contudo, ela mesma fonte de legitimidade. No texto do Pseudo-Archita, isso se expressa na distinção entre o soberano (basileus), que é a lei, e o magistrado (archon), que se limita a respeitá-la. A identificação entre lei e soberano tem por conseqüência a cisão da lei em uma lei “viva” ( nomos empsychos), hierarquicamente superior, e uma lei escrita (gramma), a ela subordinada: Digo que toda comunidade é composta por um archon (o magistrado que comanda), por um comandado e, como terceiro, pelas leis. Destas, a viva é o soberano (ho men empsychos ho basileus), a inanimada é a letra

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pode realmente obrigá-lo, pois, nele, vida e lei se confundem em completa anomia. Tanto

que:

(...) Diotogene explica isso na seqüência e com indiscutível clareza: “Dado que tem um poder irresponsável [arkan anypeuthynon] e que ele mesmo é uma lei viva, o rei se assemelha a um deus entre os homens” (...). Entretanto, exatamente enquanto se identifica com a lei, ele se mantém em relação com a lei e se põe mesmo como anômico fundamento da ordem jurídica. A identificação entre soberano e lei representa, pois, a primeira tentativa de afirmar a anomia do soberano e, ao mesmo tempo, seu vínculo essencial com a ordem jurídica. O nomos empsychos é a forma originária do nexo que o estado de exceção estabelece entre um fora e um dentro da lei e, nesse sentido, constitui o arquétipo da teoria moderna da soberania. A correspondência entre iustitium e luto mostra aqui seu verdadeiro significado. Se o soberano é um nomos vivo, se, por isso, anomia e nomos coincidem inteiramente em sua pessoa, então a anarquia (que, à sua morte – quando, portanto, o nexo que a une à lei é cortado – ameaça libertar-se pela cidade) deve ser ritualizada e controlada, transformando o estado de exceção em luto público e o luto, em iustitium. À indiscernibilidade de nomos e anomia no corpo vivo do soberano corresponde a indiscernibilidade entre estado de exceção e luto público na cidade. Antes de assumir a forma moderna de uma decisão sobre a emergência, a relação entre soberania e estado de exceção apresenta-se sob a forma de uma identidade entre soberano e anomia. O soberano, enquanto uma lei viva, é intimamente anomos. Também aqui o estado de exceção é a vida – secreta e mais verdadeira – da lei.183

A transformação do iustitium tradicional em iustitium-luto, dessa forma, revela o

vínculo profundo que existe entre anomia e direito, e que se constitui na figura do soberano

tomado como lei viva. É justamente o soberano que, ao reunir em si a anomia e a lei, revela

que o direito se funda, em última instância, na própria anomia – ou seja, depende da sua

própria ausência para poder eventualmente se instituir. O estado de exceção, portanto,

reside no interior profundo do próprio direito.

A manifestação do vínculo existente entre direito e anomia se mostra também, de

acordo com Agamben, nas “(...) festas periódicas – como as Antestérias e as Saturnais do

mundo clássico e o charivari e o carnaval do mundo medieval e moderno – caracterizadas

(gramma). A lei sendo o elemento primeiro, o rei é legal, o magistrado é conforme (à lei), o comandado é livre e toda a cidade é feliz; mas, quando ocorre um desvio, o soberano é tirano, o magistrado não é conforme à lei e a comunidade é infeliz” (...). Por meio de uma complexa estratégia, que não é destituída de analogia com a crítica paulina do nomos judeu (...), elementos anômicos são introduzidos na polis pela pessoa do soberano, sem, aparentemente, arranhar o primado do nomos (o soberano é, de fato, “lei viva”)”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 107-108. Entre a “lei viva” e a “lei inanimada”, ou, em termos modernos, entre o poder constituinte soberano e o poder constituído, tem-se a Constituição como tentativa de ao mesmo tempo ser “lei inanimada”, todavia dotada da força original da “lei viva”.

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por permissividade desenfreada e pela suspensão e quebra das hierarquias jurídicas e

sociais”184. Tais festas representam um período de anomia, no qual a ordem e a estrutura

sociais são interrompidas e subvertidas, e os atos delituosos cometidos, ou não são

considerados ilícitos, ou não são passíveis de punição.

Apoiado nos argumentos de Karl Meuli, Agamben considera que tais festas

anômicas, principalmente durante o período medieval, se vinculam aos estados de

suspensão do direito que são possibilitados por diversos institutos jurídicos da época,

relacionados ao banimento e à proscrição de indivíduos declarados “fora da lei” – e que

serão analisados ao se tratar da figura do homo sacer no Capítulo III desta tese. Nesse

sentido, os fenômenos anômicos que ocorrem durante tais festas refletiriam aspectos

precisos do ritual jurídico institucionalizado em cada caso concreto específico185. Desse

modo, a festa anômica pode ser compreendida como uma das formas de justiça popular que

se ritualiza a partir de um exemplo jurídico disponível de suspensão do direito.

Dessa forma, a festa anômica parodia e evidencia a anomia interna do direito, que,

conforme debatido, representa o elemento fundamental do próprio direito:

As festas anômicas indicam, pois, uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverte em liberdade e licença e em que a anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos: em outros termos, elas indicam o estado de exceção efetivo como limiar da indistinção entre anomia e direito. Na evidenciação do caráter de luto de toda festa e do caráter de festa de todo luto, direito e anomia mostram sua distância e, ao mesmo tempo, sua secreta solidariedade. É como se o universo do direito – e, de modo mais geral, a esfera da ação humana enquanto tem a ver com o direito – se apresentasse, em última instância, como um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas e opostas: uma que vai da norma à anomia e a outra que, da anomia,

183 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 107. 184 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 108-109. 185 “Contra a interpretação que as reduzia aos ciclos agrários do calendário solar (Mannhardt, Frazer), ou a uma função periódica de purificação (Westermarck), Karl Meuli, ao contrário e com uma intuição genial, relacionou as festas anômicas com o estado de suspensão da lei que caracteriza alguns institutos jurídicos arcaicos, como a Friedlosigkeit alemã ou a perseguição do vargus no antigo direito inglês. Em uma série de artigos exemplares, mostrou como as desordens e as violências minuciosamente elencadas nas descrições medievais do charivari e de outros fenômenos anômicos reproduzem pontualmente as diversas fases em que se articulava o cruel ritual com que se expulsavam o Friedlos e o bandido da comunidade, suas casas destelhadas antes de serem destruídas e seus poços envenenados ou tornados salobros. As arlequinadas descritas no inaudito chalivali no Roman de Fauvel (...) deixam de aparecer como partes de um inocente pandemônio e encontram, uma após a outra, seu correspondente e seu contexto próprio na Lex Baiuvariorum ou nos estatutos penais das cidades medievais.”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 109-110.

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leva à lei e à regra. Daqui resulta um duplo paradigma que marca o campo do direito com uma ambigüidade essencial: de um lado, uma tendência normativa em sentido estrito, que visa a cristalizar-se num sistema rígido de normas cuja conexão com a vida é, porém, problemática, senão impossível (o estado perfeito de direito, em que tudo é regulado por normas); de outro lado, uma tendência anômica que desemboca no estado de exceção ou na idéia do soberano como lei viva, em que uma força de lei privada de norma age como pura inclusão da vida. As festas anômicas dramatizam essa irredutível ambigüidade dos sistemas jurídicos e, ao mesmo tempo, mostram que o que está em jogo na dialética entre essas duas forças é a própria relação entre o direito e a vida. Celebram e reproduzem, sob a forma de paródia, a anomia em que a lei se aplica ao caos e à vida sob a única condição de tornar-se ela mesma, no estado de exceção, vida e caos vivo. Chegou o momento, sem dúvida, de tentar compreender melhor a ficção constitutiva que, ligando norma e anomia, lei e estado de exceção, garante também a relação entre o direito e a vida.186

Há, de todo modo, neste ponto, um grave problema para a teoria de Agamben, ao

qual, todavia, ele não dá resposta: se as festas medievais citadas constituem um período

anômico de suspensão da ordem jurídica, quem é o soberano que decide sobre tal

suspensão? A isto, ele somente poderia dar quatro respostas: a) que pode ocorrer suspensão

do direito sem uma decisão soberana; b) que as festas somente ocorriam por autorização

soberana (o que é evidentemente falso); c) que podem coexistir soberanos, e o povo, no

caso, seria também soberano; ou d) que o povo era desde sempre o soberano, mas seria

tacitamente representado pelos que se outorgavam a soberania (hipótese mais moderna do

que a Idade Média comporta). Negri certamente diria que o povo era também soberano,

além de legítimo e verdadeiro portador do poder constituinte incipiente, mas potente, que se

manifestava em tais festas. De todo modo, a comparação com as festas medievais não só é

desnecessária para a exposição de Agamben, como, a ver, lhe é prejudicial.

3. Auctoritas e Potestas. Auctoritas Principis.

A análise de Agamben, para tratar da questão da autoridade em relação à soberania

e à exceção, volta-se novamente para o estado de exceção em Roma, para o iustitium

original. Questiona-se, nesse ponto, qual era o fundamento do poder do Senado romano de

suspender a lei por meio do senatus consultum ultimum, e, por conseqüência, declarar o

186 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 110-111.

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iustitium. “Qualquer que fosse o sujeito habilitado a declarar o iustitium, é certo que, cada

caso, era declarado ex auctoritate patrum. Sabe-se que o termo que, em Roma, designava a

prerrogativa essencial do Senado, não era, de fato, nem imperium, nem potestas, mas

auctoritas: auctoritas patrum é o sintagma que define a função específica do Senado na

constituição romana”.187

O conceito de autoridade se contrapõe, no campo político, filosófico e jurídico, ao

de potestas. Não é clara, porém, na experiência da modernidade, principalmente tendo em

vista o campo da soberania, qual o sentido e o significado de qualquer um desses dois

termos – a ponto de a autoridade ser usualmente relacionada à ditadura e à tirania188.

Agamben pretende desvelar justamente essa imprecisão moderna ao tratar auctoritas e

potestas, no sentido de melhor compreender o funcionamento do estado de exceção:

Em 1968, num estudo sobre a idéia de autoridade, publicado em uma Festgabe pelos oitenta anos de Schmitt, um estudioso espanhol, Jesus Fueyo, observava que a confusão moderna entre auctoritas e potestas – “dois conceitos que exprimem o sentido original pelo qual o povo romano havia concebido sua vida comunitária” (...) – e sua convergência no conceito de soberania “foram a causa da inconsistência filosófica da teoria moderna do Estado”; e acrescentava, em seguida, que essa confusão “não é apenas acadêmica, mas está inscrita no processo real que levou à formação da ordem política moderna” (...). É o sentido dessa “confusão” inscrita na reflexão e na práxis política do Ocidente que devemos, agora, procurar compreender.189

Hannah Arendt, no ensaio O que é Autoridade?190 – já mencionado por Agamben –

procura avaliar quais são as origens e os caracteres que definem a autoridade. Segundo ela,

187 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 115. 188 “(...) Hanna Arendt podia começar seu ensaio “Que é autoridade?” observando que a autoridade havia a tal ponto “desaparecido do mundo moderno” que, na ausência de uma “autêntica e indiscutível” experiência da coisa, “o próprio termo ficou completamente obscurecido por controvérsias e confusões” (...). Por outro lado, denunciando de modo enfático “a identificação liberal de autoridade e tirania” (...). Em 1931, num opúsculo com o significativo título Der Hüter der Verfassung (O Guardião da constituição), Carl Schmitt tentara, com efeito, definir o poder neutro do presidente do Reich no estado de exceção contrapondo, dialeticamente, auctoritas e potestas. Em termos que antecipam os argumentos de Arendt e depois de haver lembrado que Bodin e Hobbes estavam ainda em condições de apreciar o significado dessa distinção, ele lamentava, porém, “a falta de tradição da modernidade na teoria do Estado que opõe autoridade e liberdade, autoridade e democracia até confundir a autoridade com a ditadura” (...). Já em 1928, em seu tratado de direito constitucional, mesmo sem definir a oposição, Schmitt evocava sua “grande importância na doutrina geral do Estado” e remetia para sua determinação ao direito romano (o Senado tinha a auctoritas, mas é do povo que dependiam potestas e imperium (...))”.AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 115-116. 189 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 116-117. 190 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 127-187.

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a autoridade é um conceito estritamente romano, sendo que nas formações políticas da

Grécia clássica a idéia estava completamente ausente, pelo menos até as tentativas de

Platão e de Aristóteles de introduzir algo semelhante ao princípio autoritário na experiência

política das poleis191.

A autoridade, em sua origem, constitui uma forma de exercício e organização do

poder que pressupõe, simultaneamente, hierarquia e obediência – mas não violência. Desse

modo, não pode ser confundida nem com poder, nem com coerção:

Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos. (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado).192

A autoridade clássica, ademais, não se confunde nem com tirania, nem com uso

ilegítimo da violência. Isto porque a autoridade tem seu fundamento e se legitima a partir

de uma suposta força externa e superior a si própria – que, por ser transcendental à esfera

política na qual a autoridade se insere, legitima a autoridade e permite que esta funcione

como mecanismo de confirmação do poder193. Em Roma, de acordo com Arendt, a

191 “A autoridade, como o fato único, senão decisivo, nas comunidades humanas, não existiu sempre, embora tenha atrás de si uma longa história, e as experiências sobre as quais se baseia esse conceito não se acham necessariamente presentes em todos os organismos políticos. A palavra e o conceito são de origem romana. Nem a língua grega nem as várias experiências políticas da história grega mostram qualquer conhecimento da autoridade e do tipo de governo que ela implica. Isso é expresso de forma mais clara na filosofia de Platão e Aristóteles, os quais, de modo inteiramente diverso, mas a partir das mesmas experiências políticas, tentaram introduzir algo de parecido com a autoridade na vida pública da polis grega”. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 142-143. 192 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 129. 193 “Por detrás da identificação liberal do totalitarismo com o autoritarismo, e da concomitante inclinação a ver tendências “totalitárias” em toda limitação autoritária, jaz uma confusão mais antiga de autoridade com tirania e de poder legítimo com violência. A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. Seus atos são testados por um código que, ou não foi feito

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autoridade derivava do caráter sagrado do ato primordial de fundação da cidade, a tal ponto

que a política mantinha um caráter também sagrado, e a religião um caráter também

político.

A política, no cenário romano, constituía-se através da prática, da atuação humana

em busca da preservação e da ampliação da fundação original da urbe romana. Em conexão

muito próxima com o que se vem discutindo, a autoridade se legitima a partir do ato

instituidor (místico, mítico) da ordem jurídico-política romana – e extrai sua força, pode-se

interpretar, justamente da violência fundadora que acompanha a instituição da cidade de

Roma, ou seja, a definição dos limites da cidade. Violência essa que, em Roma, apresenta

também uma forte componente religioso.

No âmago da política romana, desde o início da República até virtualmente o fim da era imperial, encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez que alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras. Participar na política significava, antes de mais nada, preservar a fundação da cidade de Roma. Eis a razão por que os romanos foram incapazes de repetir a fundação de sua primeira polis na instalação de colônias, mas conseguiram ampliar a fundação original até que toda a Itália e, por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o mundo inteiro não passasse de um quintal romano. (...) A fundação de um novo organismo político – quase um lugar-comum na experiência dos gregos – tornou-se, para os romanos, o central, decisivo e irrepetível princípio de toda sua história, um acontecimento único (...). A fundação de Roma – tanta molis erat Romanam condere gentem (“tão grande foi o esforço e a labuta para fundar o povo romano”), como Virgílio resume o tema constante da Eneida, que todo o sofrimento e vaguear atinge seu final e objetivo dum conderet urbem (“que ele pode fundar a cidade”) –, essa fundação e a experiência igualmente não-grega da santidade da casa e do coração, como se, homericamente falando, o espírito de Heitor houvesse sobrevivido à queda de Tróia e ressurgido no solo italiano, formam o conteúdo profundamente político da religião romana. Em contraste com a Grécia, onde a piedade dependia da presença imediatamente revelada dos deuses, aqui a religião significava, literalmente, re-ligare: ser ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade. (...) A religião e a atividade política podiam assim ser consideradas como praticamente idênticas (...). O poder coercivo da fundação era ele mesmo

absolutamente pelo homem, como no caso do direito natural, dos mandamentos divinos ou das idéias platônicas, ou, pelo menos, não foi feito pelos detentores efetivos do poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é, sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado.” ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 134.

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religioso, pois a cidade oferecia também aos deuses do povo um lar permanente (...). Foi nesse contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram originalmente. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, “aumentar”, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores. A autoridade dos vivos era sempre derivativa, dependendo, como coloca Plínio, dos auctores imperii Romani conditoresque, da autoridade dos fundadores que não mais se contavam no número dos vivos. A autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos. Moribus antiquis res stat Romana virisque, nas palavras de Ênio.194

Agamben segue de perto – muito de perto, em verdade – a narrativa de Arendt. Para

ele, a idéia de autoridade reporta-se tanto ao direito público, quanto ao direito privado.

Neste último âmbito “(...) a auctoritas é propriedade do auctor, isto é, da pessoa sui iuris (o

pater famílias) que intervém – pronunciando a fórmula técnica auctor fio – para conferir

validade jurídica ao ato de um sujeito que, sozinho, não pode realizar um ato jurídico

válido”.195 Desse modo, é, por exemplo, a autoridade do tutor que confere validade ao ato

do incapaz. Aquele que detém a autoridade, portanto, sempre convalida o ato de outrem:

O termo deriva do verbo augeo: auctor é is qui auget, aquele que aumenta, acresce ou aperfeiçoa o ato – ou a situação jurídica – de um outro. Em seu Vocabulário, na seção dedicada ao direito, Benveniste tentou mostrar que o significado original do verbo augeo – que, na área indo-européia, é aparentado pelo sentido a termos que exprimem força – não é simplesmente “aumentar algo que já existe”, mas “o ato de produzir alguma coisa a partir do próprio seio, fazer existir” (...). Na verdade, no direito clássico, os dois significados não são absolutamente contraditórios. O mundo greco-romano, realmente, não conhece a criação ex nihilo, mas todo ato de criação implica sempre alguma outra coisa, matéria informe ou ser incompleto, que se trata de aperfeiçoar e fazer crescer. Toda criação é sempre co-criação, como todo autor é sempre co-autor. Como bem escreveu Magdelain, “a auctoritas não basta a si mesma: seja porque autoriza, seja porque ratifica, supõe uma atividade alheia que ela valida” (...). Tudo se passa, então, como se, para uma coisa poder existir no direito, fosse necessária uma relação entre dois elementos (ou dois sujeitos): aquele que é munido de auctoritas e aquele que toma a iniciativa do ato em sentido estrito. Se os dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então o ato será perfeito. Se, ao contrário, houver entre eles uma distância ou uma ruptura, será necessário introduzir a auctoritas para que o ato seja válido. Porém, de onde vem a “força” do auctor? E o que é esse poder de augere?196

194 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 162-164. 195 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 117.

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Arendt faz uma descrição similar à de Agamben, em relação ao funcionamento

estrutural da autoridade, ressaltando, porém, e uma vez mais, a conexão entre a autoridade e

a religião, na medida em que a força coerciva da autoridade deriva da religião. Ela sublinha

a diferença de qualidade do agir, no pensamento romano, entre auctores, por exemplo,

como os idealizadores de uma construção, e os artifices, equiparados aos construtores e

elaboradores efetivos dessa construção. O autor não é o construtor, mas o inventor, o

inspirador da construção, e sua atividade é superior, pois, sem a idéia, os artifices não

poderiam ter erguido o prédio.

No campo político, o auctor é o detentor da autoridade, e, em contraste com os

artífices detentores de poder, é quem efetivamente se torna um “aumentador” da cidade de

Roma, um perpetuador do ato original de fundação da cidade. Esta autoridade, porém, não

se confunde com a potestas, e nem está acima dela. Pelo contrário, representa a

confirmação, a convalidação do que se origina do poder, e cuja legitimidade promana do

ato original de fundação da cidade e da tradição que acompanha tal ato. A tradição, a seu

turno, pré-define o funcionamento e a forma da autoridade:

Entretanto, a relação entre auctor e artifex de modo algum é relação (platônica) existente entre o senhor que dá ordens e o servo que as executa. A característica mais proeminente dos que detêm autoridade é não possuir poder. Cum potestas in populo auctoritas in senatu sit, “enquanto o poder reside no povo, a autoridade repousa no Senado”. Dado que a “autoridade”, o acréscimo que o Senado deve aditar às decisões políticas, não é poder, ela nos parece curiosamente evanescente e intangível, assemelhando-se a esse respeito de maneira notável ao ramo judiciário do governo, de Montesquieu, cujo poder foi por ele chamado “de certo modo nulo” (em quelque façon nulle) e que constitui, não obstante, a mais alta autoridade nos governos constitucionais. Mommsem referiu-a como sendo “mais que conselho e menos que uma ordem; um conselho que não se pode ignorar sem risco”, pelo que admite que “a vontade e as ações das pessoas, assim como as das crianças, são sujeitas a erro e engano e necessitam portanto de ‘acréscimo’ e confirmação através da assembléia de anciães. O caráter autoritário do “acréscimo” dos anciães repousa em sua natureza de mero conselho, prescindindo, seja da forma de ordem, seja de coerção externa, para fazer-se escutado.

A força coerciva dessa autoridade está intimamente ligada à força religiosamente coerciva do auspices, que ao contrário do oráculo grego não sugere o curso objetivo dos eventos futuros, mas revela meramente a aprovação ou desaprovação divina das decisões feitas pelos homens. Também os deuses têm autoridade entre, mais que poder sobre, os homens; eles “aumentam” e confirmam as ações humanas, mas não as guiam. E, exatamente como na

196 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 118.

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origem de “todos os auspices se remonta ao grande sinal pelo qual os deuses deram a Rômulo a autoridade para fundar a cidade, assim também toda autoridade deriva dessa fundação, remetendo cada ato ao sagrado início da história romana e somando, por assim dizer, a cada momento singular todo o peso do passado (...).

Dessa maneira, os exemplos e os feitos dos antepassados e o costume desenvolvido a partir deles eram sempre coercivos. O que quer que acontecesse se transformava em um exemplo, tornando-se a auctoritas maiorum idêntica aos modelos autoritários para o comportamento efetivo e aos padrões políticos e morais como tais (...).

Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação, e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos. Enquanto essa tradição fosse ininterrupta, a autoridade estaria intata; e agir sem autoridade e tradição, sem padrões e modelos aceitos e consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos pais fundadores, era inconcebível (...).197

A autoridade, observa Agamben, não se assemelha à moderna representação

mandatária, fundada em um poder jurídico transmitido do representado para o

representante198, ou, ainda, ao direito de garantia moderno exsurgido da fiança. Ela deriva

diretamente da condição mesma de detentor da autoridade, e, no caso romano, da condição

de pater, por exemplo. Em consonância com a proposta de Pierre Noailles, a autoridade

pode ser compreendida, propõe Agamben, como um atributo, inerente à pessoa, de servir

como fundamento à situação jurídica criada por outra pessoa. Trata-se, portanto, de um

poder impessoal que se realiza na pessoa própria de seu autor: ““Como todos os poderes do

direito arcaico” – acrescentava – “fossem eles familiares, privados ou públicos, também a

auctoritas era concebida segundo o modelo unilateral do direito puro e simples, sem

obrigação nem sanção”(...)”.199

Já no âmbito do direito público, a autoridade se caracteriza por ser a prerrogativa

essencial do Senado romano, conforme já descrito por Arendt. Os sujeitos de tal

prerrogativa, portanto, são os patres – não é claro, porém, qual seria o sentido dessa função,

e, em sua descrição, Agamben reporta-se, assim como Arendt, a Mommsem:

197 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 164-166. A interpretação arendtiana do poder judiciário como mais alta autoridade nos regimes constitucionais é de valor inestimável para a presente tese – até porque, como se discutirá, a autoridade do poder judiciário em um regime constitucional derivaria da Constituição. 198 Agamben, apesar de afirmar isto, parece enxergar a autoridade moderna tão-somente no poder legislativo (ainda que eventualmente usurpada pelo executivo).

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(...) Os historiadores do direito, porém, sempre tiveram dificuldade para definir essa função. Mommsen já observava que o Senado não tem uma ação própria, e pode agir somente em ligação com o magistrado ou para homologar as decisões dos comícios populares, ratificando as leis. Não pode manifestar-se sem ser interrogado pelos magistrados e só pode perguntar ou “aconselhar” – consultum é o termo técnico – e esse “conselho” nunca é vinculante de modo absoluto. Si eis videatur – se lhes (aos magistrados) parece oportuno – é a fórmula do senatus-consulto; no caso extremo do senatus-consulto último, a fórmula só é um pouco mais enfática: videant consules. Mommsen exprime esse caráter particular da auctoritas escrevendo que ela é “menos que uma ordem e mais que um conselho” (...).200

A autoridade, portanto, não se relaciona diretamente nem com a potestas nem com o

imperium dos magistrados ou do povo romano. Pelo contrário, a autoridade do senador

romano se assemelha à autoridade privada, pois intervém para ratificar a validade das

decisões tomadas pelos comícios populares. De modo que a mesma fórmula jurídica –

auctor fio – é usada tanto pela ação do tutor que homologa o ato do incapaz, quanto pelo

senado ao ratificar as decisões populares. Nessa hipótese, o ato jurídico perfeito depende,

para sua consolidação, não só da potestas (do incapaz, do povo), mas também da auctoritas

(do tutor, do senado)201. Tal analogia é, para Agamben, “(...) uma analogia estrutural que

concerne, como veremos, à própria natureza do direito. A validade jurídica não é um

caráter originário das ações humanas, mas deve ser comunicada a elas por meio de um

“poder que confere a legitimidade” (...)”.202

A questão avaliada, destarte, revolve em torno da definição acerca da natureza do

poder que confere a legitimidade aos atos promanados da potestas dos magistrados e do

povo romano. A resposta, para Agamben, localiza-se na análise da circunstância extrema

199 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 119. 200 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 119-120. 201 Agamben explica, de todo modo, que não se trata de se equiparar o povo romano ao incapaz, mas simplesmente de se observar a presença paralela de ambos os elementos em ambas as circunstâncias pública e privada. Para Arendt, ao contrário, não só Aristóteles tentou fundar um princípio de autoridade grego com base na superioridade educacional do governante sobre os governados incapazes, como a própria autoridade romana conservava em si um caráter educacional: “Politicamente, a autoridade só pode adquirir caráter educacional se se admite, como os romanos, que sob todas as circunstâncias os antepassados representam o exemplo de grandeza para cada geração subseqüente, que eles são maiores por definição”. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 161. 202 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 121.

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do iustitium, e na autoridade que se revela no senatus-consulto último, isto é, na autoridade

que permite a suspensão do direito:

(...) O iustitium – como vimos – produz uma verdadeira suspensão da ordem jurídica. Principalmente, os cônsules são reduzidos à condição de simples particulares (in privato abditi), enquanto cada particular age como se estivesse revestido de um imperium. Numa simetria inversa, no ano 211 a.C., ao se aproximar Aníbal, um senatus-consulto ressuscita o imperium dos ex-ditadores, cônsules e censores (...). No caso extremo – ou seja, aquele que melhor a define, se é verdade que são sempre a exceção e a situação extrema que definem o aspecto mais específico de um instituto jurídico – a auctoritas parece agir como uma força que suspende a potestas onde ela agia e a reativa onde ela não estava mais em vigor. É um poder que suspende ou reativa o direito, mas não tem vigência formal como direito.203

Autoridade e potestas mantêm-se, então, em uma relação ao mesmo tempo de

exclusão e de suplementação. Situação similar pode ser encontrada em outro instituto no

qual a auctoritas patrum também exerce sua função, qual seja o interregnum: quando, por

qualquer motivo que fosse, não houvesse na cidade nenhum cônsul, ou nenhum outro

magistrado que não pertencesse à plebe, os patres auctores (ou seja, os senadores que

pertenciam a uma família consular, e não a uma mera família de patres conscripti)

nomeavam um interrex para garantir a continuidade do poder.

Durante o interregno, a constituição romana encontrava-se suspensa, pois não há, na

República, nem magistrados nem Senado. O interrex, nomeado soberanamente pelos patres

auctores, tem a função de re-estabelecer a constituição, nomeando, por sua vez, seu próprio

sucessor. Importante notar que o interrex, a despeito de tudo, não é detentor nem de

imperium, nem de potestas:

A auctoritas mostra também aqui sua relação com a suspensão da potestas e, ao mesmo tempo, sua capacidade de assegurar, em circunstâncias excepcionais, o funcionamento da República. Ainda uma vez, essa prerrogativa cabe imediatamente aos patres auctores enquanto tais. O primeiro interrex não é, de fato, investido de um imperium como magistrado, mas apenas dos auspicia (...); e Appio Claudio, ao reivindicar contra os plebeus a importância dos auspicia, afirma que estes pertencem aos patres privatim, a título pessoal e exclusivo (...). O poder de reativar a potestas vacante não é um poder jurídico

203 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 121.

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recebido do povo ou de um magistrado, mas decorre imediatamente da condição pessoal dos patres.204

Há ainda um terceiro instituto no qual é possível observar o mesmo fenômeno de

suspensão do direito pela autoridade. Trata-se da hostis iudicatio205: em situações

excepcionais, nas quais um cidadão romano, por meio de traição ou conspiração, ameaçasse

a segurança da República, ele poderia ser declarado, pelo Senado, inimigo público. Sua

condição ia além da de inimigo estrangeiro, porque enquanto este último, a despeito de sua

situação, tinha ainda a proteção do ius gentium, o hostis iudicatus era privado de toda

espécie de proteção jurídica, e podia, a qualquer instante, ser destituído de todos os seus

bens e condenado à morte. A autoridade, nessa hipótese, suspende não apenas o direito,

mas o próprio estatuto de cidadão romano do hostis iudicatus.

A autoridade portanto, em seu funcionamento normal complementa a potestas,

ratificando-a, mas, no limite, igualmente ora a suspende, quando ela está ativa, ora a

reativa, quando ela está suspensa:

A relação – ao mesmo tempo antagônica e complementar – entre auctoritas e potestas aparece, enfim, numa particularidade terminológica que Mommsen foi o primeiro a notar. O sintagma senatus auctoritas é usado em sentido técnico para designar o senatus-consulto que, à medida que lhe foi oposta uma intercessio, é privado dos efeitos jurídicos e não pode, pois, de modo algum, ser executado (mesmo que, enquanto tal, estivesse transcrito nas atas, auctoritas prescripta). A auctoritas do Senado aparece, pois, em sua forma mais pura e mais evidente quando é invalidada pela potestas de um magistrado, quando vive como mera escrita em absoluta oposição à vigência do direito. Por um instante, a auctoritas revela aqui sua essência: o poder, que pode “conferir a legitimidade” e, ao mesmo tempo, suspender o direito, mostra seu caráter mais específico no momento de sua ineficácia jurídica máxima. Ela é o que resta do direito se ele for inteiramente suspenso (nesse sentido, na leitura benjaminiana da alegoria kafkiana, não direito mas vida, direito que se indetermina inteiramente com a vida).206

A compreensão da autoridade, de todo modo, passa ainda por um estudo sobre a

auctoritas principis, ou seja, a autoridade reivindicada pelos príncipes e imperadores

204 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 122. Compare-se com a importância dada aos auspices por Arendt como legitimação da autoridade do Senado. 205 Lembrando, ainda, uma vez mais, que quando Schmitt relaciona o estado de sítio ao iustitium, menciona igualmente o instituto da hostis. 206 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 123.

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romanos como próprio fundamento do status de príncipe, e que, lamentavelmente, não é

apreciada por Arendt. A redescoberta desse conceito, segundo Agamben, acompanhou a

crescente importância que o princípio autoritário assumia na vida política européia no

entre-guerras207.

A função constitucional do príncipe romano é definida não como uma potestas que

a fundamenta, mas sim como uma auctoritas – o próprio título de Augusto guarda raízes

também com augeo e auctor. Nesse sentido, o Imperador, apesar de seu nome remeter ao

imperium, não é na verdade um magistrado, mas sim o detentor de uma forma extrema de

auctoritas, porque o Imperador é, por assim dizer, o fiador da República, que se constitui

apenas através dele próprio. Tal circunstância torna indiscernível, na figura do Imperador, a

existência de uma esfera pública e de uma esfera privada individuadas:

Disso decorre o status particular de sua pessoa e que se traduz num fato cuja importância ainda não foi plenamente avaliada pelos estudiosos. Dione Cassio (55,12,5) informa que Augusto “tornou pública toda a sua casa (...) de modo a morar, ao mesmo tempo, em público e em privado (...). É a auctoritas que encarna, e não as magistraturas de que foi investido, que torna impossível isolar nele algo como uma vida e uma domus privadas. Deve-se interpretar no mesmo sentido o fato de que, na casa de Augusto sobre o Palatino, seja dedicado um signum a Vesta. Com razão, Fraschetti observou que, dada a estreita ligação entre culto de Vesta e culto dos Penates públicos do povo romano, isso significava que os Penates da família de Augusto identificavam-se com os do povo romano e que, portanto, os cultos privados de uma família [...] e os cultos comunitários por excelência no espaço da cidade (o de Vesta e o dos Penates públicos do povo romano) pareciam, de fato, poder ser homologados na casa de Augusto” (...)

A vida “augusta” não pode mais ser definida, como a dos simples cidadãos, pela oposição público/privado.208.

207 “Por meio da auctoritas principis – no momento, pois, em que Augusto, numa célebre passagem das Res gestae reivindica a auctoritas como fundamento do próprio status de princeps – é que, talvez, possamos compreender melhor o sentido dessa singular prerrogativa. É significativo que a publicação, em 1924, do Monumentum Antiochenum, que permitia uma reconstrução mais exata da passagem em questão, tenha coincidido exatamente com o renascimento dos estudos modernos sobre a auctoritas (...). Como acontece com freqüência e como, aliás, os estudiosos não deixaram de observar, a redescoberta do conceito (...) acompanhou pari passu o peso crescente que o princípio autoritário assumia na vida política das sociedades européias. “Auctoritas” – escrevia um estudioso alemão em 1937: isto é, o conceito fundamental do direito público em nossos Estados modernos autoritários, não só literalmente, mas também do ponto de vista do conteúdo, só é compreensível a partir do direito romano do período do principado (...)”.AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 123-124. 208 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 126.

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Logo, público e privado confundem-se e tornam-se indistintos, assim como já

ocorrera durante a situação de exceção instituída pelo iustitium derivada do luto público

pela morte do soberano.

A idéia de que a auctoritas é inerente ao pater, ou ao princeps, constitui uma ficção

que torna possível defender a supremacia da autoridade sobre a potestas, com base na

tradição e na força coerciva de caráter sagrado haurida do ato de fundação da cidade. Na

medida em que a autoridade deriva da pessoa, ou seja, da condição específica pessoal de

príncipe ou de pater, e, portanto, de “aumentador” da cidade, ela torna-se um atributo

vinculado à vida:

É significativo que os estudiosos modernos tenham sido tão rápidos em aceitar que a auctoritas era imediatamente inerente à pessoa viva do pater ou do princeps. O que, de modo evidente, era uma ideologia ou uma fictio que deveria fundar a preeminência ou, em todo caso, a categoria específica da auctoritas em relação à potestas, torna-se, assim, uma figura da imanência do direito à vida. Não é por acaso que isso tenha ocorrido exatamente nos anos em que, na Europa, o princípio autoritário teve um inesperado renascimento por meio do fascismo e do nacional-socialismo. Embora seja evidente que não pode existir algo como um tipo humano eterno que, a cada vez, se encarna em Augusto, Napoleão ou Hitler, mas somente dispositivos jurídicos mais ou menos semelhantes – o estado de exceção, o iustitium, a auctoritas principis, o Führertum – que são usados em circunstâncias mais ou menos diversas na década de 30, principalmente – mas não só – na Alemanha, o poder que Weber havia definido como “carismático” é ligado ao conceito de auctoritas e elaborado em uma doutrina do Führertum como poder original e pessoal de um chefe. (...) Em 1938, publica-se o livro do jurista berlinense Heinrich Triepel, Die Hegemonie, cuja resenha Schmitt se apressa a fazer. Na primeira seção, o livro expõe uma teoria do Führertum como autoridade baseada não num ordenamento pré-existente, mas num carisma pessoal. O Führer é definido por meio de categorias psicológicas (vontade enérgica, consciente e criativa), e sua unidade com o grupo social bem como o caráter original e pessoal de seu poder são fortemente enfatizados. Ainda em 1947, o velho romanista Pietro De Francisci publica Arcana imperii, que dedica um grande espaço à análise do “tipo primário” de poder que ele, procurando com uma espécie de eufemismo tomar distância em relação ao fascismo, define como ductus, (e ductor, o chefe em quem se encarna). De Franscisci transforma a tripartição weberiana do poder (tradicional, legal, carismático) em uma dicotomia calcada sobre a oposição autoridade/poder. A Autoridade do ductor ou do Fürher nunca pode ser derivada, mas é sempre original e deriva de sua pessoa (...)209

209 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 127-128. Apesar de Arendt considerar o fascismo italiano um regime autoritário, ela afirma que o regime nazista é apenas totalitário, mas não autoritário, pois ambas as formas de governo não se confundiriam: “Em contraposição tanto aos regimes tirânicos como aos autoritários, a imagem mais adequada de governo e organização totalitários parece-me ser a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, localiza-se o líder; o que quer que ele faça – integre ele o organismo

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A partir da longa análise acerca da autoridade e de seu vínculo com o iustitium e

com a suspensão do direito, Agamben conclui que o fundamento último da autoridade

como categoria de poder é justamente a suspensão da ordem jurídica, ou seja, a

possibilidade de instauração de uma situação de exceção. E, ainda, na figura do detentor da

autoridade, direito e vida, público e privado coincidem. Tal conclusão coincide

perfeitamente com a análise de Arendt, pois, se a autoridade romana deriva do ato de

fundação da cidade, então promana do momento (violento) de instituição da ordem

político-jurídica, no qual o poder constituinte soberano, ou meramente soberano, mantém o

direito em suspenso, no chamado estado “kenomatico” que possibilita a institucionalização

do direito. Todavia, a autoridade flui direta e imediatamente desse momento – e não se

converte, em seu limite, em poder constituído.

Diz-se em seu limite porque, evidentemente, as formas de exercício da autoridade

podem e são reguladas pelo poder constituído, pela ordem jurídica. Mas, ontologicamente,

a autoridade se legitima no momento constituinte, e é potente sempre de suspender a ordem

jurídica – ainda que não a suspenda de fato. Observe-se, desde já, que a Constituição, assim

como a autoridade, pretende se legitimar também, de algum modo, a partir do ato soberano

constituinte. A conseqüência disto é, como se verá, que na modernidade a Constituição tem

pretensão de autoridade – ou pretensão de ser o fundamento da autoridade210; e a autoridade

se manifesta principalmente pela via constitucional.

político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos, como um tirano –, ele o faz de dentro, e não de fora, de cima. Todas as partes extraordinariamente múltiplas do movimento: as organizações de frente, as diversas sociedades profissionais, os efetivos do partido, a burocracia partidária, as formações de elite e os grupos de policiamento, relacionam-se de tal modo que cada uma delas forma a fachada em uma direção e o centro na outra, isto é, desempenham o papel de extremismo radical para outro. A grande vantagem desse sistema é que o movimento proporciona a cada um de seus níveis, mesmo sob condições de governo totalitário, a ficção de um mundo normal, ao lado de uma consciência de ser diferente dele, e mais radical que ele.” ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 136-135. A autora faz uma descrição muito detalhada do funcionamento dos regimes totalitários na Alemanha de Hitler e na União Soviética de Stalin na Parte III de “Origens do Totalitarismo”, consignando que tais regimes fundamentam-se na mentira e na inversão do mandamento de “não matarás” para “matáras”. Sublinhe-se a proximidade com Agamben ao propor que o líder totalitário localiza-se em um centro vazio. De toda forma, não há uma contradição concreta neste ponto, pois Arendt diferencia o regime totalitário do autoritário com base no conceito romano clássico de autoridade, enquanto Agamben pensa o totalitarismo como autoritário à luz da auctoritas principis do Império – elementos que, evidentemente, constituem dois tipos bem diversos de autoridade.

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Disso tudo se pode concluir que o fundamento estrutural do direito seria sua

indistinção em vida, que se realiza exemplarmente no detentor da autoridade, e que se

revela na situação última e limite do estado de exceção. A autoridade, em seu extremo,

portanto, equipara-se funcionalmente à decisão soberana sobre a exceção, à lei viva, à força

de lei anômica e transeunte:

Nem Triepel, nem De Francisci, os quais, no entanto, tinham diante dos olhos as técnicas de governo nazistas e fascistas, parecem perceber que o aparente caráter original do poder que descrevem deriva da suspensão ou da neutralização da ordem jurídica – isto é, em última instância, do estado de exceção. O “carisma” – como sua referência (...) à charis paulina teria podido sugerir – coincide com a neutralização da lei e não com uma figura mais original do poder. De todo modo, o que os três autores parecem ter como certo, é que o poder autoritário-carismático emana quase magicamente da própria pessoa do Fürher. A pretensão do direito de coincidir num ponto eminente com a vida não poderia ser afirmada de forma mais intensa. Neste sentido, a doutrina da auctoritas converge, pelo menos em parte, com a tradição do pensamento jurídico que via o direito, em última análise, como idêntico à vida ou imediatamente articulado com ela. À fórmula de Savigny (“O Direito não é senão a vida considerada de um ponto de vista particular”) respondia, no século XX, a tese de Rudolph Smend segundo a qual a norma recebe da vida, e do sentido a ela atribuído, seu fundamento de validade (...), a sua qualidade específica e o sentido de sua validade, assim como, ao contrário, a vida só pode ser compreendida a partir de seu sentido vital (...) normatizado e estabelecido (...) Do mesmo modo que, na ideologia romântica, algo como uma língua só se tornava plenamente compreensível em sua relação imediata com um povo (e vice-versa), assim também direito e vida devem implicar-se estreitamente numa fundação recíproca. A dialética de auctoritas e potestas exprimia exatamente tal implicação (nesse sentido, pode-se falar de um caráter biopolítico original do paradigma da auctoritas). A norma pode ser aplicada ao caso normal e pode ser suspensa sem anular inteiramente a ordem jurídica porque, sob a forma da auctoritas ou da decisão soberana, ela se refere imediatamente à vida e dela deriva.211

A estrutura do direito ocidental, sob essa ótica, se assentaria originalmente sobre

dois elementos heterogêneos e coordenados: a potestas, que pode ser considerada como um

elemento normativo e jurídico em sentido estrito; e a auctoritas, que, em sua essência, é

anômica e metajurídica. O funcionamento normal dessa estrutura se ampara na dialética

entre exercício da potestas e convalidação do exercício pela auctoritas, que legitima a

210 O emblema da fundação de uma cidade transferido para o ato da edição de uma Constituição. 211 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 129-130.

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potestas por meio de sua conexão com a tradição e com a força (violência) que deflui da

fundação mesma da ordem jurídica.

A potestas necessita da auctoritas para ser convalidada e aplicada, mas, ao mesmo

tempo, a auctoritas somente subsiste ao validar ou ao suspender a potestas. Isto quer dizer

que a auctoritas, a despeito de sua supremacia, só existe no espaço delimitado pela

potestas. A conseqüência é a de que a dialética constante entre esses dois elementos marca

o funcionamento do direito com uma extrema tensão, que se orienta sempre para a

dissolução da ordem estabelecida, iniciada pela potestas e validada pela auctoritas. É

apenas por meio do mecanismo do estado de exceção que a ordem pode ser mantida:

(...) Enquanto resulta da dialética entre esses dois elementos em certa medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do direito é frágil e, em sua tensão para manter a própria ordem, já está sempre num processo de ruína e decomposição. O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Ele se baseia na ficção essencial pela qual a anomia – sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei – ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida. Enquanto os dois elementos permanecem ligados, mas conceitualmente, temporalmente e subjetivamente distintos – como na Roma republicana, na contraposição entre Senado e povo, ou na Europa medieval, na contraposição entre poder espiritual e poder temporal –, sua dialética – embora fundada sobre uma ficção – pode, entretanto, funcionar de algum modo. Mas, quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de exceção em que eles se ligam e se indeterminam torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal.212

212 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 130-131. Arendt igualmente menciona a Igreja como mantenedora do princípio autoritário romano: “O vigor e a continuidade extraordinários desse espírito romano – ou a extraordinária solidez do princípio fundador para a criação de organismos políticos – submeteram-se a um teste decisivo, reafirmando-se indiscutivelmente após o declínio do Império Romano, quando a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Cristã. Confrontada com essa tarefa mundana bem real, a Igreja tornou-se tão “romana” e adaptou-se tão completamente ao pensamento romano em matéria de política que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra angular de uma nova fundação, erigindo sobre ela uma nova instituição humana de tremenda durabilidade (...). Graças ao fato de que a fundação da cidade de Roma se repetiu na fundação da Igreja Católica, embora, evidentemente, com conteúdo radicalmente diverso, a tríade romana de religião, autoridade e tradição pôde ser assumida pela era cristã. O sinal mais claro dessa continuidade talvez seja o fato de a Igreja, ao se atirar em sua grande carreira política no século V, ter adotado imediatamente a distinção romana entre autoridade e poder, reclamando para si mesma a antiga autoridade do senado e deixando o poder – que no Império Romano não estava mais nas mãos do povo, tendo sido monopolizado pela família imperial – aos príncipes do mundo. Assim é que, ao término do século V, o Papa Gelásio I pôde escrever ao Imperador Anastácio I: “Duas são as coisas pelas quais esse mundo é principalmente governado: a autoridade sagrada dos Papas e o poder real”.”. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 167-169.

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O estado de exceção é, para Agamben, a marca política da modernidade e da época

atual. Tal estado de exceção constitui uma espécie de espaço vazio, onde a ação humana,

sem relação com o direito, defronta-se com a norma, sem relação com a vida. A dicotomia

existente entre ação humana, alheia ao direito, e norma, alheia à vida, governa seu

funcionamento. A despeito de ser um espaço vazio, o estado de exceção revela-se

extremamente eficaz como técnica de governo e politização da vida natural e, segundo a

tese exposta, vige na maior parte dos países ocidentais desde o final da Primeira Guerra

Mundial213.

O problema central, para Agamben, entretanto, não passa por uma eventual

reafirmação do direito e da norma sobre o estado de exceção – isso porque direito e norma

têm seu fundamento último no próprio estado de exceção. Dessa forma, não é possível o

retorno do “estado de exceção permanente” dos dias de hoje para um estado de direito,

porque os próprios conceitos de estado e direito não mais se sustentam com clareza prática

ou teórica. Uma possível e futura solução, de toda forma, passa por problemas e obstáculos

diversos:

(...) Mas, se é possível tentar deter a máquina, mostrar sua ficção central, é porque, entre violência e direito, entre a vida e a norma, não existe nenhuma articulação substancial. Ao lado do movimento que busca, a todo custo, mantê-los em relação, há um contramovimento que, operando em sentido inverso no direito e na vida, tenta, a cada vez, separar o que foi artificial e violentamente ligado. No campo de tensões de nossa cultura, agem, portanto, duas forças opostas: uma que institui e que põe e outra que desativa e depõe. O estado de exceção constitui o ponto da maior tensão dessas forças e, ao mesmo tempo, aquele que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torná-las indiscerníveis. Viver sob o estado de exceção significa fazer a experiência dessas duas possibilidades e entretanto, separando a cada vez as duas forças, tentar, incessantemente, interromper o funcionamento da máquina que está levando o Ocidente para a guerra civil mundial.

213 “Isso não significa que a máquina, com seu centro vazio, não seja eficaz; ao contrário, o que procuramos mostrar é, justamente, que ela continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira Guerra Mundial, por meio do fascismo e do nacional-socialismo, até nossos dias. O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 131. A propósito, é possível, como já observado, associar a “máquina com seu centro vazio” de Agamben com o local do líder totalitário, no centro vazio da “cebola” de Arendt.

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Se é verdade que a articulação entre vida e direito, anomia e nomos produzida pelo estado de exceção é eficaz, mas fictícia, não se pode, porém, extrair disso a conseqüência de que, além ou aquém dos dispositivos jurídicos, se abra em algum lugar um acesso imediato àquilo de que representam a fratura e, ao mesmo tempo, a impossível recomposição. Não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do estado de exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nomos coincide com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e nomos, auctoritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que se tinha pretendido unir. Mas o desencanto não restitui o encantado a seu estado original: segundo o princípio de que a pureza nunca está na origem, ele lhe dá somente a possibilidade de aceder a uma nova condição.214

O estado de exceção permanente, para Agamben, é a máquina que produz

incessantemente vida nua, em sua enlouquecida corrida biopolítica – é uma decorrência

lógica do conceito de soberania, e, sem ela, não haveria possibilidade de se instaurar nem

política nem direito nos moldes ocidentais. A estrutura ontológica dessa máquina, bem

como exemplos de suas manifestações históricas foram apresentados ao longo dos dois

primeiros capítulos desta tese.

Nada se disse ainda, todavia, a respeito da vida nua que o estado de exceção

permanente produz – incessantemente ao longo da modernidade –, nem sobre o que

significa para um indivíduo estar submetido a um poder biopolítico. O que é, quais são as

conseqüências de uma situação na qual o direito está suspenso? Coerentemente com sua

típica forma de pensar, Agamben utiliza-se de um novo emblema para o ser humano cuja

vida natural é tematizada pela política: o Homo sacer, remota figura romana, é o

personagem ao qual se dedicará as páginas que se seguem.

214 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 131-133.

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CAPÍTULO III – A condição biopolítica do Homo

Sacer.

O estado de exceção, como técnica de governo generalizada e não declarada, funda-

se no caráter biopolítico da modernidade, e na própria ontológica da política e do direito, os

quais seriam, já desde o seu princípio remoto clássico, marcados pela suspensão da ordem

jurídica e pela indiferenciação entre vida e lei como mecanismos de exclusão-inclusiva da

vida biológica nua nas comunidades políticas e em seus ordenamentos político-jurídicos.

A vida nua, a pura vida biológica, portanto, é o objeto da política e do direito do

estado de exceção, e sua tematização constitui o núcleo mesmo de funcionamento deste,

como Estado voltado para a regulação, produção e “moldagem” da vida biológica de sua

população a partir da avaliação valorativa e ética de qual vida é digna ou indigna de ser

vivida.

Todavia, o que significa que a vida nua biológica seja o objeto do estado de

exceção? Ou, em outras palavras, qual é a condição dos indivíduos concretos submetidos à

suspensão da ordem político-jurídica, à inclusão na comunidade política que se dá por meio

tão-somente da relação de abandono que ocorre no interior da lógica de estruturação do

bando soberano? A soberania, lançando mão da decisão final sobre a suspensão da ordem

jurídica que caracteriza sua própria natureza ontológica, tem qual efeito sobre os

indivíduos?

É discorrendo sobre a complexa estrutura conceitual e a manifestação histórica dos

efeitos da exceção sobre os indivíduos que Agamben dá seguimento à sua teoria, com base

na figura do homo sacer romano, tomado como emblema da vida nua, e na tese de que o

campo de concentração – como espaço último de produção da vida biológica pura –

constitui a matriz política e jurídica da modernidade.

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1. Homo Sacer: Sacralidade e Soberania.

O principal personagem do estado de exceção é, no cerne da tese de Agamben, o

símbolo do homo sacer215, que pode ser definido como o indivíduo no qual a vida nua, a

pura vida biológica natural, se revela em sua plenitude, e que é o alvo do funcionamento da

biopolítica na situação de suspensão do direito. Assim como a compreensão do

funcionamento do estado de exceção demandou uma análise dos institutos romanos da

auctoritas e da potestas, do iustitium e do imperium, a pesquisa acerca da vida nua se

origina no instituto romano do homo sacer.

Essa figura do direito romano vincula o caráter da sacralidade à vida humana

compreendida como mera vida biológica, desprovida de caracteres políticos e jurídicos. Seu

sentido, porém, é de complexa e difícil compreensão:

Tem-se discutido muito sobre o sentido desta enigmática figura, na qual alguns quiseram ver “a mais antiga pena do direito criminal romano” (Bennet, 1930, p.5), mas cuja interpretação é complicada pelo fato de que ela concentra em si traços à primeira vista contraditórios. Já Bennet, em um ensaio de 1930, observava que a definição de Festo “parece negar a própria coisa implícita no termo” (...), porque, enquanto sanciona a sacralidade de uma pessoa, autoriza (ou, mais precisamente, torna impunível) sua morte (qualquer que seja a etimologia aceita para o termo parricidium, ele indica na origem o assassínio de um homem livre). A contradição é ainda acentuada pela circunstância de que aquele que qualquer um podia matar impunemente não devia, porém, ser levado à morte nas formas sancionadas pelo rito (neque fas este eum immolari; immolari indica o ato de aspergir a vítima com a mola salsa antes de sacrificá-la).

Em que consiste, então, a sacralidade do homem sacro, o que significa a expressão sacer esto, que figura muitas vezes nas leis reais e que aparece já na inscrição arcaica sobre o cipo retangular do fórum, se ela implica ao mesmo tempo o impune occidi e a exclusão do sacrifício? Que esta expressão resultasse obscura até mesmo para os romanos é provado além de qualquer dúvida por um trecho das Saturnais (III, 7, 3-8) no qual Macróbio, depois de ter definido sacrum como aquilo que é destinado aos deuses, acrescenta: “Neste ponto não parece fora de lugar tratar da condição daqueles homens que a lei comanda serem sagrados a uma determinada divindade, pois que não ignoro que a alguns pareça estranho (mirum videri) que, enquanto é vetado violar qualquer coisa sacra, seja em vez disso lícito matar o homem sacro.”

215 Em nota de fim de livro (número 18), o tradutor traz a seguinte tradução da definição dada por Festo em sua obra Sobre o Significado das palavras: “Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro.”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 196.

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Qualquer que seja o valor da interpretação que Macróbio acredita dever fornecer neste ponto, é certo que a sacralidade parecia aos seus olhos bastante problemática, a ponto de ter necessidade de uma explicação.216

As interpretações modernas sobre o instituto, na perspectiva de Agamben, giram em

torno de dois conceitos distintos: ou a sacratio é compreendida como resíduo do período

histórico no qual o direito religioso e o penal eram indistintos, e a condenação à morte se

equiparava ao sacrifício à divindade; ou a sacratio é vista como uma consagração aos

deuses ínferos, análoga à noção de tabu, ou seja, o sacro tomado como augusto e maldito,

venerável e horrível, simultaneamente.

A primeira explicação consegue lidar com a impunibilidade do assassino do homo

sacer, mas não explica porque o sacrifício é vetado. Já a segunda consegue explicar porque

o sacrifício é vetado (o homo sacer já pertence aos deuses), mas não esclarece porque o seu

assassino não é sacrílego. Nenhuma das duas visões, de toda forma, consegue explicar e

esclarecer simultaneamente os dois caracteres do instituto, quais sejam a impunidade da

morte e o veto ao sacrifício217.

Agamben sugere que a figura do homo sacer constitui-se em um conceito limite do

ordenamento social romano, por meio do qual é possível avaliar uma estrutura política

originária, em uma zona de indistinção entre sacro e profano, religioso e jurídico –

indistinção esta que representa a confusão soberana entre direito e vida. Dois aspectos,

conforme visto, caracterizam a sua sacralidade: a impunidade da morte e a exclusão do

sacrifício. Ambos os caracteres constituem típicas exceções jurídicas:

(...) Primeiramente, o impune occidi configura uma exceção do ius humanum, porquanto suspende a aplicação da lei sobre homicídio atribuída a Numa (...). A própria fórmula referida por Festo (...) aliás, constitui de certo modo uma

216 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 79-80. 217 “(...) No interior daquilo que sabemos do ordenamento jurídico e religioso romano (tanto do ius divinum quanto do ius humanum), os dois traços parecem, com efeito, dificilmente compatíveis: se o homo sacer era impuro (Fowler: tabu) ou propriedade dos deuses (Kerényi), por que então qualquer um podia matá-lo sem contaminar-se ou cometer sacrilégio? E se, por outro lado, ele era na realidade a vítima de um sacrifício arcaico ou um condenado à morte, porque não era fas levá-lo à morte nas formas prescritas? O que é, então, a vida do homo sacer, se ela se situa no cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade, fora tanto do direito humano quanto daquele divino?” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 81.

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vera e própria exceptio em sentido técnico, que o assassino chamado em juízo poderia opor à acusação, invocando a sacralidade da vítima. Mas até mesmo o neque fas este eum immolari configura, observando-se bem, uma exceção, desta vez do ius divinum e de toda e qualquer forma de morte ritual. As formas mais antigas de execução capital de que temos notícia (a terrível poena cullei, na qual o condenado, com a cabeça coberta por uma pele de lobo, era encerrado em um saco com serpentes, um cão e um galo, e jogado n’água; ou a defenestração da Rupe Tarpea) são, na realidade, antes ritos de purificação que penas de morte no sentido moderno: o neque fas este eum immolari serviria justamente para distinguir a matança do homo sacer das purificações rituais e excluiria decididamente a sacratio do âmbito religioso em sentido próprio. Tem sido observado que enquanto a consecratio faz normalmente passar um objeto do ius humanum ao divino, do profano ao sacro (...), no caso do homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina. De fato, a proibição da imolação não apenas exclui toda equiparação entre o homo sacer e uma vítima consagrada, mas, como observa Macróbio citando Trebácio, a licitude da matança implicava que a violência feita contra ele não constituía sacrilégio, como no caso das res sacrae (...).218

Dentro de tal lógica, a sacratio pode ser compreendida como uma dupla exceção,

que exclui a pessoa tanto do direito humano, quanto do direito divino. Tal estrutura é

similar, por não dizer idêntica, à da exceção soberana: “Assim como, na exceção soberana,

a lei se aplica de fato ao caso excepcional desaplicando-se, retirando-se deste, do mesmo

modo o homo sacer pertence ao Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na

comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida

sacra”.219

A dita vida sagrada, portanto, relaciona-se com o âmbito religioso por não poder ser

sacrificada, e relaciona-se com o âmbito político por poder ser assassinada – em outros

termos, a inclusão política da vida sagrada se materializa em sua matabilidade. Em ambas

as instâncias, sua inclusão se baseia verdadeiramente na sua exclusão. Dessa forma, a vida

sagrada subsiste fora tanto do campo divino quanto do jurídico, ou, em outros termos,

constitui uma exceção plena em ambas essas esferas.

A marca da vida do homo sacer, então, está representada na dupla exclusão

(inclusiva) do âmbito religioso e do humano, que a expõe a uma espécie de violência –

218 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 89-90. 219 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 90.

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caracterizada por sua insancionável matabilidade – que não é nem sacrifício, nem

homicídio, nem a execução de uma sentença, nem a prática de um sacrilégio. Tal violência,

que não pode efetivamente ser considerada nem humana nem divina, aproxima-se da

problemática relativa à soberania, e à exceção soberana:

Nós já encontramos uma esfera-limite do agir humano que se mantém unicamente em uma relação de exceção. Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no estado de exceção e assim implica nele a vida nua. Devemos perguntar-nos, então, se as estruturas da soberania e da sacratio não sejam de algum modo conexas e possam, nesta conexão, iluminar-se reciprocamente. Podemos, aliás, adiantar a propósito uma primeira hipótese: restituído ao seu lugar próprio, além tanto do direito penal quanto do sacrifício, o homo sacer apresentaria a figura originária da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política. O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.

É possível, então, dar uma primeira resposta à pergunta que nos havíamos colocado no momento de delinear a estrutura formal da exceção. Aquilo que é capturado no bando soberano é uma vida humana matável e insacrificável: o homo sacer. Se chamamos vida nua ou vida sacra a esta vida que constitui o conteúdo primeiro do poder soberano, dispomos ainda de um princípio de resposta para o quesito benjaminiano acerca da “origem do dogma da sacralidade da vida”. Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono. 220

Na estrutura da exceção soberana, portanto, as figuras do soberano e do homo sacer

se completam e complementam, ocupando cada um deles os limites extremos do

ordenamento político. O soberano pode ser considerado como aquele em relação o qual

220 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 90-91. A menção a Benjamin refere-se à dúvida que ele levanta acerca do dogma da sacralidade da vida, em Crítica da Violência – Crítica do Poder: “(...) Sem dúvida, valeria a pena investigar o dogma do caráter sagrado da vida. Talvez, ou mesmo provavelmente, esse dogma seja recente, o último erro da enfraquecida tradição ocidental de procurar na impenetrabilidade cosmológica o sagrado que ela perdeu. (A antigüidade de todos os mandamentos religiosos contra o homicídio não seria aqui nenhuma objeção, porque a eles estão subjacentes outros pensamentos ausentes no teorema moderno.) Finalmente, é significativo que a qualificação de sagrado recaia sobre algo que, segundo o antigo pensamento mítico, é marcado para ser portador da culpa: a mera vida.” BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 174. Frise-se que Benjamin, assim como Agamben, considera a vida como portadora da culpa, sendo que, para este último, a culpa nada mais é que o estar em relação de abandono com a lei.

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todos os outros homens são homines sacri em potencial; e o homo sacer pode ser

considerado como aquele em relação o qual todos os outros homens são soberanos em

potencial. O soberano tem poder de morte sobre todos – e todos têm poder de morte sobre o

homo sacer.

A ação humana que se constitui a partir dessas duas figuras, conquanto fora tanto do

âmbito do direito humano, quanto da esfera do direito religioso, configura, para Agamben,

o primeiro espaço político em sentido próprio e específico, distinto, claramente, da ordem

natural sagrada e da ordem formal e jurídica humana221. Em outros termos, a base original

da política se funda na exceção soberana que se delimita a partir das figuras do soberano e

do homo sacer, e que se realiza na matabilidade e na insacrificabilidade deste último.

(...) Se a nossa hipótese está correta, a sacralidade é, sobretudo, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação “política” originária, ou seja, a vida enquanto, na exclusão inclusiva, serve como referente à decisão soberana. Sacra a vida é apenas na medida em que está presa à exceção soberana, e ter tomado um fenômeno jurídico-político (a insacrificável matabilidade do homo sacer) por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcaram no nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como aqueles sobre a soberania. Sacer esto não é uma fórmula de maldição religiosa, que sanciona o caráter unheimlich, isto é, simultaneamente augusto e abjeto, de algo: ela é, ao contrário, a formulação política original da imposição do vínculo soberano. As culpas às quais, segundo as fontes, segue-se a sacratio (como o cancelamento dos confins – terminum exarare –, a violência exercitada pelo filho sobre o genitor – verberatio parentis – ou a fraude do patrono em relação ao cliente) não teriam, então, o caráter da transgressão de uma norma, à qual se segue a relativa sanção; elas constituiriam, antes, a exceção originária, na qual a vida humana, exposta a uma matabilidade incondicionada, vem a ser incluída na ordem política. Não o ato de traçar os confins, mas o seu cancelamento ou negação (como, de resto, o mito da fundação de Roma conta, a seu modo, com perfeita clareza) é o ato constitutivo da cidade. A lei de Numa sobre o homicídio (parricidas esto) forma sistema com a matabilidade do homo sacer (parricidi non damnatur) e não pode ser separada dela. Tão complexa é a estrutura originária na qual se baseia o poder soberano.222

A estrutura política original, portanto, se reflete na existência de um poder de vida e

de morte do soberano sobre o indivíduo politicamente incluído na cidade. Nesses termos, o

221 A pressuposição da ordem jurídica fora de um âmbito político, de toda forma, não é explicada. 222 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 92-93.

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poder sobre a vida, a matabilidade, é o núcleo da relação política, seu elemento original e

fundamental.

A soberania, desse modo, desempenha um papel político central nessa estrutura, na

medida em que define a possibilidade da matabilidade, bem como localiza o detentor de tal

poder e permite o estabelecimento da ordem político-jurídica, fundamentada em sua

suspensão potencial na matabilidade do homo sacer.

Ainda tendo em vista a estrutura política romana, tal circunstância se revela também

na figura do poder incondicional de vida e morte que o pater – detentor de auctoritas,

sublinhe-se – possui sobre seus filhos homens, e que, apesar de algumas diferenças, se

relaciona profundamente tanto com a soberania, quanto com o imperium dos magistrados

romanos:

“Por longo tempo um dos privilégios característicos do poder soberano foi o direito de vida e de morte.” Esta afirmação de Foucault no final de A Vontade de saber (...) soa perfeitamente trivial; a primeira vez, porém, que, na história do direito, deparamos com a expressão “direito de vida e de morte”, é na fórmula vitae necisque potestas, que não designa de modo algum o poder soberano, mas o incondicional poder do pater sobre os filhos homens. No direito romano, vita não é um conceito jurídico, mas indica, como no uso latino comum, o simples fato de viver ou um modo particular de vida (o latim reúne em um único termo os significados tanto de zoé como de bíos). O único caso em que a palavra vita adquire um sentido especificamente jurídico, que a transforma em um verdadeiro e próprio terminus technicus, é, exatamente, na expressão vitae necisque potestas. Em um estudo exemplar, Yan Thomas mostrou que, nesta fórmula, que não tem valor disjuntivo e vita não é mais que um corolário de nex, do poder de matar (...). A vida aparece, digamos, originariamente no direito romano apenas como contraparte de um poder que ameaça com a morte (mais precisamente, a morte sem efusão de sangue, pois tal é o significado próprio de necare, em oposição a mactare). Este poder é absoluto e não é concebido nem como a sanção de uma culpa nem como a expressão do mais geral poder que compete ao pater enquanto chefe da domus: ele irrompe imediatamente e unicamente da relação pai-filho (no instante em que o pai reconhece o filho varão alçando-o do solo adquire sobre ele o poder de vida e de morte) e não deve, por isso, ser confundido com o poder de matar que pode competir ao marido ou ao pai sobre a mulher ou sobre a filha surpreendidas em flagrante adultério, e ainda menos com o poder do dominus sobre seus servos. Enquanto estes poderes concernem ambos à jurisdição do chefe de família e permanecem, portanto, de algum modo no âmbito da domus, a vitae necisque potestas investe ao nascer todo cidadão varão livre e parece assim definir o próprio modelo do poder político em geral. Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário.

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Os romanos sentiam, de fato, uma afinidade tão essencial entre a vitae necisque potestas do pai e o imperium do magistrado, que o registro do ius patrium e o do poder soberano acabam por ser para eles estreitamente entrelaçados. O tema do pater imperiosus, que acumula na sua pessoa a qualidade de pai e o ofício de magistrado e que, como Bruto ou Mânlio Torquato, não hesita em expor à morte o filho que se manchou com a traição, desempenha assim uma função importante na anedótica e na mitologia do poder. Mas igualmente decisiva é a figura inversa, ou seja, a do pai que exercita sua vitae necisque potestas sobre o filho magistrado, como no caso do cônsul Espúrio Cássio e do tribuno Caio Flamínio. Referindo a história deste último, que o pai arrasta para fora da tribuna enquanto ele tenta prevaricar junto ao poder do senado, Valério Máximo define significativamente como imperium privatum a potestas do pai. Yan Thoomas, que analisou estes episódios, pôde escrever que a patria potestas era sentida em Roma como uma espécie de ofício público e, de certo modo, como uma “soberania residual e irredutível” (...). E quando, em uma fonte tardia, lemos que Bruto, mandando à morte os seus filhos, “havia adotado em seu lugar o povo romano”, é um mesmo poder de morte que, através da imagem da adoção, se transfere agora sobre todo o povo, restituindo o seu originário, sinistro significado ao epíteto hagiográfico de “pai da pátria”, reservado em todos os tempos aos chefes investidos no poder soberano. O que a fonte nos apresenta é, portanto, uma espécie de mito genealógico do poder soberano: o imperium do magistrado nada mais é que a vitae necisque potestas do pai estendida em relação a todos os cidadãos. Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade223.

É possível observar, dentro da narrativa que se vem desenvolvendo, que o cidadão

varão livre, por estar submetido à vitae necisque potestas de seu pai, que o coloca em uma

virtual e perene condição de matabilidade, torna-se, em relação a esse pai, sacer. Tanto que,

assim como o homo sacer, o filho varão não podia ser mandado à morte pelo pai nas formas

rituais, mas deveria ser o próprio pai a dar-lhe a morte.

A perspectiva de Foucault, mencionada na citação anterior, é ligeiramente diferente

da proposta por Agamben. Ao contrário do que este propõe, o direito de vida e morte

inerente à soberania, para Foucault, seria derivado da patria potestas, e o poder do pater

sobre seus filhos homens não seria diferente do seu poder de vida e morte contra seus

escravos. A soberania seria derivada da patria potestas, seria uma extensão dela, ao invés

de a patria potestas ser resíduo da soberania.

De toda forma, é a partir da análise da transformação do poder de vida e morte

soberano, ocorrida durante a Idade Moderna, em um poder que desloca seu foco de atuação

223 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 95-96.

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da morte para a vida, ou seja, para a regulação da vida biológica, que Foucault concebe o

conceito de biopolítica como técnica de governo, tão fundamental às formulações teóricas

de Agamben:

Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha “dado”. O direito de vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma fórmula bem atenuada desse poder. Entre soberanos e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de réplica. (...) Encarado nestes termos, o direito de vida e morte já não é um privilégio absoluto: é condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal. (...) De qualquer modo, o direito de vida e morte, sob esta forma moderna, relativa e limitada, como também sob sua forma antiga e absoluta, é um direito assimétrico. O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver. Afinal de contas, era simbolizado pelo gládio. 224

O direito de vida e de morte soberano que se define a partir do causar a morte ou do

deixar viver reporta-se, segundo Foucault, a uma modalidade histórica de sociedade na qual

o principal mecanismo de exercício do poder era o confisco de bens, isto é, o poder

exercido como direito de apropriação de produtos, riquezas, serviços, trabalho, direitos,

etc., pertencentes ou exercidos pelos súditos. Ele se caracterizaria, portanto, como

possibilidade de apreensão, que incidia sobre coisas, pessoas, corpos, tempo, e, em última

instância, sobre a vida – a apoderação da vida pelo soberano é que constituiria, portanto, o

direito de vida e morte.

Entretanto, na Idade Moderna, teria ocorrido uma profunda transformação deste

mecanismo de poder. O confisco deixa de ser a principal forma de seu exercício, e o poder,

que antes se apoderava de ou destruía as forças sociais e individuais, passa a ter como foco

224 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 147-148. Agamben, a despeito de citar Foucault, não avalia as diferenças teóricas entre ambos acerca do sentido da soberania e da patria potestas.

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a produção, regulamentação e controle dessas mesmas forças. Esta é a marca da atuação

biopolítica, na perspectiva de Foucault:

Ora, a partir da época Clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder. O “confisco” tendeu a não ser mais sua forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las. Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos. Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la. Contudo, jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais holocaustos em suas próprias populações. Mas esse formidável poder de morte – e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites – apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto. As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e as encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência. A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada desse processo: o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida. O princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados; mas a existência em questão já não é aquela – jurídica – da soberania, é outra – biológica – de uma população. Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população.225

A divergência existente entre as teorias de Foucault e Agamben, neste ponto, é

patente. O primeiro afirma explicitamente que a biopolítica moderna não se relaciona com a

soberania clássica. O silêncio de Agamben sobre essa discordância é, na melhor das

225 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 149-150. A questão atômica e suas conseqüências políticas são, igualmente, uma preocupação central para o pensamento de Hannah Arendt. Sobre o tema, ver, especialmente, ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Trad.: Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993; e ARENDT, Hannah. A Condição Humana.

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hipóteses, incomôdo, já que a inspiração original a respeito da biopolítica é

reconhecidamente haurida de Foucault.

Agamben menciona expressamente, sob outro aspecto, que o poder do pater sobre

seus filhos homens era um poder de morte que deveria ser exercido sem a efusão de sangue,

e que este poder constituía um resíduo de soberania na cidade política. Quando Benjamin

trata da dialética entre violência que instaura o direito e violência que mantém o direito, ele

vincula essas duas modalidades de violência ao direito de natureza mítica. Tal poder, cuja

descrição se harmoniza com o direito conforme articulado por Agamben, representa o signo

da existência dos deuses – constitui a forma do poder jurídico clássico, que se ampara na

culpa e lança mão da morte sangrenta:

O poder mítico em sua forma arquetípica é mera manifestação dos deuses. Não meio para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de sua existência. Disso, a lenda de Níobe oferece um excelente exemplo. É verdade que a ação de Apolo e Ártemis pode parecer uma mera punição. Mas o seu poder é muito mais institucionalização de um direito novo do que a punição da transgressão de um direito existente. A hubris de Níobe conjura a fatalidade, não por transgredir a lei, mas por desafiar o destino – para uma luta na qual o destino terá de ser o vencedor, podendo engendrar, na vitória, um direito. Até que ponto o poder divino, no sentido da Antigüidade, não era o poder mantenedor da punição, fica patente nas lendas, onde o herói, por exemplo Prometeu, desafia o destino com digna coragem, luta contra ele, com ou sem sorte, e acaba tendo a esperança de um dia levar aos homens um novo direito. É, no fundo, esse herói e o poder jurídico do mito incorporado por ele que o povo tenta tornar presente, ainda nos dias de hoje, quando admira o grande bandido. A violência* portanto desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino. Ela não é propriamente destruidora. Embora traga a morte sangrenta aos filhos de Níobe, ela se detém diante da vida da mãe, deixando-a – apenas mais culpada do que antes, por causa da morte dos filhos – como suporte mudo e eterno da culpa, e também como marco do limite entre homens e deuses. Se esse poder* imediato quer mostrar, em manifestações míticas, que é parente próximo do poder* instituinte do direito ou lhe é idêntico, ele focaliza um problema deste poder, na medida em que este tinha sido caracterizado – na apresentação anterior da violência* da guerra – como um poder* apenas dos meios.226

226 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 171. Benjamin acrescenta ainda que é justamente em face da relação entre ordem mítica de destino e culpa que o desconhecimento da lei não afasta a punição, questão que, para Agamben, revela a relação de abandono sobre a qual se organiza o direito e a política: “(...) Limites estabelecidos e circunscritos são, ao menos em tempos arcaicos, leis não escritas. O homem pode transgredi-los sem saber e assim ficar sujeito à penitência. A intervenção do direito, motivada pela transgressão da lei não-escrita e desconhecida, chama-se penitência, para distingui-la da “punição”. Por mais desgraçadamente que ela atinja o transgressor ignorante, seu surgimento, no sentido do direito, não se dá por acaso, mas por obra do destino, que aqui volta a se apresentar em sua ambigüidade proposital. Herman Cohen, num rápido exame da concepção antiga de destino, o chamou de “conhecimento inescapável”, dizendo

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A este poder mítico, que funda toda e qualquer ordem jurídica, Benjamin opõe a

espécie de poder que ele chama de divino. O poder divino se caracterizaria por não se

basear na culpa, mas sim na absolvição – ele não é nem instituidor, nem mantenedor do

direito, mas sim destruidor da ordem jurídica. Tal poder, de difícil identificação teórica ou

prática, parece ser proposto pelo autor como a instância que permite a crítica concreta do

poder mítico e jurídico.

Longe de abrir uma perspectiva mais pura, a manifestação mítica do poder* imediato mostra-se profundamente idêntica a todo poder* jurídico, fazendo com que a suspeita de sua problemática se transforme em certeza do caráter nefasto de sua função histórica, levando assim à proposta de seu aniquilamento. Tal tarefa suscita, em última instância, mais uma vez a questão de um poder* puro, imediato, que possa impedir a marcha do poder* mítico. Do mesmo modo como, em todas as áreas, Deus se opõe ao mito, assim também opõe-se ao poder* mítico o poder divino. Este é o contrário daquele, sob todos os aspectos. Se o poder* mítico é instituinte do direito, o poder* divino é destruidor do direito; se aquele estabelece limites, este rebenta todos os limites; se o poder mítico é ao mesmo tempo autor da culpa e da penitência, o poder* divino absolve a culpa; se o primeiro é ameaçador e sangrento, o segundo é golpeador e letal, de maneira não-sangrenta. À lenda de Níobe pode ser confrontado, como exemplo desse poder*, o juízo divino da corja de Corah. O juízo divino atinge privilegiados, levitas, os atinge sem preveni-los, os golpeia sem ameaçá-los, e não hesita em aniquilá-los. Mas, ao mesmo tempo, com esse aniquilamento, o juízo divino absolve a culpa, e não se pode deixar de ver uma profunda relação entre o caráter não-sangrento e a absolvição da culpa, no caso desse poder*. Pois o sangue é o símbolo da pura vida. O desencadeamento do poder* jurídico remonta – o que não se pode mostrar aqui de maneira mais detalhada – ao processo de culpa da vida pura e natural, o qual entrega o ser humano inocente e infeliz à penitência, com a qual “expia” sua culpa – e também absolve o culpado, não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida termina a dominação do direito sobre os vivos. O poder* mítico é poder* sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder* divino é um poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim. O primeiro poder exige sacrifícios, o segundo poder os aceita.227

que é “a sua própria ordem que parece provocar essa transgressão, esse desrespeito”. Tal espírito da lei ainda é ilustrado pelo princípio moderno de que o desconhecimento das leis não exime da punião (sic), do mesmo modo que a luta em prol do direito escrito, nos primeiros tempos das comunidades antigas, deve ser entendida como uma rebelião contra o espírito dos decretos míticos.” (p. 172). De fato, a punição divina sobre os transgressores ignorantes da lei é um tema comum em diversas tragédias gregas. 227 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 172-173. Como exemplo menos etéreo do que seria o poder divino, Benjamin cita o poder educativo em sua forma perfeita, ou seja, livre de qualquer espécie de institucionalização do direito. Não se sabe, ao certo, o que seria exatamente esse poder educativo, mormente tendo em vista a descrição disciplinar dessa espécie de poder feita por Foucault no clássico Vigiar e Punir. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad.: Raquel Ramalhete. 27ª Ed., Petrópolis: Vozes, 1987.

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Neste ponto, as dessemelhanças se tornam patentes. Agamben utiliza-se da lógica

do direito mítico de Benjamin para traçar suas considerações acerca da relação entre culpa e

ordem jurídica, como elemento que compõe a natureza ontológica da exceção soberana.

Entretanto, utiliza, como exemplo de exercício do poder soberano, o instituto da vitae

necisque potestas, em que a morte do filho varão deve necessariamente ser levada a cabo

sem a efusão do sangue. Sob a perspectiva de Benjamin, portanto, tratar-se-ia de uma morte

vinculada a uma manifestação do poder divino, e não do poder mítico, até mesmo porque o

próprio Agamben considera o poder do pater um poder puro que se exerce imediatamente

sobre a vida do filho, um fim em si próprio.

Mas Agamben, ao se utilizar das formulações de Benjamin, vincula a decisão

soberana e a exceção jurídica ao poder-violência mítico ou ao poder-violência divino? A

questão torna-se ainda mais complexa na medida em que Benjamin afirma claramente que é

o sangue, enquanto símbolo da vida natural pura, ou seja, da vida nua, que permite ao

direito “culpar” o inocente simplesmente por estar vivo, e, por sangue, absolvê-lo do direito

– ou seja, da culpa de estar em relação com o direito. Que Agamben foi profundamente

inspirado por esta passagem está mais do que claro. Como explicar, então, que a imagem do

filho levado à morte pelo pai, sem efusão de sangue, possa servir para se compreender a

soberania?

Agamben não dá explicação para nenhuma dessas duas questões. A tentativa de

interpretá-lo à luz de Benjamin leva, em um primeiro momento, à conclusão de que a

relação e possível confusão ou indiscernibilidade entre poder mítico e poder divino é bem

menos radical do que Benjamin afirma ser. O quê, de um ponto de vista teórico, não

acarreta maiores problemas. De toda forma, tentar-se-á investigar um pouco mais a fundo o

problema, até mesmo porque, em referência ao homo sacer, considera-se que o sacrifício

não é possível, e Benjamin propõe que o poder mítico exige sacrifícios, enquanto o poder

divino os aceita – onde se situa, nessa lógica, o homo sacer, já que sua morte não é nem

sacrifício, nem homicídio?

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Avalie-se a conclusão do texto de Benjamin, na qual ele articula mais alguns

caracteres do poder divino, conjugando-o, de certo modo, à possibilidade de revolução:

(...) Se a dominação do mito em alguns pontos já foi rompida, na atualidade, o Novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, que uma palavra contra o direito seja supérflua. Se a existência do poder, enquanto poder puro e imediato, é garantida, também além do direito, fica provada a possibilidade do poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem. A decisão, porém, se o poder puro, num determinado caso, era real, não é possível da mesma maneira, nem igualmente urgente para o homem. Pois com certeza, apenas o poder mítico será identificado com a violência, não o poder divino, a não ser através de efeitos incomensuráveis, já que o poder que absolve da culpa é inacessível ao homem. De novo, o puro poder divino dispõe de todas as formas eternas que o mito transformou em bastardos do direito. O poder divino pode aparecer tanto na guerra verdadeira quanto no juízo divino da multidão sobre o criminoso. Deve ser rejeitado, porém, todo poder* mítico, o poder* instituinte do direito, que pode ser chamado de um poder que o homem põe (schaltende Gewalt). Igualmente vil é também o poder* mantenedor do direito, o poder* administrado (verwaltete Gewalt) que lhe serve. O poder divino, que é insígnia e chancela, jamais um meio de execução sagrada, pode ser chamado de um poder de que Deus dispõe (waltende Gewalt).228

O que a frase final desse parágrafo – e, em verdade, do ensaio – quer dizer? O que

significa ser insígnia e chancela, ser um “poder de que Deus dispõe”? A tradução em língua

espanhola deste texto, para tornar o problema maior, traz uma versão diferente de sua parte

final: “Pero es reprobable toda violencia mítica, que funda el derecho y que se puede

llamar dominante. Y reprobable es también la violencia que conserva el derecho, la

violencia administrada, que la sirve. La violencia divina, que es enseña y sello, nunca

instrumento de sacra ejecución, es la violencia que gobierna”.229

A interpretação de Derrida sobre o ensaio, porém, inclusive em relação ao modo de

se traduzir essa sua parte final, é bem diferente daquela dos tradutores para o português e

para o espanhol. Avaliando justamente as últimas frases, ele propõe que:

Em seguida, logo depois de ter assumido a responsabilidade dessa interpretação do grego e do judeu, Benjamin assina. Ele fala de modo avaliador, prescritivo e não constativo, como se faz cada vez que assina. Duas

228 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. p. 175. 229 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica de la violencia. Trad.: Héctor A. Murena. Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995. p. 46.

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frases enérgicas anunciam quais devem ser as palavras de ordem, o que deve ser feito, o que deve ser rejeitado, o mal ou a perversidade daquilo que deve ser rejeitado (Verwerflich):

Mas deve-se rejeitar (Verwerflich aber) toda violência mítica, a violência fundadora do direito, que podemos chamar de violência governante (schaltende). Deve-se rejeitar também (Verwerflich auch) a violência conservadora do direito, a violência governada (die verwaltete Gerwalt) que está a seu serviço. Depois, são as últimas palavras, a última frase. Como o chofar da tarde,

mas na véspera de uma oração que não se ouve mais. Que não o ouçamos mais ou que não o ouçamos ainda, que diferença isso faz?

Essa última mensagem assina, e bem perto do prenome de Benjamin, Walter. Mas ela nomeia também a assinatura, a insígnia e o selo, nomeia o nome, e aquilo que se chama “die waltende”.

Mas quem assina? É deus, o Absolutamente Outro, como sempre. A violência divina terá precedido mas, também, dado todos os prenomes. Deus é o nome dessa violência pura – e justa por essência: não há outra, não há nenhuma antes dela e diante da qual ela tenha de se justificar. Autoridade, justiça, poder e violência nele se unem. (...)

“Die göttliche Gewalt, welche Insignium und Siegel, niemals Mittel heiliger Vollstreckung ist, mag die waltende heissen”: “A violência divina, que é insignia e selo, nunca meio de execução sagrada, pode ser chamada de soberana (die waltende heissen)”.230

Entre “um poder que Deus dispõe”, “violência que governa” e violência “soberana”,

é muito claro que a tradução de Derrida é a que melhor permite compreender a questão. A

violência, ou poder (Gewalt), pura de Deus, conforme interpretada por Derrida, reúne em si

autoridade, poder e violência. Ela é, portanto, o poder soberano de Agamben, que se forma

a partir da auctoritas principis na qual se juntam imperium (poder) e auctoritas. A

diferença é que, enquanto Benjamin e Derrida vêem nessa violência a possibilidade da

justiça (ou, possivelmente, essa violência é desde sempre justiça), para Agamben ela não

passa de exceção jurídica, de suspensão do direito, e, a priori, nem justa nem injusta, mas

apenas potencialmente violenta, desprovida de qualquer vínculo referencial concreto, seja

com o direito, seja com a realidade vital e fática.

Nesse sentido, tanto faz que a morte do filho varão ocorra com ou sem a efusão de

sangue, porque a violência divina soberana não é diferente da violência mítica do poder

constituinte. Em verdade, poder-se-ia inclusive interpretar a violência divina, nessa linha de

raciocínio, como o poder constituinte que não se institui, e instaura a situação concreta de

exceção generalizada. Que Agamben poderia ter esclarecido esse ponto de sua tese em

230 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 132-134.

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contraste com esse aspecto de uma das teorias que o inspiraram, não restam dúvidas. De

toda forma, a interpretação de Derrida é, em verdade, uma tentativa de avaliar o ensaio de

Benjamin beneficamente, em face da possibilidade de desconstrução do conceito de justiça.

Ao apresentar suas conclusões finais sobre as idéias de Benjamin, a despeito de considerar

que a “solução final” nazista231 deveria ser qualificada como uma violência que termina por

destruir simultaneamente tanto o poder mítico quanto o poder divino, Derrida não poupa

severa crítica à proposta benjaminiana:

O que, para terminar, acho mais terrível ou insuportável nesse texto, para além das afinidades que ele tem com o pior (...), é finalmente uma tentação que ele deixaria em aberto, principalmente, para os sobreviventes ou as vítimas da “solução final”, a suas vítimas passadas, presentes, ou potenciais. Que tentação? A de pensar o holocausto como uma manifestação ininterpretável da violência divina: essa violência divina seria, ao mesmo tempo, aniquiladora, expiatória e não-sangrenta, diz Benjamin, de um “processo não-sangrento que fulmina e faz expiar” (...). Quando pensamos nas câmaras de gás e nos fornos crematórios, como ouvir sem estremecer essa alusão a um extermínio que seria expiatório porque não sangrento? Ficamos terrificados com a idéia de uma interpretação que fizesse do holocausto uma expiação, e uma indecifrável assinatura da justa e violenta cólera de Deus. É neste ponto que esse texto, apesar de toda a sua mobilidade polissêmica e de todos os seus recursos de inversão, me parece assemelhar-se demasiadamente, até a fascinação e a vertigem, com aquilo mesmo contra o que é preciso agir e pensar, fazer e falar. Esse texto, como muitos outros de Benjamin, é ainda excessivamente heideggeriano, messiânico-marxista ou arqui-escatológico para mim.232

231 A “solução final” e o Holocausto constituem, para Agamben, o exemplo máximo de suspensão da ordem jurídica que já ocorreu. Os judeus mortos pelo regime nazista, assim como o homo sacer, não eram nem tecnicamente vítimas de homicídio, nem tecnicamente sacrificados, mas simplesmente eliminados. Daí a fundamental importância da análise da “solução final” não só para a teoria de Agamben como um todo, quanto para a compreensão do problema em discussão, até mesmo porque sua hipótese é a de que justamente em Roma, no homo sacer, na vitae necisque potestas, já estava contida a estrutura de funcionamento da ordem jurídica e política que resultou no Holocausto. 232 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 143-144. Especificamente sobre a relação entre “solução final” e violências mítica e divina, Derrida consigna que ela é: “Uma radicalização e uma extensão total do mítico, da violência mítica, tanto em seu momento sacrificial fundador, quanto em seu momento mais conservador. E essa dimensão mitológica, ao mesmo tempo grega e estetizante (o nazismo, como o fascismo, é mitológico, grecóide, e se ele corresponde a uma estetização do político é numa estética da representação), essa dimensão mitológica responde também a certa violência do direito estatal, de sua polícia e de sua técnica, de um direito totalmente dissociado da justiça, como a generalidade conceitual e propícia à estrutura de massa, por oposição à consideração da singularidade e da unicidade. Como explicar, de outro modo, a forma institucional ou burocrática, os simulacros de legislação, o juridicismo, o respeito pelas competências e hierarquias, em suma, por toda a organização jurídico-estatal que caracterizou a realização tecno-industrial e científica da “solução final”? Aqui certa mitologia do direito se desencadeou contra uma justiça, acerca da qual Benjamin pensava que, no fundo, ela devia permanecer heterogênea ao direito, ao direito natural como direito histórico, à violência de sua fundação como à de sua conservação. E o nazismo foi uma revolução conservadora desse direito. Por outro lado, e por essas mesmas razões, porque o nazismo conduz logicamente à “solução final” como o seu próprio limite, e porque a violência mitológica do direito é seu verdadeiro sistema, só podemos

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Dessa forma, portanto, a interpretação final de Derrida está muito mais próxima da

que Agamben viria a propor do que parecia à primeira vista. O poder-violência divino de

Benjamin é a decisão soberana de Agamben – e sua relação, na teoria de Agamben, com a

violência mítica instituidora do direito (poder constituinte) e com a violência mantenedora

do direito que lhe serve (poder constituído), não é de contraste e contraposição, mas

meramente de complementação, ou, em relação ao poder constituinte, até mesmo de

identidade. Nesse sentido, em discordância com Derrida, a “decisão soberana – violência

divina” não seria a violência que tenciona destruir simultaneamente a ordem jurídica mítica

ou a violência-justiça divina, mas tão-somente constituiria o fundamento secreto de

qualquer uma dessas espécies de ordem jurídica, de poder ou de violência.

