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Número Temático Filosofia do Design Rio de Janeiro 2016, v. 9, nº 3 ISSN 1982-5870

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Número Temático

Filosofia do Design

Rio de Janeiro

2016, v. 9, nº 3

ISSN 1982-5870

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Publicação do Grupo de Pesquisas Spinoza & Nietzsche: estudos de filosofia da imanência

(SpiN) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (PPGF-UFRJ).

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor Roberto Leher

Vice-Reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento

Pró-Reitora de Pós-Graduação Leila Rodrigues da Silva

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS (IFCS)

Diretor Marco Aurélio Santana

Departamento de Filosofia

Chefe Ricardo Jardim Andrade

Coord. do Prog. de Pós-graduação em Filosofia Rafael Haddock-Lobo

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Editor Responsável / Editor-in-Chief

André Martins (UFRJ)

Editores Adjuntos / Associated Editors

Danilo Bilate (UFRRJ), Luiza Regattieri (PPGF/UFRJ)

Editores deste Número Temático Especial / Editors of this issue

Daniel B. Portugal (ESDI/UERJ), Marcos Beccari (UFPR)

Comissão Editorial / Associated Editors

Alexandre Arbex Valadares (UFRJ), Ana Claudia Gama Barreto (UFRJ), Antônio Augusto

Madureira de Pinho (UERJ), Fernando Dias Andrade (Unifesp), Mariana de Toledo Barbosa

(UFF), Carlos Eduardo Fraga (PPGF/UFRJ)

Conselho Científico / Scientific Advisors

Antônio Edmilson Paschoal (UFPR), Bertrand Binoche (Université de Paris I – Panthéon-

Sorbonne), Clademir Araldi (UFPEL), Ernani Chaves (UFPA), Gilvan Fogel (UFRJ),

Guillaume Sibertin-Blanc (Université de Toulouse – Le Mirail), João Constâncio

(Universidade Nova de Lisboa), Maurício Rocha (PUC-RJ), Miguel Angel de Barrenechea

(UNIRIO), Olímpio José Pimenta Neto (UFOP), Oswaldo Giacoia Jr (Unicamp), Rosa Maria

Dias (UERJ), Sandro Kobol Fornazari (UNIFESP), Scarlett Marton (USP), Tereza Cristina B.

Calomeni (UFF), Vania Dutra de Azeredo (PUC-Campinas)

Pareceristas ad hoc do volume 9 (2016)

Carla Francalanci; Carla Rodrigues; Francisco Dias; Ivan Mizanzuk; Julie Pires; João Leite;

Louis de Oliveira; Magda Guadalupe dos Santos; Marcos Pagotto; Pablo Pires; Rafael

Haddock-Lobo; Rita Leal Paixão; Rodrigo Petrônio; Wandyr Hagge.

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Sumário

Editorial 6

Artigos

O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo 10

Marcos Beccari & Rogério de Almeida

Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer:

liberdade e criatividade em uma teoria pós-prometeica da ação 27

Daniel B. Portugal

Desgraça, sem graça e nem de graça:

três visões possíveis sobre o riso no design do humor 44

Bolívar Teston de Escobar

O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência” 55

Suzie Ferreira do Nascimento

Entre aura e simulacro:

o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana 71

Helena de Barros, Jorge Lucio de Campos & Washington Dias Lessa

Pragmatismo do disforme no Design 86

Talita Tibola & Barbara Peccei Szaniecki

Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design:

fenomenologia do projetar e teoria da ação 96

Eduardo Camillo K. Ferreira

Tradução

Desmobilizar 109

Clément Rosset

Resenha

Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design 115

Louis L. de Oliveira

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6 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 6-8, 2016

Editorial

Não é propriamente uma novidade relacionar filosofia e design. No campo da

filosofia, já faz algum tempo que pensadores como Vilém Flusser, Bruno Latour e Peter

Sloterdijk, entre outros, trabalham em tal interface. E, no campo do design, a proposta de uma

“filosofia do design” ganhou corpo no fim da década de 19901, pautando-se na ideia de que os

designers poderiam se servir da filosofia para refletir sobre aquilo que fazem.

Esta edição da Revista Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência, com o tema

“Filosofia do Design”, tem como objetivo articular os campos do design e da filosofia de

múltiplas maneiras, sempre rechaçando, contudo, a orientação instrumental segundo a qual o

design se utilizaria da filosofia para refletir sobre suas práticas. Acreditamos, com Deleuze,

que “a filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa”2. O aspecto problemático do

encargo de “refletir sobre” não consiste no ato reflexivo “em si”, mas na ideia de que o

pensamento reflexivo somente seja possível por meio da filosofia, como se ela fosse um

grande olho objetivo através do qual pudéssemos enxergar a verdade das coisas. Nesse

sentido, a filosofia estaria nos antípodas da poesia, da literatura, da retórica, das artes

plásticas, do design etc., por ser o campo que ofereceria acesso à verdade.