De volta a Roma, o vínculo que se forma a partir da vitae necisque potestas,

portanto, revela, na experiência política romana, a inclusão da vida nua na ordem político-

jurídica. A lógica de funcionamento estrutural que se mostra é a de que o cidadão deve

compensar sua participação na vida política da cidade com a sujeição incondicional a um

poder virtual de vida e de morte. A vida, a seu turno, somente pode adentrar a cidade,

somente pode ser tratada politicamente, por meio da dupla exceção de sua matabilidade e

de sua insacrificabilidade – ou seja, de sua exclusão tanto da ordem jurídica, quanto da

religião: “Daí a situação da patria potestas no limite tanto da domus como da cidade: se a

política clássica nasce através da separação destas duas esferas, a vida matável e

insacrificável é o fecho que lhes articula e o limiar no qual elas se comunicam

pensar, isto é, também lembrar a unicidade da “solução final”, a partir de um lugar diferente desse espaço da violência mitológica do direito. Para tomar a medida desse acontecimento, e daquilo que o liga ao destino, seria preciso deixar a ordem do direito, do mito, da representação (da representação jurídico-política, com seus tribunais de juízes-historiadores, mas também da representação estética). Pois o que o nazismo, como acabamento da lógica da violência mitológica, teria tentado fazer, foi excluir a testemunha da outra ordem, de uma violência divina cuja justiça é irredutível ao direito, de uma justiça heterogênea tanto à ordem do direito (mesmo dos direitos humanos) quanto à ordem da representação e do mito. Por outras palavras, não podemos pensar a unicidade de um acontecimento como a “solução final” considerando-a a extrema ponta de uma violência mítica ou representacional, no interior de seu sistema. (...) a interpretação da “solução final”, como tudo o que constitui o conjunto e a delimitação das duas ordens (mitológica e divina), não está à altura do homem. Nenhuma antropologia, nenhum humanismo, nenhum discurso do homem sobre o homem ou sobre os direitos do homem pode medir-se nem à ruptura entre o mítico e o divino, nem portanto a essa experiência limite que é um projeto como a “solução final”. Este tenta, simplesmente, aniquilar o outro da violência mítica, o outro da representação, a saber, o destino, a justiça divina e o que pode dar testemunho dela, isto é, o homem (...)”. (p. 138-142).

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indeterminando-se. Nem bíos político nem zoé natural, a vida sacra é a zona de indistinção

na qual, implicando-se e excluindo-se um ao outro, estes se constituem mutuamente”.233

A relação que existe entre sacralidade e soberania, e que se estende à matabilidade

insacrificável do homem submetido à relação política em seu caráter mais originário, por

outro lado, não se revela apenas na figura do homo sacer, mas pode igualmente ser

localizada na própria figura do soberano, do detentor da soberania. A pesquisa de

Agamben, ao analisar mais esse aspecto de sua perspectiva, volta-se para a teoria dos “dois

corpos do rei”, originalmente proposta por Ernst Kantorowicz234.

233 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 98. Agamben acrescenta ainda, na mesma página, que: “Tem sido argutamente observado que o estado não se funda sobre um liame social, do qual seria expressão, mas sobre a sua dissolução (déliaison), que veta (Badiou, 1988, p. 125). Podemos agora dar um sentido ulterior a esta tese. A déliaison não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo preexistente (que poderia ter a forma de um pacto ou contrato); sobretudo o vínculo tem ele mesmo originariamente a forma de uma dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado de morte. Mais originário que o vínculo da norma positiva ou do pacto social é o vínculo soberano, que é, porém, na verdade somente uma dissolução; e aquilo que esta dissolução implica e produz – a vida nua, que habita a terra de ninguém entre a casa e a cidade – é, do ponto de vista da soberania, o elemento político originário”. 234 Quando, lá pelo fim dos anos cinqüenta, Ernst Kantorowicz publicou nos Estados Unidos The king´s two bodies, A study in medieval political theology, o livro foi acolhido com uma simpatia sem reservas não somente ou não tanto pelos medievalistas, mas também e sobretudo pelos historiadores da Idade Moderna e pelos estudiosos de política e de teoria do estado. A obra era, no seu gênero, sem dúvida uma obra-prima, e a noção de um “corpo místico” ou “político” do soberano, que ela reconduzia à luz, constituía certamente (...) uma “etapa importante da história do desenvolvimento do estado moderno” (Giesey, 1987, p.9); mas uma simpatia tão unânime num âmbito assim delicado merece alguma reflexão. O próprio Kantorowicz, no seu prefácio, adverte que o livro, nascido como uma pesquisa sobre os precedentes medievais da doutrina jurídica dos dois corpos do rei, tinha ido bem além das intenções iniciais, até transformar-se, como precisava o subtítulo, em um “estudo sobre a teologia política medieval”. O autor que, no início dos anos vinte, tinha vivido com intensa participação os eventos políticos da Alemanha, combatendo, nas fileiras dos nacionalistas, a insurreição espartaquista em Berlim e a república dos conselhos em Mônaco, não podia não ter ponderado a alusão à “teologia política”, sob cuja insígnia Schmitt havia colocado em 1922 a sua teoria da soberania. A trinta e cinco anos de distância, depois que o nazismo havia imprimido em sua vida de hebreu assimilado uma ruptura irreparável, ele voltava a interrogar em toda uma outra perspectiva aquele “mito do estado” que havia, nos anos juvenis, ardentemente compartilhado. Com uma renegação significativa, o prefácio adverte, de fato, que “seria querer ir longe demais julgar que o autor tenha sido tentado a investigar a emergência de alguns dos ídolos das religiões políticas modernas apoiado somente nas horríveis experiências de nosso tempo, em que nações inteiras, das menores às maiores, caíram presas dos dogmas mais irracionais e nas quais os teologismos políticos tornaram-se autênticas obsessões”; e é com a mesma eloqüente modéstia que o autor declina da pretensão de “ter exposto com alguma concludência o problema daquilo que foi chamado o ‘mito do estado’” (...). É neste sentido que o livro pôde ser lido não sem razão como um dos grandes textos críticos do nosso tempo sobre o consenso dirigido ao Estado e sobre as técnicas do poder. Quem tenha, no entanto, seguido o paciente trabalho de análise que, retrocedendo a partir dos Reports de Plowden e da macabra ironia do Ricardo II, chega a reconstruir a formação, na jurisprudência e na teologia medieval, da doutrina dos dois corpos do rei, não pode deixar de se perguntar se o livro possa ser lido somente como uma desmistificação da teologia política. O fato é que, enquanto a teologia política evocada por Schmitt focalizava essencialmente um estudo do caráter absoluto do poder soberano, Os dois corpos do rei se ocupa, em vez disso, exclusivamente do outro e mais inócuo aspecto que, na definição de Bodin, caracteriza a soberania (puissance absolue et

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Tal obra focaria, em detrimento do seu caráter absoluto, a suposta perpetualidade da

soberania real durante a Idade Média, no sentido de que a dignidade real sempre sobrevivia

à pessoa física de seu rei portador. Nesse sentido, a teologia política cristã medieval

fundava-se na analogia do corpo do Estado com o corpo místico do Cristo, tendo em vista a

continuidade do corpo político estatal. Kantorowicz rejeitaria, portanto, que a tese dos dois

corpos tenha alguma origem pagã, e trata-a como uma das marcas centrais da teologia

política cristã, apenas. Agamben analisa justamente essa suposta recusa de aproximar a

teologia cristã de situações análogas pagãs:

Propondo com decisão esta tese conclusiva, Kantorowicz evoca, para colocá-lo logo de lado, justamente o elemento que teria podido orientar a genealogia da doutrina dos dois corpos em uma direção menos tranqüilizadora, conectando-a com o outro mais obscuro arcano do poder soberano: la puissance absolue. No capítulo VII, descrevendo as singulares cerimônias fúnebres dos reis franceses nas quais a efígie de cera do soberano ocupava um posto importante e, exposta sobre um lit d´honneur, era tratada em tudo e por tudo como a pessoa viva do rei, Kantorowicz indica a sua origem possível na apoteose dos imperadores romanos. Também aqui, depois que o soberano estava morto, a sua imago de cera “tratada como um doente jazia sobre o leito; matronas e senadores estavam alinhados de ambos os lados, os médicos fingiam apalpar o pulso da efígie e prestar-lhe cuidados, até que, depois de sete dias, a imagem morria” (...). Segundo Kantorowicz, porém, o precedente pagão, ainda que tão similar, não havia influenciado diretamente o ritual fúnebre francês e, em todo caso, era certo que a presença da efígie devia ser relacionada, ainda uma vez, com a perpetuidade da dignidade real, que “não morre jamais”. Que a exclusão do precedente romano não fosse fruto de negligência ou menosprezo, é provado pela atenção que Giesey, com a plena aprovação do mestre, lhe teria dedicado no livro que pode ser considerado como um oportuno complemento dos Dois corpos: the royal funeral ceremony in Renaissance France (1960). Giesey não podia ignorar que estudiosos eminentes, como Julius Schlosser, e outros menos conhecidos, como Elias Bickermann, haviam estabelecido uma conexão genética entre a consecratio imperial romana e o rito francês; curiosamente ele suspende, porém, o juízo sobre a questão (“no que me concerne” – ele escreve – “prefiro não escolher nenhuma das duas soluções”) (...) e confirma, em vez disso, resolutamente a interpretação do maestro sobre o vínculo entre a efígie e o caráter perpétuo da soberania. Havia, nesta escolha, uma razão evidente: se a hipótese da derivação pagã do cerimonial da imagem tivesse sido aceita, a tese

perpétuelle), ou seja, a sua natureza perpétua, pela qual a dignitas real sobrevive à pessoa física de seu portador (le roi ne meurt jamais). A “teologia política cristã” aqui destinava-se unicamente, através da analogia com o corpo místico de Cristo, a assegurar a continuidade daquele corpus morale et politicum do estado, sem o qual nenhuma organização política estável pode ser pensada; e é neste sentido que “não obstante as analogias com certas concepções pagãs esparsas, a doutrina dos dois corpos do rei deve-se considerar germinada a partir do pensamento teológico cristão e coloca-se portanto como uma pedra miliar da teologia política cristã” (...)AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 99-100.

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kantorowicziana sobre a “teologia política cristã” teria necessariamente caído ou deveria, no mínimo, ser reformulada de modo mais cauto. Mas havia uma outra – e mais secreta – razão, ou seja, a de que nada, na consecratio romana, permitia relacionar a efígie do imperador com aquele aspecto mais luminoso da soberania que é seu caráter perpétuo; antes, o rito macabro e grotesco, no qual uma imagem era primeiramente tratada como uma pessoa viva e depois solenemente queimada, indicava uma zona mais obscura e incerta, que buscaremos agora indagar, na qual o corpo político do rei parecia aproximar-se até o ponto de quase confundir-se com ele, do corpo matável e insacrificável do homo sacer.235

A crítica de Agamben a Kantorowicz sobre toda essa questão parece, no mínimo,

exagerada. Com relação à crítica de que o autor teria ignorado o caráter absoluto da

soberania, a verdade é que, na Introdução de sua obra, ao apreciar a ficção mística dos

“Dois Corpos do Rei” conforme proposta na Inglaterra pelos juristas do período Tudor,

Kantorowicz menciona que Blackstone, em sua obra Commentaries, já propunha que o

corpo político e místico do rei não só lhe garantia imortalidade, como também o tornava

incapaz de fazer ou pensar errado, livre de tolices ou fraquezas, perfeito e absolutamente

justo – tudo isto se aproxima, sobremaneira, da idéia do soberano absoluto236. Ademais,

porque a opção de se analisar preponderantemente um dos aspectos do conceito clássico de

soberania é teoricamente tão legítima quanto qualquer outra – afinal de contas, o livro tem

como tema a ficção dos “Dois Corpos do Rei”, e não a soberania.

Quanto à crítica de que Kantorowicz não aceitaria o vínculo entre as cerimônias

fúnebres dos reis medievais e a cerimônia romana pagã, o argumento de Agamben faz um

pouco mais de sentido. Kantorowicz, exatamente no sétimo capítulo mencionado, defende

que o cerimonial francês teria provavelmente se desenvolvido independentemente do

exemplo romano – e, apesar de admitir que a origem, ao menos estrutural, da cerimônia

realmente não é eclesiástica, mas sim romana, consigna que sua influência provavelmente

limita-se à reflexão teórica dos acadêmicos da época renascentista, que teriam

reinterpretado a cerimônia clássica para seus fins, já que diversos elementos dela revelam

preocupações vinculadas especificamente ao contexto da época, alheios ao pensamento

romano:

235 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 100-102. 236 KANTOROWICZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei – Um estudo sobre teologia política medieval. Trad.: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 18.

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A veneração da efígie funerária do rei francês, ainda que adornada de certa aparência eclesiástica, não era de origem eclesiástica. Em suas Histórias romanas, Herodiano, ao descrever a apoteose do imperador Septímio Severo, descrevia também uma série de serviços cerimoniais prestados à efígie do monarca morto: a efígie, tratada como um homem doente, repousa em uma cama; senadores e matronas alinham-se dos dois lados; médicos simulam tomar o pulso da imagem e prestam-lhe sua assistência médica até que, após sete dias, a efígie “morre”. As Histórias de Herodiano, e especialmente o capítulo sobre Septímio Severo, na tradução latina de Angelo Poliziano, não eram desconhecidas na França por volta de 1500. Além disso, em 1541, a primeira versão integral de Herodiano em francês – por Jehan Collin – foi publicada em Paris, seguida de uma segunda edição em 1546, um ano antes da morte e enterro de Francisco I. Ora, o escriturário de justiça e historiador francês, Jean Du Tillet, que esteve presente ao funeral de Francisco I, precedia sua descrição do moderno cerimonial da efígie com uma explicação detalhada do relato de Herodiano sobre Septímio Severo, acrescentando algumas passagens dispersas de outros autores antigos, bem como o relato de Eusébio sobre o governo post mortem de Constantino, o Grande. Diretamente ou por meio de Du Tillet, os autores clássicos passaram a exercer considerável influência na imaginação dos franceses, que se inclinavam a crer que o costume francês havia sobrevivido da Roma antiga. Mas até que ponto influenciaram o cerimonial francês em si é uma questão diferente, pois os estímulos derivados do estudo da Antiguidade – por inegáveis que fossem na França renascentista – não devem ser subestimados, uma vez que o cerimonial francês havia desenvolvido as formas e os ritos dos funerais reais de modo independente. A efígie foi introduzida segundo o modelo inglês e não segundo o modelo romano, e talvez apenas depois o cerimonial da imagem tenha sido ampliado e adornado também segundo o padrão da Roma antiga. Além disso, a relação entre a efígie e a Dignidade legalista “que nunca morre” levou à ênfase de certas características que estavam no contexto dos juristas e pensadores políticos contemporâneos, mas não no dos historiadores romanos. Quando o sucessor de Francisco I, o rei Henrique II da França, por exemplo, chegou para aspergir o corpo de seu pai, não foi o corpo em efígie mas o próprio cadáver que finalmente substituiu de novo a efígie jazendo em câmara ardente. Parece que o novo rei não conseguiu visitar a imagem porque a imagem era tratada como o rei vivo em sua Dignidade. Aparentemente, um dos dois reis, o morto ou o vivo (embora apenas um), tinha de representar essa Dignidade imortal. Do século XV em diante, as implicações do cerimonial eram tais que, quando o cadáver e ao mesmo tempo a efígie eram exibidos em desfile na grande procissão fúnebre, o rei sucessor tinha de se manter inteiramente afastado e deixar o cargo de pranteador principal para um dos príncipes de sangue real: o novo rei não podia, a um só tempo, trajar e não trajar luto; tampouco podia ele, ao mesmo tempo, “desempenhar a pessoa da Dignidade” e ceder esse privilégio à efígie de seu predecessor morto. Dessa forma, não havia outra saída exceto ficar de fora. 237

De toda forma, a crítica ainda assim parece ligeiramente sem foco. Isto porque,

como toda a fundamentação de Agamben se ampara na análise da ontologia, dos modos de

237 KANTOROWICZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei – Um estudo sobre teologia política medieval. p. 257-258. No epílogo de sua obra, Kantorowicz acrescenta, além disso, que apesar da semelhança estrutural os motivos jurídicos, religiosos e políticos das cerimônias romana e medieval eram completamente diferentes.

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ser dos elementos que interpreta, pouca diferença faz que as cerimônias medievais tenham

ou não origem na cerimônia romana – porque o importante, de fato, é que ambas

compartilham caracteres que revelariam a natureza mais íntima da política e da soberania.

Curiosamente, neste caso, a ausência de vínculo histórico concreto entre as cerimônias

reforçaria a tese de Agamben.

Agamben, de todo modo, em seguida, reconstrói a apoteose imperial romana a partir

do estudo desenvolvido por Elias Bickermann238. O ritual constituía uma espécie de

“funeral por imagem” – o soberano sofre um duplo sepultamento por ocasião de sua morte:

em um primeiro momento, seu corpo é queimado na pira; trata-se de um ritual solene, mas

não oficial. Após os ossos serem depositados no mausoléu, o luto público oficial se inicia, e

o cortejo fúnebre solene ocorre somente após o cadáver já repousar sob a terra, substituído

pela efígie de cera, que reproduz o semblante do soberano defunto, e é em tudo tratada

como se fosse um corpo real.

A efígie, que se assemelha ao morto, pode ser considerada como o próprio

soberano, cuja vida, por meio de ritos mágicos variados, foi transferida para a imagem de

cera. A efígie tem a função mística de, apresentando-se ao lado do cadáver, duplicá-lo, sem,

no entanto, substituí-lo. Essa duplicação que não substitui pode ser melhor compreendida a

partir da comparação do funeral imaginário com o rito que deve ser observado pelo romano

que, antes de uma batalha, devotou-se solenemente aos deuses Manes, mas não morreu em

combate. Tal situação, relacionada à do homo sacer, tem o condão de revelar o vínculo

profundo que une o soberano ao sacer:

Os estudiosos confrontaram há tempos a figura do homo sacer com a do devotus, que consagra a própria vida aos deuses ínferos para salvar a cidade de um grave perigo. Lívio nos deixou uma vivaz, minuciosa descrição de uma devotio ocorrida em 340 a.c., durante a batalha de Vesenia. O exército romano estava por ser derrotado pelos adversários latinos, quando o cônsul Públio Décio Mure, que comandava as legiões junto ao colega Tito Mânlio Torquato, pede ao pontífice que o assista na realização do rito:

238 “Em 1929, um jovem estudioso da antiguidade clássica, Elias Bickermann, publicava no Archiv für Religionwissenschaft um artigo sobre as Apoteoses imperiais romanas que, em um breve mas detalhado apêndice, relacionava explicitamente a cerimônia pagã da imagem (funus imaginarium) com os ritos fúnebres dos soberanos ingleses e franceses.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p.102.

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O pontífice lhe ordena que vista a toga pretexta e, estando o cônsul de pé sobre uma lança, com a cabeça velada e a mão estendida sob a toga de modo a tocar o queixo, faz com que ele pronuncie estas palavras: “Ó Jano, ó Júpiter, ó pai Marte, ó Quirino, Belona, Lares, Deuses novenais, ó Deuses, que tendes poder sobre nossos inimigos, ó Deuses Manes, eu vos rogo e suplico para que concedais ao povo romano dos Quirites a força e a vitória e leveis morte e terror aos inimigos do povo romano dos Quirites. Assim como falei solenemente, assim voto e consagro (devoveo) comigo aos Deuses Manes e à Terra, pela república dos Quirites, pelo exército, as legiões e os aliados do povo romano, as legiões inimigas e seus aliados.”(...) Então, cingindo a toga ao modo gabínio, monta a cavalo em armas e se lança em meio aos inimigos, e parece a ambas as fileiras bem mais venerável que um homem, semelhante a uma vítima expiatória mandada aos céus para aplacar a ira divina (...).

A analogia entre devotus e homo sacer não parece aqui ir além do fato de que ambos estão de algum modo votados à morte e pertencem aos deuses, ainda que (malgrado a comparação liviana) não na forma técnica do sacrifício. Lívio contempla, porém, uma hipótese que lança uma luz singular sobre esta instituição e permite assemelhar mais estreitamente a vida do devotus à do homo sacer: A isto se deve acrescentar que o cônsul ou o ditador ou o pretor, que consagra as legiões inimigas, pode consagrar não só a si, mas também qualquer cidadão que faça parte da legião romana. Se o homem, que foi assim votado, morre, isto está em conformidade com o devido; se, porém, não morre, é preciso então sepultar uma imagem (signum) com sete pés de altura e imolar em expiação uma vítima; e lá onde foi sepultada a imagem, o magistrado romano não pode caminhar. Se em vez disto ele consagrou a si mesmo, como ocorre no caso de Décio, e não morre, não poderá realizar nenhum rito, nem público, nem privado... (...).239

Agamben indaga-se acerca de qual seria o estatuto do corpo do devoto que não

morre em batalha, e que, apesar de vivente, parece não mais pertencer ao mundo dos vivos.

Ele observa, a partir de uma citação de Schilling, que se o devoto sobrevivente não pertence

nem ao mundo profano, nem ao mundo sagrado, ele então é necessariamente sacer. Ele não

pode ser devolvido simplesmente ao mundo dos vivos porque foi graças ao seu voto, e à

votação de sua vida, que a comunidade pôde ser salva da catástrofe e da fúria dos deuses.

A imagem de sete pés, também conhecida como “colosso” do devoto, ou seja, seu

duplo, tem a função de ocupar o posto do cadáver ausente (já que o devoto sobreviveu) em

uma espécie de funeral imaginário, ou mais precisamente, de permitir o cumprimento tardio

do voto que não se realizou com a morte do devoto. “J.P. Vernant e Emile Benveniste

mostram qual seria, em geral, a função do colosso: atraindo e fixando sobre si um duplo

239 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 103-104.

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que se encontra em condições anormais, ele “permite que se restabeleçam, entre o mundo

dos vivos e o dos mortos, relações corretas (...)”.240 Agamben dá seqüência à explicação:

(...) A primeira conseqüência da morte é, de fato, a de liberar um ser vago e ameaçador (a larva dos latinos, a psykhé, o eídolon ou o phásma dos gregos), que retorna com a aparência do defunto aos lugares que ele freqüentou e não pertence propriamente nem ao mundo dos vivos e nem ao dos mortos. O objetivo dos ritos fúnebres é assegurar a transformação deste ser incomôdo e incerto em um antepassado amigo e potente, que pertence estavelmente ao mundo dos mortos e com o qual mantém-se relações ritualmente definidas. A ausência do cadáver (ou, em certos casos, a sua mutilação) pode, porém, impedir o ordenado cumprimento do rito fúnebre; nestes casos, um colosso pode, sob determinadas condições, substituir o cadáver permitindo a execução de um funeral vicário. O que acontece ao devoto sobrevivente? Aqui não se pode falar de uma ausência de cadáver no sentido próprio, a partir do momento em que não houve nem ao menos a morte. Uma inscrição encontrada em Cirene nos informa, todavia, que um colosso podia ser confeccionado mesmo em vida da pessoa que deveria substituir. A inscrição contém o texto do juramento que deveriam pronunciar a Tera, como garantia das obrigações recíprocas, os colonos que partiam para a África e os cidadãos que permaneciam na pátria. Durante o pronunciamento do juramento, fabricavam-se kolossoí de cera que eram atirados às chamas dizendo: “que se liquefaça e desapareça aquele que for infiel a este juramento, ele, a sua estirpe e os seus bens” (...). O colosso não é, portanto, um simples substituto do cadáver. Antes, porém, no sistema complexo que regula no mundo clássico as relações entre vivos e mortos, ele representa, analogamente ao cadáver, mas de modo mais imediato e geral, aquela parte da pessoa viva que é destinada à morte e que, ocupando ameaçadoramente o limiar entre os dois mundos, deve ser separada do contexto normal dos vivos. Esta separação ocorre, comumente, na hora da morte, através dos ritos fúnebres, que recompõem o justo relacionamento entre vivos e mortos que o decesso veio a perturbar; em determinados casos, entretanto, não é a morte que perturba esta ordem, mas a sua falta, e a confecção do colosso torna-se necessária para restabelecer a ordem. Enquanto não cumpre este rito (que, como demonstrou Versnel, não é tanto um funeral vicário, quanto um cumprimento substitutivo do voto: Versnel, 1981, p. 157), o devoto sobrevivente é um ser paradoxal que, parecendo prosseguir numa vida aparentemente normal, se move, na realidade, em um limiar que não pertence nem ao mundo dos vivos nem ao dos mortos: ele é um morto vivente ou um vivo que é, na verdade, uma larva, e o colosso representa justamente aquela vida consagrada que se havia já virtualmente separado dele no momento do voto.241

É possível assemelhar a existência do homo sacer à do devoto sobrevivente, sendo

que, para o homo sacer, entretanto, não há nenhuma possibilidade de expiação vicária pela

via de sua substituição por um colosso. “O próprio corpo do homo sacer, na sua matável

insacrificabilidade, é o penhor vivo da sua sujeição a um poder de morte, que não é porém

240 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 105. 241 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 105-106.

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o cumprimento de um voto, mas absoluta e incondicionada. A vida sacra é vida

consagrada sem nenhum sacrifício possível e além de qualquer cumprimento”.242

Em outros termos, não há possibilidade de se estabelecer um duplo para o homo

sacer, porque o homo sacer, na medida em que encarna em si elementos distintos da morte,

é o seu próprio duplo e colosso, é uma estátua viva de si mesmo. Ele não pertence

efetivamente nem ao mundo dos vivos, nem ao mundo dos mortos, mas, mantendo-se em

uma relação de exclusão desses dois mundos, está, ao contrário do devoto sobrevivente,

além de qualquer possibilidade de resgate:

(...) Tanto no corpo do devoto sobrevivente como, de modo ainda mais incondicionado, no corpo do homo sacer, o mundo antigo se encontra pela primeira vez diante de uma vida que, excepcionando-se em uma dupla exclusão do contexto real das formas de vida, sejam profanas ou religiosas, é definido apenas pelo seu ser em íntima simbiose com a morte, sem porém pertencer ainda ao mundo dos defuntos. E é na figura desta “vida sacra” que algo como uma vida nua faz a sua aparição no mundo ocidental. Decisivo é, porém, que esta vida sacra tenha desde o início um caráter eminentemente político e exiba uma ligação essencial com o terreno sobre o qual se funda o poder soberano.243

A efígie, ou, pode-se dizer, o colosso, do imperador soberano falecido, insere-se na

mesma lógica do colosso do devoto, e sua função deve ser interpretada em sentido similar:

É sob esta luz que devemos observar o rito da imagem na apoteose imperial romana. Se o colosso representa sempre, no sentido em que se viu, uma vida votada à morte, isto significa que a morte do imperador (malgrado a presença do cadáver, cujos restos são ritualmente inumados) libera um suplemento de vida sacra, que, como para aquele que sobreviveu ao voto, é necessário neutralizar através de um colosso. Tudo acontece, digamos, como se o imperador tivesse em si não dois corpos, mas duas vidas em um só corpo; uma vida natural e uma vida sacra que, não obstante o regular rito fúnebre, sobrevive à primeira e somente depois do funus imaginarium pode ser admitida no céu e divinizada. O que reúne o devoto sobrevivente, o homo sacer e o soberano em um único paradigma, é que nos encontramos sempre diante de uma vida nua que foi separada de seu contexto e, sobrevivendo por assim dizer à morte, é, por isto, incompatível com o mundo humano. A vida sacra não pode de modo algum habitar a cidade dos homens: para o devoto sobrevivente, o funeral imaginário funciona como um cumprimento vicário do voto, que restitui o indivíduo à vida normal; para o imperador, o funeral duplo permite fixar a vida sacra que deve ser recolhida e divinizada na apoteose; no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e

242 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p.106. 243 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 107.

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irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício possam resgatá-la. Em todos os três casos, a vida sacra é, de algum modo, ligada a uma função política. Tudo ocorre como se o poder supremo – que, vimos, é sempre vitae necisque potestas, funda-se sempre no isolamento de uma vida matável e [in]sacrificável (sic) – implicasse, por uma singular simetria, a sua assunção na própria pessoa de quem o detém. E se para o devoto sobrevivente ao seu voto é a morte faltante que libera essa vida sacra, para o soberano é, ao contrário, a morte que revela este excedente que parece inerir como tal ao poder supremo, como se este não fosse mais, em última análise, que a capacidade de constituir a si e aos outros como vida matável e insacrificável. 244

O colosso do soberano, nessa lógica, não representa apenas a continuidade do poder

soberano, a imortalidade da dignidade real, mas também o excedente de vida sacra do

soberano que, através de sua imagem, é isolado do corpo do imperador falecido, seja para

ser elevada aos céus, no ritual romano, seja para ser transmitida para seu sucessor, como

nos rituais inglês e francês.

Revela-se, porém, a relação da efígie real não apenas com a continuidade da

soberania, mas também com seu caráter absoluto, supremo e não humano245. Isto porque o

poder de morte exercido pela soberania reflete-se inclusive sobre o soberano,

materializando-se na existência do excesso de vida sacra no próprio detentor da soberania, e

não apenas naqueles a ela submetidos. É o vínculo com a vida matável e insacrificável que

torna a soberania absoluta.

O cerimonial justifica-se, ademais, pelo fato de o soberano deter não apenas uma

potestas, mas também uma auctoritas, encarnada em sua pessoa – ou seja, uma auctoritas

principis, que precisa ser “preservada” e eventualmente “transmitida” ao sucessor.246 É a

244 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 107-108. Aqui, de fato, parece existir uma discordância profunda entre a interpretação de Agamben e a de Kantorowicz, já que, para este último, a efígie tinha por função servir de repositório da Dignitas real, que nunca morre – porque nunca pode morrer – até ela poder ser transferida para o novo soberano, enquanto que, para Agamben, a efígie é, além disto, o mecanismo por meio do qual se neutraliza a sacralidade anômica que repousa na vida do soberano, quando esta, na ocasião de sua morte, poderia se espalhar pelo corpo político. 245 Conclusão que, todavia, não contradiz necessariamente Kantorowicz, por motivos já expostos. 246 “É sob esse aspecto que seria preciso reler a teoria kantorowicziana dos dois corpos do rei para lhe aportar alguma precisão. Kantorowicz, que de modo geral subestima a importância do precedente romano da doutrina que tenta reconstruir para as monarquias inglesas e francesas, não relaciona a distinção entre auctoritas e potestas com o problema dos dois corpos do rei e com o princípio dignitas non moritur. No entanto, é justamente porque o soberano era antes de tudo a encarnação de uma auctoritas e não somente de uma

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liberação dessa auctoritas, desse excesso de soberania presente no imperador, que

igualmente poderia ser compreendida como a causa do tumultum que justificaria a

proclamação do iustitium durante o luto imperial. Autoridade e anomia revelam,

novamente, sua íntima conexão.

A proximidade simétrica entre o soberano e o homo sacer mostra-se também nas

conseqüências e caracteres desses dois estatutos jurídicos. Agamben encontra duas

analogias imediatas, que repercutem em favor de sua tese, pois, em estranha equivalência,

soberano e homo sacer são ambos excluídos da possibilidade tanto do sacrifício quanto do

homicídio:

(...) Um primeiro e imediato confronto é oferecido pela sanção que castiga o assassinato do soberano. Sabemos que o assassinato do homo sacer não constitui homicídio (...). Pois bem: não existe nenhum ordenamento (nem mesmo entre aqueles em que o homicídio é sempre punido com a pena capital) no qual o assassinato do soberano tenha sido sempre simplesmente assinalado como um homicídio. Ele constitui, em vez disso, um delito especial que (depois que, a partir de Augusto, a noção de maiestas associa-se cada vez mais intimamente à pessoa do imperador) é definido como crimen lesae maiestatis. Não importa, do nosso ponto de vista, que a morte do homo sacer possa ser considerada como menos que um homicídio, e a do soberano como mais que um homicídio: essencial é que, nos dois casos, a morte de um homem não verifique o caso jurídico do homicídio. Quando, ainda no estatuto albertino, lemos que a “pessoa do soberano é sacra e inviolável”, é preciso ouvir ressoar nesta singular adjetivação um eco da sacralidade da vida matável do homo sacer. Mas até mesmo o outro caráter que define a vida do homo sacer, ou seja, a sua insacrificabilidade nas formas previstas pelo rito ou pela lei, reencontra-se minuciosamente relacionado com a pessoa do soberano. Michael Walzer observou que, aos olhos dos contemporâneos, a enormidade da ruptura representada pela decapitação de Luís XVI, a 21 de janeiro de 1793, não consistia tanto no fato de que um monarca tivesse sido morto, mas em que ele tivesse sido submetido a processo e tivesse sido justiçado numa execução de condenação à pena capital (...). Ainda nas constituições modernas, um traço

potestas, que a auctoritas era tão estreitamente ligada à sua pessoa física que tornava necessário o complexo cerimonial da confecção em cera de uma cópia idêntica do soberano no funus imaginarium. O fim de uma magistratura enquanto tal não implica de modo algum um problema de corpos: um magistrado sucede ao outro sem ser necessário pressupor a imortalidade do cargo. Somente porque o soberano, a partir do princeps romano, expressa em sua própria pessoa uma auctoritas, somente porque, na vida “augusta”, público e privado entraram em uma zona de absoluta indistinção, é que se torna necessário distinguir dois corpos para garantir a continuidade da dignitas (que é simplesmente sinônimo de auctoritas). AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 126-127. Pergunta-se, com alguma perplexidade, se a dignitas é sinônimo de auctoritas, como Agamben pode afirmar que Kantorowicz ignora completamente a questão da auctoritas? Até mesmo porque a auctoritas aqui mencionada por Agamben é a auctoritas principis, que reúne em si auctoritas e potestas. Novamente, a questão parece ser não de erro ou incompletude, mas sim de divergência de foco teórico.

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secularizado da insacrificabilidade da vida do soberano sobrevive no princípio segundo o qual o chefe de Estado não pode ser submetido a um processo judiciário ordinário. Na constituição americana, por exemplo, o impeachment implica uma sentença especial do Senado presidido pelo Chief justice, que pode ser pronunciada somente por high crimes and misdemeanors e cuja conseqüência é apenas a deposição do ofício, e não uma pena judicial. Os jacobinos que, em 1792, durante as discussões na convenção, queriam que o rei fosse simplesmente morto sem processo, levavam ao extremo, ainda que provavelmente sem dar-se conta, a fidelidade ao princípio da insacrificabilidade da vida sacra, que qualquer um pode matar sem cometer homicídio, mas que não pode ser submetida às formas sancionadas de execução.247

A estrutura jurídica do instituto do homo sacer pode ser encontrada em outras

figuras submetidas à mesma matabilidade insacrificável. Agamben reporta-se à antigüidade

germânica e escandinava, e cita o bandido, o fora-da-lei, o friedlos (sem paz) e o wargus,

ou homem-lobo, como co-irmãos do homo sacer248. O antigo direito germânico fundava-se

no conceito de paz – Fried – que, estruturalmente semelhante à sacratio, possibilitava a

exclusão do malfeitor da comunidade, tornando-o passível de ser morto por qualquer um

sem que se cometesse homicídio. Caracteres semelhantes podem ser encontrados no bando

medieval, pois o bandido podia ser livremente morto, ou, em alguns casos, era já

considerado como morto249.

Agamben cita, nesse sentido, que as leis sálica e ripuária permitem a expulsão do

wargus da comunidade, autorizando, assim como a sacratio, a sua matabilidade. O

lobisomem, ou homem-lobo, torna-se a figura que representa o homem excluído da

comunidade e da vida social. Trata-se de uma imagem cindida entre homem e fera, selva e

cidade – tal circunstância revela que o banido representa um limiar de indiferença e de

247 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 109-110. 248 “Todo o caráter do sacer esse mostra que ele não nasceu no solo de uma ordem jurídica constituída, mas remonta em vez disso ao período da vida pré-social. Ele é um fragmento da vida primitiva dos povos indo-europeus... A antiguidade germânica e escandinava nos oferecem, além de qualquer dúvida, um irmão do homo sacer no bandido e no fora-da-lei (wargus, vargr, o lobo, e, no sentido religioso, o lobo sagrado, vargr y veum)... Aquilo que é considerado uma impossibilidade para a antiguidade romana – a morte do proscrito fora de um juízo e do direito – foi uma realidade incontestável na antiguidade germânica.” (Jhering, 1886, p.282). Jhering foi o primeiro a confrontar, com estas palavras, a figura do homo sacer com o wargus, o homem-lobo, e com o friedlos, o “sem paz” do antigo direito germânico.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 111. A afirmação de Jhering sobre a Antigüidade romana evidentemente não se coaduna com a interpretação de Agamben sobre o homo sacer. 249 “(...) Fontes germânicas e anglo-saxônicas sublinham esta condição limite do bandido definindo-o como homem-lobo (wargus, werwolf, lat. garulphus, donde o francês loup garou, lobisomem) (...)”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 111.

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passagem entre a fera e o homem, entre a natureza e a lei. A sua exclusão na comunidade

representa a sua inclusão exclusiva, e o banido está incluído tanto no mundo animal, como

no humano, sem, entretanto, pertencer efetivamente a nenhum deles – há, em cada um

desses mundos, uma representação dele, mas em nenhum dos dois ele pode realmente se

apresentar.

É à luz de tal perspectiva que, para Agamben, a idéia de estado de natureza proposta

por Hobbes ganha verdadeiro sentido:

(...) Como vimos que o estado de natureza não é uma época real, cronologicamente anterior à fundação da Cidade, mas um princípio interno desta, que aparece no momento em que se considera a Cidade tanquam dissoluta (portanto, algo como um estado de exceção), assim, quando Hobbes funda a soberania através da remissão ao homo hominis lupus, no lobo é necessário saber distinguir um eco do wargus e do caput lupinum das leis de Eduardo o Confessor: não simplesmente besta fera e vida natural, mas, sobretudo zona de indistinção entre humano e ferino, lobisomem, homem que se transforma em lobo e lobo que torna-se homem: vale dizer, banido, homo sacer. O estado de natureza hobbesiano não é uma condição pré-jurídica totalmente indiferente ao direito da cidade, mas a exceção e o limiar que o constitui e o habita; ele não é tanto uma guerra de todos contra todos, quanto, mais exatamente, uma condição em que cada um é para o outro vida nua e homo sacer, cada um é, portanto, wargus, gerit caput lupinum. E esta lupificação do homem e humanização do lobo é possível a cada instante no estado de exceção, na dissolutio civitatis. Somente este limiar, que não é nem a simples vida natural, nem a vida social, mas a vida nua ou vida sacra, é o pressuposto sempre presente e operante da soberania.250

Hobbes, ao dissertar acerca da conveniência da renúncia de direitos dos homens em

favor do soberano, considera que a soberania nada mais é do que a permanência dos

direitos naturais integrais nas mãos do soberano – já que os demais homens renunciaram a

esses mesmos direitos. A soberania, portanto, efetivamente se caracteriza pela

remanescência, no interior e no centro da vida política, de um indivíduo que, em teoria,

ainda vive em estado de natureza – e o fundamento da renúncia ao direito, como condição

para a constituição da comunidade política, é a manutenção da vida natural de cada

individuo:

O DIREITO de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da

250 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 112-113.

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maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (...)

Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao outro o benefício de seu próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que já não tivesse antes, porque não há nada a que um homem não tenha direito por natureza: mas apenas se afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de seu direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a conseqüência que redunda para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original. (...)

Quando alguém transfere seu direito, ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários do homem é algum bem para si mesmos (sic). Portanto há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise algum benefício próprio. O mesmo pode dizer-se dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta aceitação não pode resultar benefício, ao contrário da aceitação de que outro seja ferido ou encarcerado, quanto porque é impossível saber, quando alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte. Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz essa renúncia e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto a sua vida e quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar.251

Observe-se que, a despeito de os homens não renunciarem, na perspectiva

hobbesiana, a seu direito de preservação da segurança e da própria vida, o soberano, na

medida em que mantém para si, ao contrário dos demais homens, a liberdade e o poder

absolutos do homem no estado de natureza, não está limitado por esse direito residual de

seus súditos. Isto quer dizer que não é vetado ao soberano exercer poder de vida e morte

sobre os membros da comunidade política, mas apenas que os indivíduos podem, quando

ameaçados de morte pelo soberano, tentar resistir. Logo, todos os homens são

potencialmente matáveis pelo soberano – e, na simetria, já identificada por Agamben,

súdito matável e soberano identificam-se em uma relação na qual a vida nua se revela como

elemento característico de ambos os seus pólos constitutivos.

251 HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. p. 113-114.

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Dentro de tal lógica, apenas a vida nua pode ser considerada, da perspectiva da

soberania, como o verdadeiro elemento politicamente originário – pois é em função do

estado de guerra de todos contra todos, no qual se pressupõe que todos os homens são

matáveis uns em relação aos outros, que o Estado se estrutura. E tal constructo, longe de

eliminar a vida nua e a condição de matabilidade absoluta que pressupõe, mantém a vida

nua no núcleo da estrutura política, na figura do soberano que, além de permanecer no

estado de natureza, pode agir sobre seus súditos com poder e liberdade absolutos. Nem os

direitos fundamentais, nem o contrato social, constituem a vida política, mas sim a vida

sacra matável, a despeito de insacrificável, possibilita a articulação política ocidental. É

por isso que, para Hobbes

(...) o fundamento do poder soberano não deve ser buscado na cessão livre, da parte dos súditos, do seu direito natural, mas, sobretudo, na conservação, da parte do soberano, de seu direito natural de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um, que se apresenta então como direito de punir. “Este é o fundamento” – escreve Hobbes – “daquele direito de punir que é exercitado em todo estado, pois que os súditos não deram este direito ao soberano, mas apenas, ao abandonar os próprios, deram-lhe o poder de usar o seu no modo que ele considerasse oportuno para a preservação de todos; de modo que o direito não foi dado, mas deixado a ele, e somente a ele, e – excluindo os limites fixados pela lei natural – de um modo tão completo, como no puro estado de natureza e de guerra de cada um contra o próprio vizinho” (Hobbes, 1991, p.214). A este estatuto particular do jus puniendi, que configura-se como uma sobrevivência do estado de natureza no próprio coração do Estado, corresponde nos súditos a faculdade não de desobedecer, mas de resistir à violência exercitada sobre sua própria pessoa, “porque nenhum homem se supõe que seja obrigado por pacto a não resistir à violência, e, por conseqüência, não se pode supor que ele dê a outros o direito de pôr violentamente as mãos sobre a sua pessoa” (Idem). A violência soberana não é, na verdade, fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua no Estado. E, como o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste sentido, aquela vida matável e insacrificável que tem no homo sacer o seu paradigma, assim também, na pessoa do soberano, o lobisomem, o homem lobo do homem, habita estavelmente na cidade252.

O clássico estado de natureza da filosofia política moderna, portanto, deve ser

entendido, na prática, como a situação de estado de exceção, durante o qual a cidade se

apresenta, por um instante (que, para Agamben, é simultaneamente um tempo cronológico

e um átimo intemporal), tanquam dissoluta. A fundação da cidade, ou a formação do pacto

social, nessa hipótese, é continuamente repetida por meio do poder soberano, que decide

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sobre a exceção. Nesse procedimento, é continuamente capturada a vida nua dos cidadãos,

que, como elemento político originário que possibilita a fundação da cidade, permite

também a transição entre homem e animal, entre natureza e cultura, sobre a qual se assenta

a política ocidental. É a possibilidade de matar sem sacrifício e sem punição que permite a

articulação do Estado253.

O bando, portanto, pode ser considerado como a forma de relacionamento jurídico-

político originário, já que a vida nua, que constitui seu núcleo, é, a seu turno, o elemento

político originário, e que caracteriza o estado de natureza a partir do qual se fundamenta a

comunidade política. O bando, ademais, constitui a soberania por viabilizar a junção entre

vida nua e poder soberano, já que a soberania é efetivamente soberana por incluir a vida

nua no Estado por meio da exclusão dessa mesma vida nua – conclusão que, nesta linha de

raciocínio, deriva claramente da perspectiva hobbesiana. Nesse sentido:

(...) É preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como um contrato ou uma convenção, que assinalaria de modo pontual e definido a passagem da natureza ao Estado. Existe aqui, ao invés, uma bem mais complexa zona de indiscernibilidade entre nomos e phýsis, na qual o liame estatal, tendo a forma do bando, é também desde sempre não-estatalidade e pseudonatureza, e a natureza apresenta-se desde sempre como nomos e estado de exceção. Este mal-entendido do mitologema hobbesiano em termos de contrato em vez de bando condenou a democracia à impotência toda vez que se tratava de enfrentar o problema do poder soberano e, ao mesmo tempo, tornou-a constitutivamente incapaz de pensar verdadeiramente, na modernidade, uma política não-estatal. A relação de abandono é, de fato, tão ambígua, que nada é mais difícil do que desligar-se dela. O bando é essencialmente o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado. A velha discussão, na historiografia jurídica, entre aqueles que concebem o exílio como uma pena e aqueles que o consideram em vez disso como um direito e um refúgio (...) tem a sua raiz nesta ambigüidade do bando soberano. Tanto na Grécia como em Roma, as testemunhas mais antigas mostram que mais original do que a oposição entre direito e pena é a condição “não qualificável nem como o exercício de um direito nem como situação penal” (...) de quem parte para o

252 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 113. 253 A circunstância de a relação política originária ser a relação de bando, para Agamben, “(...) põe em questão toda teoria da origem contratual do poder estatal e, juntamente, toda possibilidade de colocar à base das comunidades políticas algo como um “pertencimento” (seja ele fundamentado em uma identidade popular, nacional, religiosa ou de qualquer outro tipo)”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 187. Sua perspectiva de articulação política, incipiente, funda-se, como já visto, na idéia de singularidade, em contraste com identidade, pertencimento ou representação.

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exílio em conseqüência de um homicídio cometido ou de quem perde a cidadania porque torna-se cidadão de uma civitas foederata que goza do ius exilii.254

O bando, dessa forma, é o elemento que une politicamente os dois extremos da

exceção soberana, quais sejam a vida nua e o próprio poder soberano, o homo sacer e o

imperador. É o poder de exclusão da comunidade, é a possibilidade de abandonar a vida

nua, a vida sacra, que caracteriza o poder soberano255. É esse princípio, segundo Agamben,

que organiza toda a vida e estrutura política modernas, que, paulatinamente, realiza a

tendência de transformar todos os cidadãos em virtuais e potenciais homines sacri. A

relação de bando, portanto, remonta à origem da soberania e da política ocidental.

2. Biopolítica: a Sacralidade na Modernidade.

A vida nua, ou sacra, inerente à figura do homo sacer, é marcada pela dualidade

matável e insacrificável. Entretanto, a categoria sacrificável/insacrificável não possui um

sentido claro nas sociedades modernas, que, em regra, não lançam mão de imolações

254 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 115-116. Conquanto se concorde com a hipótese de Agamben, “o mal-entendido acerca do mitologema hobessiano em termos de contrato ao invés de bando” é praticado inclusive por Hobbes, já que este autor, ao refletir sobre as duas formas possíveis de aquisição da soberania, por instituição e por aquisição, vincula ambas as modalidades a um modelo pactual. Sobre a primeira delas, Hobbes diz que “(...) um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele, como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens. É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido”. HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. p. 145. Já sobre a segunda, Hobbes propõe que “UM ESTADO por aquisição é aquele onde o poder soberano foi adquirido pela força. E este é adquirido pela força quando os homens individualmente, ou em grande número e por pluralidade de votos, por medo da morte ou do cativeiro, autorizam todas as ações daquele homem ou assembléia que tem em seu poder suas vidas e sua liberdade. Esta espécie de domínio difere da soberania por instituição apenas num aspecto: os homens que escolhem seu soberano fazem-no por medo uns dos outros, e não daquele a quem escolhem, e neste caso submetem-se àquele de quem têm medo. (...) Mas os direitos e conseqüências da soberania são os mesmos em ambos os casos”. (p. 163). A expressão “autorizar”, neste ponto, parece ser usada em sentido muito diferente do de Agamben, e relaciona-se mais com a idéia de consentimento (livre ou não) do que propriamente com a auctoritas clássica romana. 255 Agamben cita que, em italiano, a bandono significa tanto “à mercê de”, quanto “a seu talante, livremente”, e que bandido significa, simultaneamente, “excluído, banido” e “aberto a todos, livre”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 117.

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sacrificiais prescritas por algum rito religioso – e, mesmo quando o fazem, usualmente o

sacrifício é apenas simbólico, e não uma imolação concreta. Pelo contrário, a idéia do

sagrado vincula-se a uma lógica de suposta proteção incondicional e respeito absoluto

daquilo que é sacro.

A sacralidade, na modernidade, adquire uma feição distinta daquela vinculada ao

sacrifício, e, a contrario sensu, promove a matabilidade absoluta do homo sacer, ao invés

da preservação total e completa que a idéia de preservação e proteção em um primeiro

momento parece acarretar:

(...) o conceito de “insacrificável” é insuficiente para decifrar a violência que está em questão na biopolítica moderna. O homo sacer é, de fato, insacrificável e pode, todavia, ser morto por qualquer um. A dimensão da vida nua, que constitui o referente da violência soberana, é mais original que a oposição sacrificável/insacrificável e acena na direção de uma idéia de sacralidade que não é mais absolutamente definível através da dupla (que, nas sociedades que conheciam o sacrifício, não possui nada de obscuro) idoneidade para o sacrifício/imolação nas formas prescritas pelo ritual. Na modernidade, o princípio da sacralidade da vida se viu, assim, completamente emancipado da ideologia sacrificial, e o significado do termo sacro na nossa cultura dá continuidade à história semântica do homo sacer e não à do sacrifício (...). O que temos hoje diante dos olhos é, de fato, uma vida exposta como tal a uma violência sem precedentes, mais precisamente nas formas profanas e banais. O nosso tempo é aquele em que um week-end de feriado produz mais vítimas nas auto-estradas da Europa do que uma campanha bélica; mas falar, a propósito disto, de uma “sacralidade do garde-rail” é, obviamente, apenas uma definição antifrásica (La Cecla, 1993, p.115). (...)

Se é verdadeiro que a figura que o nosso tempo nos propõe é aquela de uma vida insacrificável, que, todavia, tornou-se matável em uma proporção inaudita, então a vida nua do homo sacer nos diz respeito de modo particular. A sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea, que, como tal, desloca-se em direção a zonas cada vez mais vastas e obscuras, até coincidir com a própria vida biológica dos cidadãos. Se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.256

O fenômeno da biopolítica representa a inclusão da vida natural, nua, sacra, nos

mecanismos de poder estatal. A vida biológica adquire importância política na modernidade

justamente por ser sagrada – todavia, é também por isto que a vida nua é exposta ao poder

soberano de vida e de morte. A relação que se desenvolve entre a vida e a política,

entretanto, não é de modo nenhum simples ou clara. “À vida nua e aos seus avatar no

256 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 120-121.

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moderno (a vida biológica, a sexualidade etc.) é inerente uma opacidade que é impossível

esclarecer sem que se tome consciência do seu caráter político; inversamente, a política

moderna, uma vez que entrou em íntima simbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade

que nos parece ainda caracterizar o edifício jurídico-político da política clássica”.257

O desenvolvimento desta biopolítica, a transição do sacrifício ritual e dos demais

rituais que acompanhavam a morte na antigüidade – e da sacralidade insacrificável do

homo sacer – para as formas políticas modernas de dominação sobre a vida biológica, é

apresentado por Foucault a partir de duas modalidades principais de exercício do poder

soberano. De acordo com ele, o controle disciplinar dos corpos humanos e a regulação da

vida biológica das populações dos Estados modernos constituem o fundamento do exercício

da política a partir do século XVII:

Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte. Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. (...) Com a passagem de um mundo para o outro, a morte era a substituição de uma soberania terrestre por uma outra, singularmente mais poderosa; o fausto que a acompanhava era da ordem do cerimonial político. Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação; a morte é o limite, o momento que lhe escapa; ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais “privado”. (...) Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação – durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para o desempenho do corpo e

257 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 126.

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encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. 258

O processo de inclusão da vida nua no cálculo político, ou de politização da vida,

ademais, conduz à formação de estados totalitários, na medida em que todos os aspectos da

vida natural humana adquirem uma importância sem precedentes para a política, que

“politiza” todos os aspectos da vida natural que logra alcançar – dentre eles a sexualidade a

partir da qual Foucault centrou a obra debatida. O valor, ou o “des-valor”, das formas de

vida humanas converte-se em tema central da atividade política, em seu fundamento e em

seu objetivo.

Foucault, ao avaliar o vínculo, relacionado ao poder de morte, entre soberania

clássica e sangue em contraposição ao vínculo que se estabelece entre biopoder e sexo,

utiliza-se exatamente do nazismo como exemplo máximo de uma biopolítica que, incidindo

sobre as formas de vida concretas da população, termina retornando à mitologia clássica de

morte e sangue. À soberania de morte vinculada ao sangue, corresponderia a lei – enquanto

à biopolítica vinculada ao sexo corresponderia a norma, a regulação:

Por muito tempo o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder, em suas manifestações e rituais. Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança, a forma política do soberano, (...) o sangue constitui um dos valores essenciais (...). Sociedade de sangue – ia dizer de “sangüinidade”: honra da guerra e medo das fomes, triunfos da morte, soberano com gládio, verdugo e suplícios, o poder falar através do sangue; este é uma realidade com função simbólica. Quanto a nós, estamos em uma sociedade do “sexo”, ou melhor, de “sexualidade”: os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo. (...) Foram os novos procedimentos do poder, elaborados durante a época clássica e postos em ação no século XIX, que fizeram passar nossas sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade. Não é difícil ver que, se há algo que se encontra do lado da lei, da morte, da transgressão, do simbólico e da soberania, é o sangue; a sexualidade, quanto a ela, encontra-se do lado da norma, do saber, da vida, do sentido, das disciplinas e das regulamentações. (...)

258 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 150-152. A idéia de que o poder soberano de morte é recoberto pela biopolítica é bastante importante para a perspectiva de Agamben.

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De fato, a analítica da sexualidade e a simbólica do sangue podem muito bem pertencer, em princípio, a dois regimes de poder bem distintos, mas não se sucederam (nem tampouco esses próprios poderes) sem justaposições, interações ou ecos. De diferentes maneiras, a preocupação com o sangue e a lei tem obcecado há quase dois séculos a gestão da sexualidade. (...) Ocorreu, a partir da segunda metade do século XIX, que a temática do sangue foi chamada a vivificar e a sustentar, com toda uma profundidade histórica, o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade. O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante): toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade, e uma longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida quotidiana, receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Sem dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa – ardilosa porque ingênua – dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar. Uma ordenação eugênica da sociedade, com o que ela podia comportar de extensão e intensificação dos micropoderes, a pretexto de uma estatização ilimitada, era acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior; esta implicava, ao mesmo tempo, o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total. E a história quis que a política hitleriana do sexo tenha-se tornado uma prática irrisória, enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens, por enquanto, tenham lembrança.259

Essa é, possivelmente, uma das chaves interpretativa de Agamben – o biopoder, a

biopolítica, a despeito de focar na regulação e no controle da vida, sempre termina por

retornar ao seu fundamento secreto na soberania que exerce o poder de vida e de morte

sobre os homens inseridos na comunidade política. Tal poder se realiza na suspensão do

direito, de forma que a pretensão de regulação absoluta da vida nua pressupõe a

matabilidade ilimitada desta mesma vida. Ao que Foucault chama de norma e regulação,

Agamben qualifica simplesmente como suspensão da ordem jurídica, como exceção260.

259 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 161-163. 260 Há uma passagem extremamente interessante de Foucault, que corrobora o argumento expendido a partir da avaliação da relação entre sexo, sangue e soberania com base nos textos do Marquês de Sade: “Sade e os primeiros eugenistas são contemporâneos desta passagem da “sangüinidade” para a “sexualidade”. Mas enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocam todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo (arte de determinar bons casamentos, de provocar as fecundidades desejadas, de garantir a saúde e a longevidade das crianças), enquanto a nova idéia de raça tende a esmaecer as particularidades aristocráticas do sangue para voltar-se apenas para os efeitos controláveis do sexo, Sade vincula a análise exaustiva do sexo aos mecanismos exasperados do antigo poder de soberania e aos velhos prestígios inteiramente mantidos do sangue; este corre ao longo de todo o prazer – sangue do suplício e do poder absoluto, sangue da casta que respeita a si mesma e se derrama, contudo, nos rituais maiores do parricídio e do incesto, sangue do povo que se verte à vontade, porque o que corre em suas veias não é digno nem de ser mencionado. O sexo em Sade é sem norma, sem regra intrínseca que possa ser formulada a partir de sua própria natureza; mas é submetido à lei ilimitada de um poder que, quanto a ele, só conhece sua própria lei; se lhe acontece de impor-se, por puro jogo, a ordem das progressões cuidadosamente disciplinadas em jornadas sucessivas, tal exercício o conduz a ser somente uma pura questão de soberania única e nua: direito ilimitado da monstruosidade onipotente. O sangue absorveu o sexo.” FOUCAULT, Michel. História

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A inclusão da vida natural na política, portanto, não é exclusiva dos estados

totalitários, mas, por ser a marca da sociedade que se forma a partir da analítica da

sexualidade proposta por Foucault, é igualmente compartilhada pelos regimes democráticos

ocidentais – já que estes, estruturalmente, em maior ou menor medida, também articulam

biopolítica e exceção no interior de seu funcionamento institucional político e jurídico.

Agamben avalia que:

A contigüidade entre democracia de massa e Estados totalitários não tem, contudo (...), a forma de uma improvisa reviravolta: antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo. É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejariam liberar-se. O “direito à vida” – escreveu Foucault (Foucault, 1976, p. 128) para explicar a importância assumida pelo sexo como tema de debate político –, “ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’ de resgatar, além de todas as opressões ou ‘alienações’, aquilo que se é e tudo o que se pode ser, este ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos estes novos procedimentos do poder”. O fato é que uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades individuais sobre os deveres coletivos, e torna-se, ao contrário, nos Estados totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões soberanas. E apenas porque a vida biológica, com as suas necessidades, tornara-se por toda parte o fato politicamente decisivo, é possível compreender a rapidez, de outra forma inexplicável, com a qual no nosso século [século XX] as democracias parlamentares puderam virar Estados totalitários, e os Estados totalitários converter-se quase sem solução de continuidade em democracias parlamentares. Em ambos os casos, estas reviravoltas produziam-se num contexto em que a política já havia se transformado, fazia tempo, em biopolítica, e no qual a aposta em jogo consistia então apenas em determinar qual forma de organização se revelaria mais eficaz para assegurar o cuidado, o controle e o usufruto da vida nua. As distinções políticas tradicionais (como aquelas entre direita e esquerda, liberalismo e totalitarismo, privado e público) perdem sua clareza e sua inteligibilidade, entrando em uma zona de indeterminação logo que o seu referente fundamental tenha se tornado a vida nua. Até mesmo o repentino deslize das classes dirigentes ex-comunistas no racismo mais extremo (como na Sérvia, com o programa de “limpeza étnica”) e o renascimento do fascismo na Europa, sob novas formas, encontram aqui a sua raiz.261

da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 161-162. Essa apresentação do sexo como exceção (soberania nua de um direito ilimitado) mostra exatamente o ponto de conversão de biopolítica em suspensão do direito, em exceção absoluta, e, eventualmente, em tanatopolítica. 261 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 127-128. Processo similar é identificado por Hannah Arendt, cuja análise, todavia, reporta-se ao reflexo da ciência moderna em contraste

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A instauração do modelo da biopolítica implica a extensão, para fora do simples

estado de exceção, da decisão sobre a vida natural que caracteriza o núcleo da soberania. Se

a possibilidade de decidir sobre a vida nua, e, em seu caso extremo, sobre a morte da vida

nua, é a marca essencial da soberania, observa-se, segundo Agamben, que essa decisão tem

transbordado de seu locus natural, qual seja, a situação de exceção, para vários outros

aspectos da vida social, ainda que em uma suposta circunstância de normalidade. Ou seja, a

exceção tem se tornado, cada vez mais, a regra.

A linha de separação entre a biopolítica e essa “tanatopolítica” – que constitui o

verdadeiro poder político de vida e de morte – tem se mostrado cada vez menos clara e

indistinta: “(...) ela é, ao contrário, uma linha em movimento que se desloca para zonas

sempre mais amplas da vida social, nas quais o soberano entra em simbiose cada vez mais

íntima não só com o jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o perito, com

o sacerdote”.262

A biopolítica, ou tanatopolítica, é, para o autor, a marca essencial da política da

modernidade, e constitui o referencial a partir do qual os fenômenos político-jurídicos de

com a fé cristã sobre a transição para a vida moderna: “A vitória do animal laborans jamais teria sido completa se o processo de secularização, a moderna perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana, não houvesse despojado a vida individual de sua imortalidade, ou pelo menos da certeza da imortalidade. A vida individual voltou a ser mortal, tão mortal quanto fora na antiguidade, e o mundo passou a ser menos estável, menos permanente e, portanto, menos confiável do que o fora na era cristã. Ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse real. E, na medida em que devia pressupor que era real, no otimismo acrítico e aparentemente indiferente de uma ciência em contínuo progresso, afastava-se da terra para um ponto muito mais distante que qualquer alienação mundana cristã jamais o havia levado. O sentido atribuído à palavra <<secular>> no uso corrente, qualquer que seja, não pode, historicamente, ser equacionado com mundanidade; pelo menos, o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida; foi atirado de volta a ela, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma. Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e os desejos, os impulsos insensatos de seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava <<irrazoáveis>> por não poder <<arrazoar>> com eles, ou seja, prevê-los e medi-los. Agora, a única coisa que podia ser potencialmente imortal, tão imortal quanto fora o corpo político na antiguidade ou a vida individual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital, possivelmente eterno, da espécie humana.” ARENDT, Hannah. A Condição Humana. p. 333-334. Frise-se que a idéia de transição da imortalidade do corpo político da antiguidade para a imortalidade da vida humana na modernidade pode ser uma das formas de se pensar a conexão entre soberania (e seus arcanos clássicos) e biopolítica (e suas técnicas modernas). 262 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 128.

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nosso tempo podem ser verdadeiramente compreendidos. Nessa lógica, o campo de

concentração, tomado como o local de realização máxima da biopolítica, revelar-se-ia

como o paradigma oculto que rege o espaço político moderno. O nomos da terra263, ou, em

outros termos, o modo de definição dos limites da política e do direito, funda-se no modelo

estrutural do campo de concentração.

Dentro de tal perspectiva, o primeiro registro da vida nua como novo elemento

político moderno poderia ser encontrado, na visão de Agamben, já em uma das bases

centrais dos regimes democráticos: o writ of Habeas Corpus de 1679: “(...) Seja qual for a

origem da fórmula, que é encontrada já no século XIII para assegurar a presença física de

uma pessoa diante de uma corte de justiça, é singular que em seu centro não esteja nem o

velho sujeito das relações e das liberdades feudais, nem o futuro citoyen, mas o puro e

simples corpus”. 264 O corpo torna-se o objeto da liberdade, e o elemento da nova política

263 A expressão nomos da terra foi originalmente proposta por Carl Schmitt, para explicar a forma por meio da qual se organizam direito e política a partir da tomada da terra, da sua ocupação e assentamento como forma de organização fundamental da norma das comunidades políticas – o nomos pode ser encarado, sobre outro ponto de vista, também como o ato violento instituidor do direito, em sentido benjaminiano: “En todo caso, mientras la palabra griega <<nomos>> utilizada em aquellas frases tan frecuentemente citadas de Heráclito y Píndaro sea transformada de um acto concreto – referente al espacio – y constitutivo de ordenación y asentamiento, es decir, de un ordo ordinans (...). Las palabras de Heráclito y Píndaro unicamente indican, en realidad, que todas las regulaciones ulteriores, escritas o no escritas, toman su fuerza de la medida interna de un acto primitivo constitutivo de ordenación del espacio. Este acto primitivo es el nomos. Todo lo posterior son consecuencias o ampliaciones o bien nuevas distribuciones – andasmoi –, es decir una continuación sobre la misma base o bien modificaciones disolutivas del acto constitutivo de ordenación del espacio que representa la toma de una tierra, la fundación de una ciudad o la colonización. (…) Así pues, se trata para nosotros del acto fundamental divisor del espacio, esencial para cada época histórica; se trata de la coincidencia, estructuralmente determinante, de la ordenación y el asentamiento en la convivencia de los pueblos sobre el planeta que entretanto ha sido medido científicamente. Este es el sentido en el que se habla aquí del nomos de la tierra; pues cada nuevo período y cada nueva época de la coexistencia de pueblos, imperios y países, de potentatos y potencias de todo tipo, se basa sobre nuevas divisiones del espacio, nuevas delimitaciones y nuevas ordenaciones espaciales de la tierra.” SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra en el Derecho de Gentes del <<Jus publicum europaeum>>. p. 63-65. Para Agamben, portanto, o campo de concentração é o modelo de assentamento e de organização político-espacial característico do atual momento histórico e também o fundamento da auctoritas principis do exercício do poder soberano que produz exceção jurídica a partir da força de lei anômica que deriva desse próprio nomos. A força de lei da exceção moderna tem sua matriz, assim e também, na estrutura de organização do campo de concentração. 264 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 129. Agamben completa o raciocínio: “Considere-se, por outro lado, a fórmula do writ, que o ato de 1679 generaliza e transforma em lei: Praecipimus tibi quod Corpus X, in custodia vestra detentum, ut dicitur, um cum causa captionis et detentionis, quodcumque nomine idem X censeatur in eadem, habeas coram nobis, apud Westminster, ad subjiciendum... Nada melhor do que esta fórmula nos permite mensurar a diferença entre as liberdades antiga e medieval e aquela que se encontra na base da democracia moderna: não o homem livre, com suas prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente homo, mas corpus é o novo sujeito da política, e a democracia moderna nasce propriamente como reivindicação e exposição deste “corpo”: habeas corpus ad subjiciendum, deverás ter um corpo para mostrar.” p. 129-130. Esta interpretação, com todo

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moderna. O foco desta política, já no habeas corpus mostra-se não como a bíos, a vida

qualificada e política de cidadão, mas sim como a zoé, a vida nua pura e simples.

O que emerge à luz, das solitárias, para ser exposto apud Westminster, é, mais uma vez, o corpo do homo sacer, é mais uma vez uma vida nua. Esta é a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político. Aqui está a raiz de sua secreta vocação bipolítica: aquele que se apresentará mais tarde como o portador dos direitos e, com um curioso oximoro (sic), como o novo sujeito soberano (subiectus superaneus, isto é, aquilo que está embaixo e, simultaneamente, mais alto) pode constituir-se como tal somente repetindo a exceção soberana e isolando em si mesmo corpus, a vida nua. Se é verdade que a lei necessita, para a sua vigência, de um corpo, se é possível falar, neste sentido, do “desejo da lei de ter um corpo”, a democracia responde ao seu desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo. Este caráter ambíguo (ou polar) da democracia é tão mais evidente no Habeas corpus, pelo fato de que, enquanto ele era destinado em sua origem a assegurar a presença do imputado no processo e, portanto, a impedir que ele se subtraísse ao juízo, na nova e definitiva forma ele se converte em obrigação, para o xerife, de exibir o corpo do imputado e de motivar a sua detenção. Corpus é um ser bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais. Esta nova centralidade do “corpo” no âmbito da terminologia político-jurídica viria assim a coincidir com o processo mais geral que confere a corpus uma posição tão privilegiada na filosofia e na ciência da idade barroca, de Descartes a Newton, de Leibniz a Spinoza; na reflexão política, todavia, corpus, mesmo quando se torna, no Leviatã ou no Contrato social, a metáfora central da comunidade política, mantém sempre um estreito liame com a vida nua. Instrutivo é, a este propósito, o uso do termo em Hobbes. Se é verdade que o De hominem distingue no homem um corpo natural e um corpo político (...), no De cive é justamente a matabilidade do corpo a fundar tanto a igualdade natural dos homens quanto a necessidade do Commonwealth (...). A grande metáfora do Leviatã, cujo corpo é formado por todos os corpos dos indivíduos, deve ser lida sob esta luz. São os corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente.265

respeito a Agamben, parece sobremaneira forçada, até mesmo porque o habeas corpus rapidamente se vinculou ao direito de ir e vir e ao direito de não ser preso ou mantido preso sem motivo legal pertinente. Mais uma vez, porém, a teoria de Agamben é que se revela como mais importante do que propriamente seu embasamento histórico-ontológico. 265 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 130-131. Hobbes realmente propugna que “A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples natureza, na qual (...) todos os homens são iguais. A desigualdade atualmente existente foi introduzida pelas leis civis. (...) Por conseguinte, como nona lei de natureza, proponho esta: Que cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza.”. HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. p. 129. E, ademais, é justamente porque no estado de natureza os homens são todos matáveis uns em relação aos outros que “(...) apesar das leis da natureza (...), se não foi instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros”. (p. 141). No interior do Estado, o soberano, ainda em estado de natureza, é aquele que pode legitimamente confiar em sua força e poder, e em relação a quem os súditos são todos matáveis.

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A marca biopolítica que se originaria já no habeas corpus estende-se também para

os chamados direitos humanos ou fundamentais. Tais direitos, que, por lógica, deveriam

pertencer sem reserva alguma a qualquer homem, simplesmente por ser homem, mostram-

se, em verdade, profundamente dependentes da garantia de algum Estado-nação, como

direitos inerentes aos seus cidadãos, de modo que se dissolvem e perdem qualquer resquício

de eficácia no instante mesmo que deixa de ser possível caracterizá-los como direitos dos

cidadãos de um Estado específico266.

Hannah Arendt, ao tratar do problema dos refugiados após o término da Primeira

Guerra Mundial, avalia sua condição justamente como a de homens para os quais não mais

valiam as regras do mundo que os rodeava, conforme a vida política do concerto de nações

europeu se desintegrava à luz da emergência dos racismos, dos nacionalismos exacerbados

com a queda dos Impérios Austríaco e Russo, do antissemitismo e da ideologia totalitarista

que se organizava a partir de todos esses elementos contemporâneos. Junto aos refugiados,

Arendt coloca também as minorias que, ao final da Guerra, não obtiveram um Estado

266 “Hannah Arendt intitulou o quinto capítulo do seu livro sobre o imperialismo, dedicado ao problema dos refugiados, “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. Esta singular formulação, que liga os destinos dos direitos do homem àqueles do Estado-nação, parece implicar a idéia de uma íntima e necessária conexão, que a autora deixa, porém, injulgada. O paradoxo do qual Hannah Arendt aqui parte é que a figura – o refugiado – que deveria encarnar por excelência o homem dos direitos, assinala em vez disso a crise radical deste conceito. “A concepção dos direitos do homem” – ela escreve –, “baseada na suposta existência de um ser humano como tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontraram-se pela primeira vez diante de homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica – exceto o puro fato de serem humanos” (Arendt, 1994, p. 9). No sistema do Estado-nação, os ditos direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela e de qualquer realidade no mesmo instante em que não seja possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 133. Não parece correta a afirmação de que Arendt deixa a conexão entre direitos humanos e Estado-nação injulgada. Muito pelo contrário, a autora identifica claramente que os direitos do homem somente fizeram sentido no âmbito lógico de funcionamento do Estado-nação: “(...) Toda a questão dos direitos humanos foi associada à questão da emancipação nacional; somente a soberania emancipada do povo parecia capaz de assegurá-los – a soberania do povo a que o indivíduo pertencia. Como a humanidade, desde a Revolução Francesa, era concebida à margem de uma família de nações, tornou-se gradualmente evidente que o povo, e não o indivíduo, representava a imagem do homem. A total implicação da identificação dos direitos do homem com os direitos dos povos no sistema europeu de Estados-nações só veio à luz quando surgiu de repente um número inesperado e crescente de pessoas e de povos cujos direitos elementares eram tão pouco salvaguardados pelo funcionamento dos Estados-nações em plena Europa como o teriam sido no coração da África. Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 325.

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próprio, como homens submetidos à completa ausência de qualquer espécie de proteção

jurídica:

(...) As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas que as anteriores: foram seguidas pela migração de compactos grupos humanos que, ao contrário dos seus predecessores mais felizes, não eram bem-vindos e não podiam ser assimilados em parte alguma. Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra. (...) como resultado da liquidação dos dois Estados multinacionais europeus de antes da guerra – a Rússia e a Áustria-Hungria – surgiram dois grupos de vítimas, cujos sofrimentos foram muito diferentes dos de todos os outros grupos, no intervalo entre as duas guerras mundiais; ambos estavam em pior situação que as classes médias desapossadas, os desempregados, os pequenos rentiers, os pensionistas aos quais os eventos haviam privado da posição social, da possibilidade de trabalhar e do direito de ter propriedades: eles haviam perdido aqueles direitos que até então eram tidos e até definidos como inalienáveis, ou seja, os Direitos do Homem. Os apátridas e as minorias, denominados com razão “primos em primeiro grau”, não dispunham de governos que os representassem e protegessem e, por isso, eram forçados a viver ou sob as leis de exceção dos Tratados das Minorias – que todos os governos (com exceção da Tchecoslováquia) haviam assinado sob protesto e nunca reconheceram como lei –, ou sob condições de absoluta ausência de lei.267

Para Agamben o problema já se revela no próprio termo utilizado na declaração de

direitos de 1789: Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, no qual não está claro se

existem direitos do homem e do cidadão autonomamente, ou apenas direitos do homem

enquanto cidadão. Logo, os direitos humanos podem ser compreendidos, a partir da

perspectiva que se vem analisando, como um dos principais mecanismos modernos de

inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Essa vida nua,

natural, sacra, que “(...) no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como

fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente

distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em primeiro plano na estrutura do

Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade e de sua soberania”.268

A vida natural assume o papel de fonte e portadora do direito. Tanto que é o simples

fato biológico do nascimento que implica a aquisição do direito. Por outro lado, essa vida

267 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 300-302.

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natural que atua como base fundamental do ordenamento político-jurídico moderno dilui-se

na figura do cidadão, na medida em que é cada Estado, cada comunidade política, que atua

no sentido de preservar os direitos de seus cidadãos. A lógica da inscrição da vida natural

como direito do homem no cerne da comunidade política, que protege os direitos

fundamentais de seus cidadãos enquanto homens – pura vida biológica – é que permite

atribuir o poder soberano à nação como um todo, que “nasce” pelo fato de ser composta por

homens também “nascidos”.

As declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien régime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em “cidadão”, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas conseqüências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio da natividade e o princípio de soberania, separados no antigo regime (onde o nascimento dava lugar somente ao sujet, ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo do “sujeito soberano” para constituir o fundamento do novo Estado-nação. Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação “nacional” e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio de soberania. A ficção aqui implícita é a de que o nascimento torne-se imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele), somente na medida em que ele é o fundamento, imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão.269

Somente se é cidadão por causa do nascimento como homem – ou, de modo ainda

mais claro, somente se é cidadão porque há uma vida nua e natural a ser “cedida” ao poder

soberano como seu objeto de atuação. É essa vida nua, e não a qualificação política como

cidadão, que embasa a soberania nacional. Justamente por isso os apátridas e as minorias

citadas por Arendt eram excluídos de qualquer espécie de proteção jurídica – sua vida

biológica ou não fora inscrita em nenhum Estado, ou já o fora em um Estado que viria a

rejeitá-la. Dessa forma, não podiam mais ser inscritos em uma ordem estatal, porque eram

já resíduo, seu nascimento já deixara de ser ou nunca fora nação, e, destarte, não podia ser

tolerado por uma soberania de cunho biopolítico.

268 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 134. 269 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 135.

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Em outros termos, é a qualidade de pura vida biológica presente em qualquer

cidadão que o torna cidadão, enquanto objeto da biopolítica soberana moderna. A vida nua

do apátrida, do refugiado, é uma vida que, por não ser inscrita no Estado como cidadão,

somente pode se relacionar com a política e com o direito na forma da exceção e da

suspensão, e, portanto, na forma de sua matabilidade. Por isso a ausência de resíduo entre

nascimento e nação torna-se tão importante: é a identidade entre esses dois elementos que

delimita e forma o campo de incidência da soberania – tanto como biopolítica quanto como

tanatopolítica, bem como a possibilidade de articulação mesma da ordem político-jurídica

na modernidade.

Somente se compreendermos esta essencial função histórica das declarações dos direitos, é possível também entender seu desenvolvimento e suas metamorfoses no nosso século [século XX]. Quando, após as convulsões no sistema geopolítico da Europa que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, o resíduo removido entre nascimento e nação emerge como tal à luz, e o Estado-nação entra em uma crise duradoura, surgem então o fascismo e o nazismo, dois movimentos biopolíticos em sentido próprio, que fazem portanto da vida natural o local por excelência da decisão soberana. Nós estamos habituados a compendiar no sintagma “solo e sangue” (Blut und Boden) a essência da ideologia nacional-socialista. Quando Rosenberg deseja exprimir em uma fórmula a visão do mundo do seu partido, é, de fato, a esta hendíadis que ele recorre. “A visão do mundo nacional-socialista” – ele escreve – “parte da convicção de que solo e sangue constituem o essencial do Germânico, e que é, portanto, em referência a estes dois datismos que uma política cultural e estadual deve ser orientada”. (Rosenberg, 1936, p.242). Mas tem-se esquecido com demasiada freqüência que esta fórmula politicamente tão determinada tem, na verdade, uma inócua origem jurídica: ela não é outra além da expressão que compendia os dois critérios que, já a partir do direito romano, servem para identificar a cidadania (isto é, a inscrição primária da vida na ordem estatal): ius soli (o nascimento em um determinado território) e ius sanguinis (o nascimento a partir de genitores cidadãos). Estes dois critérios jurídicos tradicionais que, no antigo regime, não possuíam um significado político essencial, porque exprimiam somente uma relação de vassalagem, adquirem, já com a revolução francesa, uma nova e decisiva importância. A cidadania não identifica agora simplesmente uma genérica sujeição à autoridade real ou a um determinado sistema de leis, nem encarna simplesmente (...) o novo princípio igualitário: ela nomeia o novo estatuto da vida como origem e fundamento da soberania e identifica, portanto, literalmente, nas palavras de Lanjuinais à convenção, les membres du souverain. (...) O que não havia constituído até então um problema político (as perguntas: “o que é francês? o que é alemão?”), mas apenas um tema entre os outros discutidos nas antropologias filosóficas, começa agora a tornar-se uma questão política essencial, submetida, como tal, a um constante trabalho de redefinição, até que, com o nacional-socialismo, a resposta à pergunta “quem e o que é alemão” (e, portanto, também: “quem e o que não o é?”) coincide imediatamente com a função política suprema. Fascismo e nazismo

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são, antes de tudo, uma redefinição das relações entre o homem e o cidadão e, por mais que isso possa parecer paradoxal, eles se tornam plenamente inteligíveis somente se situados sobre o pano de fundo biopolítico inaugurado pelas soberania nacional e pelas declarações de direitos.270

A biopolítica moderna tem uma constante necessidade de redefinir, a cada

momento, tanto o significado e o valor da vida, quanto da cidadania que se ampara na vida

natural. A ficção que existe entre nascimento e nação, portanto, precisa ser sempre

redesenhada para se sustentar como fundamento da soberania. É justamente por isso que a

figura do refugiado é crítica e inquietante, pois ela rompe o liame imaginário entre

nascimento e nação, homem e cidadão – pois o refugiado é o homem, a vida natural, que

não é cidadão de Estado nenhum, não faz parte de nenhuma nação. “(...) Exibindo à luz o

resíduo entre nascimento e nação, o refugiado faz surgir por um átimo na cena política

aquela vida nua que constitui seu secreto pressuposto. Neste sentido, ele é

verdadeiramente, como sugere Hannah Arendt, “o homem dos direitos”, a sua primeira e

única aparição real fora da máscara do cidadão que constantemente o cobre”.271

A problemática vinculada à existência de refugiado emerge na Europa a partir da

Primeira Guerra Mundial, em um momento no qual o falso nexo entre nascimento-nação já

é incapaz de legitimar a soberania no cerne do Estado-nação. Sua principal conseqüência, à

época, foi a introdução, em diversas ordens jurídicas européias, de normas que possibilitam

a desnaturalização e a desnacionalização em massa de cidadãos próprios de cada Estado272.

270 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 135-137. Esta perspectiva é semelhante à interpretação de Foucault sobre a relação entre nazismo, soberania, biopolítica e sangue, já vista anteriormente. 271 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 138. 272 “(...) A primeira foi, em 1915, a França, com relação a cidadãos naturalizados de origem “inimiga”; em 1922, o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revogou a naturalização de cidadãos que haviam cometido “atos antinacionais” durante a guerra; em 1926, o regime fascista expediu uma lei análoga que dizia respeito aos cidadãos que haviam se mostrado “indignos da cidadania italiana”; em 1933, foi a vez da Áustria, e assim por diante, até que as leis de Nuremberg sobre a “cidadania do Reich” e sobre a “proteção do sangue e da honra alemães” impeliram ao extremo este processo, dividindo os cidadãos alemães em cidadãos a título pleno e cidadãos de segundo escalão, e introduzindo o princípio segundo o qual a cidadania era algo de que é preciso mostrar-se digno e que podia, portanto, ser sempre colocada em questionamento. E uma das poucas regras às quais os nazistas se ativeram constantemente no curso da “solução final”, era a de que somente depois de terem sido completamente desnacionalizados (até da cidadania residual que lhes cabia após as leis de Nuremberg), os hebreus podiam ser enviados aos campos de extermínio.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 139. Todas essas informações de Agamben conferem com o relato de Arendt, às páginas 312- 313 de “Origens do Totalitarismo”. A autora consigna, ainda, que: “(...) Antes da última guerra, somente os países totalitários ou as ditaduras semitotalitárias recorriam à arma da desnaturalização contra pessoas que eram cidadãos por nascimento; mas chegou-se ao ponto em que até as

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Arendt explana esses dois métodos biopolíticos justamente à luz do contexto do entre-

guerras e da ascensão dos regimes totalitários europeus:

Com o surgimento das minorias na Europa oriental e meridional e com a incursão dos povos sem Estado na Europa central e ocidental, um elemento de desintegração completamente novo foi introduzido na Europa do após-guerra. A desnacionalização tornou-se uma poderosa arma política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estados-nações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos opressores impor a sua escala de valores até mesmo sobre os países oponentes. Aqueles a quem haviam escolhido como refugo da terra – judeus, trotskistas etc. – eram realmente recebidos como o refugo da terra em toda parte; aqueles a quem a perseguição havia chamado de indesejáveis, tornavam-se de fato indésirables da Europa. O jornal oficial da SS, o Schwartze Korps, disse explicitamente em 1938 que, se o mundo ainda não estava convencido de que os judeus eram o refugo da terra, iria convencer-se tão logo, transformados em mendigos sem identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte, esses judeus começassem a atormentá-los em suas fronteiras. E o fato é que esse tipo de propaganda factual funcionou melhor que a retórica de Goebbels, não apenas porque fazia dos judeus o refugo da terra, mas também porque a incrível desgraça do número crescente de pessoas inocentes demonstrava na prática que eram certas as cínicas afirmações dos movimentos totalitários de que não existiam direitos humanos inalienáveis, enquanto as afirmações das democracias em contrário revelavam hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo. A própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia.273

Esses dois fenômenos conexos – quais sejam, da desnacionalização e da

desnaturalização – revelam que, já no começo do século XX, o vínculo entre nascimento e

nação era incapaz de legitimar a soberania e de se auto-regulamentar. Tanto que a própria

Arendt afirma que a soberania nacional européia, conforme classicamente vista pelos

Estados desse continente, embasada no concerto das nações, estava em claro processo de

declínio – pois o respeito à soberania das nações dependia de uma solidariedade política

que as práticas de desnacionalização e a pretensão a uma soberania absoluta sobre o próprio

território tornavam impossível.

democracias livres, como, por exemplo, os Estados Unidos, pensaram seriamente em privar da cidadania os americanos que fossem comunistas. O aspecto sinistro dessas medidas é que são estudadas com toda a inocência.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 313. Agamben certamente concorda, neste ponto, com a proximidade entre os regimes totalitários e as democracias. 273 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 302.

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Esta impossibilidade decorre justamente do cruel jogo de deportação e tentativa de

repatriação das massas humanas européias que eram apátridas ou pertencentes a uma

minoria sem Estado. A soberania clássica européia se dissolvia frente a uma situação na

qual grupos humanos transitavam pelo continente sem ser desejados ou aceitos por nenhum

país – de forma que o clássico direito soberano relativo a questões de nacionalidade e

expulsão cessou de funcionar, e, até mesmo, de fazer sentido274. Em tal circunstância, as

massas refugiadas vivem sem a proteção de nenhuma espécie de direito, e, desse modo,

revelam a falência política final do modelo de soberania amparado na vigência da lei – no

momento em que há indivíduos sujeitos a lei nenhuma, a diferença entre direitos humanos e

direitos de cidadão mostra-se com toda clareza:

(...) Por um lado, os Estados-nação operam um maciço reinvestimento da vida natural, discriminando em seu interior uma vida por assim dizer autêntica e uma vida nua privada de todo valor político (o racismo e a eugenética nazista são compreensíveis somente se restituídos a este contexto); por outro, os direitos do homem, que faziam sentido apenas como pressuposto dos direitos do cidadão, separam-se progressivamente destes e são utilizados fora do contexto da cidadania, com o suposto fim de representar e proteger uma vida nua que vem a encontrar-se, em proporção crescente, expulsa às margens dos

274 “O primeiro e grave dano causado aos Estados-nações pela chegada de centenas de milhares de apátridas foi a abolição tácita do direito de asilo, antes símbolo dos Direitos do Homem na esfera das relações internacionais. (...) O segundo choque que o mundo europeu sofreu com o surgimento dos refugiados decorria da dupla constatação de que era impossível desfazer-se deles e era impossível transformá-los em cidadãos do país de refúgio, principalmente porque todos concordavam que só havia duas maneiras de resolver o problema: repatriação ou naturalização. Quando o exemplo das primeiras ondas de refugiados armênios e russos demonstrou que nem uma coisa nem outra levaram a resultados tangíveis, os países de refúgio simplesmente se recusaram a reconhecer a condição de apátrida nos que vieram depois, tornando assim ainda mais intolerável a situação dos refugiados. (...) A dificuldade surgiu em conseqüência de fracassos da aplicação dos dois remédios reconhecidos como válidos: a repatriação e a naturalização. As medidas de repatriação falharam, pois nenhum país aceitou admitir aquelas pessoas. E falharam não porque os apátridas se recusassem a regressar à pátria que rejeitavam (...), e não [nem] em virtude de sentimentos humanitários por parte dos países abarrotados de refugiados, mas sim porque nem o país de origem nem qualquer outro concordavam em recebê-los. Pode parecer que essa indeportabilidade de uma pessoa sem Estado impedisse um governo de expulsá-la; mas, como o homem sem Estado – um fora-da-lei por definição – era uma “anomalia para a qual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral”, ficava completamente à mercê da polícia, que, por sua vez, não hesitava muito em cometer atos ilegais para diminuir a carga de indésirables no país. Em outras palavras, o Estado, insistindo em seu soberano direito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição de apátrida, a cometer atos confessadamente ilegais. (...) Todo o sistema de naturalização dos países europeus desmoronou pelo mesmo motivo que levou ao abandono o direito de asilo, quando teve de defrontar-se com os povos sem Estado. (...) Em lugar de naturalizar pelo menos parte dos recém-chegados, os países começaram a cancelar naturalizações concedidas no passado, em parte devido ao pânico geral, em parte porque a chegada de grandes massas realmente alterava a posição sempre precária dos cidadãos naturalizados da mesma origem. O cancelamento de naturalizações ou a introdução de novas leis que obviamente abriam o caminho para a desnaturalização em massa destruíram a pouca confiança que os refugiados ainda pudessem ter na possibilidade de se ajustarem a uma vida normal (...)”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 313-318.

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Estados-nação, para ser então posteriormente recodificada em uma nova identidade nacional. O caráter contraditório destes processos está certamente entre as causas que determinaram a falência dos esforços de vários comitês e organismos, através dos quais os Estados, a Sociedade das Nações, e, mais tarde, a ONU tentaram fazer frente ao problema dos refugiados e da salvaguarda dos direitos do homem (...). O essencial, em todo caso, é que, toda vez que os refugiados não representam mais casos individuais, mas, como acontece hoje mais e mais freqüentemente, um fenômeno de massa, tanto estas organizações quanto os Estados individuais, malgrado as solenes evocações dos direitos “sagrados e inalienáveis” do homem, demonstram-se absolutamente incapazes não só de resolver o problema, mas até de simplesmente encará-lo de modo adequado.275

A figura do refugiado, do apátrida, da minoria sem Estado, portanto, coloca em

xeque o nexo entre nascimento e nação, e revela a profunda cisão que efetivamente existe

entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. Os direitos do homem, despidos de

sua proteção estatal, expõem a vida nua sobre a qual a soberania se assenta, e revelam a

situação de exceção – suspensão do direito – extrema que caracteriza o paradigma

biopolítico do campo de concentração276. É nessa situação que, como diz Arendt, os

Estados praticam “atos confessadamente ilegais”, principalmente por meio de sua

polícia277.

O campo de concentração, portanto – como “solução” encontrada para os homens

que estão sujeitos à mais absoluta ausência de direito e de proteção estatal – configura-se

como o modelo de organização política que se articula a partir da vida nua, e que procura

nos modos da vida natural o objeto de seu controle e incidência. No cerne da biopolítica

que se elabora a partir de tal paradigma, reside a idéia da vida sem valor, ou seja, da vida

que não merece viver e se desenvolver – ou, em outros termos, o “refugo da terra”, nas

palavras de Arendt. Tanto que Agamben explana que:

Em 1920, Felix Meiner, já então um dos mais sérios editores alemães de ciências filosóficas, publicou uma plaquette cinza-azulada que levava o título: Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (A autorização do

275 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 139-140. 276 “Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico quanto a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam teimosamente em considerar “inalienáveis” os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum. Essa situação deteriorou-se, até que o campo de internamento – que, antes da Segunda Guerra Mundial, era exceção e não regra para os grupos apátridas – tornou-se uma solução de rotina para o problema domiciliar dos “deslocados de guerra”.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 312. 277 E é igualmente nesse contexto que surge a análise de Benjamin sobre a polícia “espectral”.