Aqui, ao contrário, a adesão é a uma filosofia que reconhece e valoriza suas

dimensões criativas e plurais – uma filosofia na qual a “objetividade”, como propõe

Nietzsche3, encontra-se na capacidade de mobilizar múltiplos olhos ao investigar algo. E, na

medida em que se afirma como uma forma de articulação criativa, a filosofia começa a se

aproximar do design. Design sendo compreendido, aqui, como uma atividade que, seja por

meio de “efemeridades” ou por meio de “projetos ideais”, elabora e articula criativamente não

apenas materialidades e visualidades, mas também modos de vida, valores e discursos.

Ao aproximar design e filosofia, tomamos como premissa que em toda filosofia resta

um “gesto” de design, assim como, no sentido oposto, todo gesto de design pressupõe uma

“filosofia”. Dito de outro modo: há sempre um olhar criativo que enforma as filosofias, assim

como há sempre uma base epistêmica em todo o gesto de dar forma4. Esse deslocamento

1 A este respeito, cf. GALLE, P. “Philosophy of design: an editorial introduction”. Design Studies, v. 23, n. 3,

2002, p. 211-218. 2 DELEUZE, G. O que é o ato de criação?. In: DUARTE, R. (org.). O belo autônomo: textos clássicos de

estética. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 389. 3 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, III, 12. 4 “[...] a matéria no design [...] é o modo como aparecem as formas” (grifos do autor). FLUSSER, V. Uma

filosofia do design: a forma das coisas. Lisboa: Relógio D’Água, 2010, p. 19.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 6-8, 2016 7

circular das bases do gesto criativo (da filosofia para o design e do design para a filosofia) só

faz sentido sob o prisma das filosofias da imanência, nas quais se considera que nada há de

essencial (nenhum fim ou essência) no mundo e no humano, embora algo sempre permaneça

diante de nós. O que está em jogo é a impossibilidade, na experiência humana, de se pensar,

dizer ou fazer qualquer coisa sem antes lançar mão de ideias, sensibilidades e valores. Eis a

questão de fundo a partir da qual os textos desta edição – elencados a seguir – podem ser

lidos.

O artigo de Marcos Beccari e Rogério de Almeida, O cotidiano estético:

considerações sobre a estetização do mundo, propõe uma discussão acerca da estética

contemporânea a partir de um prisma nietzschiano, tendo como foco principal o “estético”

como dimensão afirmativa que torna excessiva a vida. Daniel B. Portugal, em seu escrito Do

sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer: liberdade e criatividade em uma

teoria pós-prometeica da ação, tece considerações históricas a respeito de noções como

sujeito, vontade e liberdade, procurando identificar diferentes prismas criativos a partir dos

quais tais noções ganham sentido. Helena de Barros e Jorge Lúcio de Campos trazem, no

artigo Entre aura e simulacro: o original e a sua reprodução impressa sob uma perspectiva

benjaminiana, uma reflexão sobre a possibilidade de ressignificar, por meio do conceito de

“simulacro aurático”, a cópia impressa no contexto atual. No artigo Desgraça, sem graça e

nem de graça: três visões possíveis sobre o design do humor, Bolívar Escobar estuda as

sensibilidades morais implicadas no humor e propõe três posicionamentos possíveis perante o

riso: sua completa recusa, uma abertura parcial e a completa abertura. Talita Tibola e Barbara

Peccei Szaniecki, com Pragmatismo do disforme no design, se ocupam em pensar o design a

partir do conceito deleuziano de “estilo”, o que implica abandonar hierarquias entre forma e

matéria para compreender as interferências disformes que o design opera sobre o real. Em

Notas para um olhar fenomenológico sobre design: fenomenologia do projetar e teoria da

ação, Eduardo Camillo K. Ferreira pauta-se em alguns conceitos de Edmund Husserl e sua

fenomenologia para descrever a ação de projetar como uma atitude frente ao mundo. Suzie

Ferreira do Nascimento, em O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”,

investiga, sob um viés nietzschiano, aspectos éticos e estéticos do estilo modernista, com

ênfase na “necessidade” e na “inocência” que seriam, segundo a autora, desconsideradas pela

“pós-modernidade”.

Além desses artigos, a presente edição conta também com uma resenha de Louis

José Pacheco de Oliveira sobre o livro Articulações simbólicas: uma nova filosofia do design,

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8 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 6-8, 2016

de Marcos Beccari (2016); e com a tradução do artigo Desmobilizar, de Clément Rosset

(2013), realizada por Rogério de Almeida e Luiz Antonio Callegari Coppi.

Gostaríamos de encerrar esta apresentação com um agradecimento sincero a André

Martins, editor desta Revista. Ficamos honrados com o convite para atuar como editores deste

número temático da Trágica. Agradecemos também a dedicação de Luiza Regattieri ao longo

do trabalho, aos pareceristas e, evidentemente, a todos os autores que submeteram seus

escritos, viabilizando essa pequena amostra do profícuo horizonte que se abre entre o design e

a filosofia. Com a organização desses textos, enfim, esperamos contribuir para o diálogo entre

os campos do design, da filosofia e outros campos de expressão criativa. Afinal, não são

poucos os desafios postos pelas novas experiências atreladas ao design.

Marcos Beccari e Daniel B. Portugal

Editores do Número Especial ‘Filosofia do design’

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, 2016 9

Artigos

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10 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Marcos Beccari

Rogério de Almeida

Resumo: Este artigo visa refletir sobre a estética contemporânea a partir de

um prisma nietzscheano, tendo como foco principal o “estético” como

dimensão que torna excessiva a vida, favorecendo sua afirmação. Tomando

como ponto de partida a noção de estetização do mundo, tema das recentes

obras de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015) e de Byung-Chul Han

(2015), argumentamos que não houve propriamente uma estetização “de

cima para baixo” (como se uma esfera transcendente tivesse sido profanada e

esvaziada), e sim uma abertura horizontal a um cotidiano estético. Em

seguida, recorremos a Nietzsche e outros pensadores no intuito de distinguir

o termo “estético” da estética filosófica tradicional. Observamos, por fim,

que cada vez mais é no cotidiano estético, especialmente sob a alcunha do

“design” (como compreensão sensível das mediações simbólicas que nos

perfazem), que a afirmação da vida aparece com maior vigor, como ensejo e

finalidade para a experiência estética.

Palavras-chave: estetização, estético, Nietzsche, estética do cotidiano.

1. Introdução

A reflexão sobre uma “estetização do mundo” na sociedade contemporânea põe em

relevo, de início, um impasse teórico: de um lado, à dimensão estética são atribuídos um

alcance e uma importância cada vez maiores, abrangendo territórios que lhe eram

tradicionalmente fechados; de outro, a estética enquanto disciplina filosófica, em seu

dinamismo estrito, lento e cuidadoso, prossegue reinterpretando seus próprios princípios e

fundamentos. Por um lado, avaliações “meramente estéticas” tomam o lugar dos critérios de

verdade e dos julgamentos morais: a difusão da cosmética, do esporte e da moda mostra que a

preocupação por um aspecto agradável é muito mais comum do que a apreciação pela

salvação da alma ou pelas escolhas políticas. Por outro, a crítica cultural parece dar mais

crédito às ciências históricas e sociais do que à estética filosófica, que assim se torna mais

“tímida” e hermética, acabando também por renunciar a reflexões não orientadas à filosofia

ou às artes.

É como se, com relação a uma possível estetização da sociedade, a estética filosófica

não tivesse mais nada a dizer – as pessoas já conhecem o peso adquirido pelos elementos

Professor do Programa de Pós-Graduação em Design da UFPR. Doutor em Educação pela USP. E-mail:

[email protected] Professor Associado da Faculdade de Educação da USP, onde coordena o Lab_Arte e o GEIFEC. Livre-

docente em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da USP. E-mail: [email protected]

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O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 11

estéticos na formação dos discursos e nas relações cotidianas. Com efeito, não faltam

sociólogos que denunciam o estado atual da cultura como “estetização do mundo”, termo este

que intitula a recente obra de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy.1 No decorrer de mais de 400

páginas, os autores insistem numa desmistificação, à primeira vista, convincente

(esteticamente?): restando nítida a emergência de uma estética implícita, subentendida na vida

cotidiana, todo tipo de estetização é interpretada como estratégia de ampliar o consumo das

massas e o lucro das empresas.

Trata-se de um argumento plausível, decerto, não fossem os fatos de que, em primeiro

lugar, aquilo que os autores julgam ter identificado como uma nova fase do capitalismo

(marcada pela predominância do “artístico”) não é um fenômeno recente, mas existe pelo

menos desde o século XIX, e de que, em segundo lugar, a dimensão estética jamais esteve

desvinculada de convenções sociais (seja a dos estratos sociais, seja a dos jogos de poder).

Dada como mediação narrativa e simbólica, as convenções operam também de maneira

estética: não explicam nem fornecem respostas, mas acionam sentidos possíveis para a

experiência vivida, conduzindo valores, comportamentos, generalizações, contradições,

dissonâncias e insuficiências.

Dessa constatação não é difícil inferir que, para além de um “capitalismo artista”, é a

estética do cotidiano que, alheia à crítica cultural e à estética filosófica, oferece uma imagem

do que o homem é socialmente, como compreensão sensível das mediações simbólicas que o

perfazem – eis a reflexão que aqui se propõe.

2. O esteticismo contra a estetização

Na presente obra sustenta-se a ideia de que uma quarta fase de estetização do mundo se

instalou, remodelada no essencial por lógicas de mercantilização e de individualização

extremas. A uma cultura modernista, dominada por uma lógica subversiva em guerra contra o

mundo burguês, sucede um novo universo em que as vanguardas são integradas na ordem

econômica, aceitas, procuradas, sustentadas pelas instituições oficiais. Com o triunfo do

capitalismo artista, os fenômenos estéticos não remetem mais a mundinhos periféricos e

marginais: integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos

bens materiais, eles constituem imensos mercados modelados por gigantes econômicos

internacionais. Acabou-se o mundo das grandes oposições insuperáveis – arte contra indústria,

cultura contra comércio, criação contra divertimento: em todas essas esferas, leva melhor

quem for mais criativo. 2

É notória a simplificação que os autores fazem, no trecho acima, acerca de uma cultura

modernista em guerra contra o mundo burguês, feita de vanguardas à margem da ordem

1 Lipovetsky, G.; Serroy, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia

das Letras, 2015. 2 Ibidem, p. 27.