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aniquilamento da vida indigna de ser vivida). Os autores eram Karl Binding, um estimado especialista de direito penal (um encarte colado no último minuto da contracapa informava aos leitores que, tendo o doc. iur. et phil K. B. falecido durante a impressão, aquele deveria ser considerado “o seu último ato pelo bem da humanidade”), e Alfred Hoche, um professor de medicina que ocupara-se de questões relativas à ética da profissão.

O livro nos interessa aqui por duas razões. A primeira é que, para explicar a impunibilidade do suicídio, Binding é induzido a concebê-lo como expressão de uma soberania do homem vivente sobre a própria existência. Visto que o suicídio – ele argumenta – não se deixa compreender nem como um delito (por exemplo, como uma violação de uma obrigação qualquer em relação a si mesmo) e visto que, por outro lado, não pode nem ao menos ser considerado como um ato juridicamente indiferente, “não resta ao direito outra possibilidade senão a de considerar o homem vivente como soberano sobre a própria existência” (...). A soberania do vivente sobre si mesmo configura, como a decisão soberana sobre o estado de exceção, um limiar de indiscernibilidade entre exterioridade e interioridade, que a ordem jurídica não pode, portanto, nem excluir, nem incluir, nem vetar e nem permitir (“O ordenamento jurídico” – escreve Binding – “suporta o ato malgrado as suas sensíveis conseqüências sobre si. Ele não considera ter o poder de proibi-lo.” (...).

Desta particular soberania do homem sobre a sua própria existência, Binding deriva porém – e é esta a segunda e mais urgente razão do nosso interesse – a necessidade de autorizar “o aniquilamento da vida indigna de ser vivida”. O fato de que com esta inquietante expressão ele designe simplesmente o problema da legitimidade da eutanásia não deve fazer subestimar a novidade e a importância decisiva do conceito que faz deste modo sua aparição na cena jurídica européia: a vida que não merece ser vivida (ou viver, segundo o possível significado literal da expressão alemã lebensunwerten Leben), juntamente com seu implícito e mais familiar correlato: a vida digna de ser vivida (ou de viver). A estrutura biopolítica fundamental da modernidade – a decisão sobre o valor (ou sobre o desvalor) da vida como tal – encontra, então, a sua primeira articulação jurídica em um bem-intencionado pamphlet a favor da eutanásia.278

A vida indigna de ser vivida proposta por Binding é considerada como aquela que

perdeu a tal ponto a sua qualidade de bem jurídico, na medida em que seu portador não é

mais detentor da própria soberania sobre ela (seja por questões físicas, seja por questões

mentais), que a sua preservação, tanto para o vivente como para a sociedade na qual ele está

incluso, constitui um “des-valor”, um mal. O conceito se refere, originalmente, aos

278 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 143-144. Em sua análise da modernidade e suas particularidades, Foucault menciona também o suicídio: “Não deve surpreender que o suicídio – outrora crime, pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos, o daqui debaixo ou o do além, tinham o direito de exercer – tenha-se tornado, no decorrer do século XIX, uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica; ele fazia aparecer, nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito individual e privado de morrer. Essa obstinação em morrer, tão estranha e contudo tão regular, tão constante em suas manifestações, portanto tampouco explicável pelas particularidades ou acidentes individuais, foi uma das primeiras surpresas de uma sociedade em que o poder político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida.” FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. p. 167.

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indivíduos considerados “incuravelmente perdidos” por causa de alguma doença ou

ferimento e que, conscientes de sua condição, tenham manifestado o desejo de não

permanecerem vivos.

Reporta-se também, todavia, aos “idiotas incuráveis”, de nascimento, ou não, e que,

na prática, não possuem vontade própria nem de viver, nem de morrer. “Estes homens –

escreve Binding – “não possuem nem a vontade de viver, nem a de morrer (...). Sua vida é

absolutamente sem objetivo, mas eles não a sentem como intolerável.”Mesmo neste caso,

Binding não reconhece razão alguma “nem jurídica, nem social, nem religiosa para não

autorizar a morte destes homens, que não são mais do que a espantosa imagem ao avesso

(...) da autêntica humanidade”.279 Nesse caso, a iniciativa pelo requerimento de autorização

para o aniquilamento desta “não-vida” caberia ou a um médico, ou a um parente próximo.

Estruturalmente, a proposta de Binding revela a idéia de que a circunstância de o

homem possuir uma soberania sobre a própria vida implica a necessidade de fixação de um

limiar além do qual a vida deixa de ter valor, e a partir do qual pode ser eliminada sem que

se cometa homicídio. Isto se dá justamente porque o fundamento da soberania reside

sempre em um poder de morte. A “vida indigna de ser vivida” termina por corresponder,

ainda que de um modo ligeiramente diferente, à vida do homo sacer:

É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada. Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus “homens sacros”. É possível, aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exceptio da vida natural na ordem jurídica estatal não tenha feito mais do que alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no novo horizonte biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao interior de toda vida humana e de todo cidadão. A vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente.280

279 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 145. 280 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 146.

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Não por coincidência, o programa de eutanásia para doentes mentais incuráveis do

nacional-socialismo alemão fazia referência explícita ao termo “morte por graça”, que era a

solução proposta por Binding para a “vida indigna de ser vivida”. O programa de

extermínio em massa281 dos doentes mentais incuráveis promovido pelo Reich, enquanto

permaneceu ativo, caracterizou um dos aspectos fundamentais do projeto biopolítico

nazista. Revelou, ademais, uma das formas mais explícitas por meio da qual o poder

soberano decide acerca da vida nua natural. “A “vida indigna de ser vivida” não é, com

toda evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do

indivíduo: é, sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema

metamorfose da vida matável e insacrificável do homo sacer, sobre a qual se baseia o

poder soberano”.282

281 De acordo com Agamben, calcula-se que em torno de sessenta mil pessoas foram eliminadas entre o início de 1940 e agosto de 1941. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 147-148. Arendt apresenta uma opinião diferente sobre o programa nazista de eutanásia: “A primeira câmara de gás foi construída em 1939, para implementar o decreto de Hitler datado de 1º de setembro daquele ano, que dizia que “pessoas incuráveis devem receber uma morte misericordiosa”. (...) A idéia em si era consideravelmente mais antiga. Já em 1935, Hitler havia dito ao médico-chefe do Reich, Gerhard Wagner, que “se a guerra viesse, ele englobaria e resolveria a questão da eutanásia, porque era mais fácil fazê-lo em tempo de guerra”. O decreto foi cumprido imediatamente no que dizia respeito aos doentes mentais, e entre dezembro de 1939 e agosto de 1941, cerca de 50 mil alemães foram mortos com monóxido de carbono em instituições cujas salas de execução foram disfarçadas exatamente como seriam depois em Auschwitz – como salas de ducha e banhos. O programa foi um fracasso. Era impossível manter a eliminação por gás em segredo da população alemã circundante; houve protestos de todos os lados, de pessoas que aparentemente ainda não tinham atingido a visão “objetiva” da natureza da medicina e da função de um médico.” ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 124. 282 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 148-149. Não se concorda que o conceito de “vida indigna de ser vivida” não seja ético – certamente o nazismo o encarava como um problema ético central. Não concerne, de fato, a desejos e expectativas “legítimos”, mas certamente concerne a desejos e expectativas vinculados a juízos de valor – e uma definição de ética que a vincule necessariamente a um critério de legitimidade (inclusive não abordado por Agamben) é, no mínimo, ingênuo. Ainda sobre a relação da vida indigna de ser vivida com a eutanásia dos doentes mentais, Arendt conta que foi do fracasso deste último projeto que derivou, com bem menos oposição popular e bem mais sucesso, o programa de asfixia de judeus: “Muitas vezes se disse que a asfixia dos doentes mentais teve de ser suspensa na Alemanha por causa dos protestos da população e de uns poucos dignitários corajosos das Igrejas; no entanto, nenhum protesto desse tipo foi feito quando o programa voltou-se para a asfixia de judeus, embora alguns dos centros de extermínio estivessem localizados no que era então território alemão, cercados por populações alemãs. Aqueles protestos, porém, ocorreram no começo da guerra; não se levando em conta os efeitos da “educação na eutanásia”, a atitude em relação à “morte indolor por asfixia de gás” muito provavelmente se alterou no curso da guerra. (...) umas poucas histórias inestimáveis, encontradas em diários de guerra de homens confiáveis, inteiramente conscientes do fato de que sua reação de choque não era mais partilhada por seus vizinhos, sobreviveram à decadência moral de toda uma nação.” ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 126.

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A eutanásia, nesse caso, expõe uma situação na qual é necessário separar, no

paciente, a zoé da bíos, para que a zoé, individualizada, possa ser considerada como

matável. Na perspectiva da bipolítica moderna, no ponto em que ela se converte

necessariamente em tanatopolítica, o que está em jogo é a possibilidade de zelar pela

“saúde biológica do corpo da nação”, eliminando a vida nua “indigna de ser vivida”, e,

portanto, prejudicial à saúde nacional, tendo em vista o nexo nascimento-nação, vida do

cidadão-vida da nação, saúde do cidadão-saúde da nação. A soberania, em tal ponto,

adquire um novo e sinistro sentido:

(...) Se ao soberano, na medida em que decide sobre o estado de exceção, compete em qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser morta sem que se cometa homicídio, na idade da biopolítica este poder tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante. Não só, como sugere Schmitt, quando a vida torna-se o valor político supremo coloca-se aí também o problema de seu desvalor; na verdade, tudo se desenrola como se nesta decisão estivesse em jogo a consistência última do poder soberano. Na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal. A vida, que, com as declarações dos direitos, tinha sido investida como tal do princípio de soberania, torna-se agora ela mesma o local de uma decisão soberana. O Führer representa justamente a própria vida enquanto decide da própria consistência biopolítica. Por isto a sua palavra, segundo uma teoria cara aos juristas nazistas, à qual teremos ocasião de retonar, é imediatamente lei. (...) O fato é que o Reich nacional-socialista assinala o momento em que a integração entre medicina e política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, começa a assumir a sua forma consumada. Isto implica que a decisão soberana sobre a vida se desloque, de motivações e âmbitos estritamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis.283

283 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 149-150. Incompreensível, em face dessa argumentação sobre a vida como “valor político supremo”, como Agamben pôde dizer que a “vida indigna de ser vivida” não era um conceito ético. Sobre a questão, a passagem de Schmitt é a seguinte: “(...) Assim, o último perigo não reside nem mesmo na existência dos meios de extermínio e em uma maldade premeditada da pessoa humana. Ela consiste na inevitabilidade de uma coação moral. Os homens que empregam aqueles meios contra outros homens vêem-se obrigados a exterminar também moralmente estes outros homens, i.e., suas vítimas e objetos. Têm que declarar o lado oposto, enquanto um todo, como criminoso e desumano, como um desvalor total. Caso contrário, serão eles mesmos criminosos e inumanos. A lógica do valor e desvalor desenvolve toda sua conseqüência exterminadora, engendrando sempre novas e mais profundas discriminações, criminalizações e depreciações até o extermínio de toda vida indigna de viver. Em um mundo, no qual os parceiros, dessa maneira, se impelem mutuamente para dentro do abismo da total desvalorização antes de se exterminarem fisicamente, têm que surgir novas formas de inimizade absoluta. A inimizade tornar-se-á tão temível que, talvez, nem mais se possa falar em inimigo ou inimizade, sendo ambas, inclusive, formas proscritas e condenadas antes que a obra de aniquilação possa começar. O extermínio torna-se, então, inteiramente abstrato e inteiramente absoluto. Ele não será mais dirigido contra um inimigo; servirá tão-somente a uma imposição pretensamente objetiva de valores supremos, para a qual, como se sabe, nenhum preço é por demais elevado. Só a negação da inimizade real é que torna livre o caminho para a obra exterminadora de uma inimizade absoluta.” SCHMITT, Carl. O Conceito do Político / Teoria do Partisan.

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A biopolítica moderna tem como foco central, portanto, a idéia constante de “dar

forma à vida de um povo”, definindo os tipos e modelos de vida que são aceitáveis, ou

melhor, dignos de ser vividos, no cerne do corpo da nação – bem como os que são indignos

e inaceitáveis. A preocupação estatal volta-se para a saúde dos indivíduos, e, por

conseqüência, para a saúde da nação, e adere a práticas eugenéticas cada vez mais radicais,

tendo em vista preservar e aumentar o “patrimônio genético” do corpo biológico da

nação.284 A figura do médico, nesse cenário, torna-se fundamental para o funcionamento do

Estado, na medida em que é ele o especialista capaz de avaliar a qualidade e o valor das

vidas humanas que compõem o corpo biológico nacional285.

O patrimônio genético de um povo, avalizado pela eugenética, converte-se no

elemento central do cálculo estatal – e é a ciência genética que oferece a estrutura

Trad.: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 242-243. O partisan, conforme tratado por Schmitt, parece ser um “irmão” tanto do homo sacer quanto do soberano, já que, para ele, o partisan, muitas vezes “(...) se encontra na qualidade de um criminoso especialmente abominável simplesmente fora do Direito e é considerado hors de la loi.” (p. 158); como também “(...) não agiria de forma verdadeiramente legal, mas também não verdadeiramente ilegal” (p. 175) e arriscaria “(...) não somente sua vida, como qualquer combatente regular” mas sim “(...) sabe e se arrisca a ser colocado pelo inimigo para fora do Direito, da lei e da honra.” (p. 177). 284 “A grande novidade do nacional-socialismo consiste, segundo Reiter, no fato de que é este patrimônio vivente que passa agora ao primeiro plano nos interesses e nos cálculos do Reich e torna-se a base de uma nova política, que começa antes de tudo por estabelecer “o balanço dos valores vivos de um povo” (...) e se propõe a assumir os cuidados do “corpo biológico da nação (...)”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 152. 285 Arendt menciona o seguinte episódio, ocorrido durante o julgamento de Eichmann:“(...) Durante o julgamento, porém, não foi o acusado, Obersurmbannführer a. D. da SS que levou o prêmio de “objetividade”; foi o dr. Servatius, um advogado de empresas e impostos em Colônia, que nunca se filiou ao Partido Nazista e que, mesmo assim, iria ensinar à corte uma lição sobre o que significa não ser “emocional”. Lição que nenhum de seus ouvintes jamais se esquecerá. Esse momento, um dos poucos grandes momentos de todo o julgamento, ocorreu durante a breve exposição oral da defesa, depois da qual a corte entrou em recesso de quatro meses para redigir o julgamento. Servatius declarou o acusado inocente das acusações que o responsabilizavam pela “coleção de esqueletos, esterilizações, assassinatos por gás e questões médicas similares”, diante do que o juiz Halevi o interrompeu: “Dr. Servatius, presumo que tenha sido um deslize seu afirmar que a execução por gás é uma questão médica”. Ao que Servatius respondeu: “Era efetivamente uma questão médica, uma vez que era preparada por médicos; era uma questão de morte e a morte também é uma questão médica”. E, talvez para ter certeza absoluta de que os juízes de Jerusalém não esquecessem de que maneira os alemães – os alemães comuns, não membros da SS, nem do Partido Nazista – ainda hoje conseguem encarar atos que outros países chamam de assassinato, ele repetiu a frase em seus “Comentários sobre o julgamento da primeira instância”, preparados para a revisão do caso diante da Suprema Corte; novamente ele afirmou que não era Eichmann, mas sim um de seus homens, Rolf Günther, que “estava sempre envolvido em questões médicas”. (O dr. Servatius conhece bem “as questões médicas” do Terceiro Reich. Em Nuremberg ele defendeu o dr. Karl Brandt, médico pessoal de Hitler, plenipotenciário para “Higiene e Saúde” e chefe do programa de eutanásia.)” ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 83-84.

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conceitual necessária para o desenvolvimento da ideologia biopolítica nacional-socialista.

Os critérios genéticos eivados da eugenética, na biopolítica, não são meras referências

externas que orientam a decisão política – eles são já, imediatamente e em si mesmo,

políticos. Tal fenômeno é conseqüência do processo de tematização e regulação da vida

identificado por Foucault como uma das marcas políticas da modernidade. Agamben

explica como essa questão se relaciona com a idéia de raça286, bem como se deu seu

desenvolvimento:

(...) Assim o conceito de raça vem a ser definido, de acordo com as teorias eugenéticas da época, como “um grupo de seres humanos que apresentam uma certa combinação de genes homozigotos que faltam aos outros grupos” (...). Tanto Fischer como Verschuer sabem, porém, que uma raça pura, no sentido desta definição, é praticamente impossível de identificar (em particular, nem os hebreus e nem os alemães – Hitler é perfeitamente consciente disto seja enquanto escreve Mein Kampf, seja no momento em que decide a solução final – constituem num sentido próprio uma raça). O termo racismo (se entende-se por raça um conceito estritamente biológico) não é, portanto, a qualificação mais correta para a biopolítica do terceiro Reich: esta se move, antes, em um horizonte em que a “tutela da vida” herdada da ciência do policiamento setecentista se absolutiza, fundindo-se com preocupações de ordem propriamente eugenética. Distinguindo entre política (Politik) e polícia (Polizei), Von Justi conferia à primeira uma atribuição meramente negativa (a luta contra os inimigos externos e internos do Estado) e à segunda uma atribuição positiva (a tutela e o crescimento da vida dos cidadãos). Não se compreende a biopolítica nacional-socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo fora do terceiro Reich), se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção entre os dois termos: a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo. “A Revolução nacional-socialista” – lê-se na introdução a Etat et santé – “deseja fazer apelo às forças que tendem à exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da saúde hereditária do povo. Ele almeja, portanto, fortificar a saúde do conjunto do povo e eliminar as influências que prejudicam o desenvolvimento biológico da nação. Os problemas tratados neste livro não se referem a um único povo; ele levanta problemas de importância vital para toda a civilização européia.” Somente nesta perspectiva

286 Arendt identifica o surgimento da idéia de raça com importância política no período imediatamente anterior ao que se vem debatendo, ou seja, à época imperialista. Segunda ela: “Dois novos mecanismos de organização política e de domínio dos povos estrangeiros foram descobertos durante as primeiras décadas do imperialismo. Um foi a raça como princípio da estrutura política; (...) A raça foi uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na idéia da raça encontrou-se a resposta dos bôeres à “monstruosidade” esmagadora descoberta na África – todo um continente povoado e abarrotado de selvagens – e a justificação da loucura que os iluminou como “o clarão de um relâmpago num céu sereno” no brado: “Exterminemos todos esses brutos!” Dessa idéia resultaram os mais terríveis massacres da história: o extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as selvagens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão, a dizimação da pacata população do Congo reduzida de uns 20 milhões para 8 milhões; e, o que é pior, a adoção desses métodos de “pacificação” pela política externa européia comum e respeitável.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 215.

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adquire todo o seu sentido o extermínio dos hebreus, em que polícia e política, motivos eugenéticos e motivos ideológicos, tutela da saúde e luta contra o inimigo tornam-se absolutamente indiscerníveis.287

Na biopolítica moderna o dado biológico é tomado, além de como tal,

imediatamente como político; e o dado político, inversamente, é também tomado como tal e

imediatamente como biológico – já que a política é o modo de dar forma à vida do povo, e

garantir sua preservação. “A vida que, com as declarações dos direitos humanos tinha se

tornado o fundamento da soberania, torna-se agora o sujeito-objeto da política estatal

(que se apresenta, portanto, sempre mais como “polícia”); mas somente um Estado

fundado sobre a própria vida da nação podia identificar como sua vocação dominante a

formação e tutela do “corpo popular”.”.288

O dado natural, a suposta herança genética do povo, adquire o papel de tarefa

política essencial a ser realizada e implementada. A conseqüência disto é e deriva de que

“Quando vida e política, divididos na origem e articulados entre si através da terra de

ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a identificar-se, então

287 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 153-154. Em outra passagem, Agamben apresenta a definição da ideologia nacional socialista dada por Verschuer: “O novo Estado não conhece outro dever além do cumprimento das condições necessárias à conservação do povo.” Estas palavras do Führer significam que todo ato político do Estado nacional-socialista serve a vida do povo (...). Nós sabemos hoje que a vida de um povo é garantida somente se as qualidades raciais e a saúde hereditária do corpo popular (Volkskörper) são conservadas (...)”. (p. 153-154). É possível comparar, ainda, a idéia de que polícia e política coincidem com a reflexão de Benjamin acerca da polícia e de sua função como violência (poder) espectral e mítico. Por fim, que o critério de raça esteja submetido à tutela da qualidade da vida para a geração de uma vida biopoliticamente “digna”, parece ser corroborado também pelas reflexões de Arendt: “(...) Os nazistas não achavam que os alemães fossem uma raça superior, à qual pertenciam, mas sim que deviam ser comandados, como todas as outras nações, por uma raça superior que somente agora estava nascendo. A aurora dessa nova raça não eram os alemães, mas a SS. O “império mundial germânico”, como disse Himmler, ou o império mundial “ariano”, como teria preferido Hitler, só viria dali a séculos. Para o “movimento”, era mais importante demonstrar que era possível fabricar uma raça pela aniquilação de outras “raças” do que vencer uma guerra de objetivos limitados. (...)”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 462. 288 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 155. Arendt, tratando ainda da questão dos refugiados e dos apátridas no pós-guerra, identifica também a expansão das técnicas policiais vinculada à figura do homem “fora-da-lei”: “O Estado-nação, incapaz de prover uma lei para aqueles que haviam perdido a proteção de um governo nacional, transferiu o problema para a polícia. Foi essa a primeira vez que a polícia da Europa ocidental recebeu autorização para agir por conta própria, para governar diretamente as pessoas; nessa esfera da vida pública, já não era um instrumento para executar e fazer cumprir a lei, mas se havia tornado a autoridade governante independente de governos e de ministérios. A sua força e a sua independência da lei e do governo cresceram na proporção direta do influxo de refugiados. Quanto maior era o número de apátridas e de apátridas em potencial – e na França antes da Segunda Guerra Mundial esse grupo atingiu 10% da população total –, maior era o perigo da gradual transformação do Estado da lei em Estado policial.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 321.

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toda a vida torna-se sacra e toda a política torna-se exceção.”.289 Ou seja, o estado de

exceção é o locus no qual política e vida se tornam indiscerníveis, de forma que toda vida

humana converte-se em matável e insacrificável – este último caractere retratado em sua

formatação moderna e não religiosa do direito à vida sagrado e inalienável das cartas de

direitos.

A transformação das técnicas de governo, através das quais, como propõe

Agamben, a política torna-se cada vez mais polícia, é igualmente identificada por Arendt

como um fenômeno que, além de ligado à existência de homens desprovidos de qualquer

espécie de proteção jurídica, não se restringe apenas aos regimes totalitários. Pelo contrário,

o gradual e crescente aumento do poder policial ocorreu igualmente nos Estados

democráticos. A articulação dessa mudança está vinculada a todo o processo de

desnaturalização e desnacionalização com base em critérios de sangue e raça – ou seja, com

base em critérios biopolíticos.

Não é preciso dizer que os regimes totalitários, onde a polícia havia galgado o auge do poder, ansiavam particularmente pela consolidação desse poder através do domínio de vastos grupos de pessoas que, independentemente de quaisquer ofensas cometidas por indivíduos, estavam de qualquer modo fora do âmbito da lei. Na Alemanha nazista, as leis de Nuremberg, com a sua distinção entre cidadãos do Reich (Reichsbürger – cidadãos completos) e nacionais (Volksbürger – cidadãos de segunda classe sem direitos políticos), haviam aberto o caminho para um estágio final no qual os “nacionais” de “sangue estrangeiro” podiam perder a nacionalidade por decretos; só a deflagração da guerra evitou a promulgação de uma legislação nesse sentido, que havia sido detalhadamente preparada. Por outro lado, os crescentes grupos de apátridas nos países não totalitários levaram a uma forma de ilegalidade, organizada pelo polícia, que praticamente resultou na coordenação do mundo livre com a legislação dos países totalitários. O fato de virem a existir campos de concentração para os mesmos grupos em todos os países, embora houvesse diferenças consideráveis no tratamento dos internos, foi característico da época: se os nazistas confinavam uma pessoa num campo de concentração e ela conseguisse fugir, digamos, para a Holanda, os holandeses a colocavam num campo de internação. Assim, muito antes do início da guerra, as polícias em muitos países ocidentais, a pretexto da “segurança nacional”, haviam, por iniciativa própria, estabelecido íntimas ligações com a Gestapo e a GPU, de modo que se poderia dizer que existia uma política estrangeira policial independente. 290

289 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 155. 290 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 321-322.

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O objeto de atuação da polícia é, evidentemente, o homem desprovido de direitos,

de proteção jurídica. Uma das versões modernas do homo sacer, que deriva da aproximação

entre Estado e médico, pode ser encontrada nas chamadas VP (Versuchepersonen, ou

cobaias humanas), que foram utilizadas em pesquisas e experiências médicas tanto em

regimes totalitários, como o nacional socialista – e que eram hauridas dos hebreus, ciganos

e outras minorias que não “faziam bem” à saúde da nação – quanto em regimes

democráticos, como o estadunidense, onde normalmente eram recrutadas entre condenados

à morte ou a penas extremamente longas, com a promessa de perdão em caso de

sobrevivência à pesquisa médica.

Agamben questiona justamente por quê, durante os julgamentos em Nuremberg, os

precedentes democráticos do uso de VP não foram aceitos em defesa dos médicos nazistas

julgados. Sua explicação estrutural reside, uma vez mais, na vocação biopolítica da

modernidade:

A única posição eticamente correta teria sido a de reconhecer que os precedentes alegados pela defesa eram pertinentes, mas que estes não diminuíam em nada a responsabilidade dos imputados. Isto significava, porém, lançar uma sombra sinistra sobre as práticas correntes da pesquisa médica moderna (desde então, foram averiguados casos ainda mais clamorosos de experimentos de massa realizados em cidadãos americanos desprevenidos, para estudar, por exemplo, os efeitos das radiações nucleares). Se era, de fato, teoricamente compreensível que semelhantes experimentos não tivessem suscitado problemas éticos em pesquisadores e em funcionários no interior de um regime totalitário, o qual se movia em um horizonte declaradamente biopolítico, como era possível que experimentos em certa medida análogos pudessem ter sido conduzidos em um país democrático? A única resposta possível é a de que tenha sido decisiva, em ambos os casos, a particular condição das VP (condenados à morte ou detentos em um campo, o ingresso no qual significava a definitiva exclusão da comunidade política). Justamente porque privados de quase todos os direitos e expectativas que costumamos atribuir à existência humana e, todavia, biologicamente ainda vivos, eles vinham a situar-se em uma zona-limite entre a vida e a morte, entre o interno e o externo, na qual não eram mais que vida nua. Condenados à morte e habitantes do campo são, portanto, de algum modo inconscientemente assemelhados a homines sacri, a uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio. O intervalo entre a condenação à morte e a execução, assim como o recinto dos lager, delimita um limiar extratemporal e extraterritorial, no qual o corpo humano é desligado de seu estatuto político normal e, em estado de exceção, é abandonado às mais extremas peripécias, onde o experimento, como um rito de expiação, pode restituí-lo à vida (graça ou indulto da pena são, é bom recordar, manifestações do poder soberano de vida e de morte) ou entregá-lo definitivamente à morte à qual já pertence. O que aqui nos interessa especialmente, porém, é que, no horizonte biopolítico

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que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar.291

Outro exemplo análogo reporta-se ao comatoso que se encontra no chamado estado

de coma dépassé – que corresponde a um estágio da vida além da cessação de todas as

funções vitais e pode ser compreendido como “(...) o coma no qual à abolição total das

funções da vida de relação corresponde uma abolição igualmente total das funções da vida

vegetativa”.292, e à discussão médica acerca da morte cerebral. A vida do “além-coma”

depende inteiramente de técnicas de reanimação tais como respiração artificial, circulação

cardíaca mantida através de perfusão endovenosa de adrenalina, etc. (ou seja, a vida

mantida por aparelhos), e sua sobrevivência usualmente cessa tão logo os tratamentos de

reanimação são interrompidos, com o imediato colapso cardiovascular e a cessação de todo

movimento respiratório.

O problema em questão se reporta não apenas à temática da eutanásia, já debatida,

mas também à definição, necessariamente política, na modernidade, sobre o que é vida e o

que é morte – já que é justamente a regulação da vida biológica que se torna o seu núcleo

de articulação política. Principalmente, sobre o que é a morte, em qual momento e como ela

ocorre. A idéia de que pode haver uma espécie de vida além do coma coloca em xeque

justamente os critérios tradicionais para averiguação da morte, e vincula essa problemática

aos programas de transplante de órgãos:

(...) Até então, de fato, a diagnose da morte era confiada ao médico, que a constatava através de critérios tradicionais que eram substancialmente os mesmos havia séculos: a cessação do batimento cardíaco e a parada da respiração. O além-coma tornava caducos justamente estes dois antiqüíssimos critérios de constatação da morte e, abrindo uma terra de ninguém entre o coma e o falecimento, obrigava a identificar novos critérios e a fixar novas definições (...) o problema se dilatava “até colocar em discussão as fronteiras últimas da vida e, ainda mais além, até a determinação de um direito de fixar a hora da morte legal” (...). (...) O estado do além-comatoso era a condição ideal para a coleta de órgãos, mas isto implicava que fosse definido com certeza o momento da morte, a fim de que o cirurgião que efetuava o transplante não pudesse ser acusado de homicídio. Em 1968, o relatório de uma comissão especial da universidade de Harvard (...) fixou os novos critérios do óbito e inaugurou o conceito de “morte cerebral” (brain death), que deveria, a partir daquele momento, impor-

291 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 165-166. 292 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 167.

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se progressivamente (...) na comunidade científica internacional, até penetrar nas legislações de muitos Estados americanos e europeus. A zona obscura além do coma, que Mollaret e Goulon deixavam flutuar injulgada entre a vida e a morte, fornece agora precisamente o novo critério da morte (“o nosso primeiro objetivo” – inicia o Harvard Report – “é aquele de definir o coma irreversível como um novo critério de morte”: Harvard Report, p.85). Uma vez que testes médicos adequados tivessem constatado a morte do cérebro inteiro (não apenas do neocórtex, mas também do brainstem), o paciente deveria ser considerado morto, mesmo que, graças às técnicas de reanimação, continuasse a respirar.293

A discussão, independentemente de seu mérito médico, revela a existência de uma

nova zona de indeterminação em relação aos conceitos de morte, vida, e momento da

morte. O morto cerebral está, por assim dizer, morto, apesar de ainda vivo. Agamben

observa com curiosidade que defensores da morte cerebral como critério de momento da

morte usam muitas vezes o paradoxal argumento de que “a morte cerebral conduz

inevitavelmente em breve tempo à morte”. A questão torna-se tão fundamental exatamente

porque vida e morte são o critério moderno de atuação política.

A indefinição exata a respeito do momento da morte causada pela zona do além-

coma reflete-se também em uma região de indeterminação entre direito e medicina, entre

decisão médica e decisão jurídico-legal. A morte cerebral não coincide necessariamente

com a “morte natural”, de modo que, no possível intervalo entre uma e outra, o corpo do

indivíduo adentra uma zona de completa indistinção entre vida e morte – o critério de

decidibilidade, então, deixa de ser biológico e “científico” para se tornar eminentemente

político. É o soberano que decide quando ocorre a morte, quem está e vivo e quem está

morto.

Em outros termos, somente com uma decisão política é possível definir se o

indivíduo encontra-se vivo ou morto – sua vida, portanto, torna-se objeto central da decisão

política. É justamente por isso que entre o além-coma e a morte é tolerada a retirada de

órgãos para transplante – ali, existe exclusivamente vida nua, que pode ser “morta” e

experimentada, sem que se cometa homicídio ou algum outro crime. De fato, a

possibilidade de retirar órgãos de um “vivo com morte cerebral” mostra-se como efetiva

293 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 168-169.

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decisão soberana sobre vida e morte, e revela a grande proximidade, nos dias de hoje, entre

soberania e ciências médicas e biológicas.

Em um brilhante artigo, W. Gaylin evocou o espectro de corpos – que ele chama de néomorts – que teriam o estatuo legal de cadáveres, mas que poderiam conservar, em vista de eventuais transplantes, algumas características da vida: “seriam quentes, pulsantes e urinantes” (Gaylin, 1974, p.30). Em um campo oposto, o corpo que jaz na sala de reanimação foi definido, por um defensor da morte cerebral, como um faux vivant, sobre o qual é lícito intervir sem reservas (Dagognet, 1988, p.189). A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além-comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pela sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas de uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pôde ser definido como “um ser intermediário entre o homem e o animal”), a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio (e que, como o homo sacer, é “insacrificável”, no sentido de que não poderia obviamente ser colocada à morte em uma execução de pena capital). Não admira, portanto, que, entre os partidários mais inflamados da morte cerebral e da biopolítica moderna, encontre-se quem invoca a intervenção do Estado, a fim de que, decidindo o momento da morte, seja consentido intervir sem obstáculos sobre o “falso vivo” na sala de reanimação. “É preciso por isto definir o momento do fim e não obstinar-se mais, como se fazia passivamente outrora, na rigidez cadavérica e ainda menos nos sinais de putrefação, mas ater-se somente à morte cerebral... Decorre daí a possibilidade de intervir sobre o falso vivo. Somente o Estado pode fazê-lo e deve fazê-lo (...). Os organismos pertencem ao poder público: nacionaliza-se o corpo (...). Nem Reiter nem Verschuer tinham jamais avançado tanto no caminho da politização da vida nua; mas (sinal evidente de que a biopolítica ultrapassou um novo umbral) nas democracias modernas é possível dizer publicamente o que os bipolíticos nazistas não ousavam dizer.294

A parte final da tese de Agamben se volta para a noção de que o ponto extremo de

extensão e instrumentação atingido pela biopolítica na modernidade se ampara no fato de

que o paradigma político-jurídico do campo de concentração tornou-se o paradigma

(bio)político da modernidade. Ou, conforme já debatido, que o campo de concentração é o

novo nomos da terra, o novo critério de organização e estruturação político-jurídica das

comunidades humanas, como fator de assentamento e divisão do espaço terrestre. Isto quer

dizer, na prática, que o critério de organização político não são mais as fronteiras sobre as

quais incidem ordenamentos jurídicos, mas sim os espaços nos quais a ordem jurídica está,

senão formalmente, concretamente suspensa.

294 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 171-172.

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Os campos surgem, originalmente, da extensão, a uma população civil, de uma

situação de exceção vinculada a um estado de guerra295 – não foram, como se poderia

pensar, uma criação de algum estado ou movimento totalitário. Eles nascem, portanto, não

do direito ordinário, mas sim do “direito” aplicável ao estado de exceção e da lei marcial,

de técnicas já originalmente vinculadas, em sua concepção, à suspensão da ordem jurídica.

A história do estado de exceção, de toda forma, está inextricavelmente ligada à do regime

nacional-socialista e seus lager:

(...) É sabido que a base jurídica do internamento não era o direito comum, mas a Schutzhaft (literalmente: custódia protetiva), um estatuto jurídico de derivação prussiana que os juristas nazistas classificam às vezes como uma medida policial preventiva, na medida em que permitia “tomar sob custódia” certos indivíduos independentemente de qualquer conduta penalmente relevante, unicamente com o fim de evitar um perigo para a segurança do Estado. Mas a origem da Schutzhaft encontra-se na lei prussiana de 4 de junho de 1851 sobre o Estado de sítio, que em 1871 foi estendida a toda a Alemanha (...) e, ainda, antes, na lei prussiana sobre a “proteção da liberdade pessoal” (...) de 12 de fevereiro de 1850, que encontraram uma maciça aplicação por ocasião da Primeira Guerra Mundial e nos conflitos que, na Alemanha, se seguiram à conclusão do tratado de paz. É bom não esquecer que os primeiros campos de concentração na Alemanha não foram obra do regime nazista, e sim dos governos social-democráticos (...). O fundamento jurídico da Schutzhaft era a proclamação do estado de sítio ou do estado de exceção, com a correspondente suspensão dos artigos da constituição alemã que garantiam as liberdades pessoais. (...) De 1919 a 1924, os governos de Weimar proclamaram várias vezes o estado de exceção, que se prolongou, em alguns casos, por até cinco meses (...). Quando os nazistas tomaram o poder e, em 28 de fevereiro de 1933, emanaram o Verordnung zum Schutz on Volk und Staat, que suspendia por tempo indeterminado os artigos da constituição que concerniam à liberdade pessoal, à liberdade de expressão e de reunião, à inviolabilidade do domicílio e ao sigilo postal e telefônico, eles não faziam mais, neste sentido, do que seguir uma praxe consolidada pelos governos precedentes.

295 “Os historiadores discutem se a primeira aparição dos campos deve ser identificada nos campos de concentraciones criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da colônia, ou nos concentration camps nos quais os ingleses no início do século [século XX] amontoaram os bôeres.” AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 173. Já Arendt afirma que: “(...) Nem mesmo os campos de concentração são invenção de movimentos totalitários. Surgiram pela primeira vez durante a Guerra dos Bôeres, no começo do século XX, e continuaram a ser usados na África do Sul e na Índia para os “elementos indesejáveis”; aqui também encontramos pela primeira vez a expressão “custódia protetora”, que mais tarde foi adotada pelo Terceiro Reich. Esses campos correspondem, em muitos detalhes, aos campos de concentração do começo do regime totalitário; eram usados para “suspeitos” cujas ofensas não se podiam provar, e que não podiam ser condenados pelo regime legal comum. Tudo isso aponta claramente na direção dos métodos totalitários; são elementos que eles empregam, desenvolvem e cristalizam à base do princípio niilístico de que “tudo é permitido”, princípio que eles herdaram e aceitaram com naturalidade.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 491.

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Havia, entretanto, uma importante novidade. O texto do decreto que, do ponto de vista jurídico, baseava-se implicitamente no art. 48 da constituição ainda vigente e equivalia, sem dúvida, a uma proclamação do estado de exceção (...) não continha, porém, em nenhum ponto a expressão Ausnahmezustand (estado de exceção). De fato, o decreto permaneceu em vigor até o fim do terceiro Reich, que, neste sentido, pôde ser eficazmente definido como “uma noite de S. Bartolomeu que durou 12 anos” (Drobisch e Wieland, 1993, p.26). O estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo factício e tende a confundir-se com a própria norma. Os juristas nacional-socialistas estavam tão conscientes da peculiaridade de uma tal situação que, com uma expressão paradoxal, eles a definem como “um estado de exceção desejado (...)”.296

Há, portanto, um nexo constitutivo profundo entre o campo de concentração e o

estado de exceção. Trata-se, entretanto, de uma espécie de vínculo negativo: o campo de

concentração pode ser considerado como o espaço que surge quando o estado de exceção

torna-se a regra e passa a confundir-se com a norma – ou seja, como o espaço no qual a

exceção é o normal, e não exceção. A indiscernibilidade entre norma e exceção cria o

campo como espaço permanente para a tematização da vida nua, mantendo-o, a despeito de

sua permanência, sempre fora do ordenamento jurídico-político normal297.

296 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 174-175. O estado de exceção desejado pode ser explicado por um trecho de Arendt acerca do funcionamento dos movimentos totalitários: “(...) O líder totalitário tem de evitar, a qualquer preço, que a normalização atinja um ponto em que poderia surgir um novo modo de vida – um modo de vida que, após certo tempo, poderia deixar de parecer tão falso e conquistar um lugar entre os modos de vida muito diferentes e profundamente contrastantes das outras nações da terra. No momento em que as instituições revolucionárias se tornassem modo nacional de vida – no momento em que a alegação de Hitler de que o nazismo não é produto de exportação, ou a de Stálin de que o socialismo só pode estabelecer-se num único país, fosse algo mais que uma tentativa de iludir o mundo não-totalitário – o totalitarismo perderia sua qualidade “total” e ficaria sujeito às leis das nações, segundo as quais cada uma possui um território, um povo e uma tradição histórica específicos que determinam a sua relação com as outras nações – uma pluralidade que refuta ipso facto qualquer alegação de que uma determinada forma de governo possa ser absolutamente válida. “ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 441-442. Em resumo, o totalitarismo não pode se coadunar com o tradicional nomos da terra. 297 “(...) Quando, em março de 1933, coincidindo com as celebrações pela eleição de Hitler como chanceler do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um “campo de concentração para prisioneiros políticos”, este foi imediatamente confiado às SS e, através da Schutzhaft, posto fora das regras do direito penal e do direito carcerário, com os quais, nem então e nem em seguida, jamais teve algo a ver. Malgrado o multiplicar-se de circulares, instruções e telegramas freqüentemente contraditórios, com os quais, após o decreto de 28 de fevereiro, tanto as autoridades centrais do Reich como aquelas de cada Länder procuraram manter a atuação da Schutzhaft na mais completa indeterminação possível, a sua absoluta independência de todo controle judiciário e de toda referência ao ordenamento jurídico normal foi constantemente confirmada. (...) Dachau e os outros campos que logo se juntaram a ele (Sachsenhausen, Buchenwald, Lichtenberg) permaneceram virtualmente sempre em função: o que variava era a densidade de sua população (...): mas o campo como tal havia-se tornado na Alemanha uma realidade permanente”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 176.

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O campo de concentração é uma parte do território que é colocada fora do

ordenamento jurídico normal, mas, ainda assim, não pode ser considerada como um

simples espaço externo à nação. “(...) Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado

etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão.

Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o próprio estado

de exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um

novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção”.298

O campo revela-se, paradoxalmente, como o espaço no qual o estado de exceção – tomado

como a forma de manifestação da decisão soberana – é efetivado e implementado, não

como exceção, mas normalmente.

O poder soberano, no paradigma do campo, deixa de decidir sobre a implementação

do estado de exceção a partir de uma situação fática politicamente reconhecida para,

invertendo essa lógica, produzir a situação de fato no campo como conseqüência de uma

decisão soberana sobre a desejabilidade da exceção. Como conseqüência disso, fato, direito

e política tornam-se indistinguíveis no espaço do campo: “(...) Por isso, observando-se

bem, no campo a quaestio iuris não é mais absolutamente distinguível da quaestio facti e,

neste sentido, qualquer questionamento sobre a legalidade ou ilegalidade daquilo que nele

sucede é simplesmente desprovido de sentido. O campo é um híbrido de direito e de fato, no

qual os dois termos tornaram-se indiscerníveis”. 299

No campo de concentração, portanto, conforme observado por Hannah Arendt,

citada por Agamben, “tudo é possível”:

(...) Somente porque os campos constituem, no sentido que se viu, um espaço de exceção, no qual não apenas a lei é integralmente suspensa, mas, além disso, fato e direito se confundem sem resíduos, neles tudo é verdadeiramente possível. Se não se compreende esta particular estrutura jurídico-política dos campos, cuja vocação é justamente a de realizar estavelmente a exceção, o incrível que aconteceu dentro deles permanece totalmente ininteligível. Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido; além disso, se era um hebreu, ele já tinha sido privado, pelas leis de Nuremberg, dos seus

298 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 177. 299 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 177.

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direitos de cidadão e, posteriormente, no momento da “solução final”, completamente desnacionalizado. Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. A questão correta sobre os horrores cometidos nos campos não é, portanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para com seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato, tudo tinha-se tornado verdadeiramente possível).300

O pensamento original de Arendt, sobre o tema, reporta-se à qualificação do campo

de concentração como o espaço no qual o movimento totalitário exerce o domínio total que

constitui o cerne de sua proposta política. Assim como Agamben, a autora enxerga no

campo uma fábrica de vida, mas de uma vida que, desprovida de sua espontaneidade,

resume-se à suas funções biológicas. Ou seja, ela já preconizara, de algum modo, a tese de

que o campo de concentração, em última instância, é o ponto no qual a vida nua é isolada

dos indivíduos e politicamente tratada na situação de ausência de qualquer espécie de

ordem jurídica.

Nessa perspectiva, o campo, como realizador do programa de dominação total

proposto pelo totalitarismo, constitui o modelo social perfeito dessa espécie de dominação.

Parece ser disto que decorre, portanto, a inspiração de Agamben no sentido de que o

paradigma do campo transcende o próprio campo para se alastrar pela sociedade como um

todo, independentemente de ser ela totalitária ou democrática – tal seria a conseqüência

lógica da biopolítica moderna conduzida ao seu extremo.

Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível. Comparada a esta, todas as outras experiências têm importância secundária – inclusive as médicas, cujos horrores estão registrados em detalhes nos julgamentos contra os médicos do Terceiro Reich – embora seja característico que esses laboratórios fossem usados para experimentos de todo tipo.

300 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 177-178.

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O domínio total, que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações. O problema é fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana que se assemelhe a outras espécies de animais, e cuja única “liberdade” consista em “preservar a espécie”. (...) Os campos destinam-se não apenas a exterminar as pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são; pois o cão de Pavlov que, como sabemos, era treinado para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era um animal degenerado. Em circunstâncias normais, isso nunca pode ser conseguido, porque a espontaneidade jamais pode ser inteiramente eliminada, uma vez que se relaciona não apenas com a liberdade humana, mas com a própria vida, no sentido da simples manutenção da existência. É somente nos campos de concentração que essa experiência é possível e, portanto, os campos são não apenas la société la plus totalitaire encore realisé (David Rousset), mas também o modelo social perfeito para o domínio total em geral. (...) por mais incrível que pareça, os campos são a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário.301

A transformação do homem que habita o espaço do campo de concentração em pura

e simples vida nua não constitui um mero fato extrapolítico natural, cuja relação com o

direito se limitaria ao reconhecimento – é, sim, um limiar em que direito e fato se misturam

e confundem, tornando-se impossível distingui-los um do outro. A regra torna-se a vida e a

mera vida torna-se a regra.

É possível observar, a tal luz, que o corpo biopolítico da nação, que constitui o

sujeito político essencial no paradigma biopolítico da modernidade, não existe nem como

fato, nem como direito, mas se forma a partir de uma decisão política soberana, que

depende da indiferenciação entre direito e fato para operar sobre a vida nua natural. É o

campo de concentração, como mecanismo de dominação total, como arauto da decisão

soberana que permite tal operação.

Essa indiferenciação entre direito e fato, que, dentre outras coisas, permitiu a

formulação de conceitos como raça e saúde biológica do povo, deriva, segundo Agamben,

em um de seus aspectos, das chamadas “cláusulas abertas, ou em branco”, do direito, as

quais, ao longo do século XIX, foram se tornando cada vez mais comuns na Europa:

301 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 488-489.

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Ninguém expressou com mais clareza do que Schmitt esta particular natureza das novas categorias biopolíticas fundamentais, quando, no ensaio de 1933 em Estado, movimento, povo, ele equipara o conceito de raça, sem o qual “o estado nacional-socialista não poderia existir, nem a sua vida jurídica seria pensável”, àquelas “cláusulas gerais e indeterminadas”, que foram penetrando sempre mais profundamente na legislação alemã e européia do Novecentos. Conceitos como “bom costume” – observa Schmitt –, “iniciativa imperiosa”, “motivo importante”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, “caso de necessidade”, que não remetem a uma norma, mas a uma situação, penetrando invasivamente na norma, já tornaram obsoleta a ilusão de uma lei que possa regular a priori todos os casos e todas as situações, e que o juiz deveria simplesmente limitar-se a aplicar. Sob a ação destas cláusulas, que deslocam certeza e calculabilidade para fora da norma, todos os conceitos jurídicos se indeterminam. “Deste ponto de vista” – ele escreve num tom inconscientemente kafkiano – “hoje em dia existem apenas conceitos jurídicos ‘indeterminados’... Desta maneira, toda a aplicação da lei está entre Cilas e Caribdes. O caminho à frente parece condenar a um mar sem limites e afastar-se sempre mais do terreno firme da certeza jurídica e da adesão à lei, que é também, ao mesmo tempo, o terreno da independência dos juízes: o caminho para trás, em direção a uma formalística superstição da lei, que foi considerada sem sentido e historicamente superada há muito tempo, também não é merecedor de consideração.” (Schmitt, 1933, p.227-229). Um conceito como aquele nacional-socialista de raça (ou, nas palavras de Schmitt, de “igualdade de estirpe”) funciona como uma cláusula geral (análoga a “estado de perigo” ou a “bom costume”) que não remete, porém, a uma situação de fato externa, mas realiza uma imediata coincidência de fato e direito. O juiz, o funcionário, ou qualquer outro que deva medir-se com ela, não se orientam mais pela norma ou por uma situação de fato, mas, vinculando-se unicamente à própria comunidade de raça com o povo alemão e o Führer, movem-se em uma zona na qual as distinções entre vida e política e entre questão de fato e questão de direito não têm mais, literalmente, sentido algum.302

É nessa perspectiva que se torna possível compreender porque a palavra do Führer,

do detentor da auctoritas, pode ser tomada como fonte imediata e em si completa da lei e

da norma. “Assim como a palavra do Führer não é uma situação factícia que se

transforma posteriormente em norma, mas é ela mesma, enquanto viva voz, norma,

também o corpo biopolítico (...) não é um inerte pressuposto biológico ao qual a norma

remete, mas é ao mesmo tempo norma e critério da sua aplicação, norma que decide o fato

que decide da sua aplicação”. 303 Arendt, inclusive, relata que Eichmann, durante seu

julgamento, quando confrontado com provas documentais de sua total lealdade a Hitler e às

302 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 178-179. 303 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 179-180.

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suas ordens, explicava que no Reich alemão as palavras do Führer tinham “força de lei” 304,

e que uma ordem direta sua não precisava ser escrita.

De acordo com os juristas nazistas, as palavras do Führer eram a lei do mundo (e

não só da Alemanha, note-se) – e toda ou qualquer ordem contrária em letra ou em intenção

à sua palavra falada, necessariamente era “ilegal”. Nessa circunstância, o líder é o

fundamento da lei, e torna-se extremamente difícil separar o legal do ilegal, que se

misturam em indistinção. Eichmann, inclusive, relata que, tão logo Hitler morreu, não

existia mais para ele a “lei local”, e que, portanto, seu juramento de lealdade ao regime não

faria mais sentido305.

A explicação de Arendt para toda essa questão está na constatação de que, no

regime nazista, os mandamentos de “não matar”, “não roubar”, foram invertidos para

“matarás”, “roubarás”, consubstanciados na vontade do Führer. O que antes era crime

tornou-se lei. A isto, grosso modo, corresponde a indeterminação entre normalidade e

exceção, entre vida e direito, entre legal e ilegal, identificada por Agamben. De toda forma,

a explicação de Arendt se ampara também na lógica de que o direito nazista tornou-se o seu

304 Remeta-se a toda a consideração anterior sobre a transição da força de lei para fora da lei – no caso, para as palavras do Führer. Talvez por isso a Constituição de Weimar tenha sido suspensa, mas não revogada – sua força constitucional estaria, agora, em Hitler? De toda forma, Arendt narra que Eichmann atribuía sua conduta de obediência ao Führer, de modo errôneo, mas que revela algumas características fundamentais do funcionamento da lei no nazismo, ao imperativo categórico kantiano. Eichmann, em determinado momento, declarou que “(...) tinha vivido toda sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, e, particularmente segundo a definição kantiana do dever. (...) para surpresa de todos, Eichmann deu uma definição quase correta do imperativo categórico: “O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio da minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais” (...). Depois de mais perguntas, acrescentou que lera a Crítica da razão pura, de Kant. (...) O que não referiu à corte foi que “nesse período de crime legalizado pelo Estado”, como ele mesmo disse, descartara a fórmula kantiana como algo não mais aplicável. Ele distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o “imperativo categórico do Terceiro Reich”, que Eichmann deve ter conhecido: “Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove” (...). Kant, sem dúvida, jamais pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no momento em que começa a agir: usando essa “razão prática” o homem encontra os princípios que poderiam e deveriam ser os princípios da lei. Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo com aquilo que ele próprio chamou de versão de Kant “para uso doméstico do homem comum”. No uso doméstico, tudo que resta do espírito de Kant é a exigência de que o homem faça mais que obedecer à lei, que vá além do mero chamado da obediência e identifique sua própria vontade com o princípio que está por trás da lei – a fonte de onde brotou a lei. Na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico que Eichmann faz dele, seria a vontade do Führer.” ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 153-154.

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contrário, e funcionou às avessas – assim como para Agamben o direito não é normalidade,

mas exceção.

O caso de consciência de Adolf Eichmann, que é realmente complicado, mas de modo nenhum único, não é comparável ao caso dos generais alemães, um dos quais, quando lhe perguntaram em Nuremberg, “Como é possível que todos vocês, honrados generais, tenham continuado a servir um assassino com lealdade tão inquestionável?”, respondeu que “não era tarefa de um soldado agir como juiz de seu comandante supremo. Que a história se encarregue disso, ou Deus no céu”. (Era o general Alfred Jodl, enforcado em Nuremberg). Eichmann, muito menos inteligente e sem nenhuma formação, percebeu pelo menos vagamente que não era uma ordem, mas a própria lei que os havia transformado a todos em criminosos. Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada no tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade.

E assim como a lei dos países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem – a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.306

O Führer, portanto, é a lei viva, o nomos empsychos, que dispensa toda e qualquer

lei positiva, porque nele está representada a lei da natureza, ou seja, nele está presente a

indistinção soberana entre vida e direito. Esta lei da natureza, como a chama Arendt,

corresponde ao mandamento de se eliminar tudo o que é nocivo e indigno de se viver, ou

seja, de se eliminar as raças sem valor para a fabricação de uma raça digna de viver, na qual

está completamente apresentada a vida nua biopolítica. A realização dessa lei no mundo

demanda igualmente a eliminação da espontaneidade humana, de modo que o domínio

305 Sobre toda essa questão, ver ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 165-166.

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absoluto sobre a vida possa incidir indistintamente tanto sobre o que é digno de viver e,

portanto, deve ser construído, quanto sobre o que é indigno de viver, e precisa ser

eliminado.

A ironia disto tudo é que essa “lei natural”, encarnada no soberano, deixaria de

existir caso se realizasse – ou seja, se, em algum momento, a vida digna fosse realmente

produzida, e a vida indigna realmente eliminada. Isto quer dizer que sempre haverá novas

formas de vida indignas, prontas para eliminação, e novas formas dignas ainda por vir – ou,

então, a humanidade se auto-eliminaria em um completo holocausto biopolítico. É

justamente por isso que Hitler chegara a planejar a eliminação eventual dos próprios

alemães – como raça que poderia se tornar indigna de viver307, e também por isso que a

306 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 166-167. 307 Coisa que certamente aconteceria na eventualidade da derrota militar. Agamben comenta, sobre a extensão da biopolítica nazista além dos judeus, que: “As leis sobre a discriminação dos hebreus monopolizaram de modo quase exclusivo as atenções dos estudiosos da política racial do terceiro Reich; entretanto, a sua plena compreensão só é possível se são restituídas ao contexto geral da legislação e da praxe biopolítica do nacional-socialismo. Elas não se exaurem nem com as leis de Nuremberg, nem com a deportação nos campos e nem mesmo com a “solução final”: estes eventos decisivos do nosso século [século XX] têm o seu fundamento na assunção incondicionada de uma tarefa biopolítica, na qual vida e política se identificam (“Política, ou seja, o dar forma à vida de um povo”) (...). Até que ponto o Reich nazista estivesse decidido a avançar, no que se refere a todos cidadãos, quando o seu programa biopolítico mostrou sua face tanatopolítica, é demonstrado por um dos projetos propostos por Hitler nos últimos anos da guerra: Após um exame radiológico nacional, o Führer receberá uma lista de todos os indivíduos doentes, particularmente daqueles afetados por disfunções renais e cardíacas. Com base em uma nova lei sobre a saúde do Reich, as famílias destes indivíduos não poderão mais conduzir vida pública e sua reprodução poderá ser vetada. O que lhes acontecerá, será matéria de ulteriores decisões da parte do Führer. (Arendt, 1976, p. 416.)”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 156-157. Arendt conta ainda duas estórias, relativas à disposição do povo alemão em se “deixar sacrificar”: “Reck-Malleczewen, que mencionei antes, conta de uma mulher da Baviera, uma “líder” que fazia discursos animadores aos camponeses no verão de 1944. Ela parecia não perder muito tempo com “armas milagrosas” e com a vitória, encarando francamente a perspectiva da derrota, que não devia preocupar nenhum bom alemão porque o Führer “em sua grande bondade preparou para todo o povo alemão uma suave morte por asfixia de gás no caso de a guerra ter um final infeliz”. (...) Minha próxima história é ainda mais adequada, uma vez que fala de alguém que não era “líder”, talvez não fosse nem membro do Partido. Aconteceu em Königsberg (...), poucos dias antes de os russos destruírem a cidade (...). Essa história é contada pelo conde Hans Von Lehnsdorff, em seu Ostpreussisches Tagebuch (1961). Ele havia ficado na cidade como médico para cuidar de soldados feridos que não podiam ser evacuados e foi chamado a um dos vastos centros de refugiados do campo, que já estava ocupado pelo Exército Vermelho. Lá, foi perseguido por uma mulher que lhe mostrou uma veia varicosa que tinha havia anos e que queria tratar agora, porque tinha tempo. “Tentei explicar que seria mais importante para ela sair de Königsberg e deixar o tratamento para depois. ‘Aonde você quer ir?’ perguntei a ela. Ela não sabe, mas sabe que serão todos levados para o Reich. E acrescenta, surpreendentemente: ‘Os russos nunca vão nos pegar. O Führer nunca vai permitir. Antes disso ele nos põe na câmara de gás’. Olho em volta, disfarçando, mas ninguém parece achar a frase fora do comum.” Dá para sentir que a história, como toda história verdadeira, está incompleta. Devia haver uma outra voz, de preferência feminina, que, suspirando profundamente, respondesse: “E agora todo aquele gás tão bom e tão caro é desperdiçado com judeus!”.” ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 126-127.

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raça superior era um objetivo distante, que, de fato, jamais poderia ser alcançado, sob pena

da impossibilidade mesma de funcionamento da lógica totalitária biopolítica308.

A lei que emana do Führer, portanto, não é nem norma, nem exceção, nem fato,

nem direito, mas sim o operador que realiza a confusão, a indiscernibilidade entre

normatização e execução da norma, entre produção do direito e sua aplicação concreta309.

Tanto que a decisão mesma sobre se um fato é político ou apolítico pode ser considerada

em si necessariamente já como uma decisão política. Se for considerado que o elemento

apolítico é a vida nua, então é no paradigma biopolítico do campo que se esclarece pela

primeira vez que o objeto elementar da política é a vida nua, sobre a qual a decisão

soberana incide e decide, a cada momento e sempre, seu destino político entre vida e morte,

entre vida digna e vida indigna de ser vivida.

O campo é o espaço desta absoluta impossibilidade de decidir entre fato e direito, entre norma e aplicação, entre exceção e regra, que entretanto decide incessantemente sobre eles. O que o guardião ou o funcionário do campo têm diante de si não é um fato extrajurídico (um indivíduo biologicamente pertencente à raça hebraica), o qual se trata de discriminar na norma nacional-socialista; ao contrário, cada gesto, cada evento no campo, do mais ordinário ao mais excepcional, opera a decisão sobre a vida nua que efetiva o corpo

308 Sobre toda essa discussão, ver ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 512-517. Arendt menciona ainda, em uma linha preciosa para este raciocínio, que o totalitarismo emprega o terror total para efetivar a lei da natureza – tal técnica tem por objetivo não só destruir as leis, mas também o espaço humano onde não há mais leis; ou seja, o terror total torna indiscerníveis a política humana regulada por leis da vida humana na qual as leis não chegariam – confunde, portanto, direito e lei: “(...) Abolir as cercas da lei entre os homens – como o faz a tirania – significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva; pois o espaço entre os homens, delimitado pelas leis, é o espaço vital da liberdade. O terror total usa esse velho truque da tirania, mas, ao mesmo tempo, destrói também o deserto sem cercas e sem lei, deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si. (...) Pressionando os homens, uns contra os outros, o terror total destrói o espaço entre eles; comparado às condições que prevalecem dentro do cinturão de ferro, até mesmo o deserto da tirania, por ainda constituir algum tipo de espaço, parece uma garantia de liberdade. O governo totalitário não restringe simplesmente os direitos nem simplesmente suprime as liberdades essenciais; (...) [mas] executa sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são “indignos de viver”(...).” (p. 518). 309 “O Führer é verdadeiramente, segundo a definição pitagórica do soberano, um nomos empsykhon, uma lei vivente (...)”.AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 180. Por outro lado, enquanto Agamben vê na “lei vivente” a impossibilidade de se diferenciar esfera pública e privada na figura do soberano, Arendt afirma que nos regimes totalitários a vida privada do líder é mantida em segredo: “(...) A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida privada dos seus líderes (Hitler e Stálin) contrasta com a importância que as democracias vêem na divulgação da vida privada de presidentes, reis, primeiros-ministros etc. Os métodos totalitários não permitem uma identificação baseada na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 423. A observação de Arendt, todavia, apenas repara a lógica de Agamben, sendo possível, então, interpretar o segredo sobre a vida privada do líder como a diluição desta em sua vida pública, realçando-se, desse modo, o caráter sobre-humano do nomos e da soberania.

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biopolítico alemão. A separação do corpo hebreu é imediata produção do corpo próprio alemão, assim como a aplicação da norma é a sua produção. Se isto é verdadeiro, se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na conseqüente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica. Será um campo tanto o estádio de Bari, onde em 1991 a polícia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses antes de reexpedi-los ao seu país, quanto o velódromo de inverno no qual as autoridades de Vichy recolheram os hebreus antes de entregá-los aos alemães; tanto o Konzentrationslager für Ausländer em Cottbus-Sielow, no qual o governo de Weimar recolheu os refugiados hebreus orientais, quanto as zones d’attente nos aeroportos internacionais franceses, nas quais são retidos os estrangeiros que pedem o reconhecimento do estatuto de refugiado. Em todos estes casos, um local aparentemente anódino (como, por exemplo, o Hotel Árcades, em Roissy) delimita na realidade um espaço no qual o ordenamento normal é de fato suspenso, e que aí se cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana (por exemplo, nos quatro dias em que os estrangeiros podem ser retidos na zone d’attente, antes da intervenção da autoridade judiciária).310

O surgimento do campo de concentração seria, então, a marca decisiva do

paradigma biopolítico da modernidade. Sua origem está na crise do nexo nascimento-nação

que definia os integrantes de um Estado fixado em um determinado território (ou seja, que

permitia a inscrição da vida nua no interior do Estado), cujo resultado reside na política

estatal de assumir diretamente a responsabilidade pela saúde do corpo biológico da nação

(ou seja, pela inscrição, ou não, da vida nua em seu interior).

Na medida em que a inscrição da vida nua no interior do Estado deixa de ser

efetivamente realizada pelo nascimento, a biopolítica estatal assume a tarefa incessante de

decidir a cada momento sobre o valor dessa vida nua. A operação da biopolítica pelo

Estado, no caso, depende da indeterminação entre norma e exceção, e entre direito e sua

aplicação, que resultam na implementação do estado de exceção como forma estável de

organização espacial, política e jurídica, e que possibilitam esse “eterno” decidir e re-

decidir sobre a vida nua. “O deslocamento crescente entre o nascimento (a vida nua) e o

Estado-nação é o fato novo da política do nosso tempo, e aquilo que chamamos de campo é

o seu resíduo. A um ordenamento sem localização (o estado de exceção, no qual a lei é

310 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 180-181.

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suspensa) corresponde agora uma localização sem ordenamento (o campo, como espaço

permanente de exceção)”.311 Disto Agamben pode concluir que:

(...) O sistema político não ordena mais formas de vida e normas jurídicas em um espaço determinado, mas contém em seu interior uma localização deslocante que o excede, na qual toda forma de vida e toda norma podem virtualmente ser capturadas. O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zones d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. Este é o quarto, inseparável elemento que veio a juntar-se, rompendo-a, à velha trindade Estado-nação (nascimento)-território.312

O campo de concentração seria, dessa forma, o nomos biopolítico que rege, ainda

que de forma oculta, o funcionamento de toda a política moderna. Seus efeitos têm se

tornado, sob um ponto de vista estrutural, cada vez mais profundos e radicais no interior

das democracias contemporâneas – a despeito de elas, a princípio, não adotarem

explicitamente o princípio totalitário e a técnica do estado policial. Isto se dá justamente

por causa da vocação biopolítica da modernidade, que, todavia, encontra-se já na matriz

ontológica tanto do direito quanto da política ocidental.

A extensa discussão sobre o Estado de Exceção e o homo sacer revela de que modo,

na perspectiva de Agamben, a suspensão do direito se relaciona com a soberania e com o

exercício dos poderes políticos executivo e legislativo. Tal questão foi amplamente

apresentada nos três primeiros capítulos que ora se encerram. O papel do poder judiciário

nesse cenário, ignorado por Agamben, é a questão a ser abordada nos dois últimos capítulos

da presente tese. Nestes, pretende-se justamente identificar qual é o locus e a função deste

poder no panorama geral da biopolítica e da teoria do estado de exceção postuladas por

Agamben.

311 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 182. 312 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 182.

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Capítulo IV – Autoridade e Estrutura Lingüística

da Exceção.

Traçados os contornos básicos da teoria de Agamben, torna-se necessário abordar

alguns dos aspectos de sua perspectiva que não são por ele apreciados. Com tal intento,

volta-se, em um primeiro momento, para a avaliação da estrutura lógica da autoridade,

tendo em vista tanto a possibilidade legal-constitucional de uma exceção formal, quanto a

mais corriqueira possibilidade de suspensão do direito efetivada pelos chamados atos

apócrifos de soberania – ou, em outros termos, à questão da exceção geral e informal

mencionada por Agamben, presente no chamado “estado de exceção permanente”.

À luz de tal quadro, será possível avaliar em que medida o exercício da soberania

necessita de construções discursivas que a liguem e vinculem a algum critério de

legitimidade que autorize a sua existência concreta na comunidade político-jurídica como

válida.

A partir de tal sugestão, bem como dos vínculos que Agamben estabelece entre

direito, política e linguagem, voltar-se-á para a interpretação lingüística da teoria de

Agamben, ou, em outros termos, para o que significam e como funcionam a exceção e a

suspensão da ordem político-jurídica em termos lingüístico-semióticos estruturalistas.

A exceção jurídica acarreta conseqüências lingüísticas e discursivas peculiares, que

definem as formas através das quais a ligadura e o vínculo entre ato soberano (potestas) e

autoridade legitimadora (auctoritas) podem ser construídos. Tais questões têm seu grau de

importância vinculado ao aspecto central da presente tese, ou seja – o de qual é o papel do

poder judiciário para a biopolítica e para o direito encarado ontologicamente como

abandono e exceção.

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1. A estrutura formal da Exceção e o fundamento da autoridade apócrifa.

Tome-se, como exemplo de Constituição, e para se avaliar a estrutura da exceção

formal – ou seja, aquela que é declarada e prevista pelo ordenamento jurídico –, a

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, fruto do longo processo de

redemocratização nacional313. O artigo 21, V, estabelece que compete à União decretar o

estado de sítio e o estado de defesa. Já o artigo 49, IV, define como competência exclusiva

do Congresso Nacional aprovar o estado de defesa, autorizar o estado de sítio, ou suspender

qualquer uma dessas medidas. O artigo 84, IX, ao seu turno, atribui como competência

privativa do Presidente da República decretar o estado de defesa e o estado de sítio. Os dois

institutos do estado de sítio e do estado de defesa são explanados nos artigos 136 e

seguintes do Título V da Constituição Federal:

TÍTULO V Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas

CAPÍTULO I DO ESTADO DE DEFESA E DO ESTADO DE SÍTIO

Seção I DO ESTADO DE DEFESA

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de:

313 Na práxis histórica propriamente dita, a utilização do estado de sítio como forma de exceção teve seus altos e baixos – mas integrou consistentemente a experiência brasileira, principalmente no transcorrer do século XX. Ao longo do Império o estado de sítio (formalmente declarado) praticamente não foi empregado, com exceção de raras situações localizadas, como, por exemplo, no decorrer da Guerra do Uruguai, em 1864, na região de Paissandu. Durante a Velha República, por outro lado, foi bastante comum a utilização do estado de sítio, principalmente nos governos de Floriano Peixoto e Arthur Bernardes. Foge ao escopo desta tese, outrossim, analisar a larga utilização do estado de exceção durante as ditaduras getulista e militar, bem como no conturbado interregno entre ambas. A ditadura militar instaurada em 1964, por sua vez, além de ter se utilizado diversas vezes da proclamação oficial do Estado de Exceção em face de alguma emergência, pode ser considerado, mesmo em sua “normalidade” institucional, como um regime de exceção informal e geral nos termos propostos por Agamben.

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a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

§ 2º - O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.

§ 3º - Na vigência do estado de defesa:

I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;

II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;

IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.

§ 4º - Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.

§ 5º - Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.

§ 6º - O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.

§ 7º - Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.

Seção II DO ESTADO DE SÍTIO

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos

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determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.

§ 1º - O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira.

§ 2º - Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato.

§ 3º - O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas.

Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

I - obrigação de permanência em localidade determinada;

II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV - suspensão da liberdade de reunião;

V - busca e apreensão em domicílio;

VI - intervenção nas empresas de serviços públicos;

VII - requisição de bens.

Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa.

Seção III DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 140. A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio.

Art. 141. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes.

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Parágrafo único. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas.

Na estrutura constitucional brasileira atual há, portanto, dois modelos de

funcionamento da situação de exceção formal314. No primeiro deles, o Presidente da

República decreta o Estado de Defesa, após ouvir o Conselho da República e o Conselho de

Defesa Nacional, ambos órgãos do poder executivo, e, dentro de vinte e quatro horas, o ato

é submetido à apreciação do Congresso Nacional, que, ou o aprova, ou o suspende, por

decisão da maioria absoluta de seus membros.

Já no segundo modelo, o Presidente da República, ouvidos os mesmos órgãos

citados, solicita autorização ao Congresso Nacional para decretar o estado de sítio, que

decidirá também por maioria absoluta de seus membros. A diferença real entre os dois

modelos é que no primeiro deles o Presidente primeiro decreta o estado de defesa, e,

posteriormente, tem seu ato aprovado ou suspenso; no segundo, entretanto, é necessária,

primeiro, a autorização do poder legislativo, sem a qual não se instaura o estado de sítio.

No mais, a lógica de funcionamento estrutural de ambos os institutos é igual.

A análise da estrutura da exceção formal – ou seja, dessa exceção que está prevista

em um texto legal e parece ter alguma formatação jurídica que a limita e lhe traça os

contornos – reporta-se diretamente à avaliação do papel da auctoritas, e sua relação com os

poderes executivo e legislativo. Conforme visto, o iustitium romano, considerado como a

primeira exceção “legalmente prevista”, era declarado ex auctoritate patrum, ou seja, a

proclamação do iustitium dependia da convalidação do Senado romano, detentor da

autoridade para tanto.

314 Antes do advento da Constituição Federal de 1988, observa-se que o tratamento dado ao estado de exceção no ordenamento constitucional varia de acordo com a tendência democrática ou ditatorial em cada circunstância histórica. Nos momentos políticos democráticos, o estado de sítio cumpre o papel da exceção, e a força soberana que o instala depende da atuação conjunta entre o poder executivo e o poder legislativo. Já nos períodos ditatoriais, o poder executivo adquire preeminência na decretação do estado de sítio, que por

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A auctoritas tem a função de autorizar ou ratificar o ato de outro que não o detentor

da auctoritas – no caso romano, para conferir legitimidade aos atos promanados da potestas

dos magistrados e do povo romano. A legitimidade do Senado em si como detentor de

autoridade reside, conforme compreendido a partir de Arendt, na tradição e no vínculo com

o ato de fundação da cidade de Roma. Em última instância, porém, a auctoritas tem seu

fundamento, como forma de poder, na possibilidade de suspender ou “re-ativar” uma

situação anômica de suspensão do direito.

Os conceitos de auctoritas e potestas, a despeito de sua origem romana, não

perderam importância para a reflexão moderna sobre política e direito, bem como para a

teoria constitucional e o próprio funcionamento institucional da política contemporânea.

Carl Schmitt relaciona a separação concreta desses dois conceitos tanto à tradição de

pensamento do direito público europeu quanto à temática relativa sobre a quem caberia a

“guarda” da Constituição. Nesse contexto, ele menciona o exemplo do Senado romano

como uma influência decisiva sobre o constitucionalismo moderno:

Em todo caso, torna-se necessário apreciar o problema no contexto concreto de nossa situação de direito público e constitucional. Como prova dessa necessidade, basta relembrar, perante as abstrações precipitadas daquelas primeiras tentativas de solução, os diversos “guardiões da Constituição” que surgiram em grande número na longa história do problema constitucional. O exemplo clássico dos éforos espartanos é ainda freqüentemente citado no século XIX, na maioria das vezes com o inevitável quis custodiet ipsos custodes e com a advertência como aditamento de que o guardião se torna facilmente senhor da Constituição e que ocorre o perigo de um duplo chefe de Estado, mas às vezes também com a queixa sobre as conseqüências ruins de uma instância inamovível, irresponsável, que decide à sua discrição. Outras propostas e instituições como as de tribunos, censores e síndicos pertencem igualmente a este tipo de guardiões da Constituição. O segundo tipo baseia-se no modelo do senado romano que, por meio de sua tarefa inibitiva e conservadora, foi um verdadeiro defensor das condições constitucionais romanas e cuja autoridade – a palavra é, aqui, usada em seu expressivo sentido para se diferenciar de potestas – tinha que homologar as deliberações populares para que fossem impedidas violações da ordem constitucional e das obrigações internacionais. Este modelo também continuou a produzir efeitos por muito tempo no pensamento constitucional dos europeus. Nele baseia-se o hábito em se tornar uma segunda câmara guardiã da Constituição. (...) Na literatura a respeito de teoria do Estado e

vezes adquire a feição de estado de emergência, estado de guerra, ou mera suspensão de direitos e garantias constitucionais, e não depende da autorização do poder legislativo para implementar a exceção.

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teoria constitucional, sempre permaneceu vivo o modelo de um “senado” defensor da Constituição.315

Na hipótese constitucional que vem sendo analisada, a divisão de funções fica bem

clara. O Presidente da República é o detentor da potestas/imperium para a implementação

tanto do estado de defesa quanto do estado de sítio, mas sua potestas/imperium, sozinha,

não tem condições de suspender o direito. É apenas com a “aprovação” (ratificação) do

estado de defesa, ou com a “autorização” do estado de sítio, ambas concedidas pelo

Congresso Nacional, que o seu decreto adquire legitimidade, e a situação de exceção é

efetivamente instaurada. Logo, à atuação da potestas executiva corresponde a auctoritas

legislativa, de modo que ambas, conjuntamente, dão vigência à suspensão formal do direito.

Nesse sentido, os dois mecanismos de exceção declarada e formal previstos no

ordenamento constitucional brasileiro mostram sua conexão aparente com o modelo do

Senado romano316, e, de fato, com o modelo mencionado por Schmitt de uma segunda

câmara responsável pela guarda da intangibilidade da Constituição em face de uma

pretensão de exceção do poder executivo – intangibilidade e responsabilidade estas

pertinentes tanto ao que Schmitt chama de Constituição, quanto de “leis ou normas

315 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Trad.: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 9-13. Sobre os éforos, explica-se que: “(...) Os éforos tinham a tarefa de conservar a ordem social e estatal existente, assim como a cultura e os costumes cívicos, para que o nomos fosse o único senhor no Estado. Eles ajuramentavam o rei e prestavam um contrajuramento. Tinham também que, sobretudo, proteger a ordem existente contra uma rebelião dos helotas subjugados e podiam matar, sem mais, helotas suspeitos. Isso era válido como guerra contra o inimigo interno, por isso, todo ano, os éforos declaravam formal e festivamente guerra aos helotas. Busolt-Swoboda (p. 670) tem isso como uma “astúcia ingênua”. Ele tem razão, pois há na luta contra o “inimigo interno” métodos que demonstram mais astúcia do que ingenuidade. Em todo caso, os éforos foram historicamente uma autoridade, cujo caráter político se comprova justamente neste contexto com um termo inimigo e de política interna.”(p. 10). Os helotas, no caso, inserem-se na mesma lógica ontológica do homo sacer e da vida nua. Ainda sobre o tema da autoridade, Schmitt menciona em outra obra, que: “Na palavra monarquia não se deve deixar de atentar que o principado de César Augusto se manteve na sua legitimação republicana. A continuidade do dualismo do senado romano e povo romano, do Patres conscripti e populus, ou seja, reunião de cidadãos, de auctoritas e potestas, permanece reconhecida, apesar de todas as mudanças e catástrofes através dos séculos, de forma que o papa romano Gelásio, ainda no final do século V (494), quis vincular-se a isso para requerer a auctoritas para si, em vez de ao bispo da igreja romana e remeter o imperador cristão ao imperium e a potestas.” SCHMITT, Carl. Teologia Política. p.102-103. 316 Isto porque o Senado romano detinha apenas autoridade, não podendo de fato ser equiparado a um órgão com poder (potestas) legislativo, que o Senado romano não exercia de modo nenhum.

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constitucionais”. Isto, todavia, e como se verá, não torna o Senado brasileiro “guardião” da

Constituição, ao menos não no sentido que Schmitt dá ao termo “guardião” 317.

O Congresso Nacional, portanto, revela-se, em sua relação com o Presidente da

República para instauração de uma situação formal de exceção, como o detentor da

auctoritas. Tanto que, além de convalidar a instauração da situação de exceção formal, a

ele compete igualmente suspender o estado de defesa ou de sítio – o que corresponde ao

segundo fundamento da auctoritas, ou seja, a possibilidade de re-ativar o direito que havia

sido suspenso.

Se o soberano, como se vem propondo, é definido como o detentor do poder de

instaurar a exceção, então, na atual relação entre o legislativo e o executivo, não está claro

qual deles seria o detentor da soberania, de forma que é possível manter, formalmente, a

ficção formal de que o povo é o soberano – conforme definido pela expressão “Todo o

poder emana do povo”, constante do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal

de 1988318.

Apesar de Agamben não esclarecer este ponto muito bem, é evidente que a relação

entre auctoritas, exceção e soberania se mostra de modo muito mais claro na chamada

auctoritas principis, ou seja, a autoridade originalmente reivindicada pelos imperadores

romanos, que reuniam em sua pessoa, simultaneamente, potestas, imperium e auctoritas.

317 O “guardião” da Constituição para Schmitt é quem decide sobre os conflitos constitucionais, ou sobre a constitucionalidade de leis e atos estatais: “(...) Destarte, desde a Constituição de Weimar, interessa-se novamente pelas garantias especiais da Constituição e pergunta-se pelo seu guardião e defensor. O tribunal do Estado para o Reich alemão qualifica-se como “guardião da Constituição do Reich”. Numerosas propostas exigem um tribunal do Estado ou constitucional como guardião, garante, vigia ou fiel depositário da Constituição. (...) As propostas de leis e projetos, até agora, partiam quase todos do princípio de que um tribunal do Estado deveria decidir, em um processo judicial, tanto litígios constitucionais quanto dúvidas e divergências de opinião acerca da constitucionalidade de leis do Reich”. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 4-5. Observe-se, todavia, que Schmitt não aceita a idéia de que um tribunal jurídico seria idealmente o “guardião” da Constituição, mas antes exige tal papel para o Presidente do Reich alemão. 318 Schmitt mesmo afirma que somente podem ser soberanos ou o príncipe, ou o povo: “Se somente Deus é soberano, aquele que, na realidade terrena, age de modo incontestável como seu representante, imperador, soberano ou o povo, isto é, aquele que pode identificar-se, indubitavelmente, com o povo também é soberano.” SCHMITT, Carl. Teologia Política. p. 10. Também ao tratar do poder constituinte – cuja diferença em relação à soberania, como visto, não é nem um pouco clara – Schmitt menciona que apenas o monarca ou o povo (nação) podem ser sujeitos do poder constituinte. Sobre o tema, ver o §8 da Seção Primeira de seu Teoría de la Constitución.

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Conforme anteriormente visto, a função constitucional do Imperador romano, ainda que

detentor de imperium e potestas é a de fiador, auctor, da República Romana, que se

constitui apenas por e através dele319. É na circunstância dessa reunião de atributos em um

único ponto que direito e vida se indeterminam, e a relação entre exceção e auctoritas

(como fundamento último da exceção) se mostra de modo evidente – pois é a auctoritas,

tomada nesse conjunto compartilhado com potestas/imperium, como o verdadeiro

fundamento do poder soberano, que permite a instauração generalizada da exceção.

A auctoritas principis seria o poder pessoal e carismático do chefe, que deriva

imediatamente de sua pessoa, de sua vida. Não à toa, por exemplo, é possível observar na

história brasileira o alargamento do estado de exceção formal (e também da situação de

exceção real) durante o período getulista, já que Vargas se qualifica facilmente como um

chefe carismático no qual auctoritas, potestas e imperium estão todos reunidos como

fundamento político e jurídico do regime implementado à época320. Na situação de cisão

entre potestas/imperium localizada no Poder Executivo, e auctoritas presente no Poder

Legislativo, é impossível, de fato, localizar facilmente onde reside o poder soberano, já que

nenhum dos dois poderes assume para si a chamada auctoritas principis321.

319 Que, nos termos postos por Arendt, seria o principal “aumentador” e conservador da fundação da cidade de Roma. 320 Cabe reflexão acerca da existência, ou não, do funcionamento estrutural de alguma espécie de auctoritas principis durante o regime militar iniciado em 1964. Em um primeiro momento, não parece que algum dos Presidentes e chefes militares tenha efetivamente assumido o papel de chefe carismático. Seria possível imaginar, então, que uma espécie de auctoritas principis tenha transitado não para um chefe específico, mas para a instituição Exército/Forças Armadas? O assunto carece de investigação. 321 Justamente por não se tratar de uma situação limítrofe, o tema não é propriamente tratado por Agamben. Entretanto, há uma sugestão clara de que realmente o problema surge apenas quando os dois elementos se reúnem em um único locus: “(...) O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois elementos heterogêneos e, no entanto, coordenados: um elemento normativo e jurídico em sentido estrito – que podemos inscrever aqui, por comodidade, sob a rubrica de potestas – e um elemento anômico e metajurídico – que podemos designar pelo nome de auctoritas. O elemento normativo necessita do elemento anômico para poder ser aplicado, mas, por outro lado, a auctoritas só pode se afirmar numa relação de validação ou de suspensão da potestas. Enquanto resulta da dialética entre esses dois elementos em certa medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do direito é frágil e, em sua tensão para manter a própria ordem, já está sempre num processo de ruína e decomposição. O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Ele se baseia na ficção essencial pela qual a anomia – sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei – ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida. Enquanto os dois elementos permanecem ligados, mas conceitualmente, temporalmente e subjetivamente distintos – como na Roma republicana, na contraposição entre Senado e povo, ou na Europa

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Formalmente, portanto, o poder de declarar a exceção se divide entre a potestas do

Presidente da República e a auctoritas do Congresso Nacional, de modo que a soberania

pode então ser formalmente deslocada para a imagem do povo, do qual promanaria tanto a

potestas presidencial, por meio do princípio de eleição democrática, quanto a auctoritas

legislativa, por meio do princípio da representação. A dita auctoritas principis residiria,

desse modo, no povo, mas, pela cisão dos poderes que a compõe por meio da política

representativa e democrática, o sistema funcionaria sem que a anomia da auctoritas e o

nomos da potestas se indeterminassem em uma única pessoa, em um único locus.

O problema do povo definido como o portador da soberania é abordado por

Agamben em um extenso apêndice explicativo:

Toda interpretação do significado do termo “povo” deve partir do fato singular de que, nas línguas européias modernas, ele sempre indica também os pobres, os deserdados, os excluídos. Um mesmo termo denomina, assim, tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política. (...) O quanto esta ambigüidade fosse essencial, mesmo durante a Revolução Francesa (ou seja, justamente no momento em que se reivindica o princípio da soberania popular), é testemunhado pela função decisiva que aí desempenhou a compaixão pelo povo entendido como classe excluída (...). Mas já em Bodin, num sentido oposto, no capítulo da République em que é definida a Democracia, ou Etat populaire, o conceito é duplo: ao peuple em corps, como titular da soberania, contrapõe-se o menu peuple que a sabedoria aconselha excluir do poder político. Uma ambigüidade semântica tão difusa e constante não pode ser casual: ela deve refletir uma anfibolia inerente à natureza e à função do conceito “povo” na política ocidental. Tudo advém, portanto, como se aquilo a que chamamos de povo fosse, na realidade, não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialética entre dois pólos opostos: de um lado, o conjunto Povo como corpo político integral, de outro, o subconjunto povo como multiplicidade de corpos carentes e excluídos; lá, uma inclusão que se pretende sem resíduos, aqui uma exclusão que se sabe sem esperança; em um extremo, o total dos cidadãos integrados e soberanos, no outro, a escória – corte dos milagres ou campo – dos miseráveis, dos oprimidos, dos vencidos. Um referente único e compacto do termo “povo” não existe, neste sentido, em parte alguma: como muitos conceitos políticos fundamentais (...), povo é um conceito polar que indica um duplo movimento e uma complexa relação entre os dois extremos. Mas isto significa, também, que a constituição da espécie humana em um corpo político passa por uma cisão fundamental, e que, no conceito “povo”,

medieval, na contraposição entre poder espiritual e poder temporal –, sua dialética – embora fundada sobre uma ficção – pode, entretanto, funcionar de algum modo. Mas, quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de exceção em que eles se ligam e se indeterminam torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal.” AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 130-131.

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podemos reconhecer sem dificuldades os pares categoriais que vimos definir a estrutura política original: vida nua (povo) e existência política (Povo), exclusão e inclusão, zoé e bíos. O “povo” carrega, assim, desde sempre, em si, a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e as aporias às quais ele dá lugar toda vez que é evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo que já é desde sempre, e que deve, todavia, realizar-se; é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território. Ou então, no pólo oposto, ele é aquilo que falta por essência a si mesmo e cuja realização coincide, portanto, com a própria abolição; é aquilo que, para ser, deve negar, com o seu oposto, a si mesmo (daí as específicas aporias do movimento operário, dirigido ao povo e, simultaneamente, tendendo à sua abolição) (...). Se isto é verdadeiro, se o povo contém necessariamente em seu interior a fratura biopolítica fundamental, será então possível ler de modo novo algumas páginas decisivas da história do nosso século [século XX]. (...) Na Idade Moderna, miséria e exclusão não são somente conceitos econômicos ou sociais, mas são categorias eminentemente políticas (todo o economicismo e o “socialismo” que parecem dominar a política moderna têm, na realidade, um significado político, aliás, biopolítico). Nesta perspectiva, o nosso tempo nada mais é que a tentativa – implacável e metódica – de preencher a fissura que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos. Esta tentativa mancomuna, segundo modalidades e horizontes diversos, direita e esquerda, países capitalistas e países socialistas, unidos no projeto – em última análise vão, mas que se realizou parcialmente em todos os países industrializados – de produzir um povo uno e indiviso. A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz, em nosso tempo, porque coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura (...). Parafraseando o postulado freudiano sobre a relação entre Es e Ich, se poderia dizer que a biopolítica moderna é regida pelo princípio segundo o qual “onde existe vida nua, um Povo deverá existir”; sob condição, porém, de acrescentar imediatamente que este princípio vale também na formulação inversa, que reza “onde existe um Povo, lá existirá vida nua” (...).322

322 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. p. 183-186. Curiosamente, Hannah Arendt vincula a falência de qualquer projeto político, e, principalmente, do projeto político da Revolução Francesa, à inclusão dos problemas econômicos do “povo deserdado” nas preocupações políticas do projeto ou da Revolução: “Os revolucionários profissionais do início do século XX podem ter sido os tolos da História, mas certamente eles próprios não eram loucos. Como uma categoria de pensamento revolucionário, a noção de necessidade histórica tinha algo mais a recomendá-lo do que o mero espetáculo da Revolução Francesa, mais ainda do que a atenta recapitulação do curso dos seus eventos, e da subseqüente condensação dos acontecimentos em conceitos. Por trás das aparências, havia uma realidade, embora talvez fosse a primeira vez que ela aparecesse em plena luz da História. Numa visão introspectiva, a necessidade mais poderosa que temos conhecimento é o processo vital, que impregna os nossos corpos e os mantém num estado de constante mudança, cujos movimentos são automáticos, independentes de nossa vontade e irresistíveis – isto é, de uma avassaladora urgência. Quanto menos agimos, quanto menos ativos nos mostramos, tanto mais intensamente esse processo biológico se afirma, impõe sobre nós sua intrínseca necessidade, e nos intimida com o seu fatídico automatismo de pura transcorrência, subjacente a toda a história humana. A necessidade dos processos históricos, assimilada originalmente à imagem do movimento cíclico, regular e necessário dos corpos celestes, encontrou sua poderosa contrapartida na necessidade recorrente a que toda a vida humana está sujeita. Quando isso aconteceu, e aconteceu quando os pobres, movidos por suas necessidades físicas, irromperam no palco da Revolução Francesa, a metáfora astronômica, tão plausivelmente adequada à perpétua mudança, aos altos e baixos do destino humano, perdeu suas antigas conotações, e adquiriu a acepção biológica que alicerça e impregna as teorias sociais e orgânicas da História, as quais têm em comum o fato de compararem uma multidão – a pluralidade fatual de uma nação, ou um povo, ou uma sociedade – a

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A aparente localização formal e institucional do princípio da soberania no “Povo”,

portanto, faz parte do cenário biopolítico moderno, diante da cisão entre autoridade

legislativa e potestas executiva323. Entretanto, conforme Agamben ressalta, esse modelo

produz incessantemente exceção e vida nua. Isso acontece porque, como é facilmente

compreensível a partir da análise já empreendida, a exceção não se resume a sua faceta

formal. Pelo contrário, muito mais presente é a exceção que se instaura sem ser declarada,

sem ser formalmente validada pela instância que a implementa – e que depende da

existência de um soberano, quiçá oculto, detentor concreto ou potencial de auctoritas e de

potestas.