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Marcos Beccari & Rogério de Almeida

12 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

econômica e na contramão das instituições oficiais – sem falar das “oposições insuperáveis”

que mais remetem à estrita concepção de uma L’art pour l’art3 do que propriamente ao traço

de toda uma cultura. Não é difícil, com efeito, encontrar nos argumentos de Lipovetsky e

Serroy os pressupostos ideológicos que justifiquem tal simplificação: “Uma vida estética

digna desse nome não poderia ser prisioneira dos limites das normas de mercado”; “a

sociedade, o consumidor, o indivíduo transestéticos não estão à altura do ideal que podemos

conceber de uma ‘vida bela’ [...] uma vida estética mais rica, menos insignificante, menos

formatada pelo consumismo”.4 Esse ideal de uma “vida bela” parece ser o de uma vida que se

dê em função de uma esfera superior, aquela da criação e da fruição puras, descoladas de toda

realidade ordinária (econômica, política, cultural).

Não será o caso de, uma vez decalcado esse “romantismo” anacrônico de Lipovetsky e

Serroy, respondermos aqui, também anacronicamente, se seria mesmo possível uma esfera

estética sem ligação alguma com a realidade, com a vida que a engendra. Em vez disso,

importa perguntar: não seria a própria exigência de uma esfera superior já um sinal daquilo

mesmo que se pretende denunciar? Se o alvo é, mais do que o paradigma “transestético”, os

problemas dele decorrentes – individualização extrema, conduta da urgência, consumismo

exacerbado etc. –, não teríamos aqui uma estética hiperbólica que se contrapõe àquilo mesmo

que ela cria e a condiciona? O crítico Marcelo Coelho, em sua resenha intitulada “Palavrório

transestético”, foi contundente a este respeito:

O problema é que, quando buscam exemplos dessa estetização no cotidiano, os autores

começam a encontrar precedentes cada vez mais antigos do fenômeno que proclamam. [...] A

arte agora se liga ao comércio, constatam Lipovetsky e Serroy, com uma espécie de ponto de

exclamação oculto (!), deixando o pasmo e o escândalo a cargo do leitor. [...] Não há como

deixar de recorrer, então, a um velho truque da “crítica cultural”. É a expressão “cada vez

mais”. Sim, tudo isso já existia, mas acontece que “cada vez mais”... etc etc. [...]

“A Estetização do Mundo” se torna inconvincente porque procede sempre pela acumulação de

exemplos. Nunca se ponderam argumentos que poderiam contrariar a tese apresentada. Não se

discute a vasta bibliografia que já tratou do tema [...]. Tudo se registra impressionisticamente,

em “flashes” que parecem, ao mesmo tempo, dizer que “isso é o fim do mundo”, e que “tudo é

cada vez mais o que sempre é”. Com seu jogo de slogans, prefixos e rótulos –

3 Vertente datada na metade do século XIX que reivindicava autonomia total da arte em relação à moral, à

política, à ciência e às convenções em geral. Equivalente ao “Movimento Estético” britânico (Aestheticism),

representado principalmente por Oscar Wilde, a escola francesa da “arte pela arte” (L’art pour l’art) foi fundada

por Théophile Gautier em 1856 e teve repercussão restrita aos escritos. De acordo com o historiador Albert

Cassagne, o enunciado da arte pela arte implica, em sua estratégia de afastamento formal das convenções sociais,

a imposições de outras convenções em voga naquela época, como certas legitimações do que é “ser artista” e de

comportamentos relacionados. Cf. Cassagne, A. La théorie de l’art pour l’art em France chez les derniers

romantiques et les premiers realistes. Seyssel, Rhône-Alpes: Champ Vallon, 1997. 4 Lipovetsky, G.; Serroy, J. Op. Cit., p. 36-37, grifos nossos.

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O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 13

hipermodernidade transestética do pós-consumo, esse tipo de coisa –, os autores mostram mais

talento publicitário do que profundidade. 5

Estética hiperbólica: por meio de frases longas, delineia-se uma lista quase infinita de

exemplos, rajadas de informações históricas, verdades em flagrante – “A meta não é a

elevação espiritual do homem... a arte do consumo de massa só existe voltada para a sedução

dos consumidores”.6 Tudo isso para mostrar que a “sociedade do hiperespetáculo” é marcada

por contradições, pela hipertrofia, pelo excesso, pelo gigantismo. Não obstante, o que nas

entrelinhas é obsessivamente exaltado e buscado, indiscutivelmente considerado como grande

virtude perdida, é a beleza. Uma beleza que, assim como enunciavam Flaubert e Baudelaire

no século XIX, já teria sido totalmente extinta para dar lugar à décadence generalizada da

vida cotidiana de uma execrada sociedade burguesa.