Nesse sentido, a situação de exceção real e informal, ou seja, que subsiste sem se

ajustar ao molde constitucional ou legal presente em um determinado ordenamento jurídico,

um corpo sobrenatural, movido por uma sobre-humana, irresistível “vontade geral.” A realidade que corresponde a essa imaginária moderna é aquilo que, desde o século XVIII, veio a ser chamado de questão social, e que poderíamos, melhor e mais simplesmente, denominar de existência de pobreza. Pobreza é mais do que privação, é um estado de constante carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é abjeta, porque submete os homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente de todas as especulações. Foi sob o ditame dessa necessidade que a multidão acudiu ao apelo da Revolução Francesa, inspirou-a, impulsionou-a para a frente, e, finalmente, levou-a à destruição, pois essa era a multidão dos pobres. Quando eles surgiram no cenário da política, com eles surgiu a necessidade, e o resultado foi que o poder do Antigo Regime tornou-se impotente e a nova república nasceu morta; a liberdade teve de render-se à necessidade, à urgência do processo vital. Quando Robespierre declarou que “tudo o que é necessário à manutenção da vida deve ser bem comum, e apenas o excedente pode ser considerado propriedade privada”, ele não estava apenas invertendo a teoria política pré-moderna, que afirmava que era exatamente o excedente dos cidadãos, em tempo e bens, que devia ser distribuído e compartilhado em comum; ele estava, segundo suas próprias palavras, submetendo finalmente o governo revolucionário à “mais sagrada de todas as leis, o bem-estar do povo, e ao mais irrefutável dos títulos, a necessidade”. Em outras palavras, ele havia renegado seu próprio “despotismo da liberdade”, sua ditadura em favor da fundação da liberdade, e se voltado para os “direitos dos sans-culottes”, que se traduziam em “vestuário, alimentação e reprodução de sua espécie”. Foi a necessidade, as urgentes carências do povo, que desencadeou o terror e levou a revolução à sua ruína. Robespierre, por fim, sabia muito bem o que estava ocorrendo, embora o expressasse (em seu último discurso) em forma de profecia: “Haveremos de perecer, pois, na história da humanidade, perdemos a ocasião oportuna de fundar a liberdade”. Não foi a conspiração de reis e de tiranos, mas a conspiração muito mais poderosa da necessidade e da pobreza que os desviou por tempo o suficiente para fazê-los perder o “momento histórico”. Entrementes, a revolução mudara de rumo; não buscava mais a liberdade; seu objetivo agora era a felicidade do povo”. ARENDT, Hannah. Da Revolução. Trad.: Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Editora Ática e Editora Universidade de Brasília, 1988. p. 47-48. Em diversos de seus escritos, a autora consigna que a política em suas origens gregas se fundava na igualdade de homens que não estavam submetidos à carências e necessidades (principalmente por usarem trabalho escravo), bem como credita, dentre outros fatores, o sucesso que identifica na Revolução Americana à ausência de miséria nas colônias inglesas da América do Norte. 323 Conforme visto na nota de rodapé anterior, Arendt igualmente identifica a proeminência do povo com a emergência da questão biológica na modernidade.

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assim como a situação de exceção formal, depende também da atuação da auctoritas para

subsistir. Essa auctoritas, aparentemente oculta e deveras relevante, é a “autora” da

suspensão generalizada do direito, que instaura a situação de exceção independentemente

de qualquer ficção de efetiva vigência de um ordenamento jurídico.

A existência dessa auctoritas ou poder soberano ocultos é extremamente importante

na medida em que a vigência de um estado de exceção geral e informal é um dos núcleos

centrais do pensamento de Agamben – é na predominância dele como técnica de governo

que reside a produção de vida nua na modernidade. Nisto, ele está novamente inspirado em

Carl Schmitt, para quem a decisão sobre o estado de exceção – e, por conseqüência, sobre a

normalidade do direito –, revela a essência mesma da autoridade estatal, da autoridade do

poder político324. É soberana, portanto, a autoridade que decide em definitivo sobre a

suspensão da ordem jurídica, ou da ordem constitucional – seja essa suspensão particular,

seja geral:

(…) En un quebrantamiento de la Constitución no se reforma la normación legal-constitucional, sino que se adopta sólo en un caso particular – quedando subsistente su validez, por lo demás, y en general – una disposición que la desvía. No sólo no se emprende una reforma de la ley constitucional, sino que precisamente se da por supuesto que ésta sigue valiendo, inalterada. Tales quebrantamientos son, por su naturaleza, medidas; no son normas y, por eso, tampoco leyes en el sentido jurídico-político de la palabra, ni, en consecuencia, leyes constitucionales. Su necesidad resulta de la situación especial de un caso concreto, de una coyuntura anormal imprevista. Cuando se adoptan tales quebrantamientos y medidas en interés de la existencia política del todo, se muestra con ello la supremacía de lo existencial sobre la simple normatividad. Quién está facultado y en condiciones de realizar tales actuaciones, obra soberanamente. Por eso en la Historia del Derecho la cuestión de la soberanía y del <<absolutismo>> ha sido, desde el siglo XVI, la cuestión del quebrantamiento del orden legítimo existente. El Príncipe estaba legibus solutus, es decir, facultado y en condiciones de adoptar, sin que

324 “A norma necessita de um meio homogêneo. Essa normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar. Ao contrário, pertence à sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante. Todo Direito é “direito situacional”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele tem o monopólio da última decisão. Nisso repousa a natureza da soberania estatal que, corretamente, deve ser definida, juridicamente, não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio decisório, em que a palavra decisão é utilizada no sentido geral ainda a ser desenvolvido. O estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal. Nisso, a decisão distingue-se da norma jurídica e (para formular paradoxalmente), a autoridade comprova que, para criar direito, ela não precisa ter razão/direito.” SCHMITT, Carl. Teologia Política. p. 13-14. Que a autoridade não precise ter razão ou direito para criar direito está relacionado ao seu fundamento místico e tradicional.

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se lo impidieran los límites de leyes y tratados en vigor, las medidas exigibles, según la situación de las cosas, en interés de la existencia política. (…) También para el moderno Estado de Derecho estos quebrantamientos ofrecen el criterio de la soberanía. La dificultad estriba aquí en que el Estado burgués de Derecho parte de la idea de que el ejercicio todo de todo el poder estatal puede ser comprendido y delimitado sin residuo en leyes escritas, con lo que ya no cabe ninguna conducta política de ningún sujeto – sea el Monarca absoluto, sea el pueblo políticamente consciente –; ya no cabe una soberanía, sino que han de ponerse en pie ficciones de distintas especies; así, ya no habrá soberanía, o, lo que es igual, la <<Constitución>> – más exacto: las normaciones legal-constitucionales – será soberana, etc. (…) Pero, en realidad, son precisamente las decisiones políticas esenciales las que escapan de los contornos normativos. Entonces la ficción de la normatividad absoluta no presenta otro resultado que el de dejar en la sombra una cuestión tan fundamental como la de la soberanía. Ya para los inevitables actos de soberanía se desarrolla un método de actos apócrifos de soberanía.325

A citação acima trata , grosso modo, da exceção que se funda no caso particular, ou

seja, da situação concreta sobre a qual se decide não aplicar a lei para, supostamente,

mantê-la existente – e que, muitas vezes, é tomada como se não se estivesse propriamente

suspendendo a lei, mas, ou apenas excluindo uma situação de sua incidência, ou,

surpreendentemente, aplicando-a efetivamente a partir de sua “razão de ser” ou “espírito”.

Schmitt trata também, todavia, da suspensão explícita da ordem jurídica e da lei, ou seja, da

exceção propriamente dita, da suspensão da ordem jurídica com um todo (de sua validade

momentânea), a que corresponde o estado de sítio:

(...) Con frecuencia se designa indebidamente la temporal suspensión de varias o de todas las prescripciones de la ley constitucional, como suspensión <<de la Constitución>>. La Constitución en sentido proprio, esto es, las decisiones políticas fundamentales sobre la forma de existencia de un pueblo, no pueden, claro está, perder temporalmente su vigor, pero sí – y por cierto en interés de que subsistan esas decisiones políticas – las normaciones generales contenidas en ley constitucional y surgidas para llevar a ejecución tales decisiones. En especial, están sometidas a suspensión temporal las normaciones, típicas del Estado de Derecho, dirigidas a proteger la libertad burguesa. (…) En las perturbaciones de la seguridad y orden públicos, en tiempos de peligro, como guerra e insurrección, se suspenden esas limitaciones legal-constitucionales. Tanto las normas contenidas en ley constitucional como las contenidas en ley ordinaria para la protección de la libertad burguesa, no sólo san quebrantadas en el caso concreto, sino, incluso, puestas fuera de vigor por un cierto tiempo, de tal manera que el freno a la actuación política en que consiste su propia finalidad y contenido, desaparece para ese tiempo. En tales casos, se muestra con la mayor claridad que el moderno Estado constitucional está, por su estructura, integrado de dos elementos distintos: de una serie de frenos, característicos del Estado burgués de Derecho, frente al

325 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 122-123.

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Poder público, y de un sistema – sea monárquico, sea democrático – de actividad política. Los representante liberales del Estado burgués de Derecho ignoraron este problema y abominaron con desconfianza del estado de excepción, estado de guerra, estado de sitio, etc., cuando no se conformaban con mostrar el ejemplo de Inglaterra, país modelo de la libertad burguesa – donde, por lo demás, también se suspende en caso de tumultos el acta de Habeas Corpus de 27 de mayo de 1679 –. (…) En el curso del siglo XIX se desarrolla como institución jurídica el llamado estado de sitio, guerra o circunstancias excepcionales; se suspenderán ciertas normas de la ley constitucional, en particular el derecho constitucionalmente garantido al juez legal, libertad personal, libertad de reunión, de Prensa, etc. La protección contra injerencias de las autoridades estatales en estas esferas de libertad, decae, pues, en un volumen normado en ley. (…) La prescripción legal-constitucional suspendida deja de tener validez durante el tiempo de la suspensión. Los frenos y limitaciones de la actividad de las autoridades, implicados en ella, declinan ante toda autoridad competente; ni esas prescripciones legal-constitucionales, ni las normas legales que en ellas se apoyan, forman un límite a su proceder. Así, pues, la suspensión no significa, ni quebrantamiento en caso concreto, puesto que no se vulnera ninguna prescripción legal válida, antes bien, la validez cesa; ni una reforma, pues pasada la suspensión, siempre temporal, vuelve a quedar en vigor, invariable, la prescripción suspendida.326

Carl Schmitt é, sob qualquer ângulo, um ardoroso defensor do estado de exceção e

da possibilidade de suspensão da ordem jurídica e de leis específicas como técnica política.

Se não fosse o peculiar vínculo dele com o nazismo327, bem como a situação histórica

concreta da Alemanha e da República de Weimar durante o entreguerras, sua defesa da

“utilidade” da exceção – que somente ocorreria em interesse da manutenção da unidade

política do povo, ou seja, em interesse do próprio povo – poderia ser até mesmo

considerada “ingênua”. Evidentemente, ela nada tem de ingênua, pois se ajustava muito

bem a sua proposta política totalitária328.

326 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 124-126. 327 “Carl Schmitt nasceu na Alemanha, em 1888. Torna-se doutor em direito já em 1910, momento a partir do qual começa a desenvolver sua crítica veemente ao liberalismo e ao sistema democrático parlamentar alemão, chegando a ser um dos maiores teóricos da ditadura, do regime de exceção e mesmo a integrar os quadros do partido nazista entre 1933 e 1936. (...) Ao contrário da maioria dos intelectuais que aderem ao nazismo, Carl Schmitt não será um político descompromissado com o regime, mas sim reconhecido como um dos mais eminentes teóricos do direito de sua geração.” RODRIGUES, Cândido Moreira. Apontamentos sobre o pensamento de Carl Schmitt: um intelectual nazista. In: SAECULUM – Revista de História. [12]; João Pessoa, jan./jun. 2005. p. 76. 328 Sobre essa questão, Hannah Arendt sublinha que: “Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães, comparativamente poucos, que foram além da mera cooperação e ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos. (Weinreich, (...), não distingue entre os professores que adotaram o credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime, omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam com a situação, e coloca assim, indiscriminadamente, conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos). Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt,

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De toda forma, o que Agamben propõe e que não se encontra no texto de Schmitt é

a possibilidade de o “quebrantamiento” de leis específicas e de a suspensão da ordem

jurídica se tornarem tão comuns a ponto de ambas as categorias se confundirem até a

completa indiscernibilidade. Em tais hipóteses, a lei é “quebrada” não apenas quando há

uma “conjuntura anormal imprevista”, e a ordem jurídica é suspensa mesmo que isso não

dependa de “perturbações na segurança e na ordem pública” – esses dois mecanismos se

generalizam e passam a ser empregados no dia-a-dia típico da atividade política da

comunidade.

A confusão e a generalização desses dois mecanismos de exceção jurídica

constituem, a despeito de Schmitt, por interesses próprios, não tirar essa conclusão, uma

decorrência lógica da sua idéia de que é o soberano quem decide o que é segurança e ordem

pública, e quando segurança e ordem pública estão mantidas ou não. Logo, se a ordem

jurídica é suspensa quando há risco à segurança e à ordem pública, isso não quer dizer nada

além de que a ordem é (considerada) jurídica quando este é o interesse do soberano. E,

similarmente, as “conjunturas anormais imprevistas” nada mais são que aquelas que o

soberano assim determina como anormais e imprevistas. Que tal raciocínio converta-se em

técnica de governo, como na biopolítica moderna abordada por Agamben, configura tão-

somente a radicalização extrema dessa lógica soberana.

E, quando a soberania é identificada com a figura do povo, mas ainda assim há uma

situação de exceção generalizada e informal, os “atos apócrifos de soberania” mencionados

por Schmitt tornam-se muito mais comuns do que a sua límpida prosa poderia fazer crer.

Isto ocorre porque, conforme o próprio Schmitt reconhece, a soberania popular, ou, em

outros termos, o povo como sujeito do poder constituinte, não tem mecanismos adequados

para a expressão permanente de sua vontade, mas pode tão somente revelá-la em breves e

fulgurantes momentos:

cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal ainda constituem leitura impressionante”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 389.

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(…) El pueblo manifiesta su poder constituyente mediante cualquier expresión recognoscible de su inmediata voluntad de conjunto dirigida hacia una decisión sobre modo y forma de anuencia de la unidad política. De la peculiaridad del sujeto de este poder constituyente se deducen cuestiones y dificultades especiales. a) El Pueblo, como titular del poder constituyente, no es una instancia firme, organizada. Perdería su naturaleza de pueblo si se erigiera para un normal y diario funcionamiento y para el despacho ordinario de asuntos. Pueblo no es, por su esencia, magistratura, ni nunca – tampoco en una Democracia – autoridad permanente. De otra parte, el pueblo necesita ser, en la Democracia, capaz de decisiones y actuaciones políticas. Incluso cuanto sólo en pocos momentos decisivos tiene y manifiesta una voluntad decisiva, es capaz, sin embargo, de una tal voluntad, y está en condiciones y es apto para decir sí o no a las cuestiones fundamentales de su existencia política. La fuerza, así como también la debilidad del pueblo, consiste en que no es una instancia formada con competencias circunscritas y capaz de despachar asuntos dentro de un procedimiento regulado. Tan pronto como un pueblo tiene la voluntad de existencia política, es superior a toda formalidad y normación. Tampoco puede ser disuelto, como que no es una entidad organizada. En tanto que existe y quiere seguir existiendo, su fuerza vital y energía es inagotable, y siempre capaz de encontrar nuevas formas de existencia política. La debilidad consiste en que el pueblo ha de decidir sobre las cuestiones fundamentales de su forma política y su organización, sin estar formado u organizado él mismo. Por eso pueden desconocerse, intrepetarse mal o falsearse con facilidad sus manifestaciones de voluntad. Corresponde a la inmediatez de esta voluntad popular el poder exteriorizarse con independencia de todo procedimiento prescrito y todo método prescrito. Hoy se fija, en la práctica política de la mayor parte de los países, la voluntad del pueblo mediante un procedimiento de votación secreta o elección secreta (…). La voluntad del pueblo de darse una Constitución puede sólo demostrarse mediante el hecho, y no mediante la observación de un procedimiento normativamente regulado. Y claro está que tampoco puede ser enjuiciado a base de leyes constitucionales anteriores o en vigor hasta el momento. b) La forma natural de la manifestación inmediata de la voluntad de un pueblo es la voz de asentimiento o repulsa de la multitud reunida, la aclamación. En los grandes Estados modernos, la aclamación, que es una manifestación natural y necesaria de vida de todo pueblo, ha cambiado su forma. Se manifiesta como <<opinión pública>>. Pero siempre puede el pueblo decir sí o no, asentir o rechazar; y su sí o no será tanto más sencillo y elemental cuanto más se trate de una decisión fundamental sobre la propia existencia común. En tiempos de orden y paz, semejantes manifestaciones son raras e innecesarias. El que no se dé a conocer ninguna manifiesta y especial voluntad, significa precisamente asentimiento para que subsista la Constitución presente. En tiempos críticos, el no que se dirige contra una Constitución existente será claro y decisivo sólo como negación, en tanto que la voluntad positiva no es tan segura. (…) c) La voluntad constituyente del pueblo es inmediata. Es anterior y superior a todo procedimiento de legislación constitucional. Ninguna ley constitucional, ni tampoco una Constitución, puede señalar un poder constituyente y prescribir la forma de su actividad. La ulterior ejecución y formulación de la decisión política adoptada inmediatamente por el pueblo requiere alguna organización, un procedimiento, para el cual ha desarrollado la práctica de la moderna Democracia ciertas prácticas y costumbres de que ahora trataremos. (…) En la Democracia moderna se ha formado la práctica de una llamada Asamblea nacional constituyente democrática, es decir, elegida según los

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postulados fundamentales del sufragio universal e igual, como procedimiento <<democrático>> reconocido. 329

329 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 99-101. Arendt, ao contrario, em passagem que guarda vínculos com muitos dos temas abordados nesta tese, faz troça da possibilidade de se fundar uma ordem política na vontade popular: “Do ponto de vista histórico, a diferença mais óbvia e mais decisiva entre as Revoluções Americana e Francesa consistiu em que a herança histórica da Revolução Americana foi a “monarquia limitada”, e a da Revolução Francesa, um absolutismo que aparentemente remontava aos primeiros séculos do Império Romano. De fato, nada parece mais natural do que uma revolução ser predeterminada pelo tipo de governo que ela baniu; nada, portanto, parece mais plausível do que explicar o novo absoluto, o absoluto da revolução, pela monarquia absoluta que o precedera, e concluir que, quanto mais absoluto o governo, tanto mais será absoluta a revolução que o substituir. (...) Que outra coisa fez o próprio Sieyès senão colocar simplesmente a soberania da nação no lugar antes ocupado por um rei soberano? O que poderia ter sido mais natural para ele do que colocar a nação acima da lei, já que a soberania do rei francês há muito deixara de significar independência de pactos e obrigações feudais, e, pelo menos desde a época de Bodin, passara a traduzir o verdadeiro absolutismo do poder real, uma potestas legibus soluta, um poder isento das leis? E já que a pessoa do rei não apenas fora a fonte de todo poder terreno, como também a sua vontade, a origem de toda lei terrena, obviamente a vontade da nação teria de ser, a partir de então, a própria lei. (...) assim a concepção de Rousseau acerca de uma vontade geral, inspirando e dirigindo a nação, como se ela não fosse formada de uma multidão, mas de uma só pessoa, tornara-se axiomática para todas as facções e partidos da Revolução Francesa, por ser ela, na verdade, o substituto teórico da vontade soberana de um monarca absoluto. O ponto em questão era que o monarca absoluto (...) representava não apenas a vida potencialmente ilimitada da nação, de forma que, quando se proclamava: “O rei está morto, que o rei tenha longa vida”, isso significava, efetivamente, que “o rei é, em si mesmo, uma corporação que vive eternamente”; ele também encarnava, na terra, uma origem divina, na qual a lei e o poder coincidiam. Sua vontade, por representar supostamente a vontade de Deus sobre a terra, era, ao mesmo tempo, fonte da lei e do poder, e era essa origem idêntica que tornava poderosa a lei e legítimo o poder. Portanto, quando os homens da Revolução Francesa colocaram o povo no assento do rei, foi muito natural que eles vissem no povo, em concordância com a antiga teoria romana, (...), não apenas a fonte e o fulcro de todo poder, como também a origem de todas as leis. (...) Sieyès (...) [estabeleceu a] famosa distinção entre um pouvoir constituant e um pouvoir constitué, e, em segundo lugar, colocando o pouvoir constituant, isto é, a nação, num perpétuo “estado de Natureza”. (...) Assim, ele aparentemente resolveu ambos os problemas: o problema da legitimidade do novo poder, o pouvoir constitué, cuja autoridade não podia ser garantida pela Assembléia Constituinte, o pouvoir constituant, pois o poder da própria Assembléia não era constitucional, e jamais poderia sê-lo, uma vez que era anterior à própria constituição; e o problema da legalidade das novas leis, que necessitavam de uma “fonte com autoridade suprema”, a “lei maior”, de onde promanaria sua validade. Tanto o poder como a lei estavam ancorados na nação, ou melhor, na vontade da nação, enquanto ela própria se mantinha fora e acima de todos os governos e de todas as leis. A história constitucional da França, onde, mesmo durante a revolução, as constituições se sucediam umas às outras, enquanto aqueles que detinham o poder se mostravam incapazes de impor o cumprimento de qualquer das leis e decretos revolucionários, pode facilmente ser interpretada como uma crônica monótona que demonstra, à sociedade, aquilo que devia ter sido óbvio desde o início, ou seja, que a propalada vontade da multidão (se isso puder ser considerado como algo mais do que uma mera ficção legal) é, por definição, mutável e inconstante, e que uma estrutura construída sobre esse fundamento é como se estivesse sobre areia movediça. O que salvou o Estado-nação de um colapso e de um desmoronamento imediatos foi a extraordinária facilidade com que a opinião nacional podia ser manipulada e imposta, sempre que alguém se mostrava disposto a assumir o ônus e a glória da ditadura. Napoleão Bonaparte foi apenas o primeiro de uma longa série de estadistas que, com o aval de toda uma nação, pôde proclamar: “Eu sou o pouvoir constituant”. Não obstante, embora o ditame de uma só vontade tenha se realizado, por curtos períodos, o ideal fictício de unanimidade do Estado-nação, não foi a vontade, mas sim o interesse, a sólida estrutura de uma sociedade de classes, que conferiu ao Estado-nação, por períodos mais longos da História, sua medida de estabilidade”. ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 124-130. Algumas das posições teóricas adotadas tanto por Schmitt, em um caso, quanto por Negri, em outro, são amplamente ridicularizadas nesse trecho.

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O que Schmitt deixa de mencionar é que a raridade das manifestações do povo em

“tempos de paz” pode não significar assentimento, mas também puro e simples silêncio ou

silenciamento330. E que a opinião pública, à qual ele vincula a aclamação, pode

simplesmente não existir, ou ser tão facilmente manipulável política ou discursivamente

que é como se ela não existisse de fato. Logo, não há nada de desnecessário em

manifestações da vontade popular durante períodos de paz – porque essa ausência pode

muito bem representar apatia, opressão ou pura e simplesmente assassinato, e não mero

consentimento.

Tanto é perturbador comparar sua afirmação de que o povo não pode ser

“dissolvido” com a ideologia e prática do regime nazista, que, durante algum tempo,

Schmitt apoiou e do qual participou entusiasticamente.

O fato é que Schmitt vincula o poder constituinte a uma vontade de unidade política

do povo que somente consegue se manifestar de forma imediata e eventual – quando

consegue; e se é que consegue. Ele mesmo menciona que a vontade popular pode ser

facilmente manipulada e mal-interpretada por grupos políticos interessados. Logo, a idéia

de que o poder soberano ou constituinte reside no povo, permite, nessas circunstâncias, que

qualquer um se arrogue “intérprete” da soberania, e se converta, dessa forma, em efetivo e

“apócrifo” titular da soberania.

Em outros termos, o detentor de efetivo poder soberano, ainda que “apócrifo”, deve

embasar-se em alguma espécie de autoridade que confira legitimidade a sua atividade

política. Ou, sob outra perspectiva, é necessário um embasamento legítimo para a

autoridade – ainda que mascarada – de quem atua como soberano, assim como em Roma,

por exemplo, o embasamento da autoridade era a tradição e a fundação da comunidade

330 E é mais grave ainda que ele vincule a esse assentimento, silencioso ou não, a possibilidade de legitimação de suspensão da ordem constitucional: “Donde subsiste un Poder constituyente hay siempre por eso también um mínimum de Constitución que no necesita ser afectado por el quebrantamiento de leyes constitucionales, revolución y golpes de Estado, em tanto permanezca al menos el fundamento de la Constitución, el Poder constituyente, sea del rey, sea del pueblo. La práctica de los plebiscitos napoleônicos (...) descansaba en el princípio democrático del Poder constituyente del pueblo; las violaciones constitucionales podían así ser corregidas fácilmente por el asentimiento del pueblo. (…)”.SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 109.

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política. Antes de se avaliar tal questão, entretanto, é preciso fazer uma anotação acerca do

significado exato da idéia de soberania apócrifa que vem sendo abordada.

Na situação em que há a suspensão informal e generalizada da ordem jurídica e

política, ou seja, no cenário em que é possível a qualquer momento, como normalidade,

tanto a vigência sem significado quanto o significado sem a vigência da lei, pode ocorrer

que simplesmente não exista um detentor exclusivo da soberania. Isto quer dizer que,

apesar de ser possível refletir teoricamente acerca de quem seria o soberano real – aquele

que decide em última instância – na prática concreta uma gama diversa de agentes políticos

termina por agir como se soberana fosse, sem que sua atuação possa efetivamente ser

revisada, em concreto, por uma suposta instância soberana última.

Dessa forma, conquanto se possa identificar quem poderia reformar ou anular a

atuação de um soberano “apócrifo”, se a atuação deste último é tacitamente aceita – ou por

opção, ou por impossibilidade política concreta de sua anulação – então o “apócrifo” foi,

em concreto, soberano “instantâneo”. Sob uma outra perspectiva, todo aquele que age em

nome de quem é considerado soberano (o povo ou a nação, via de regra), mas, ou não tem

de fato um “mandato” legítimo, ou “mal-interpreta” a suposta vontade popular, também

pode ser considerado como soberano apócrifo331. Tais problemas, de toda forma, são

abordados por Schmitt, em sua crítica ao “Estado de Direito burguês”:

Una singular dificultad de la Teoría constitucional del Estado burgués de Derecho consistiría en que el elemento de la Constitución propio de este tipo de Estado se encuentra hoy todavía confundido con la Constitución toda, si bien no puede bastarse a sí mismo, en realidad, sino que concurre con el elemento político. El equiparar – en pura ficción – los principios del Estado burgués de Derecho con la Constitución ha llevado a dejar desatendidos, o desconocer, fenómeno esenciales de la vida constitucional. La manipulación del concepto de soberanía bajo estes métodos de ficciones y desconocimientos es lo que más ha sufrido. En la práctica se desarrolla el empleo de actos apócrifos de soberanía, para los que es característico que autoridades o cargos del Estado, sin ser soberanos, realicen actos de soberanía ocasionalmente y bajo tolerancia tácita.332

331 Nesse sentido, se se considera o conceito de soberania necessário, é interessante se perguntar se pode existir soberania legítima fora de um regime monárquico absoluto ou de uma aristocracia fundada em uma tradição transcendental, dada a dificuldade em se harmonizar uma imaginada vontade popular democrática com a atuação concreta de agentes políticos específicos. 332 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 23.

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O fenômeno, em sua perspectiva, ocorreria quando Constituição e leis (normas)

constitucionais são confundidas como sendo exatamente a mesma coisa, de modo que tanto

a Constituição passa a ser considerada mais do que a decisão política fundamental sobre a

unidade política do povo (e, sendo mais do que a decisão política, torna-se qualitativamente

menos do que de fato seria), quanto algumas das decisões políticas fundamentais não são

inclusas na Constituição, permitindo que a decisão sobre as questões abertas sejam tomadas

por meio dos atos apócrifos de soberania:

2. La Constitución de Weimar es una Constitución, no sólo una serie de leyes constitucionales. Envuelve las decisiones políticas fundamentales a favor de una Democracia constitucional. Pero, por lo demás, se encuentra en los desarrollos legal-constitucionales como en disposiciones diversas – sobre todo en la segunda parte, bajo el epígrafe <<Derechos y deberes fundamentales de los alemanes>> – una reunión de programas y prescripciones positivos basados en los más distintos contenidos y convicciones políticos, sociales y religiosos. Garantías individualistas burguesas de libertad personal y propiedad privada, puntos de programa socialista y Derecho natural católico han sido mezclados en una síntesis con frecuencia confusa. Respecto a ello hay que observar que entre las últimas contraposiciones de convicciones religiosas auténticas, así como entre auténticas contraposiciones de clases, es, en general, apenas posible un compromiso, y en todo caso muy difícil. Tratándose de una Constitución, sólo es posible cuando la voluntad de unidad política y la conciencia estatal pesa más que todas las contraposiciones religiosas y de clase, con lo que se relativizan aquellas diversidades eclesiásticas y sociales. Las cuestiones políticas fundamentales que han de ser inmediatamente decididas con la situación política – (…) – no podían ser ni fueron eludidas. Aquí hubiera resultado imposible un compromiso, y, de haber tenido lugar, hubiera sido sólo con la antes citada consecuencia de una decisión apócrifa. Hubíerase perdido el carácter de Constitución escrita; la decisión había tenido lugar en la vía del Derecho consuetudinário, de la práctica, particularmente por medio de precedentes (…).333

Tal circunstancia, aliada à discussão sobre a diferença entre poder constituinte e

competência para reforma da lei constitucional – já debatida anteriormente – conduz à

possibilidade e necessidade de que eventualmente a Constituição e as leis constitucionais

sejam suspensas ou “quebradas”, por meio justamente de atos apócrifos de soberania, que,

quase como que por encanto – mágico e fantástico –, passam a se tornar de certo modo

aceitáveis na teoria de Schmitt, desde que não sejam usados “abusivamente”:

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Las instancias competentes para una revisión constitucional no resultan soberanas por razón de tal competencia; esto se compreende por las anteriores explicaciones. Ni tampoco se convierten en titular o sujeto del Poder constituyente. Es igualmente imposible caracterizar como <<soberano>> al <<procedimiento>> como tal, pues con ello se crearía una nueva personificación ficticia, sin aclarar nada. Desde otro punto de vista, habría que suponer facultado al legislador para quebrantar la ley, y al legislador autorizado a reformar la Constitución, para quebrantar las prescripciones contenidas en ley constitucional. Cuando, por la necesitad política, son del caso tales quebrantamientos, se manifiesta el respeto a la Constitución en la observancia del procedimiento de reforma, sin que haya verdadera reforma del texto de la ley constitucional. En tanto que no se abuse de él, puede aceptarse que este método no contradice al espíritu de la Constitución. <<Es predominantemente aceptado – como ya lo era antes de la Revolución – en concepto de procedimiento no correcto en verdad, pero tampoco precisamente inconstitucional>> – según la atinada frase de Carlos Bilfinger. (…). También bajo la nueva Constitución se ha desarrollado una constante práctica de quebrantamiento que, en definitivo, encuentra su expresión en la forma técnica de las leyes <<de reforma de la Constitución>> (…). A pesar de eso, sería inexacto creer que toda inconstitucionalidad arbitraria podría ser admisible y quedar purificada por el camino de una ley de reforma constitucional – así, pues, en el Reich alemán, según el art. 76 de la Constitución de Weimar –, o que se ganaría algo en este punto con exigir una expresa reforma del texto de la ley constitucional y prohibir los quebrantamientos <<tácitos>>. (…) Antes bien, es preciso tener consciencia de la distinción entre leyes de reforma de la Constitución y puros actos de soberanía, y no olvidar que, en la práctica de la Constitución de Weimar, el procedimiento del art. 76 sirve a dos fines completamente distintos: primero, como procedimiento de revisión de las leyes constitucionales, y segundo, para hacer posibles los actos apócrifos de soberanía. La práctica del art. 76, C. a., ha llevado hasta hoy a emitir sin distinción alguna, disposiciones que quebrantaban prescripciones legal-constitucionales en la forma de leyes de reforma de la Constitución, según el artículo 76, C. a. El sentimiento de la trascendencia política y jurídico-constitucional de esta práctica no parece ser muy vivo en los políticos responsable, y es comprensible que protestaran contra ello destacados maestros de Derecho político como Hugo Preuss (…). Hubiera sido, sin duda, un acto de soberanía por encima del límite de lo usualmente admitido el que, por medio de una ley de reforma constitucional, se hubiera excluido para determinado asunto la iniciativa prevista en el art. 73, como intentó el Gobierno del Reich en la cuestión de la revalorización con el proyecto de una llamada ley de <<yugulación>> o <<guillotina>> (…). 334

Toda essa reflexão, inclusive para Schmitt, revela que é possível existir

simultaneamente em uma comunidade política mais de um poder soberano atuante, cujos

atos recebem uma confirmação em geral tácita da instância que poderia ser tecnicamente

considerada como legitimamente soberana. Isto quer dizer, nessa perspectiva, que o

333 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 53. Neste sentido, a Constituição brasileira de 1988 mantém alguma proximidade com os mesmos problemas materializados na Constituição de Weimar. 334 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 123-124. Aparentemente, a única personificação fictícia válida para Schmitt é a da existência de uma vontade popular geral de unidade política.

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soberano “apócrifo”, como se discutia, precisa encontrar um modo de legitimar a sua

autoridade, ou seja, de justificar o porquê sua decisão sobre determinada questão deve ser a

decisão última e definitiva.

O soberano “apócrifo”, portanto, mesmo quando lança mão da mais absoluta

violência, procura justificar as suas decisões vinculando-se a uma autoridade legítima, ou

seja, uma autoridade que tenha um fundamento considerado legítimo na comunidade

política335. O fundamento último ontológico de toda autoridade é, na perspectiva que se

vem analisando, a força ou violência do ato de instituição do direito, ou seja, de fundação

da comunidade política. A esse ato mítico corresponde a força de lei, que, nas situações de

exceção, transita livremente entre leis e significados ao talante da vontade de quem age

soberanamente.

Entretanto, nas diversas comunidades políticas historicamente identificáveis, o ato

de instituição do direito foi ou é ainda vinculado aos mais diversos elementos que

fundariam a sua força. Em Roma, como já mencionado, o ato de instituição é interpretado

como a delimitação das fronteiras da cidade, cuja força tradicional embasa a autoridade do

Senado e a potestas do populus romanos. Nesse exemplo, soberano é o povo romano, mas

soberano apenas na medida em que conserva a tradição de fundação de Roma vinculando-

se à convalidação de seus atos pelos patres. Poder-se-ia dizer, estruturalmente, então, que

soberana é a tradição – ainda que, em concreto, fosse apocrifamente soberano aquele que

pudesse instituir uma situação de suspensão da ordem jurídica336.

Na modernidade, principalmente na Europa, todavia, o critério de legitimidade

mítico não é vinculado à tradição, mas sim a correntes teóricas mais ou menos paralelas,

que abordam a questão a partir de pontos de vista divergentes. Especificamente, Schmitt

335 E, evidentemente, muitos conflitos políticos referem-se justamente à definição, no interior de uma comunidade política, sobre o que é e o que não é legítimo. 336 Em sua lógica de funcionamento perfeito, não se poderia considerar o Senado romano soberano, porque sua autoridade somente atuava a partir de um ato promanado da potestas do povo. De toda, forma, soberano na Roma republicana seria quem pudesse dar início ao iustitium, ou quem exercesse a necisque potestas vitae sobre todo o povo, ou ainda quem pudesse atribuir a qualquer homem o status de homo sacer.

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trata da questão ao avaliar os critérios de legitimidade das Constituições e do poder

constituinte, que, como visto, confunde-se com o poder soberano:

(...) Una Constitución es legítima – esto es, reconocida, no sólo como situación de hecho, sino también como ordenación jurídica – cuando la fuerza y autoridad del Poder constituyente en que descansa su decisión es reconocida. La decisión política adoptada sobre el modo y forma de la existencia estatal, que integra la sustancia de la Constitución, es válida, porque la unidad política de cuya Constitución se trata, existe, y el sujeto del Poder constituyente puede fijar el modo y forma de esa existencia. No necesita justificarse en una norma ética o jurídica; tiene su sentido en la existencia política. Una norma no sería adecuada a fundar nada aquí. El especial modo de la existencia política no necesita ni puede ser legitimado. Históricamente, pueden distinguirse dos clases de legitimidad – la dinástica y la democrática –, correspondientes a los dos sujetos del Poder constituyente que históricamente hay que considerar: príncipe y pueblo. Donde prepondera el punto de vista de la autoridad, será reconocido el Poder constituyente del rey; donde el punto de vista de la maiestas populi domina, la validez de la Constitución descansará en la voluntad del pueblo. Sólo puede hablarse de la legitimidad de una Constitución por razones históricas, y siempre bajo el punto de vista de la distinción entre legitimidad dinástica y democrática. En realidad, se trata con esto de la cuestión de la forma de existencia de una unidad política. (…) III. La legitimidad dinástica se apoya en la autoridad del monarca. Como un hombre aislado alcanza raramente desde su ser individual esa significación política, tampoco puede estar en el príncipe como individuo el Poder constituyente. Lleva hacia la legitimidad dinástica, que se apoya en la permanente histórica de una familia vinculada al Estado, en la continuidad de la dinastía y de la sucesión hereditária. La legitimidad democrática se apoya, por el contrario, en el pensamiento de que el Estado es la unidad política de un Pueblo. Sujeto de esta definición del Estado es el Pueblo; Estado es el status político de un Pueblo. Modo y forma de la existencia estatal, se determinan, según el principio de la legitimidad democrática, por la libre voluntad de un Pueblo. La voluntad constituyente del pueblo no está vinculada a ningún determinado procedimiento. Ya antes se ha expuesto que la actual práctica de las Constituciones democráticas ha dado lugar a ciertos métodos, sea el de la elección de una Asamblea constituyente, sea el de una votación popular. Con frecuencia se ligan estos métodos al pensamiento de la legitimidad democrática, insertando un cierto procedimiento en el concepto de la legitimidad, y caracterizando después como verdaderamente democráticas sólo aquellas Constituciones que han encontrado la aprobación de una mayoría de ciudadanos formada en el procedimiento de votación individual secreta. Ya se ha dicho, y habrá que volver sobre ello, que estos métodos de votación individual secreta son problemáticos, precisamente desde el punto de vista de una Democracia auténtica. También es siempre posible y fácil de reconocer un acuerdo tácito del pueblo. En la simple participación en la vida pública fijada por una Constitución, puede verse, por ejemplo, una conducta concluyente, mediante la cual basta a manifestarse con claridad la voluntad constituyente del pueblo. Esto puede decirse de la participación en las elecciones que una cierta situación política comporta. (…) De esta manera puede adjudicarse a las más distintas Constituciones el carácter de la legitimidad democrática, en tanto se basen en el Poder

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constituyente del pueblo, presente siempre, incluso cuando sólo actúa por la tácita337.

A idéia de o povo ser o sujeito do poder soberano é atribuída, em sua formatação

moderna, originalmente a Sieyès, e vinculada à história tanto da Revolução Francesa

quanto da Americana. Nessa perspectiva, a idéia de povo é substituída pela idéia de Nação

(ou melhor, deslocada, já que a diferença entre esses dois conceitos nunca fica muito clara

– e, quando é feita, parece ser meramente cosmética), como novo locus da vontade e da

unidade políticas de uma comunidade concreta:

2. Durante la Revolución francesa desenvolvió Sieyès la doctrina del Pueblo (más exacto: de la Nación) como sujeto del Poder constituyente. Todavía en el siglo XVIII no había sido designado el príncipe absoluto como sujeto del Poder constituyente, pero sólo porque el pensamiento de una libre decisión de totalidad, adoptada por hombres, sobre modo y forma de la propia existencia política, sólo pudo tomar la forma de un hecho político muy lentamente. Los rastros de las ideas teológico-cristianas del poder constituyente de Dios eran todavía demasiado fuertes y vivos en el siglo XVIII, a pesar de toda la Revolución francesa de 1789 significan el comienzo de una nueva época en este respecto, sin que interese conocer en qué medida era consciente el autor de estos precedentes, de la trascendencia de su conducta. En la Declaración americana de Independencia de 1776 no puede reconocerse con plena claridad el principio completamente nuevo, porque aquí surgía una nueva formación política, coincidiendo el acto de dar la Constitución con el de la fundación política de una serie de nuevos Estados. Otra cosa ocurre con la Revolución francesa de 1789. Aquí no surgía una nueva formación política, un nuevo Estado. El Estado francés existía de antes, y seguía existiendo. Aquí se trataba tan sólo de que los hombres mismos fijaban, por virtud de una decisión consciente, el modo y forma de su propia existencia política. Cuando se suscitó ahí conscientemente, y fue contestada la cuestión del Poder constituyente, aparecía mucho más clara la fundamental novedad de tal fenómeno. Un pueblo tomaba en sus manos, con plena consciencia, su propio destino, y adoptaba una libre decisión sobre el modo y forma de su existencia política. Esto se pudo ver tan pronto como los Estados generales convocados por el rey se constituyeron, en 17 de junio de 1789, en Asamblea nacional constituyente. Al hacerlo, se constituyeron, sin un mandato formal que los legitimase, en diputados del pueblo en ejercicio de su Poder constituyente, y derivaron sus facultades de este Poder. Sieyès formuló la teoría del pouvoir constituant de la Nación. El designó, con acierto, como un acto de la Revolución, el que ya se planteara en sus comienzos la distinción entre Poder constituyente y constituido. A pesar del gran influjo operado por el modelo americano, el año 1789 significa el comienzo de este nuevo principio político. A las Constituciones americanas del siglo XVIII les falta una Teoría constitucional propia. La fuente histórica más importante para los fundamentos teóricos de esa Constitución, el Federalista, ofrece informes, casi

337 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 104-107. A afirmação de que é fácil perceber o acordo tácito do povo que legitima democraticamente uma ordem política é, em face de todas as distinções traçadas por Schmitt, incrível, no sentido original da palavra.

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únicamente, sobre cuestiones prácticas de organización. El pueblo se da a sí mismo una Constitución, sin que se distinga el Gouvernant general que funda la comunidad y sociedad de todo otro acto constitutivo de una nueva unidad política, y del acto de la libre decisión política sobre la propia forma de existencia (…). Según esta nueva doctrina, la Nación es el sujeto del Poder constituyente. Con frecuencia se consideran como de igual significación los conceptos de Nación y Pueblo, pero la palabra <<Nación>> es más expresiva e induce menos a error. Designa al pueblo como unidad política con capacidad de obrar y con la conciencia de su singularidad política y la voluntad de existencia política, mientras que el pueblo que no existe como Nación es una asociación de hombres unidos en alguna manera de coincidencia étnica o cultural, pero no necesariamente política. La doctrina del Poder constituyente del pueblo presupone la voluntad consciente de existencia política, y, por lo tanto, una Nación. Esto llegó a hacerse posible por cuanto Francia había alcanzado a ser, mediante la Monarquía absoluta, una unidad estatal cuya existencia se daba siempre como evidente a pesar de todos los cambios y reformas de la Constitución. El pueblo francés había encontrado en su existencia política su forma de Nación. La decisión consciente a favor de un cierto modo y forma de esta existencia, el acto a través del cual <<el pueblo se da una Constitución>>, presupone ya el Estado, cuyo modo y forma se fija. Pero para el acto mismo, para el ejercicio de esa voluntad, no puede hallarse prescrito procedimiento alguno, y mucho menos para el contenido de la decisión política. <<Basta que la Nación quiera>>. Este postulado de Sieyès apunta con la mayor claridad a lo esencial del fenómeno. El Poder constituyente no está vinculado a formas jurídicas y procedimientos; cuando actúa dentro de esta propiedad inalienable, está <<siempre en estado de naturaleza>>. En el Poder constituyente descansan todas las facultades y competencias constituidas y acomodadas a la Constitución. Pero él mismo no puede constituirse nunca con arreglo a la Constitución. El pueblo, la Nación, sigue siendo el basamento de todo el acontecer político, la fuente de toda la fuerza, que se manifiesta en formas siempre nuevas, que siempre saca de sí nuevas formas y organizaciones, no subordinando nunca, sin embargo, su existencia política a una formulación definitiva.338

Uma leitura atenta de Schmitt revela o quanto diversas de suas idéias são circulares.

Nesse caso, a Nação é a fonte da unidade política do povo, mas, ao mesmo tempo, onde há

unidade política há uma Nação. Ou seja – uma Nação é definida por ser uma Nação; é

Nação aquilo que é Nação; é unidade política aquilo que é unidade política. A

argumentação é viciosa, circular. De toda forma, tal perspectiva embasa a legitimidade

soberana, ou constituinte, no povo, ou na Nação. Em outros termos, a legitimidade que

deriva do ato instituinte da ordem político-jurídica tem sua força justificada por

corresponder à vontade de unidade política da Nação, do povo. Este é o mito que

338 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 95-97. Não deixa de causar certa perplexidade constatar que tanto para Schmitt quanto para Negri o poder constituinte (mesmo que conceituado a partir de perspectivas teóricas completamente divergentes) nunca possa se esgotar.

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fundamenta a ontologia da força de lei do ato fundador moderno na teoria constitucionalista

européia.

É a ficção de unidade da vontade política do povo em ser uma unidade política que

legitima o ato instituinte originário, consubstanciado na ação do poder constituinte, e, por

conseqüência, legitima igualmente o poder constituído e a atuação dos agentes políticos no

interior dessa ordem constituída. Nessa perspectiva, quem atua como soberano, apócrifo ou

em tese legítimo, reportar-se-á em última instância à legitimidade que deriva dessa vontade

popular. Não à toa, a maior parte das constituições modernas traz em si a idéia de que todo

poder, toda soberania, existe apenas em decorrência da vontade do povo. Tem força de lei,

portanto, tudo aquilo que corresponde à vontade popular.

Em vista de tais questões, surge o problema de se definir o modo de aferir a vontade

popular. Já foi apresentado o entusiasmo de Schmitt pela idéia de aclamação simplória

entre “sim” e “não”339 e de silêncio popular como ampla concordância tácita, que, em sua

perspectiva, seriam formas quase perfeitas de uma verdadeira democracia (em oposição ao

decadente parlamentarismo do “Estado de Direito burguês”). Entretanto, ele também

apresenta a solução histórica concreta dada ao problema de aferição “burguesa” da vontade

popular:

Con la doctrina del Poder constituyente del pueblo (que se dirigía contra la Monarquía absoluta existente), ligó Sieyès la doctrina antidemocrática de la representación de la voluntad popular mediante la Asamblea nacional constituyente. La Constitución era formulada sólo por la Asamblea nacional (ni por el pueblo, ni por el rey). Hubiera sido lo democráticamente consecuente dejar que el pueblo mismo decidiera, pues la voluntad constituyente del pueblo no puede ser representada sin que la Democracia se transforme en una Aristocracia (…). Pero en 1789 no se trataba de la Democracia, sino de una Constitución liberal burguesa del Estado de Derecho. La Constitución de 1791 era típica de la Monarquía constitucional: la <<Nación>> tenía dos representantes, rey y cuerpo legislativo (Representación popular). La cuestión de quién representa a la Nación al emitir la Constitución – si la Asamblea Nacional o el rey – era una clara cuestión de fuerza, y mostraba ya la característica situación intermedia de la burguesía liberal: frente al rey (esto es, la Monarquía), apelación a la <<voluntad de la Nación>>; frente al pueblo (esto es, la Democracia),

339 A aclamação do “não” a uma forma política pelas massas populares, de toda forma, parece ser bastante efetiva – inclusive em vista dos recentes exemplos de Tunísia e Egito. Já a aclamação do “sim” parece ser bem mais complexa tanto de se manifestar quanto de ser interpretada e identificada.

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apelación a la <<representación>>. Naturalmente, también el rey hubiera podido ser representante de la Nación; pero esto se le discutía ya por lo que se refiere al ejercicio del Poder constituyente. Los intentos de dar al rey, como representante o intérprete de la voluntad popular, en la Asamblea Constituyente, influencia en la formación de la Constitución, se malograron (Redsolb, pág. 71).340

Conforme se depreende da citação e das referências em rodapé, a vontade da nação

pode se manifestar, idealmente, pela aclamação plebiscitária, mas, usualmente, se manifesta

340 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 97-98. Schmitt, apesar de criticar a utilização dada aos plebiscitos pelo regime napoleônico, acreditava que tal forma de afirmação da vontade popular corresponderia ao modelo democrático possível e adequado: “En todos estos plebiscitos hubo mayorías inmensas que votaron <<sí>>. El influjo electoral del Gobierno napoleónico fue bastante fuerte y desconsiderado; estropeó la finalidad del plebiscito haciendo sospechosa la experiencia democrática. En teoría, este método corresponde al principio democrático y al pensamiento del Poder constituyente del pueblo. El que el pueblo dijera <<sí>> en estos plebiscitos para aquella nueva ordenación se explica, de otra parte, no sólo por influjos electorales, sino también porque el pueblo francés no tenía entonces otra voluntad que la de paz civil y orden.” (p. 103). Não surpreende que, em outra obra, Schmitt tenha enxergado no fascismo, como manifestação ímpar da idéia de nação, o princípio de uma nova ordem política moderna profundamente vinculada ao caráter mitológico da autoridade e da política: “O talento para os negócios e para o heroísmo, enfim, toda a atividade histórico-mundial reside, para Sorel, na força do mito. Exemplos desses mitos são: a noção de fama e de grandes nomes junto aos gregos, ou a expectativa do Juízo Final do cristianismo na Antiguidade, a crença na vertu e na liberdade revolucionária durante a grande Revolução Francesa, o entusiasmo racional pelas guerras alemãs de libertação de 1813. Só no mito existe o critério para se identificar se um povo ou outro grupo social tem uma missão histórica e se seu momento histórico já chegou. É do mais profundo e autêntico instinto vital, e não de um raciocínio ou de uma alegação de conveniência, que nasce o grande entusiasmo, a grande decisão moral e o grande mito. É na intuição direta que a massa entusiasmada cria a imagem mítica que leva sua energia adiante e lhe dá tanto a força para o martírio, como a coragem para o emprego da força. Só assim um povo ou uma classe tornam-se os motores da história mundial. Onde isso não existe, nenhum poder social e político consegue manter-se, e nenhum aparato mecânico consegue construir uma barreira quando irrompe um novo fluxo de vida histórica. A partir disso, tudo depende de uma visão correta, de saber onde realmente existe hoje essa tendência ao mito e essa força vital. (...) Os outros exemplos de mito mencionados por Sorel provam, na medida em que se manifestam nos novos tempos, que o mito mais forte está sempre no sentimento nacional. (...) No sentimento nacional funcionam elementos os mais diversos, de modos mais diversos e nos mais diversos povos: as idéias de raça e origem mais ligadas à natureza, um “apego à terra” provavelmente mais típico em tribos celto-românicas; depois a língua, a tradição, a consciência de uma mesma cultura e formação, um destino comum, uma sensibilidade para a diversidade em si mesmos – tudo isso movimenta-se hoje muito mais na direção do sentimento nacional do que das diferenças entres classes sociais. (...) Mas ali onde se chegou a um confronto explícito dos dois mitos [nacionalismo X classes], na Itália, até hoje o vencedor sempre foi o mito nacional. (...) Até agora existe um único exemplo para o caso em que, sob a apelação consciente do mito, a democracia humana e o sistema parlamentarista foram desdenhosamente afastados; foi o exemplo da força irracional desse mito nacional. Em seu famoso discurso de outubro de 1922 em Nápoles, antes da marcha sobre Roma, Mussolini disse: “Nós criamos um mito, o mito é uma crença, um entusiasmo nobre; ele não precisa ser uma realidade, ele é um estímulo e uma esperança, crença e coragem. Nosso mito é a nação, a grande nação, que pretendemos transformar numa realidade concreta.” No mesmo discurso, ele chama o socialismo de uma “mitologia inferior”. Como antes, no século XVI, foi novamente um italiano que expressou o princípio da realidade política. (...) A teoria do mito é a mais forte expressão da perda da evidência do racionalismo não relativo do pensamento parlamentar. Quando os autores anarquistas, em função da inimizade contra a autoridade e a unidade descobrem o significado do mítico, então contribuem, sem o saber, para a fundamentação de uma nova autoridade, um novo sentimento de ordem, disciplina e hierarquia.” In: SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. Trad.: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. p. 63-70. Não há comentários sérios que possam ser feitos sobre a comparação entre a importância de Mussolini e a de Maquiavel para a política...

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pela idéia de representação. Ou seja – há um representante ou um grupo de representantes

da vontade popular, que se apresentam como intérpretes dessa mesma vontade. Dessa

forma, tem autoridade aquele que representa e interpreta a vontade de unidade política do

povo, e é a construção do vínculo representativo entre agente político e vontade do povo

que permite a assunção de autoridade.

Na hipótese de um ato de soberania apócrifo, embasado, portanto, em uma

autoridade igualmente “apócrifa”, o agente político se apresentará como verdadeiro

representante da vontade popular, mesmo que não tenha a competência institucional ou

legal para o ato político que realiza. Nesse sentido, pode fazê-lo tanto se colocando como

conforme à vontade popular e à Constituição, quanto como representante da vontade

popular que estaria acima da Constituição (e, possivelmente, contra a Constituição).

A reflexão de Schmitt descarta muito rapidamente, todavia, a emergência da idéia

de Constituição nos Estados Unidos da América. Partidário radical de seu princípio

“nacional-democrático”, ele despreza a experiência americana como teoricamente inócua,

já que não enunciava decisivamente o princípio da nação como portadora do poder

constituinte, e da vontade de unidade política do povo como único fundamento válido para

o texto constitucional. A verdade, porém, é que a vontade geral da nação não é o único

fundamento de autoridade baseado na Constituição da modernidade ocidental.

O desprezo de Schmitt pela idéia de Constituição tomada apenas como lei suprema

não é aleatório e gratuito, na medida em que ela representa, em alguma medida, a

alternativa norte-americana de fundação da autoridade na modernidade, sob princípios

funcionalmente próximos, mas concretamente diferentes, de uma vontade popular absoluta

e una. Apesar de ser também mítica, ela se vincula a ideais romanos, atribuindo à

Constituição o papel de fonte de autoridade e tradição, cuja legitimidade deriva do ato de

fundação do novo Estado americano341. A questão é bem apreciada por Arendt, sob a

perspectiva de que na Revolução Americana houve uma separação entre o fundamento do

poder e o fundamento da lei:

341 Que, como visto, Schmitt desdenha como apenas “mais uma” fundação de um novo Estado.

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(...) No governo do rei e do parlamento, contra o qual as colônias se insurgiram, não havia nenhum potestas legibus soluta, nenhum poder isento de leis. Por conseguinte, os idealizadores das constituições americanas, embora cônscios de que tinham de estabelecer uma nova fonte de lei, e esboçar um novo sistema de poder, nunca foram tentados a atribuir a mesma origem à lei e ao poder. Para eles, o fundamento do poder era o povo, mas a fonte da lei devia ser a constituição, um documento escrito, uma coisa objetiva durável, a qual, certamente, podia ser abordada de diferentes ângulos e estar sujeita a muitas interpretações diferentes, e que podia ser mudada ou reformulada segundo as circunstâncias, mas que, no entanto, jamais seria um estado de espírito subjetivo, como a vontade. Manteve-se sempre como uma entidade terrena tangível, mais durável do que eleições ou pesquisas de opinião pública. Mesmo quando, em data relativamente recente, e provavelmente sob a influência da teoria constitucional continental, a supremacia da constituição foi defendida “exclusivamente por fundamentar-se na vontade popular”, chegou-se à conclusão de que, após ter sido tomada a decisão, a constituição permanecia obrigatória para todo o corpo político a que ela dera origem; e mesmo que houvesse pessoas que argumentassem que, num governo livre, o povo devia reter o poder para, “em qualquer época, por qualquer motivo, ou simplesmente a seu bel-prazer, alterar ou anular o modo ou a essência de qualquer governo anterior, e adotar um outro em seu lugar”, essas pessoas seriam figuras isoladas na Assembléia. 342

A distinção de fundamento do poder, que reside no povo, e fundamento ou

“autoridade” da lei – que não pode residir no povo, pois sua vontade subjetiva e inconstante

sujeitaria a lei a uma condição de completa e perene instabilidade, permite a fixação de um

princípio de legitimação constitucional diverso do modelo francês continental, na medida

em que a validade positiva da lei deve estar embasada na existência de uma “lei maior”, e

não apenas e exclusivamente na vontade cambiante e volúvel do povo da nação:

(...) Os homens da Revolução Americana, ao contrário, entendiam o poder como o próprio oposto de uma violência pré-política natural. Para eles, o poder surgiu quando e onde o povo passou a se unir e a se vincular através de promessas, pactos e compromissos mútuos; apenas o poder alicerçado na reciprocidade e na mutualidade era poder real e legítimo, ao passo que o assim chamado poder dos reis, monarcas e aristocratas, porque não provinha da mutualidade, mas, quando muito, se apoiava no seu consentimento, era espúrio e usurpador. (...) Não obstante, ainda que o poder arraigado num povo que se uniu através de promessas mútuas, e que passou a viver em organismos constituídos através de pactos, fosse suficiente para fazê-lo “superar, com sucesso, uma revolução” (sem desencadear a violência desenfreada das multidões), não era, de forma alguma, suficiente para estabelecer uma “união perpétua”, isto é, instituir uma nova autoridade. (...) Para os homens da revolução, que se orgulhavam de haver fundado repúblicas, isto é, governos de “leis e não de homens”, o problema da autoridade surgiu sob o disfarce da assim chamada

342 ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 125-126.

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“lei maior”, que daria sanção às leis positivas. Sem dúvida, as leis deviam sua existência fatual ao poder do povo e de seus representantes nas legislaturas, mas estes homens não podiam, ao mesmo tempo, representar a fonte suprema de onde essas leis deviam originar-se, a fim de se tornarem impositivas e válidas para todos, maiorias e minorias, e para as presentes e futuras gerações. 343

Tal “lei maior”, ou seja, a Constituição, termina por se converter, além de sua

função típica como instância de validade da ordem político-jurídica positiva, também em

fonte de sua própria autoridade – mas a Constituição somente pode ter autoridade, contida

em si mesma, na medida em que, a exemplo da experiência romana, é vinculada ao ato

mítico de fundação da comunidade política, materializando-se no documento escrito

caracterizado como símbolo material absoluto e supostamente perpétuo do ato de fundação,

ou, caso se prefira, da força mítica instituidora do direito da comunidade:

Para podermos compreender com maior clareza quais as lições e precedentes específicos que os homens das revoluções buscavam no grande exemplo romano, talvez seja convincente relembrarmos outro fato, amiúde observado, mas que, no entanto, desempenhou um papel especial apenas na República Americana. Muitos historiadores, mormente no século XX, acharam um tanto desconcertante que a Constituição (...) tivesse se transformado de uma hora para outra, em objeto de “uma indiscriminada e quase cega adoração” (...). Poder-se-iam, na verdade, alterar as palavras de Bagehot sobre o governo da Inglaterra, e afirmar que a Constituição fortalece o governo americano “com a força da religião”. Exceto que a força com que o povo americano se ligou à sua Constituição não foi a fé cristã num Deus revelado, nem a obediência hebraica a um Criador que era, ao mesmo tempo, o Legislador do universo. Se sua atitude em relação à religião (sic – possivelmente, Constituição) pode ser, de alguma forma, chamada de religiosa, então a palavra religião deve ser entendida em seu sentido romano original, e sua devoção consistiria, conseqüentemente, em religare, em se vincularem a um princípio remoto, assim como a pietas romana consistia em estar ligado aos primórdios da história romana, à fundação da cidade eterna. Falando historicamente, os homens da Revolução Americana, bem como seus colegas do outro lado do Atlântico, estavam errados em julgar que estavam simplesmente remontando a um “período primordial”, a fim de resgatar antigos direitos e liberdades. Porém, do ponto de vista político, eles acertaram, ao derivar a estabilidade e autoridade de qualquer corpo político a partir de seu início, e sua dificuldade foi que eles não podiam conceber um início, salvo como algo que tivesse ocorrido num passado distante. Woodrow Wilson, mesmo sem ter consciência disso, qualificou de cega e indiscriminada a adoração que os americanos devotavam à Constituição, porque suas origens não estavam envoltas pela aura do tempo; talvez o gênio político do povo americano, ou a grande dita que favoreceu a república americana, tenha consistido precisamente nessa cegueira, ou, em outras palavras, na extraordinária capacidade de olhar para o passado com uma visão compreensiva dos séculos vindouros.

343 ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 146.

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Somos levados a crer que a grande medida do sucesso que os fundadores americanos podem creditar a seu favor, o simples fato de que sua revolução obteve êxito onde todas as demais haveriam de fracassar, ou seja, em fundar um novo corpo político suficientemente estável para sobreviver ao violento assédio dos séculos futuros, foi definida no próprio instante em que a Constituição começou a ser “adorada”, mesmo que mal tivesse começado a produzir seus efeitos. E uma vez que foi nesse aspecto que a Revolução Americana exibiu suas diferenças mais notáveis em relação a todas as outras revoluções que viriam a ocorrer, somos levados a concluir que foi a autoridade contida no próprio ato de fundação, e não a crença num Legislador Imortal, nem as promessas de recompensa e as ameaças de punição num “futuro estado”, e nem mesmo o duvidoso caráter axiomático das verdades enumeradas no preâmbulo da Declaração de Independência, que assegurou estabilidade à nova república. Sem dúvida, essa autoridade é completamente diferente do absoluto que os homens das revoluções buscaram, com tanto afã, introduzir como garantia de validade de suas leis e fonte de legitimidade do novo governo. Mais uma vez foi, em última análise, o grande modelo romano que se afirmou, quase automaticamente e quase inconscientemente, nas mentes daqueles que, com todo zelo e compenetração, haviam se voltado para a história romana e suas instituições políticas, com o propósito de se prepararem para a consecução de seu próprio empreendimento.344

Disto surge o nexo profundo entre Constituição, como documento escrito, e

fundação da comunidade, e, também, entre Constituição e tradição, na medida em que a

Constituição é a tradição, e, portanto, pode ser “aumentada” e “preservada” pelos agentes

políticos detentores de autoridade, e, destarte, sucessores dos homens responsáveis pelo ato

de fundação inicial. Daí a importância, no cenário americano, da idéia de “Pais

Fundadores”, autores da Constituição, auctores primeiros da república americana:

(...) o Senado romano, os patres ou pais da República romana, estavam investidos de autoridade porque representavam, ou antes reencarnavam os ancestrais, cujo único fundamento de autoridade no corpo político era

344 ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 158-160. Sobre o tema, Arendt complementa ainda que: “Já observamos que a palavra constituição comporta um duplo significado. Podemos entendê-la, nos termos de Thomas Paine, como o ato constituinte, “anterior ao governo”, pelo qual o povo se constitui num corpo político, embora usualmente a interpretemos como resultado deste ato, a constituição na forma de um documento escrito. Se voltarmos nossa atenção, mais uma vez, para o “indiscriminado e cego culto” com que o povo dos Estados Unidos passou a considerar a sua “constituição”, talvez possamos entender melhor a natureza ambígua dessa adoração, já que o seu objeto era tanto o ato de constituir como o próprio documento escrito. Em relação ao estranho fato de que o culto à constituição tenha conseguido sobreviver a mais de cem anos de minucioso escrutínio e feroz avaliação crítica do documento, assim como de todas as “verdades” tidas pelos fundadores como axiomáticas, somos inclinados a concluir que a lembrança do próprio evento – um povo fundando deliberadamente um novo corpo político – continuou a envolver o resultado concreto desse ato, ou seja, o próprio documento, numa atmosfera de reverente temor e respeito que tem protegido a ambos da sanha destruidora do tempo e do impacto de novas circunstâncias. E podemos mesmo ser levados a prognosticar que a autoridade da República permanecerá segura e intacta enquanto o próprio ato de fundação, o início propriamente dito, for lembrado e invocado, sempre que entrarem em debate questões constitucionais, no sentido mais restrito da palavra.” (p. 163-164).

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precisamente o fato de o haverem fundado, de serem eles os “Pais Fundadores”. Através dos senadores romanos, os fundadores da cidade de Roma se faziam presentes, e, com eles, o espírito da fundação, o começo, o principium e a norma daquelas res gestae, as quais, a partir de então, formaram a história do povo de Roma. Pois auctoritas, cuja raiz etimológica é augere, aumentar e desenvolver-se, dependia da vitalidade do espírito da fundação, em virtude do qual foi possível aumentar, desenvolver e ampliar os fundamentos que haviam sido estabelecidos pelos ancestrais. A ininterrupta continuidade desse aumento e sua inerente autoridade só podiam ocorrer através da tradição, isto é, através da transmissão, ao longo de uma linha contínua de sucessores, da norma inaugural estabelecida no princípio. Integrar essa linha ininterrupta de sucessores significava, em Roma, ser autoridade, e permanecer ligado aos primitivos fundadores, com piedosa reverência e fidelidade, significava possuir a pietas romana, ser “religioso” ou “estar ligado” às suas próprias origens. Portanto, não era a atividade legislativa, embora isso fosse muito importante em Roma, nem o exercício do poder como tal, que eram tidos como possuindo a mais elevada virtude humana, mas antes a fundação de novos Estados, ou a conservação e ampliação dos que já haviam sido fundados (...). A própria coincidência da autoridade, da tradição e da religião, todas três emergindo simultaneamente do ato de fundação, foi a espinha dorsal da história romana, do princípio ao fim. Como a autoridade significava aumento de fundações, Catão pôde afirmar que a constitutio rei publicae “não era obra de um só homem e de uma só época”. Em virtude da auctoritas, permanência e mudança estavam indissoluvelmente ligadas, pelo que, em todas as situações ao longo de toda a história romana, mudança não podia significar outra coisa senão aumento e ampliação do antigo. Para os romanos, pelo menos, a conquista da Itália e a edificação de um império eram legítimos, na medida em que os territórios ampliavam a fundação da cidade e a ela se integravam. Esse último ponto, ou seja, o de que a fundação, aumento e conservação estão intimamente inter-relacionados, pode muito bem ter sido a noção singular mais importante que os homens da Revolução adotaram (...). No que concernia ao século XVIII, os homens da Revolução devem ter julgado que seu principal problema imediato (...) [era] de como tornar “perpétua” a União, de como conferir permanência a uma fundação, de como obter a sanção da legitimidade para um corpo político que não podia recorrer à sanção da Antiguidade (...), tudo isso parecera-lhes ter encontrado uma solução simples, e como que automática, na antiga Roma. A própria concepção romana de autoridade sugere que o ato de fundação gera, inevitavelmente, sua própria estabilidade e permanência, e, nesse contexto, a autoridade não é, nada mais nada menos, do que uma espécie de “aumento” necessário, em virtude do qual todas as inovações e mudanças permanecem ligadas às fundação original, ao mesmo tempo que a fazem aumentar e desenvolver-se. Assim sendo, as emendas à Constituição apenas aumentam e ampliam as bases originais da República americana; desnecessário é dizer que a própria autoridade da Constituição americana repousa em sua inerente capacidade de ser emendada e ampliada. Essa noção de uma coincidência de fundação e preservação, que se englobam num aumento – a idéia de que o ato “revolucionário” de dar início a alguma coisa inteiramente nova e o zelo preservativo, destinado a proteger esse novo início através dos séculos, estão inter-relacionados –, estava profundamente enraizada no espírito romano e transparecia nitidamente em quase todas as páginas da história romana. (...) Que essa interpretação do sucesso da Revolução Americana, em termos do espírito romano, não é arbitrária, parece ser atestada pelo curioso fato de que não fomos apenas nós que chamamos os homens da Revolução de “Pais Fundadores”; eles próprios assim se consideravam. Esse fato tem dado

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margem, ultimamente, à idéia um tanto antipática de que esses homens julgavam possuir mais virtude e sabedoria do que seria razoável esperar de seus sucessores. Mas mesmo um conhecimento superficial do pensamento e do estilo da época bastaria para demonstrar que essa espécie de arrogância dificilmente se coadunaria com as suas mentes. A interpretação é muito mais simples: eles se consideravam fundadores porque se dispuseram, conscientemente, a imitar e a reproduzir o exemplo e o espírito romanos. Quando Madison fala dos “sucessores”, sobre quem recaiu a “incumbência” [...] de aperfeiçoar e perpetuar” o grande projeto concebido pelos ancestrais, ele antevia “aquela veneração que o tempo empresta a todas as coisas, e sem a qual o governo, por mais sábio e livre que fosse, ficaria destituído da necessária estabilidade. É bem verdade que os fundadores americanos assumiram o papel dos maiores romanos, daqueles ancestrais que eram, por definição, “os maiores”, antes mesmo que o povo os reconhecesse como tais. Mas o espírito que os fez reivindicar essa qualidade estava isento de arrogância; ele surgiu do simples reconhecimento de que, ou eles eram fundadores, e, conseqüentemente, se tornariam ancestrais, ou eles haviam fracassado.345

No modelo americano, porém, há também representação popular. Dessa forma, o

agente político arrogado de autoridade procura a legitimidade de sua atuação política não

como representante da vontade popular – como é no caso francês – mas sim como detentor

de um mandato popular representativo que lhe confere competência (constitucional) para

atuar como “aumentador” e “preservador” da Constituição, e, por conseqüência, do ato de

fundação da comunidade política.

Entretanto, assim como no exemplo francês, a atuação autoritária apócrifa pode se

apresentar como efetiva “aumentadora” e “preservadora” da ordem político-constitucional

sem que, todavia, tenha um concreto mandato representativo a legitimando para tanto.

345 ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 161-163. Em seu artigo específico sobre a autoridade, Arendt traça um panorama resumido das idéias que vêm sendo apresentadas: “Pois, se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de natureza política, e que o famoso “declínio do Ocidente” consiste fundamentalmente no declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza. Dessas tentativas, somente uma, a Revolução Americana, foi bem sucedida: os pais fundadores, como – o que é bem peculiar – podemos ainda chamá-los, fundaram um organismo político inteiramente novo prescindindo da violência e com o auxílio de uma Constituição. E tal organismo durou pelo menos até o dia de hoje, a despeito do fato de em nenhum outro local o caráter especificamente moderno do mundo atual produzir expressões tão extremas em todas as esferas não-políticas da vida como nos Estados Unidos. Não é este o local para discutir os motivos da surpreendente estabilidade de uma estrutura política sob o assalto da mais veemente e despedaçadora instabilidade social.(...) É também provável que os pais fundadores, por terem escapado ao desenvolvimento europeu da nação-estado, tenham permanecido mais próximos do espírito romano original”. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. p. 185-186.

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Assim como a vontade popular justificaria o ato apócrifo de suspensão ou rompimento da

ordem político-jurídica, o afã de “aumentar” e “preservar” o ato de fundação materializado

na Constituição justificaria a eventual suspensão ou rompimento das regras contidas neste

documento346. A autoridade apócrifa, de todo modo, é buscada fora da Constituição, seja no

ato de fundação da vontade da nação, subjetiva e fluida, seja no ato de fundação

“tradicional” americano, que tem a pretensão de objetividade e estabilidade347.

A diferença entre essas duas fontes de legitimação político-jurídica, todavia, não é

necessariamente auto-excludente. Na medida em que a Constituição – mesmo que se aceite

a distinção schmittiana entre decisões políticas fundamentais e prescrições legal-

constitucionais – é fruto da vontade popular348, é possível existirem simultaneamente a

legitimação com base na vontade da nação como unidade política, e a autoridade da

Constituição como documento que consolida textualmente essa vontade, a despeito de suas

pretensões mítico-simbólicas de estabilidade, perpetuidade e autoridade. Em verdade, este é

um dos discursos constitucionalistas dos mais comuns contemporaneamente349.

Na perspectiva teórica que deriva da Revolução Francesa prevaleceria a idéia de que

a autoridade da Constituição subsistiria apenas enquanto correspondesse exatamente à

vontade una e indivisível da nação. Já no âmbito lógico da Revolução Americana, a

autoridade da Constituição, conquanto igualmente corresponda, em certa medida, à vontade

do povo, deriva do ato (que se pretende mítico) de fundação da comunidade política dos

Estados Unidos, pois ela é a materialização concreta do ato, da força e da violência

fundadoras dessa ordem político-jurídica.

346 É até mesmo por isso, dentre outros fatores, que Schmitt pode relatar satisfeito e com algum desdém que: “(…) La Constitución federal americana de 1787 previó en el art. I, sec. IX, 2, la posibilidad de una suspensión del acta de Habeas Corpus.” SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 125. 347 É importante frisar, neste ponto, à luz do pensamento de Benjamin, que em ambos os casos o fundamento ontológico último permanece sendo a força ou violência instituidora do direito, da ordem político-jurídica. A diferença é, insiste-se, que no modelo francês esse ato de fundação é mitologicamente embasado na ficção da vontade nacional, una e indivisível, enquanto que no constructo americano o ato de fundação é mitologicamente embasado no caráter inédito e “sagrado” do estabelecimento de um novo corpo político. 348 Isto é válido até mesmo na narrativa de Arendt, pois, como ela mesma reconhece, “constituição” é também o ato do povo em formar um corpo político. 349 E se reporta a um híbrido do modelo americano e do continental, o qual será ainda extensamente discutido.

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A diferença, portanto, reside em dois extremos: no modelo francês, a ficção de uma

vontade que a despeito de derivar de múltiplas fontes é una e indivisível, e que, por meio de

seu poder constituinte, estabelece uma Constituição cuja força de lei é absoluta enquanto

houver correspondência entre ela e a vontade que a fundou; no modelo americano, a ficção

proto-romana de que a Constituição é o símbolo presente do ato de fundação da

comunidade política. Nessa última perspectiva, a Constituição adquire, como visto, um

caráter quase sagrado, e a história constitucional converte-se em verdadeira tradição, fonte

inesgotável de autoridade para atuação e interpretação político-jurídicas.

Não à toa, existe o grande respeito que a teoria e jurisprudência americanas ainda

têm para com os chamados "Pais Fundadores" (auctores), representado na procura

interminável pelo sentido efetivo que eles desejaram dar a cada passagem do texto

constitucional americano. Desse modo, cada ato político ou jurídico é um ato de "aumento"

da fundação dos Estados Unidos, caso esteja conforme à tradição constitucional que

derivou deste mesmo ato de fundação350.

A diferença prática, entretanto, é bem maior em grau do que propriamente em

natureza. Isto porque a conseqüência concreta para os agentes políticos é, estruturalmente,

similar: a um compete provar a correspondência de sua atuação à Constituição como

manifestação concreta da vontade popular, ou simplesmente remetendo-se à vontade geral

350 Arendt não faz o vínculo teórico, mas é possível que a lógica de funcionamento da common law, amparada em precedentes, tenha relação com a idéia de manutenção da tradição. De todo modo, ela explica, em sua narrativa sobre a Revolução Americana, que a idéia de costume imemorial, herdada da Inglaterra, não bastava, naquele momento, para a fundação de uma nova ordem político-jurídica, papel que terminou sendo realizado, dentre outros elementos, pelo documento constitucional. Todavia, na medida em que o precedente inglês clássico derivaria dos costumes imemoriais do Reino, o precedente americano moderno tem seu fundamento na Constituição, e parece constituir um mecanismo cuja função volta-se para o aumento e a preservação simultâneos da tradição constitucional. Sob essa ótica, adquirem novos sentidos teorias de expoentes pensadores americanos da atualidade, cujas perspectivas preocupam-se sobremaneira com alguma forma de teoria de interpretação jurídica que possa servir de guia decisório e teórico para realizar um “aperfeiçoamento mantenedor” da ordem jurídica em cada decisão concreta. Destaca-se, a título de exemplo, Ronald Dworkin, e suas idéias de “cadeia do direito” e “direito à integridade” (que se reportam, de certo modo, à integridade da história jurídica da comunidade política); bem como Michel Rosenfeld e sua ampla reflexão acerca da noção de “identidade constitucional”. Na medida em que o autor que ora escreve estas palavras dedicou boa parte de sua produção acadêmica à análise desses dois autores, não é sem algum incômodo que ele comunica o que acredita ser uma proximidade assustadora da lógica do pensamento deles com a estrutura ontológica político-jurídica contemplada e proposta como modelo teórico por Agamben. Especificamente sobre os dois autores citados, reporte-se às referências bibliográficas desta tese quem

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popular – demonstrando, nesta segunda hipótese, que a Constituição ou sua interpretação

corrente não correspondem a essa vontade que deve necessariamente legitimar-lhes;

enquanto a outro compete provar a correspondência da sua atuação à tradição constitucional

ou à intenção original dos pais fundadores, no papel de “aumentador” e “preservador” da

Constituição – eventualmente sendo necessário demonstrar em que sentido e medida a

interpretação atual da Constituição não corresponde a essa intenção, tradição ou à essência

do próprio ato fundacional em si considerado.

Como se vê, não há uma diferença ontológica essencial entre esses dois modelos.

Ambos não passam de interpretações sobre o que é o ato mítico de fundação da ordem

jurídico-política da comunidade. Este ato mítico ora é vontade una e indivisível de um povo

– que se materializa em uma Constituição; ora é o documento, a Constituição, que

materializa o esforço dos "fundadores" – que representavam a vontade do povo naquele

momento, para delimitar a existência concreta de uma comunidade política fundada em

uma tradição a ser preservada e complementada pelos seus sucessores. A questão essencial

aqui é apenas a de que em um dos modelos se pressupõe a possibilidade corriqueira e

normal de que a qualquer momento se abandone a Constituição vigente em prol de uma

nova Constituição que melhor corresponda à vontade popular do momento, ao passo que na

perspectiva americana o rompimento radical com o texto constitucional e sua tradição não é

encarado como uma possibilidade político-jurídica aceitável351.

Não é difícil perceber que o modelo americano gera um grau de estabilidade

político-jurídica bem maior que o da ficção da vontade popular. Enquanto os Estados

Unidos, a despeito de todas as transformações sobre a interpretação de sua Constituição,

jamais produziram um novo texto constitucional em substituição àquele que acompanhou a

fundação da comunidade, os países europeus, em especial a França, experimentaram uma

instabilidade constitucional intensa aproximadamente até o final da Segunda Guerra

Mundial. São incontáveis as ditaduras, golpes de Estado, fascismos e tiranias que se

eventualmente desejar consultá-los ou à produção acadêmica mencionada, já que foge ao escopo do atual texto se debruçar sobre suas propostas teóricas. 351 E, desse modo, o esforço de legitimação de um rompimento ou suspensão efetivo costuma ser maior e mais sério (no sentido de densidade e tentativa de convencimento discursivo) que no exemplo francês.

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estabeleceram em nome da idéia de que correspondiam à vontade popular da nação naquele

instante352. Dessa forma, não é de se surpreender que o constitucionalismo atual, a despeito

de não ter abandonado a ficção da vontade popular, busque de algum modo atribuir maior

autoridade à Constituição em si, como forma de conferir mais segurança e força aos

regimes político-jurídicos constitucionais. Todavia, como bem observado por Schmitt, o

embasamento de tal procedimento se dá a partir da idéia central da Constituição como lei

maior – superior e acima das demais, apenas; e não necessariamente como o símbolo

material e escrito do ato de fundação da comunidade353.

De uma forma ou de outra, o agente político que atua soberanamente de modo

apócrifo, terá que, de algum modo, vincular a sua atuação, como legítima, ou à vontade do

povo/nação, ou às prescrições (quiçá "espírito") da Constituição – seja como tradição

oriunda de um ato fundador, seja, mais comumente, como a lei maior e superior. Sua

suposta autoridade, portanto, estará estruturalmente embasada em um desses dois

mecanismos de fundamentação e legitimação político-jurídicas. É possível imaginar,

inclusive, que a legitimação da atuação soberana apócrifa se dê tanto com base na vontade

popular quanto no texto constitucional, simultaneamente, por meio da identificação do ato

apócrifo tanto com a Constituição quanto com a vontade popular (isto é ao mesmo tempo o

que a Constituição manda e o que o povo quer - a autoridade que a validaria, portanto, seria

dupla).

É evidente que falar em autorização e validação por meio de um texto constitucional

ou de uma vontade popular não passa, como várias expressões que se tem abordado, de

uma ficção político-jurídica. Autoridade possuem homens ou assembléias de homens,

apenas – quer eles atuem autoritariamente com base em uma lei, seguindo-a à risca, quer

não, isso nada mais é que uma circunstância acidental, que de modo nenhum altera a

352 E Schmitt não deixa de ter seu grau de responsabilidade intelectual pela legitimação teórica de tais atos. 353 A diferença entre os dois modelos, hoje, tende a desaparecer. A teoria constitucional americana e a teoria constitucional continental são cada vez mais parecidas, e tendem a debater sobre os mesmos temas e questões. A diferença dos constructos, entretanto, é importante para entender como os elementos que se casam, vindo de cada um deles, permitem a articulação da soberania apócrifa, ou, em outros termos, a instituição de uma situação de exceção geral e informal – tal questão, todavia, não se esgota ainda nesta parte do presente texto.

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natureza humana da "posse" da autoridade354. Um texto constitucional pode estabelecer no

máximo competências, inclusive competências a respeito de quem detém autoridade. Mas

não é a Constituição que "decide" ou "convalida" um ato - mas sim os homens que

“receberam” essas competências da Constituição. Assim, o recurso apócrifo à autoridade

que deflui da Constituição (tradição) ou de uma suposta vontade popular, constitui uma

tentativa de "autorizar-se a si próprio", ou seja, de convalidar a atuação soberana apócrifa

independentemente das instâncias que eventualmente teriam a efetiva competência de

autoridade para o caso ou da prescrição normativa político-jurídica constitucional que

proibiria o ato.

Todo ato de soberania apócrifo buscará se "auto-autorizar" por uma dessas duas

formas, ou por ambas. É dessa forma que se justifica o trânsito da força de lei, ou da força

constitucional, para o ato de soberania apócrifo, na medida em que a autoridade que deflui

do argumento mítico transita para o ato apócrifo (decisão apócrifa, soberana). Tal recurso

deve ser encarado como um procedimento eminentemente lingüístico e interpretativo – pois

é apenas na linguagem, no discurso, que se pode traçar um constructo no qual a força da lei

pode transitar para qualquer sentido concreto e vice-versa. Ora, de que outra forma se pode

"provar" que o ato (sua forma – significante, como se verá) corresponde ao sentido

(significado) da Constituição, da tradição, da intenção dos fundadores ou da vontade da

nação?

Destarte, o vínculo entre soberania e força de lei (a liberação soberana da força de

lei) somente pode se formar, na realidade concreta, por meio do discurso – ainda que,

eventual e concretamente, sua efetivação termine sendo amparada não em discurso, mas em

violência. Na perspectiva de Agamben, não há que se falar em atos apócrifos de soberania

em contraste com atos legítimos de soberania. Como direito e política são desde sempre

exceção e biopolítica, todo ato soberano é já necessariamente apócrifo e ilegítimo355. A

conseqüência disto é a de que todo ato que usualmente se considera vinculado à soberania é

um ato apócrifo, ou, em outros termos, um ato no qual potencialmente é sempre construída

354 E, diria Agamben, a natureza ontológica anômica de todo direito e política. 355 E, de fato, qualquer ato político ou jurídico já é em si potencialmente biopolítica ou exceção, e, portanto, ilegítimo em sua raiz ontológica primeira.

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uma ponte lingüístico-discursiva entre ação e fundamento de autoridade, para possibilitar o

"uso" irrestrito da força de lei que se origina da fundação mística da ordem político-jurídica

da comunidade.

Os atos apócrifos de soberania, portanto, quando se tornam técnica de governo,

constituem a exceção generalizada e informal proposta por Agamben como marca

biopolítica da modernidade. Essa situação real de exceção, diversas vezes evocada por ele,

e que se ampara na existência de uma auctoritas que, atualmente, deve de algum modo

invocar alguma soberania ao menos remotamente popular, somente funciona por meio de

mecanismos discursivos e lingüísticos que tentem justificá-la e legitimá-la, pois, mesmo no

absurdo completo de uma violência de exceção jurídica irrestrita e incontrolada, mantém-se

a decisão soberana como expressão da linguagem, ou seja, como algum tipo de discurso

com pretensão de soberania. A estrutura lingüística da exceção é, portanto, o tema da

próxima sessão desta tese.

2. A forma lingüística da Exceção.

Agamben não esclarece em momento algum como funciona a situação de exceção, e

como ela pode efetivamente ser instaurada fora de qualquer previsão legal. Apesar de

trabalhar com o modelo nazista, o melhor dos exemplos de exceção generalizada que já

existiu, não há nenhuma análise acerca do modelo de funcionamento estrutural dessa

exceção. A sugestão de resposta encontra-se, já em seu texto, nas várias passagens nas

quais aproxima a lógica da exceção e do direito à lógica da linguagem. É na avaliação da

forma lingüística da exceção que é possível compreender como efetivamente ela funciona,

como se instaura, a despeito de não ser oficialmente declarada, e como, em tal

circunstância, passa a produzir discursos próprios na forma e técnica de discursos

jurídicos356.

356 Agamben sugere, conforme já visto, que nas situações de exceção generalizada, ainda assim os Estados pretendem estar aplicando o direito vigente. Nesse caso, exsurge uma espécie de discurso “proto-jurídico”, que simula a situação de “falsa” vigência do ordenamento jurídico. Tal discurso pode e será considerado como o discurso da exceção, ou melhor, o discurso da exceção generalizada. Sua função lingüística

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A proposta de interpretar a teoria de Agamben à luz de uma perspectiva semiótica,

ou semiológica, poderia a princípio ser criticada sob o argumento de que a comparação

entre direito e linguagem traçada pelo autor se vincula à filosofia existencialista –

principalmente Heidegger; ou, quando muito, às idéias de alguns dos desconstrutivistas

franceses, tais como Derrida e Bataille, mas não à abordagem estruturalista da linguagem.

Em um primeiro momento, a resposta a essa crítica poderia ser dada a partir do fato de que,

de todo modo, os conceitos de significante e significado, centrais para a reflexão de

Agamben, são patrimônio explicativo da tradição estruturalista – e se explicam em termos

estruturalistas.

Há, todavia, dois motivos melhores que justificam a proposta, e que caminham

juntos. A exceção jurídica ocorre no interior do direito – e, por conseqüência, no interior da

aplicação e da interpretação jurídicas. Onde há aplicação jurídica, há, necessariamente,

ainda que lato sensu, discurso, linguagem em ação. Especificamente a aplicação judiciária

do direito, que presentemente interessa a esta tese, é sempre, de um modo ou de outro, a

construção de um discurso. Na medida em que a perspectiva semiótica é útil para se

compreender a atuação judiciária, ela também será útil para compreender como ocorre a

exceção jurídica a partir dela.

Deriva disto o segundo motivo – ocorre, então, uma inversão: não se trata de

encaixar uma perspectiva lingüístico-semiótica na teoria de Agamben, mas sim de

interpretar o significado dela à luz da teoria lingüístico-semiótica – ou seja, de compreender

as conseqüências dela para a reflexão estrutural sobre a linguagem. A idéia, portanto, não é

de avaliar se há um espaço para a lingüística em Agamben, mas sim, já que o discurso

judiciário ignorado por Agamben há de ser apreciado, de compreender o que é a exceção

para a linguagem e para o discurso. Neste caso, é Agamben que constitui instância útil à

análise formal do discurso, e não o contrário.

primordial é a de fazer parecer que a situação de anomia é, na verdade, uma situação normal de vigência do direito.

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Em trabalho anterior357, defendeu-se a idéia de que o direito pode ser interpretado

como um sistema de significação único e particular, ou seja, como uma linguagem; e que,

ainda em relação ao direito, é possível se depreender também da estrutura constitucional e

constitucionalista um sistema de significação próprio, vinculado à linguagem do direito358.

Os discursos jurídicos, e os discursos constitucionais, se estruturam a partir justamente dos

elementos que compõem essas duas linguagens. Cumpre compreender, portanto, como a

situação de exceção altera o funcionamento da linguagem jurídica, e a formação dos

discursos jurídicos e constitucionais – ou, em outros termos, o que representa a situação de

exceção para esses discursos.

A principal característica que marca a existência de um sistema de linguagem é a

existência, no interior de sua estrutura de funcionamento, do processo de significação – ou

seja, do processo lingüístico pelo qual se atribui significados a significantes, formando a

existência de signos. Trata-se da vinculação de sentido a forma. O significado é o sentido

conceitual e abstrato de um signo, enquanto o significante pode ser interpretado como sua

forma material, ou “fôrma”:

Segundo Saussure, o signo lingüístico é um objeto que apresenta estreita unidade (como duas faces de uma folha de papel) entre significante e significado. O processo de significação é a união entre um conceito e uma imagem acústica, sendo que o significante (plano da expressão) não é a forma fônica, nem tampouco o significado (plano do conteúdo) é a coisa – o significado é uma imagem mental da coisa, e o significante a imagem da forma fônica. O processo de significação, o elo entre o significante e o

357 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. Dissertação de Mestrado em Direito pela Universidade de Brasília. Brasília: 2005. As explicações que se seguem na presente sessão podem ser consideradas com um excerto e uma adaptação da reflexão mais ampla traçada na obra mencionada. A quem se interessar por uma reflexão mais detalhada sobre a interpretação do direito encarado como linguagem e discurso, reporta-se principalmente aos capítulos III e IV do texto indicado. 358 Sobre a possibilidade de tratamento do direito como sistema de significação, Umberto Eco, em sua obra “A Estrutura Ausente”, define pesquisa semiológica como a investigação dos fenômenos da cultura sob a perspectiva dos fatos da comunicação – a dúvida semiológica se constitui em investigar como as mensagens isoladas se organizam e se tornam compreensíveis em referência a códigos específicos de comunicação. Nesse sentido, todo fenômeno cultural pode ser estudado como se fosse um sistema de signos, nos quais se realizam fenômenos de comunicação”. THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 83. Especificamente sobre a obra citada, ver ECO, Umberto. A Estrutura Ausente. Trad.: Pérola da Carvalho. 7ª Ed. São Paulo: Editora Perspecitva, 2001.