Em outros termos, Lipovetsky e Serroy denunciam a estetização do mundo em nome

de um esteticismo,7 ou seja, sob o pressuposto de que a verdadeira fruição estética não deve

estar atrelada a nada fora de si. Claro que, com o alcance logrado pelo design na sociedade

contemporânea,8 a dimensão estético-artística se “infiltra” cada vez mais em todos os

interstícios do comércio e da vida comum. No entanto, a acusação de que “a vida numa

sociedade estética não corresponde às imagens de felicidade e de beleza que ela difunde em

abundância no cotidiano”9 implica e solicita, em seu teor acusatório, a “prova” de um valor

estético superior a todo e qualquer outro valor. Trata-se, pois, de uma petição de princípio,

num looping de argumentos que replicam os termos “arte” e “estética” como sendo sinônimos

unívocos e indiscutíveis.

Daí que o propósito de partir da estética para tratar da sociedade mostra-se caduco:

“quanto mais a astúcia estética da razão mercantil se põe à prova, mais seus limites se

impõem de maneira cruel a nossas sensibilidades”.10 A tentativa dos autores é a de valerem-se

5 Coelho, M. “Palavrório transestético”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 jul. 2015. Ilustríssima, p. I2. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1653440-palavrorio-transestetico.shtml>.

Acesso em: 08 nov. 2015. 6 Lipovetsky, G.; Serroy, J. Op. Cit., p. 71. 7 “Esteticismo é, entendo eu, portanto, a afirmação de que os valores e as vivências estético-artísticas são, em si e

por si, os mais elevados a que se tem acesso na nossa existência; não só eles são superiores aos outros, como são

um fim em si mesmos”. Rabelo, R. A arte na filosofia madura de Nietzsche. Londrina: Eduel, 2013, p. 364. 8 “Atualmente, qualquer pessoa com um iPhone sabe que seria absurdo distinguir aquilo que foi elaborado

através do design daquilo que foi planejado, calculado, arrumado, arranjado, empacotado, embalado, definido,

projetado, pensado, escrito em código etc. De agora em diante, ‘fazer design’ pode significar igualmente cada

um desses verbos”. Latour, B. Um Prometeu cauteloso? Alguns passos rumo a uma filosofia do design (com

especial atenção a Peter Slotedijk. Agitprop: revista brasileira de design, São Paulo, v. 6, n. 58, jul./ago. 2014, p.

3. Disponível em: <http://filosofiadodesign.com/wp-content/uploads/2014/10/Prometeu-cauteloso.pdf>. Acesso

em: 08 jun. 2016). 9 Lipovetsky, G.; Serroy, J. Op. Cit., p. 33. 10 Ibidem, p. 35.

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Marcos Beccari & Rogério de Almeida

14 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

da dimensão estético-artística como campo de manobras para tratar da “razão mercantil”

tornada problema, como prova de que a estetização dos bens de consumo figura uma nova

etapa do capitalismo. Só que o argumento falha ao impugnar, como se tratasse de um

consenso geral e automático, condutas perversas aos gostos, aos modos de viver e à produção

de uma época, de uma civilização, de um momento histórico. É característico dos autores, não

obstante, a formulação de periodizações de “largo voo”, conforme sintetiza Marcelo Coelho:

Tomemos então as “sociedades ditas primitivas” – mas os autores usam “ditas” à toa, tratando-

as como primitivas mesmo. Lá, a arte não tem existência separada, tudo se faz em obediência

às tradições rituais. Viramos a página, e já estamos nas sociedades de corte do século 18, em

que a arte serve à glória dos príncipes. Grécia, Roma, Idade Média, Oriente, nada disso precisa

ser levado em conta no raciocínio dos autores.

Segue-se o momento moderno, com a autonomia do artista, a oposição vanguardista entre arte

e comércio, a crítica ao artesanato decorativo e ornamental. Essa oposição estaria agora

encerrada, e a arte se mistura ao consumo. 11

Esse tipo de panorama didático, que tanto mais se “didatiza” quanto mais numerosos

são os exemplos elencados nos capítulos que o sucedem, é o que sustenta a tese de uma

estetização global. Não é difícil relativizar, pois, o ineditismo do consumo transestético; basta

voltarmos à segunda metade do século XIX, época em que os espaços urbanos das cidades

europeias começam a se tornar espaços de circulação, interação e consumo. Nessa época, em

meio às reformas urbanas de Paris, feitas por Haussmann, e aos enormes affiches publicitários

que começam a proliferar pelas ruas, o movimento conhecido como Art nouveau operava um

transbordamento da esfera da arte para o cotidiano: utensílios domésticos, joias, roupas,

interiores, fachadas etc. tornam-se elementos de um consumo estetizado que, antes disso, era

privilégio da aristocracia.

Assim, como descrevem Carrascoza e Santarelli,12 a “arte nova” foi central não apenas

a uma democratização do consumo, mas também a uma estetização do consumo em um

período de declínio da lógica social aristocrática. Se o consumo estetizado já era importante

anteriormente, no seio da aristocracia, ele não era, entretanto, suporte central para novas

formas de se pensar o espaço urbano, novas práticas sociais, novas condutas interpessoais e

identitárias. A figura novecentista do flaneur,13 por exemplo, definia-se por buscar uma

11 Coelho, M. Op. Cit., p. I2. 12 Carrascoza, J.; Santarelli, C. “Um olhar de descoberta na Paris da Belle-epóque”. Comunicação, mídia e

consumo, v. 3, n. 9, 2007. Disponível em: <http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/88>.

Acesso em: 08 jun. 2016. 13 “O errante é então aquele que busca o estado de espírito – ou melhor, do corpo – errante, que experimenta a

cidade por meio das errâncias, que se preocupa mais com as práticas as ações e os percursos do que com as

representações, as planificações ou as projeções. O errante não vê a cidade somente de cima, em uma

representação tipo mapa, mas a experimenta de dentro”. Berenstein Jacques, B. Cenografias e corpografias

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interação sensível com as imagens que circulam pelo espaço urbano e o constroem enquanto

objeto estético.

Pois bem, uma vez constatado que atualmente “as obras primas da arquitetura mundial

são visitadas por milhões de turistas”, Lipovetsky e Serroy deduzem que o “divertimento não

é mais um domínio marginal e separado, ele se tornou um setor econômico fundamental, uma

indústria transestética que cresce a cada dia”.14 Ora, se o turismo constitui hoje um novo setor

econômico fundamental, não é porque ele possibilita uma nova atividade sociocultural, mas

porque a experiência estética tem sido, ao longo dos séculos, cada vez mais acessível e

valorizada na esfera cotidiana. Novamente, é a expressão “cada vez mais” que acaba servindo

de caução para uma novidade que não é nada nova.

A estetização do consumo, afinal, ocorre pelo menos desde a sua passagem da esfera

privada dos salões aristocráticos para o espaço público do comércio. É no século XIX que

surgem as lojas de departamento e as vitrines, que os produtos começam a ser expostos para o

deleite visual dos transeuntes, com confesso objetivo de sedução, sendo também nessa época

que se consolidam a publicidade e o design como os conhecemos hoje. Não é novidade,

ademais, a queixa de que um consumo de maior valor estético agregado, fabricado por um

capitalismo artista, não nos afasta “das criações culturais pobres e vulgares, da desculturação

dos estilos de existência, [...] miséria cotidiana, singularidade e banalidade, sedução e

monotonia, qualidade de vida e vida insípida”15 – tudo isso já era lamentado por Goethe,

Baudelaire, Oscar Wilde, Balzac, Rimbaud e outros “sobreviventes” do século XIX.16

3. O estético generalizado

Há uma cena irônica no filme As aventuras de Molière, de Laurent Tirard,17 em que

Monsieur Jourdain, apaixonado por uma nobre, ao chegar em sua mansão, vai de sala em sala

tomando aulas até chegar à última, na qual aprenderá com Molière como conquistar a nobre

pela qual está apaixonado. Em cada uma das salas por onde passa, há um professor à sua

espera: música, dança, pintura... O refinamento aristocrático não está ligado a uma atividade

ociosa e desinteressada, mas a um índice distintivo que necessita ser mantido, a despeito do

urbanas: espetáculo e experiência na cidade contemporânea. Revista Observatório Itaú Cultural, n. 5, 2008, p.

53. 14 Lipovetsky, G.; Serroy, J. Op. Cit., p. 270. 15 Ibidem, p. 35. 16 “[...] a própria possibilidade, no final do século XIX, de se conceber uma percepção estética purificada está

estreitamente ligada a [...] novas construções institucionais de uma subjetividade produtiva e controlável”. Crary,

J. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 26. 17 Molière. Laurent Tirard. França: Fidélité Productions/France 2 Cinéma/France 3 Cinéma, 2007.

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16 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

pragmatismo de Monsieur Jourdain, mais preocupado em suas atividades comerciais e

sexuais.

Embora haja diferenças entre os ambientes, a arte segue circulando entre os que

encabeçam a pirâmide social. Mas seria um equívoco concluir que o estético seja privilégio

desses poucos. Compreendida em sua etimologia, a estética, muito antes de se submeter ao

domínio da filosofia, portanto do pensamento, expressa sensação, resulta de uma confluência

dos sentidos, se dá na dimensão do fisiológico (em termos nietzscheanos).18 Jamais esteve, na

perspectiva histórica, alijada dos povos. Se a arte caminhou para um lado, reivindicando a

supremacia do pensamento sobre a estética como juiz de seu valor, a experiência estética

mundana seguiu seu rumo nas manifestações populares de toda ordem.

A arte como distinção social – no desenho crítico de Bourdieu19 – enfraqueceu-se no

capitalismo tardio, como se a burguesia não necessitasse mais tomar de empréstimo certo

brilho proveniente das altas esferas, preferindo a afetação dos produtos de luxo ao ritual da

contemplação dos símbolos máximos da arte civilizada. O resultado é a redução dessa arte a

pequenos espaços de culto, muitas vezes frequentado por artistas, especialistas e estudantes. O

mesmo se passou com a literatura. Mesmo o cinema dito “de arte” sobrevive de festivais e

patrocínios, com salas e bilheterias cada vez mais reduzidas.