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significado, é arbitrário, mas necessário para quem fala (imposto pela língua em seus aspectos denotativos).359

O signo, portanto, é o resultado da junção entre um significado e um significante,

sendo que o significado corresponde ao conceito, e o significante a uma imagem acústica

ou gráfica. A estrutura de relacionamento entre signo e significante pode ser representada

pela seguinte imagem:

Ao conceito de árvore, ou ainda, à imagem real de uma árvore, corresponde a

imagem acústica latina “arbor”. Somente é possível compreender a palavra “arbor”, em

latim, como árvore, porque o processo de significação uniu essa imagem acústica ao

conceito de árvore. Os significantes e os significados são paulatinamente unidos, dentro dos

sistemas de significação, por meio de códigos, léxicos e repertórios de comunicação:

Nos sistemas de comunicação podem ser encontrados códigos, léxicos e repertórios. A noção de código escapa de uma definição que precise todos os contornos do conceito, mas os códigos podem ser concebidos como sistemas de expectativas válidos no mundo dos signos, que terminam por delinear sistemas de expectativas correlatos no mundo dos comportamentos psicológicos, dos modos de pensamento. Nesse sentido, os códigos estabelecem a correspondência entre significantes e significados (que constituem os signos), fixam repertórios de signos e símbolos (que se distinguem por oposição recíproca), limitam as possibilidades combinatórias dos símbolos e dos signos (estabelecem as regras de combinação), ou ainda: “(...) um código é uma estrutura elaborada sob forma de modelo e postulada

359 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 85. Sobre a menção a Saussure, ver SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Trad.: Antonio Chelini, João Paulo Paes e Isidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo, 1969.

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como regra subjacente a uma série de mensagens concretas e individuais que a ela se adéquam e só em relação a ela se tornam comunicativas.”. No caso particular da língua, o código estabelece-se por cristalização social, é o produto de uma média estabelecida pelo uso.360

O código, ou códigos, de uma determinada linguagem, é a estrutura que define o

modelo e a forma de vinculação de significados a significantes, bem como possibilita a

articulação efetiva de discursos a partir dos signos e símbolos por ele disponibilizados.

Toda linguagem tem necessariamente pelo menos um código, e o direito, como linguagem

complexa, está discursivamente marcado pela incidência de diversos códigos específicos361

para a construção dos discursos jurídicos.

Se o código pode ser entendido como “o produto de uma média estabelecida pelo

uso”, então a aproximação realizada por Agamben entre direito e linguagem fica ainda mais

clara (até porque o direito é uma linguagem). A definição de uma situação jurídica normal,

ou seja, média – que define tanto a forma de relação do direito com a vida, por meio da

incidência definidora de sentido do poder soberano, quanto mantém sempre presente a

necessidade de o direito possuir algum mecanismo de relação com o “a-normal”,

compreendido como o quê não sofreu a incidência da média do uso (e que é realizada por

meio da exceção) – corresponde justamente a um processo de cristalização social e

definição do que é normal como sistema de expectativa.

Conforme proposto por Agamben, a relação da linguagem com o não-lingüístico

tem seu paralelo, no direito, na relação do direito com a vida, com o “não-normatizado”, e,

portanto, anormal. Se, entretanto, na linguagem, o problema dessa relação se resolve no uso

social dos códigos, que sempre terminam por se impor à estrutura rígida da langue

(linguagem)362, no direito ela se resolve apenas na decisão soberana, que suspende o direito

360 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 86-87. 361 Por exemplo, o código de um discurso constitucionalista continental, o código de um discurso civilista, o código de um discurso jurídico de esquerda, o código de um discurso jurídico de direita, etc. 362 Quer-se dizer, neste ponto, que a linguagem, porque é falada, sofre constantes mutações. A rigidez de sua estrutura é constantemente re-construída a partir de como os falantes se utilizam dos códigos a eles disponibilizados. Como exemplo simples, cita-se a evolução de “Vossa mercê” para “vosmicê” para “você” quase para “cê”, e quem, sabe, num futuro próximo, para “c”.

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para permitir a inclusão da vida anômica em seu interior. Essa é a principal diferença do

direito, como sistema de linguagem, da linguagem propriamente dita – e o papel do

soberano, para o direito, somente encontra um símile, na linguagem, nas obras da literatura

em que o autor (auctor?) “re-define” a relação entre o lingüístico e o não-lingüístico,

suspendendo as regras e as expectativas definidas pelos códigos lingüísticos – permitindo,

desse modo, a incorporação de elementos “vitais” que escapavam de um tratamento

lingüístico específico363. O funcionamento de um código, de toda forma, depende da co-

existência paralela de léxicos e repertórios:

Eco estabelece a diferença entre repertórios, códigos e léxicos (ou subcódigos). O repertório prevê uma lista de símbolos (significantes), fixa a equivalência entre eles e determinados significados. Já o código erige esses símbolos em um sistema de diferenças e oposições e lhes fixa as regras de combinação. Os códigos denotativos fixam rigidamente uma relação unívoca entre um significado e um significante (denotação); são, portanto, facilmente individuáveis e apresentam regras precisas e estáveis. Os léxicos constituem-se em sistemas de oposições significativas, mas geralmente não englobam as regras combinatórias, pois remetem ao código do qual são léxicos (subcódigos) – logo, um léxico conotativo atribui outros valores aos significados do código denotativo subjacente, mas aceita suas regras articulatórias. Assim, os significados de um determinado significante são determinados tanto por meio de processos denotativos (orientados pelos códigos), quanto por meio de processos conotativos (orientados pelos léxicos). “A relação de conotação se estabelece quando um par formado pelo significante e pelo significado denotado, conjuntamente, se torna o significante de um significado adjunto.” Desse modo, a conotação se estabelece a partir do significante e do significado denotativo unidos (ou seja, do signo): um determinado léxico conotativo “acopla-se” ao sistema denotativo da linguagem, “colando” novos significados a signos já denotativamente constituídos. “(...) enquanto os significados denotativos são estabelecidos pelo código, os conotativos são estabelecidos por subcódigos ou “léxicos” específicos, comuns a certos grupos de falantes e não necessariamente a todos (...)”. O processo de significação, portanto, não é um único momento no qual determinado significado é fixado em relação a um certo significante, mas sim constitui-se numa dinâmica polissêmica variável de acordo com as diferenças culturais existentes na sociedade. “O significante apresenta-se (...) como forma geradora de sentido, que se preenche de montes de denotações e conotações graças a uma série de códigos e léxicos que estabelecem as correspondências entre ele e grupos de significados”. 364

363 Basta refletir, nesse exemplo, sobre o conteúdo de vida que o “fluxo de consciência” desenvolvido por James Joyce trouxe para a linguagem, que até então jamais recebera qualquer apreciação lingüística formal. E, curiosamente, o fluxo de consciência depende da “suspensão” dos códigos lingüísticos tradicionais para poder se estruturar – a ponto de o fluxo de consciência apenas lembrar, vagamente, a linguagem. Assim também a situação de exceção generalizada lembra, vagamente, uma situação de vigência do ordenamento jurídico tradicional. 364 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel

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O repertório define os significantes básicos da linguagem, traçando alguma

equivalência entre estes significantes e alguns significados. O código, dando seguimento à

função do repertório, fixa denotativamente (e, portanto, rigidamente) uma série de

significados a significantes específicos, bem como estabelece as regras de combinação

desses signos, permitindo a articulação efetiva de discursos. Já os léxicos acoplam-se a

códigos específicos, permitindo a formação de sentido conotativo, ou seja, o acoplamento

de significados instáveis a significantes que já possuem um significado denotativo fixado

por um código.

À primeira vista, o ordenamento jurídico, compreendido como o conjunto de leis de

uma comunidade política, constitui um código denotativo (o “código central” de um direito

local e historicamente localizado). A lei escrita define claramente um significado textual

para as situações por ela contempladas (o significado do que está escrito pode ser

questionado, mas a existência da lei como elemento formal do direito dotada de sentido, a

princípio, não). Entretanto, a aplicação da lei difere, e muito, da lei em si, sendo impossível

derivar do simples texto legal, sua aplicação. Nesse caso, o código do ordenamento jurídico

pode ser interpretado como o conjunto de signos, ou seja, de sentidos de aplicação da lei,

que são consensuais (ou quase consensuais) dentro da comunidade política.

Quando há, entretanto, dúvidas e interpretações divergentes para a aplicação de uma

determinada lei, ou ainda, sobre o sentido jurídico de um determinado signo no texto legal,

o debate jurídico se pauta pela incidência de léxicos que correm paralelos ao “código

central” do direito. O léxico, por atribuir sentido conotativo, nunca é certo e sempre

encontra alguma resistência no momento de ser aplicado durante a aplicação da lei. Mais à

frente, voltar-se-á à análise da conotação e da denotação em face da exceção. Nesse

sentido, talvez o soberano possa ser definido como aquele que tem a autoridade para

transformar um léxico em “código central”. O processo de significação, fundamental para o

que se vem explanando, pode ser melhor explicado por meio de um simples símbolo de

representação:

Rosenfeld. P. 88-89. Sobre os processos de conotação e denotação, é também particularmente esclacedor

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Saussure apresenta a relação entre significante (plano da expressão) e significado (plano do conteúdo) por Se/So. “(...) o signo apresenta-se, demonstrativamente, como a extensão de uma situação profunda: na língua, o significado, de certo modo, está atrás do significante e somente pode ser atingido através dele (...)”. Hjelmslev, entretanto, apresenta uma representação puramente gráfica da relação entre significante e significado: “(...) há relação (R) entre o plano de expressão (E) e o plano do conteúdo (C).” Assim temos que: E-R-C. (...) todo sistema de comunicação (e suas relações de significação) pode ser representado pela estrutura E-R-C. As significações se estabelecem com base nos códigos e léxicos inerentes ao sistema, por meio de processos denotativos e conotativos.365

Desse modo, ao plano E (plano de expressão) correspondem os significantes dos

repertórios do sistema de linguagem, ao plano C (plano do conteúdo) o conjunto de

significados oriundos de seus códigos e léxicos, e à marca R (relação) o processo de

colagem, denotativa ou conotativa, de significados aos significantes:

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. Trad.: Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix, 2001. 365 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 90-91. Sobre Hjelmslev, ver HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem. Trad.: J. Teixeira Coelho Netto. 2ª Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

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Agamben traça duas situações básicas de exceção generalizada: a exceção em que a

lei vigora sem significar, e a exceção em que há sentido sem vigência. No primeiro caso, há

o máximo de vigência formal com o mínimo de sentido real, e no segundo há o máximo de

sentido real e concreto, com o mínimo de vigência formal. Ambos se amparam no trânsito

livre de força de lei, ou “força constitucional”. O primeiro tipo de exceção corresponde à

exceção generalizada da modernidade, que é o tema central da obra de Agamben, e o

segundo à exceção instaurada durante uma revolução. Entretanto, no paradigma biopolítico

do campo de concentração, as duas formas da exceção parecem se confundir, na medida em

que se torna impossível discernir fato de direito, vida de lei.

É fácil perceber que, à primeira vista, a situação de máximo de vigência formal com

o mínimo de sentido concreto, ou seja, da norma que vigora sem significar, pode ser

lingüística e estruturalmente compreendida como um “significante desprovido de

significado” (E-R-X). Já a situação de máximo de sentido real com o mínimo de vigência

formal corresponde ao “significado desatrelado de qualquer significante” (X-R-C). O que

esta primeira análise revela, de todo modo, é que na situação de exceção, a relação de

significação, ou seja, a relação de colagem de significados a significantes não se realiza de

forma perfeita e completa – isso se dá, como se verá, por conta da suspensão de um ou mais

dos elementos da relação de significação.

A semelhança do direito com a linguagem já foi ressaltada várias vezes. Agamben

identifica e vincula a necessidade do direito de se manter em relação com a vida anômica,

com o não-jurídico, com a paralela necessidade da linguagem de se manter em relação com

o não-lingüístico. Na linguagem, o não-lingüístico somente pode ser “alcançado” por meio

da suspensão dos códigos e léxicos lingüísticos. Do que resulta de tal suspensão, formam-se

novos códigos e novos léxicos. O exemplo da obra de literatura revela isso bem: a

suspensão dos códigos e léxicos tradicionais permite o tratamento do quê era antes não-

lingüístico. Enquanto a obra está “sendo/por ser” escrita, os códigos permanecem

suspensos. Quando ela é terminada, cria, em si, em seu corpo, um ou vários novos códigos

e léxicos. Mas é somente ao seu fim que a suspensão dos códigos e dos léxicos é

efetivamente afastada pela presença de um novo conjunto de códigos e léxicos

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materializados na obra. Todo esse processo é (mais ou menos, mas exclusivamente)

controlado pelo autor – a ponto de este, se jamais terminar sua obra, poder manter a

linguagem, no interior dela, eternamente em suspenso.

Na língua falada, entretanto, não há um autor. Ironicamente, é possível dizer que o

“povo” que a fala é o seu autor, que nunca “delega” a “decisão soberana” sobre a

cristalização dos usos médios da linguagem a nenhum representante ou soberano. Na língua

falada, portanto, o “povo” é verdadeiramente o soberano, o auctor da língua, ainda que de

modo impreciso, inconsciente e difuso. A “autoridade” para suspensão da língua, e para a

“re-ativação” da língua onde os códigos e léxicos não mais vigoram, depende sempre da

atuação desorganizada da fala do “povo”. A diferença real entre o sistema da linguagem e o

direito como linguagem, reside justamente nesse ponto: o ordenamento jurídico, como

estruturalmente constituído no Ocidente, se assemelha não à língua falada, mas sim à

langue gramatical pura, feita por um único gramático, ou, no caso do presente exemplo, a

uma obra de literatura que estivesse sempre voltada para a inclusão da vida (do não-

jurídico) em seu texto, e, portanto, sempre inacabada (assim como a gramática de uma

langue que não é mais falada no mundo366). O autor da obra, nesse caso, transfigura-se no

auctor soberano, que, ao contrário do autor literário convencional, em última instância,

jamais dá fim à sua obra, mantendo sempre aberta a possibilidade de suspensão dos códigos

e léxicos do direito para a inclusão de novos elementos anômicos em seu corpo.

A compreensão da idéia acima exposta demanda uma análise mais profunda da

relação entre as várias instâncias identificáveis de uma linguagem. A relação entre

repertórios e códigos/léxicos pode ser representada por dois eixos gráficos, um vertical, e

outro horizontal, que são chamados de eixo do paradigma e eixo do sintagma. O eixo do

paradigma é o eixo do repertório, dos símbolos e das regras de seleção, enquanto o eixo do

sintagma é o eixo dos códigos e dos léxicos, ou seja, da combinação dos signos em cadeias

sintagmáticas que constituem o discurso propriamente dito. A representação gráfica é a

seguinte:

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O discurso propriamente dito se forma a partir da intersecção entre pontos do eixo

paradigmático e pontos do eixo sintagmático, que terminam por constituir “linhas”

seqüenciais de discurso. A análise dessa relação é fundamental para compreender o

funcionamento como um todo da linguagem:

As relações entre linguagem, língua e fala são pensadas por Roland Barthes a partir de seus conceitos correlatos. A linguagem poderia ser definida como o conjunto sistemático das convenções necessárias à comunicação; a fala seria a parte puramente individual da linguagem (fonação e realização das regras e combinações contingentes dos signos); já a língua seria a linguagem menos a fala, ou seja, a linguagem enquanto instituição social e sistema de valores. Ainda segundo Saussure, a língua é o depósito de regras no qual se baseia o falante, enquanto a fala é o ato individual por meio do qual o falante usa a língua e se comunica (...). A língua é sistemática, e vincula-se ao eixo da valoração diferencial, já a fala é articulatória e vincula-se ao eixo sintagmático. A fala, portanto, é um ato de seleção (fundado na língua) e atualização (materializado na combinação dos signos selecionados atualizados em cadeias sintagmáticas). A língua constitui-se em produto da fala, pois a fala não pode existir fora da língua. Em outros termos, a fala é o discurso com base na língua, que não pode existir sem ser falada, sem dar origem a nenhum discurso.367

366 O que faz pensar, ainda no exemplo de uma língua morta, nas palavras em latim inventadas no Século XX, para uso científico ou acadêmico, por exemplo. 367 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 94-95.

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A linguagem (langue), no sistema de significação do direito, pode ser localizada

entre o texto escrito do ordenamento jurídico e os princípios gerais que o informam; a

língua é a realização histórica, prática e localizável no tempo e no espaço de uma

linguagem jurídica específica – em outros termos, é a manifestação concreta da linguagem;

e a fala se situa em todo e qualquer discurso jurídico, individual ou coletivo, que atualiza a

língua da comunidade política da qual emanou.

As relações entre as instâncias da linguagem, entretanto, podem ser melhor ainda

compreendidas a partir da teoria pugnada por Hjelmslev368, que expande o par Língua/Fala

para os conceitos de Esquema/Norma/Uso, que estariam todos contidos na língua, em

oposição à fala:

(...) O esquema seria a forma pura da língua (enquanto sistema de diferenciações), a norma seria a forma material da língua (enquanto realização social – mas independente dos pormenores de sua realização), e o uso seria a língua enquanto conjunto de hábitos lingüísticos de uma determinada sociedade. Entre os elementos fala, norma, uso e esquema, dar-se-iam as seguintes relações: a norma determina o uso e a fala; uso e fala determinam-se reciprocamente; e o esquema é determinado, ao mesmo tempo, pelo uso, pela fala e pela norma. As distinções que acabamos de estabelecer apresentam a vantagem de esclarecer-nos sobre as relações possíveis entre língua e palavra na acepção saussuriana (...). A norma determina (i.e., pressupõe) o uso e o ato, e não inversamente (...) o ato e o uso precedem lógica e praticamente a norma; a norma nasceu do uso e do ato, mas não inversamente. O grito espontâneo é um ato sem norma, o que não impede, por outro lado, que se dê em virtude de um uso (...). Entre uso e ato (da fala) há interdependência; eles pressupõem-se mutuamente (...). O esquema é determinado (i.e., pressuposto) tanto pelo ato quanto pela norma, e não inversamente (...). Em todo sistema semiológico, o esquema constitui a constante, isto é, o pressuposto, ao passo que, em relação ao esquema, a norma, o uso e o ato são as variáveis, ou seja, aqueles que pressupõem.369

O esquema aproxima-se da linguagem, e a norma da língua, enquanto realização

social e institucional da linguagem (do esquema). O uso, entretanto, diferencia-se da fala,

na medida em que se constitui a partir do hábito de uma determinada comunidade em

368 HJELMSLEV, Louis. Ensaios Lingüísticos. Trad.: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991. p. 88-90. 369 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel

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relação a sua linguagem. “(...) A teoria de Hjelmslev considera a fala uma simples

concretização do esquema, de modo que o conceito de uso, profundamente social, adquire

a maior importância no funcionamento da comunicação”. 370 As interrelações entre

norma/uso/esquema/ato de fala pode ser representada da seguinte forma:

É justamente porque a língua somente existe enquanto é atualizada pela fala, ou, nos

termos propostos por Hjelmslev, porque a norma “nasce” do ato de fala e, principalmente,

do uso (hábito social), que se torna possível reconhecer uma espécie de “soberania” do

povo sobre a linguagem. Independentemente do conteúdo da linguagem, ou do esquema,

são os atos de fala e o uso que dão vida à norma (à língua), ou seja, que determinam a

realização concreta da linguagem. Qualquer que seja a forma pura da linguagem, essa se

sustenta como viva, além de sua própria estrutura, apenas enquanto se realiza em uma

língua.

Se na linguagem pura é possível entrever a necessidade ontológica de se manter

sempre viva a possibilidade de suspensão dos códigos e léxicos para a inclusão do não-

lingüístico nessa mesma langue, no uso social, no hábito, na fala compartilhada pelos

indivíduos, é necessária uma língua que pode, ainda que momentaneamente apenas, se

fechar inteiramente, definindo, de modo ainda que impreciso, seus códigos e léxicos.

Rosenfeld. p. 97. Ressalta-se, aqui, a idéia do grito como uso sem norma, próxima da idéia de exceção considerado sob o ponto de vista lingüístico.

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Mesmo que subsista na linguagem pura a sempre presente e eterna potência de abertura

para a suspensão dos códigos e léxicos, a língua concreta tem seus instantes de estabilidade

fundada no uso social, na diluída e evasiva “decisão soberana social” do povo em não

manter a língua aberta naquele instante histórico específico371.

Em outros termos, a linguagem mantém-se ontologicamente sempre em relação com

o não-lingüístico pela potência de suspender seus códigos e léxicos; mas a língua, em seu

jogo duplo ora com a linguagem, ora com a fala e o uso social, tem seus momentos em que

a suspensão simplesmente não é possível, em face do hábito social de fala do “povo” que

utiliza a língua e a linguagem. É certo, porém, que haverá momentos de suspensão dos

códigos e léxicos pelo uso social e pela fala, mas tal suspensão constitui uma espécie de

“decisão soberana” que não é de todo decisão, mas sim prática e uso (ou “des-prática” e

“des-uso”) de códigos e léxicos pelos indivíduos da comunidade lingüística.

O direito, conforme posto por Agamben, entretanto, é o sistema de significação no

qual não há distinção clara entre língua e linguagem, entre norma e esquema – (a

indistinção entre “campos” é um dos fundamentos centrais da biopolítica). Isso se dá

porque a língua, a norma, se dilui na linguagem pura definida pelo soberano – a decisão

soberana político-jurídica não encontra necessariamente limite nenhum no uso e na fala do

direito, mas sim os pré-determina sem nenhuma propensão pré-estabelecida de ser pós-

influenciada em retorno. Ou seja, no direito, não se observa a condição necessária (e

estrutural, para a linguagem) de os usos e as falas jurídicas contra-influenciarem o

ordenamento jurídico conforme estabelecido pelo soberano.

Não que os usos e discursos jurídicos não possam influenciar o ordenamento

jurídico – é claro que podem – mas essa influência não se sustenta, nem na lógica, nem na

prática, em face de um poder soberano que deseje simplesmente ignorá-la. Se o povo fosse

realmente o soberano político-jurídico, como é o soberano da linguagem, o direito

370 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 98. 371 Tenha-se em mente que esse “instante” não tem uma grandeza própria específica, é fluido e completamente anômico, podendo ser eventualmente “aferido” tão apenas em situações concretas e definidas.

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funcionaria exatamente como a língua, alterando-se indistintamente ao sabor dos usos e

discursos que dele emanassem – nesse caso, ficaria preservada a distinção entre linguagem

jurídica e língua jurídica372. É a existência de um soberano específico e determinado que

diferencia efetivamente, da linguagem, a linguagem do direito, e permite a diluição da

língua jurídica na linguagem jurídica. Esta linguagem pertence ao soberano, assim como a

obra inovadora pertence ao seu autor. Mas, ao contrário do autor, que, para terminar sua

obra, abandona a potência de suspensão dos códigos e léxicos para definir novos códigos e

léxicos na própria obra, a estrutura da soberania (e do direito) demanda a manutenção

perene da potência de suspensão do direito, para a eventual inclusão da vida em seu

interior.

A diferença entre a linguagem do direito e a linguagem, portanto, se estrutura a

partir da existência de um soberano específico e individualizável. Se uma linguagem

possuísse semelhante “soberano” (nos moldes em que se tem falado sobre soberano da

linguagem), nela também seria impossível discernir língua de linguagem. A presença do

soberano determinado no direito, entretanto, é fruto da profunda relação existente entre o

sistema do direito e o sistema da política, que introduz a lógica específica da soberania na

estrutura jurídica. Desse modo, Agamben não parece correto, à luz de seus próprios

pressupostos, em observar a biopolítica como um fenômeno decorrente da juridicização da

política373 – de modo diferente, a biopolítica é um fenômeno que decorre da forma pela

372 E, de certo modo, essa idéia parece se casar muito bem com a teoria constitucional de Schmitt. A diferença é que, neste autor, o povo, a despeito de ser soberano, teria sua vontade “interpretada” e “representada” por alguém. Preferencialmente, ao que tudo indica, um rei ou um Führer, como símbolos e encarnação do modo de vida concreto da unidade política da nação. Logo, o direito realmente se alteraria ao sabor dos usos e discursos que dele emanassem – dele, nesse caso, o rei ou o Führer. Tal lógica, inclusive, parece ser uma interpretação razoável do funcionamento do regime nazista, e, em certa medida, explica também a exceção generalizada derivada de uma biopolítica soberana. O soberano “fala” em nome do povo, e, ao falar, define a “língua” e a “linguagem” do Direito para aquele momento da fala, simultaneamente. 373 “Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome “política”. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se como poder constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente ao poder de negociar com o direito. Em verdade, a verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito.” AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p. 133. Este ponto não faz sentido nenhum em relação à tese estabelecida ao longo de toda a obra de Agamben. A política grega, original, já estava ela contaminada pela problemática da inclusão da vida nua no direito e na própria política. Essa chamada “política verdadeira”, conforme exposto pelo próprio Agamben, jamais existiu, e, logo, não pôde sofrer eclipse nenhum. A identificação entre política e poder constituinte, nessa hipótese, é apenas a formatação moderna de um problema que já existia desde as origens da política – e que exerce a função justamente de articular a relação

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qual direito e política se relacionam desde suas origens gregas, e que hoje se articula, em

parte, por meio da teoria do poder constituinte. Não é o direito que se introduz na política; é

o poder soberano, como ponto de referência e de ligação entre direito e política, que conduz

à biopolítica, no campo político, e à situação de exceção, no campo jurídico. Dentro dessa

perspectiva, portanto, direito e política não podem nem mesmo ser vistos como sistemas

plenamente individuados: ao contrário, são sistemas que não só caminham juntos na

estruturação da biopolítica moderna, como também encontram sua razão final de

funcionamento na figura do soberano374. De fato, pode-se pensar política e direito como

duas formas específicas e interrelacionadas da manifestação da soberania375.

entre direito e política. Aqui Agamben parece, em verdade, fazer alusão a uma política que talvez ainda venha a existir, ou que ele gostaria que existisse, mas que, à luz de toda sua pesquisa, seria algo inédito no mundo. Por outro lado, a idéia de que a política verdadeira se contrapõe à violência pertence a Arendt: “(...) O sentido da coisa política (...) é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio. Iguais com iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso, regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco.” ARENDT, Hanna. O que é Política? Trad.: Reinaldo Guarany. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 48. 374 Negri, ao elaborar seu conceito de soberania imperial, parece tratar direito e poder justamente como elementos utilizados conjugadamente pelo poder soberano. Desse modo, ele afirma que o biopoder imperial “(....) é capaz de funcionar como centro da nova ordem mundial, exercendo sobre ela uma norma efetiva e, caso necessário, coerção.” bem como que “(...) quando a nova noção de direito aparece no contexto da globalização e se revela capaz de tratar a esfera universal, planetária, como um conjunto único e sistêmico, deve-se presumir um imediato pré-requisito (agindo num Estado de exceção) e uma tecnologia adequada, plástica e constitutiva (as técnicas de polícia)”. NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. p. 32 e 44. Neste ponto, Negri parece ter compreendido Agamben melhor que Agamben – na medida em que identifica a relação entre direito e política como uma conseqüência da biopolítica moderna. Por outro lado, tal circunstância igualmente revela que Negri está bem mais próximo de Agamben do que talvez gostasse. 375 À luz de tudo que vem sendo dito, emergem algumas questões paralelas dignas de nota. Parece que uma linguagem pura “possuída” por um soberano individualizado é impossível de se realizar realmente em uma comunidade lingüística concreta sem que ela se auto-destrua (daí o já mencionado sacrifício planejado para o povo alemão). Por outro lado, a criação de uma, ou melhor, de várias linguagens puras e “soberanamente exclusivas” talvez seja um dos problemas centrais do pensamento desconstrutivista, em que cada escritura poderia ser interpretada sempre como um momento de suspensão de códigos e léxicos específicos. No outro espectro da reflexão, entretanto, é igualmente difícil imaginar um direito “soberanamente definido” pelo “povo”. Na medida em que a estrutura de funcionamento do direito ocidental, calcado na soberania, depende da interação entre política e direito, talvez fosse interessante avaliar se é possível identificar algo semelhante a um “direito social” à luz da célebre análise de Pierre Clastres acerca das “sociedades contra o Estado”. Em um ambiente social no qual a política nos moldes ocidentais está ausente, seria possível entrever esse “direito-língua” presentemente imaginado? Sobre Clastres, ver CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Talvez seja isto que Negri procura ao pensar que a “multidão de singularidades”, por meio de seu “general intellect”, deve usar a linguagem como modelo para uma nova organização libertária e constituinte do trabalho, em oposição à soberania imperial: “(...) diremos que a nova organização do trabalho e o próprio novo modo de produção têm por base aquilo que há de mais comum na vida dos homens: a linguagem. A linguagem é, nessa perspectiva, digamos, o modelo mais rarefeito embora mais intenso, de economia externa. E, justamente como ocorre para as economias externas, o comum lingüístico será continuamente reproduzido e enriquecido pelo trabalho vivo. (...) Ora, tendo-se estabelecido que as economias externas e a linguagem representam a matéria-prima da cooperação produtiva, poder-se-á evidenciar outro fato, ou seja, fazer emergir esse comum das economias externas e da

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O fato de a língua não se diferenciar da linguagem, de a norma não se diferenciar do

esquema, decorre, portanto, da existência do soberano individuado. Cumpre analisar os

diversos efeitos lingüísticos de tal circunstância, primeiramente à luz da formação da

relação de significação376. O poder soberano atua, em seu limite conceitual, sempre dentro

da lógica da auctoritas – o soberano ratifica ou autoriza o que foi “criado” ou “feito” por

outro377. Sob uma perspectiva diferente, ele define o campo de incidência do direito,

delimitando quais são as situações normais para a norma. E, por outro lado ainda, ele

mantém sempre viva a potência de suspensão do direito para a inclusão da vida que não

havia sido normalizada (normatizada) em seu interior – no ponto extremo do paradigma do

campo de concentração, o poder soberano mantém o direito suspenso indefinidamente, para

que qualquer aspecto da vida possa ser imediatamente incluído no direito – circunstância da

qual deriva a impossibilidade, no campo, de se discernir vida de direito.

Na relação de significação E-R-C, o papel inicial do soberano é o de ratificar a

validade jurídica de “R”, ou seja, de definir o vínculo “R” entre “E” e “C” como uma

linguagem como algo que se dá antes de qualquer valor econômico, medido pelo capital, como aquilo que é a condição de qualquer produção, como patrimônio comum. É preciso tornar comuns “as economias externas” do desenvolvimento capitalista, ou seja, reconhecer valor comum à cultura, à civilização, ao saber, às habilidades profissionais e a todas as condições ecológicas, associativas, urbanas que pré-constituem as condições da economia capitalista.” NEGRI, Antonio. Cinco Lições sobre Império. p. 257-258. É preciso ter em mente, nesta passagem, que Negri vincula terminantemente a soberania biopolítica imperial ao capitalismo, de modo que a formação de economias externas pré-condicionantes da economia capitalista em conformação com o modelo da linguagem constituiria uma das estratégias da “multidão” para se opor politicamente ao biopoder soberano. 376 A linguagem comum é um sistema de comunicação isológico, ou seja, é um sistema de comunicação que não depende de nenhum outro sistema de comunicação. Já o direito é um sistema de comunicação não isológico, ou seja, é um sistema de comunicação que depende de outro sistema de comunicação para existir, no caso, a própria linguagem. Isso significa que os signos, significantes e significados do direito são usualmente tomados da linguagem e de seus repertórios – há, entretanto, sempre, em maior ou menor medida, um processo de re-significação jurídica dos signos e significantes doados pela linguagem. A despeito de o direito se utilizar de elementos hauridos da linguagem, ele se articula a partir de esquema, norma, uso e falas próprios – definidos, conforme se vem propondo, pelo poder soberano. Logo, a significação jurídica – que é uma espécie de re-significação da linguagem na maior parte dos casos – é um processo que pertence ao poder soberano, e que se realiza por meio da lógica da auctoritas. Tome-se como exemplo o signo casa. Em relação à linguagem comum, segundo o Aurélio, tem-se como primeira definição de casa: “Edifício de um ou poucos andares, destinado, geralmente, a habitação; morada, vivenda, moradia, residência.” Ou seja, ao significante “casa” encontra-se acoplado o significado enunciado. Já nos termos da Constituição Federal de 1988, o art. 5º, XI, prevê que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”. 377 Outro que, quando existe auctoritas principis, é ele próprio.

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circunstância da vida normalizada pelo direito. O soberano, nesse caso, não é,

estruturalmente378, nem o criador do significante, nem o criador do significado – ele é o

fiador do vínculo entre o significante e o significado, que torna o signo juridicamente

relevante, ou, em outros termos, válido e vigente. Do conjunto de relações ratificadas pelo

soberano, que nada mais é que o ordenamento jurídico textual, deriva o conjunto de

situações normatizadas pelo direito na comunidade política.

É importante lembrar que Agamben sempre trabalha na lógica do extremo dos

conceitos apresentados. O extremo da racionalidade da soberania é a potência de suspensão

do direito. Isso significa, para o processo de significação, que quando o soberano ratifica

“R”, ele introduz na relação de significação a possibilidade de suspensão soberana de

qualquer um de seus três elementos. No E-R-C ratificado pelo soberano, “E”, “R” e “C”

podem ser soberanamente suspensos a qualquer momento, para a inclusão em qualquer um

deles de elementos vitais externos ao direito, que, desse modo, estão desde sempre

potencialmente incluídos por meio de sua exclusão379.

À suspensão de “R”, ou seja, da relação entre significante e significado, expressão e

conteúdo, corresponde a situação de exceção formal e legalmente definida. No caso

brasileiro, às formas de Estado de Exceção previstas na Constituição Federal de 1988. Nem

“E”, o significante jurídico, nem “C”, o significado jurídico, são suspensos – é a relação de

378 Mas pode sê-lo, em concreto. 379 Um exemplo menos etéreo do que significa na prática uma exclusão inclusiva operada pelo poder soberano pode ser encontrada na narrativa de Negri acerca da formação dos Estados na América Latina: “Ora, para entender os processos de formação do Estado-nação periférico, em geral e na América Latina, é necessário colocá-los em perspectiva. (...) As diferentes formações sociais da América colonial constituem-se, portanto, em uma dupla fronteira, inseridas como estão nesta máquina de duplo volante; o primeiro, a fronteira continental; o segundo, uma fronteira de sangue, extremamente lábil e móvel, de estratificações sociais e étnicas ligadas, por um lado à construção de uma oligarquia “local” de brancos “relativamente” mestiçados e estratos mais ou menos importantes de mestiços designados para as funções de comando (exploração do território e guerra, captura dos escravos, índios e africanos, fugidos etc.) e de administração e, do outro, a uma massa de escravos nativos e africanos que, progressivamente, hibridam-se reciprocamente. (...) não se deve esquecer,(...), que o (sic) mestiçagem será, desde o início, parte integrante dos processos de reprodução da sociedade patriarcal e oligárquica local, antes através do controle biopolítico das infinitas modulações dos fluxos de sangue que através da separação disciplinar (...)”.NEGRI, Antonio et COCCO, Giuseppe. Glob(AL) – Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. p. 75-78. Por meio do critério de sangue, de mestiçagem, seria definida, na realidade colonial latino-americana, em que medida cada indivíduo está incluído na ordem oligárquico-patriarcal como alguém que detém uma posição concreta nessa sociedade, ou se, como escravos, índios e negros, sua inclusão na sociedade se dá tão-somente através da sua completa exclusão de qualquer espécie de proteção jurídica ou política.

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ratificação soberana entre eles, que lhes granjeava vigência jurídica, que é

momentaneamente suspensa, retirando-lhes a eficácia380. Logo, quando, por exemplo, em

uma situação de exceção formal, o sigilo de correspondência é suspenso, não é nem o

significante jurídico “sigilo de correspondência”, nem o significado jurídico de “sigilo de

correspondência” que é suspenso, mas sim a relação de formação de signo entre ambos que

é suspensa pelo soberano. O significante e o significado permanecem válidos e vigentes,

individualmente, no ordenamento jurídico – mas o signo “sigilo de correspondência”,

durante o Estado de Exceção, é suspenso, e, por isso, apesar de vigerem ainda “sigilo de

correspondência” significante e “sigilo de correspondência” significado, não vige o “sigilo

de correspondência” signo, e, portanto, o direito ao sigilo de correspondência fica suspenso,

apesar de seu significante e de seu significado continuarem a pertencer ao ordenamento

jurídico durante o momento mesmo de suspensão do signo.

Já a suspensão de “E” pode ser encontrada na situação de “máxima eficácia real”

com o mínimo de “vigência formal”, usualmente presente durante as Revoluções. A

suspensão do significante jurídico pelo soberano implica a existência de um conteúdo

(significado jurídico) que vigora plenamente, ou seja, tem eficácia plena, sem, no entanto,

estar atrelado a um significante jurídico. A suspensão do significante, nesse caso, libera

uma “força de lei” que pode ser “transferida” para qualquer conteúdo ou ato concreto, que

adquire, por decisão soberana, o status (ou ao menos o mesmo efeito) de direito381. Na

medida em que o soberano mantém o significante suspenso, qualquer ato ou regra a que se

queira atribuir força de lei não depende de uma prévia vinculação a um significante jurídico

específico. O conteúdo jurídico (o significado), nessa hipótese, está completamente

vinculado aos valores eventualmente proferidos pelo soberano382 – são os juízos de

valoração concretos do poder soberano que, selecionando quais significados jurídicos

devem ter eficácia, ratifica a existência de “R” com significante nenhum, mas sim com o

fantasma de uma pura força de lei.

380 E, por isto, Schmitt pode dizer que a lei e a ordem jurídica ficam plenamente preservadas. 381 Imagine, por exemplo, decisões definidas como jurídicas sem base textual na lei ou no ordenamento jurídico. 382 Principalmente a respeito dos modos e formas de vida considerados valiosos e desvaliosos.

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A suspensão de “C”, a seu turno, é a situação de exceção generalizada e mascarada

que Agamben afirma existir até mesmo nas atuais democracias ocidentais. A suspensão do

significado jurídico implica a existência de um plano de expressão jurídico (significante)

que tem o máximo de vigência formal possível, mas nada significa na prática383. Esse nada

significar é, em realidade, a mesma coisa que poder significar absolutamente qualquer

significado. Se, na hipótese anterior, a força de lei desprendia-se da suspensão do

significante para se atrelar aos significados positivamente valorados pelo soberano, aqui a

força de lei permanece contida no significante, mas pode transitar para qualquer significado

concretamente definido pelo soberano. A definição de quais significados recebem essa

“força de lei” depende, uma vez mais, dos valores concretos proferidos pelo soberano. A

estrutura de ambas as suspensões é, nessa perspectiva, idêntica – uma via de duas mãos.

Paralelamente, a expressão jurídica (significante), na presente circunstância, depende da

ratificação da existência de um “R” que não a vincula a nenhum conteúdo (significado)

específico, permitindo que a relação se forme, no fim das contas, com qualquer significado.

Em todos os casos acima descritos, permanece insuspenso, porém, um dos

elementos da relação de significação, que, a despeito de defeituosa, se sustenta como

simulacro de direito – estruturalmente, é por isso, no plano lingüístico, e exclusivamente

por isso, que uma situação de exceção generalizada consegue se instaurar mesmo na

vigência formal do ordenamento jurídico, bem como consegue se fazer passar,

mascaradamente, como uma situação normal de vigência jurídica. Entretanto, na realização

última da biopolítica, no paradigma do campo de concentração, “E” e “C” são suspensos

simultaneamente. Resta somente o “R”, a relação, que não liga significante nenhum a

significado nenhum. Essa relação soberana, que subsiste, a despeito de nada ligar a nada,

constitui a expressão lingüística da relação pura de abandono descrita por Agamben. E, é

justamente por configurar uma relação de significação (se é que pode ser assim chamada)

383 Imagine-se, por exemplo, um amplo ordenamento jurídico cuja aplicação, todavia, não mais corresponde ao significado de seus significantes. A descrição de Negri sobre o “direito imperial” casa bem com essa interpretação: “Embora o Estado de exceção e tecnologias de polícia constituam o sólido núcleo e o elemento central do novo direito imperial, esse novo regime nada tem a ver com as artes jurídicas da ditadura e do totalitarismo (...). Pelo contrário, o império da lei continua a desempenhar um papel central no contexto da transição contemporânea: o direito continua sendo eficaz e (precisamente por meio do Estado de exceção e das técnicas de polícia) se torna método.” NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. p. 45. Frise-se que

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em que significante e significado estão suspensos, que ela não consegue se aproximar de

nenhuma outra experiência histórica, e nem mesmo se assemelhar a qualquer outro evento

humano anterior384.

Com exceção da relação absoluta e pura de abandono, cuja manifestação “perfeita”

é o campo de concentração nazista, os outros três modelos de exceção constituem tipos

“ideais”, que, na prática, se manifestam mais ou menos intensamente em cada uma das

possibilidades de exceção aventadas. Isso quer dizer que, por exemplo, na exceção formal e

legal prevalece a suspensão de “R”, mas podem ocorrer eventuais suspensões de “E” ou de

“C”. O mesmo é válido para os demais modelos de exceção. Assim, as situações de exceção

típica se configuram a partir da suspensão ora de “R”, ora de “E”, ora de “C”; e a situação

de exceção absoluta se forma pela existência de um “R” em que “E” e “C” estão suspensos,

e é nessa relação pura de abandono que direito e vida se tornam completamente

indiscerníveis.

O que se observa, ademais, é que a possibilidade de suspensão de “E” ou de “C”,

nas situações de exceção informal generalizada, se ampara, logicamente, na construção

paulatina e cada vez mais intensa de significados jurídicos conotativos, em oposição a

significados jurídicos denotativos. Isso porque o sentido conotativo, lexical, bem mais

“aberto” e “questionável” (aberto à “interpretação”), parece facilitar a sua própria

suspensão – a exceção típica nesses casos, de “máximo de vigência formal” com “mínimo

de conteúdo real”, ou seja, de vigência de “E” com suspensão de “C”, pode ser articulada

de modo menos “evidente” quando o significado suspenso é um significado conotativo.

a eficácia de que fala Negri, vinculada ao Estado de exceção, é a eficácia do significante, e não do significado. De toda forma, não se concorda que inexista relação entre este fenômeno e o conceito de totalitarismo. 384 A isto corresponde a enorme dificuldade dos sobreviventes de Auschwitz em relatar e explicar o que lhes aconteceu. A experiência de suspensão absoluta do campo virtualmente não pertence à linguagem. Agamben dedica um livro inteiro à análise ontológica das aporias do testemunho: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Homo Sacer III. Trad.: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. Arendt também se debruçou sobre a questão, ainda que com menos afinco, principalmente em “Origens do Totalitarismo”. Tanto que ela se “antecipa” a Agamben e menciona que os prisioneiros dos campos de concentração viviam entre “o mundo dos vivos e o mundo dos mortos-vivos” (p. 492). O debate acerca deste tema, a despeito de ser fascinante, escapa à perspectiva estrutural da presente tese.

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É relevante notar, de todo modo, como a auctoritas se relaciona com estes modelos

lingüísticos da exceção. A premissa aqui é a de que a auctoritas reside sempre no elemento

“R” da relação de significação. Na exceção formal, legal, que deriva de uma situação na

qual a auctoritas localiza-se no legislativo, que ratifica ou autoriza a potestas do executivo,

está-se diante da característica típica da autoridade, que é a de suspender ou desativar a

relação de significação que funda o direito: a suspensão de “R” representa, nessa hipótese,

o afastamento momentâneo do liame entre significante e significado do qual resulta o

ordenamento jurídico. Em seu funcionamento clássico e “legal”, portanto, a suspensão ou

reativação do direito promovida pela autoridade nada mais é que a suspensão ou reativação

de “R”385.

Por outro lado, a auctoritas principis, ou seja, a autoridade tipicamente relacionada

ao chefe carismático que reúne em si também potestas e imperium, é funcionalmente capaz

de realizar as outras duas operações lingüísticas de suspensão de “E” e de “C”. Em sua

manifestação extremada, implementa o modelo radical do campo biopolítico pela

suspensão simultânea de “E” e de “C”. No suposto modelo democrático de separação de

auctoritas localizada no legislativo, e de potestas localizada no executivo, a eventual

existência de uma situação de exceção generalizada e não formalmente declarada

representa, de fato, a existência de um locus onde reside a auctoritas principis – que

executa as operações lingüísticas de suspensão ora de “E”, ora de “C”, ora de ambos.

Nesse sentido, observa-se que a potência da exceção, que caracteriza a auctoritas,

não precisa necessariamente realizar-se como suspensão do direito. Como toda potência,

385 A exceção “medieval” mencionada por Agamben, na qual não há suspensão do ordenamento, mas não-aplicação da lei a um caso concreto específico apenas visando a efetivação do “espírito” daquela lei, é também embasada, a princípio, na suspensão de “R”. Mas, nesse caso, a lógica da suspensão de “R” se ampara na idéia de que essa suspensão garantiria, na hipótese concreta, a vigência e a eficácia jurídicas de “C” (significado). Ou seja, na exceção formal moderna, a suspensão de “R” implica a ineficácia de “C” e de “E”, a despeito da continuidade de sua vigência formal. Na exceção medieval, porém, a suspensão de “R” não pretende, ao menos estruturalmente, resultar na ineficácia de “C”. A argumentação de Schmitt a favor da exceção jurídica, todavia, igualmente tenta se justificar a partir da lógica de quebrantamiento da lei em vistas da preservação da Constituição – tomada como unidade política da nação. Tal raciocínio, aparentado com o da exceção medieval, entretanto, é diferente, na medida em que reporta a suspensão da lei não à manutenção do sentido da própria lei, mas sim à manutenção do sentido da decisão política soberana, que embasaria a lei. Na prática, então, ela pode corresponder à qualquer uma das outras modalidades de suspensão que não a medieval, pois qualquer suspensão possível é válida para preservar a Constituição – tal constatação revela o quanto a teoria de Schmitt está vinculada ao amplo espectro das possibilidades de exceção e de totalitarismo.

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ela pode realizar-se na própria impotência, ou seja, momentaneamente, em concreto, não

suspendendo o direito. Agamben não trata dessa questão diretamente, mas esse é um dos

motivos pelos quais a situação de exceção informal generalizada logra, muitas vezes,

disfarçar-se como funcionamento normal do ordenamento jurídico: em muitos casos, a

auctoritas, presente porque é potente de suspender o direito, manifesta-se realizando-se na

potência de não ser, ou seja, simplesmente aplicando o ordenamento jurídico ao invés de

suspendê-lo. Essa aplicação do ordenamento jurídico, entretanto, e a contra-senso, não é a

aplicação normal386 do ordenamento jurídico, porque em sua raiz reside a potência de sua

suspensão, e a sua aplicação não é fruto da vigência formal do ordenamento, mas sim da

realização da potência da suspensão como potência de não ser. Percebe-se, portanto, que à

ficção jurídica da vigência formal opõe-se a concreta potência de suspensão do direito (que,

por ser potência, é também potência de não ser – ou seja, potência de aplicação do

ordenamento jurídico) inerente à auctoritas, e, em especial, à auctoritas principis.

As formas de funcionamento lingüístico dos modelos básicos de exceção

influenciam diretamente a formação do discurso jurídico. Isso porque, se o direito está

estruturalmente condenado a ter como razão última de funcionamento a sua suspensão,

então é evidente que a potência da exceção se manifestará, em maior ou menor intensidade,

não só nos discursos de exceção, mas em qualquer discurso jurídico (ainda que apenas

remotamente). Como visto, a raiz até mesmo do discurso jurídico que aplica o ordenamento

jurídico remonta à potência de sua suspensão, ou seja, à exceção. Lembre-se, aqui, que é o

discurso que faz o vínculo entre ato apócrifo de soberania e legitimação autoritária do ato,

de modo que é através dele que a exceção se realiza, mesmo quando acompanhada da mais

absurda violência387.

Conforme mencionado algumas páginas atrás, os discursos se estruturam sempre a

partir de dois eixos distintos. A língua, que é sistemática, vincula-se ao eixo do paradigma,

ou do sistema, que realiza operações de valoração diferencial. O sistema, o paradigma, é o

386 Ou, poderia dizer Agamben, é aplicação normal do direito, porque o que o direito sempre pretendeu como normal nunca existiu, e aquilo a que ele chama de anormal e excepcional é desde sempre o seu normal. 387 Até o exemplo máximo do nazismo dependia de um muito bem pensado e preparado discurso jurídico e político, fundado principalmente na proposta de que a palavra do Führer era lei, na medida em que este era a encarnação viva da vontade do povo e da nação (ou, quiçá, da vontade da raça que estava por vir).

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repertório de símbolos e regras que possibilita a seleção de signos para a constituição do

discurso. Já a fala é articulatória, e liga-se ao eixo do sintagma, ou seja, ao eixo de

combinação dos signos em cadeias que constituem o discurso – é a atualização no eixo

sintagmático dos signos selecionados no paradigma que forma efetivamente uma cadeia

discursiva.

Segundo Saussure “(...) o sintagma é uma combinação de signos, que tem por suporte a extensão; na linguagem articulada, essa extensão é linear e irreversível (é a “cadeia falada”) (...) cada termo tira aqui seu valor da oposição ao que precede e ao que segue (...) a atividade analítica que se aplica ao sintagma é o recorte (...)”. Assim, tem-se que: De um lado, no discurso, os termos estabelecem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Estes se alinham um após outro na cadeia da fala. Tais combinações, que se apóiam na extensão, podem ser chamadas de sintagmas. O sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas (por exemplo: re-ler, contra todos; a vida humana; Deus é bom; se fizer bom tempo, sairemos etc.). Colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos (...). A relação sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva.

Já o sistema, ou plano associativo, como o chama Saussure, se caracteriza por unidades que, fora do discurso, se associam na memória e formam grupos relacionais, séries de palavras que, de algum modo, se associam.

Assim, “(...) em cada série, ao contrário do que se passa no nível do sintagma, os termos estão unidos in absentia; a atividade analítica que se aplica às associações é a classificação.” Ou ainda, segundo Saussure: Por outro lado, fora do discurso, as palavras que oferecem algo de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas. Assim, a palavra francesa enseignement ou a portuguesa ensino fará surgir inconscientemente no espírito uma porção de outras palavras (enseigner, renseigner etc. ou então armement, changement, ou ainda éducation, apprentisage); por um lado ou por outro, todas têm algo de comum entre si. Vê-se que essas coordenações são de uma espécie bem diferente das primeiras. Elas não têm por base a extensão; sua sede está no cérebro; elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua de cada indivíduo. Chamá-las-emos relações associativas (...) a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica virtual.388

A relação entre sistema e sintagma, na formação do discurso, pode ser graficamente

representada da seguinte forma:

388 THEODORO FILHO, Wilson Roberto. A Legitimidade do discurso constitucional: uma análise da jurisdição constitucional fundamentada na teoria da identidade do sujeito constitucional de Michel Rosenfeld. p. 120-121.

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A seqüência de pontos definidos a partir da seleção de símbolos e regras no eixo do

sistema e de sua posição no eixo do sintagma é o que constitui um discurso efetivo. Ou

seja, dos campos e séries associativas presentes no sistema (paradigma) – cujo sentido

remonta à construção abstrata de sentido – são selecionados elementos para serem

encadeados linearmente no eixo do sintagma – o sentido, nesse ponto, a despeito de

originalmente haurido do paradigma, é também delineado pelas relações de extensão que se

estabelecem entre os vários signos selecionados seqüencialmente para o discurso.

O discurso jurídico, então, tendo em vista a lógica da exceção posta por Agamben, é

um discurso que está sempre sujeito à possibilidade de suspensão, ou do ponto no eixo do

sintagma, ou do ponto do eixo do sistema, ou de ambos. Isso nada mais é que o reflexo

discursivo da possibilidade ampla de suspensão de um dos elementos de E-R-C. Assim

como a estrutura de cada um dos modelos de exceção é diferente em relação a E-R-C,

também são diversas suas conseqüências para o discurso jurídico.

Na hipótese da exceção formal, ocorre uma espécie de suspensão externa do

discurso jurídico típico – que, a despeito de suspendê-lo, não nega sua vigência ou

validade. A suspensão formal do ordenamento jurídico, nos moldes legalmente presentes,

mantém o discurso jurídico típico, mas se ampara em um discurso que momentaneamente

afasta a eficácia concreta, apenas, desse discurso. Em outros termos, nesse caso, o discurso

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jurídico não sofre nenhuma alteração intrínseca sensível, mas apenas tem historicamente

suspensa sua eficácia concreta como discurso aplicável à realidade. Há um discurso da

exceção formal e legal que, separado do discurso jurídico típico, suspende sua eficácia sem,

todavia, negá-lo como discurso eficaz e juridicamente válido389.

Na exceção por assim dizer “revolucionária”, em que há o máximo de eficácia real

com o mínimo de vigência formal, o que ocorre no plano discursivo é a suspensão do eixo

do sistema. Isso quer dizer que o discurso se constrói sem fazer referência consistente a

nenhuma cadeia associativa, ou seja, sem se reportar aos repertórios de símbolos e regras

do paradigma. Os pontos do discurso no eixo do sintagma seguem uns aos outros apenas na

forma de sua relação uns com os outros, sem, no entanto, serem fruto de uma seleção de

elementos do paradigma. O discurso dessa exceção, portanto, caracteriza-se por ser uma

atualização sem seleção prévia dentro dos repertórios do ordenamento jurídico, ou seja,

uma atualização discursiva embasada unicamente na “força de lei”, no “mana” jurídico.

Esse discurso, destarte, pode ser chamado de seqüência “não-seletiva”, ou de atualização

sem seleção390.

Já na exceção em que há o máximo de vigência formal com o mínimo de eficácia

real, é o eixo do sintagma que é suspenso. Nessa espécie de exceção, o discurso apenas

remotamente lembra uma seqüência discursiva, porque é composto unicamente de pontos

no eixo das cadeias associativas que não se relacionam e atribuem sentido uns aos outros. É

evidente que esse discurso tentará manter uma “aparência” de seqüência discursiva – mas a

verdade é que no discurso dessa exceção os elementos selecionados do repertório são

concretamente erigidos em discurso isoladamente, sem que mantenham vínculos de

significação uns com os outros. Não há, portanto, uma cadeia discursiva coerente, mas tão

somente breves pontos discursivos, independentes uns dos outros, que são

convenientemente colocados em seqüência para constituir um mero simulacro de discurso

389 Esse, entretanto, é também o modelo da exceção schmittiana, que se ampara na suposta preservação da unidade política da nação. Pode, portanto, a qualquer momento desaguar em outras formas de exceção. 390 Em uma Revolução que pretende eventualmente se instituir, é dessa atualização não seletiva, cuja seqüência arbitrária de sentidos paulatinamente forja relações de significação, que eventualmente surgirão os elementos significantes necessários para a formação de um novo paradigma institucional. Por exemplo: a

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seqüencial. A “força de lei” transita livremente para qualquer um desses “uni-discursos”. A

essa espécie discursiva pode ser dado o nome de seleção “não-seqüencial”, ou de seleção

sem atualização.391

As três espécies de exceção acima formuladas, de todo modo, mantêm ainda,

paralela à implementação da suspensão do ordenamento jurídico, alguma espécie de

discurso que se pretende jurídico. Esse discurso, em suas formas elencadas, se manifesta

nos atos de exceção, ou seja, nas formatações discursivas de implementação da exceção –

mas também nos atos de convalidação da exceção. Entretanto, é importante lembrar que a

potência da exceção é sempre também potência de não ser. Se, estruturalmente, como

defendido, toda aplicação do direito tem sua raiz última na suspensão do direito, porque

todo ato de implementação “normal” do ordenamento jurídico é apenas a manifestação da

potência de não ser da exceção, ou seja, constitui-se unicamente como uma realização da

exceção em não se realizar em ser exceção – então, os discursos jurídicos “normais”

emanados do soberano, do detentor da auctoritas principis, devem, dentro do papel de

manifestações da exceção, manter em si sempre aberta a possibilidade da exceção. Isso

significa que mesmo os discursos jurídicos estruturados sem a suspensão do eixo

paradigmático ou do eixo sintagmático precisam ou devem conter em sua articulação

seqüencial a possibilidade mesma da exceção.

A marca do discurso jurídico “normal” cuja razão última repousa sobre a potência

de exceção caracteriza-se, portanto, pela construção de uma argumentação jurídica que,

mesmo não realizando em si a suspensão do direito, mantém sempre aberta em sua lógica

discursiva, ora implícita, ora explicitamente, a possibilidade de em outra circunstância vir a

fazê-lo. É evidente que essa possibilidade de suspensão jamais é chamada de suspensão do

direito – pelo contrário, ela é apresentada e justificada como uma forma de aplicação

“normal” do direito. Isto não a torna menos suspensão do direito – já que o problema da

consolidação do sentido da Revolução Francesa em sua primeira Constituição (significado “solto” da Revolução eventualmente atrelado ao significante “texto constitucional”). 391 Disso surgem possibilidades infinitas de variação a-sistemática e i-lógica de aplicação de significantes atrelados aos mais variados sentidos possíveis dentro de uma comunidade político-jurídica. Decisões conflitantes simultâneas, ou alterações bruscas e instáveis de alteração de sentido nos discursos político-jurídicos são típicas dessa espécie de exceção.

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exceção é essencialmente estrutural e funcional: pode haver exceção onde não se diz que

há, e pode não haver exceção392 onde se diz que há. De todo modo, revela-se aqui também a

tendência do discurso em procurar sempre construções argumentativas de cunho

conotativo, em detrimento de definições de sentido denotativas e precisas. A tendência,

destarte, é a de decidir sem afirmar, de estabelecer hoje a regra que poderá ser suspensa

amanhã.

A última das formas da exceção, aquela da realização plena do paradigma

biopolítico do campo de concentração, por fim, se embasa na suspensão do ponto de

intersecção entre o eixo sintagmático e o eixo paradigmático, o que representa, na prática, a

efetiva suspensão de ambos os eixos e do discurso em si. À indiscernibilidade entre direito

e vida identificada por Agamben, a esta situação na qual todo fato é regra, e toda regra é

fato, corresponde a completa impossibilidade de articulação discursiva, seja de seleção, seja

de atualização seqüencial393. Não há discurso no campo, mas apenas o fato, a vida, imediata

e pontualmente convertida em direito e regra, sem conexão com nada que tenha

transcorrido antes, sem sentido ou vínculo com nada que venha a ocorrer depois. A captura

completa da vida anômica no direito por meio de sua suspensão resulta no fim do discurso

jurídico. O que resta e acontece no campo, no “plano discursivo”, está para o direito como,

por exemplo, uma cacofonia de sons desconhecidos está para a linguagem articulada. Por

meio de mascaramento e “farsa”, porém, este “não-discurso” consegue eventualmente se

transvestir de discurso, e se apresentar ainda como algo que pretende ter algum sentido

(como uma cacofonia de sons desconhecidos, em outra perspectiva, pode tentar se

apresentar como música). Mas, evidentemente, qualquer análise mais aprofundada revela a

ausência de sintagma e de paradigma, a efetiva ausência de discurso no “discurso”.

Avaliou-se, neste capítulo, a estrutura lógica de funcionamento da autoridade e sua

relação com a autoridade apócrifa, em vista dos modelos históricos teóricos de soberania e

justificação da soberania. Em face de tal reflexão, ficou claro que a o ato de soberania

apócrifo somente consegue se vincular a um fundamento autoritário que o justifique

soberanamente por meio de construções discursivas que “revelem” esse vínculo. Mesmo

392 Concretamente – em potência, a exceção sempre estaria presente.

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quando o ato soberano se ampara na mais absoluta violência, ele ainda assim precisa de ou

pressupõe um fundamento discursivo de legitimação.

Diante de tal reflexão, propôs-se interpretar a teoria de Agamben à luz do aparato

lingüístico-semiológico estruturalista, visando compreender como é possível interpretar a

exceção jurídica e a biopolítica em termos de linguagem e discurso. A apresentação do

aparato, apesar de breve, permitiu avaliar como a exceção se articula e interfere com

linguagem e discurso – ou seja, quais são suas conseqüências estruturais para ambas as

estruturas ao se manifestar através delas.

Apresentou-se, portanto, o modo funcional através do qual a exceção jurídica pode,

ou melhor, como o agente político apócrifo que lança mão da exceção jurídica pode,

objetivando estabelecer seu critério de legitimidade frente ao conceito de soberania e

autoridade, torcer a estrutura discursiva e lingüística político-jurídica para implantar a

suspensão da ordem político-jurídica. Observe-se, todavia, que a reflexão traçada foi

estrutural: as marcas discursivas e os signos concretos de um discurso político-jurídico

voltar-se-ão sempre, em um primeiro momento, para a tentativa de construir o vínculo de

legitimação entre seu conteúdo apócrifo e a autoridade que o poderia legitimar. E, nessa

construção, encaixar-se-ão na fôrma de um dos modelos apresentados.

Não se discutiu, todavia, quem é ou pode ser soberano apócrifo. A resposta inicial

para tal pergunta é, a princípio, qualquer um, ou melhor, qualquer agente político vinculado

ao Estado. São necessárias, entretanto, algumas distinções para se compreender a questão

adequadamente. No esquema teórico traçado por Agamben, embasado em Schmitt, é

soberano quem decide, em última instância, sobre a suspensão da ordem jurídica. Em um

primeiro momento, portanto, poder-se-ia dizer que o poder legislativo, como agente

ratificador da proposta de suspensão da ordem vinda do poder executivo, seria a autoridade

soberana. É importante distinguir, nesse ponto, autoridade soberana de soberano. A

autoridade soberana convalida ou não a suspensão da ordem político-jurídica, mas não pode

propor essa suspensão (não possui potestas). Nesses termos, somente poderia ser chamado

393 E, novamente, reporta-se às aporias do testemunho sobre o campo de concentração nazista.

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propriamente de “soberano” o agente que detivesse auctoritas principis, ou seja, que

possuísse simultaneamente a auctoritas e a potestas vinculadas à instauração da exceção.

Nesses termos, ele seria ao mesmo tempo instituidor e autorizador – a validação de seu ato

teria como fundamento discursivo sua própria interpretação do que o legitimaria394.

Especificamente para Agambem, então, a soberania estaria vinculada ao poder

executivo, pois este, na atualidade, teria usurpado a prerrogativa de convalidação de seus

atos, que usualmente pertenceria ao poder legislativo – ou seja, a criação da lei torna-se

uma prerrogativa do executivo, e este, como detentor desse poder, pode governar a partir de

técnicas policiais e de exceção. Talvez a fascinação de Agamben pela exceção praticada

pelo poder executivo esteja relacionada à circunstância de que, de fato, é na ação do

governo que podem ser mais claramente identificadas as situações nas quais a ordem

jurídica é completamente ignorada pelos agentes políticos. Tais ações excepcionais

costumam ser igualmente as mais brutais, violentas e humilhantes. E, mesmo os exemplos

menos “violentos” de Agamben, como as mortes em auto-estradas, ou a ausência total de

proteção física aos habitantes de determinadas áreas urbanas, são todos vinculados às

esferas de atuação usualmente ligadas ao poder executivo.

Entretanto, todas essas ações e omissões são acompanhadas de um discurso político-

jurídico de legitimação. Até mesmo soberanos reconhecidos politicamente como absolutos,

que não precisam discursar395, ainda assim constroem sua ponte de legitimidade, e não são

os poderes executivos ocidentais, cuja soberania apócrifa identificada por Agamben não

tem uma fonte concreta de autoridade, que vão deixar de construir discursos que “provem”

a existência dessa legitimidade. Ora, mas se são amplamente soberanos, como quer

394 Assim, por exemplo, legítimo por ser o rei e representante da vontade de Deus na terra, por ser o representante da vontade do povo, por ser a vida concreta da nação, por ser o intérprete da tradição, etc. 395 É interessante refletir a respeito do “porquê” do discurso de soberanos absolutos, como por exemplo a incessante afirmação da soberania divina dos reis absolutos, ou a constante re-afirmação do caráter “legal” de Hitler como líder vivo do povo alemão. Parece, aqui, que o discurso de legitimação é ligeiramente diferente daquele vinculado a situações nas quais não há um soberano absoluto: enquanto nesta última hipótese o discurso procura vincular o ato apócrifo de soberania ao critério de legitimidade político-jurídico aceito, na primeira o discurso do soberano é no sentido de se afirmar e re-afirmar constantemente como fonte de legitimidade válida per se. Corresponderiam, aos exemplos, então, as seguintes estruturas lógico-discursivas, respectivamente: “Meu ato soberano é válido porque está consoante a fonte de autoridade legitimadora”; e “Meu ato soberano é válido porque eu mesmo sou a fonte de autoridade legitimadora”.

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Agamben, por que discursam? Ou melhor, porque não se estabelecem de pronto como fonte

última de autoridade?

É claro que se poderia dizer que não o fazem simplesmente por questões

ideológicas, para mascarar sua concreta soberania, para enganar a sociedade que não os

aceitaria se viessem com uma afirmação tão seca e ríspida. Mas este motivo, ainda que

possa ter seu grau de influência na questão, não é razão definitiva nem lógica para tanto: o

que Agamben ignora completamente é que hoje, nas democracias ocidentais, qualquer lei,

qualquer provimento, qualquer decreto, qualquer ato, qualquer omissão, qualquer coisa que

aconteça no interior do Estado e da sociedade está, via de regra, submetida ao crivo do

controle do poder judiciário, mormente pela avaliação da sua constitucionalidade.

O poder judiciário revela-se, portanto, como a autoridade na modernidade.

O que é a autoridade judiciária, como ela se instituiu e funciona, e no que ela se

transformou, é o tema do derradeiro capítulo desta tese. Na medida em que a Constituição,

de um modo ou de outro, é o critério de legitimidade da soberania, a autoridade do poder

judiciário tornou-se autoridade soberana. E, diante das circunstâncias concretas de

funcionamento do poder judiciário e do controle de constitucionalidade, o poder judiciário

mostra-se, potencialmente, como o detentor de uma curiosa espécie de auctoritas, que lhe

permite tanto deixar que o poder executivo ou legislativo, ou a polícia, sejam soberanos,

bem como ele próprio tomar para si o manto desse poder absoluto.

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Capítulo V – Exceção e Poder Judiciário.

Em termos gerais, foi apresentada a lógica estrutural do funcionamento lingüístico

da exceção, em suas várias formas de manifestação, em relação principalmente ao processo

de significação dos signos (junção de significante a significado), e da articulação do

discurso, tendo em vista as características peculiares que marcam o direito enquanto

linguagem. O papel da auctoritas, de modo geral, e o da auctoritas principis, em

específico, adquirem uma relevância ainda maior quando cotejados com os processos

lingüísticos que se realizam na situação de exceção. Cumpre, neste passo, retornar à análise

não lingüística da lógica da autoridade, procurando identificar, a partir de agora, a sua

localização atual na estrutura institucional das comunidades políticas democráticas da

modernidade.

Agamben funda a maior parte de sua análise sobre a exceção, inicialmente, no

iustitium e no senatus consultum ultimum romanos. A partir da reflexão já extensamente

destrinchada de tais institutos, são mostrados os componentes essenciais da situação de

exceção, bem como seu profundo vínculo com a ontológica que marca a política e o direito

ocidentais. Há, no entanto, na exceção romana, e na da antigüidade, como um todo, dois

modelos de certo modo sugeridos por Agamben: no modelo clássico do iustitium, a exceção

se funda na atuação combinada dos magistrados e do povo romano, detentores de potestas,

com o Senado romano, detentor da auctoritas. Nessa circunstância, é ressaltado que, bem

ou mal, de forma mais ou menos “capenga”, o direito segue “funcionando”.

O segundo modelo surge, porém, da estruturação de uma soberania mais extremada,

a soberania do nomos empsychos, da lei viva como soberana, ou do soberano como lei viva.

No universo romano, isto corresponde à auctoritas principis dos Imperadores de Roma. É

nessa circunstância que supostamente emergem as versões mais extremadas da exceção

(vigência sem significado, eficácia real sem vigência), que se instauram generalizadamente

sem a necessidade de nenhum tipo de previsão legal. Tal modelo prevaleceu, na perspectiva

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de Agamben, nos regimes autoritários do século XX, principalmente no Estado alemão

nazista. Qual seria, entretanto, o modelo de autoridade preponderantemente vigente nas

democracias ocidentais, já que nelas não é possível identificar, ao menos de imediato, a

existência de um líder autoritário soberano?

1. A autoridade do poder judiciário nas democracias contemporâneas.

O paralelo entre a antigüidade e a modernidade, mesmo não sendo explicitamente

traçado na obra de Agamben, é facilmente identificável. O iustitium, a despeito de ser o

exemplo histórico selecionado como “o modelo” de exceção, é, efetivamente, o modelo da

“simples” exceção formal e legal – no caso, prevista na constituição jurídico-política de

Roma. A exceção medieval não mantém nenhuma relação direta com o iustitium, porque

ela se refere à suspensão da regra em face de um caso concreto específico visando a

consecução do “espírito” (finalidade) dessa mesma regra, e não à suspensão da lei, do

ordenamento jurídico em si. O modelo do iustitium ressurge, na modernidade, no estado de

sítio e no estado de guerra, que, como já discutido, convergem para o Estado de Exceção.

O estado de sítio e o estado de guerra emergiram na modernidade durante o

advento do Estado e da política burgueses, ou seja, em um período em que, assim como na

época do iustitium romano, estavam relativamente bem delineadas e separadas a auctoritas,

pertencente ao poder legislativo representante da burguesia, e a potestas, presente na

atuação do executivo, fosse monárquico, fosse presidencial, fosse ministerial. Na medida

em que Agamben traça sua arqueologia a partir do estado de sítio e do estado de guerra, não

é de surpreender que ele identifique no poder executivo o núcleo de “junção” de autoridade

com potestas que permite a articulação de uma soberania biopolítica, similar àquela dos

imperadores romanos.

Como já visto, ao final do século XIX e durante o início do século XX, o aumento

incessante da importância do poder executivo em detrimento da atuação tradicional do

poder legislativo resulta no emprego cada vez maior da exceção como técnica de governo.

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Isso acontece porque, assim como na Roma imperial, o executivo passa a deter uma espécie

de auctoritas principis, e funciona, por meio principalmente dos decretos-leis e de outras

técnicas de exceção, como verdadeiro nomos empsychos. Em face de tal hipótese, portanto,

é que Agamben situa o poder executivo como o articulador soberano da vida nua e da

suspensão generalizada e informal do direito.

A realização histórica dessa tendência autoritária encontra seu apogeu no

totalitarismo, e, especialmente, no nazismo. A figura do chefe carismático adquire uma

importância vital como fundadora e instituidora da sociedade, da política e da ordem legal.

O chefe carismático, encarnando em si a auctoritas principis em seu molde mais extremo,

torna-se, assim como o Imperador Romano, a lei viva e soberana que implementa, deste

modo, o modelo biopolítico jurídico e institucional do campo de concentração, baseado na

mais radical das suspensões da ordem jurídica.

A narrativa sobre quais foram os antecedentes e os elementos políticos e

institucionais que permitiram a emergência desse modelo está mais do que exaurida pelo

texto de Agamben. Entretanto, a tese central de sua obra é a de que o modelo biopolítico,

compreensível à luz da perspectiva do nazismo e do totalitarismo, permanece inerente ao

funcionamento das atuais democracias ocidentais, tendo se tornado o paradigma político da

modernidade nos séculos XX e XXI. Agamben não explica em nenhum momento como

isso acontece, ou melhor, como isso pôde acontecer e continua acontecendo.

Sua sugestão implícita seria a de que, como a estrutura do direito e da política em si

já contém em sua raiz a lógica da soberania e o germe da produção da vida nua, cuja

preponderância no funcionamento político e jurídico dos Estados apenas se acentuou com a

emergência da modernidade e dos direitos humanos, as atuais democracias ocidentais

realizam tão-somente a tendência implícita e inafastável de seu modelo político e jurídico.

Isso se dá porque a auctoritas principis, atuante na circunstância de tematização política

radical da vida biológica humana realizada durante a modernidade, principalmente por

meio dos direitos humanos, depara-se com a impossibilidade de inscrever, totalmente e sem

resíduos, a vida biológica humana do indivíduo, no momento mesmo de seu nascimento, no

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Estado (no corpo da nação) – o modelo último do campo de concentração é a resposta

biopolítica final para se dar uma “solução” a essa impossibilidade.

Entretanto, se a forma mais pura atingida do modelo biopolítico realizada pelos

regimes nazistas e totalitários foi não só derrotada militarmente, mas veementemente

repudiada tanto em teoria quanto na prática pelas democracias que emergiriam do pós-

guerra, como é possível que ainda assim essas democracias e suas herdeiras reproduzam,

atualmente, o modelo biopolítico de produção de vida nua?

Em outros termos, se era a auctoritas principis do chefe carismático totalitário e

nazista o elemento central que sustentava o desenvolvimento pleno do modelo biopolítico

do campo de concentração nesses regimes específicos, qual é o elemento, nas democracias

ocidentais, que permite que a situação de exceção generalizada e informal seja largamente

implementada, conforme observa Agamben? Ainda que se considere que a produção da

vida nua é inerente ao direito e à política ocidentais, e que a instauração da situação de

exceção permanente que produz essa vida nua é uma tendência estrutural sempre presente,

cabe indagar: onde reside, nas democracias, a auctoritas que embasa a instauração da

situação de exceção permanente e informal?

Agamben expõe de forma ampla a transformação da relação entre os poderes

executivo e legislativo, que paulatinamente transferiu a maior parte das prerrogativas

legislativas, ou seja, da auctoritas do poder legislativo, para o executivo – transformação

essa que, paralela ao problema da inscrição da vida natural no corpo político da nação,

conduziu à emergência do nazismo e do totalitarismo como técnica e ideologia de governo.

É certo que até os dias de hoje mecanismos semelhantes aos decretos-leis constituem

técnica comum empregada pela maior parte dos executivos ocidentais. Mas, então, a

auctoritas legislativa pertence a esses executivos? E, assim como no entre-guerras, sua

tendência inevitável seria a de se tornar novamente uma auctoritas principis, que

conduziria, também inevitavelmente, à implementação pura e direta de um regime de molde

nazista, produtor em massa de vida nua, tendo em vista a problemática mesma da inscrição

do nascimento do indivíduo no Estado?

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Talvez tenha sido exatamente isso o que ocorreu durante a separação da ex-

Iugoslávia, exemplo mencionado pelo próprio Agamben e já citado no primeiro capítulo.

Entretanto, não parece ser isso o que ocorre no interior das democracias ocidentais, ao

menos não de forma consistente. Se, conforme proposto, esses regimes operam em cima do

modelo biopolítico do campo de concentração, fulcrado em uma situação de exceção

constante e não declarada, ainda assim não parece que, ao menos na maioria deles, a

implementação da biopolítica ocorra em formato similar ao do alcançado pela radicalização

da auctoritas principis do executivo nos regimes totalitários e nazista – ou seja, com a

identificação absoluta da política, do ordenamento jurídico e do Estado no nomos

empsychos, no chefe carismático, com a resultante implementação concreta do campo de

concentração fático e real396.

A tese é, inicialmente, a de que a localização da auctoritas principis no poder

executivo conduz, por tudo que é exposto por Agamben, à formação de regimes autoritários

nos quais um chefe carismático assume o papel de “lei viva” fiadora da própria existência

política e jurídica do Estado e da sociedade. Se, porém, as democracias atuais operam ainda

na lógica da produção da vida nua e do paradigma biopolítico do campo de concentração,

396 Existem, evidentemente, “locais biopolíticos” muito assemelhados a campos de concentração clássicos, como, por exemplo, os campos de refugiados do Sudão, ou a prisão de Guantánamo da era Bush. Existem, igualmente, líderes políticos que se pretendem “carismáticos”, e que tentam, de um modo ou de outro, mais ou menos, fundar a validade das instituições político-jurídicas em sua autoridade pessoal. Entretanto, não é nenhuma dessas duas formas “grosseiras” de biopolítica que predomina nas democracias ocidentais. A predominância do modelo do campo de concentração é estrutural e funcional, e raramente se embasa na reprodução aproximada do “fato” do campo de concentração, ou da efetiva existência de um chefe carismático. Isto porque, se as zonas de detenção dos aeroportos, e as auto-estradas “assassinas”, ambos exemplos citados por Agamben, são sim manifestações concretas do paradigma biopolítico do campo de concentração, não quer dizer que eventualmente se converterão em novos e efetivos campos de concentração como os da Alemanha nazista. A biopolítica das democracias ocidentais opera a suspensão do direito, a exceção, como no campo de concentração, mas fora do campo de concentração em si – é apenas metaforicamente que se pode dizer que todas as cidades se convertem ou se converterão em campos de concentração. O que ocorre, de fato, é que são cada vez mais amplos e constantes os locais e as situações nas quais há uma real suspensão do direito. O campo de concentração é o locus máximo de suspensão do direito – assim, os outros locais e circunstâncias nos quais ocorre a suspensão do direito se embasam no modelo de suspensão do campo de concentração, que é, por assim dizer, sua “inspiração”. É apenas nesse sentido que é possível se falar na expansão mundial do paradigma biopolítico do campo de concentração, pois se trata da expansão sem precedentes do modelo de suspensão do direito. É evidente, de todo modo, que, se as zonas dos aeroportos e as auto-estradas se embasam no modelo do campo, ainda assim não há nenhuma necessidade ou tendência, nem lógica, nem estrutural, de tais espaços se tornarem campos de concentração reais – é apenas a lógica funcional e estrutural aperfeiçoada no campo de concentração que marca também o funcionamento desses espaços.

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mas não apresentam, em sua maioria, a tendência de se converterem em algo semelhante ao

nazismo, isso quer dizer que ou o poder executivo não possui a auctoritas principis nos

moldes propostos por Agamben, ou há uma outra lógica de funcionamento da autoridade e

de implementação generalizada e informal de suspensão da ordem jurídica agindo no

interior das democracias contemporâneas.

A teoria de Agamben, ao que tudo indica, focaliza a questão da lógica de

funcionamento da autoridade na modernidade exclusivamente à luz do problema da

implementação do estado de sítio e do estado de guerra. Dessa forma, contempla tão-

somente as relações entre os poderes executivo e legislativo tendo em vista a produção e a

suspensão das leis e da ordem político-jurídica como um todo. Ela ignora, porém, o outro

grande modelo autoritário que emerge junto com as constituições e com o

constitucionalismo, ou seja, não avalia, em momento nenhum, o que é e como funciona a

autoridade específica do poder judiciário.

O papel autoritário do poder judiciário nasce, pode-se dizer, a partir da estruturação

institucional decorrente da Revolução Americana, e funda-se na própria idéia de tripartição

de poderes haurida de Montesquieu397 pelos articuladores da República. Arendt sublinha

397 Sobre a influência de Montesquieu na constituição da República americana, Arendt menciona que: “É bem conhecido o fato de que nenhuma questão desempenhou um papel de maior relevância do que o problema da separação ou equilíbrio dos poderes, e é perfeitamente correto que a idéia dessa separação não foi uma descoberta exclusiva de Montesquieu. (...) a descoberta de Montesquieu realmente dizia respeito à natureza do poder, e essa descoberta representa uma contradição tão flagrante com todas as noções convencionais sobre o assunto, que ela quase caiu no esquecimento, a despeito do fato de que a fundação da república na América foi grandemente influenciada por ela. A descoberta, contida em uma frase, reflete o esquecido princípio que está por trás de toda a estrutura dos poderes separados: apenas “o poder controla o poder”, e isso, devemos acrescentar, sem destruí-lo, sem colocar a impotência no lugar do poder. Pois, naturalmente, o poder pode ser destruído pela violência; é isso o que acontece nas tiranias, onde a violência de um destrói o poder da maioria, as quais, portanto, segundo Montesquieu, são destruídas a partir de dentro; elas perecem porque engendram a impotência, ao invés do poder. Mas o poder, ao contrário do que somos inclinados a pensar, não pode ser controlado, pelo menos de forma eficaz, através de leis, pois o assim chamado poder do governante, e que sofre o controle do governo legal, constitucional e limitado, não é, de fato, o poder, mas a violência, a força multiplicada de um que monopolizou o poder de muitos. Por outro lado, as leis estão sempre correndo o risco de serem abolidas pelo poder da maioria, e, num conflito entre a lei e o poder, dificilmente a lei sairá vitoriosa. No entanto, mesmo se presumirmos que a lei seja capaz de controlar o poder – e é sobre essa presunção que deve (sic) repousar todas as formas de governo verdadeiramente democráticas, sob pena de degenerarem na pior e mais arbitrária tirania – a limitação que as leis impõem sobre o poder apenas pode resultar numa diminuição de sua potência. O poder só pode ser contido, e, ainda assim, permanecer intacto, através do poder, de forma que o princípio de separação do poder não apenas proporciona uma garantia contra a monopolização do poder por uma parte do governo, como também oferece, na realidade, uma espécie de mecanismo, incrustado no próprio cerne do governo, através do qual novo poder é constantemente gerado,

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em que medida o poder judiciário, concebido como instância de controle dos outros dois

poderes, contém em si, a despeito de algumas diferenças, a essência da autoridade que

outrora pertencera ao Senado romano:

(...) Entre “as numerosas inovações introduzidas no cenário americano” (Madison) talvez a mais importante, e certamente a mais evidente, consistiu numa mudança de localização da autoridade, que passou do Senado romano para o ramo judiciário do governo; mas o que permaneceu próximo ao espírito romano foi a necessidade do estabelecimento de uma instituição concreta que, diferindo nitidamente dos poderes da área legislativa e executiva do governo, fosse destinada ao exercício da autoridade. Foi precisamente em seu uso incorreto da palavra senado, ou melhor, em sua relutância em dotar de autoridade um dos ramos do Legislativo, que os fundadores demonstraram como eles haviam compreendido bem a distinção romana entre poder e autoridade. Pois a razão de Hamilton insistir que “a majestade da autoridade nacional deve se manifestar por intermédio das cortes de justiça” foi que, em termos de poder, o setor judiciário, por não possuir “nem força, nem vontade, mas simplesmente o critério de julgamento [...] [era] sem comparação, o mais fraco dos três departamentos do poder”. Em outras palavras, sua própria autoridade o tornava inadequado para o poder, da mesma forma que, em sentido inverso, o próprio Poder Legislativo tornava o Senado impróprio para o exercício da autoridade. Segundo Madison, até mesmo o controle judicial, “a única contribuição da América à ciência do governo”, teve seu símile no antigo cargo romano de censor, e foi ainda um “Conselho de Censores que [...] na Pensilvânia, em 1783 e 1784 [...] foi constituído para averiguar se a Constituição fora violada, e se os poderes Legislativo e Executivo haviam extrapolado seus próprios limites”. Entretanto, o ponto importante é que, quando essa “nova e relevante experiência política” foi incorporada à Constituição dos Estados Unidos, ela perdeu, juntamente com o nome, suas antigas características – o poder dos censores, de um lado, e o rodízio no cargo, do outro. Do ponto de vista institucional, é a falta de poder, acrescida da permanência no cargo, que mostra que, na República americana, a verdadeira sede da autoridade está na Suprema Corte. E essa autoridade é exercida através de uma formulação contínua da Constituição, pois a Suprema Corte é, de fato, nas palavras de Woodrow Wilson, “uma espécie de assembléia constitucional em sessão permanente”. Entretanto, ao passo que a diferenciação institucional americana entre poder e autoridade conserva traços nitidamente romanos, sua própria concepção de autoridade é inequivocamente diferente. Em Roma, a função da autoridade era política, e consistia em oferecer aconselhamento, enquanto que, na República americana, a função da autoridade é legal, e se exerce através da interpretação. A Suprema Corte deriva sua própria autoridade da Constituição, como documento escrito, ao passo que o Senado romano, os patres ou pais da República romana, estavam investidos de autoridade porque representavam, ou antes reencarnavam os ancestrais, cujo único fundamento

sem que, no entanto, venha a crescer demasiadamente e se expandir, em detrimento de outros centros ou fontes de poder”. ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 120-121. Carl Schmitt, ainda que com um tom certamente irônico, igualmente relaciona a autoridade ao poder judiciário no pensamento de Montesquieu: “(...) O fato de Montesquieu, em um dito muito discutido, poder qualificar a puissance de juger de “em quelque façon nulle” (Espirit des lois XI, 6), encontra-se igualmente em uma relação objetiva com aquela diferenciação, pois o juiz tem muito mais auctoritas do que potestas, contudo, Montesquieu não mais se lembra disso”. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 199-200.

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de autoridade no corpo político era precisamente o fato de o haverem fundado, de serem eles os “Pais Fundadores”.398

Volte-se aos dois modelos de fundamentação da legitimidade da Constituição, e da

autoridade ou legitimidade que dela deriva. Na formatação francesa, entusiasticamente

apoiada por Carl Schmitt, a fonte de legitimidade de uma Constituição reside na vontade

popular una e indivisível da nação. Logo, aquele que puder representar ou interpretar essa

vontade tem legitimidade para atuar em nome dela. Na medida em que, conforme

constatado por Arendt, na Revolução Francesa – e, por conseqüência, no modelo

continental constitucionalista clássico – o poder e a autoridade (ou seja, o poder e a sua

legitimidade) tinham ambos como fonte o povo, o intérprete da vontade da nação era

também necessariamente soberano, pois reuniria em si tanto a auctoritas quanto a potestas.

No modelo americano, porém, se por um lado o povo era a fonte do poder, a

Constituição era a fonte da autoridade – ou, em outros termos, o exercício do poder é

legítimo na medida em que convalidado pelo texto constitucional. Nessa perspectiva, a

Constituição funciona como o documento que não só simboliza o ato de fundação da

República americana, mas que, ao mesmo tempo, contém em seu interior, com base na

tradição que se instaura a partir do momento da fundação, a possibilidade de “aumentar” e

“preservar”, ilimitadamente, o ato fundacional original399. Assim, tem-se, estruturalmente,

que: no modelo francês, quem se ampara na vontade popular é soberano, pois detém o

poder e legitima esse poder a partir da mesma fonte; no modelo americano, quem detém o

poder em nome do povo precisa ainda se legitimar frente ao texto constitucional – ou,

melhor, frente ao intérprete do texto constitucional.

398 ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 160-161. 399 Conforme já proposto anteriormente, a força de legitimação da ordem político-jurídica que procura preservar a si própria tem amparo no início mítico e violento que instituiu essa ordem. No modelo americano, a Constituição tenta conter em si essa força; a Constituição é legítima porque é o resultado concreto e textual da violência fundadora – no modelo francês, a violência fundadora é deslocada para a idéia de vontade una e indivisível do povo/nação, à luz da qual a própria Constituição retira sua legitimidade – nesse caso, o mito fundador é justamente o da vontade una da nação. Em trecho já citado anteriormente, destaca-se a seguinte passagem de Arendt: “(...) Assim sendo, as emendas à Constituição apenas aumentam e ampliam as bases originais da República americana; desnecessário é dizer que a própria autoridade da Constituição americana repousa em sua inerente capacidade de ser emendada e ampliada. Essa noção de uma coincidência de fundação e preservação, que se englobam num aumento – a idéia de que o ato “revolucionário” de dar início a alguma coisa inteiramente nova e o zelo preservativo, destinado a proteger esse novo início através dos séculos, estão inter-relacionados (...)”ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 162.

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O problema, em cada um dos modelos, portanto, é: o de como estabelecer e

“provar” o vínculo entre agente e vontade da nação, no caso francês; e, no modelo norte-

americano, o de como “provar” e “estabelecer”, simultaneamente, a existência do poder

vinculado ao povo e a sua legitimidade vinculada à Constituição. Ao problema do primeiro

modelo, não há respostas simples – tanto que Schmitt, com todo seu gênio, limita-se a

considerar aclamações populares de “sim” e “não” como mecanismo idôneo para

determinar a correspondência entre atuação soberana e vontade da nação400. A solução

clássica, todavia, são a representação popular e as eleições democráticas, como formas de

estabelecimento do vínculo e da legitimidade.

Já no problema do segundo modelo, a idéia de representação popular e eleições

democráticas é também utilizada como solução para a primeira parte da equação – ou seja,

para responder de onde provém, ou melhor, para demonstrar que provém do povo o poder

de um determinado agente político. Em relação à dúvida sobre a legitimidade do poder

frente ao texto constitucional, todavia, a Revolução americana definiu, conforme

apresentado por Arendt, o poder judiciário, e, especialmente, sua Corte Suprema, como as

instâncias de autoridade no Estado americano. Isto quer dizer, então, que a legitimidade da

atuação, ou seja, a legitimidade do uso do poder dos agentes políticos está potencialmente

submetida à apreciação pelo poder judiciário.

Em outros termos, os atos políticos do poder executivo e do poder legislativo podem

ser institucionalmente revistos pelo poder judiciário, na medida em que este constituiria um

organismo autoritário neutro destituído de potestas. Na lógica estrutural de funcionamento

da autoridade em sua relação com a potestas, destarte, caberia ao poder judiciário autorizar,

convalidar, ou desautorizar, invalidar, quaisquer atos dos outros dois poderes que não

correspondessem à Constituição, na medida em que esta simboliza simultaneamente a

tradição, a força mítica da fundação da comunidade e a possibilidade de preservação e

aperfeiçoamento da comunidade e de sua ordem político-jurídica, ou seja, tendo-se em

400 E, talvez por isso, ele tenha tanta facilidade em aceitar “um ou outro” ato de soberania apócrifo como parte do funcionamento normal do Estado.

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conta que o texto constitucional apresenta-se como a fonte de autoridade da qual a própria

autoridade do poder judiciário deriva.

A forma institucional eventualmente consolidada para o exercício dessa autoridade

foi o controle de constitucionalidade. A literatura sobre o tema é, sem nenhuma sombra de

dúvida, vastíssima. Interessam, por ora, entretanto, apenas seus aspectos gerais e

estruturais. O controle de constitucionalidade se estabelece nos Estados Unidos, grosso

modo, a partir da famosa decisão sobre o caso Marbury v. Madison, que institucionalizou

definitivamente a doutrina do judicial review401. O poder judiciário tem autoridade para,

quando provocado, anular ou convalidar qualquer ato legislativo ou executivo, tendo em

vista sua consonância com o texto constitucional402. Tal autoridade, tendo em vista o

funcionamento da common law norte-americana, pode ser exercida por qualquer juiz, mas,

em última instância, e com força vinculante para todo o poder judiciário, é exercida pela

Suprema Corte dos Estados Unidos.

As decisões dos juízes comuns, e, mais ainda da Suprema Corte, constituem os

precedentes a partir dos quais se constrói a tradição constitucional da República

americana403. O ato de interpretação, portanto, estrutura-se discursivamente a partir dos

precedentes que constituem a tradição constitucional (que é, na prática, a própria tradição

da comunidade político-jurídica), seja para re-afirmá-los, seja para dar-lhe uma nova

interpretação que simultaneamente “preserve” e “aumente”, ou melhor, “atualize”, a

tradição constitucional – simbolicamente aperfeiçoando-se o próprio ato mítico de

fundação404. A interpretação da Suprema Corte, como instância última e máxima – é

401 Todo o histórico da decisão e suas conseqüências para a doutrina do judicial review já foram tão extensamente debatidos em tantos textos e oportunidades diversas, que não se vê razão para cansar o leitor com uma nova e tediosa narrativa sobre o tema. A página da Wikipédia sobre a questão não só apresenta uma boa descrição do caso, como traz referências relevantes para quem desejar se aprofundar no assunto: http://en.wikipedia.org/wiki/Marbury_v._Madison [acessado em 05/02/2011]. 402 A lógica do controle de constitucionalidade, evidentemente, se estende atualmente para a avaliação da constitucionalidade inclusive de atos particulares, de casos concretos privados que não se relacionam nem ao poder legislativo, nem ao executivo. As conseqüências de tal expansão do controle de constitucionalidade serão avaliadas mais à frente. 403 Ou “identidade constitucional”, como a refinada interpretação de Rosenfeld nomeia tal tradição. Sobre a questão, ver as referências bibliográficas desta tese. 404 Também sob essa ótica é possível explicar, complementarmente, a “adoração constitucional” mencionada por Arendt.

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vinculante, e deve ser institucionalmente seguida e obedecida como a interpretação

“verdadeira” ou “correta” da tradição constitucional para aquele momento histórico405.

A atuação autoritária do poder judiciário como “avaliador” da constitucionalidade

dos atos executivos e legislativos frente à Constituição é bastante diferente da atuação

clássica e européia do magistrado como aplicador da lei. A lógica típica da decisão

judiciária é a da subsunção de um ato ou fato ao comando legal – ou seja, da interpretação

acerca da incidência ou não da lei sobre um determinado caso concreto levado ao

conhecimento do tribunal. O juízo de constitucionalidade de um ato executivo ou

legislativo, apesar de poder se embasar discursivamente na técnica da subsunção, é lógica e

estruturalmente diferente do juízo de subsunção: no primeiro, se avalia a legitimidade, e,

por conseqüência, a validade, do ato, que ou é ou não é constitucional406; no segundo, se

avalia sobre a incidência, ou não, de uma lei a um determinado caso concreto; ou ainda,

sobre qual lei se aplica àquele caso concreto. Isto é válido, inclusive, para o controle de

constitucionalidade que se debruça exclusivamente sobre um caso concreto envolvendo tão-

somente indivíduos ou organizações privadas, na medida em que se avalia ainda assim a

consonância da situação concreta com a Constituição.

No modelo de legitimidade constitucional da Revolução Francesa, o papel do poder

judiciário permaneceu em tese restrito à subsunção clássica. A lei, como fruto do poder

legislativo, legítimo intérprete da vontade popular por representação, deveria ser

inquestionavelmente aplicada pelo poder judiciário. A autoridade do poder judiciário não é

a do intérprete da legitimidade constitucional, mas subsiste somente na medida em que este

aplica a lei – ou seja, a vontade da nação – dentro dos rígidos limites que a própria lei lhe

impõe407. Em um primeiro momento, qualquer controle judicial dos atos executivos e

405 Percebe-se, assim, que o modelo de controle de constitucionalidade americano não é tão difuso quanto muitas vezes se quer fazer crer. Ele é difuso na medida em que o controle de constitucionalidade pode ser exercido por qualquer magistrado. Mas, quando há uma decisão da Suprema Corte, ele deve ser necessariamente encarado como um sistema no qual existem interpretações concentradas, momentaneamente definitivas e cogentes. 406 Ou, no âmbito das técnicas contemporâneas de controle de constitucionalidade, pode vir a ser a partir de uma interpretação específica que pondere e meça seus elementos e características intrínsecas em busca de uma forma de validade constitucionalmente válida. 407 Daí a famosa caracterização do magistrado como “la bouche de la loi”, bem como as propostas teóricas da chamada “Escola da Exegese”.

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legislativos era impensável no modelo francês, já que o poder judiciário não detinha

nenhuma legitimidade representativa ou democrática junto à nação – sua autoridade e,

portanto, sua legitimidade para julgar, derivava exclusivamente da aplicação rígida e neutra

da vontade popular consubstanciada na lei.

Carl Schmitt, cujo pensamento teórico está claramente vinculado ao enaltecimento

da vontade una e indivisível da nação como único critério de legitimidade da soberania,

explica e defende essa lógica típica da subsunção legal como modelo continental aceitável e

válido de atuação judiciária, em contraposição à possibilidade, derivada do modelo

americano, de o poder judiciário atuar como autoridade responsável pelo controle de

constitucionalidade408:

Para responder à pergunta fundamental da teoria constitucional deve-se repetir, aqui, mais uma vez que não há Estado de Direito sem uma justiça independente, não há justiça independente sem vinculação material a uma lei e não há vinculação material à lei sem diversidade objetiva entre lei e sentença judicial. O Estado de Direito civil baseia-se justamente na diferença objetiva entre os diversos poderes. Pode-se rejeitar a diferenciação de poderes devido a tendências absolutistas, como usual na teoria do direito público da monarquia constitucional alemã, e pode-se, também, deixar ao juiz uma certa liberdade, mas não se lhe pode outorgar a decisão política, que é assunto do legislador, sem alterar seu posicionamento de direito público. Não se refuta tampouco a diferenciação fundamental entre legislativo e justiça com o fato de se forçarem designações imprecisas (divisão dos poderes, repartição dos poderes) em seu sentido literal, ou ao se referir a dificuldades da delimitação de seus pormenores, a possibilidades de entrecruzamento de limites ou coisa

408 “Os tribunais com jurisdição civil, penal ou administrativa não são, em sentido preciso, guardiões da Constituição. Todavia, é normal o erro em qualificá-los como tais ao exercerem um chamado direito de exame judicial material, isto é, ao examinarem as leis ordinárias em sua coerência material com os comandos constitucionais e, em caso de conflito, negarem à lei ordinária sua aplicação. (...) A tendência em apresentar tribunais sentenciadores como a suprema garantia de uma Constituição pode ser provavelmente explicada, principalmente, a partir de idéias amplamente difundidas sobre o supremo tribunal dos Estados Unidos da América. Esse tribunal, que é com razão mundialmente famoso, tornou-se entre alguns juristas alemães, como parece, um tipo de mito. Nas deliberações da comissão constitucional da assembléia nacional de Weimar, surgiram notáveis obscuridades e estão documentalmente registradas nos protocolos da comissão constitucional. Trata-se, de um “tribunal do Estado para a proteção da Constituição” da forma como, supostamente, teria sido “introduzido por todos os grandes Estados democráticos, por exemplo, pelos Estados Unidos, onde sua existência se auto-afirmou”. De acordo com isso, deve-se lembrar, em algumas palavras, que o supremo tribunal dos Estados Unidos, por causa de sua interpretação autoritária de conceitos como propriedade, valor e liberdade, tem, como se disse, uma “posição única em toda a história mundial”, justamente em território econômico, que, por conseguinte, não pode ser simplesmente transferida às condições de um Estado continental europeu, condições estas de um tipo, política e socialmente, bem diferente.” SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 19-20. Sublinhe-se que a Suprema Corte é tão mito para a experiência americana quanto a vontade da nação o é para a experiência continental – já que ambos integram a lógica do caráter místico do momento instituidor da ordem político-jurídica.

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semelhante, ou, por fim, ao lembrar que, ao invés da usual tripartição (legislativo, executivo e justiça), são também possíveis outras divisões e diferenciações. Como acertadamente proferido por Larnaude, há tantas diferenciações de poderes quanto o número de Estados. Mas a variedade não comprova que não há em absoluto diferenciação alguma ou que se teria o direito de menosprezar as diversidades entre legislativo e justiça. Ainda continua a valer para o Estado de Direito civil que um Estado sem diferenciação objetiva entre legislativo, executivo (governo, administração) e judiciário não tenha “uma Constituição” no sentido do Estado de Direito civil. No Estado de Direito, existe justiça somente como sentença judicial com base em uma lei. A fórmula: “com base em uma lei”, empregada de maneira típica por todas as constituições alemãs desde o século XIX, é de importância primordial para a organização do Estado de Direito civil. Nos últimos anos, chamei frequentemente a atenção para esse fato e mostrei o nexo sistemático. Para o âmbito de todas as constituições alemãs, a fórmula não tem nenhum significado inferior (mesmo se tiver um outro) à fórmula do due process of law para o direito constitucional anglo-saxônico. Também é resultado dessa fórmula que se deve diferenciar entre lei e sentença judicial e, conseqüentemente, também entre legislador e juiz. Por múltipla que seja a realização de diferenciação dos poderes nos vários Estados, permanecerá a diferenciação desses poderes e às divisões organizacionais de suas funções corresponderá uma diversidade objetiva da atividade, ao menos para a regulação normal da competência. Uma lei não é uma sentença judicial, uma sentença judicial não é uma lei, e, sim, decisão de um “caso” com “base em uma lei”. A posição especial do juiz no Estado de Direito – sua objetividade, seu posicionamento acima das partes, sua independência e sua inamovibilidade – baseia-se no fato de que ele decide justamente com base em uma lei e de que sua decisão, em seu conteúdo, é derivada de uma outra decisão de modo mensurável e calculável já contida na lei. Se, excepcionalmente, os órgãos legislativos perceberem, nas formas do ato legislativo, outras funções que não as do ato legislativo, pode-se qualificar isso, então, de “legislação formal”, como, analogamente, se pode também falar de um conceito formal de justiça quando uma repartição judicial declarada competente se torna ativa, dessa maneira, ultrapassando o território objetivo da justiça. Porém, isso ainda não permite as inversões de um formalismo inócuo que simplesmente inverta as coisas e que classifique de jurídica aquilo que o legislativo realize na forma de legislação, tudo como justiça o que um tribunal faz. Esse tipo de lógica se processa, em contínuas trocas, da seguinte maneira: justiça é o que um juiz faz, ou seja, tudo o que um juiz faz é justiça, o juiz é independente, ou seja, toda pessoa que é independente é um juiz, assim, tudo o que um órgão independente faz sob a proteção de sua independência é justiça, por conseguinte, só se precisa fazer com que todos os litígios constitucionais e divergências de opiniões sejam decididos por juízes independentes e tem-se uma “justiça constitucional”. Nestes tipos de conceitos formais tudo pode ser imputado a todos, tudo pode se tornar justiça, mas, do mesmo modo, tudo pode se tornar “norma” e estabelecimento de normas e, por fim, tudo pode se tornar Constituição. (...) Sobre o problema geral teórico-jurídico, deve-se ainda observar o seguinte: no caso não existe nenhuma outra a não ser uma justiça vinculada à lei. Por conseguinte, deve-se perseverar na diversidade objetiva entre legislação e justiça e não se pode construir nenhuma “gradação universal” da Constituição para a decisão judicial, como empreendido por Kelsen (...). O que o juiz faz com base em uma lei, é regulamentado, em seu conteúdo, pela lei e, assim, algo essencialmente diferente de legislação “com base na lei (constitucional)”. A expressão “com base na lei” perde seu sentido específico de Estado de Direito quando ela é aplicada, dessa forma, a outras relações

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materiais diferentes e tornada “universal”. Utilizando-se de uma imprecisão lingüística, pode-se dizer que o legislador faz suas leis “com base” nas determinações da norma constitucional que o fazem legislador (...). De tais instruções de competências e “poderes” não é possível nenhuma derivação concreta do ato estatal, como pensado no caso da aplicação judicial da lei e da decisão “com base em uma lei. Quando o juiz, com base em uma determinação da lei penal, condena o réu à pena de reclusão, a sentença que determina a prisão é derivada, em seu conteúdo, da lei por meio de uma subsunção do caso a ser decidido, correspondente ao tipo, a uma norma que possibilita a subsunção correspondente ao tipo e que já define antecipadamente, dentro de uma determinada esfera (pena de reclusão), o conteúdo da sentença. Quando o Primeiro-Ministro do Reich faz uma aliança com a Rússia “com base” no artigo 56 da Constituição, ou quando o presidente do Reich, “com base” no artigo 48”, ordena uma “ajuda para o leste”, a aliança russa ou a ajuda para o leste não é derivada, em seu conteúdo e por meio de subsunção correspondente ao tipo, das disposições da norma constitucional constantes no artigo 56 ou 48 como aquela pena de reclusão da norma da lei penal. É um abuso deixar misturar a diferenciação entre instrução de competências e normatização material, justificar as mais variadas proposições, ordens, regulamentações, poderes e decisões com a palavra “norma” e, onde se trata de justiça, nem mais diferenciar entre “normas” sujeitas e as não-sujeitas à ação da justiça. É da essência da decisão judicial poder, em seu conteúdo, ser derivada da norma basilar e que a norma que vincula o juiz, vincula realmente de forma mensurável e calculável, não apenas conferindo poderes. Uma margem de ação para conceitos indeterminados pode permanecer, mas se a norma se tornar tão ampla e vazia a ponto de não mais ser possível uma subsunção correspondente ao tipo ou, se houver apenas uma instrução de competências, deixará de existir, na mesma medida da norma sujeita à ação da justiça, o embasamento para uma possível estrutura judicial. Se, em vez do Primeiro-Ministro, fosse o tribunal do Reich sob a proteção de sua independência judicial que definisse as diretrizes da política, a despeito disso, esse fato não seria justiça, nem se todas as determinações do código de processo civil e penal fossem declaradas como “aplicáveis mutatis mutandis”, se fosse estabelecida a “rigorosa” “norma” de que o tribunal do Reich só possa estabelecer diretrizes corretas e se a decisão fosse tomada, então, “com base” nessa “norma” e “com base” nas defesas das partes e dos advogados após a audiência oral e, em resumo, se fosse encenada uma pormenorizada paródia do processo. 409

Na realidade histórica concreta do constitucionalismo e da prática constitucional dos

Estados ocidentais, é evidente que os modelos francês e americano de legitimidade da

Constituição e da soberania não permaneceram completamente independentes e estanques,

separados um do outro. Pelo contrário, tanto no campo prático quanto teórico os dois

modelos foram paulatinamente se interpenetrando e contra-influenciando. Conquanto tal

processo tenha se dado pelas duas vias possíveis, durante o entreguerras posterior ao fiasco

europeu da Primeira Guerra Mundial, a idéia americana de controle de constitucionalidade

409 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 56-59. A parte final do texto revelou-se na história da prática constitucional ocidental perturbadoramente profética.

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exerceu grande influência no constitucionalismo continental: resultando tanto no grande

expoente teórico a favor do controle de constitucionalidade judicial de Hans Kelsen, dentre

vários outros, quanto na adoção institucional de tribunais constitucionais em diversos

Estados continentais410.

“O Guardião da Constituição”, de Schmitt, é, nessa perspectiva, uma resposta

teórica à “invasão” de elementos do modelo americano de legitimidade constitucional sobre

o clássico modelo continental-francês. A ampla crítica mencionada na citação acima se

reporta precisamente à forma de atuação judiciária que deriva do controle de

constitucionalidade norte-americano. Não é à toa que para este autor o controle de

constitucionalidade judicial viola a lógica da soberania popular, na medida em que muitos

dos atos de soberania “apócrifos” são praticados por membros do poder judiciário – o

controle de constitucionalidade judicial está ligado à Constituição como fonte de

autoridade, conceito que Schmitt não aceita como válido frente à sua proposta de

Constituição como decisão política fundamental de um povo (ou seja, como vontade da

nação).

Nesse cenário, o conceito de constituição como lei suprema cuja autoridade subsiste

por si própria, é de origem americana. Na perspectiva constitucionalista continental, a

autoridade da Constituição depende de sua correspondência com a vontade popular, com a

vontade da nação. Toda crítica de Schmitt à idéia de conceber0 a Constituição como lei

suprema, no fundo, remonta à diferença do embasamento da legitimidade dos dois modelos

contrapostos. No modelo americano, a legitimidade da Suprema Corte como organismo

autoritário de preservação e atualização da comunidade política deriva da própria

Constituição, símbolo da fundação da comunidade. No modelo continental puro, todavia,

não há como encontrar critério válido de legitimidade para uma Corte Suprema que possa

limitar e revisar atos soberanos, porque a Constituição – que legitima a Corte Suprema –

somente é ela própria legítima na medida em que corresponde à vontade política una e

indivisível do povo. Não há, portanto, forma coerente de a vontade popular legitimar um

410 Dentre vários a Áustria, sob direta inspiração da proposta teórica de Kelsen, e, em certa medida, a própria Alemanha. Não é à toa, o famoso e ácido debate entre Schmitt e Kelsen a respeito de a quem compete a “guarda” da Constituição: Presidente ou tribunal?

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órgão judicial que possa substituir essa mesma vontade popular, eventualmente a

restringindo e controlando, pois tal órgão não é nem representativo, nem democrático.

Desse modo, com o intento de “purgar” o direito constitucional alemão de indevidas

influências americanas, Schmitt traça a diferença existente, a seu ver, entre a judicial

review americana e o “direito de exame judicial” existente na Alemanha de seu tempo:

(...) Deve-se dizer basicamente que o direito de exame judicial, por si só, apenas torna os tribunais sentenciadores guardiões da Constituição em um Estado judicial que subordina a totalidade da vida pública ao controle dos tribunais ordinários e só quando, por Constituição, forem entendidos, sobretudo, os direitos fundamentais do Estado de Direito civil, liberdade pessoal e propriedade privada, os quais devem ser protegidos contra o Estado pelos tribunais ordinários, i.e. contra legislação, governo e administração. Dessa forma, a prática do tribunal americano defendeu e procurou proteger contra o legislador, com base nas emendas (Amendment) de número 5 e 14 e desenvolvendo a muito discutida fórmula due process of law, os princípios da ordem civil social e econômica como a ordem superior e a verdadeira Constituição. O direito de exame judicial, ao contrário, ao qual recorre o tribunal do Reich alemão na famosa decisão de 4 de novembro de 1925, assim como, de forma semelhante, os demais tribunais supremos (...), tem uma importância muito modesta em comparação com o direito de exame de um tribunal norte-americano e, em uma observação mais detalhada de suas proporções, se movimenta dentro de limites muito estreitos. A fundamentação da decisão de 4 de novembro de 1925 baseia-se na seguinte frase: que o juiz esteja subordinado à lei (artigo 102 da Constituição do Reich) “não exclui o fato de que ele possa privar de validade uma lei ou suas determinações particulares, contanto que estejam em contradição com outros preceitos que as precedam e a serem observados pelo juiz”. Com isso se afirma que há determinações da norma constitucional, a cuja regulamentação dos fatos típicos pode-se subsumir o caso à espera da decisão e que, no caso de conflito, essa regulamentação da norma constitucional precede a regulamentação legal ordinária do mesmo fato típico. Apenas enquanto a determinação da norma constitucional possibilitar, pelo seu conteúdo, uma subsunção correspondente ao tipo, calculável e mensurável, do caso a ser decidido é que ela interessa para o caso de conflito, pois um conflito desse tipo pressupõe, como todo conflito autêntico, uma identidade das determinações colidentes. Para princípios e máximas gerais, autorizações e simples determinações de competência, o caso é bem diferente do que para subsunções correspondentes ao tipo. Apenas a subsunção ao fato típico do regulamento da norma constitucional possibilita o juiz (não privar a lei ordinária de validade, mas, sim, como se expressa o tribunal do Reich) negar aplicação à lei ordinária ou, mais precisamente, subsumir, em vez de a seus fatos típicos, a aqueles da lei que tem primazia e, assim, decidir o caso presente. Na verdade, isso não é uma abjudicação da validade, mas uma não aplicação da lei ordinária ao caso concreto ocorrida devido à aplicação da norma constitucional. Por isso consta acertadamente em uma frase posterior da decisão (p.322/323) que o juiz estaria obrigado a deixar a lei “fora de aplicação”. De uma observação mais detalhada dessa frase já resulta que a vinculação do juiz à lei não se encontra

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em contradição com esse tipo de direito de exame judicial, mas é, antes, sua base e sua única justificação. Mas isso significa, ao mesmo tempo, que só normas que possibilitem uma subsunção conforme aos fatos determinam, no caso de conflito, a subsunção no lugar da lei ordinária, e não princípios gerais, autorizações, etc.411

A estratégia de Schmitt é considerar o controle de constitucionalidade nos moldes

americanos como adequado unicamente ao Estado americano, bem como interpretar o

controle de constitucionalidade continental como exclusivamente relacionado a um conflito

de subsunção possível: a decisão de constitucionalidade promanada de um tribunal deveria

se restringir a delimitar se é aplicável a um determinado caso concreto ou a lei ordinária, ou

a norma constitucional com a qual está supostamente em conflito. Esta decisão não poderia

nem mesmo suspender a validade da lei em face da Constituição, mas tão-somente decidir

judicialmente que, para aquele caso concreto, seria aplicável o texto constitucional, e não a

lei ordinária com ele em conflito. Tal procedimento, ao que parece, nem mesmo pode ser

adequadamente qualificado de controle de constitucionalidade, mas meramente como juízo

sobre a norma aplicável a uma determinada situação.

É por causa disto que Schmitt afirma, como citado pouco antes, que a idéia de que o

juiz decide “com base na lei” ocuparia para o constitucionalismo alemão o mesmo espaço

que a doutrina do due process of law ocupa para o constitucionalismo anglo-saxão. Na

medida em que é a doutrina do due processo f law que delimitaria, em sua perspectiva, o

campo de atuação do controle de constitucionalidade norte-americano, seria igualmente a

decisão “com base na lei” que delimitaria, e, principalmente, restringiria o exercício do

controle de constitucionalidade judicial na Alemanha, e, como se pode depreender de sua

“Teoria Constitucional”, no constitucionalismo continental como um todo.

Schmitt considera que qualquer interpretação constitucional, exercida por tribunais

vinculados ao poder judiciário, que exceda o limite da “decisão com base na lei” tornaria a

atuação do tribunal imediatamente política, legislativa e, possivelmente, marcada por um

agir soberano, que seria, nessa hipótese, necessariamente apócrifo. Toda essa questão

deriva, em último raciocínio, da separação que o autor traça entre Constituição e normas

411 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 23-24.

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constitucionais. O poder judiciário somente poderia decidir sobre conflitos entre leis

ordinárias e normas constitucionais, mas nunca sobre conflitos que envolvessem a

Constituição, ou seja, as decisões políticas fundamentais412 – porque, se assim o fizesse,

estaria invadindo o campo político reservado aos outros poderes. Por isso ele insiste que,

conquanto seja possível comparar a lei com a norma constitucional, tendo em vista a

construção de um juízo de subsunção sobre qual das duas normas seria aplicável a um caso

concreto, não é possível afirmar que da Constituição em si, das decisões políticas e das

regras de competência, seja possível derivar uma decisão propriamente jurídica – as

decisões tomadas a partir de tais elementos da Constituição não decorreriam logicamente

do texto, ao menos não como a sentença de um juiz deveria decorrer logicamente da lei.

Assim, Schmitt complementa seu raciocínio sobre as diferenças entre o controle de

constitucionalidade norte-americano e o alemão ressaltando os limites impostos à jurisdição

constitucional continental:

Por conseguinte, o direito de exame judicial ao qual recorre o tribunal do Reich leva apenas as características daquele direito de exame judicial de tribunais decisórios: ele é apenas “acessório” e apenas, como assinala H. Triepel, “jurisdição ocasional”; ele torna-se apenas ocasionalmente incidente a uma decisão judicial e, segundo as possibilidades, é exercido por qualquer juiz, ou seja, de forma difusa; seu efeito é o simples efeito como precedente da decisão de um supremo tribunal existente na Alemanha ainda ao lado de vários outros supremos tribunais do Reich e dos Estados. A diferença do direito de exame da justiça norte-americana reside principalmente no fato de que esse defende princípios gerais, tornando, assim, o tribunal guardião e

412 A isto Schmitt acrescenta que “Finalmente, resulta dos motivos da decisão dessa sentença de 4 de novembro de 1925 que o tribunal do Reich não pretende examinar as leis ordinárias do Reich no tocante a sua concordância com os princípios gerais da Constituição (diferentemente da concordância com determinações particulares da norma constitucional). Ele não reivindica nenhum exame geral de uma lei, o qual não tem em conta um fato típico subsumível da norma constitucional, no tocante a sua observância com o espírito da Constituição ou no tocante à observância dos princípios gerais que formam o componente de Estado de Direito da Constituição do Reich, a saber, direitos fundamentais e diferenciação dos poderes. Pelo contrário, a fundamentação atém-se cuidadosamente, para não falar formalmente, à normatização da norma constitucional e correspondente ao preceito jurídico, a qual, pelo seu tipo e sua estrutura lógica, possibilita uma confrontação com a lei ordinária. Sobretudo, não há segundo essa decisão nenhum exame judicial de uma lei no tocante a sua concordância com princípios jurídicos gerais como boa-fé, direito certo, razoabilidade (reasonableness, expediency) e noções semelhantes das quais se serve a prática do supremo tribunal dos Estados Unidos. Na decisão “Jurisprudência civil do Reich, vol. 118, p. 326/27” (J.W., 1928, p. 102 et seq.) consta até mesmo, expressamente, que o conceito dos bons costumes (artigo 826 do código civil) estaria destinado apenas para relações de direito privado e não seria aplicado na relação de direito público entre legislador e cidadão e o presidente do tribunal do Reich, Dr. Simons, comunicou, pelo visto aprovando totalmente, que as câmaras recusaram criticar, sob o ponto de vista do direito certo, uma norma originada constitucionalmente e se colocar, com isso, acima do “legislador soberano”. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 27.

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defensor da ordem social e econômica existente. Segundo os limites de seu direito de exame, expostos há pouco, o tribunal do Reich alemão não recorre de modo algum, nem distante, a uma posição desse tipo. Para esse direito de exame judicial trata-se, assim, de o ponto principal da decisão política permanecer situado na legislação. Toda justiça está vinculada a normas e cessa quando as próprias normas tornam-se em seu conteúdo duvidosas e discutíveis. Conseqüentemente, um Estado como o atual Reich alemão, o direito de exame judicial depende de normas que possibilitem uma subsunção correspondente ao fato típico. Existe uma segunda questão acerca de quão imaginável é dar, em território de direito privado, uma certa liberdade de movimento e margem de ação ao juiz para seu parecer por intermédio de conceitos indeterminados e gerais, por meio de referência à boa-fé ou ao uso comum. Condições relativamente estáveis e sólidas concepções sociais podem causar, aqui, uma suficiente mensurabilidade e vinculação. Também em território de direito público, principalmente em questões de direito administrativo e até mesmo de direito penal, são possíveis conceitos indeterminados, enquanto a situação que toda norma pressupõe puder encontrar uma formalização suficientemente clara e segura mediante as concepções dos colegas do direito ou da prática jurídica, mesmo sem a expressa decisão legislativa ou do governo. Em todos os casos, normas determináveis e mensuráveis que possibilitam subsunções têm que permanecer a base do exame judicial e da decisão. A vinculação a uma norma desse tipo é também o pressuposto e a condição de toda independência judicial. Caso o juiz abandone a base na qual realmente exista uma subsunção do fato típico a normas gerais e, com ela, uma vinculação material à lei, ele não mais pode ser juiz independente e nem um sinal de aparência de justiça pode protegê-lo dessa conclusão. “A vinculação à lei, unicamente à qual o juiz está subordinado pelo artigo 102, não significa apenas o limite, mas a verdadeira justificação para a liberdade da decisão, por causa do poder da lei que se impõe unicamente pela sentença, todas as outras vinculações têm que cair perante o juiz”. 413

A recusa de Schmitt ao modelo americano, ou seja, à possibilidade do controle de

constitucionalidade como exercido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, tem sua razão

de ser na recusa fundamental de se considerar a Constituição (a norma constitucional) como

uma lei superior e acima das demais. Apesar de o autor defender que existem normas

constitucionais, estas não esgotam o significado da Constituição – e, mesmo quando há o

conflito aceitável entre lei ordinária e norma constitucional, essa norma constitucional não

tem nem mesmo a força de invalidar a lei ordinária, mas tão-somente de afastar sua

aplicabilidade para um caso concreto específico, subsumindo-se o caso ao comando

constitucional.

413 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 28-29. É “extremamente curioso” observar em que medida Schmitt considera inadmissível a derivação de decisões jurídicas de princípios gerais constitucionais, mas considera tal derivação válida quando tais princípios se reportam ao direito administrativo ou penal. Não

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A isto corresponde uma perspectiva essencialmente política de Constituição – como

decisão fundamental da nação em contraste com uma possível conceituação jurídica – e

uma profunda rejeição da idéia de que o texto constitucional possa constituir uma instância

de autoridade superior à do poder legislativo ou executivo instaurados pela Constituição

política. Por isso Schmitt não aceita nem mesmo que uma norma constitucional possa

invalidar uma lei ordinária: a Constituição em si não é fonte de autoridade, não tem

autoridade para invalidar uma lei ou um ato promanados de intérpretes a princípio legítimos

da vontade da nação – esta sim a fonte última de autoridade. Neste sentido, a norma

constitucional não tem autoridade própria – e, como a autoridade do juiz depende de seu

vínculo com a lei, tampouco pode ser constitucionalmente autorizado a invalidar leis e atos

dos outros poderes414 – pois apenas o agir soberano poderia fazê-lo (agir este que não

deriva da Constituição, mas da vontade popular una e indivisível).

há, no texto, além do argumento de que existiria uma situação “social sólida e estável” nenhum outro motivo teórico que justifique essa diferenciação. 414 Há uma detalhada argumentação a respeito da impossibilidade de a norma constitucional ter autoridade para preservar a Constituição: “(...) Uma lei não pode ser guardiã de uma outra lei. A lei mais fraca não pode, obviamente, guardar ou garantir a mais forte. Mas, inversamente, por exemplo, deve a lei dificilmente emendável guardar a lei ordinária? Com isso, tudo seria transformado em seu oposto, pois se trata da proteção e da guarda da norma constitucional, mas não da lei ordinária, e o problema é exatamente proteger a lei dificilmente emendável contra alterações por uma lei ordinária. O problema não surgiria, caso uma norma pudesse se autoproteger normativamente. Uma norma vige mais forte, mais fraca ou tão fortemente quanto uma outra norma, entre as normas são possíveis contradições e colisões que devem ser solucionadas de alguma forma, uma norma pode repetir uma outra norma em seu conteúdo, ela pode lhe dar também um novo e fortalecido tipo de validade (é o caso quando uma lei ordinária é repetida como norma constitucional), uma norma pode introduzir novas conseqüências jurídicas, ameaças de punição, etc. (“sanção fortalecida”) e sempre podem ser criadas normas mais fortes e mais dificilmente emendáveis. Mas enquanto tudo transcorrer normativamente, não será possível alcançar uma proteção e uma garantia ainda mais forte por meio de uma norma suprema e mais forte, ainda que constitucional. Na pergunta pelo guardião da Constituição, trata-se da proteção da norma a mais forte perante uma norma mais fraca. (...) Se a justiça constitucional fosse uma justiça da norma constitucional sobre a lei ordinária, a justiça de uma norma enquanto tal projetar-se-ia sobre uma outra norma. Mas não há nenhuma justiça da norma sobre uma norma, pelo menos não, enquanto o conceito de “norma” manter uma certa precisão e a palavra não se tornar simplesmente uma expressão com dúzias de entradas secundárias, laterais e traseiras, ou seja, um veículo de ambigüidade ilimitada, para o que ela se presta, todavia, primorosamente. (...) Caso contrário, a noção de justiça constitucional como uma justiça de normas sobre normas não seria possível. Se com a palavra “justiça constitucional” deve ser designado um tipo de justiça que é determinada somente pelo tipo da lei utilizada como embasamento da decisão, então todo processo civil decidido com base no artigo 131 ou 153 da Constituição do Reich é justiça constitucional. Ou será que a Constituição (mais precisamente, a norma constitucional singular) deve ser objeto do processo? Uma lei que serve de base para a decisão processual não é objeto do processo, mas justamente embasamento para a decisão. (...) A aplicação de uma norma a uma outra norma é algo qualitativamente diferente do que a aplicação de uma norma a um fato e a subsunção de uma lei a uma outra lei (se é que é imaginável) algo essencialmente diferente do que subsunção de um tipo legal regulamentado à sua regulamentação. Se for averiguada uma contradição entre a lei ordinária e a norma constitucional e a lei ordinária declarada como nula, não se pode denominar como aplicação da norma constitucional à lei ordinária no mesmo sentido como o é a aplicação judicial da lei ao caso concreto. No primeiro caso, comparam-se umas normas as outras e,

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Desse ponto de vista, portanto, Schmitt defende que o poder judiciário somente

pode realizar interpretação constitucional quando esta se referir a um conflito concreto de

subsunção ou da lei ordinária ou da norma constitucional. As dúvidas de interpretação do

texto constitucional de natureza diversa, vinculadas a princípios gerais, direitos

fundamentais, competências e demais “decisões políticas fundamentais” não constituem

matéria judicial – ou seja, não podem se resolvidas “com base na lei”, e, portanto, não

devem ser solucionadas pelo poder judiciário, sob pena de sua politização. Isto porque, em

última instância, quem decide sobre as dúvidas de interpretação das decisões políticas

fundamentais atua, na prática, como legislador constitucional (ou, melhor, soberano):

(...) o interesse prático em uma decisão a respeito da colisão de leis não se dirige, em geral, a tais casos de uma contradição manifesta que, em tempos normais, não serão muito freqüentes, nem a uma posterior correção de infrações perpretadas no passado, mas à pergunta de tipo bem diferente acerca de quem decide dúvidas e diversidades de opinião a respeito se existe ou não uma contradição e até que ponto ela existe. (...) Aqui reside, nos mais difíceis e praticamente mais importantes casos, a obscuridade ou a contradição até mesmo dentro das próprias determinações da norma constitucional, as quais são em si obscuras e contraditórias por se basearem em uma justaposição desconexa de princípios contraditórios. Aqui também termina, evidentemente, a possibilidade de se simular uma gradação de normas e, se uma determinação da norma constitucional determina algo diferente de uma outra (...), a colisão não pode ser resolvida por meio da idéia de uma “hierarquia” das normas. Mas mesmo em outros casos de dúvidas e diversidades de opinião sobre a pergunta se existe uma contradição entre norma constitucional e lei ordinária, não se chega a subsunções correspondentes ao tipo no sentido de verdadeira justiça, porque a dúvida sempre só diz respeito ao conteúdo da norma constitucional. (...) Mesmo no caso de decisão de dúvidas e diversidades de opinião a respeito de existir ou não uma contradição entre duas normas, não se aplica uma das normas às outras, e, sim – pelas dúvidas e divergências de opinião só dizerem respeito ao conteúdo da norma constitucional – na verdade um conteúdo normativo duvidoso é colocado fora de dúvida e fixado de forma

quando de colisões e contradições possíveis por diversos motivos, uma norma suprime a outra. No segundo caso, quando da aplicação judicial da lei a um determinado fato, um caso concreto é subsumido aos conceitos gerais (e ao “tipo” legal). (...) se o conteúdo de uma das leis é confrontado com o conteúdo da outra, se uma colisão ou contradição é averiguada e se surge a questão sobre qual das duas leis contraditórias entre si deve valer, então regras gerais são comparadas umas às outras, mas não subsumidas ou aplicadas. (...) Esse claríssimo caso de uma colisão de normas mostra, assim, que a primazia tipicamente judicial da decisão judicial obtida por subsunção correspondente ao tipo não existe de forma alguma na decisão de uma colisão de normas. Não há em absoluto subsunção, sendo apenas averiguada uma contradição e, depois, decidido qual das normas que se contradizem deva valer e qual deva permanecer “fora de aplicação”. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 60-63. Todo esse raciocínio está evidentemente correto – é a completa recusa de Schmitt em aceitar a possibilidade da judicial review americana, bem como o ar de absurdo que ele dá à questão, que somente podem ser compreendidos tendo em vista os pressupostos teóricos específicos desse autor.

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autêntica. Isso conduz à remoção da obscuridade sobre o conteúdo de norma constitucional e, por conseguinte, da definição de conteúdo legal, logo, de legislação, até mesmo de Constituição, mas não de justiça. Sempre resulta a mesma e óbvia alternativa, de que ou existe uma contradição manifesta e indubitável contra determinações da norma constitucional, em que, então, o tribunal pune essa infração ao comprová-la, formal e expressamente, no modo de uma justiça penal vindicativa, ou a dúvida sobre o conteúdo de uma norma é tão justificada e a norma em sua matéria é tão obscura, que também não pode ser falado em uma violação quando o tribunal tem uma outra concepção sobre o legislador ou sobre o governo, cujas prescrições se encontram em contradição com a duvidosa norma constitucional. No último caso fica claro que a decisão do tribunal não tem outro sentido a não ser o de uma interpretação autêntica. (...) Isso corresponde à natureza da coisa e é acertado para todos os casos de uma instância determinadora, dessa forma, do conteúdo normativo de um preceito, não importando se essa instância está organizada como tribunal ou algo diferente, se decide no procedimento judicial ou não. Toda instância que coloca, autenticamente, um conteúdo legal duvidoso fora de dúvida, atua no caso como legislador. Caso ela coloque o conteúdo duvidoso de uma norma constitucional fora de dúvida, então ela atua como legislador constitucional.415

Nessa linha de raciocínio, portanto, Carl Schmitt argumenta, em linhas gerais, que a

“justiça constitucional” não é efetivamente um problema jurídico cuja solução deva ser

dada pelo poder judiciário, mas sim um problema central da política, vinculado à

interpretação da Constituição como a decisão política do povo alemão pela homogeneidade,

e não como mera estrutura formalista de sobreposição hierárquica de normas. Logo, a

competência das decisões políticas acerca dos conflitos constitucionais, na Constituição da

República de Weimar, não competiria e nem poderia competir ao Tribunal do Estado para o

415 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 64-67. Não há dúvidas, ademais, de que Schmitt interpreta esse tipo de atuação judiciária como autoritária. Ele trata da questão ao abordar o problema do decisionismo judicial: “(...) em toda decisão, mesmo na de um tribunal que decide um processo subsumindo de maneira correspondente ao tipo, reside um elemento de pura decisão que não pode ser derivado do conteúdo da norma. A isso designei “decisionismo”. Mesmo um tribunal exercendo seu direito de exame tão-só acessoriamente, é visível esse elemento decisionista. Se tivermos cuidado de consultar, por exemplo, a obra de Warren sobre a história do supremo tribunal dos Estados Unidos, encontraremos em todas as importantes decisões desse tribunal argumentações oscilantes e fortes minorias de juízes discordantes e vencidos por maioria de votos, assim surgem as chamadas “decisões de cinco contra quatro” ou mesmo “decisões de uma só pessoa” e são criticadas, talvez, exageradamente. Com isso termina, em todo caso, a ingênua crença de que o arrazoamento de tais decisões não teria outro sentido senão o de transformar, doravante, uma inconstitucionalidade até então duvidosa em uma inconstitucionalidade óbvia para todo mundo. O sentido não é uma argumentação dominante, mas justamente uma decisão por meio da eliminação autoritária da dúvida. Mas ainda muito mais forte e mais essencial é o caráter decisionista de toda sentença de uma instância, cuja função específica seja dirimir dúvidas, inseguranças e divergências de opiniões. Aqui, o elemento decisionista não é apenas uma parte da decisão que se junta ao elemento normativo visando possibilitar, no geral, uma res judicata, a decisão como tal é, antes, o sentido e a finalidade da sentença e seu valor não reside em uma argumentação dominante, mas na eliminação autoritária da dúvida surgida exatamente das muitas possíveis argumentações contradizendo-se mutuamente.” (p. 67-68).

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Reich Alemão, como sugeria a doutrina de Kelsen e o modelo constitucionalista norte-

americano.

A solução de Schmitt para o problema se concentra no argumento de que a tarefa de

“Guardião da Constituição” – ou seja, de intérprete final e autêntico da Constituição – teria

sido constitucionalmente atribuída à figura política na qual se manifesta o princípio

democrático (princípio este que termina por igualmente legitimar a sua atuação) – ou seja, o

Presidente do Reich. Nesse sentido, o Presidente do Reich poderia funcionar como

instância neutra (poder neutro416) – em verdade, autoritária – apta a dirimir as dúvidas

constitucionais surgidas na vida político-jurídica da República de Weimar:

(...) No geral, aquela pergunta de Seydel sobre o que restaria, caso se subtraísse do régner o gouverner, pode ser respondida com o fato de que o chefe de Estado em semelhante Constituição representa a continuidade e a

416 “As divergências de opinião e diferenças entre os titulares de direitos políticos de decisão e influência não podem ser decididas, no geral, judicialmente, caso não seja exatamente o caso de punição por violações constitucionais abertas. Elas são eliminadas ou por meio de um poder político situado acima das opiniões divergentes, isto é, por intermédio de um terceiro superior – mas isso não seria, então, o guardião da Constituição, e, sim, o senhor soberano do Estado, ou então são conciliadas ou resolvidas por meio de um órgão não em uma relação de subordinação, mas de coordenação, isto é, por meio de um terceiro neutro – este é o sentido de um poder neutro, de um pouvoir neutre et intermédiaire, localizado não acima, e, sim, ao lado dos outros poderes constitucionais, mas dotado de poderes e possibilidades de ação singulares. Caso não deva ocorrer um efeito secundário meramente acessório de outras atividades estatais, mas, sim, devam ser organizadas uma instituição e uma instância especiais, cuja tarefa seja assegurar o funcionamento constitucional dos diversos poderes e salvaguardar a Constituição, então é conseqüente em um Estado de direito, onde há diferenciação dos poderes, não confiar isso, suplementarmente, a nenhum dos poderes existentes, pois senão obteria apenas um sobrepeso perante os demais e poderia ele próprio se esquivar do controle. Ele tornar-se-ia, por meio disso, senhor da Constituição. (...) Na história constitucional do século XIX surge, com Benjamin Constant, uma teoria especial do pouvoir neutre, intermédiaire e régulateur na luta pela burguesia francesa por uma Constituição liberal contra o bonapartismo e restauração monárquica. (...) Ela baseia-se em uma instituição política que reconhece claramente no Estado constitucional a posição do rei ou do presidente de Estado, manifestando-se mediante uma fórmula exata. (...) O valor prático da teoria da posição do chefe de Estado neutra, intermediária, reguladora e defensora reside primeiramente no fato de que, doravante, pode ser respondida a pergunta sobre qual o significado do chefe de Estado em Estado civil de direito, seja ele monarquia constitucional ou democracia constitucional, e qual o sentido de seus poderes, se o poder de legislar fica totalmente com as câmaras, se os ministros nomeados pelo chefe de Estado são totalmente dependentes da confiança das corporações legislativas, se o próprio chefe de Estado está vinculado em tudo à confirmação dos ministros e se, por conseguinte, se puder dele dizer: il règne et ne gouverne pás. Na Alemanha, a diferenciação entre régner e gouverner não foi compreendida nem de forma teórica, pois a diferenciação entre auctoritas e potestas estava há muito esquecida (...).”SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 193-197. Schmitt considerava o Poder Moderador previsto na Constituição brasileira de 1824 como um modelo de emprego prático da idéia do poder neutro. Há, de toda forma, grande incongruência na afirmação de que o papel de Guardião da Constituição não pode ser atribuído a um dos três poderes, paralelamente à completa ausência de menção ao raciocínio de que o rei ou o presidente podem ser considerados, em diversos exemplos históricos concretos, como chefes do poder executivo (mesmo em regimes parlamentaristas).

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permanência da unidade estatal e de seu funcionamento uniforme, transcendendo as competências a ele atribuídas, e que, por motivos da continuidade, da reputação moral e da confiança geral, tem que ter um tipo especial de autoridade, a qual faz parte da vida de cada Estado, assim como o poder e poder de comando que se tornam diariamente ativos. Isso é de especial interesse para a teoria do poder neutro, porque a função peculiar do terceiro neutro não consiste em atividade contínua de comando e regulamentar, mas, primeiramente, apenas intermediária, defensora e reguladora, e só é ativa em caso de emergência e, ademais, porque ela não deve concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder e também não tem que normalmente estar, em seu exercício, de acordo com a natureza do assunto, discreta e morosa. Apesar disso, ela existe e é indispensável, pelo menos no sistema do Estado de direito com diferenciação dos poderes. Aqui ela é, como já sabia Benjamin Constant, mesmo que essa parte de sua teoria tenha passado despercebida, um pouvoir préservateur, um “poder preservador”. Evidentemente, tal posição autoritária compete tanto quanto competiu para seu reconhecimento e formulação a intuição de Benjamin Constant, o qual assinalou, com essa teoria, a posição do chefe de Estado em geral e manteve viva uma antiga sabedoria, fundada na tradição da estrutura estatal romana. (...) Conforme o direito positivo da Constituição de Weimar, a posição do presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo, só pode ser construída com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, intermediário, regulador e preservador.417

Os paralelos teóricos com a explicação de Hannah Arendt sobre o modelo

constitucionalista americano saltam à vista. A Suprema Corte é o intérprete da

Constituição, autoridade responsável pela preservação e atualização da comunidade

político-jurídica. Em contraste, o presidente do Reich seria o poder neutro, a autoridade

responsável pela “continuidade e a permanência da unidade estatal e de seu funcionamento

uniforme”. A Suprema Corte seria a adaptação da autoridade romana que residia no Senado

para a realidade política americana. A seu turno, Schmitt descreve o poder neutro do

presidente do Reich como continuador da autoridade estatal romana418.

Pode-se concluir, portanto, que Schmitt apresenta o presidente do Reich como a

autoridade legitimamente responsável pela interpretação da Constituição – e pela decisão,

em última instância, sobre o sentido da Constituição. Ele não seria soberano, ou seja,

417 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 199-201. 418 Ele não especifica se menciona a autoridade do Senado, ou a autoridade imperial (que seria auctoritas principis). O posterior apoio do regime nazista e da figura do Fürher leva a crer que Schmitt pensava nos imperadores, e não no Senado. Por outro lado, ao menos em O Guardião da Constituição, o autor revela alguma preocupação em evitar que o chefe de Estado se converta em soberano, defendendo que a ele compete exclusivamente régner, mas não gouverner. A situação histórica deve ter-lhe feito mudar de idéia – e, pouco depois, mudar de novo.

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senhor da Constituição, por funcionar exclusivamente como poder neutro paralelo aos

demais poderes, e, principalmente, por ser detentor apenas de auctoritas, mas não de

potestas. Logo, poderia ser caracterizado como autoridade soberana, mas não como

soberano. Sua legitimidade decorreria, como necessariamente deveria decorrer à luz dos

pressupostos teóricos de Schmitt, de seu vínculo estabelecido democraticamente com a

vontade una e indivisível do povo alemão:

(...) Mas, de resto, é de grande importância que tanto a independência do funcionário de carreira quanto a independência do deputado parlamentar e, por fim, também a posição do chefe de Estado, protegida por uma difícil revocabilidade e por privilégios especiais, estejam estritamente ligadas com a idéia do todo da unidade política. A Constituição de Weimar diz: (...) “O presidente do parlamento do Reich é eleito pela totalidade do povo alemão” (artigo 41) e representa o Reich alemão no exterior (artigo 45). A referência à totalidade da unidade política sempre contém uma oposição aos agrupamentos pluralistas da vida social e econômica e deve provocar uma superioridade sobre semelhantes agrupamentos. (...) É só em uma relação de comparação entre tais determinações que se distingue a posição que compete ao presidente do Reich de acordo com a Constituição de Weimar. O presidente do Reich encontra-se no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidárias, construído sobre uma base plebiscitária. (...) Antes que se institua, então, para questões e conflitos relativos à alta política, um tribunal como guardião da Constituição e, por meio de tais politizações, se onere e coloque em risco a justiça, dever-se-ia, primeiramente, lembrar desse conteúdo positivo da Constituição de Weimar e de seu sistema constitucional. Consoante o presente conteúdo da Constituição de Weimar, já existe um guardião da Constituição, a saber, o Presidente do Reich. Tanto o elemento relativamente estático e permanente (...), quanto o tipo de seus poderes (...) têm o objetivo de criar um órgão político-partidariamente neutro devido a sua relação direta com a totalidade estatal, o qual, como tal, é o defensor e guardião da situação constitucional e do funcionamento constitucional das supremas instâncias jurídicas e, em caso de necessidade, está dotado de poderes eficientes para uma proteção efetiva à Constituição. É expressamente determinado pelo artigo 42 que por meio de seu juramento o Presidente do Reich “defenderá a Constituição”. O juramento político sobre a Constituição faz parte, segundo a tradição do direito constitucional alemão, da “garantia da Constituição” e o texto escrito do regulamento constitucional vigente qualifica o Presidente do Reich, de forma nítida o suficiente, de guardião da Constituição. (...) O fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar. O presidente do Reich é eleito pela totalidade do povo alemão e seus poderes políticos perante as instâncias legislativas (especialmente dissolução do parlamento do Reich e instituição de um plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um “apelo ao povo”. Por tornar o presidente do Reich o centro de um sistema de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar, justamente a partir dos princípios democráticos, um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como uma totalidade

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política. Talvez se possa duvidar de que, com o tempo, será possível privar a posição do presidente do Reich do funcionamento político-partidário e mantê-la em uma objetividade e neutralidade imparciais, determinadas a partir da totalidade estatal. (...) Em todo caso, a Constituição de Weimar empreende sua tentativa de maneira muito consciente, mais precisamente com meios especificamente democráticos. Ela pressupõe todo o povo alemão como uma unidade capaz de ação direta, não mediada só por organizações sociais em grupos, que pode expressar sua vontade e que, no momento, da decisão, despreza as divisões pluralistas, possa se exprimir e se fazer respeitar. A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de se unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. (...) 419

A figura do chefe de Estado como “apresentante” democrático da vontade una e

indivisível de um povo é, essencialmente, uma figura biopolítica – ela é o gérmen do líder

carismático que eventualmente ascenderá no fascismo e no nazismo. À idéia de vontade

política una e indivisível de uma totalidade corresponde a possibilidade de definição do

valor e do desvalor da vida, bem como a incessante produção e re-produção bio e

tanatopolítica de um povo. Neste momento teórico, Schmitt ainda sustenta que o poder

neutro do chefe de Estado deve se limitar a uma espécie de autoridade – autoridade esta

que, todavia, tem a possibilidade de suspender a ordem jurídica; circunstância que, pela

própria definição de Schmitt, já a torna soberana. Logo, o presidente do Reich, mesmo

antes do Führer, era já, de um ponto de vista teórico lógico, o soberano biopolítico.

Ora, conforme já debatido, na estrutura moderna clássica proposta por Agamben, a

auctoritas pertence ao poder legislativo, e a potestas ao poder executivo – tal cenário

garante o funcionamento mais ou menos eficaz da política e do direito, sem a

implementação radical de uma situação de exceção permanente. Com a passagem da

auctoritas para o executivo, forma-se a possibilidade de instauração de uma auctoritas

principis na figura do chefe de Estado, cuja conseqüência prática e potencial é a transição

da democracia (ou parlamentarismo, caso se prefira) para o regime do chefe carismático, no

qual a exceção se torna regra.

419 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 231-234. Neste ponto, é importante salientar que a idéia de que o presidente do Reich é eleito democraticamente pela totalidade do povo alemão – e não por uma simples maioria de votos – não passa de uma ficção jurídica que Schmitt não tem intenção de desconstruir, ingenuamente haurida de uma interpretação literal do texto da Constituição de Weimar. As origens teóricas profundas de tal perspectiva, todavia, remontam ao conceito de “vontade geral” (evidentemente, una,

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Agamben assinala, com razão, a impossibilidade, dentro da perspectiva de Schmitt,

em se diferenciar a soberania do poder constituinte (apesar de Schmitt pretender definir

uma diferença). Se, na prática, os dois conceitos se confundem, e soberano é quem decide

sobre o estado de exceção, então a decisão final acerca do significado do que foi instituído

pelo poder constituinte, ou seja, pelo próprio soberano, é lógica e necessariamente também

uma atribuição do soberano (o soberano decide o que é a decisão soberana, a decisão

constituinte, que instaurou a Constituição), pois, do contrário, não caberia a ele a

possibilidade de implementar a exceção, nem de normatizar em última instância a

normalidade média dos fatos da vida que constitui o ordenamento jurídico. Ao chefe de

Estado compete a interpretação autêntica da Constituição – ora, a conclusão, não levada a

cabo por Schmitt, é a de que o presidente do Reich atuaria como legislador

constitucional420.

Não é à toa, portanto, que a doutrina da Fühertum, tão explorada e explicada por

Agamben como a base e conseqüência lógica da biopolítica na modernidade, e que articula

a perspectiva da autoridade do chefe carismático com a soberania, a exceção e o problema

da raça e do povo, tem seus antecedentes teóricos justamente na perspectiva schmittiana ora

apresentada sobre o guardião da Constituição. O chefe carismático é, em última instância, o

soberano, o poder constituinte, o elemento biopolítico central do funcionamento da

suspensão da ordem jurídica, porque é ele que, ao final, decide sobre o sentido da

Constituição – podendo ele próprio, eventualmente, converter-se em “lei viva”, ou seja,

instaurar uma situação na qual a sua mera palavra constitui já ao ser proferida a

Constituição.

É curioso como Agamben, apesar de se debruçar incansavelmente sobre a estrutura

do direito ocidental, e de se aprofundar na análise dos efeitos e das conseqüências

biopolíticas da emergência dos direitos humanos, não se debruça igual e detidamente sobre

as Constituições e o Direito Constitucional. Parece, em seu texto, que as Constituições se

indivisível e pertencente à nação) proposto por Rousseau, que é assumido por Schmitt como único critério democrático válido. 420 Acusação que, entretanto, ele não teme fazer a um tribunal constitucional.

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resumem a textos jurídicos similares a quaisquer outras normas, que, na modernidade,

encampam os direitos dos cidadãos e a problemática da inclusão do nascimento no corpo

estatal. Apesar de analisar a dicotomia entre poder constituinte e poder constituído, não há

em sua obra um enfoque específico sobre a Constituição. Entretanto, o papel da

Constituição na modernidade, e, especificamente, o papel da Constituição para o problema

da exceção e da biopolítica, é, como se tem visto, muito mais amplo e fundamental do que

isto.

Em primeiro lugar, porque é na Constituição que se desenvolve a complexa

dicotomia entre poder constituinte e poder constituído. Esta dicotomia pode ser interpretada

como a questão central na relação entre soberano (poder constituinte), que decide sobre a

exceção, e o ordenamento jurídico normal (do qual deriva, ou em muitos casos, com o qual

coincide, o poder constituído), que pode ser suspenso pelo soberano. Em segundo lugar,

porque é no texto constitucional que está prevista a exceção formal, inclusive com a

possibilidade de se excepcionar a própria Constituição. É importante notar que a suspensão

da Constituição não é idêntica à suspensão do ordenamento jurídico – a suspensão da

Constituição equivale, ao mesmo tempo, à suspensão do ordenamento jurídico e à

suspensão do texto que funda e fundamenta o ordenamento jurídico (suspensão do direito e

suspensão do que possibilita a normalidade do direito).

Eis aí, ao que parece, a chave para compreensão do problema que vem sendo

discutido sobre as carências no texto de Agamben. Entre a exceção absoluta e a

normalidade da vigência do ordenamento jurídico, há a mediação da Constituição, enquanto

elemento que dá validade e vigência ao ordenamento jurídico, ao poder constituído. Não à

toa, a Constituição, como resultado do poder constituinte, parece ser ela própria soberana,

pois ela é, na modernidade, o produto final da realização da potência de não ser do poder

constituinte soberano em sua conversão provisória em um texto constituído. O ordenamento

jurídico, uma norma, uma lei específica, somente são válidos se forem válidos por e pela

Constituição. É nessa mediação constitucional entre exceção e normalidade que se insere a

exceção generalizada e informal presente nas democracias atuais.

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Volte-se à estrutura teórica proposta, originada da reflexão sobre Schmitt. A idéia é

a de que o chefe carismático, detentor da auctoritas principis, representa e convalida a

unidade do povo alemão, sua homogeneidade racial. O chefe, como soberano, e por deter

este tipo especial de autoridade, é uma lei viva: sua presença dispensa a efetiva existência

de uma Constituição, pois ele é o poder constituinte permanente, que se mantém sempre em

suspenso, sem realizar a potência de não ser em um texto constitucional. Sua pessoa, por

fim, é a fiadora da comunidade política alemã, e é sua soberania que sustenta uma situação

de exceção permanente vinculada ao paradigma biopolítico do campo de concentração. A

Constituição é a decisão política que funda a comunidade político-jurídica; mas o chefe

carismático é a vida que funda a comunidade política, por ser o emblema de sua vontade

una, indivisível e total.

O Führer, portanto, sua pessoa, é o “elemento institucional” que permite a

suspensão indefinida do direito – ele é o auctor da exceção permanente que se instaura no

regime nazista. Seu antecessor teórico, o presidente do Reich – importante não esquecer

que Hitler instaurou a exceção nazista com fundamento na Constituição de Weimar – a

despeito de não poder ser precisamente qualificado como “chefe carismático”, nem como

fundamento final da comunidade política alemã, deve necessariamente deter a interpretação

final sobre o quê significa a Constituição alemã. Do contrário, a ele não pertenceria a

soberania que Schmitt visava garantir ao “futuro” Fürher (ao poder executivo?). A

diferença teórica (e prática, em verdade) é a de que enquanto o chefe carismático é

soberano em sua própria pessoa, por ser ele lei viva, o presidente do Reich é soberano –

autoridade soberana, relembrando a distinção feita algumas páginas atrás – porque caberia a

ele a interpretação final sobre o significado da Constituição, ou, mais tecnicamente, sobre o

“signo” da Constituição.

Entretanto, a formatação totalitária e nazista da biopolítica foi historicamente

derrotada (a despeito de alguns resquícios), e, atualmente, vigora a formatação democrática

da biopolítica. Até mesmo o modelo constitucional de legitimação continental-francês, cuja

apresentação clássica última é justamente a de Schmitt, não subsiste em nenhuma

democracia ocidental sem ter sofrido grande influência do modelo constitucionalista norte-

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americano. A disputa entre Kelsen e Schmitt – ou entre os modelos americano e francês – é,

portanto, a disputa sobre se a interpretação final do signo da Constituição pertence ao

executivo, ou quem quer que seja o intérprete legítimo da vontade da nação, ou a uma Corte

Constitucional, como intérprete legítima do texto constitucional, autorizada a tanto pela

Constituição.

É mais do que evidente, neste momento, que o que está em jogo reporta-se

diretamente ao controle de constitucionalidade, ou, mais especificamente, ao que se

costuma chamar de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. O que se pode

dizer, então, é que o soberano é quem decide sobre a exceção, mas é também quem decide

sobre o signo da Constituição, sobre os sentidos do significante Constitucional – pois é na

interpretação do “E-R-C” constitucional que pode ser inserida a suspensão de qualquer

norma, do ordenamento jurídico – em cotejo interpretativo com a Constituição – ou da

própria Constituição como um todo.

Observa-se que, no debate entre Kelsen e Schmitt, prevalece, hoje, o modelo

kelseniano, em que a jurisdição constitucional concentrada e abstrata é atribuída, na grande

maioria das democracias atuais, a uma Corte Constitucional. A definição do signo

constitucional, que em Schmitt pertencia primeiro e institucionalmente ao presidente do

Reich, e, posteriormente, à pessoa viva do Führer, ele próprio “Constituição”, em Kelsen, e

no modelo norte-americano, é atribuição da Corte Constitucional. Apesar disso, será

possível dizer, desde já, que assim como a vida nua é produzida no modelo do chefe

carismático, ela também é igualmente produzida nas atuais democracias constitucionais,

nas quais o papel de intérprete da Constituição é exercido por uma Corte Suprema, e não

por um líder carismático? E, ainda, é também possível concluir, desde já, que o poder

judiciário, especificamente o seu órgão responsável pelo controle concentrado de

constitucionalidade, é soberano, ou detém, ao menos, autoridade soberana?

É preciso ter calma, e alguma paciência, neste ponto. À análise das conclusões

finais que podem ser retiradas do modelo constitucionalista continental, em sua

interpretação última dada por Schmitt, deve-se acrescentar igualmente uma análise paralela

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do modelo constitucionalista americano, e, principalmente, do amálmaga dos dois modelos

que usualmente vige na grande maioria das democracias contemporâneas, nas quais se

confundem elementos continentais e americanos, misturados. Apenas a partir de tal

avaliação será possível traçar uma interpretação coerente da posição do poder judiciário e

das Cortes Supremas à luz da teoria biopolítica elaborada por Agamben.

De início, é importante ressaltar que, na presente análise, a usual distinção entre

controle de constitucionalidade difuso e controle de constitucionalidade concentrado não

segue a interpretação normalmente dada a essas duas formas institucionais. Para o ponto de

vista adotado, o controle de constitucionalidade difuso representa um sistema de controle

de constitucionalidade no qual qualquer juiz pode decidir acerca da constitucionalidade de

atos e fatos concretos, mas a decisão de nenhum juiz pode se impor potencialmente à

decisão futura dos demais. Essa conceituação se opõe especificamente à idéia de controle

concentrado de constitucionalidade, ou seja, ao modelo institucional no qual uma Corte

Suprema pode decidir de modo vinculante e definitivo para todo o resto do poder judiciário,

sobre o sentido de uma determinada interpretação constitucional – independentemente de

os demais juízes também poderem exercer o controle de constitucionalidade, antes da

decisão final e vinculante da Corte Suprema421.

Para as considerações da presente tese, portanto, há controle de constitucionalidade

concentrado mesmo quando o controle de constitucionalidade é atribuição de todo o poder

judiciário, desde que as decisões da Corte Suprema vinculem ou possam vincular

necessariamente os demais juízes e tribunais. E haveria controle de constitucionalidade

difuso apenas quando, além de todos os juízes poderem exercer o controle de

constitucionalidade, as decisões de uma eventual Corte Suprema não tivessem nenhuma

força vinculante sobre o restante do poder judiciário. Sob essa perspectiva, é duvidoso que

tenha existido, algum dia, controle de constitucionalidade difuso “puro”.

421 Logo, e por ora, tanto faz para a análise que se segue, se em uma formatação institucional concreta o controle de constitucionalidade pertence a todo o judiciário ou é exclusivo de uma Corte Suprema. Em verdade, ver-se-á mais à frente que em determinadas circunstâncias a possibilidade geral do controle de constitucionalidade pode ser biopoliticamente mais “eficaz” que um modelo concentrado puro.

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Esqueça-se a atividade de subsunção tipicamente exercida pelo poder judiciário,

vinculada à decisão sobre se um ato ou fato concreto se insere ou não no tipo legal, para se

apreciar especificamente em que medida o poder judiciário realiza a interpretação

constitucional, isto é, exerce controle de constitucionalidade422. Arbitrariamente, organize-

se uma lista dos modos estruturais típicos de realização do controle de constitucionalidade:

a) Uma situação concreta entre dois ou mais particulares é questionada à luz da

Constituição – o poder judiciário decide acerca de qual lado da questão é correto, ou, em

outras palavras, qual interesse jurídico está validado, e, portanto, constitucionalmente

autorizado. Evidentemente, os eventuais outros lados serão inconstitucionais. Tal

questionamento pode ocorrer tanto de um ponto de vista formal (procedimental) quanto

material. Exemplo: análise de um contrato que tenha uma cláusula questionável à luz de um

direito fundamental encampado pelo texto constitucional.

b) Um ato ou fato vinculado ao poder legislativo ou executivo (ou até mesmo

judiciário), em face de um ou mais particulares, é questionado à luz da Constituição – o

poder judiciário decide se o ato ou fato é constitucional, ou não. O ato ou fato pode tanto

ser comissivo quanto omissivo, ou seja, tanto uma ação quanto uma omissão. Igualmente, o

questionamento pode ocorrer tanto de um ponto de vista formal quanto material. Exemplo:

a utilização de algemas em um ato de prisão concreto de um determinado indivíduo.

c) Um ato ou fato vinculado a um dos poderes, em face de um ou mais dos outros

poderes, é questionado à luz da Constituição – o poder judiciário decide se o ato ou fato é

constitucional, ou não. Tal conflito pode ser inclusive interno a um dos poderes. O ato ou

fato pode tanto ser comissivo quanto omissivo, isto é, tanto uma ação quanto uma omissão.

Igualmente, o questionamento pode ocorrer tanto de um ponto de vista formal quanto

422 Nesse aspecto, a proposta de Schmitt de fato não prevaleceu de modo nenhum. O juízo de constitucionalidade de uma lei ordinária não implica meramente a discussão acerca da aplicabilidade ou não de uma lei ao caso concreto, em face de uma norma constitucional, mas sim em um efetivo julgamento da validade da lei ordinária frente ao texto constitucional. Mesmo no controle de constitucionalidade “difuso” de um juiz singular, sua decisão declara a lei ordinária como constitucional (válida) ou como inconstitucional (inválida) para o caso concreto submetido à sua apreciação, e não como meramente aplicável ou não aplicável. O juízo de constitucionalidade, portanto e atualmente, não se aproxima substancialmente do juízo de subsunção, conquanto tome emprestado muito de sua técnica jurídica e discursiva.

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material. Exemplo: conflitos de atribuições e competências entre os poderes, ou ainda, entre

as esferas federal e estadual em uma Federação.

d) Uma lei emanada de qualquer um dos poderes é questionada à luz da

Constituição – o poder judiciário decide se a lei é ou não constitucional423. A este tipo de

controle costuma-se chamar de abstrato, em oposição ao controle incidente, que se ajusta

aos exemplos anteriores, que dependem de uma situação concreta para ser realizado. Em

Estados diferentes, existem entes políticos diversos e variados legitimados a questionar a

constitucionalidade de uma lei, mas, de todo modo, é importante frisar que em sistemas nos

quais todo o poder judiciário pode exercer o controle de constitucionalidade, tal atribuição,

ao menos em concreto e para a situação de interesse, pertence potencialmente a qualquer

cidadão (neste caso, ainda assim, todavia, o questionamento seria feito “em abstrato para

um caso concreto”). De toda forma, o questionamento também pode ocorrer tanto de um

ponto de vista formal quanto material. Exemplo óbvio: o questionamento da

constitucionalidade de uma lei.

e) Uma emenda constitucional – e, em alguns Estados, uma parte do texto

constitucional424 – é questionada à luz da Constituição. As mesmas reflexões do item

anterior podem ser reproduzidas aqui, acrescentando-se que, em geral, emendas

constitucionais somente podem ser questionadas, de um ponto de vista material, à luz de

cláusulas constitucionais pétreas ou dos chamados direitos fundamentais. Exemplo: o

questionamento da constitucionalidade de uma emenda constitucional ou de um trecho de

uma Constituição.

Sublinhe-se ainda, à luz das preocupações trazidas por Schmitt, que nos exemplos

dos itens “d” e “e” o questionamento da constitucionalidade tanto pode se realizar pela

existência de um conflito específico entre normas, quanto pela existência de dúvidas sobre

423 Evidentemente, existem nuances, que serão discutidas mais à frente. 424 A Suprema Corte canadense, por exemplo, aceita a tese de que podem existir determinações constitucionais inconstitucionais. Tal controle depende, de todo modo, da articulação de uma teoria que considere que há partes do texto constitucional hierarquicamente superiores ao restante do texto. Tal superioridade é usualmente atribuída aos artigos que tratam dos direitos fundamentais e da estrutura política básica do Estado.

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o sentido de princípios e regras de competência constitucionais. Schmitt não faz a distinção

de modo claro, mas esse último tipo de conflito pode se apresentar em duas modalidades

distintas: dúvida sobre se há um conflito entre norma e princípio ou competência; e dúvida

sobre o sentido do princípio ou da competência. Conquanto essa diferenciação seja

importantíssima para Schmitt, ela concretamente não significa muito para o funcionamento

contemporâneo do controle de constitucionalidade judiciário, que não está mais focado no

problema da subsunção típica.

Atualmente, a maior parte das Cortes Supremas dos Estados ocidentais, inspiradas

pelo modelo americano, adotou a possibilidade de apreciar, de algum modo, a

constitucionalidade de qualquer questão, divergência ou conflito425. Curiosamente, todavia,

enquanto a Suprema Corte americana não exerce um controle de constitucionalidade

abstrato originário – porque, mesmo quando julga a constitucionalidade em tese de uma lei,

o faz incidentalmente a partir de um caso concreto que lhe chega pela via recursal426 – a

maior parte das Cortes Constitucionais atua ora como avaliadora recursal e incidental de

constitucionalidade427, ora como avaliadora originária e abstrata de constitucionalidade de

uma lei.

Em geral, as Cortes Supremas contemporâneas apreciam, como instância originária,

o problema de constitucionalidade mencionado nos itens “d” e “e”, e, em alguns modelos

institucionais, também o do item “c”. Via de regra, porém, os questionamentos dos itens

“a”, “b” e “c” chegam até ela pela via recursal – com a já mencionada exceção da Suprema

425 Contrariando, desse modo, todas as expectativas e esperanças de Schmitt. 426 A Suprema Corte americana, portanto, decide em via incidental e recursal – ou seja, decide a partir do caso concreto – mas muitas vezes o faz de modo abstrato, e, sempre, erga omnes, isto é, com a extensão da validade impositiva do precedente para todo o poder judiciário e, em verdade, os demais poderes. A possibilidade de extensão dos efeitos de uma decisão concreta e incidental – mas com características abstratas – para todo o poder judiciário, como decisão vinculante e obrigatória, tem sido uma tendência comum das comunidades políticas ocidentais, mesmo aquelas em que as Cortes Constitucionais em geral decidiam exclusivamente em grau originário, ou exclusivamente em grau recursal. Tal fato relaciona-se à hibridização do modelo americano com o modelo continental – e está igualmente vinculado à biopolítica moderna, como se verá. 427 Ressalte-se, aqui, que o mero fato de uma questão chegar até a Corte Suprema pela via recursal, a partir de um caso concreto, não significa que a apreciação da constitucionalidade será necessariamente incidental e não abstrata. Pelo contrário: a Corte em geral pode tanto apreciar a constitucionalidade apenas à luz do caso concreto, como também pode apreciar a constitucionalidade em abstrato de uma lei vinculada ao caso concreto, cuja constitucionalidade, ou não, definirá a decisão final a ser tomada sobre o caso concreto.

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Corte norte-americana, que, a princípio, somente aprecia questões de constitucionalidade

em grau recursal. Os demais integrantes do poder judiciário, quando possuem a

competência para exercer o controle de constitucionalidade, costumam realizá-lo em

qualquer instância, e, possivelmente, em qualquer uma de suas modalidades elencadas nos

itens de “a)” a “e)”. Sua decisão, entretanto, é usualmente passível de reforma pela Corte

Constitucional, e nunca tem força vinculante sobre o restante de seus pares.

O poder judiciário, dessas várias formas, atua como a autoridade intérprete do

sentido da Constituição. Em geral, a Corte Constitucional apresenta-se como instância final,

definitiva e vinculante apta a estabelecer o sentido constitucional, de modo que pode ser

justamente reconhecida como a autoridade suprema nessa questão. Entretanto, a despeito da

origem norte-americana desse modelo institucional – principalmente tendo em vista o

problema da legitimidade da autoridade em face da Constituição – existem na maior parte

das democracias contemporâneas modelos institucionais que mantêm em seu interior

argumentos de legitimidade e de lógica mítica da autoridade, ligados ao modelo

continental428.

Como já debatido, no modelo americano puro a Constituição é fonte de autoridade –

ela é a lei suprema que simboliza o ato de fundação e a tradição que permite a preservação

e o aperfeiçoamento da comunidade político-jurídica. O poder que emana do povo precisa

ser validado e autorizado frente à Constituição, mesmo que naquele momento a

Constituição não corresponda à vontade “instantânea” da nação429. A legitimidade da Corte

Suprema, e, de fato, de qualquer juiz que exerça controle de constitucionalidade, repousa

sobre a própria Constituição – que a estabelece –, e também no ato de interpretação que

realiza o procedimento judicial discursivo de autorização ou não da constitucionalidade de

determinado ato, fato ou lei questionado junto ao poder judiciário. De um ponto de vista

ontológico, é o mito da fundação vinculado ao texto da Constituição que legitima a

manutenção da ordem jurídica e política.

428 E o próprio funcionamento institucional norte-americano terminou também por incorporar, em alguma medida, elementos de legitimidade do modelo continental. 429 O famoso problema “contramajoritário” está diretamente vinculado a esta questão.

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No modelo continental clássico, todas as conclusões tiradas por Schmitt são válidas.

Onde prevalece o mito da fundação vinculada à vontade geral da nação, a Constituição

evidentemente não pode funcionar como instância de legitimação, pois ela própria somente

é legítima na medida em que corresponde à vontade una e indivisível do povo. Para a

introdução de um controle de constitucionalidade judicial, os Estados historicamente

vinculados ao modelo francês precisaram, de um modo ou de outro, flexibilizar o mito da

vontade geral – bem como atenuar a idéia de que a Constituição, em oposição à suas

prescrições textuais, é a decisão política fundamental de um povo.

Essa flexibilização, longe de ser completamente bem sucedida, resultou na

emergência de uma série de aporias que assombram até hoje a maior parte das democracias

ocidentais. Isto porque não houve a substituição completa da idéia de Constituição como

fruto da vontade geral para a idéia de Constituição como lei suprema cuja autoridade e

papel de fonte de autoridade são paralelos e muitas vezes opostos à vontade popular. Pelo

contrário, o constitucionalismo contemporâneo, grosso modo, insiste em que a Constituição

é a lei suprema – e, portanto, fonte de autoridade e legitimação da ordem político-jurídica –

mas é lei suprema na medida em que sua condição de lei suprema corresponde à vontade do

povo430.

Disto resulta a incrível dificuldade em se explicar porque, a despeito de a

Constituição ser fruto da vontade popular, ainda assim dever ser intangível, dever ter

supremacia sobre o restante do ordenamento jurídico-político, mesmo em contraposição à

vontade popular que em um caso concreto “desejaria” diferentemente do que comanda a

Constituição. Similarmente, a imensa problemática teórica em se avaliar com o mínimo de

seriedade e profundidade a questão da legitimidade de uma revolução que implementa uma

nova Constituição – e da eventual ilegitimidade de uma Constituição que todavia

permanece como válida e vigente431. Ora, a vontade popular que legitimaria a revolução é,

todavia, a vontade popular que sustenta a Constituição que, todavia, restringe a vontade

430 De que nisto ainda residam as dificuldades modernas em se separar autoridade de poder não resta nenhuma dúvida. 431 É sintomático que, nesses dois exemplos, muitos pensadores ainda afirmem a impossibilidade de tratar tais questões e assuntos a partir da teoria e da doutrina jurídicas.

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popular que, todavia,... restringe-se a si mesma? Como julgar, nesses exemplos, o problema

da legitimidade?

Isso sem falar na enorme dificuldade que a maior parte dos poderes judiciários

contemporâneos, e, principalmente, das Cortes Constitucionais, tem para se apresentar

como autoridade legítima apta a realizar o controle de constitucionalidade. A Constituição

que os legitima é, de todo modo, legítima ainda e pela vontade popular (mesmo,

teoricamente, podendo a Constituição limitar a vontade popular) – mas os membros de uma

Corte Suprema, salvo poucas exceções institucionais, não mantêm com o povo nenhum

vínculo representativo ou democrático – formas típicas de vinculação de agente político a

vontade popular. Qual é a sua legitimidade, então, para interpretar a Constituição, que só é

Constituição por causa da vontade popular, e, mais ainda, qual é a sua legitimidade para, a

partir de uma interpretação da Constituição, restringir, proibir ou recusar um anseio

“oriundo” da vontade popular432 (possivelmente representada pelos outros poderes)?

Em verdade, a intensidade desse problema, em Estados específicos, revela em que

medida o fundamento mítico que sustenta a ordem político-jurídica está mais próximo de

um desses enfoques: da idéia de Constituição como símbolo da fundação e mecanismo de

tradição, ou da idéia de Constituição como lei suprema que, no entanto, só é suprema pela

vontade popular (e, em termos históricos, mais próxima do mito da vontade geral).

Nos modelos institucionais em que prevalece a idéia de Constituição como símbolo,

os problemas de legitimação do poder judiciário para o exercício do controle de

constitucionalidade são a princípio muito menos graves, polêmicos e complexos do que nos

modelos institucionais nos quais a Constituição, a despeito de ser lei suprema, está

vinculada miticamente à vontade da nação. Por outro lado, os choques concretos de

divergência de opinião social entre a decisão da Corte que se opõe à vontade popular (ao

que se acredita ser a vontade popular) permanecem presentes – ainda que, neste caso, o

432 Talvez justamente por serem os Estados Unidos o país menos influenciado pela lógica de a vontade popular ser a fonte de legitimidade da autoridade da Corte Suprema – ou seja, a autoridade tem outro ponto de apoio que a legitima a se contrapor à vontade popular – é que os conflitos constitucionais americanos tenham uma história rica e complexa de discordâncias e de decisões “impopulares” emanadas do poder judiciário.

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questionamento da legitimidade da Corte para contrapor-se à vontade popular seja

praticamente inexistente (questiona-se, portanto, a decisão da Corte, mas não a legitimidade

da Corte para tomá-la). Nos modelos institucionais híbridos, entretanto e via de regra, a

discussão sobre as decisões controversas da Corte Constitucional costumam tematizar

simultaneamente tanto a retidão intrínseca da decisão, quanto a legitimidade da Corte para

tomar a decisão.

A maior parte das Cortes Constitucionais, portanto, se apresenta como a autoridade

responsável pelo controle de constitucionalidade, que deriva sua legitimidade a partir da

própria Constituição – tomada como lei suprema – cujo sentido tem a autoridade para

definir. Porém, ao mesmo tempo, essa Constituição corresponde de algum modo à vontade

popular, e, destarte, enquanto decisão política fundamental, não se apresenta tão-somente

como lei suprema símbolo da fundação mitológica da comunidade política e iniciadora de

uma tradição político-jurídica, mas também como materialização da vontade da nação,

supostamente una e indivisível. É nesta aporia que se apóiam os mecanismos lógicos que

permitirão a implementação democrática de um modelo biopolítico de produção de vida

nua e de funcionamento do direito amparado na suspensão potencial sempre presente da

ordem jurídica.

2. Autoridade soberana e soberania judiciária: o abandono da Constituição.

De toda a apresentação teórica que se vem traçando, é possível concluir que, na

modernidade, soberano é quem decide sobre a exceção, mas somente pode decidir sobre a

exceção quem detém a interpretação final do signo constitucional. Isto porque, com a

emergência da Constituição (que, no modelo institucional híbrido, é ao mesmo tempo

norma maior e carta de valores políticos, fundadora do direito e fundadora da política da

comunidade), a suspensão do direito se opera sempre, remota ou diretamente, a partir da

própria Constituição (concebida como fruto da vontade da nação); o ordenamento jurídico

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encontra a operacionalização de sua suspensão em cotejo com a Constituição; e a própria

Constituição encontra a operacionalização de sua suspensão em cotejo consigo mesma433.

Se de fato a exceção é a raiz estrutural profunda do direito e da política ocidentais,

então, qualquer mecanismo de funcionamento vinculado a esses dois sistemas de linguagem

necessariamente reproduzirá essa mesma característica original. Existem, entretanto,

conforme já sublinhado, o que se pode chamar de “autoridade soberana” e o que se pode

chamar de “soberania” (ou, quiçá, soberania “pura”). A “autoridade soberana” existe

enquanto estão separados auctoritas e potestas – o detentor da autoridade soberana decide

em última instância sobre a exceção, mas não tem o poder de iniciar a exceção, de, por si

só, implementar a exceção. Já o detentor de uma soberania “pura” pode tanto dar início à

implementação da exceção quanto se autolegitimar, autoconvalidar a exceção por ele

mesmo implementada. A isto corresponde a chamada auctoritas principis – ou seja, a

reunião de auctoritas e potestas em um único agente político.

A distinção é particularmente importante porque, conforme notado por Agamben,

quando há uma separação entre autoridade e poder, de algum modo o direito e a política

permanecem funcionando – e, ainda que produzam situação de exceção e biopolítica, não

se convertem naquilo que ele chama de “máquina mortal” e, em última consideração, de

“Guerra Civil Mundial” embasada na proliferação do paradigma biopolítico do campo de

concentração. Conquanto Agamben considere que qualquer modelo de separação entre

autoridade e poder está já desde seu início em processo de deterioração, e, por

conseqüência, fadado a ruir diante da eventual reunião de auctoritas e potestas em uma

única pessoa ou instituição, ele reconhece que, enquanto a separação subsiste, há pelo

menos um simulacro de funcionamento “normal e razoável” dos sistemas político e

jurídico.

Pois bem. No modelo totalitário de instauração biopolítica do paradigma do campo

de concentração, a suspensão do direito se realiza a partir do Líder, pois ele é a

433 Isto é possível, como ainda se analisará, porque a Constituição, enquanto manifestação moderna da soberania, faz o vínculo entre Direito e Política. O trânsito entre Constituição como lei e Constituição como carta política permite e “justifica” a suspensão momentânea, ora de uma, ora de outra, ora de ambas.

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Constituição viva, o fiador da comunidade política e de seus valores. Ele decide sobre qual

vida é valiosa de ser vivida, e qual não é – ele decide, por fim, sobre como “produzir”,

biopoliticamente, a vida valorativamente digna de ser vivida. É a idéia de que existe um

vínculo direto entre o Líder e a nação, neste caso, que permite a assunção da auctoritas

principis, a reunião entre autoridade e potestas434, que possibilita ao Líder se apresentar

como lei viva, como representante legítimo da vontade da nação, ou, em termos

schmittianos, como o apresentante das decisões políticas fundamentais da vontade una e

indivisível do povo435. Em outros termos, ele pode ser considerado como o intérprete final

434 Arendt, ao tratar do tema, debruça-se apenas sobre a autoridade clássica, sem mencionar o conceito de auctoritas principis. De todo modo, a consciência da diferença entre ambas está presente em seu texto, e fundamenta sua recusa em interpretar o regime totalitário como autoritário: “O princípio do Líder não estabelece nenhuma hierarquia no Estado totalitário, como não o faz no movimento totalitário; a autoridade não se filtra de cima para baixo através de todas as camadas intermediárias até a base da estrutura política, como no caso dos regimes autoritários. A razão concreta é que não há hierarquia sem autoridade: e, a despeito dos muitos erros de interpretação cometidos em relação à “personalidade autoritária”, o princípio da autoridade é, para todos os efeitos, diametralmente oposto ao princípio do domínio totalitário. O seu caráter primígeno já aparece na história romana: ali a autoridade, sob qualquer forma, visa a restringir ou limitar a liberdade, mas nunca a aboli-la. O domínio totalitário, porém, visa à abolição da liberdade e até mesmo à eliminação de toda espontaneidade humana que não a simples restrição, por mais tirânica que seja, da liberdade. Essa ausência da autoridade hierárquica no sistema totalitário é demonstrada pelo fato de que, entre o supremo poder (o Führer) e os governos, não existem níveis intermediários definidos, cada um com o seu devido quinhão de autoridade e de obediência. O desejo do Führer pode encarnar-se em qualquer parte e a qualquer momento, sem que o próprio Führer esteja ligado a qualquer hierarquia, nem mesmo àquela que ele mesmo possa ter criado. Portanto, não é exato dizer que o movimento, após a tomada do poder, cria uma multidão de principados onde cada pequeno líder é livre para fazer o que quiser e imitar o grande líder lá de cima. A afirmação nazista de que “o partido é uma concatenação dos líderes” não passava de balela. Do mesmo modo como a multiplicação infinita dos órgãos e a confusão da autoridade leva ao estado de coisas no qual cada cidadão se sente diretamente confrontado com o desejo do Líder, que escolhe arbitrariamente o órgão executante das suas decisões, também o milhão e meio de “führers” disseminados por todo o Terceiro Reich sabia muito bem que a sua autoridade emanava diretamente de Hitler, sem níveis intermediários de uma hierarquia operante. A dependência direta era real e a hierarquia intermediária apenas imitava de maneira ostensiva, mas espúria, um Estado autoritário”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 454-455. Arendt talvez se limitasse a discordar de Agamben quanto à natureza da autoridade dos Imperadores romanos em contraste com a do Líder, mas, ainda assim, essa hipotética divergência não invalida nenhuma das conclusões de Agamben, pois se restringiria apenas a introduzir um novo grau de distinção. 435 Apresentante pode aqui ser interpretado em contraste com representante. A apresentação não é uma interpretação amparada na representação, mas supõe-se como a “interpretação autêntica”, como a verdadeira vontade popular. Sobre o tema, Arendt afirma ainda, em uma linha de abordagem que interpreta o “povo” do nazismo não como os alemães, que: “(...) A famosa frase, “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”, destinava-se apenas à propaganda de massa; o que se dizia aos nazistas era que “o direito é aquilo que é bom para o movimento”, e os dois interesses absolutamente não coincidiam. Os nazistas não achavam que os alemães fossem uma raça superior, à qual pertenciam, mas sim que deviam ser comandados, como todas as outras nações, por uma raça superior que somente agora estava nascendo. A aurora dessa nova raça não eram os alemães, mas a SS. O “império mundial germânico”, como disse Himmler, ou o império mundial “ariano”, como teria preferido Hitler, só viria dali a séculos. Para o “movimento”, era mais importante demonstrar que era possível fabricar uma raça pela aniquilação de outras “raças” do que vencer uma guerra de objetivos limitados. (...) Hitler declarou, num discurso de 23 de novembro de 1937 perante os futuros líderes políticos na Ordensburg Sonthofen: Não “tribos ridiculamente pequenas, pequeninos países, Estados ou dinastias (...) mas somente raças [podem] funcionar como conquistadores do mundo. Mas uma raça – pelo menos no

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do signo constitucional, porque é ele quem, em última instância, decide sobre a existência

ou não da situação de normalidade a partir da qual o direito funciona, ou seja, é ele quem

decide, afinal, sobre a exceção – podendo, portanto, ser corretamente denominado de

soberano436.

Quando Agamben menciona o funcionamento biopolítico das democracias

contemporâneas, e propõe o paradigma do campo de concentração como a técnica de

governo atualmente prevalente no Ocidente, é a este modelo estrutural de autoridade que

ele se reporta. Entretanto, isto não está completamente correto, porque, como visto, nas

democracias constitucionais não há um líder totalitário que se apresente como portador,

sentido consciente – é algo que ainda temos de nos tornar” (...). Em completa harmonia com este fraseado, que de modo algum era acidental, está o decreto de 9 de agosto de 1941 no qual Hitler proíbe o uso da expressão “raça alemã”, porque ela tenderia a “sacrificar a idéia racial em si a favor de um simples princípio de nacionalidade, e a destruir importantes precondições conceituais de toda a nossa política racial e popular (...). É óbvio que o conceito de uma raça alemã teria constituído um obstáculo à progressiva “seleção” e exterminação de grupos indesejáveis da população alemã que, naqueles mesmos anos, estava sendo planejada para o futuro. (...) Uma das importantes diferenças entre o movimento e Estado totalitários é que o ditador totalitário pode e necessita praticar a arte totalitária de mentir com maior consistência e em maior escala que o líder do movimento. (...) Para esse fim, Hitler preferiu apelar, sem maiores rodeios, para o velho nacionalismo que ele mesmo denunciara tantas vezes antes da subida ao poder; assumindo a pose de nacionalista violento, afirmando que o nacional-socialismo não era “produto de exportação”, aplacava ao mesmo tempo alemães e não-alemães, e insinuava que as ambições nazistas estariam satisfeitas quando fossem cumpridas as tradicionais exigências da política externa alemã nacionalista (...).”ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 461-462. Acrescenta-se a esta passagem, ainda: “Nas poucas vezes em que Hitler se preocupou com essa questão, costumava acentuar: “Aliás, não sou chefe de um Estado como o é um ditador ou monarca, mas sou o líder do povo alemão” (...). Hans Frank expressa-se no mesmo tom: “O Reich Nacional-Socialista não é um regime ditatorial, e muito menos arbitrário. Baseia-se na lealdade mútua do Führer e do povo” (...). Hitler repetiu muitas vezes: O Estado é apenas um meio para um fim. O fim é: conservação da raça” (...). Acentuou ainda que o seu movimento “não se baseia na idéia do Estado, mas principalmente na Volksgemeinshaft fechada” (...)”. (p. 407). Sublinhe-se, de toda forma, o vínculo que se estabelece entre o líder e o povo – seja este povo o alemão, seja este o futuro povo “ariano”. 436 E, no extremo do regime totalitário, o Líder jamais re-estabelece uma situação que possa ser chamada de normal. Esta idéia é também tirada de Arendt: “(...) No nazismo, em lugar do conceito bolchevista de revolução permanente, encontramos a noção de uma “seleção [racial] que não pode parar”, e que exige a constante radicalização dos critérios pelos quais é feita a seleção, isto é, o extermínio dos ineptos. O fato é que tanto Hitler como Stálin estenderam promessas de estabilidade para esconder a intenção de criar um estado de instabilidade permanente. Não poderia ter havido melhor solução para a intrínseca ambivalência resultante da coexistência entre governo e movimento, entre a pretensão totalitária e o poder limitado num território limitado, entre a participação ostensiva na comunidade de nações, na qual cada uma respeita a soberania da outra, e a pretensão de domínio mundial, do que essa fórmula esvaziada do seu primitivo conteúdo. Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que a princípio parecem absurdamente contraditórias: tem de estabelecer o mundo fictício do movimento como realidade operante da vida de cada dia, e tem, por outro lado, de evitar que esse novo mundo adquira nova estabilidade; pois a estabilização de suas leis e instituições certamente liquidaria o próprio movimento e, com ele, a esperança da futura conquista do mundo. O líder totalitário tem de evitar, a qualquer preço, que a normalização atinja um ponto em que poderia surgir um novo modo de vida – um modo de vida que, após certo tempo, poderia deixar de parecer tão

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simultaneamente, da autoridade e da potestas – pois existe o poder judiciário, e,

especialmente, sua Corte Suprema, que se apresenta como instância constitucionalmente

legítima para a interpretação final da Constituição, ou, em outras palavras, como

apresentadora do sentido constitucional duplamente amparada na Constituição como lei

suprema e como fruto da vontade popular. À soberania do Líder, corresponderia e, a

princípio, se oporia, em tese, a “autoridade soberana” da Corte Constitucional.