Por outro lado, há certas “artes” que têm se espraiado por espaços antes esteticamente

desérticos, como as periferias das grandes cidades e até mesmo nos subterrâneos, seja com o

grafite, o funk, os saraus, os coletivos e outras iniciativas descentralizadas e

descompromissadas com a “alta cultura”, em uma iniciativa estética que tem pouco a ver com

os rigores da arte ou a consciência de sua história. Não se trata de vanguardas, não se trata de

naïfs, não é um retorno ao primitivismo ou algo entre a “arte popular” e a “cultura de massas”.

É antes um processo heterogêneo e desordenado, caótico e intenso, tribalizado, fractalizado,

sem centro, mas que testemunha o estético generalizado.

Essa generalização do estético, evidentemente, não escapa ao olhar ressentido de quem

instalou seu observatório na modernidade. Ao lado das denúncias de Lipovetsky e Serroy, o

coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han critica o que ele chama de excesso de

positividade presente não só na arte contemporânea como em toda a sociedade, positividade

18 “Dessa maneira, a ideia de atividade fisiológica na perspectiva nietzscheana porta tanto um sentido

orgânico/somático como psíquico, tornando tais esferas interdependentes, pois as múltiplas vivências do

organismo constituem uma dinâmica indissociável”. Bittencourt, R. N. Estética como fisiologia aplicada em

Nietzsche. Viso – Cadernos de estética aplicada, n. 8, jan-jun. 2010, p. 124. 19 Bourdieu, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 17

que não tolera a alteridade, a estranheza, a negatividade.20 Para ele, prevalece o polido, o liso,

o impecável, como se observa nas esculturas de Jeff Koons, nos smartphones e na depilação.

Preso a uma visão moderna de arte, cuja finalidade seria a experiência negativa de ser

sacudido, derrubado (o que os formalistas russos chamavam de ostranenie ou

estranhamento),21 Byung-Chul Han se queixa do que ele chama de estética da complacência,

na qual o sujeito goza de si mesmo, se compraz no exercício do gosto, do que lhe é agradável.

Contra o que ele chama de “anestética” contemporânea, uma arte que anestesia, que excita a

percepção “meramente” sensível,22 ergue-se a visão estética, sentimento desinteressado que

contempla o belo fora do tempo. Assim, “a tarefa da arte consiste na salvação do outro. A

salvação do belo é a salvação do distinto”.23 A conclusão de sua argumentação coincide com

o ataque ao consumo: “a crise da beleza consiste em que o belo se reduz a seu estar presente,

a seu valor de uso e de consumo. O consumo destrói o outro. O belo artístico é uma

resistência contra o consumo”.24 Em um só golpe, o pensador coreano critica a efemeridade

do belo contemporâneo e a cultura do consumo, defendendo o que ele chama de “belo

artístico”, uma espécie de ética da alteridade e programa contraideológico. Ética porque

presume certa “atitude” reverencial em relação à arte, atitude que lhe retira do tempo presente,

que provoca estranheza, que interpõe o outro; e programa porque prevê uma arte que funcione

como uma política de resistência, no caso, ao consumo, ao que é agradável à percepção, ao

sensível, ao gosto.

Os trabalhos de Lipovetsky e Serroy e Byung-Chul Han estão centrados menos no

estético como experiência humana que na crítica ao modus operandi capitalista que não hesita

em abarcar a arte e extrair dela o mesmo potencial de consumo que extrai de qualquer outro

“produto”, numa sociedade em que “tudo” tem seu “valor de uso” negociável, ocasionando

uma espécie de reificação do estético e de mercantilização do sensível. Como crítica ao

capitalismo, ainda que válidas pelo enfoque sociológico dos autores franceses e pela reflexão

depurada do filósofo coreano, as referidas obras trazem pouca novidade, mesmo que

arrisquem conceitos novos, como o “capitalismo artista” dos primeiros e a “sociedade da

transparência” do último. Em relação ao estético, a contribuição, se há alguma, é irrisória,

pois quando muito reúnem as características mais presentes de uma gama diversificada de

20 Han, B. C. La salvación de lo bello. Barcelona: Herder, 2015. 21 Cf. Chklovski, V. A Arte como procedimento. In: Eikhenbaun, B. et al. (orgs.) Teoria da literatura:

formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973, p. 39-56. 22 Han, B. C. Op. Cit., p. 90. 23 Ibidem, p. 91. Tradução da versão espanhola realizada pelos autores deste artigo. 24 Ibidem.

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18 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

produções artísticas consolidadas por um mercado de arte e realimentadas pela crítica

especializada.

A “estetização do mundo” seria, então, um fenômeno mais econômico que estético,

mais uma prática social que uma experiência, já que esta necessitaria de certas condições para

se efetivar – “resistir ao consumo” ou “estar fora do tempo”, por exemplo.

Acreditamos, ao contrário, que a dimensão estética das obras humanas – e não só as

artísticas – operam uma mediação, uma articulação simbólica entre os homens e o mundo.