Ora, o que se quer dizer com isto é que, ao menos de uma perspectiva estrutural e

institucional, qualquer ato do poder executivo, do poder legislativo, ou, até mesmo, do

poder judiciário, seja esse ato uma ação concreta, seja uma lei em abstrato, promanados de

qualquer agente que seja, está potencialmente submetido à possibilidade de ser questionado

constitucionalmente junto ao poder judiciário. Não haveria, em princípio, ação ou omissão

executiva, lei ou decreto, que não pudesse ter sua constitucionalidade desafiada – por quem

quer que seja institucionalmente legítimo para fazê-lo – nas instâncias judiciais

constitucional ou legalmente competentes para tanto. Esse aspecto de funcionamento da

tripartição de poderes nas atuais democracias ocidentais, completamente ignorado por

Agamben, é de fundamental importância para compreender-se a implementação prática e

concreta, no momento de aplicação da lei, da exceção jurídica e da biopolítica moderna.

Isto porque, independentemente do grau de arbitrariedade das medidas tomadas pelo

poder executivo, independentemente do grau de excepcionalidade de decretos e leis, e, até

mesmo, independentemente do uso, mascarado ou não, do Estado de Exceção, a autoridade

final para a convalidação ou invalidação definitiva da atuação do poder executivo (e,

também, do poder legislativo, se for o caso437) não lhes pertence. Pelo contrário, a

falso e conquistar um lugar entre os modos de vida muito diferentes e profundamente contrastantes das outras nações da terra”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 441. 437 Schmitt, ao trabalhar sua idéia de que o Estado de Exceção define a soberania e é o núcleo a partir do qual se estrutura o Estado, entende que existem, estruturalmente, três formas essenciais de Estado, cada uma delas vinculada a um dos três poderes clássicos: “(...) Os Estados podem ser classificados segundo a área na qual encontram o cerne de sua atividade. Assim sendo, há Estados judicantes, ou melhor, jurisdicionais, além disso, Estados que são essencialmente governo e executivo e, por fim, Estados legiferantes. O Estado medieval, e até hoje a teoria do Estado anglo-saxão, parte do princípio segundo o qual o núcleo do poder público é a jurisdição. Poder público e jurisdição são aqui equiparados, como ainda hoje corresponde ao modo de se exprimir do Codex Juri Canonici (...), devendo-se observar, todavia, que a paráfrase normativa para a autoridade da igreja católico-romana e de seus supremos cargos não se expressa usando a imagem de um juiz, mas de um pastor sobre seu rebanho. O Estado absolutista que vem ganhando sua forma desde o

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autoridade soberana para tanto é atribuída ao poder judiciário, na possibilidade de análise

da constitucionalidade do que lhe é apresentado como questionável. A situação de exceção

tão bem descrita para o regime nazista, e que é estendida por Agamben como paradigma de

governo das democracias contemporâneas, ao menos de um ponto de vista institucional,

não existe contemporaneamente em nenhuma democracia ocidental.

Evidentemente, não se quer dizer com isso que a narrativa de Agamben seja pura

fantasia, e não tenha em momento algum se materializado concretamente na realidade

histórica do Ocidente pós-Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, são diversos os

exemplos concretos438 de situações nas quais chefes executivos se arrogaram a posição de

“líderes carismáticos” – ou, melhor ainda, atuaram como detentores de auctoritas principis

– e efetivamente implementaram situações biopolíticas marcadas pela prevalência geral e

não declarada da exceção jurídica, nos moldes exatamente propostos por Agamben.

Entretanto, para que isto ocorra em um Estado que se propõe ideológica e

institucionalmente como democrático, são necessárias algumas circunstâncias específicas

não mencionadas por Agamben.

A primeira hipótese é a mais simples – o poder executivo simplesmente aniquila o

poder judiciário; seja fisicamente, substituindo seus membros por juízes de sua

século XVI originou-se precisamente do colapso e da dissolução do Estado de direito medieval, pluralista, feudal-estamentário e de sua jurisdição, apoiando-se no exército e no funcionalismo. Por conseguinte, ele é essencialmente um Estado do poder executivo e do governo. Sua ratio, a ratio status, a freqüentemente mal interpretada razão de Estado não reside em normas repletas de conteúdo, mas na efetividade com que ele cria uma situação, na qual só a partir dela normas podem passar a valer, haja vista que o Estado coloca um fim à causa de toda desordem e guerras civis e à luta pelo normativamente correto. Esse Estado “estabelece a ordem e a segurança públicas”. Só quando isso sucedeu é que o Estado legiferante da Constituição de Estado de direito civil pôde nele penetrar. No chamado estado de exceção, aflora abertamente o respectivo centro do Estado. O Estado judicante serve-se, para tanto, da lei marcial (mais precisamente: da jurisdição marcial), ou seja, de uma justiça sumária, o Estado como executivo, sobretudo, da transferência do poder executivo, ligada, em caso de necessidade, à suspensão de direitos fundamentais, o Estado legiferante, dos decretos de Estado de emergência e exceção, i.e., de um processo legislativo sumário.” SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. p. 111-112. A passagem em questão é esquemática, e não das mais brilhantes – já que nem mesmo parece haver diferença sólida entre as supostas três formas do Estado de Exceção. De todo modo, revela em que medida é possível pensar em exceção produzida por cada um dos três diversos poderes. Que a autoridade judiciária produza exceção como “jurisdição marcial”, tão-somente, não passa de um simples disparate ideológico – a exceção judiciária é tão eficaz como a executiva. Tudo indica, porém, que o “Estado judicante” de Schmitt não passa de um nome feio para o modelo estatal inglês, no qual de fato a idéia de “jurisdição marcial”, vinculada à martial law, faz mais sentido. 438 Pode-se citar, a título de exemplos simples, a maior parte dos ditadores-generais da América Latina, de um lado, ou George W. Bush, de outro – no auge da crise relativa ao ataque às torres gêmeas.

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confiança439, seja por técnicas menos brutais, impossibilitando que as decisões do poder

judiciário estabeleçam, em última instância, o sentido do signo constitucional (isto é,

retirando efetivamente do poder judiciário a autoridade para convalidar ou não, de modo

vinculante para o Estado, os atos promanados do poder executivo). Este último caso seria a

circunstância, por exemplo, de o poder executivo ter a possibilidade de se recusar a cumprir

as decisões judiciárias, e não existir forma concreta e eficaz de o poder judiciário se fazer

obedecer pelo executivo. Nessas duas situações, que usualmente atingem todos os membros

do corpo da magistratura judicante, inclusive a Corte Suprema, o poder judiciário não passa

de mero títere do poder executivo – ambas são as que mais se aproximam da descrição pura

da exceção feita por Agamben, porque nelas a exceção como técnica de governo funciona

sem nenhuma possibilidade real de controle externo ao executivo.

A segunda hipótese, mais refinada que a primeira, se reporta à situação concreta na

qual o poder judiciário, a despeito de não ter sido nem eliminado ou substituído pelo

executivo, nem ter tido sua autoridade final esvaziada pela possibilidade sistemática de

descumprimento de suas decisões, foi efetivamente cooptado pelo poder executivo. Por

cooptação quer-se dizer que, apesar de o poder judiciário não estar nem institucionalmente

nem materialmente submetido aos ditames executivos, ele opte na maior parte das suas

decisões por autorizar a exceção promovida pelo poder executivo. Se o grau de cooptação

for tão intenso a ponto de que a maior parte das situações de exceção implementadas pelo

executivo seja “automaticamente” convalidada440 pelo poder judiciário, então o poder

executivo poderá ser considerado, de fato, como soberano, e a autoridade judiciária, de fato,

como inexistente.

A situação, em si, é bem parecida com a narrativa de Agamben, mas com a

diferença real de que, a despeito de tudo, o poder judiciário tem ainda “alguma palavra”

sobre a implementação da exceção – ainda que esta palavra tenda a ser uma mera

“nulidade” confirmativa da exceção executiva; a estrutura da auctoritas principis existe,

439 Ou, em uma hipótese extrema, rara no Ocidente, pela eliminação completa do poder judiciário, totalmente substituído por órgãos judicantes vinculados ao poder executivo e dele administrativamente dependentes. 440 Tal convalidação, inclusive, pode se dar por meio de uma recusa formal em se apreciar a questão, emanada do poder judiciário.

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mas não de forma explícita. Isto quer dizer que o judiciário precisa apresentar um discurso

técnico-jurídico que justifique a convalidação da exceção executiva. De toda forma, o mais

comum, nesse caso, é que a cooptação ocorra não em todo o poder judiciário – coisa

certamente muito difícil de se conseguir – mas principalmente na Corte Constitucional,

mormente quando todas as suas decisões constitucionais têm potencialmente força

vinculante sobre o restante do poder judiciário. É importante frisar que tal cooptação não

ocorre, necessariamente, por uma atuação positiva do poder executivo – o poder judiciário

pode também “optar” por deixar-se “cooptar”, ou pode fazê-lo em face de pressões sociais

não emanadas do poder executivo em si.

Assim, por exemplo, a pressão pela convalidação das decisões do poder executivo

que supostamente corresponderiam à vontade da nação pode levar o poder judiciário, e,

principalmente, uma Corte Suprema, a autorizar situações de exceção jurídica e de

produção biopolítica promanadas do executivo – eventualmente, se tais autorizações

tornarem-se corriqueiras, é “como se” o poder judiciário estivesse cooptado pelo executivo.

Possivelmente, foi exatamente isto que ocorreu nos primeiros anos da “Guerra ao Terror”

de George W. Bush – quando o poder judiciário norte-americano, via de regra, convalidou

todas as situações de exceção jurídica promovidas pela administração federal americana.

Não é por acaso que Bush seja um dos principais exemplos de Agamben em sua descrição

da biopolítica nas democracias contemporâneas. É preciso ter em mente, de toda forma, que

essa espécie de situação de exceção, a despeito de corresponder à descrição de Agamben,

depende ainda assim da cooptação do poder judiciário e/ou de sua Corte Suprema441.

441 É extremamente surpreendente que mesmo ao apreciar tais questões, Agamben enxergue a questão apenas à luz da dialética entre poder executivo e poder legislativo. Ele menciona a possibilidade de violação constitucional pelo poder executivo americano, sem, todavia, dizer uma única palavra sobre o papel da Suprema Corte na validação da violação: “O lugar – ao mesmo tempo lógico e pragmático – de uma teoria do estado de exceção na constituição norte-americana está na dialética entre os poderes do presidente e os do Congresso. Essa dialética foi historicamente determinada – e já de modo exemplar a partir da guerra civil – como conflito relativo à autoridade suprema numa situação de emergência; em termos schmittianos (e isso é certamente significativo, num país que é considerado o berço da democracia), como conflito relativo à decisão soberana. A base textual do conflito está, antes de tudo, no art. 1 da Constituição, o qual estabelece que “o privilégio do writ do habeas corpus não será suspenso, exceto se, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública [public safety] o exigir”; mas ele não define qual é a autoridade competente para decidir sua suspensão (embora a opinião dominante e o contexto mesmo da passagem permitam presumir que a cláusula seja dirigida ao Congresso e não ao presidente). O segundo ponto conflitante está na relação entre uma outra passagem do mesmo art. 1 (que atribui ao Congresso o poder de declarar guerra, de recrutar e manter o exército e a frota) e o art. 2, que afirma que “o presidente será o comandante-em-chefe [commander

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As distinções acima traçadas são importantes porque, na prática, não importa em

que grau ou freqüência o poder executivo promova situações de exceção – seja criando

espaços biopolíticos, seja emitindo decretos e leis excepcionais –, se tais atos e leis forem

considerados inconstitucionais pelo poder judiciário, se os responsáveis forem punidos

(civil e/ou penalmente) e se os prejudicados forem ressarcidos, não é possível dizer, nem

lógica nem ontologicamente, que há uma situação de exceção geral e não declarada442.

Haveria, sim, uma situação de violação sistemática e generalizada da ordem jurídica – mas

não uma situação de suspensão dessa ordem. Afinal de contas, o direito é “eficaz” tanto

quando é observado quanto quando as penas, punições e conseqüências nele previstos por

sua violação são respeitadas e imputadas aos responsáveis. É apenas quando não há

resposta nenhuma à violação ou quando toda resposta é sua convalidação como

juridicamente aceitável – de tal modo que a violação deixa de ter significado como violação

in chief] do exército e da frota dos Estados Unidos”. Os dois problemas atingem um limiar crítico com a guerra civil (1861-1865). No dia 15 de abril de 1861, contradizendo o que diz o art. 1, Lincoln decretou o recrutamento de um exército de 75 mil homens e convocou o Congresso em sessão especial para o dia 4 de julho. Durante as dez semanas que transcorreram entre 15 de abril e 4 de julho, Lincoln agiu, de fato, como um ditador absoluto (...). No discurso dirigido ao Congresso, enfim reunido no dia 4 de julho, o presidente justificou abertamente, enquanto detentor de um poder supremo, a violação da constituição numa situação de necessidade. As medidas que havia adotado – declarou ele – “tenham ou não sido legais em sentido estrito”, haviam sido decididas “sob a pressão de uma exigência popular e de um estado de necessidade pública”, na certeza de que o Congresso as teria ratificado. Ele se baseava na convicção de que a lei fundamental podia ser violada, se estivesse em jogo a própria existência da união e da ordem jurídica (...). Segundo os historiadores norte-americanos, o presidente Woodrow Wilson concentrou em sua pessoa, durante a Primeira Guerra Mundial, poderes ainda mais amplos que aqueles que se arrogara Abraham Lincoln. Entretanto, é necessário esclarecer que, ao invés de ignorar o Congresso, como fez Lincoln, preferiu, a cada vez, fazer com que o Congresso lhe delegasse os poderes em questão. Nesse sentido, sua prática de governo aproxima-se mais da que deveria prevalecer nos mesmos anos na Europa ou da prática atual que, à declaração de um estado de exceção, prefere a promulgação de leis excepcionais. (...) A violação mais espetacular dos direitos civis (e ainda mais grave, porque motivada unicamente por razões raciais) ocorreu no dia 19 de fevereiro de 1942 com a deportação de 70 mil cidadãos norte-americanos de origem japonesa que residiam na costa ocidental (juntamente com 40 mil cidadãos japoneses que ali viviam e trabalhavam). É na perspectiva dessa reivindicação de poderes soberanos do presidente em uma situação de emergência que se deve considerar a decisão do presidente Bush de referir-se constantemente a si mesmo, após o 11 de setembro de 2001, como o Commander in chief of the army. Se, como vimos, tal título implica uma referência imediata ao estado de exceção, Bush está procurando produzir uma situação em que a emergência se torne a regra e em que a própria distinção entre paz e guerra (e entre guerra externa e guerra civil mundial) se torne impossível”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer, II, I. p. 34-38. Agamben parece ignorar completamente que leis excepcionais delegadas pelo legislativo ao executivo podem ter sua constitucionalidade apreciada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, e que qualquer narrativa sobre tais questões da história constitucional americana dependem, para ter qualquer viés de credibilidade, de uma abordagem sobre a posição da Suprema Corte acerca do tema. 442 Ver, todavia, adiante, de que modo ainda assim é possível dizer que existe uma situação de exceção potencial.

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e se converte em normalidade –, que se torna factível chamar a situação concreta de

“suspensão geral e informal da ordem jurídica”.

Imagine-se, por exemplo, uma “situação delirante”, evidentemente improvável em

uma democracia ocidental minimamente razoável, na qual agentes fardados do poder

executivo delimitassem um espaço urbano no qual eles pudessem entrar na casa das pessoas

a qualquer momento, sem prévio aviso, a qualquer hora do dia, sem nenhuma espécie de

mandado ou ordem judicial autorizando a invasão443. Essa ação constituiria uma tentativa

de estabelecer um espaço urbano biopolítico dentro do qual a ordem jurídica estaria,

efetivamente, suspensa. Entretanto, em uma democracia contemporânea, tal ação não seria,

a princípio, nem realmente exceção jurídica, nem realmente normalidade. Se ela puder ser

questionada, constitucionalmente questionada, junto ao poder judiciário, então é somente

após a resposta definitiva e/ou vinculante do poder judiciário sobre a validade ou não das

invasões residenciais que se poderá definir, exatamente, se há exceção ou não.

Isto porque, se o poder judiciário rejeitar as invasões, ou seja, declará-las

inconstitucionais, delimitar indenizações para os prejudicados e estipular punições para os

responsáveis, de um ponto de vista institucional ocorreu apenas uma violação da ordem

jurídica – e não sua efetiva suspensão. Por outro lado, o poder judiciário pode convalidar as

invasões, e, neste caso, estaria de fato autorizando a suspensão geral e informal da ordem

jurídica promovida pelo poder executivo naquele espaço urbano. É importante frisar que a

convalidação judiciária – ao contrário da invalidação, que deve necessariamente ser firme e

explícita – pode ocorrer de várias formas diferentes. Assim, por exemplo, poder-se-ia

pensar nas seguintes hipóteses reais de convalidação: a) a maior parte dos juízes julga as

invasões constitucionais; b) a maior parte dos juízes julga as invasões inconstitucionais (ou

não há uma opinião geral formada sobre o tema), mas uma decisão final e vinculante da

Corte Constitucional as declara constitucionais; c) por alguma razão técnico-jurídica, a

maior parte dos juízes, ou a Corte Suprema, se recusa a julgar as questões (provavelmente a

443 Nesse sentido, por exemplo, as “invasões” da polícia e do Exército às comunidades dos morros no Rio de Janeiro, seja para “combater” traficantes, seja para instalar as chamadas “Unidades de Polícia Pacificadora”, ocorridas entre o final de 2010 e o começo de 2011, ainda aguardam uma análise biopolítica de sua “legitimidade”.

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partir de elementos concretos dos casos chegados até o poder judiciário) – a recusa, aqui,

corresponde a uma convalidação tácita e concreta da validade da ação executiva. Pode

acontecer, ainda, de a questão sobre a constitucionalidade das invasões jamais chegar ao

poder judiciário – mas, nesta hipótese, não se trata mais nem de uma democracia, nem

provavelmente de um poder judiciário independente.

Toda a reflexão acima seria igualmente válida caso o poder executivo lograsse,

antes de realizar as invasões, promulgar uma lei (decreto) que autorizasse a atuação de seus

membros fardados naquele espaço urbano. Isto porque, de todo modo, a constitucionalidade

da lei poderia ser questionada tanto a partir dos casos concretos de invasões domiciliares

reais, quanto, na maior parte dos sistemas de controle de constitucionalidade, em abstrato

junto à Corte Constitucional. Logo, a dialética soberana entre poder executivo e poder

legislativo, traçada por Agamben, está incompleta – a estória não termina com a

transferência de poderes legislativos típicos para o poder executivo, pois a atuação soberana

do executivo, em uma democracia, ainda está submetida ao crivo do poder judiciário444.

Se o judiciário não existir, ou não puder ter nenhuma palavra sobre o assunto, ou se

sua palavra for sempre idêntica às ordens executivas, então não existe uma democracia –

mas sim, muito provavelmente, um Estado totalitário ou absoluto. Entretanto, enquanto

existir no Estado democrático um poder judiciário com a possibilidade de emitir juízos de

constitucionalidade, a exceção jurídica, a suspensão da ordem jurídica somente existirá de

fato após ser, de algum modo, validada pela autoridade desse poder judiciário. Não importa

quanto tempo a palavra final do poder judiciário ou de sua Corte Constitucional leve para

ser tomada – até que ela seja tomada, não é possível definir se há, institucionalmente,

exceção jurídica ou mera violação da ordem jurídica.

444 Até mesmo a hipótese radical da declaração oficial de uma situação de emergência pode ter sua constitucionalidade questionada junto ao poder judiciário (por exemplo, para se avaliar questões de responsabilidade individual por violações de direitos e indenizações pecuniárias respectivas) – se, na prática, o poder judiciário não puder fazê-lo, então, novamente, não há mais uma democracia com tripartição de poderes, mas sim uma ditadura ou regime totalitário. Evidentemente, o poder judiciário pode simplesmente optar por não deixar que o questionamento seja feito, ou limitar-se a convalidar os atos executivos – mas essa é justamente a hipótese que ora se trabalha, de a exceção executiva ser validada através do poder judiciário.

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Nesses exemplos, a típica exceção executiva identificada por Agamben se realiza

através do poder judiciário. Ela é ainda a exceção típica, fundada na lógica da auctoritas

principis e da razão de estado, da definição do valor e do desvalor da vida biológica – só

que a soberania que a produz existe somente na medida em que é “tolerada” pelo poder

judiciário. Em outros termos, quer-se dizer que nesses exemplos o poder executivo é de fato

o soberano, é de fato quem decide sobre a existência de uma situação de normalidade ou de

emergência, e é de fato quem implementa a suspensão da ordem jurídica – mas, a despeito

de ser, em concreto, o soberano, depende, discursivamente, da aprovação do poder

judiciário para confirmar sua própria soberania. E, de um ponto de vista estrutural, a

qualquer momento essa soberania poderia – mesmo que a situação fática torne isso na

prática impossível – ser “des-autorizada” pelo poder judiciário, em nome da Constituição,

atuando como “autoridade soberana”.

É importante frisar que, neste caso, o poder judiciário não pode ser chamado de

soberano – ainda que possa ser considerado como a autoridade soberana. Isto porque a

potestas que dá início ao processo de exceção pertenceria ao executivo, e não ao judiciário.

Não haveria mecanismos, portanto, para que o poder judiciário, por si só, implementasse

ele próprio uma situação de suspensão da ordem jurídica. Sua atuação autoritária ocorre

tão-somente por provocação – e em resposta ao que se lhe foi apresentado. Soberano, nesse

caso, é o poder executivo, quando, concretamente, a auctoritas que “necessita” de ter para

se autoconvalidar lhe é sempre “gentil e gratuitamente (na melhor das hipóteses)

completada” pela autoridade do poder judiciário. Neste caso, a autoridade pertence ao

poder judiciário, mas é como se pertencesse ao poder executivo, que de fato atua contando

com a imediata convalidação (por qualquer modo que ocorra) de seus atos pelo poder

judiciário. Que tal espécie de soberania seja, nas democracias efetivas, frágil e instável,

parece já mais do que evidente445.

445 E isto explica, de certo modo, como o poder judiciário americano, inicialmente apático e cooptado pelo discurso executivo da “Guerra ao Terror”, em alguns anos passou a rejeitar cada vez mais a constitucionalidade de diversas das medidas executivas tomadas pela administração Bush. No auge da crise do 11 de setembro de 2001, Bush foi sem dúvida soberano – e a constitucionalidade de seus atos e decretos convalidada pelo poder judiciário sem maiores dificuldades. Com o passar do tempo, entretanto, tornou-se cada vez mais comum a invalidação concreta de muitas de suas medidas por esse mesmo poder judiciário – situação na qual, como visto, a atuação executiva converte-se em simples violação da ordem jurídica. Teria sido Bush, então, “parcialmente” soberano, apenas? Fica muito claro, nesta abordagem, que as questões sobre

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O poder judiciário, portanto, age como autoridade, em paralelo ao poder (potestas)

do poder executivo. Essa autoridade existe para que, como Agamben menciona, direito e

política possam, de algum modo, “funcionar”. Há também uma autoridade do poder

legislativo, que é aquela que, na perspectiva do autor, foi “tomada” pelo poder executivo ao

longo da modernidade. Entretanto, a simples “posse” de potestas e de autoridade legislativa

não torna, como propõe Agamben, o poder executivo imediatamente soberano,

imediatamente detentor da auctoritas principis. Isso porque a autoridade legislativa –

independentemente de qual seja sua natureza – não é a única que se “opõe” à potestas

executiva. Como extensamente visto, a autoridade romana, que o próprio Agamben usa em

suas explicações, migrou essencialmente para o poder judiciário, e não para o legislativo.

Ao poder executivo não basta a aquiescência da autoridade legislativa – nas democracias,

ele depende igualmente da aprovação da autoridade judiciária, ao menos quando seus atos

são questionados judicialmente446. Aprovação esta que, com fulcro na Constituição,

constitui a instância última e final de decisão sobre a existência, ou não, da normalidade

que embasa a existência do direito e da política447. E, por isso, pode-se chamar a autoridade

soberania postas por Agamben somente são claras e cristalinas em regimes totalitários e ditaduras – em democracias, um poder soberano que se apresenta como absoluto é sempre necessariamente instável, frágil e, provavelmente, fugaz. 446 Há uma passagem de Arendt, já citada, que mostra bem a existência da autoridade legislativa e da autoridade judiciária, em separado: “(...) Entre “as numerosas inovações introduzidas no cenário americano” (Madison) talvez a mais importante, e certamente a mais evidente, consistiu numa mudança de localização da autoridade, que passou do Senado romano para o ramo judiciário do governo; mas o que permaneceu próximo ao espírito romano foi a necessidade de estabelecimento de uma instituição concreta que, diferindo nitidamente dos poderes das áreas legislativa e executiva do governo, fosse destinada ao exercício da autoridade. Foi precisamente em seu uso incorreto da palavra senado, ou melhor, em sua relutância em dotar de autoridade um dos ramos do Legislativo, que os fundadores demonstraram como eles haviam compreendido bem a distinção romana entre poder e autoridade. Pois a razão de Hamilton insistir que “a majestade da autoridade nacional deve se manifestar por intermédio das cortes de justiça” foi que, em termos de poder, o setor judiciário, por não possuir “nem força, nem vontade, mas simplesmente critério de julgamento [...] [era] sem comparação, o mais fraco dos três departamentos do poder”. Em outras palavras, sua própria autoridade o tornava inadequado para o poder, da mesma forma que, em sentido inverso, o próprio Poder Legislativo tornava o Senado impróprio para o exercício da autoridade.” ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 160. 447 Tem-se em mente aqui, que, a princípio, nada além da própria Corte Constitucional pode alterar sua decisão final sobre um tema. Independentemente de argumentos jurídicos e discursivos, não há forma certa e segura de, tendo a Corte Constitucional considerado um ato legislativo ou executivo inconstitucional, um dos outros dois poderes reverter essa decisão. Isso porque, caso a Corte assim decida, até mesmo emendas constitucionais podem ser julgadas inconstitucionais. Apenas a supressão da Corte – ou seja, a quebra da democracia como atualmente concebida, ou uma revolução – poderia garantir de fato que a Corte não mantivesse, a despeito de qualquer manobra executiva ou legislativa, seu posicionamento anterior. Afinal de

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judiciária, nas democracias contemporâneas, de autoridade soberana. É apenas quando, de

algum modo, esta autoridade se coloca ao serviço subserviente do poder executivo, que a

descrição de Agamben sobre a implementação da exceção como técnica de governo se

torna, para Estados não totalitários ou ditatoriais, de alguma forma, exata.

O que Agamben parece não perceber, ademais, é que conquanto a lei e a aplicação

da lei sejam diferentes, não há suspensão da ordem jurídica enquanto a lei estiver sendo

efetivamente aplicada. Não existe a lei suspensa, por exemplo, se o poder legislativo apenas

conceder ao poder executivo poderes legislativos delegados, que poderão ser simplesmente

implementados pela via do decreto executivo – a lei somente estará suspensa efetivamente

no momento em que não for aplicada e em que esta “não-aplicação” deixar de acarretar, em

concreto, as conseqüências jurídicas previstas pelo ordenamento jurídico para o agente

responsável pela “não-aplicação”. Isto porque, mesmo que o poder executivo declare uma

situação de suspensão formal da lei – mesmo que a ordem jurídica esteja generalizadamente

suspensa, não há que se falar efetivamente em sua suspensão real no caso, improvável, é

verdade, de a lei suspensa continuar sendo aplicada pelos agentes que seriam responsáveis,

a princípio, pela sua “não-aplicação”.448

contas, ela é a autoridade, ela é a instância final e “legítima” de definição do sentido da Constituição, que não está sujeita a nenhuma espécie de controle institucional. 448 Circunstância que, apesar de improvável, não é de modo algum impossível. Arendt relata, a respeito da Dinamarca, durante a ocupação nazista, que “Foi na Dinamarca, porém, que os alemães descobriram o quanto eram justificadas as apreensões do Ministério das Relações Exteriores. A história dos judeus dinamarqueses é sui generis, e o comportamento do povo dinamarquês e de seu governo foi único entre todos os países da Europa – ocupada, associada ao Eixo, neutra ou verdadeiramente independente. É forte a tentação de recomendar a leitura obrigatória desse episódio da ciência política para todos os estudantes que queiram aprender alguma coisa sobre o enorme potencial inerente à ação não violenta e à resistência a um oponente detentor de meios de violência vastamente superiores. Sem dúvida, alguns outros países na Europa eram desprovidos de um adequado “conhecimento da questão judaica”, e na verdade a maioria deles se opôs às soluções “radical” e “final”. Assim como a Dinamarca, a Suécia, a Itália e a Bulgária provaram ser quase imunes ao anti-semitismo, mas dos três países na esfera de influência alemã, só os dinamarqueses ousaram falar do assunto com seus senhores alemães. (...) Quando os alemães os abordaram, bastante cautelosamente, quanto à introdução do emblema amarelo, eles simplesmente disseram que o rei seria o primeiro a usá-lo, e os funcionários governamentais dinamarqueses tiveram o cuidado de esclarecer que medidas antijudaicas de qualquer ordem provocariam sua imediata renúncia. (...) Essa recusa deve ter sido uma infinita surpresa para os alemães, visto que parecia “ilógico” um governo proteger pessoas a quem havia recusado categoricamente naturalização e mesmo permissão de trabalho. (...) Os dinamarqueses, porém, explicaram aos funcionários alemães que uma vez que os refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, os nazistas não podiam mais requisitá-los sem o consentimento dinamarquês. Esse foi um dos poucos casos em que a falta de pátria acabou sendo um privilégio, embora, evidentemente, não tenha sido a falta de Estado per se que salvou os judeus, mas, ao contrário, o fato de o governo dinamarquês decidir protegê-los. (...) Em agosto de 1943 (...) o governo sueco cancelou o acordo de 1940 com a Alemanha, permitindo [que permitiam] que as tropas alemãs

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Logo, a mera aquisição da autoridade legislativa – a mera possibilidade de

suspensão, se pode dizer, abstrata, da lei, não acarreta a possibilidade de suspensão da

ordem jurídica caso o executivo também não consiga garantir a suspensão da aplicação da

lei, seja em seu sentido prescritivo, enquanto comando, seja em seu sentido punitivo,

enquanto sanção pela não-aplicação ou violação da lei. Essa garantia precisa ser

conseguida, a princípio, tanto do poder judiciário, quanto de qualquer agente responsável

pela sua aplicação concreta, mesmo que vinculado ao executivo – problema que o exemplo

dinamarquês revela com grande clareza. A verdade é que a exceção jurídica emanada do

atravessassem seu território. Diante disso, os trabalhadores dinamarqueses decidiram que podiam ajudar um pouco a acelerar as coisas; irromperam tumultos nos estaleiros dinamarqueses e os trabalhadores das docas se recusaram a consertar navios alemães, entrando em greve em seguida. O comandante militar alemão decretou estado de emergência e impôs a lei marcial, e Himmler achou que aquele era o momento adequado para tocar na questão judaica, cuja “solução” estava muito atrasada. O que não estava em seus cálculos – sem contar a resistência dinamarquesa – foi que os funcionários alemães que viviam havia anos no país não eram mais os mesmos. Não só o general Von Hannecken, comandante militar, recusou-se a pôr tropas às disposição do plenipotenciário do Reich, dr. Werner Best, como também as unidades especiais da SS (Einsatzkommandos) alocadas na Dinamarca muitas vezes objetaram às medidas que os organismos centrais ordenavam que fossem tomadas – segundo o testemunho de Best em Nuremberg. E o próprio Best, um velho homem da Gestapo e antigo conselheiro legal de Heydrich, autor de um livro famoso sobre a polícia e que trabalhara para o governo militar em Paris satisfazendo plenamente a seus superiores, já não merecia confiança, embora não se saiba ao certo se Berlim chegou a tomar conhecimento disso. De toda forma, desde o princípio ficou claro que as coisas não estavam indo bem, e o departamento de Eichmann mandou um de seus melhores homens à Dinamarca – Rolf Güntherm que ninguém jamais acusara de não ter a necessária “dureza impiedosa”. Günther não impressionou seus colegas de Copenhague e Hannecken se recusou até mesmo a baixar um decreto exigindo que todos os judeus se apresentassem para trabalhar. Best foi para Berlim e conseguiu uma promessa de que os judeus da Dinamarca seriam mandados para Theresienstadt fosse qual fosse sua categoria – concessão muito importante do ponto de vista nazista. Foi escolhida a noite de 1º de outubro para sua captura e partida imediata – os navios já estavam no porto –, e como não se podia confiar nem nos dinamarqueses, nem nos judeus, nem nas tropas alemãs estacionadas na Dinamarca, chegaram da Alemanha unidades da polícia para realizar uma busca de porta em porta. No último momento, Best lhes disse que não podiam invadir apartamentos, porque nesse caso a polícia dinamarquesa poderia interferir, e que não deviam entrar em choque com os dinamarqueses. Em decorrência, só conseguiram capturar os judeus que abriram suas portas voluntariamente. De um total de mais de 7800 pessoas, encontraram exatamente 477 que estavam em casa e dispostas a deixá-los entrar. Poucos dias antes da data fatídica, um agente de transporte alemão, Georg F. Duckwitz, provavelmente a partir de informações fornecidas pelo próprio Best, revelou todo o plano aos funcionários governamentais dinamarqueses, que por sua vez informaram rapidamente as cabeças da comunidade judaica. Estes, em marcante contraste com líderes judeus de outros países, deram a notícia abertamente nas sinagogas, por ocasião dos serviços de Ano-Novo. Os judeus tiveram tempo o suficiente para sair de seus apartamentos e esconder-se, o que era muito fácil na Dinamarca porque, nas palavras da sentença, “todos os setores do povo dinamarquês, desde o rei até os simples cidadãos”, estavam prontos para recebê-los. (...) Política e psicologicamente, o aspecto mais interessante desse incidente é talvez o papel desempenhado pelas autoridades alemãs na Dinamarca, sua evidente sabotagem das ordens de Berlim. É o único caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada, e o resultado parece ter sido que os que foram expostos a ela mudaram de idéia. Aparentemente eles mesmos haviam deixado de ver com naturalidade o extermínio de todo um povo”. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. p. 189-194. A exceção depende necessariamente do seu momento de aplicação – ela simplesmente não existe em abstrato, separada da sua realização concreta.

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poder executivo não é tão radical e absoluta quanto Agamben faz parecer, pois ela depende

de dois momentos lógicos distintos: a suspensão da lei e a suspensão da aplicação da lei.

Se a idéia acima for levada até sua última conseqüência, a auctoritas principis de

um líder carismático totalitário449 depende de três componentes independentes: a potestas, a

autoridade legislativa para suspensão da lei, mas também uma autoridade específica para a

suspensão da aplicação da lei, que se vincula ao fundamento mítico da ordem político-

jurídica, e que, provisoriamente, pode ser denominada de judiciária. É esta autoridade que

449 Arendt não concorda que o líder totalitário possa ser enquadrado na categoria de “carismático”: “Seria grave erro interpretar os líderes totalitários em termos da categoria de Max Weber de “liderança carismática”. (...) Gerth descreve Hitler como líder carismático de um partido burocrático. Em sua opinião, somente isso pode explicar o fato de que, “por mais flagrante que fosse a contradição entre os atos e as palavras, nada podia destruir a organização firmemente disciplinada”. (...) Para a origem desse erro de interpretação, ver Alfred von Martin (...) e Arnold Koettgen (...); ambos caracterizam o Estado nazista como uma burocracia sob liderança carismática.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 411. A recusa de Arendt em interpretar o líder totalitário como carismático está em sua pormenorizada análise do movimento totalitário como máquina ideológica que não se assemelha a um partido clássico, não se mistura com o Estado ao chegar ao poder, e depende do líder, em seu centro, como elemento estrutural de funcionamento, não como líder carismático efetivo. Para ela: “No centro do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua “preponderância inatingível”. Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático-organizacionais. (...) Tais capacidades pessoais, no entanto, embora sejam um pré-requisito absoluto para os primeiros estágios da carreira, e mesmo mais tarde sejam longe de serem insignificantes, já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário se consolida, em que se estabelece o princípio de que “o desejo do Führer é a lei do Partido”, e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões. A essa altura, o Líder torna-se insubstituível, porque toda a complicada estrutura do movimento perderia a sua raison d’être sem as suas ordens. (...) O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio da liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente”. (p. 423-424). A objeção, de toda forma, não atinge a idéia de “carisma” empregada por Agamben, que se relaciona com a união de autoridade e potestas no líder totalitário, cuja palavra se torna imediatamente lei (e que, frente a Weber, é de fato questionável). Na verdade, o que Agamben chama de auctoritas principis é similar à idéia de Líder como centro do movimento totalitário – tanto que a própria Arendt, além passagem acima transcrita, menciona ainda, em relação ao problema da suspensão da lei nos regimes totalitários, que: “A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é que, longe de ser “ilegal”, recorre à fonte de autoridade da qual as leis recebem a sua legitimidade final; que longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma superior de legitimidade que, por inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores. A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio de estabelecer a lei da justiça na terra – algo que a legalidade da lei positiva certamente nunca pôde conseguir”. (p. 513-414).

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permite ao poder executivo suspender a aplicação da lei – e que nas democracias

contemporâneas pertence, institucionalmente, ao poder judiciário. Agamben parece

confundir esta autoridade com a autoridade legislativa – justamente porque não traça uma

diferenciação clara entre lei e aplicação da lei (apesar de estar, aparentemente, consciente

da distinção, já que a menciona ao debater o conceito de ditadura em Schmitt).

Como o exemplo dinamarquês mostra tão bem, não basta a autoridade legislativa,

não basta a suspensão da lei, para garantir imediatamente a suspensão da aplicação da lei,

ou seja, a efetiva suspensão da ordem jurídica. De fato, a autoridade dita "judiciária" – mas

que pode ser melhor chamada de "mítica" – é mais importante para a exceção jurídica, na

modernidade, do que a autoridade de natureza legislativa450. É possível, inclusive, imaginar

um poder executivo que, tendo potestas e autoridade mítica, suspenda efetivamente a

ordem jurídica mesmo sem possuir autoridade legislativa delegada. O contrário, todavia,

não é nem possível, nem imaginável451.

Mas como isto tudo pode ocorrer? De que modo, e por que o poder judiciário se

torna uma instância meramente convalidadora da suspensão da ordem jurídica iniciada pelo

poder executivo – ainda que isto ocorra, concretamente, apenas por um breve e curto

instante?

Antes de mais nada, é preciso compreender, afinal, o que é, especificamente, a

suspensão geral e informal da ordem jurídica – tema que constitui um dos pontos mais

obscuros da teoria de Agamben. O autor coloca praticamente no mesmo "saco" situações

tão díspares quanto a de mortos em auto-estradas durante fins de semana e de refugiados

apátridas, de detidos em aeroportos franceses e de prisioneiras em campos de estupro

étnicos. Sua sugestão é a de que os espaços urbanos contemporâneos são cada vez mais

450 Insiste-se, novamente, sobre como é difícil entender que Agamben tenha deixado de lado uma apreciação do papel do poder judiciário à luz de sua tese, principalmente porque o conceito de autoridade por ele utilizado, claramente "emprestado" de Arendt, é explicitamente vinculado por esta autora ao poder judiciário na modernidade, principalmente em vista do modelo constitucional americano. 451 Assim, por exemplo, uma Revolução que consiga, antes de derrubar a estrutura estatal anterior, convencer os agentes responsáveis pela aplicação do direito a não aplicá-lo. Por outro lado, um poder executivo que tenha apenas potestas e autoridade legislativa verá a suspensão da ordem jurídica ser constantemente “des-aplicada” no dia-a-dia institucional da comunidade política.

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zonas biopolíticas, cuja lógica de organização é a do campo de concentração – nas quais

qualquer indivíduo, a qualquer momento, está potencialmente sujeito a ser tratado como

pura vida biológica, matável, ou seja, a se transformar na versão moderna do homo sacer452.

452 A idéia de que a lógica do campo de concentração poderia se estender para fora do próprio campo, para abarcar toda a sociedade, bem como de que ela se ampara na eliminação do status jurídico dos seres humanos, é original de Arendt, ao avaliar os aspectos ideológicos dos movimentos e regimes totalitários: “Comparando ao insano resultado final – uma sociedade de campos de concentração –, o processo pelo qual os homens são preparados para esse fim e os métodos pelos quais os indivíduos se adaptam a essas condições são transparentes e lógicos. A desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos. O incentivo e, o que é mais importante, o silencioso consentimento a tais condições sem precedentes resultam daqueles eventos que, num período de desintegração política, súbita e inesperadamente tornaram centenas de milhares de seres humanos apátridas, desterrados, proscritos e indesejados, enquanto o desemprego tornava milhões de outros economicamente supérfluos e socialmente onerosos. Por sua vez, isso pôde acontecer porque os Direitos do Homem, apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos, apenas proclamados mas nunca politicamente garantidos, perderam, em sua forma tradicional, toda a validade. O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não-totalitário foi forçado, por causa da desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora-da-lei; logo a seguir, criaram-se campos de concentração fora do sistema penal normal, no qual um crime definido acarreta uma pena previsível. (...) Em todas as circunstâncias, o domínio totalitário cuidava para que as categorias confinadas nos campos – judeus, portadores de doenças, representantes das classes agonizantes – perdessem a capacidade de cometer quaisquer atos normais ou criminosos. Do ponto de vista da propaganda, essa “custódia protetora” era apresentada como “medida policial preventiva”, isto é, medida que tira das pessoas a capacidade de agir”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 498. A isto ela acrescenta ainda que: “Se levarmos em conta a sério as aspirações totalitárias e nos deixarmos iludir pela sensata afirmação de que são utópicas e irrealizáveis, veremos que a sociedade dos que estão prestes a morrer, criada nos campos, é a única forma de sociedade em que é possível dominar o homem completamente. Quem aspira ao domínio total deve liquidar no homem toda espontaneidade, produto da existência da individualidade, e persegui-la em suas formas mais peculiares, por mais apolíticas e inocentes que sejam. O cão de Pavlov, o espécime humano reduzido às reações mais elementares, o feixe de reações que sempre pode ser liquidado e substituído por outros feixes de reações de comportamento exatamente igual, é o “cidadão” modelo do Estado totalitário; e esse cidadão não pode ser produzido de maneira perfeita a não ser nos campos de concentração. (...) É da própria natureza dos regimes totalitários exigir o poder ilimitado. Esse poder só é conseguido se literalmente todos os homens, sem exceção, forem totalmente dominados em todos os aspectos da vida. (...) O que as ideologias totalitárias visam, portanto, não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana. Os campos de concentração constituem os laboratórios onde mudanças na natureza humana são testadas, e, portanto, a infâmia não atinge apenas os presos e aqueles que os administram segundo critérios estritamente “científicos”; atinge a todos os homens. O que está em jogo é a natureza humana em si; e, embora pareça que essas experiências não conseguem mudar o homem, mas apenas destruí-lo, criando uma sociedade na qual a banalidade niilística do homo homini lupus é consistentemente realizada, é preciso não esquecer as necessárias limitações de uma experiência que exige controle global para mostrar resultados conclusivos. (...) O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços de esquecimento é que hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. O bom senso utilitário das massas, que, na maioria dos países, estão demasiado desesperadas para ter muito medo da morte, compreende muito bem a tentação a que isso pode levar. Os nazistas e bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de extermínio, que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso de população, das massas economicamente supérfluas e socialmente sem raízes, são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência. As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que

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Tudo isto soa muito dramático – e comparar a situação de uma pessoa que é, por

exemplo, indevidamente algemada com a de uma vítima de tortura sistemática em uma

prisão isolada cujos carcereiros e responsáveis a encaram como legitimamente excluída de

qualquer jurisdição somente pode ser levado a sério, no máximo, como recurso artístico-

estilístico. O fato é que, à luz da idéia de que a suspensão da ordem jurídica tem como

componente essencial a suspensão da aplicação da lei (seja em seu sentido prescritivo, seja

em seu sentido punitivo, conforme já visto), o conceito de exceção geral e informal adquire

um sentido bastante preciso. Conquanto tal sentido seja diferente453 da simples idéia de

exceção informal e geral derivada da junção, no poder executivo, de autoridade legislativa

com potestas, ela é igualmente haurida do espectro teórico de Agamben.

A exceção informal e generalizada é aquela na qual, potencialmente, toda aplicação

da lei está sujeita a se converter em exceção jurídica, por meio do trânsito da força de lei

para significados e significantes indeterminados e abertos. O trânsito da força de lei se dá

sempre em termos discursivos e lingüísticos – mais ainda quando ocorre no âmbito

judiciário –, de modo que é no discurso (ou na ausência dele, no silêncio) que se torna

possível a liberação da força de lei, da lei. Tal liberação, conquanto possa ocorrer na

suspensão da lei – constituindo pretensão (e, em um primeiro momento, tão-somente

pretensão) de trânsito de força de lei para outros sentidos, outras formas significantes –

igualmente pode ocorrer no momento de aplicação da lei. E, de fato, somente se consuma

quando ocorre no momento da aplicação da lei, pois a liberação da força da lei na

suspensão da lei somente se realiza concretamente no momento de sua aplicação anômica.

Toda a força de lei do mundo, pelas maquinações executivas, pode ser liberada para

os mais diversos sentidos e formas de significante possíveis – mas nada disso terá nenhuma

conseqüência concreta sobre a ordem político-jurídica caso, no instante de aplicação da lei,

não seja possível seu trânsito para fora da lei que embasa esta aplicação “pura” da força de

lei. Por exemplo, de nada adianta, de um ponto de vista institucional e real, que o poder

surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”. (p. 507-511). 453 E, de fato, a englobe.

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executivo implemente uma "política" de surras policiais arbitrárias – justificando tal prática

com base na força de lei derivada, por exemplo, do suposto direito à segurança pública; se o

poder judiciário recusar esta prática, punir os agentes responsáveis e indenizar as vítimas,

não terá ocorrido nenhum trânsito de força de lei. No caso improvável de os homens que

compõem o corpo policial – homens antes de policiais, espera-se – se recusarem a aplicar a

"política" de surras arbitrárias, já aí simplesmente não haveria nenhuma espécie de trânsito

de força de lei. Tal exemplo revela, ademais, que a aplicação da lei pode ter vários

momentos – não só o judicial – e não são raras as ditaduras que caíram no instante em que

os agentes do poder deixaram de "cumprir" com a "aplicação da suspensão" da lei454.

A despeito de Agamben não ter explorado nenhum desses aspectos em suas

reflexões, a grandeza e utilidade de seu pensamento está justamente em perceber o caráter

potencial da exceção informal e geral. Ao contrário de seus exemplos histriônicos, a

existência concreta de uma situação dessa espécie não significa o descumprimento

sistemático, insano e humanamente insuportável das prescrições jurídicas – a suspensão

geral e informal da ordem jurídica não é a suspensão total, completa e absoluta dessa

ordem, a todos os instantes, em todos os lugares, a cada segundo do funcionamento

institucional do Estado. Tal suspensão radical ocorreu tão-somente nos campos de

concentração. A situação de exceção geral e informal constitui-se a partir da possibilidade

de que, a qualquer momento, possa ocorrer o trânsito da força de lei para fora da lei – em

seu momento de aplicação – e se instaure, desse modo, uma situação de exceção concreta.

Isto não quer dizer que não haverá centenas, milhares de decisões jurídicas que não se

apresentam como exceção jurídica, mas sim como cumprimento do direito. O argumento é

o de que, potencialmente, discursivamente, qualquer decisão pode se tornar exceção, ao

invés de aplicação do direito.

O nó górdio da proposta de Agamben está justamente nesta questão: seu relato é no

sentido de que faz parte da estrutura ontológica do direito estar (ser) sempre potente de

produzir exceção – de modo que mesmo uma decisão que não é exceção contenha em seu

momento lógico pré-constitutivo a possibilidade de ser exceção. A conseqüência disto é

454 Lembre-se, por exemplo, dos exércitos que se recusam a atirar contra a população, como recentemente

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que pertence à natureza ontológica do direito produzir exceção, porque é sempre potente

para tanto, de forma que a aparente aplicação normal do direito – por menos excepcional

que possa parecer em concreto – não passa justamente de uma mera e falsa aparência. Todo

o direito seria já desde sempre exceção, pois esta compõe sua base e fundamento

constitutivos.

Esta lógica parece oferecer algumas dificuldades para os argumentos anteriormente

traçados, de que a exceção somente poderia ser instaurada nas democracias

contemporâneas, pela "concordância" do poder judiciário, e de que são “evitadas” situações

concretas e reais de exceção diariamente. Entretanto, não é bem assim. Se todo o direito é

já desde sempre exceção – pois tem a potência de sê-lo –, então toda a aplicação do direito

é também já suspensão do direito, por ser igualmente potente de realizar o trânsito livre da

força de lei. Isto quer dizer, então, que toda a aplicação do direito realizada pelo poder

judiciário também deve, de algum modo, ser potencialmente exceção. A eventual aplicação

longa e duradoura de uma ordem jurídica, por um poder judiciário responsável e

consciente, nesse caso, não passaria de uma feliz fortuidade – pois, estruturalmente, a

aplicação normal da lei está amparada na possibilidade mesma de sua suspensão, cujo

espectro paira, aterrador, sobre qualquer decisão judicial, mesmo a que se limite tão-

somente a aplicar a lei ipsis literis.

Se o direito é desde sempre exceção, então a aplicação da lei é desde sempre

exceção. E se o poder judiciário aplica a lei, então sua atividade está já originalmente

condenada a se fundamentar na potência de suspensão do direito. O argumento, portanto,

no fundo, não muda muito – apenas se desloca ligeiramente. Nos regimes totalitários e

absolutos, o poder executivo, detentor do poder, eventualmente da autoridade legislativa,

mas principalmente da autoridade soberana (mítica, judiciária), por ser o "autorizador" e

aplicador do direito, está condenado (e usualmente satisfeito) a potencialmente sempre

produzir exceção jurídica. Mas, nas democracias contemporâneas, o poder judiciário,

detentor dessa autoridade que nos regimes totalitários pertence ao executivo, está

ocorrido no Egito e na Líbia.

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condenado, em todas as suas decisões, quer queira, quer não, à potência de suspensão da

ordem jurídica.

Dessa forma, mesmo a decisão mais correta possível em vista da lei dentro de uma

ordem jurídica, é ainda assim uma decisão marcada e conspurcada pela natureza intrínseca

do direito como abandono, como exceção. Na lógica que se vem discutindo, a exceção

autorizada pelo poder judiciário é ainda a exceção "desejada" pelo poder executivo, ou

melhor, a exceção que nasce "naturalmente" da potestas455. É evidente que, a despeito

disso, não fica afastada a responsabilidade, pode-se dizer soberana, da autoridade judiciária

que convalida esta exceção – e que, diria Agamben, está inevitavelmente condenada, em

algum momento, por mais que oferte resistência, a convalidar essa exceção – pois essa é

desde sempre sua potência constitutiva ontológica.

Essa última questão, de toda forma, permite traçar uma distinção entre situação de

exceção real, concreta, e situação de exceção potencial, ontológica. Esta última estaria

sempre presente em qualquer ordem jurídica ocidental, em qualquer momento de seu

funcionamento, em qualquer momento de aplicação da lei. A primeira, por outro lado,

estaria presente somente quando a lei é efetivamente suspensa no momento de sua

aplicação. Aplicação normal da lei, ou mera violação da lei, portanto, são sempre exceção

potencial, mas nunca exceção real. O tom alarmista de Agamben deriva, em grande parte,

da circunstância de ele não traçar com clareza, mas apenas sugerir ligeiramente, tal

distinção. Ela, de toda forma, é fundamental para se poder adequadamente diferenciar uma

ditadura, um regime totalitário, de um regime democrático, bem como para se aferir, ao

menos com alguma pretensão de seriedade, os vários graus de responsabilidade possíveis

dos aplicadores da lei.

Seria essa responsabilidade judiciária, ou melhor, essa culpa, inescapável? Ora, se

de fato a culpa resume-se a um estar em relação com a lei, então a culpa soberana nada

455 É importante lembrar, neste passo, que de um ponto de vista ontológico, toda a potestas se articula originalmente a partir do poder de vida e morte do patre sobre seu filho varão, bem como sobre a exclusão-inclusiva da vida nua na comunidade política – procedimento que delimitaria os reais limites existenciais da ordem político-jurídica. Logo, é possível dizer que a potestas está igualmente condenada a ser a “flama inicial” do processo de suspensão do direito e de produção da biopolítica.

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mais é que a culpa de quem está em relação com a lei por ter que aplicá-la – ou seja, a culpa

de quem, potencialmente, está sempre sujeito a suspender a lei. Entretanto, é evidente que,

em concreto, essa culpa, apesar de estar sempre presente por causa da exceção potencial,

pode ser maior ou menor tendo em vista a intensidade da exceção real. De todo modo,

exatamente como isto acontece na modernidade? Quais são os caracteres dessa potência de

exceção que se esconde por de trás de toda decisão jurídica, de toda aplicação da lei, e que

constitui a própria relação de abandono mencionada por Agamben? E, principalmente,

como isto se constitui discursivamente, na linguagem?

A compreensão desta questão passa, novamente, pela análise do fundamento

biopolítico456 dos regimes totalitários, cuja origem, bem se lembra, está na lógica de

legitimação fundada na vontade una e indivisível da nação, do povo, bem como no processo

de hibridização do modelo constitucional americano com o modelo francês457. O vínculo do

Líder totalitário com a vontade do povo – seja este o povo presente ou “futuro” – é o

resultado da radicalização da idéia de que o soberano é o representante da vontade una e

indivisível da nação, ou seja, da vontade geral popular. E a idéia de que o Estado totalitário

tem como objetivo político fundamental a produção de uma raça e de um povo cuja vida é

digna de ser vivida458 se enquadra na lógica de que a Constituição é nada além que as

456 “(...) Moldamos a vida do nosso povo e a nossa legislação segundo o veredicto da genética”, afirmaram os nazistas (...)”.ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 400. 457 É preciso ressaltar, uma vez mais, que a despeito da apresentação esquemática dos dois modelos constitucionalistas, sua consecução histórica concreta não é tão divergente assim – principalmente após a hibridização posterior à Segunda Guerra Mundial. De toda forma, conforme se observará, existe no modelo americano, até mesmo antes da hibridização, alguns elementos que conduzem a algumas conseqüências discursivas e lógicas similares às do modelo continental. Evidentemente, se a tese de Agamben está correta, se todo o direito é exceção em potência, a presença de tais elementos que permitem a constituição de conseqüências jurídicas e políticas similares nas duas formas divergentes é não só óbvia como necessária. 458 “A propaganda nazista concentrou toda essa nova e promissora visão num só conceito, que chamou de Volksgmeninshaft. Essa nova comunidade, tentativamente concretizada no movimento nazista na atmosfera pré-totalitária, baseava-se na absoluta igualdade de todos os alemães, igualdade não de direitos, mas de natureza, e na suprema diferença que os distinguia de todos os outros povos. Depois que os nazistas chegaram ao poder, esse conceito gradualmente perdeu a sua importância e cedeu lugar, por um lado, a um desprezo geral pelo povo alemão (desprezo que os nazistas sempre haviam nutrido, mas que não podiam demonstrar até então em público) e, por outro lado, a um grande desejo de aumentarem os próprios escalões com “arianos” de outros países, idéia que não tivera muita importância na fase da propaganda nazista anterior à tomada do poder. A Volksgemeninshaft era apenas a preparação propagandística para uma sociedade racial “ariana” que, no fim, teria destruído todos os povos, inclusive os alemães. (...) A antiga promessa de Hitler (Reden) – “Nunca reconhecerei que as outras nações têm o mesmo direito que a nação alemã” – tornou-se doutrina oficial: “O fundamento do modo nacional-socialista de encarar a vida é a percepção da dessemelhança entre os homens”. (...) [Todavia], (...) sabemos pelo Hitlers Tischgespräche (pp. 315 ss) que já naquele tempo ele ridicularizava esse “clamor” germânico e pensava mais amplamente em “termos arianos”. (...) Himmler, num

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decisões políticas fundamentais do povo, e que, portanto, está sempre sujeita a uma nova

alteração ou reformulação pelo poder constituinte.

A suspensão total da ordem jurídica, combinada com a idéia de que a palavra do

Führer é imediatamente lei459, por sua vez, é uma conseqüência até lógica do mito de que é

a vontade do povo que define a Constituição ao mesmo tempo em que o soberano é quem

mantém uma ligação direta com essa vontade. Se a vontade do Líder é a vontade do povo,

então por que seria necessária uma Constituição? Ou uma ordem jurídica definida? A

vontade do líder é lei porque é a vontade popular – logo, nada deve limitá-la, porque sua

fonte de legitimidade, de autoridade e de poder é a identidade com a fonte última de todos

esses caracteres, qual seja justamente a vontade una e indivisível do povo460. O Líder, nesse

discurso para os líderes da SS em Kharkov, em abril de 1943 (...) disse: “Logo fundei uma SS germânica nos vário países”. Uma velha indicação, da fase anterior à tomada do poder, desse política não-nacional foi dada por Hitler (Reden): “Certamente aceitaremos também na nova classe dominante representantes de outras nações, ou seja, aqueles que o merecerem devido à sua participação em nossa luta”.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 409-410. Sobre o desejo de formar arianos não-alemães, há a terrível estória sobre as crianças polonesas: “A chamada “Operação Feno” começou com um decreto datado de 16 de fevereiro de 1942, assinado por Himmler, “referente [a indivíduos] de raça germânica na Polônia”. Segundo o decreto, as crianças de características “arianas” deveriam ser enviadas a famílias alemãs “dispostas [a aceitá-las] sem reserva, por amor ao bom sangue que elas têm” (Documento de Nurembergue R 135). Parece que, em junho de 1944, o Nono Exército seqüestrou aproximadamente 40 mil a 50 mil crianças, transportando-as para a Alemanha. Um relatório sobre o assunto, remetido ao Estado Maior Geral da Wehrmacht em Berlim por um funcionário chamado Brandenburg, menciona planos semelhantes para a Ucrânia (Documento OS 031, publicado por Léon Poliakov em Bréviaire de la haine, p. 317). O próprio Himmler fez várias referências a esse plano (...). O modo de selecionar essas crianças pode ser deduzido pelos certificados médicos emitidos pela Seção Médica II em Minsk, na Bielorrússia, em 10 de agosto de 1942: “O exame racial de Natalie Harpf, nascida a 4 de agosto de 1922, mostrou uma jovem normalmente desenvolvida, de tipo predominantemente báltico-oriental com traços nórdicos” – “Exame de Arnold Coenies, nascido a 19 de fevereiro de 1930, mostrou um garoto normalmente desenvolvido, de doze anos de idade, de tipo predominantemente oriental com traços nórdicos”. (p. 391). 459 “(...) Na linguagem dos nazistas, é o “desejo do Führer”, dinâmico e sempre em movimento – e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita –, que é a “lei suprema” num Estado totalitário. (...) A fórmula “O desejo do Führer é a lei suprema” encontra-se em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 414. A conseqüência geral disto é a autoridade e soberania absolutas do líder: “Heiden (...), menciona a seguinte diferença entre a primeira edição e as edições seguintes de Mein Kampf: a primeira edição propõe a eleição de autoridades do partido que, somente após a eleição, recebem “poder e autoridade ilimitados”; todas as edições posteriores estabelecem a nomeação das autoridades do partido pelo líder imediatamente superior. Naturalmente, para a estabilidade dos regimes totalitários, a nomeação vinda de cima é um princípio muito mais importante que a “autoridade ilimitada” da autoridade eleita. Na prática, a autoridade do sublíder era limitada pela absoluta soberania do líder”. (p. 414-415). 460 “Mais perturbador ainda era o modo pelo qual os regimes totalitários tratavam a questão constitucional. Nos primeiros anos do poder, os nazistas desencadearam uma avalanche de leis e decretos, mas nunca se deram ao trabalho de abolir oficialmente a Constituição de Weimar; chegaram até a deixar mais ou menos intactos os serviços públicos (...). Mas após a promulgação das Leis de Nuremberg, verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis. Em vez disso, continuou “a constante

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caso, é estruturalmente idêntico ao povo – ele é o povo, e, portanto, sua decisão soberana é

a decisão soberana do povo.

A idéia de que um único indivíduo é o representante da vontade popular casa muito

bem tanto com as origens absolutistas e monárquicas do conceito moderno de soberania,

quanto com a concepção de vontade una e indivisível de uma comunidade política. Se a

vontade una e indivisível era a constituinte do texto constitucional, então sua identificação

com a vontade do Líder representa a transferência da força de lei constitucional,

desprendida de qualquer texto, para a palavra e vontade do Führer. E as decisões políticas

tomadas pelo Líder são, a seu turno, decisões políticas fundamentais sobre a unidade do

povo cuja vontade é a sua. O Líder, portanto, é o soberano e o poder constituinte, é os três

poderes, detém toda a potestas e toda a autoridade, e nele se encontra toda a força

constitucional, toda a força de lei que pode ser derivada do mito da vontade una e

indivisível do povo e da nação.

Na lógica totalitária, a decisão política fundamental materializada no Líder se

resume na decisão biológica sobre qual vida é digna de ser vivida e qual vida não é digna

de ser vivida – sobre quais formas de vida precisam ser eliminadas para a produção

biopolítica desse mesmo povo que tomou essa decisão política fundamental de se

“autoproduzir”461 uniformemente. A produção da raça pela eliminação de outras raças,

caminhada na direção de setores sempre novos”, de modo que, afinal, “o objetivo e alçada da polícia secreta do Estado”, bem como de todas as outras instituições estatais ou partidárias criadas pelos nazistas, não podiam “de forma alguma definir-se pelas leis e normas que as regiam”. Na prática, esse estado permanente de ilegalidade era expresso pelo fato de que “muitas das normas em vigor já não [eram] do domínio público”. Teoricamente, correspondia ao postulado de Hitler, segundo o qual “Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética”, porque, quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos, então não há mais necessidade de decretos públicos.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 444. Ressalte-se, aqui, a idéia de que existe uma ética que deflui da comunidade e é por todos compartilhada. 461 Sobre a idéia racial e extermínio dos considerados ineptos e indignos de viver, Arendt menciona que: “(...) A radicalização do princípio da antiga seleção racial pode ser verificada em todas as fases da política nazista. Assim, os primeiros a serem exterminados eram os judeus “puro-sangue”, seguidos dos que eram “meio-judeus” e “um-quarto-judeus”; em outra área, os primeiros a serem incluídos eram os loucos, seguidos dos portadores de doenças incuráveis e, depois, pelas famílias em que surgisse algum “doente incurável”. A “seleção que não pode ser detida” não o foi nem sequer diante dos membros da SS. Um decreto do Führer, de 19 de maio de 1943, ordenava que todos os que tivessem ligações com estrangeiros através de laços familiares, casamento ou amizade deviam ser eliminados do Estado, do partido, da Wehrmacht e da economia; isso afetou 1200 líderes da SS (...)”.ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 441. Acrescenta-se, ainda, o processo insano de constante reprodução da seleção racial, por meio da eliminação da

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como acentuado por Arendt, converte-se no núcleo de funcionamento político do regime

totalitário. Nessa circunstância, o próprio conceito de raça se revela como uma

radicalização do conceito de povo – pois até mesmo o povo alemão terá que ser

biopoliticamente manipulado, e, eventualmente, eliminado, para a produção da “raça

ariana”.

O campo de concentração é o resultado final da junção da força de lei (força

constitucional) livre e absoluta contida no Líder com o ideal biopolítico462 que, para

produzir o povo e a raça, decide sobre o valor e o desvalor da vida humana. No campo de

concentração a vida nua humana é isolada e encarada exclusivamente como vida passível

de ser manipulada e eventualmente morta – completamente desprovida de qualquer espécie

vida indigna de ser vivida: “(...) a versão [nazista] de um “plano qüinqüenal”, que não foi realizado por falta de tempo (...) que visava ao extermínio do povo polonês e ucraniano, de 170 milhões de russos (como um dos planos menciona), da intelligentsia da Europa ocidental (como a da Holanda) e do povo da Alsácia Lorena, bem como de todos os alemães que não se enquadrassem na projetada lei de saúde pública do Reich ou numa futura lei de “estrangeiros em comunidade” (...)”. (p. 461). Especificamente sobre a lei de saúde pública, pode-se acrescentar, ainda, que: “Hitler planejou, durante a guerra, a criação de uma Lei de Saúde Nacional: “Depois de um exame de raios X de toda a nação, o Fuehrer receberia uma lista de pessoas doentes, particularmente de portadores de moléstias do pulmão e do coração. Segundo essa nova lei de saúde do Reich (...) essas famílias já não podiam permanecer misturadas ao público nem gerar crianças. O que será feito delas é objeto de futuras ordens do Fuehrer”. Não é preciso ter muita imaginação para adivinhar o que teriam sido essas ordens futuras. O número de pessoas que já não poderiam “permanecer misturadas ao público” teria sido uma considerável proporção do povo alemão (...)” . (p. 466). 462 Arendt menciona, em outro contexto, a relação entre ideologia política nazista (biopolítica) e campo de concentração: “(...) o principal mérito da reorganização da SS por Himmler foi que ele descobriu um método muito simples de “resolver o problema do sangue pela ação”, isto é, de selecionar os membros de elite segundo o “bom sangue” e prepará-los para realizar uma impiedosa luta racial” contra todos os que não pudessem remontar a sua origem “ariana” até 1750, ou tivessem menos de um metro e setenta de altura (“sei que as pessoas que crescem até determinada altura devem possuir, em certo grau, o sangue desejado”), ou não tinham olhos azuis e cabelos louros. Esse racismo em ação tornava a organização independente de quase todo ensinamento concreto de qualquer “ciência racial”, e também independente do anti-semitismo, que era uma doutrina específica e temporária, referente à natureza e ao papel dos judeus, e cuja utilidade terminaria quando os judeus fossem exterminados. O racismo não oferecia riscos e independia do cientificismo da propaganda, uma vez que a elite houvesse sido selecionada por uma “comissão racial” e posta sob a autoridade das “leis especiais de casamento”, enquanto, no extremo oposto, e sob a jurisdição dessa “elite racial”, existiam campos de concentração para uma “melhor demonstração das leis da hereditariedade e da raça”. (...) Himmler lembra aos seus líderes da SS que “fomos os primeiros a realmente resolver o problema do sangue pela ação (...) e por problema de sangue não entendemos, naturalmente, o anti-semitismo. O anti-semitismo é exatamente a mesma coisa que catar piolhos. Catar piolhos não é uma questão de ideologia: é uma questão de limpeza (...). Mas para nós a questão do sangue era um lembrete do nosso próprio valor, um lembrete do que realmente mantém unido este povo alemão”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 435-436. Decisão fundamental do povo pela unidade política fundada no valor biológico – essa é a radicalização do princípio schmittiano.

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de proteção jurídica ou política463. A isto ela é submetida por constituir uma forma de vida

que não é valiosa – ou seja, cuja eliminação será “proveitosa” para a produção da raça

futura “valiosa”464. Isto tudo pode ocorrer porque a força constitucional contida no Líder

jamais se institui – e uma situação permanente de suspensão total da ordem jurídica se torna

possível e “vigente”.

Pois bem – é possível defender, então, que a radicalização totalitária da lógica

nacionalista combinada com o modelo constitucionalista continental resulta em uma

perspectiva ideológica na qual a decisão política fundamental de um povo é a decisão sobre

o valor da vida – ou, melhor, sobre o valor das várias formas e modos de vida. Em outros

termos, a decisão sobre qual vida precisa ser eliminada para que o próprio povo possa se

constituir politicamente como raça, indefinidamente. A conseqüência desta avaliação é que

as formas de vida consideradas indignas de ser vividas são isoladas como pura vida nua

biológica e submetidas à suspensão de qualquer espécie de proteção jurídica que lhes

pudesse ser fornecida por um ordenamento jurídico normal.

No regime totalitário, o indivíduo que perdia seus direitos, sua nacionalidade,

inevitavelmente estava sujeito ao campo de concentração, no qual a completa ausência de

463 “O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, estão mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento. No mundo concentracionário mata-se um homem tão impessoalmente como se mata um mosquito. (...) Não há paralelos para comparar com algo a vida nos campos de concentração. O seu horror não pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situar-se fora da vida e da morte. Jamais pode ser inteiramente narrado, justamente porque o sobrevivente retorna ao mundo dos vivos, o que lhe torna impossível acreditar completamente em suas próprias experiências passadas. (...) Vistos de fora, os campos e o que neles acontece só podem ser descritos com imagens extraterrenas, como se a vida fosse neles separada das finalidades deste mundo. Os campos de concentração podem ser classificados em três tipos correspondentes às três concepções ocidentais básicas de uma vida após a morte: o Limbo, o Purgatório e o Inferno. (...) O Inferno, no sentido mais literal, é representado por aquele tipo de campos que os nazistas aperfeiçoaram e onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o maior tormento possível. Os três tipos têm uma coisa em comum: as massas humanas que eles detêm são tratadas como se já não existissem, como se o que sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna. (...)”.ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 493-496. Como já asseverado, a formatação do campo de concentração depende da eliminação da pessoa jurídica do indivíduo. 464 Nesse sentido, e de um modo bem schmittiano, o povo ou raça está acima da própria existência do Estado: “Hitler freqüentemente fazia comentários sobre a relação entre o Estado e o Partido e sempre acentuava que não o Estado, mas a raça, ou a “comunidade popular unida”, era a mais importante (...)”.ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 469. A expressão “comunidade popular unida” de fato parece saída diretamente das páginas de alguma obra de Schmitt – de onde é até provável que tenha realmente saído.

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proteção jurídica tornava possível que tudo lhe fosse feito – esta era, afinal de contas, a

vontade una e indivisível do povo, “gentilmente” apresentada pelo Líder como método de

constituição e manutenção da unidade política, valorativa e biológica da comunidade. A

conseqüência última desta submissão a um poder livre de quaisquer amarras jurídicas era a

morte – mas, antes da morte, o indivíduo no campo estava submetido a toda espécie de

horror e abuso que pudesse ser imaginada465.

A força de lei contida na vida do Líder deriva do mito da vontade geral. Ela é a

mesma força de lei que está presente na Constituição concebida como decisão política, em

contraste com seu “mero” aspecto normativo, como diria Schmitt. A força constitucional

que transita para o Führer é a força que se legitima a partir da vontade do povo, da vontade

465 A produção de horror e abuso, a destruição da personalidade, não se limitava aos prisioneiros, mas terminava igualmente incidindo sobre os carcereiros: “É aqui que a completa sandice de todo o processo se torna mais evidente. É verdade que a tortura é parte essencial de toda polícia totalitária e do seu aparelho judiciário; é usada diariamente para fazer com que as pessoas falem. Esse tipo de tortura, de objetivo definido e racional, tem certos limites: ou o prisioneiro fala dentro de certo tempo, ou matam-no. A essa tortura racionalmente aplicada ajuntou-se outro tipo irracional e sádico, nos primeiros campos de concentração nazistas e nos porões da Gestapo. Administrada geralmente pela SA, não tinha quaisquer objetivos nem sistema, mas dependia da iniciativa de elementos geralmente anormais. A mortalidade era tão alta que somente uns poucos internos dos campos de concentração de 1933 sobreviveram a esses primeiros anos. Esse tipo de tortura parecia ser menos uma instituição política calculada que uma concessão do regime a seus partidários criminosos e anormais, dessa forma recompensados pelos serviços prestados. Atrás da cega bestialidade da SA, havia muitas vezes um profundo ódio e ressentimento contra os que eram social, intelectual ou fisicamente melhores que eles, e que estavam agora à sua mercê, como numa realização dos seus mais loucos sonhos. Esse ressentimento, que nunca chegou a desaparecer inteiramente dos campos, parece-nos o derradeiro vestígio de um sentimento humanamente compreensível. O verdadeiro horror, porém, começou quando a SS tomou a seu cargo a administração dos campos. A antiga bestialidade espontânea cedeu lugar à destruição absolutamente fria e sistemática de corpos humanos, calculada para aniquilar a dignidade humana. Os campos já não eram parques de diversões de animais sob forma humana, isto é, de homens que realmente deveriam estar no hospício ou na prisão; agora eram “campos de treinamento”, onde homens perfeitamente normais eram treinados para tornarem-se perfeitos membros da SS. (...) O novo sistema mecanizado procurava atenuar o sentimento de responsabilidade na medida do humanamente possível. Quando, por exemplo, veio a ordem de matar, a cada dia, várias centenas de prisioneiros russos, a matança era feita atirando-se através de um furo para que não se visse a vítima. (...) Por outro lado, homens normais eram levados artificialmente à perversão. Rousset conta que um guarda da SS lhe disse: “Geralmente eu continuo a bater até ejacular. Tenho uma esposa e três filhos em Breslau. Antes, eu era perfeitamente normal. Foi isso o que eles fizeram de mim. Agora, quando tenho minha folga, não vou para casa. Não ouso olhar de frente para minha mulher”. (...) A maioria dos homens que compunham as unidades usadas para esses fins não eram voluntários; eram policiais comuns convocados para essas tarefas especiais. Mas até mesmo os experimentados homens da SS consideravam esse serviço pior do que a luta no front. Relatando uma execução em massa levada a efeito por membros da SS, uma testemunha ocular louva-lhes o “idealismo”, que era tão grande que “eles puderam exterminar a todos sem precisar recorrer à bebida”. O desejo de eliminar todos os motivos e paixões pessoais durante os “extermínios” e, portanto, reduzir a crueldade a um mínimo é revelado pelo fato de que um grupo de médicos e engenheiros, encarregados das instalações de gás, estava sempre fazendo melhoramentos que visavam não só aumentar a capacidade produtiva das fábricas de

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da nação. Como bem ressalta Schmitt, as normas constitucionais não são nada frente à

Constituição compreendida como decisão política fundamental sobre a unidade de um

povo. Por isso a suspensão das leis, da norma, se torna tão facilmente aceitável:

ideologicamente, não há no totalitarismo a suspensão da ordem jurídica – o Líder, sua

vontade, é a única ordem jurídica que, ligada diretamente à vontade política do povo, tem

importância real. Ela vigora plenamente, assim como a vontade do povo é soberana, de

modo que ela é infinitamente mais legítima do que qualquer ordem jurídica positiva poderia

algum dia ser.

Que esta decisão política fundamental manifestada através da palavra do Líder seja

a vontade biopolítica de produção assassina de um povo a partir dos critérios de vida digna

e de vida indigna de ser vivida é uma circunstância que pode ser facilmente compreendida

como a exacerbação tanto da perspectiva nacionalista e voluntarista – ligada aos ideais de

raça, de língua, de território, de destino466 –, quanto da emergência da vida biológica como

núcleo da preocupação política ao longo da modernidade, conforme explicado por

Foucault. Sob essa ótica, é a decisão política fundamental de produção de um povo digno

de viver, valioso – como Agamben sublinha, o povo é “purgado” de seus elementos

indesejados –, que opera a liberação da força constitucional que instaura a situação de

exceção potencial e real no regime totalitário.

Essa força constitucional “solta” corresponde à liberação da força mítica que

ampara a fundação e instituição de uma ordem político-jurídica. Agamben ressalta, como

debatido, que essa instituição está ligada à definição dos limites da comunidade política,

que se dá na forma do abandono, e que, na modernidade, se vincula à lógica de inscrição da

vida biológica do cidadão no corpo da nação. Ela não é, portanto, ligada à norma enquanto

prescrição jurídica, precisa e textualmente definida – mas sim ligada à norma em seu

aspecto propriamente político, de definição de seu campo de incidência a partir da

cadáveres, mas também acelerar e atenuar a agonia da morte.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 504-506. 466 “Werner Best (...), explica: “O fato de a vontade do governo estabelecer normas ‘certas’ (...) já não é uma questão de lei, mas de destino. Pois os abusos que ocorrerem (...) serão punidos perante a história de modo mais seguro pelo próprio destino – com o infortúnio, a destituição e a ruína, devido à violação das ‘leis da

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normalização dos fatos da vida e no nexo entre direito e suspensão do direito que permite

que todas as circunstância e formas de vida possíveis estejam potencialmente submetidas ao

direito.

É justamente por isso que a força constitucional, nesse sentido, é muito mais intensa

que a força de lei – e, de fato, o que Agamben chama de força de lei é, em verdade, força

constitucional. Isto porque é até mesmo questionável se é possível imaginar uma força de

lei que, de algum modo, não se reporte ao momento mítico de constituição da ordem

político-jurídica. De toda forma, a dita força constitucional se reporta explicitamente ao

fundamento mítico que sustenta a comunidade política, na medida em que se pretende

como legítima e vigente em conexão direta com este fundamento – logo, sua “força” é bem

mais intensa e “potente de exceção” do que a força de lei cujo vínculo com o fundamento

mítico, a despeito de existente, não se apresenta como explícito. Ao final, toda essa questão

pode ser resumida ao nexo entre direito e soberania – na medida em que é a soberania que

opera a liberação tanto da força de lei quanto da específica força constitucional.

No que se tem chamado de modelo constitucionalista americano, todavia, a

Constituição não se apresenta como fruto da vontade popular una e indivisível, ou da

nação467 – mas, de fato, pode ser interpretada como uma fonte de legitimação autoritária

que, ao definir a possibilidade de uma tradição institucional que remonta à fundação da

comunidade política, enquanto ato de “principiar” um novo corpo político468 separado da

vida’ – do que por uma Corte de Justiça.”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 433. Lembrar, aqui, a conexão entre fundamento mítico do direito e destino, ressaltada anteriormente por Benjamin. 467 Sobre esse contraste, Arendt explica que: “(...) Aqueles que receberam o poder de constituir, ou seja, o poder de moldar as constituições, eram representantes devidamente eleitos de organismos constituídos; sua autoridade vinha de baixo, e quando eles se aferraram ao princípio romano de que a sede do poder estava no povo, não estavam raciocinando em termos de uma ficção ou de um absoluto, a nação acima de toda autoridade e isenta de todas as leis, mas em termos de uma realidade atenuante, a multidão organizada, cujo poder era exercido em consonância com as leis e por elas limitado. A insistência revolucionária americana na distinção entre uma república e uma democracia, ou governo de maioria, se apóia na separação radical entre lei e poder, com diferentes origens, diferentes legitimações e diferentes esferas de aplicação nitidamente delimitadas.”. ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 133. 468 Arendt menciona que: “(...) podemos mesmo ser levados a prognosticar que a autoridade da República permanecerá segura e intacta enquanto o próprio ato de fundação, o início propriamente dito, for lembrado e invocado, sempre que entrarem em debate questões constitucionais, no sentido mais restrito da palavra. O próprio fato de os homens da Revolução Americana se considerarem “fundadores” indica até que ponto eles devem ter tido consciência de que seria o próprio ato de fundação, e não um Legislador Imortal, ou uma verdade auto-evidente, ou qualquer outra fonte transcendente e extraterrena [como a vontade da nação], que

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vontade geral fictícia e absoluta, permite a tomada de decisões institucionais que, mesmo

sendo opostas e/ou contrárias à vontade geral da nação, poderiam ser consideradas

legítimas e obrigatórias. Desse modo, o agente político que se apresentasse como portador

da vontade una e indivisível do povo não teria nenhuma garantia de que suas ordens e

decisões seriam soberanamente obedecidas.

A despeito de Arendt identificar no modelo americano um conceito de poder que

vem de baixo, das organizações corporativas populares, ligado à idéia de que poder

controla poder, é evidente que na história concreta dos conflitos políticos não é raro que o

poder executivo americano se apresente, discursivamente, como soberano, por ser portador

da vontade una e indivisível da nação. Nessa hipótese, ele pode entrar em choque com o

poder judiciário, na medida em que contraste a autoridade da Constituição como símbolo da

fundação do corpo político – e, portanto, legítima para restringir a vontade popular – com o

conceito de Constituição como mero fruto da vontade da nação, e, portanto, a ela submissa.

Isto acontece porque a idéia de vontade constitutiva do povo, de um modo ou de outro, está

ontologicamente vinculada aos princípios de representação ou de apresentação democrática

da vontade do povo por um agente político (poder legislativo e poder executivo,

respectivamente).

Os conflitos constitucionais americanos, portanto, transitaram e ainda transitam,

muitas vezes, em torno da oposição entre autoridade constitucional e vontade da nação.

Ainda que se considere que o princípio político de que o poder controla o poder (checas

and balances) é válido para a experiência política americana, quando o poder executivo

adquire para si a autoridade legislativa – efetivamente cooptando o poder legislativo – ele

tenderá a se apresentar como o soberano portador da vontade política da nação americana.

Nessa perspectiva, a tendência é que se tente impor ao poder judiciário uma espécie de

cooptação em moldes continentais, ou seja, a partir do ponto de vista de que a Constituição

derivaria sua autoridade da vontade popular, e não o contrário.

acabaria se tornando a fonte de autoridade do novo corpo político.”. ARENDT, Hannah. Da Revolução. p. 164.

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Entretanto, não é possível “descaracterizar” de modo tão simples assim todo um

modelo constitucionalista, e, principalmente, toda uma tradição institucional em que a

Constituição é tomada como fonte de autoridade mantida e aperfeiçoada pelo poder

judiciário e pela Suprema Corte norte-americana. As tentativas de impor uma perspectiva

soberana e européia de Constituição, mesmo as mais bem sucedidas469, não logram destruir,

como num passe de mágica, os caracteres específicos da tradição constitucional que se

construiu a partir de um fundamento de legitimidade diverso que o da vontade popular. Tal

questão conduz ao problema de se avaliar o que significa a força constitucional que, ao

invés do mito da vontade popular, deriva do mito do princípio, do mito da fundação da

comunidade política.

A força constitucional que deriva desse mitologema é, por assim dizer, menos

“livre” que a força constitucional continental. Isto porque conquanto faça parte da natureza

ontológica do direito a possibilidade do trânsito da força de lei na suspensão do direito, os

contornos concretos do mito da tradição nascida da fundação da comunidade política – e

não de um poder ou vontade absolutos – conduzem à exigência de que o “uso” da força de

lei desprendida da Constituição na situação de exceção precise se justificar

discursivamente, de algum modo, como manutenção e atualização da tradição da

comunidade política.

A força de lei haurida da vontade da nação é fluida e instável – a vontade popular

pode mudar a qualquer momento –; ela não precisa se justificar nem frente ao passado nem

frente ao futuro, bastando que o agente político logre apresentá-la como a legítima vontade

popular daquele momento histórico concreto. A força de lei que eventualmente se

desprenda de uma tradição, todavia, não só precisa se justificar discursivamente frente aos

469 Um exemplo típico dessa espécie de momento histórico é mencionado por Arendt: “As tendências totalitárias do macarthismo nos Estados Unidos também vieram à tona claramente na tentativa de não apenas perseguir os comunistas, mas de forçar todo o cidadão a provar que não era comunista.” ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 406. O vínculo com o totalitarismo – fruto radical do constitucionalismo europeu – não é gratuito, e mostra bem o que se está argumentando. As tendências “soberanas” do poder executivo americano também são debatidas à luz da Guerra do Vietnã em seu famoso artigo “A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do Pentágono”. ARENDT, Hannah. Crises da República. p. 9-48. Especificamente pertinente ao que se vem debatendo, a cruel afirmativa de que “(...) foi Eisenhower o último presidente a saber que tinha que solicitar “autorização do Congresso para colocar as tropas americanas na Indochina” (...)”. (p. 41).

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elementos que compõem essa tradição – apresentando-se como um ato que a preserva e

aperfeiçoa – como gera uma pretensão e uma expectativa, após ser utilizada em uma

decisão concreta (que ocorre como suspensão do direito), de vincular o futuro de outras

decisões de natureza constitucional. Isto quer dizer, então, que enquanto uma decisão

excepcional tomada com fulcro na força de lei da vontade popular pode ser inteiramente

abandonada no dia seguinte por não constituir mais a vontade popular470, uma decisão

excepcional tomada com fulcro na força de lei da tradição acarretará uma expectativa

institucional de que as decisões futuras ou a reproduzam, ou, quando representarem seu

abandono, justifiquem-se institucional e discursivamente à luz de seus próprios

fundamentos internos.

Essa força de lei “americana”, portanto, é menos “flexível” que a força de lei

“continental”. Ao mesmo tempo em que torna uma situação de suspensão do direito mais

difícil de ocorrer em concreto, ela também torna uma situação concreta de suspensão do

direito mais difícil de ser corrigida – porque essa decisão vincula as decisões futuras, que,

para se “desvincularem” dela, precisarão de alguma forma “responder” discursivamente aos

seus fundamentos jurídicos471. Evidentemente, ela é bem menos “interessante” para o poder

executivo que se pretende soberano do que a força de lei de origem continental – pois, em

sua lógica “pura”, jamais seria possível a situação de exceção completa e generalizada,

absolutamente arbitrária, que resulta da soberania executiva.

À luz da perspectiva de Agamben, entretanto, pode se considerar que a estrutura do

mito americano é uma tentativa de conter as possibilidades de exceção do poder soberano

que, todavia, está já ontologicamente condenada ao fracasso. Isto porque não deixaria de

existir o problema último de que o direito se constitui a partir da exclusão-inclusiva dos

fatos da vida que não normaliza, nem a questão de que a dialética entre poder e autoridade

inevitavelmente resulta na fusão das duas em um poder soberano, cuja atividade intrínseca

é a o exercício da suspensão da ordem jurídica. Logo, ela não passaria de uma tentativa,

470 Esta era a lógica, inclusive, das chamadas “necessidades do povo alemão” durante o regime nazista, que mudavam o tempo todo e jamais eram fixadas em definitivo. 471 As formas como isso pode ser feito são inúmeras. A decisão pode ser reinterpretada à luz de um novo momento histórico, pode ser considerada como inconstitucional (e, portanto, um erro), pode ser adaptada em face de princípios constitucionais, etc.

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ligeiramente melhor sucedida que a experiência europeia, de “atrasar” as conseqüências

finais inerentes à própria origem ontológica do direito e da política.

Atualmente, porém, não existem em suas formatações “puras” nem o modelo

americano, nem o continental. Como já mencionado, após a Segunda Guerra Mundial, há

uma hibridização cada vez maior dos dois modelos – ao lado dessa hibridização, porém,

ocorre uma mudança lógica fundamental para o diagnóstico do papel do poder judiciário na

suspensão da ordem jurídica nas democracias contemporâneas. Do mesmo modo que o

constitucionalismo europeu vai buscar inspiração na experiência americana, o

constitucionalismo americano é contra-influenciado por idéias européias. Mas, então,

imagine-se: o poder judiciário de uma democracia contemporânea foi cooptado ou se

deixou cooptar pelo poder executivo, e se instaurou concretamente uma situação de

exceção geral e informal concreta. Como isto ocorre, discursivamente?

No exemplo extremo do totalitarismo – ou da proposta de Schmitt – o poder

executivo se apresenta como portador da vontade da nação e assim se justifica

discursivamente frente à comunidade política. Essa justificação, porém, como salientado

extensamente por Arendt, constitui de fato mais propaganda – exercício de convencimento

– do que qualquer outra coisa. Não há, nessas hipóteses, necessidade de justificação frente a

outro poder detentor de autoridade para invalidar as ações políticas tomadas pelo executivo.

Tanto que Schmitt insiste que o poder judiciário não pode analisar a constitucionalidade das

leis e dos atos executivos e legislativos fora da restrita hipótese de haver um conflito claro

de subsunção de normas em debate.

De todo modo, a vontade da nação é identificada com a vontade de unidade política,

ou seja, com a vontade de ser uma comunidade política concreta que se define a partir de

decisões políticas fundamentais ligadas à língua, à etnia, à cultura, ao território, à forma de

governo, etc. Especificamente no totalitarismo nazista – que, afinal de contas, é o modelo

biopolítico de Agamben por excelência – a “vontade da comunidade popular” constitui-se a

partir do desejo biopolítico de definição incessante e interminável da vida digna de ser

vivida e da vida indigna de ser vivida. À formatação da saúde do corpo da nação

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corresponde a necessidade de, definindo o valor das formas de vida que existem na

comunidade, eliminar aquelas que são inadequadas – promovendo, desse modo, aquelas

que são adequadas. A isto corresponde, igualmente, a unidade ética da consciência do povo,

que embasa a concepção de que a lei não precisa ser definida porque corresponde

imediatamente à moral da comunidade nacional.

Por mais terrível que a idéia tenha se manifestado na realidade histórica concreta,

sua formatação estrutural é bem menos grotesca, e se articula do seguinte modo: há uma

vontade do povo – e o povo compartilha uma ética – a vontade do povo é de que a sua ética

seja a lei – a ética do povo é a de que existem formas de vida valiosas e formas de vida

desvaliosas – as formas de vida valiosas devem ser promovidas e as formas de vida

desvaliosas devem ser desestimuladas – a lei realiza a promoção e o desestímulo às formas

de vida específicas, conforme a ética e a vontade do povo as defina como valiosas ou não.

No nazismo, o “desestímulo” às formas de vida sem valor foi exacerbado até a lógica

radical em que a vida sem valor não é digna de ser vivida e deve ser eliminada nos campos

de concentração. Sua eliminação, porém, depende da suspensão de qualquer espécie de

proteção jurídica. Há aqui a estranha aporia de que a lei deve ser suspensa para que a lei

(ética) possa ser aplicada – esta aporia, não à toa, justifica-se plenamente frente à teoria de

Agamben, de que o direito é já desde sempre em sua essência exceção.

“A realização da lei (ética) como “desestimuladora” das formas de vida moralmente

desvaliosas somente pode ocorrer a partir da suspensão da lei – ou, em outras palavras, a

realização da lei é a suspensão da lei.”472. Que isto tudo integre a natureza ontológica do

direito é plenamente aceitável. Mas é muito claro, neste ponto, que o termo “lei” não

significa exatamente a mesma coisa em cada um dos pólos da expressão. Por uma ironia

teórica, uma distinção conceitual trazida por Schmitt pode ajudar a aclarar a questão. Como

convém lembrar, este autor distingue claramente a norma constitucional da Constituição

como decisão política fundamental – e defende que a norma constitucional sempre deve

ceder frente à Constituição; ou, em outros termos, que a norma constitucional sempre pode

ser suspensa em face da Constituição.

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Na expressão debatida, a Constituição é a primeira lei, a lei ética, política; e a norma

constitucional é a segunda lei, cuja suspensão se faz necessária para a realização da

primeira lei. Segundo Schmitt, as normas constitucionais são as prescrições textuais,

positivas da Constituição – seu conteúdo, conquanto sujeito a interpretação, está

especificado e definido linguisticamente. Mas a Constituição nada mais é que o resultado

da decisão política fundamental do povo – ou seja, ela é a vontade popular, a ética do povo.

Sua realização é a concretização dos valores que derivam dessa ética: promoção das formas

de vida dignas, desestímulo às formas de vida indignas. É frente à realização da

Constituição, nesses termos, que a lei, a norma constitucional, deve ceder. Mas a

Constituição não tem conteúdo definido – o que ela é, o que ela significa, portanto, é

decidido pelo apresentante da vontade popular, ou se se preferir, pelo soberano.

De outro ponto de vista, a Constituição é também o fundamento mítico de

instituição do direito. A Constituição é o símbolo do mito. Pelo que se pode refrasear a

aporia para: “a suspensão da ordem instituída é necessária para a realização da força mítica

instituidora dessa ordem”. Tal se dá na medida em que somente pode existir uma força

mítica instituidora de direito se o direito que ela instituiu não puder, em última instância,

restringi-la e limitá-la. O soberano é mítico, e o mito é soberano. Tudo isto se encaixa

perfeitamente nas propostas teóricas de Schmitt, bem como na lógica das monarquias

absolutistas e dos regimes totalitários. Mas, como essa questão se articula no modelo

americano, e no suposto modelo híbrido?

No modelo constitucionalista norte-americano, o mito que funda a ordem jurídica

não é o da vontade popular – logo, não se liga diretamente à ética que estipula formas de

vida dignas e indignas. O mito fundacional é a própria fundação – uma vez que ela

constitui-se como um ato que estabelece uma tradição que se apresenta simultaneamente

como estável e durável e como aberta para aperfeiçoamento e atualização. O mito, destarte,

é o de fundação de uma tradição, que estabelece uma autoridade judiciária legítima para

interpretar o sentido dessa própria tradição. Constituição e tradição, portanto, se

472 Ou, em outras palavras, como observado por Agamben, a inclusão no direito somente se dá por meio da

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interpenetrariam e confundiriam, já que a segunda se origina da primeira, que se justifica

por tê-la estabelecido.

O conteúdo da Constituição, assim sendo, corresponde à tradição que se instaura a

partir da interpretação de seu texto, compreendido como lei suprema e como fonte de

autoridade paralela à fonte popular do poder, interpretação esta dada historicamente pela

instituição legítima e dotada de autoridade para definir justamente o sentido dessa tradição;

no caso, o poder judiciário e a sua Suprema Corte. A tradição se define a partir do texto e

do “diálogo” técnico-jurídico entre as decisões tradicionais que já existem e as novas

decisões que estão sendo tomadas, pois estas precisam se apresentar tanto como um ato de

manutenção da tradição, quanto como um ato de atualização da tradição. Por não se

vincular a uma vontade, mas a um texto e às decisões que tentam se justificar a sua luz e em

face do histórico das demais decisões, o sentido da Constituição, nesse modelo, é bem

menos fluido e instável que no modelo continental.

Todavia, qual é exatamente esse conteúdo? As características acima elencadas se

reportam ao funcionamento do processo de decisão com base na Constituição, mas não ao

seu sentido específico. A verdade é que o sentido da Constituição tampouco se confunde

exatamente com o texto constitucional (com a norma constitucional), porque deflui da

tradição de decisões que se operacionalizam a partir dele, mas que dele também se

distinguem. A conseqüência disto é que, apesar de bem menos fluido que o sentido

constitucional que deriva do mito da vontade popular, o sentido que deflui do mito da

tradição é tão indeterminado em sua origem quanto o da vontade popular. Na prática,

portanto, o conteúdo concreto identificado com a vontade popular pode, de toda forma, ser

igualmente o conteúdo concreto identificado com a tradição. Do mesmo modo que há uma

ética que deriva da vontade popular, que define o valor da vida, pode haver uma ética que

deriva da tradição, e que igualmente define o valor da vida.

Logo, como o mito define os contornos estruturais da ordem político-jurídica, mas

não seu conteúdo concreto, vontade popular e tradição constitucional podem resultar, em

exclusão – o que é normal pressupõe necessariamente o anormal como possibilidade.

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última instância, em ordens jurídicas com sentido idêntico. Por isto Agamben pode dizer

que faz parte do ser do direito produzir exceção, já que não há nada que impeça que a

realização da tradição constitucional somente possa ocorrer pela suspensão da norma

constitucional (assim como a realização da Constituição depende da suspensão da lei). A

única e irônica diferença é que o modelo tradicional, se por um lado dificulta a

arbitrariedade absoluta que deriva da radicalização do princípio da vontade popular (e,

desse modo, em tese permite que por um tempo mais longo o poder e a autoridade

permaneçam separados e direito e política “funcionem” sem que se crie uma situação geral

de exceção e biopolítica), por outro sedimenta de um modo bem mais firme e duradouro

exceções jurídicas concretas e as práticas biopolíticas que se façam passar por tradição

constitucional.

Há uma diferença, porém, mais substancial. No modelo continental clássico,

proposto por Schmitt473, a autoridade sobre o sentido constitucional pertenceria ao poder

executivo. Uma vez que é igualmente detentor da potestas, ele é detentor de efetiva

soberania. No modelo americano clássico, porém, a autoridade sobre o sentido

constitucional pertence ao poder judiciário, que não tem potestas. Logo, o poder judiciário

pode ser definido apenas como autoridade soberana, mas não como soberano. A despeito de

decidir sobre o sentido constitucional último, depende da provocação externa para poder

estabelecer esse sentido. Enquanto o poder judiciário permanece independente – ou seja,

não cooptado pelo poder executivo – ou, ao menos, enquanto ele decide de modo

independente, os riscos da produção de arbitrariedade e exceção nas suas decisões são bem

menores – ou, em outras palavras, a máquina biopolítica não entra em ação. Via de regra,

portanto, a aproximação de conteúdo da tradição com o conteúdo típico oriundo da

perspectiva da vontade popular somente ocorreria quando o poder executivo lograsse

cooptar o judiciário474.

473 No modelo continental a que Schmitt chamaria de Estado de Direito burguês, tal autoridade pretensamente pertenceria ao poder legislativo, como intérprete autêntico do sentido constitucional. 474 Circunstância, dentro da perspectiva teórica de Agamben, fadada a acontecer.

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No modelo híbrido, porém, tudo se altera475. Lembre-se que no constitucionalismo

contemporâneo, a Constituição é vista simultaneamente como lei suprema (e, portanto,

como potencial fonte de uma tradição) e como fruto da vontade popular. Disso resulta a já

identificada aporia de, apesar de o poder judiciário ser usualmente a autoridade responsável

para definir o sentido constitucional, os magistrados não terem nenhum vínculo

institucional direto, seja representativo, seja democrático, com a vontade popular. De toda

forma, a autoridade do poder judiciário contemporâneo é uma estranha junção da

autoridade judiciária americana com a autoridade executiva (e/ou legislativa) continental

transferida para o poder judiciário. Ou seja, a decisão do poder judiciário, a princípio,

responderia simultaneamente ao que é a tradição e ao que é a vontade popular – outra

aporia, já que a vontade não faz sentido, como vontade absoluta, se for também

“tradicional”, na medida em que a tradição estabelece parâmetros vinculantes e restritivos

para o futuro.

A verdade é que o poder judiciário responde a algo diferente tanto de tradição

quanto de vontade popular – que, todavia, estruturalmente corresponde às questões hauridas

da idéia de tradição e da idéia de vontade popular. No modelo continental, a Constituição se

fundamenta na vontade una e indivisível do povo. No modelo americano, a Constituição

constitui a fonte de autoridade definida pelo ato de fundação da comunidade política. A

interpretação do que é a Constituição no modelo híbrido, tentando dar uma resposta à

aporia de ser simultaneamente lei suprema e vontade popular (lei suprema por corresponder

à vontade popular, mas que limita a vontade popular, limitando assim a si mesma fora de si

mesma), parte da idéia de que a vontade popular se materializa na Constituição como lei

suprema, de modo que essa vontade somente se mostra como una e indivisível na

Constituição476.

475 Frente ao que se tem defendido, pode-se dizer que esse modelo híbrido é mais intenso nas democracias de tradição continental, e menos intenso nas democracias de tradição americana (ou anglo-saxã) – mas presente, de um modo ou de outro, em ambos. 476 Assim, por exemplo, o parágrafo único do artigo 1º da Constituição brasileira afirma que todo o poder emana do povo, mas que esse poder deve ser exercido necessariamente nos termos da Constituição. É vontade da vontade que esta se exerça apenas através da lei suprema.

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Logo, não haveria que se falar em limitação da vontade popular pela lei, porque a

vontade popular una e indivisível e a lei são exatamente a mesma coisa. Tal lógica se

ampara na cisão da idéia da vontade popular em vontade popular pura e simples e em

vontade popular una e indivisível que se manifesta na Constituição. A vontade popular

“pura e simples” não poderia alterar a Constituição, porque esta é a vontade popular una e

indivisível, qualificada, por assim dizer. Veja-se bem – a Constituição não representa a

vontade. Ela é a vontade. Ela é a verdadeira vontade geral, limitando as vontades

passageiras e fluidas, que não são verdadeiramente “unas e indivisíveis”. É evidente que,

neste modelo, a dificuldade em se explicar uma Revolução atinge o grau máximo da

“insuportabilidade” teórica477.

Por outro lado, a vontade popular una e indivisível, a “verdadeira” vontade que se

manifesta como Constituição, é igualmente fundadora de uma tradição constitucional. A

tradição constitucional, nesse contexto, não se origina apenas de sua própria fundação, de

seu próprio princípio – ela é igualmente fruto da vontade popular. A separação do

fundamento do poder e do fundamento da autoridade, elogiada por Arendt em relação à

Revolução Americana, não existe aqui. Se por um lado a Constituição não está sempre em

uma “corda bamba”, sujeita a alterações constantes em face da vontade popular, a tradição

constitucional existe tão-somente porque corresponde à vontade popular “verdadeira” –

sem a qual não poderia subsistir478.

Ora, no modelo americano, a pretensão de estabilidade e durabilidade do corpo

político se ligava ao ideal de autoridade – autoridade propriamente romana e republicana.

No modelo continental, por outro lado, a junção de autoridade com potestas resultava em

uma autoridade que, vista como apresentadora da vontade popular, não tinha, todavia,

qualquer pretensão de promover estabilidade institucional479. No modelo híbrido,

477 Não é raro, em face desse problema, que o poder constituinte originário seja definido como autônomo e “insubordinado”. Afinal de contas, como poderia a vontade popular desejar algo diferente da vontade popular materializada na Constituição? Como explicar isto, à luz desses pressupostos? 478 E, insista-se, quanto a esse aspecto, sobre a completa impossibilidade de se explicar teoricamente quando essa “vontade verdadeira” deixa de corresponder à Constituição vigente para estabelecer legitimamente uma nova ordem constitucional. Lembre-se, sobre esta questão, do aviso de Benjamin, de que simplesmente não existem ordens jurídicas legítimas. 479 Não confundir, neste ponto, estabilidade com durabilidade.

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entretanto, procura-se “casar” a realização da vontade popular com a pretensão de

estabilidade fundada na tradição, por meio da correspondência teórica entre vontade e

tradição. Que vontade e tradição possam ser iguais – que a vontade possa ser lei e não

apenas fonte da lei, esse é um dos aspectos do mito do modelo constitucionalista

contemporâneo.

O contorno lógico de funcionamento da idéia de tradição constitucional é que todas

as decisões tomadas a partir da Constituição sejam ao mesmo tempo conservadoras e

atualizadoras da tradição. Isto se materializa, contemporaneamente, no fortíssimo conceito

de jurisprudência constitucional, e no estudo teórico e prático intenso, quase escolástico,

que se dedica a decisões, precedentes e súmulas constitucionais. O contorno lógico de

funcionamento da idéia de vontade uma e indivisível da nação, todavia, é outro – e se

ampara na já mencionada presunção de existência de uma ética comunitária compartilhada

pelo povo, a partir da qual é possível definir as formas de vida dignas e valiosas, bem como

suas opostas. O conceito de vontade geral está indissociavelmente ligado a esta questão – e,

como não poderia deixar de ser, se reflete sobre o problema constitucional contemporâneo.

Se a Constituição é a vontade popular, então ela também expressa, necessariamente,

a suposta ética da comunidade política – ou, em terminologia consagrada, a Constituição é

Carta de Valores (Carta Política), e define os parâmetros a partir dos quais é possível

definir qual forma de vida é digna, e qual não é – justamente à luz de sua perspectiva ética

comunitariamente compartilhada. É evidente que as Constituições contemporâneas não são

interpretadas (em geral) como documentos que estipulam quais indivíduos devem ser

eliminados em campos de concentração, ou quais indivíduos têm a herança genética

adequada para integrarem o Estado – mas elas são interpretadas, sim, como documentos

que estipulam os valores a partir dos quais as comunidades políticas julgam seus membros.

Em termos estruturais, portanto – e isto não é uma piada – a Constituição vista como

símbolo da vontade popular e carta ética exerce a mesma função institucional do Führer,

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com a única diferença estrutural que uma Constituição, evidentemente, depende de homens

que interpretem o sentido de seus comandos480.

A lei e a ética eram idênticas na manifestação da palavra do Führer – afinal de

contas, ele é o símbolo vivo da vontade da comunidade popular, e, como ser vivo, pode

manifestar imediatamente esta vontade. As Constituições, porém, não são seres vivos481.

Mas, no modelo híbrido, além de carta de valores, são também consideradas como lei

suprema: a conseqüência disto é que, na medida em que a Constituição é uma lei suprema,

ou, em outros termos, é um conjunto de normas constitucionais supremas, os valores

oriundos da ética comunitária se manifestam nela através dos elementos textuais de suas

disposições constitucionais concretas. Todavia, como bem sublinhado por Schmitt, é

impossível interpretar um texto, simultaneamente, para um problema concreto, como norma

e como decisão política (ou valor ético).

A norma constitui-se a partir de uma prescrição exata, que define um caso tipo, em

face do qual as situações concretas ficam submetidas à possibilidade do juízo de subsunção.

A decisão política, o valor, todavia, não se presta ao juízo de subsunção – a definição do

sentido de um valor nunca é jurídica, em seu sentido clássico, na medida em que este

sentido não pode ser dado a partir de um comando prescritivo pré-existente. Isto quer dizer

que a Constituição se apresenta como lei, sem, todavia, ter a forma textual clássica de uma

lei – pois ela se constitui como conjunto de decisões políticas, dentre as quais se destacam,

como explicitado por Schmitt, princípios gerais de direito, direitos fundamentais de

conteúdo explícito indefinido, cláusulas gerais abertas e indefinidas de direito – e, no geral,

prescrições às quais não estão vinculados nem casos tipos, nem sanções jurídicas.

De fato, essa tem sido a forma de escritura de todas as Constituições, até mesmo da

americana. Entretanto, no modelo americano “puro”, a Constituição, a despeito dessa forma

textual, era interpretada à luz da idéia de tradição, enquanto que no modelo continental ela

sempre tendeu a ser interpretada justamente como vontade popular. Tudo isto se dá, de todo

480 O que não quer dizer, evidentemente, que viver sob um regime constitucional se compare, em concreto, com viver em um regime totalitário. 481 Possivelmente para tristeza de vários constitucionalistas.

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modo, porque a Constituição é, estruturalmente, o símbolo da violência mítica que institui a

ordem jurídico-política – essa violência mítica, conquanto possa se manifestar em uma

forma jurídica, nunca é propriamente jurídica, pois a ordem jurídica instituída não tem a

potência ontológica de se autofundar (tal prerrogativa pertence, talvez, à soberania, e se liga

à suspensão da ordem, não à sua instituição). A Constituição, ao se apresentar como força

fundadora ao mesmo tempo em que integra a ordem constituída, estrutura juridicamente um

elemento de violência mítica que não é nem nunca poderá ser direito.

Ela se mostra, portanto, como o elemento anômico, violento, anterior à ordem, que,

todavia, subsiste no interior do direito e que possibilita a própria existência e vigência da

ordem jurídica – este é seu papel central na teoria de Agamben. Ela representa, na

modernidade, a aporia de que a vida anômica, necessariamente anterior ao direito, precisa

de algum modo se manifestar no núcleo central da ordem jurídica para que seja possível a

normalização e a delimitação da própria comunidade política. Sua forma jurídica e a

possibilidade de sua interpretação jurídica não passariam, portanto, de uma ficção – porque

toda interpretação constitucional seria uma remissão ao mito pré-jurídico do qual a ordem

jurídica haure sua suposta legitimidade.

O mito do modelo híbrido se ampara na conjugação da vontade popular com a idéia

de lei suprema. Justamente por isso a autoridade para interpretá-la passa para o poder

judiciário – pois sua legitimidade se ampara na estabilidade que qualquer direito pretende

gozar e na própria neutralidade (pressuposta) da técnica jurídica. Por outro lado, a ausência

de vínculo dessa autoridade com a vontade popular – que de todo modo também a

legitimaria – pode ser mitigada na medida em que o sentido constitucional seja um sentido

valorativo e ético – ligado aos valores e à ética da comunidade popular. E a força mítica do

modelo é invocada em toda sua potência sempre que uma decisão se apresenta como fruto

da técnica jurídica – como realização da lei – bem como afirmação e confirmação dos

valores da comunidade política consubstanciados no texto constitucional. O contra-senso,

aqui, é que a autoridade judiciária e supostamente neutra decida não sobre o direito, mas

sobre os valores éticos oriundos da vontade popular que ela nem representa nem apresenta

democraticamente.

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Na medida em que o texto constitucional passa a ser compreendido como valor e

direito ao mesmo tempo – ou melhor, como valor jurídico – a lógica da interpretação

constitucional abandona a técnica clássica da subsunção ao fato tipo em busca de técnicas

interpretativas abertas que permitam definir o sentido dos valores éticos consumados na

Constituição para os casos jurídicos ou questões políticas apresentados ao juízo de

constitucionalidade. Um direito deixa de ser algo absoluto – no sentido de que ou se tem,

ou não se tem aquele direito em uma circunstância concreta – para se tornar uma tabula

rasa de possibilidades modáveis, fluidas e indeterminadas. O que se quer dizer com isso é

que enquanto a Constituição for presumida como vontade popular, defini-la igualmente

como lei suprema não passará de uma ficção, pois a vontade popular é a fonte de

legitimidade da lei, e não a lei em si482. Uma lei não pode legitimar a si própria – do mesmo

modo que nada além, talvez, do conceito ocidental de Deus, pode absolutamente legitimar a

si próprio. Como bem observado por Schmitt, por mais que a interpretação da Constituição

como vontade popular seja feita em forma jurídica, com técnica jurídica, não se trata de um

juízo de subsunção com base na lei, mas sim de uma interpretação que conduz a uma

decisão de natureza política.

Se a tese de Agamben sobre os direitos humanos e sobre os direitos fundamentais

estiver correta, então as Constituições estavam destinadas, desde seu princípio, a

terminarem por servir de mecanismo definidor do valor das formas de vida nas

comunidades políticas. Até mesmo a Constituição americana, apesar de sua fonte de

legitimidade diversa da vontade popular, estaria igualmente condenada a articular as

condições de inscrição da biopolítica na comunidade por meio dos direitos nacionais e/ou

fundamentais nela conjugados483. A verdade é que os direitos chamados de fundamentais

482 Não que seja impossível pensar a Constituição como lei – o que é impossível é que ela seja ao mesmo tempo lei e fonte da própria legitimidade como lei. Tal não acontecia, como extensamente visto, no modelo americano "puro", no qual a legitimidade residia na fundação de um corpo político que se distinguia claramente da Constituição em si. Uma lei só pode servir de fundamento a si própria de modo abstrato, em um sistema lógico fechado, mas nunca politicamente em concreto. 483 Arendt manifesta-se em termos similares sobre essa questão: “(...) Os crimes contra os direitos humanos, especialidade dos regimes totalitários, podem sempre justificar-se pela desculpa de que o direito equivale ao que é bom ou útil para um todo, em contraste com as suas partes. (O lema de Hitler, de que “o direito é aquilo que é bom para o alemão”, é apenas a forma vulgar de uma concepção da lei que pode ser encontrada em toda a parte e que, na prática, só não permanecerá eficaz se as tradições mais antigas, ainda em vigor nas

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constituem, nessa perspectiva, valores sobre a vida biológica humana – e não estruturas

jurídicas típicas de subsunção. Afinal de contas, o que significa, o que pode significar,

subsumir um assassinato concreto ao direito fundamental à vida?

A confusão entre Constituição e norma constitucional – ou melhor, agora, a

confusão de Constituição como vontade e como lei – tão criticada por Schmitt, não resulta

contemporaneamente na perda da dimensão política e decisionista da interpretação

constitucional que este autor tanto temia caso a atribuição interpretativa competisse ao

judiciário. Pelo contrário, ela introduz na natureza essencialmente política da Constituição

como vontade popular uma segunda e duplamente fictícia instância de legitimidade, na

medida em que se apresenta como fruto da técnica jurídica e do direito. O medo de Schmitt,

de que a técnica jurídica limitasse a grandeza da vontade popular, realizou-se ao contrário:

como valor ético da comunidade, o direito constitucional libertou-se de todas suas amarras

técnicas tradicionais.

A lógica da Constituição como carta de valores depende, para sua realização, de

técnicas e concepções de interpretação abertas e fluidas – que possam definir e redefinir, a

cada momento decisório específico, o que é eticamente valioso para a comunidade (o que é

constituições, o evitarem.) Uma concepção da lei que identifica o direito com a noção do que é bom – para o indivíduo, ou para a família, ou para o povo, ou para a maioria – torna-se inevitável quando as medidas absolutas e transcendentais da religião ou da lei da natureza perdem a sua autoridade. E essa situação de forma alguma se resolverá pelo fato de ser a humanidade a unidade à qual se aplica o que é “bom”. Pois é perfeitamente concebível, e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria –, à conclusão de que, para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma. (...) Estes fatos e reflexões constituem o que parece uma confirmação irônica, amarga e tardia dos famosos argumentos com que Edmund Burke se opôs à Declaração dos Direitos do Homem feita pela Revolução Francesa. (...) De acordo com Burke, os direitos de que desfrutamos emanam “de dentro da nação”, de modo que nem a lei natural, nem o mandamento divino, nem qualquer conceito de humanidade como o de “raça humana” de Robespierre, “a soberania da terra”, são necessários como fonte da lei. A validade pragmática do conceito de Burke parece estar fora de dúvida, à luz de nossas muitas experiências. Não apenas a perda de direitos nacionais levou à perda dos direitos humanos, mas a restauração desses direitos humanos, como demonstra o exemplo do Estado de Israel, só pôde ser realizada até agora pela restauração ou pelo estabelecimento de direitos nacionais. O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano. (...) Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados apátridas, puderam ver, mesmo sem os argumentos de Burke, que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 332-333.

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bom para o povo) e o que não é. Logo, a interpretação constitucional para definição

(decisão) do seu sentido concreto precisa de mecanismos lingüísticos que permitam

confrontar significantes e significados jurídicos díspares em vista da consecução imediata

do valor ou dos valores constitucionais “aplicáveis” à questão em pauta. Isto porque a força

de lei constitucional se “desprende” da norma constitucional e transita para os valores

éticos específicos que derivariam da Constituição como Carta Política, redefinindo, ou

melhor, suspendendo, o sentido lingüístico dos signos jurídicos contidos na Constituição e

na ordem jurídica como um todo.

Tais mecanismos lingüísticos podem ser considerados exatamente como o oposto da

subsunção jurídica clássica – pois seu objetivo é descolar significantes e significados dos

signos jurídicos e constitucionais para, com a força de lei liberada a partir de tal operação,

validar e “implementar” os valores éticos selecionados para a construção da interpretação

constitucional. Sob outro ponto de vista, isto representa também o exato oposto de qualquer

possibilidade de segurança jurídica real. O estudo detalhado de tais técnicas estaria preso a

comunidades políticas e ordens político-constitucionais específicas, o que foge ao escopo

da presente tese. De todo modo, destaquem-se, como principal exemplo, as conseqüências

interpretativas que defluem do chamado princípio da proporcionalidade e da razoabilidade:

a possibilidade de medir valores, de ponderar princípios constitucionais484, de balancear e

equilibrar argumentos éticos, de definir e modular ao infinito os efeitos de uma decisão

jurídica com base no que seria razoável e bom à luz da ética e dos valores que, por estarem

na Constituição, seriam os valores compartilhados pela comunidade popular – todas essas

técnicas interpretativas constituem mecanismos aptos à “liberação” e operacionalização do

trânsito da força de lei constitucional. E, até mesmo no constitucionalismo americano

“puro”, conceitos interpretativos abertos como reasonableness, expediency e o próprio due

process of law existem e possibilitam a existência concreta de situações de exceção real.

Como tudo isto funciona? Um poder judiciário cooptado pelo executivo apresenta-

se como autoridade legítima para decidir em última instância acerca do sentido

484 Parodiem-se, aqui, algumas decisões jurídicas que volta e meia emergem do controle de constitucionalidade “ético-valorativo”: “65% dos elementos da decisão garantem o direito à vida; 35% o direito à liberdade. E, desse modo, ficam garantidos vida e liberdade simultaneamente!”.

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constitucional – sua legitimidade para tanto, apesar de não encontrar fundamento

representativo ou democrático, ampara-se no próprio texto constitucional que a define

como competência, e, dessa forma, se vincula à vontade popular. Do mesmo modo, essa

legitimidade é ainda “fortalecida” pelo fato de as decisões do poder judiciário se

constituírem a partir da técnica jurídica, a princípio neutra e “segura”. Na circunstância

institucional do modelo híbrido, a exceção existe potencialmente na forma de uma decisão

com base em valores constitucionais, que libere a força de lei constitucional e possibilite a

suspensão concreta da ordem jurídica naquele momento decisório. Ela se realiza em

concreto quando de fato isto acontece, convertendo-se em exceção real amparada na

consideração ética sobre os valores compartilhados pelos membros da comunidade (afinal

de contas, eles estão na Constituição).

Que a exceção potencial, sempre presente, possa se converter em exceção real, a

qualquer momento, é um risco do funcionamento do direito ocidental – como proposto por

Agamben – e do próprio funcionamento do poder judiciário nas comunidades políticas em

que a Constituição seja concebida como carta de valores da comunidade485 (ou nas quais o

conceito de soberania é utilizado). Esse risco, todavia, não pode ser considerado, ainda,

como uma situação de exceção real, informal e generalizada. Tal situação passa a existir

apenas quando o poder judiciário, cooptado pela soberania executiva, tende a convalidar, na

grande maioria de suas decisões, a exceção jurídica e a biopolítica executivas por meio de

um discurso decisório ligado a valores constitucionais.

Isto ocorre de modo mais fácil e grave nas comunidades políticas nas quais uma

Corte Suprema tem poder decisório final e vinculante sobre todo o Estado. Quando a

decisão da Corte Constitucional é obrigatória para todo o poder judiciário e para todo o

Estado, a Corte converte-se verdadeiramente em senhora da Constituição. E, de fato, assim

apresentam-se discursivamente e publicamente em muitas das democracias

contemporâneas. Justificam a sua autoridade final sobre o sentido constitucional, além dos

elementos já mencionados, à luz da perspectiva de que funcionam como mantendenoras e

intérpretes dos valores éticos prevalecentes na comunidade política, e compartilhados pelo

485 O comunitarismo, a seu turno, pode ser interpretado como a versão americana dessa perspectiva.

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povo. A Corte decide sobre o que é bom para o povo, sobre quais valores são válidos e

como são válidos. Ao fazer isto, decidem, de um modo ou de outro, quais formas de vida

têm valor ético frente à comunidade, e quais não têm – produzindo, necessariamente, uma

decisão biopolítica.

Quando cooptada pelo executivo, portanto, a Corte Constitucional convalida e

autoriza de modo definitivo a maior parte das ações biopolíticas e dos espaços de suspensão

da ordem jurídica emanados do poder executivo, liberando a força de lei constitucional a

partir de um discurso baseado em valores constitucionais e ética popular que justifica e

legitima como “jurídica” a situação de exceção real, geral e informal implementada pelo

executivo. É nesta circunstância, destarte, que se instaura a exceção real e concreta

generalizada em uma democracia constitucionalista contemporânea. Não há suspensão

executiva soberana geral e informal486 da ordem jurídica em uma democracia, enquanto

democracia constitucionalista, que se constitua em definitivo de outro modo.

Volte-se às formas de controle de constitucionalidade anteriormente mencionadas

neste capítulo, em contraste com as formas lingüísticas de operacionalização da exceção. A

lógica da implementação de valores permite ao poder judiciário a implementação discursiva

de qualquer uma das espécies de exceções lingüísticas. Conforme visto no capítulo IV, a

exceção lingüística incide na relação E-R-C entre significante e significado, que compõe

estruturalmente o signo e o direito enquanto sistema de significação. Pois bem. A

suspensão de “R”, usualmente existente na exceção formal, implica na perda momentânea

da vigência jurídica do signo, sem que no entanto “E” ou “C”, significante e significado,

deixem de ser válidos e vigentes ou de pertencer ao ordenamento jurídico. Este modelo de

exceção pode ser informalmente implementado na medida em que alguma espécie de

consideração valorativa ponderada justifique a suspensão de “R” enquanto

simultaneamente re-afirma a validade de “E” e de “C”, que, de fato, somente podem ser

486 Suspensões casuais e violações da ordem jurídica, todavia, podem ocorrer diariamente sem que se possa dizer que há uma suspensão geral e informal da ordem jurídica.

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ajustados e mantidos frente aos valores encampados pela decisão por meio da suspensão de

“R” 487.

A suspensão de “E” pode ocorrer na medida em que o significante jurídico é

eliminado e substituído pela ponderação valorativa realizada pelo discurso do controle de

constitucionalidade em concreto, apresentada como conteúdo, como “C”. Com isto se quer

dizer que significados jurídicos concretos formatam a decisão constitucional sem que

mantenham vínculo com significantes específicos – pelo contrário, sua apresentação

discursiva é feita a partir do trânsito da força de lei liberada do significante suspenso para a

consideração valorativa e ética que embasa a decisão488.

Já a suspensão de “C”, que foi definida como o caso típico de exceção generalizada

e informal das democracias contemporâneas, é fácil de ser compreendida à luz da

interpretação valorativa do sentido constitucional. Os significados jurídicos típicos são

suspensos em vista do conjunto de valores constitucionais, conforme interpretados pelo

poder judiciário – que passam a constituir o plano de expressão jurídico (significante, “E”).

A despeito de, a princípio, tais significantes não significarem concretamente nada, são a

todo tempo discursivamente invocados para poder significar qualquer coisa, conforme a

manipulação discursiva de valores éticos o permita, ou, em outros termos, para convalidar

qualquer ação concreta executiva, biopolítica ou de suspensão da ordem jurídica, que se

apresente para ser autorizada pela autoridade judiciária cooptada489.

487 Assim, por exemplo, o discurso jurídico que simultaneamente re-afirme o direito à inviolabilidade do domicilio, mas aceite a suspensão concreta e formal dessa inviolabilidade para um determinado espaço urbano, em nome do valor segurança. Constitui-se, nesse caso, uma típica exceção que deveria ser formal e emergencial através de um procedimento de suspensão informal da ordem jurídica. 488 Mantendo o exemplo da violação de domicílio em um espaço urbano delimitado, essa espécie de suspensão ocorreria caso o discurso jurídico desvinculasse o significante “inviolabilidade do domicilio” do significado concreto “inviolabilidade do domicilio”, deslocando a força de lei que deflui desse significante para convalidar o conteúdo concreto da efetiva violação de domicílios realizada naquele espaço urbano como jurídica e válida. Assim, a suspensão do “E” (significante “inviolabilidade de domicílio”) libera uma força de lei que permite a construção de uma relação “R”-“C” em que “C”, o significado “violação de domicílio” se apresenta como jurídico em relação (“R”) com o mero fantasma da força de lei haurida da suspensão do “E” “inviolabilidade de domicílio”. 489 Nesse caso, o significante “inviolabilidade de domicílio” é mantido, mas o significado “inviolabilidade de domicílio”, não. A situação de suspensão concreta do significado “inviolabilidade de domicilio” possibilita que um novo significado construído, suponha-se, a partir de uma complexa ponderação discursiva entre os valores “segurança” e “ordem pública”, seja momentaneamente vinculado ao significante “inviolabilidade de domicílio”, e assim apresentado como tal. Nessa hipótese, o discurso jurídico afirmaria que a invasão dos

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A suspensão simultânea de “E” e de “C”, felizmente, não pode ser realizada por um

poder judiciário cooptado. Tal suspensão somente pode ocorrer em uma situação na qual

não há mais nenhuma espécie de instância discursiva, e se instaura apenas em uma

circunstância em que uma soberania absoluta prescinde de qualquer espécie de autoridade

desvinculada da potestas, seja judiciária, seja de qualquer outra espécie.

Idêntico raciocínio traçado a respeito dos planos de expressão e de conteúdo

jurídicos pode ser feito em relação à constituição do discurso jurídico a partir de sintagma e

de sistema. A exceção formal, informalmente realizada pelo poder judiciário, realiza uma

suspensão externa dos eixos do sistema e do sintagma a partir de uma consideração ética de

valores. A suspensão do eixo do sistema, que corresponde à suspensão de “E”, possibilita

um discurso que se constrói pela apresentação da interpretação valorativa sem nenhum

vínculo com algum significante jurídico pré-existente; ou seja, esse discurso de atualização

sem seleção, pode-se dizer, atualiza os valores ponderados sem vinculá-los a um conjunto

de símbolos e regras pré-existente. Por fim, a suspensão do eixo do sintagma, típica

exceção informal e generalizada, nada mais é que a colagem de valores (apresentados como

significantes, ou seja, como elementos para seleção discursiva) a significados soltos e

concretamente selecionados para compor a decisão. Nesse caso, a seleção de valores nunca

é atualizada, porque a qualquer momento o valor pode ser atrelado a outro sentido, a outro

significado. Não espanta, portanto, que esta seja a forma mais comum da exceção jurídica

informal.

Lembre-se, ademais, que na exceção extrema do campo de concentração ocorre a

suspensão completa do discurso. No campo, portanto, não pode haver discurso jurídico. Há,

aqui, porém, uma questão que merece ser analisada. Se no campo não pode haver discurso

jurídico, por outro lado a existência de um campo de concentração pode ser validada e

domicílios na verdade nada mais era que a garantia da inviolabilidade dos domicílios. É importante, ressaltar, porém, a fluidez e instabilidade desse modo de exceção. Se hoje o discurso apresenta a violação de domicílio em um determinado espaço urbano como efetiva manutenção da inviolabilidade de domicílio, amanhã pode considerar, à luz, por exemplo, da ponderação dos valores “dignidade humana” e “proporcionalidade econômica”, que uma ordem judicial autorizando uma busca e apreensão foi em verdade abusiva e configurou uma efetiva “violação de domicilio”.

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autorizada por um discurso jurídico, por um poder judiciário cooptado. Com isto se quer

dizer que a suspensão completa do discurso em um espaço delimitado pode ser discursiva e

externamente justificada por um discurso jurídico. Isto ocorre todas as vezes em que um

espaço, criado pelo poder executivo e no qual vida, fato e direito se indeterminam

completamente, com a conseqüência de que o discurso desaparece por completo, é

convalidado e justificado como legítimo e jurídico pelo discurso judiciário490. Nesse caso, o

espaço do campo, onde não há ordem jurídica, onde se realiza a suspensão absoluta da

ordem jurídica, é apresentado – fora dele – discursivamente como jurídico.

O discurso que legitima a existência do campo, do espaço de absoluto silêncio na

indeterminação entre fato e regra, é necessariamente ético e valorativo. Ampara-se, em

última instância, na ficção da vontade popular, na ética comum compartilhada pela

comunidade popular. Logo, pode assumir a forma de qualquer um dos outros discursos da

exceção, amparada na indeterminação de significados e significantes e no trânsito livre da

força de lei constitucional, amparada no mito da vontade do povo e da nação. Entretanto,

ele possui uma característica que lhe é única: o discurso jurídico que legitima a suspensão

absoluta da ordem jurídica é a interpretação constitucional que autoriza a suspensão da

própria Constituição em um determinado espaço.

Suspensão constitucional da Constituição – este é o abandono da Constituição. A

conseqüência final da teoria de Agamben, neste ponto, é a de que a realização biopolítica

final da Constituição – dos direitos fundamentais e da soberania popular – somente pode

ocorrer na medida em que a Constituição abandona-se a si própria. O fundamento

ontológico último da Constituição, portanto, seria a sua inclusão na ordem jurídica

amparada desde o início na possibilidade sempre presente de sua exclusão a partir de si

própria. O abandono da Constituição representa a lógica de que a realização ética e

valorativa final da Constituição pode significar, em seu momento último, a suspensão e

eliminação completa desses valores e dessa ética. A realização do valor como ausência

assassina de valor é a marca do campo de concentração, e o fantasma que assombra os

espaços biopolíticos contemporâneos.

490 O exemplo imediato de Guantánamo e Abu Ghraib, enquanto legitimados pelo poder judiciário e pela

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Em outros termos, a Constituição está incluída na ordem jurídica porque pode se

excluir dela – e igualmente está excluída da ordem jurídica (ou pode dela se excluir) por

estar desde já nela incluída como seu fundamento de legitimidade. Isto se deve à aporia de

que algo possa legitimar aquilo em que está incluso – não pode. Como o fundamento

último da ordem jurídica é a Constituição, quando a ordem jurídica não é mais

positivamente valorada, apenas a Constituição que a legitima pode igualmente legitimar sua

suspensão – mas, como a Constituição integra a ordem jurídica, então a suspensão da

ordem jurídica somente pode ocorrer caso a Constituição suspenda a si própria em nome de

sua própria manutenção. Mas essa manutenção, evidentemente, não é manutenção como

integrante da ordem jurídica – e sim como fundamentação de legitimidade da validade

dessa ordem.

Nesta questão o mito moderno revela toda sua força estrutural, bem como sua

natureza intrínseca necessariamente violenta e anômica. Quando o discurso constitucional

resulta na suspensão da Constituição, o mito violento que institui qualquer ordem jurídica

mostra que o núcleo de sua preservação e existência é a situação na qual não há direito, não

há ordem instituída – e a Constituição que é “preservada” no espaço em que ela está

suspensa é tão-somente a pura violência mítica que repousa na base da ordem jurídica e

que, um dia, apresentou-se, misticamente, como fundamento e elemento da ordem jurídica.

É esta aporia que possibilita o discurso do abandono – é esta aporia que permite que a

realização constitucional corresponda à ausência da Constituição.

A Constituição, portanto, como fonte de legitimidade da ordem jurídica, é anômica.

Por pretender integrar a ordem ao mesmo tempo em que está fora e acima dela, ela introduz

na ordem jurídica – substituindo o papel tradicional do soberano – o elemento anômico que

Agamben identifica como o fundamento ontológico do próprio direito. Nestes termos, a

Constituição pode ser chamada de soberana – e o abandono da Constituição pela

Constituição é o fundamento ontológico último de estruturação das democracias

constitucionais contemporâneas. Obviamente, que a Constituição seja soberana é uma

Suprema Corte americanos, vêm imediatamente à mente.

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ficção, e que o direito e a política continuem “funcionando” diante de uma separação

adequada entre auctoritas e potestas institucionalizada por um texto constitucional é bem

mais fácil de acontecer em uma democracia constitucionalista do que em um regime

absolutista ou totalitário. Afinal de contas, apenas homens e organizações de homens

podem ser soberanos, podem ter auctoritas ou potestas, em concreto.

Há, em face disto, uma última e imprevista ironia na lógica de funcionamento

estrutural da perspectiva de Agamben nas democracias contemporâneas. Quando o poder

executivo coopta a autoridade judiciária – autoridade soberana – ele se torna soberano; sua

soberania pode ser descrita nos termos em que Agamben descreve a soberania em geral,

mas é bem menos estável e absoluta do que se pode imaginar, pois, enquanto o poder

judiciário permanecer existindo, ele pode, em tese, “recuperar” sua independência e

operacionalizar novamente uma separação adequada entre auctoritas e potestas. Conforme

mencionado há pouco, a cooptação é mais grave e potente nos modelos institucionais nos

quais a Corte Suprema toma decisões definitivas e vinculantes para todo o poder judiciário

e o Estado. É preciso refletir, todavia, sobre as várias formas teóricas possível de instituição

do controle de constitucionalidade, bem como de legitimação para sua provocação,

inclusive em vista dos modelos de realização do controle anteriormente citados.

Nessa perspectiva, pode-se imaginar, estruturalmente, os seguintes modelos

institucionais de controle de constitucionalidade judiciário:

1) Todo o poder judiciário pode exercer controle de constitucionalidade, e a as

decisões da Corte Constitucional não têm efeito definitivo e vinculante sobre o restante do

poder judiciário e do Estado (como mencionado alhures, este modelo provavelmente nunca

existiu historicamente – de todo modo, caso fosse experimentado, provavelmente se

depararia com grandes dificuldades para sustentar até mesmo um simulacro de segurança

jurídica na sociedade);

2) Apenas a Corte Constitucional pode exercer controle de constitucionalidade, e as

suas decisões têm efeito definitivo e vinculante sobre o restante do poder judiciário e do

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Estado (este é o modelo continental típico da Europa pós-Primeira Guerra Mundial, no qual

o controle é exclusivo do Tribunal Constitucional);

3) Todo o poder judiciário pode exercer controle de constitucionalidade, e as

decisões da Corte Constitucional têm efeito definitivo e vinculante sobre o restante do

poder judiciário e do Estado (este é o modelo norte-americano, e também o brasileiro, com

a diferença de que o controle americano é apenas incidental, enquanto o brasileiro pode ser

incidental e em abstrato).

Via de regra, o controle é separado em concreto (ou incidental) – ou seja, a

interpretação de constitucionalidade que ocorre a partir de um caso real apresentado ao

poder judiciário – e em abstrato, que corresponde à análise em tese da constitucionalidade

de uma lei ou de um ato de um dos poderes, sem nenhum vínculo com uma situação

concreta específica apresentada ao poder judiciário. Historicamente, o controle abstrato no

sentido apresentado, quando existente (não há, por exemplo, nos Estados Unidos), é

reservado às Cortes Constitucionais. É possível imaginar, ainda, modelos institucionais nos

quais a Corte Constitucional somente pode exercer controle abstrato, ou somente pode

exercer controle incidental, ou pode realizar a ambos, sendo que o incidental ocorre na via

recursal, e o abstrato na via originária491. Nesse sentido, pode ocorrer de a Corte realizar o

controle em abstrato, e o restante do poder judiciário o controle incidental, sendo vedado à

Corte o controle de constitucionalidade incidental pela via recursal.

Nessa perspectiva, os questionamentos constitucionais decorrentes de situações

concretas entre particulares (“a)”), realizam-se na forma incidental. Os decorrentes de

situações entre um poder e particulares (“b)”), em geral, também ocorrem na forma

incidental (já que não é comum que se atribua a particulares a possibilidade de questionar

leis em tese, fora de um contexto concreto). Os decorrentes de conflitos entre poderes

(“c)”), normalmente podem ser levados ao poder judiciário tanto no modo incidental quanto

491 A apresentação é esquemática, e não pretende esgotar o tema. Existem modelos híbridos, no qual uma espécie de controle abstrato pode nascer de um caso concreto – ou seja, provocado por um caso concreto, decide-se sobre a constitucionalidade em tese de uma lei. Essa questão, todavia, não é importante para o problema que se pretende apresentar, na medida em que seus eventuais efeitos são similares aos que já decorrem de ambas as modalidades de controle que ela mistura.

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no modo abstrato. As duas últimas hipóteses (“d)” e “e)”), relativas ao questionamento da

constitucionalidade das leis e emendas constitucionais, em geral podem ser realizadas na

forma incidental, a partir de um caso concreto, ou na forma abstrata, provocando um juízo

de constitucionalidade em tese. Este último ponto conduz ao problema da legitimação para

provocação do controle de constitucionalidade.

Quando todo o poder judiciário pode realizar controle de constitucionalidade, a

possibilidade de provocação do controle costuma ser atribuída a todo e qualquer indivíduo,

em sua forma incidental. Quando a Suprema Corte realiza controle incidental pela via

recursal, ou seja, aprecia em última instância o controle realizado pelo judiciário,

normalmente também se aceita que qualquer indivíduo possa a ela recorrer. Entretanto, o

controle de constitucionalidade em abstrato costuma ser reservado a um rol restrito de

pessoas ou órgãos estatais legitimados para questionar a constitucionalidade em tese de leis,

de atos de algum dos poderes ou de emendas constitucionais. A possibilidade de que

qualquer indivíduo possa levar um questionamento abstrato até a Corte Constitucional é

institucionalmente rara.

Na hipótese de cooptação do poder judiciário, pode-se identificar os seguintes graus

de risco e gravidade, a partir da intersecção dos modelos apresentados. A cooptação de uma

Corte Suprema que tem exclusividade para o exercício do controle de constitucionalidade é

mais grave que a cooptação de uma Corte Suprema que compartilha o controle de

constitucionalidade com o restante do poder judiciário. Ademais, quanto menos forem os

legitimados para provocar a jurisdição constitucional, mais grave é a cooptação. Isto se dá

por dois motivos: primeiro, porque se apenas a Corte decide sobre o sentido constitucional,

então basta que ela seja cooptada pelo executivo para que a suspensão geral e informal da

ordem jurídica possa ser legitimada; segundo, porque quanto menos pessoas ou órgãos

puderem provocar o controle de constitucionalidade, menor serão as chances de que a

autoridade judiciária, mesmo cooptada, possa impedir a realização concreta da exceção e da

biopolítica – tanto que, nesse caso, a cooptação do rol de legitimados para provocação do

controle de constitucionalidade pode ser mais eficiente que a cooptação da própria Corte, e

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eventualmente pode conduzir a uma situação totalitária ou absoluta de soberania executiva,

na qual o poder judiciário nunca se manifesta.

Por outro lado, a cooptação de uma Corte que pode realizar apenas o controle em

abstrato, e não o controle incidental pela via recursal, é a menos arriscada de todas. Isto

porque o controle de constitucionalidade incidental que se desenvolve no restante do poder

judiciário funciona como contrapeso de um possível controle cooptado em abstrato da

Suprema Corte, que, de todo modo, fica bem mais restrito (mas não amarrado, é claro),

como modo de convalidação da exceção executiva – até porque decisões incidentais

concretas moldarão os rumos do debate jurídico e pré-estabelecerão critérios discursivos

que de algum modo deverão (ou deveriam) ser apreciados pela Corte Suprema ao realizar o

controle abstrato.

Quando a Corte Suprema compartilha o controle incidental com o restante do poder

judiciário, é preciso fazer mais uma distinção, relativa aos efeitos finais de sua decisão em

sede de interpretação constitucional. Institucionalmente, tanto pode ser que apenas as

decisões em controle de constitucionalidade abstrato tenham efeito vinculante, como que

tanto as decisões em controle de constitucionalidade abstrato quanto incidental, na via

recursal, tenham ou possam ter efeito vinculante. Aparentemente, quando a força vinculante

reside apenas nas decisões em abstrato, há o menor risco possível, de modo similar ao da

Corte Suprema que não pode decidir pela via incidental. Isto porque a cooptação de todo

um poder judiciário em uma democracia é muito difícil de ocorrer (apesar de não ser

impossível), e porque os debates constitucionais incidentais fora da Suprema Corte

exerceriam, como já mencionado, de um modo ou de outro, uma espécie de autoridade

informal sobre as opiniões da Corte.

O que ocorre, porém, quando todos os modelos são conjugados? Ou seja, quando: a

Corte Constitucional pode realizar controle em abstrato, com efeito definitivo e vinculante

para o restante do poder judiciário e do Estado, vinculado a um rol de legitimados para

provocá-la; o restante do poder judiciário pode realizar controle de constitucionalidade

incidental, provocado por qualquer cidadão ou indivíduo; a Corte Constitucional pode

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realizar controle incidental pela via recursal, com efeito definitivo e vinculante para o

restante do poder judiciário e do Estado, originado da provocação primeira de qualquer

cidadão ou indivíduo492. Corre-se o risco, nesse cenário, de duas ocorrências: a primeira

delas é a mais terrível das cooptações executivas de Suprema Corte possível, na medida em

que o poder decisório desta Corte é tão amplo quanto todas as questões que sejam levadas

até o poder judiciário – permitindo-se, dessa forma, que até a mais insignificante das

exceções executivas possa ser eventualmente legitimada em definitivo pela Corte, ou que o

menos complexo dos casos concretos legitime a mais ampla das exceções jurídicas

sistematicamente praticadas pelo executivo.

A conseqüência mais grave, porém, é a de que a Corte Constitucional se torne um

espécime peculiar e inédito de soberano, de poder soberano. Foi dito, anteriormente, que o

poder judiciário não podia ser considerado soberano porque a definição do sentido

constitucional final somente podia ser discursivamente exarada quando havia uma

provocação de algum ente legitimado para tanto. Faltava-lhe a potestas necessária para, por

si próprio, suspender a ordem jurídica, ou, em outros termos, dar o sentido constitucional

definitivo, para um determinado instante histórico, a seu bel-prazer, ao seu livre alvitre.

Todavia, quando uma Corte Constitucional passa a poder tomar decisões finais e

vinculantes do sentido constitucional tanto a partir do controle em abstrato, quanto a partir

do controle incidental pela via recursal, ela deixa de precisar concretamente dessa potestas,

e passa a funcionar como se tivesse essa potestas – porque deixa de existir qualquer espécie

de sentido constitucional que escape de seu juízo, cuja falta de provocação deixa de ser

empecilho real para ser manifestado.

Isto ocorre porque em uma democracia constitucional complexa, os

questionamentos constitucionais realizados pela via difusa e incidental são inesgotáveis, e,

potencialmente, atingem qualquer aspecto da ordem político-jurídica da comunidade493. Se

492 Dentre outras manifestações institucionais vinculadas especialmente a este cenário, podem-se citar as súmulas de Tribunais Constitucionais, e, especialmente, como resultado final da competência ampla do controle de constitucionalidade, as súmulas de natureza vinculante – que estendem para fora da decisão jurídica o efeito vinculante do controle de constitucionalidade. 493 Ironicamente, a vítima que teve seu domicílio violado pode ser justamente a parte do processo que permite à Corte autorizar e considerar constitucional, valorativamente constitucional, a violação de seu domicílio. Ou,

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por um lado a Corte Constitucional não tem a potestas para dar início à produção

independente e não provocada de sentido constitucional, o universo infinito de

questionamentos constitucionais sobre todos os temas possíveis que se desenvolve no

restante do poder judiciário lhe fornece matéria mais do que suficiente para substituir

adequadamente essa falta da potestas. A partir da vastidão de questões que lhe podem

chegar oriundas do controle de constitucionalidade exercido pelo restante do poder

judiciário, a Corte Constitucional pode adquirir um curioso tipo de autoridade que, não

sendo precisamente auctoritas principis, mas tampouco sendo apenas autoridade judiciária,

lhe permite funcionar como decididora final e, na prática, arbitrária (que independe de

provocação, porque tem a seu dispor uma possibilidade recursal tão ampla de decidir sobre

o sentido constitucional em definitivo, que é como se não precisasse ser provocada) da

normalidade da ordem jurídica, de sua validade e suspensão, da exceção, dos valores e, ao

fim de tudo, da própria biopolítica da comunidade494. Tudo isto, no fundo, porque sua

lógica de decisão, pela via do valor e da ética da comunidade política, remonta à soberania

da vontade popular495.

Como Agamben faz questão de anotar, os princípios modernos terminam por ter um

efeito contrário ao que aparentemente pretendiam causar ou obstar. Assim, é a lógica

democrática e bem intencionada de que todos os magistrados podem realizar controle de

constitucionalidade, combinada com a proposta mais democrática e plural ainda de que

todo ser humano pode invocar a Constituição em sua defesa, que, misturadas à

possibilidade de um único órgão tomar decisões definitivas e vinculantes sobre o sentido

constitucional, permitem a re-emergência da típica soberania biopolítica cuja arqueologia

remonta à fundação das primeiras comunidades políticas ocidentais. Este, todavia, diria

nestas hipóteses mais graves, seu processo pode ser justamente o que permite à Corte autorizar e considerar qualquer violação de domicílio naquele espaço urbano específico como valorativamente válida frente à Constituição. Aqui, pode ser que a Corte esteja agindo cooptada, mas pode igualmente ser que ela esteja agindo como soberana. 494 E, voltando-se ao tema da súmula vinculante, ela marca o reconhecimento explícito das possibilidades soberanas da Corte Constitucional, na medida em que lhe atribui um poder tipicamente político e legislativo. Schmitt certamente repensaria seu conceito (e provavelmente o seu juízo) de Estado Judicante caso se deparasse com essa circunstância. Na mesma medida, o Mandado de Injunção pode ser interpretado como um instituto de semelhante função estrutural. 495 O significado da tentativa revolucionária americana de separar o fundamento da autoridade do fundamento do poder, por fim, revela toda sua importância prática, ao mesmo tempo em que lança luz, igualmente, sobre seu estrondoso fracasso estrutural contemporâneo.

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Agamben, é o destino ontológico e inescapável do direito em sua relação com a política e a

modernidade.

Quando uma Corte Constitucional arroga-se esse tipo de soberania496, ela apresenta-

se como a instituição última que toma todas as decisões relevantes na comunidade política

– e como guardiã dos valores dessa mesma comunidade e de seu povo. De certa forma,

passa a reunir todos os feixes de autoridade e poder existentes – lançando mão, em suas

decisões, de caracteres vinculados não só à autoridade judiciária, mas também aos ramos

legislativo e executivo da potestas. E, como não poderia deixar de ser, torna-se o órgão

vivo que apresenta a vontade popular e simboliza a tradição que deriva da Constituição

como lei suprema. Sua palavra discursiva, materializada em suas decisões, conserva e

atualiza a tradição constitucional ao mesmo tempo em que se propõe como vontade

valorativa e ética popular. Converte-se, assim, no emblema do mito e da força instituidora

da ordem jurídica, no elemento anômico localizado no núcleo da ordem político-jurídica, e,

conseqüentemente, substitui a própria Constituição (na medida em que a Constituição é e

somente é aquilo que a Corte define como Constituição) como fundamento último e

soberano da comunidade política.

O grande risco, ao final, é justamente o de que a lógica do abandono da Constituição

deixe de ser apenas potencial e se torne a regra real, a partir da atuação soberana da Corte

que pode ser adequadamente chamada de “lei viva”. O perigo é o de que a realização da

Constituição como auto-abandono, ou seja, a realização da Constituição como suspensão da

Constituição se efetive não por alguma manobra totalitária ou emanada do poder executivo,

do detentor da potestas, mas sim pelo próprio poder judiciário cuja autoridade específica

fora concebida para evitar a junção de auctoritas e potestas e o império absoluto de uma

soberania biopolítica que delimita sempre, ao infinito, os espaços nos quais a ordem

jurídica está suspensa. A interpretação final que se pode tirar da teoria de Agamben, em

relação às democracias contemporâneas, portanto, é a de que o paradigma do campo de

496 Tenha-se em mente, neste ponto, que este processo não precisa se apresentar como definitivo e absoluto. É muito possível que uma Corte Constitucional atue ora como cooptada pelo poder executivo, ora de fato como autoridade judiciária, ora como soberana, sem que isso provoque grandes cataclismos discursivos ou institucionais. A indeterminação de conceitos, de direito, poder, política, soberania e autoridade, tão sublinhada por Agamben como marca de sua teoria, está igualmente aqui presente.

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concentração, a definição e re-definição incessante dos modernos homines sacri, conquanto

possa ser realizada pelo poder executivo e convalidada pelo poder judiciário, pode muito

bem ser concebida, articulada e imposta diretamente de dentro de uma sala de tribunal, em

belos termos jurídicos gravados em papel timbrado e publicados à vista de toda a

sociedade.

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Conclusão.

Antonio Negri, em sua principal obra, “Império”, acredita ter identificado a

emergência de uma nova forma de soberania que se estabelece não em nível nacional, mas

sim de modo global. Ela não estaria vinculada, portanto, à lógica do Estado-nação. Tal

soberania, que ele denomina de imperial – invocando “já comuns” ecos romanos – é, assim

como a soberania de Agamben, fundada na lógica do estado de exceção e de suspensão da

ordem jurídica, bem como produtora e reprodutora incessante de biopolítica. Ela não seria,

todavia, nem localizável, nem definível – pois exercer-se-ia de modo difuso a partir dos

vários feixes de poder e interesses capitalistas que se articulam na ordem econômica

globalizada.

Negri sublinha, em sua perspectiva, a grande importância que o direito, e,

especialmente os tribunais internacionais, têm e terão para a articulação e funcionamento da

nova soberania imperial. O discurso jurídico, nesse caso, estaria vinculado, por exemplo, à

legitimação e justificação posterior – ou seja, após a sua realização concreta – das

chamadas guerras preventivas, cuja existência está atrelada a uma lógica executiva e

policial:

A relação entre prevenção e repressão é particularmente clara no caso de intervenção em conflitos étnicos. Os conflitos entre grupos étnicos e o conseqüente reforço de novas ou ressurrectas identidades étnicas de fato perturbam as velhas agregações baseadas em linhas políticas nacionais. Esses conflitos tornam mais fluido o tecido das relações globais e, ao afirmar novas identidades e novas localidades, apresentam um material mais maleável para controle. Em tais casos, a repressão pode ser articulada mediante ação preventiva que constrói novas relações (que serão consolidadas em tempos de paz, mas somente após novas guerras) e novas formações territoriais e políticas, funcionais (ou mais funcionais, mais adaptáveis) à constituição do Império. Um segundo exemplo de repressão preparada por meio de ação preventiva são as campanhas contra grupos empresariais corporativos, ou “máfias”, particularmente aquelas envolvidas na venda de drogas. A repressão efetiva desses grupos pode não ser tão importante quanto criminalizar suas atividades e administrar alarmes sociais sobre sua existência para facilitar o controle. Ainda que controlar “terroristas étnicos” e “máfias da droga” possa representar o centro do vasto espectro de controle policial da parte do poder

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imperial, essa atividade é, não obstante, normal, ou seja, sistêmica. A “guerra justa” é efetivamente apoiada pela “polícia moral”, assim como a validade do direito imperial e seu funcionamento legítimo são apoiados pela necessidade e pelo exercício contínuo de poder policial.

É claro que os tribunais internacionais ou supranacionais são compelidos a seguir esse exemplo. Os exércitos e a polícia antecipam os tribunais e constituem previamente as regras de justiça que os tribunais devem aplicar. A intensidade dos princípios morais aos quais é confiada a construção da nova ordem mundial não pode alterar o fato de que isso é, na realidade, uma inversão da ordem convencional e da lógica constitucional. As partes ativas que apóiam a constituição do Império confiam que, quando a construção do Império estiver suficientemente avançada, os tribunais serão capazes de assumir seu papel de liderança na definição de justiça. Por ora, entretanto, apesar de os tribunais internacionais não terem muito poder, demonstrações públicas de suas atividades ainda são muito importantes. Terá de ser, finalmente, formada uma nova função judicial que seja adequada à constituição do Império. Tribunais deverão ser transformados, gradativamente, de órgãos que simplesmente promulgam sentenças contra os dominados, em corporação judicial ou sistema de corporações que dite e sancione a inter-relação da ordem moral com o exercício da ação policial e o mecanismo da legitimação da soberania imperial.497

Independentemente de Negri ter razão quando à efetiva emergência de uma nova

soberania imperial, a descrição que ele faz dos futuros tribunais imperiais corresponde

exatamente ao papel exercido por uma Corte Constitucional cooptada por um poder

executivo com pretensões soberanas. E, não à toa, Negri ressalta em que medida essa

espécie de atuação judiciária se opõe ao que ele chama de “lógica constitucional” por meio

da promoção e defesa de valores morais498. A expansão da idéia de valor como fundamento

da atuação judiciária é fenômeno contemporâneo que marca o funcionamento institucional

da maior parte das democracias ocidentais, se não de todas.

E, caso Negri de fato tenha razão a respeito da emergência de uma soberania além

do modelo do Estado-nação, vinculada à constituição da nova ordem global que ele chama

de Império, os problemas levantados por Agamben e discutidos nesta tese não se tornam

497 NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. p. 56-57. Um tribunal cooptado pelo executivo é já atualmente uma corporação judicial que dita e sanciona a inter-relação da ordem moral com o exercício da ação policial e executiva. 498 Em outra passagem, ele consigna expressamente que: “(...) O que está por trás dessa intervenção não é um permanente estado de emergência e exceção, mas um permanente estado de emergência e exceção justificado pelo apelo a valores essenciais de justiça. Em outras palavras, o direito de polícia é legitimado por valores universais.” NEGRI, Antonio et HARDT, Michael. Império. p. 36. As conclusões tiradas no capítulo final desta tese harmonizam-se perfeitamente com essa afirmação de Negri, ao menos em relação ao papel que a idéia de valores exerce sobre a implementação da exceção e da emergência. Basta substituir a idéia de Estado-nação pela de universalidade (da humanidade).

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menos graves – muito pelo contrário, passam a demandar uma atenção redobrada,

mormente em face da identificação das novas formas de funcionamento e localização dessa

soberania. Isto porque a perspectiva de Agamben é, já em sua origem, ontológica – ou seja,

qualquer que seja o conceito de soberania ou de direito que se apresente, ele estará a

princípio atrelado de algum modo – caso não se demonstre teoricamente o contrário – ao

modelo de funcionamento biopolítico de abandono e de suspensão da ordem jurídica.

As conclusões que se podem tirar a partir da teoria de Agamben, tendo em vista

principalmente a pergunta acerca do papel do poder judiciário em vista da natureza

ontológica do direito e da política – independentemente de a soberania ser interpretada

como vinculada ao Estado-nação, como quer Agamben, ou ao “Império”, como quer Negri

–, são não só deprimentes como desanimadoras, na medida em que apresentam um sólido

quadro teórico no qual todo e qualquer exercício de autoridade está eventualmente sujeito a

se atrelar à potestas e se converter em exercício de soberania biopolítica.

Tais conclusões, entretanto, não são tão radicais e inescapáveis quanto o texto de

Agamben originalmente faz parecer. Não existe um campo de concentração a cada esquina

dos grandes centros urbanos ocidentais, ao menos não na maioria deles. O grande problema

colocado, ao final, é o da possibilidade sempre presente da exceção e da biopolítica se

tornarem reais, enquanto elementos ontológicos constitutivos do direito e da política. A

exceção potencial, mais do que uma suposta exceção concreta que já seria a regra e a

realidade no mundo contemporâneo, é que traz enormes dificuldades à reflexão

institucional sobre o direito e a política a partir de Agamben.

Como se insistiu várias vezes ao longo desta tese, os avisos de Agamben são melhor

compreendidos não como circunstância concreta e inescapável já presente nas democracias

contemporâneas, mas sim como a potência de risco, o risco efetivo, que existe no

funcionamento das instituições políticas e jurídicas da modernidade. Ou seja: não se trata

de toda política ser já biopolítica, nem de todo direito ser já exceção – mas sim de que por

trás de toda a política, e por trás de todo o direito, em suas lógicas ontológicas de

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funcionamento, reside a possibilidade de, a qualquer momento, a junção entre auctoritas e

potestas se realizar e direito e política se tornarem exceção e tanatopolítica.

Nesta medida, o pensamento de Agamben parece ter de fato a lacuna originalmente

identificada: não há em sua narrativa nenhuma explicação sobre o papel do poder judiciário

para a efetivação da suspensão da ordem jurídica na modernidade. A distinção entre lei e

aplicação da lei, apesar de aventada teoricamente, não foi levada até as suas últimas

conseqüências. A ausência de uma reflexão sobre o poder judiciário, a seu turno, caminha

junto com a ausência de uma abordagem mais detalhada sobre a Constituição – que no

pensamento de Agamben é vista, fora de seu contexto histórico de emergência do

constitucionalismo americano e europeu, apenas como mais uma espécie de lei. A verdade

é que a Constituição é tratada nos mesmos termos de uma simples lei, sem receber uma

apreciação mais profunda em vista de seus caracteres políticos e míticos.

O aparente descaso com a distinção entre lei e aplicação da lei resulta em uma

abordagem teórica que se preocupa em avaliar a exceção da lei, mas não a realização

concreta da exceção no momento de aplicação da lei. A distinção entre auctoritas

legislativa e potestas executiva logra explicar a suspensão abstrata da lei, da ordem jurídica,

mas não fornece respostas adequadas para o problema da realização efetiva da exceção nas

situações concretas do mundo fático. Isto porque a autoridade que convalida ou não a

exceção em concreto não é, contemporaneamente, o poder executivo, mas sim o poder

judiciário.

Neste sentido, a visão de Agamben casa muito bem com as circunstâncias

institucionais nas quais o poder judiciário não se apresenta como instância última apta a

controlar os atos políticos do poder executivo e do poder legislativo: como, por exemplo, o

clássico modelo francês, ou o alemão, de institucionalização do poder judiciário. De fato, se

o poder judiciário não pode realizar o controle de constitucionalidade sobre os atos cuja

prerrogativa pertence aos demais poderes – como desejava Schmitt – a mera assunção da

autoridade legislativa já garante a soberania absoluta ao poder executivo, detentor da

potestas.

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O raciocínio acima, entretanto, não é válido para o modelo institucional clássico da

Revolução Americana, nem para as comunidades políticas – que hoje são maioria entre as

democracias ocidentais – nas quais o controle de constitucionalidade, exercido pelo poder

judiciário, pode alcançar todos os espectros da vida política e jurídica da comunidade.

Como já mencionado anteriormente, a posição de Agamben em ignorar o poder judiciário é

incompreensível, já que não só o pensamento de Arendt sobre autoridade, no qual há

grande insistência sobre o papel autoritário do judiciário a partir da Revolução

Americana499, é uma de suas principais fontes, também como os Estados Unidos da era

Bush são um dos seus grandes exemplos sobre a generalização da exceção jurídica não

declarada. É de fato inaceitável uma análise da “Guerra ao Terror” apenas à luz da dialética

entre autoridade legislativa e potestas executiva, silente sobre o papel do poder judiciário e

da Suprema Corte americanos em inicialmente autorizar e posteriormente desautorizar boa

parte das técnicas de suspensão da ordem jurídica empregadas pela administração Bush.

Talvez Agamben tenha ficado fascinado demais pelo exemplo nazista – no qual, de

fato, o papel da autoridade judiciária é mínimo, para não dizer inexistente –, de modo que

tenha se tornado “cego” para as demais manifestações concretas do fenômeno da exceção e

da biopolítica. A impressão que fica é a de que Agamben não tira todas as conclusões que

derivam de sua própria teoria. Ao menos em relação ao poder judiciário e às constituições,

ele efetivamente não conduz a lógica de seu raciocínio teórico até o final, até as conclusões

que necessariamente decorrem dele. Tal falha não seria tão grave se ele não tivesse a

pretensão de fornecer uma explicação ontológica e definitiva sobre direito e política para

toda a experiência ocidental. Agamben tem, todavia, essa pretensão.

A dialética entre auctoritas legislativa e potestas executiva não consegue

demonstrar, e muito menos explicar, o postulado de Agamben de que as democracias

ocidentais contemporâneas funcionam institucionalmente a partir do chamado “paradigma

biopolítico do campo de concentração”. Os líderes executivos ocidentais não atuam como

atuava o Führer nazista – ou melhor, podem atuar como atuava o Fürher nazista apenas

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quando o poder judiciário, cooptado pelo poder executivo, transforma o controle de

constitucionalidade em mera instância de validação dos atos executivos.

Existiriam, assim, dois grandes modelos de funcionamento biopolítico da soberania

absoluta: o primeiro deles, traçado por Agamben, é o da assunção da autoridade legislativa

pelo poder executivo, que, reunindo em si a possibilidade de convalidação da suspensão da

lei, torna-se soberano na medida em que não há uma instância de autoridade independente

para aplicação da lei500; o segundo deles, que se pretendeu apresentar nesta tese, é o da

cooptação, pelo poder executivo, da autoridade judiciária embasada na Constituição e no

controle de constitucionalidade dos atos estatais, ou seja, da instância de aplicação da lei

que poderia, ao menos em tese, se opor à suspensão executiva da lei por meio de um juízo

de constitucionalidade que impusesse a efetiva aplicação da lei suspensa, ao invés de

convalidar a suspensão da lei.

Logo, se a teoria de Agamben se pretende correta, ela precisa de algum modo

fornecer uma explicação teórica para a função do poder judiciário e da Constituição à luz

do paradigma do campo de concentração. Entende-se que essa explicação existe e decorre

logicamente dos pressupostos traçados ao longo de sua obra, de modo que é possível

apresentar de modo coerente como, nas democracias contemporâneas, os poderes

judiciários e suas Cortes Constitucionais de alguma forma contribuem para a existência da

situação biopolítica de exceção informal e generalizada. Conquanto o texto explícito de

Agamben deixe a desejar nesta questão, limitando-se a estender sem maiores preocupações

teóricas a reflexão válida para o nazismo às democracias ocidentais, insiste-se que seus

pressupostos e fontes são mais do que suficientes para compreender-se adequadamente

como os núcleos ontológicos de direito e de política se manifestam contemporaneamente

nas comunidades político-jurídicas democráticas.

499 E a própria descrição de Agamben sobre a autoridade é muito mais próxima da atuação do poder judiciário moderno do que da atuação do poder legislativo moderno. 500 Neste caso, a aplicação da lei, ou melhor, a aplicação da suspensão da lei, limita-se a acompanhar e efetivar a suspensão da lei. Mas, como visto, ainda assim é possível alguma espécie de resistência no momento de aplicação da suspensão da lei pelos agentes executivos responsáveis pela instauração concreta da exceção.

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A questão, portanto, perpassa o conceito de Constituição institucionalmente válido,

bem como os sentidos de validade e de legitimidade de poder e autoridade na comunidade

política. Em outros termos, a dialética entre autoridade legislativa e potestas, e a dialética

entre autoridade judiciária e potestas, prevalecerão ou uma ou outra a partir do sentido

institucional da Constituição, atrelado principalmente a quem detém a palavra final sobre o

significado do texto constitucional. Se a Constituição é vista como mero reflexo da vontade

popular, e seu significado final pertence aos representantes legislativos dessa vontade,

então a autoridade legislativa é decisiva. Se, por outro lado, a Constituição é entendida

como ato de fundação da comunidade, e ponto de origem de uma tradição institucional cuja

responsabilidade pela manutenção recai sobre um terceiro poder que não é nem executivo,

nem legislativo, então a autoridade judiciária torna-se decisiva.

Caso a decisão sobre o sentido constitucional pertença ao poder executivo – como

queria Schmitt para o Presidente do Reich – então o poder executivo é desde já detentor

tanto de potestas quanto de autoridade judiciária501. A situação biopolítica existirá,

portanto, na medida em que o poder executivo logre, de algum modo, neutralizar ou tomar

para si o modelo de autoridade concretamente pertinente. Todavia, nas comunidades

políticas onde a Constituição é concebida tanto como reflexo da vontade popular – uma

vontade “qualificada” – quanto como lei suprema (que de algum modo funda uma

tradição), surge, paralelo ao risco da cooptação ou neutralização executiva, a possibilidade

de o poder judiciário, principalmente a Corte Constitucional, se tornar efetiva soberana (ao

invés de mera autoridade soberana).

Por conseqüência, na maior parte das democracias contemporâneas, em que

funcionam modelos de controle de constitucionalidade híbridos – nos quais a Constituição

é duplamente vista como Carta de Valores da comunidade política e lei maior – subsistem

simultaneamente dois grandes riscos oriundo da potência ontológica do direito e da política:

que o poder executivo logre cooptar ou neutralizar o poder judiciário, tornando-se efetivo

soberano que, além de suspender a lei, consiga igualmente suspender a aplicação da lei (ou,

501 E, possivelmente também de autoridade legislativa. A verdade é que, onde existe autoridade judiciária, a mera autoridade legislativa perde muito de sua força, na medida em que pode sempre ser desautorizada pelo poder judiciário por meio do controle de constitucionalidade.

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em outras palavras, consiga que a suspensão da lei seja aplicada); e que o poder judiciário,

ou melhor, a Corte Constitucional, diante de uma infinidade de casos concretos possíveis a

partir dos quais ela possa definir o sentido constitucional, converta-se em efetiva soberana

absoluta, e, como instituição, seja a realizadora de biopolítica e de suspensão da ordem

jurídica.

Ambas as situações mencionadas, de toda forma, operacionalizam-se a partir da

Constituição, e do papel institucional, tanto político quanto jurídico, que lhe é atribuído. É

irônico que justamente a Constituição, e o respectivo controle de constitucionalidade,

concebidos como mecanismos de controle de poder e de proteção de minorias contra

maiorias, possam se converter na instância de legitimidade e de legitimação da soberania

absoluta e da suspensão sistemática e generalizada da ordem jurídica que fundam,

legitimam, e deveriam garantir. Isto ocorre, na perspectiva teórica de Agamben, justamente

em face da lógica ontológica do abandono, que marca necessariamente toda a política e

todo o direito – de modo que nem Constituição, nem controle de constitucionalidade, na

medida em que se tratam de mecanismos político-jurídicos, poderiam disto escapar.

Nesse cenário, é a idéia de valor comunitário, singelamente compartilhada pelo

nazismo e pelo constitucionalismo contemporâneo, que permite a realização da

interpretação constitucional que abandona a Constituição. Ou, em outros termos, é por meio

da avaliação valorativa das formas de vida que se justifica a suspensão da Constituição

(mascarada ou não) em nome de sua realização concreta – a partir desta lógica se

constituem e validam tanto os espaços biopolíticos quanto as definições sobre os novos

homines sacri contemporâneos502. Há, aqui, o pressuposto estrutural de que a Constituição

possui um conteúdo valorativo material (a decisão política fundamental sobre a unidade)

que estaria acima do próprio texto (da norma constitucional schmittiana); e que situações

concretas aparentemente inconstitucionais (ou o inverso), podem ser racionalmente

harmonizadas (ou consideradas inconstitucionais) com a Constituição a partir da

502 Este é mais um dos pontos que Agamben parece ignorar. Por mais que uma democracia contemporânea implemente exceção jurídica, por mais que Guantánamo e Abu Ghraib correspondam exatamente à descrição de um espaço biopolítico moderno fundado no paradigma do campo de concentração, a vida nos Estados Unidos não pode ainda ser comparada com a vida na Alemanha nazista – mesmo para os seus homines sacri.

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ponderação e medição dos valores da comunidade popular que estão acima da própria

Constituição – ainda que nela se materializem como reflexo da vontade popular, ao mesmo

tempo em que a legitimam.

Na medida em que o poder judiciário, e, principalmente, uma Corte Constitucional,

se apresentam como definidores finais do sentido dos valores constitucionais, tornam-se

imediatamente autoridade soberana. E, caso a autoridade torne-se tão extensa que a Corte

possua na prática a possibilidade de a qualquer momento decidir sobre qualquer sentido

constitucional, surge imediatamente o risco de, também a qualquer momento, esta Corte

arrogar-se, efetivamente, a soberania absoluta. Isto acontece todos os dias? Talvez sim,

talvez não. Mas o problema aqui é a potência de isto acontecer, o risco de isto acontecer. Se

por um lado é impossível comparar a vida em uma democracia contemporânea com a vida

em um regime totalitário, dada a própria diferença de grau de proteção jurídica ao

indivíduo, as democracias estão ainda assim sob o risco constante e sempre presente de se

igualarem, em um instante decisório, aos regimes totalitários.

Em face disto tudo, o funcionamento biopolítico das democracias contemporâneas é

bem mais evasivo e inconstante do que a descrição de Agamben faz crer. Lembre-se que a

exceção geral e informal existe absolutamente apenas como potência. Mas, é claro, a

potência volta e meia se realiza. As democracias convivem, portanto, com uma espécie de

“confusão institucional”, na qual a autoridade judiciária e o controle de constitucionalidade

ora funcionam como verdadeira instância de controle do poder, ora estão cooptados ou

silenciados pelo poder executivo, “granjeando-lhe” uma efetiva e momentânea soberania

absoluta concreta, ora permitem ao poder judiciário atuar soberanamente, em geral pela

ação de uma Corte Constitucional. Que a Corte ora seja autoridade legítima, ora serva do

executivo, ora soberana ela própria é a condição contemporânea biopolítica das

democracias ocidentais.

Por outro lado, a distinção entre violação da lei e exceção jurídica adquire aqui uma

relevância teórica fundamental. Isto porque, por exemplo, a condição teórica de uma vítima

de violência policial é diferente caso esta violência seja condenada, ou caso seja

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considerada como aceitável pelo poder judiciário. No primeiro caso, ela é vítima de crime

policial, de um abuso de poder; no segundo, ela pode ser momentaneamente considerada de

fato homo sacer503. Por mais brutal que sejam as violações executivas à ordem jurídica de

uma democracia contemporânea, não há exceção enquanto não há “cooperação” do poder

judiciário, instância última de validação e de aplicação da lei.

Agamben afirma, ao final de Estado de Exceção, em passagem já abordada e

criticada, que o ciclo ontológico entre direito e política somente pode ser rompido por meio

da separação do nexo constitutivo entre lei e vida:

Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome “política”. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente a poder de negociar com o direito. Ao contrário, verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito. E somente a partir do espaço que assim se abre, é que será possível colocar a questão a respeito de um eventual uso do direito após a desativação do dispositivo que, no estado de exceção, o ligava à vida. Teremos então, diante de nós, um direito “puro”, no sentido em que Benjamin fala de uma língua “pura” e de uma “pura” violência. A uma palavra não coercitiva, que não comanda e não proíbe nada, mas diz apenas ela mesma, corresponderia uma ação como puro meio que mostra só a si mesma, sem relação com um objetivo. E, entre as duas, não um estado original perdido, mas somente o uso e a práxis humana que os poderes do direito e do mito haviam procurado capturar no estado de exceção.504

O que poderia ser um direito puro, como quer Agamben? Ele menciona a violência

“pura” de Benjamin, mas é bom lembrar que essa violência divina é aquela que destrói e

mata sem efusão de sangue – que espécie de práxis humana pode nascer disto? O que pode

ser esse novo direito desejado por Agamben, que seria “uma palavra não coercitiva, que

não comanda e não proíbe nada”, que não tem objetivos e constitui um meio para fim

nenhum? E, principalmente, porque esse novo direito não recairia eventualmente de novo

na velha estrutura ontológica de todo o direito e de toda a política? Ou, melhor ainda, como

se garantiria isto, como se garantiria institucionalmente isto?

503 E, se tais abusos forem sempre possíveis, e sempre validados, a vítima é efetivamente um homo sacer “pleno”.

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Se as questões colocadas acima, por um lado, têm grande importância teórica e

filosófica, por outro, do ponto de vista prático – tanto político quanto jurídico – do

funcionamento institucional das democracias contemporâneas, a condenação absoluta do

direito e da política e a busca de uma “palavra não coercitiva” parece soar como uma piada

de mau gosto. No fundo, o que parece acontecer com o pensamento de Agamben é que,

talvez por se debruçar tão longamente sobre a metafísica ocidental, tornou-se ele tão

metafísico quanto o objeto de sua crítica. Ao afirmar insistentemente a natureza ontológica

do direito e da política como abandono e bio/tanatopolítica, Agamben se esquece505 de que

há períodos, como ele mesmo diz, em que direito e política “de algum modo funcionam”,

bem como de que não há instituição humana que funcione diferentemente do que os

homens possam querer e fazer que ela funcione.

Hannah Arendt, que tanto quanto Agamben se debruçou sobre a relação entre lei e

política, enxerga no direito um papel muito diferente do de mero “contaminador da

política”:

No governo constitucional, as leis positivas destinam-se a erigir fronteiras e a estabelecer canais de comunicação entre os homens, cuja comunidade é continuamente posta em perigo pelos novos homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo surge para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir. A estabilidade das leis corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, um movimento que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível; os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se alimenta.506

A verdade é que, por mais que o direito e a política possam ter uma “natureza

ontológica”, um modo de ser próprio e metafísico, esse modo de ser não está acima das

escolhas concretas e dos modos de vida reais dos seres humanos e de suas instituições

político-jurídicas. Se de fato há uma tendência ontológica à exceção, ao abandono e à

504 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer, II, I. p. 133 505 Em sua etérea proposta sobre o futuro, ele igualmente re-afirma a natureza excepcional do direito, esquecendo-se, porém, da natureza biopolítica da política. O autor teria se saído melhor caso, ao lado da idéia de direito “puro”, houvesse mencionado também uma política “pura”.

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biopolítica, ela pode de algum modo ser evitada, afastada, ou mitigada pelas ações e

instituições humanas concretas. E, mesmo que essa tendência esteja sempre presente, e

mesmo que seja inevitável, ela constitui ainda e tão-somente um risco: pensar em como

evitar esse risco, enquanto não se descobre o direito “puro”, não parece ser um exercício de

futilidade – muito pelo contrário: a pergunta sobre como articular autoridade e potestas de

um modo que se evite o surgimento de uma soberania absoluta e biopolítica fundada na

suspensão da ordem jurídica parece tão imediata e urgente quanto a pergunta sobre uma

alternativa “pura” ao direito. Assim, à pergunta legítima sobre como romper o mito surge,

como concorrente igualmente legítima, a pergunta sobre qual mito poderia escapar da

lógica da soberania do estado de exceção e do abandono – apresentando-se como

instituição de uma ordem não de violência, mas de liberdade.

Como visto, as formas lingüística da exceção correspondem, todas elas, a algum

modo de deturpação do discurso humano. A exceção absoluta é o fim do discurso, a

destruição da comunicação humana. Que as leis ora sejam capazes de, como afirma Arendt,

estabelecer a comunicação entre os homens, ora se tornem sua própria suspensão contrária

à comunicação, é um risco da vida humana – que, aparentemente, sempre existirá; e,

mesmo que Agamben tenha razão, mesmo que seja possível um direito “puro”, enquanto

este novo direito não for descoberto, o problema do risco persiste. Desse modo, por mais

que faça parte da essência constitutiva do direito e da política se tornarem suspensão da

ordem jurídica, abandono e tanatopolítica, isto somente ocorrerá na medida em que as

instituições criadas em nome da estabilidade político-jurídica das comunidades humanas e a

ação concreta dos homens responsáveis pelo poder e pela autoridade o permitam, ou

melhor, o promovam.

O elogio de Arendt à Roma republicana e à Revolução Americana, bem como a

própria descrição de funcionamento de auctoritas e potestas traçada por Agamben,

mostram que já existiram instituições humanas que lograram, por longos períodos de

tempo, possibilitar o funcionamento institucional “adequado” dos arcanos políticos e

jurídicos, de modo a impedir o surgimento de um poder soberano absoluto e biopolítico

506 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. p. 517.

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mediante a reunião de autoridade e potestas. Mesmo que desde o princípio o fundamento

destas instituições tenha sido biopolítico – como, por exemplo, Agamben considera o poder

de morte do patre sobre seus filhos varões, ou, como diria Negri, são homines sacri todos

os deserdados da história humana – não se pode deixar de notar que tais instituições foram

bem sucedidas, ao menos por algum tempo, em evitar o surgimento da soberania absoluta,

da “máquina mortal”. E, conquanto isto possa parecer pouco dentro do grande quadro

teórico da ontologia do direito e da política, certamente não foi pouco para as pessoas que

viveram concretamente durante esses períodos.

A pergunta sobre quais instituições podem, contemporaneamente, limitar ou impedir

o avanço do “paradigma do campo de concentração”, bem como tornar impossível a

definição e re-definição de novos homines sacri – isto é, de pessoas para as quais a ordem

jurídica está completamente suspensa, de modo que a violação de seus direitos não é

reconhecida como violação, mas como realização do direito – parece ser a mais premente a

nascer das reflexões de Agamben contempladas nesta tese. Nesta perspectiva, a situação

das democracias contemporâneas é lamentável e instável. Isto porque, como visto, os seus

dois mecanismos institucionais centrais para o controle do poder, quais sejam, a

Constituição e o controle de constitucionalidade judiciário, uma vez articulados a partir da

lógica ética e valorativa507 oriunda da soberania totalitária, tornaram-se incapazes de

garantir eficazmente o funcionamento da dialética entre autoridade e potestas.

Pelo contrário, Constituição e controle de constitucionalidade converteram-se

justamente na instância potencial de legitimação do abandono, da exceção e da biopolítica.

Na medida em que a lógica de funcionamento dessas instituições foi “invertida”

(ontologicamente contaminada, talvez), a existência de um maior ou menor grau de exceção

jurídica e de produção de espaços biopolíticos recai exclusivamente sobre os homens: tanto

sobre os responsáveis pelo poder e pela autoridade, quanto sobre os demais membros da

comunidade político-jurídica na qual esse poder e essa autoridade são exercidos. Nas

507 Insiste-se, aqui, na questão estrutural. Que a idéia de valor totalitário corresponda a qual forma de vida deve ser morta, e que a idéia de valor em uma democracia constitucional corresponde a qual forma de vida é moralmente mais valiosa (e, portanto, passível de maior ou menor proteção jurídica em face da realização dos valores constitucionais), não muda a circunstância de que em ambos os casos prevalece a idéia de valor, ou seja, de que existem formas de vida mais ou menos valiosas.

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democracias contemporâneas, em face de tudo que se apresentou, essa responsabilidade

pertence principalmente ao poder executivo e ao poder judiciário – a este último,

principalmente, pois, enquanto há uma democracia, é ele que define se uma situação

biopolítica de exceção jurídica será considerada uma violação à ordem legal, ou

convalidada como normal e jurídica.

Que o destino do funcionamento institucional político e jurídico das democracias

contemporâneas recaia sobre a boa vontade, a honestidade e o senso de dever funcional de

técnicos e policiais, de políticos e de ministros, de promotores e de juízes, é o grande drama

que se descortina a partir do limiar biopolítico da modernidade contemporânea. Neste

cenário, boa parte das teorias jurídicas e políticas se assemelha ora a manuais

metodológicos sobre como o juiz deve julgar, ora a manuais de ética sobre como a decisão

jurídica pode ser justa. Que não exista controle institucional, que homens possam decidir

em definitivo sobre a suspensão da ordem jurídica e sobre qual vida é digna de ser vivida

ou de ser juridicamente protegida e favorecida e qual não é – afirmando suas decisões como

finais, definitivas, e normais (ou seja, a exceção mascarada como realização do direito),

constitui o risco biopolítico potencial sobre o qual a teoria de Agamben alerta.

A busca por instituições que consigam restituir à Constituição e ao controle de

constitucionalidade seu papel teórico original como mecanismo efetivo de controle de

poder, portanto, parece bem mais urgente do que a busca por um direito “puro” não

coercitivo. As decisões e atos estatais sempre dependerão dos homens e de sua práxis

concreta – mas as instituições humanas, mesmo que não em definitivo, têm o poder de

evitar, mitigar e diminuir os riscos dessa ação humana. A idéia de que a Constituição

corresponde aos valores da comunidade política dá à autoridade judiciária competente para

exercer o controle de constitucionalidade uma carta branca para decidir, como bem

entender, sobre os destinos humanos que chegam até ela. Passa a depender exclusivamente

da boa vontade dos homens que exercem essa autoridade garantir o funcionamento “legal”

da ordem político-jurídica, ou, pelo contrário, autorizar e validar os mais graves abusos e

violências estatais como simples realização dessa ordem.

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Para a grandeza teórica e prática do Constitucionalismo ocidental, para as

promessas materializadas nas declarações de direitos universais, a mera boa vontade de

simples homens – sejam eles membros do poder executivo, do legislativo, do judiciário – é

muito pouco. Muito pouco mesmo. Ao invés de conceber sempre novas técnicas ético-

valorativas ou “racionais” sobre como o poder judiciário pode decidir de modo justo, ou

constitucional, ou positivo, ou ponderado, ou qualquer outra coisa que se queira, coloca-se

para a teoria jurídica contemporânea a questão bem mais séria de como criar e

operacionalizar novas instituições e mecanismos institucionais – ou quiçá, instâncias não-

institucionalizadas de pressão e de controle social democrático – que reduzam e diminuam,

o tanto quanto for possível, o risco humano de, tomando-se o abandono da Constituição

como realização da Constituição, impor a vastos segmentos populacionais a condição

concreta e potencial de mera vida nua, para a qual a ordem jurídica, ou melhor, a aplicação

humana e judiciária da ordem jurídica, não dá e nem pretende realmente dar proteção

alguma.

Enquanto a decisão sobre o sentido constitucional final for a decisão sobre quais são

os valores compartilhados pela comunidade política – enquanto se acreditar que valores

supostamente compartilhados podem ser medidos e ter sua realização concreta decidida por

seres humanos, a vida humana biológica, a pura vida nua, sempre poderá ser julgada, tanto

para ser incluída, quanto para ser excluída do mundo político e jurídico. A decisão final

amparada no valor não estabelece a comunicação entre os homens, da forma que propõe

Arendt como função da lei – mas, pelo contrário, estabelece quais homens podem se

comunicar e quais devem permanecer em silêncio (ou ser silenciados). A condição do homo

sacer contemporâneo é, ao fim de tudo, não a do homem que pode ser morto – mas, mais

grave ainda à luz dos princípios democráticos e libertários do Ocidente, a do homem cujo

modo de vida foi considerado, por outros homens com suposta autoridade para tanto, como

contrário à efetivação concreta da vontade da comunidade e da Constituição – que,

ironicamente, foi pensada, um dia, como a instância última de proteção de todos os homens

e cidadãos.

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