Diferente da visão romântica25 que eleva o artista à condição de gênio criador, a arte é aqui

compreendida como a compreende Rosset: não como uma “aptidão em transcender o acaso

em criações que escapariam ao acaso”, mas como artifício que discerne, “no acaso dos

encontros, aqueles que dentre eles são agradáveis”.26 Assim, o artista é o que organiza certos

dados para produzir sua obra, como o músico que seleciona notas, durações, intervalos,

timbres e compõe sua música. Assim, a estética apresenta-se como “expressão de um

gosto”.27

Tal expressão de gosto não se limita mais à contemplação de dadas obras, tampouco a

uma prática de distinção social. Como constata Celso Favaretto, “o alargamento da

experiência artística, interessada na transformação dos processos de arte em sensações de

vida, permite que se pense na possibilidade de se fundar uma estética generalizada que dê

conta das maneiras de viver, da arte de viver”.28 Estamos no terreno da vida como obra de

arte, expressão comum tanto a Nietzsche quanto a Foucault. 29

A vida como obra de arte inscreve-se como sua afirmação, como amor fati, ou seja, amor pelo

destino, não como futuro preestabelecido, mas como o sentido que dou à minha história,

somatória das escolhas que faço com o fortuito da existência. 30

Assim, se a estética no século XVIII e XIX se pautou pela busca de uma

fundamentação filosófica do gosto como norma universal, hoje ela se manifesta pelas escolhas

“poéticas”, pautadas pela aparência, pela superfície, pelo embelezamento gratuito do mundo.

25 Cf. Nunes, B. A visão romântica. In: Guinsburg, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 51-

74. 26 Rosset, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 183. 27 Ibidem. 28 Favaretto, C. “Deslocamentos: entre a arte e a vida”. Revista ARS (PPG-Artes Visuais – USP), v. 9, p. 94-109,

2011, p. 108. 29 Cf., respectivamente: Nietzsche, F. A gaia ciência (CG), § 299. Edição consultada: trad. Paulo César de Souza.

São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Foucault, M. Ditos e Escritos – Vol. V: Ética, Sexualidade, Política.

Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006, p. 288-293. 30 Ferreira Santos, M.; Almeida, R. (orgs.). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São

Paulo: Képos, 2012, p. 151.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 19

Então, em vez de ver o mundo como sintoma e se incumbir da missão de salvá-lo com

medicamentos imaginários, talvez o pensamento pudesse se desincumbir da responsabilidade

por algo que não criou (o mundo, os homens, a vida, o acaso, a morte...) e responder sobre

suas próprias obras, dedicar-se a pensar o pensado como se não tivesse ainda sido pensado.

Exercício estético, dirão alguns. E dirão com razão, pois o pensamento é uma forma de mediar

o mundo – um jogo – que vale mais pela beleza de enunciação, expressão, raciocínio e

arquitetura (dimensão retórica) que pela possibilidade de expressar verdades para além do

próprio pensamento. 31

Desse modo, a experiência estética não é vista aqui como algo excepcional, o sublime,

o fora do tempo, o estranhamento, mas o que aparece como banal e repetitivo no seio do

cotidiano, como celebração possível das mediações que fazem proliferar os sentidos do

mundo, mas também as sensações que os acompanham. A experiência estética,

principalmente a que advém do contato com as obras de arte (plásticas, cinematográficas,

literárias etc.), consiste numa intensificação da vida. É uma experiência do excesso, da

embriaguez e da excitação,32 e não um lenitivo, uma catarse ou uma sublimação.

A experiência estética não está imune às mazelas de nossa contemporaneidade –todo

tempo tem as suas mazelas –, e é possível apontar sem dificuldades um conjunto

extensíssimo de obras “irrelevantes” para uma história da arte, mas isso não significa que a

estética tenha sido monopolizada por um “capitalismo artista” ou se transfigurado numa

“anestesia” por incapacidade de gerar estranheza. A estética tornou-se, antes, descolada da

arte, esparramou-se para as mais numerosas mediações sensíveis do homem com o mundo,

abrangeu enfim a vida. Trata-se, portanto, de compreender a estética na chave da

intensificação (ou o seu contrário) da vida, embelezamento gratuito e inútil, efêmero e

singular, mas que se manifesta como afirmação.

4. O estético aquém das estetizações

Antes de avançarmos na questão da estética em sua relação com a vida, é pertinente

distinguirmos o termo "estético" da estética filosófica tradicional, tal como se diz,

prosaicamente, do político distinto da política, do lógico distinto da lógica e assim por

diante.33 O objeto estético, por esse caminho, não seria o belo, a arte, a estranheza, mas o

“estético” mesmo: expressões de um gosto, de sensações, de impulsão ou repulsão, enfim, de

31 Almeida, R. O mundo, os homens e suas obras: filosofia trágica e pedagogia da escolha. Tese de Livre-

Docência. São Paulo: FEUSP, 2015, p. 158-159. 32 “Para haver arte, para haver alguma atividade e contemplação estética, é indispensável uma precondição

fisiológica: a embriaguez”. Nietzsche, F. Crepúsculo dos ídolos (CI), IX, § 8. Edição consultada: trad. Paulo

César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 33 É o que propõe Mario Perniola em seu artigo Dall’estetico al superestetico (Rivista di Estetica, n. 14-15,

1983), traduzido para o português em: Perniola, M. Ligação direta: estética e política. Florianópolis: Editora da

UFSC, 2011, p. 57-74.

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nossa relação estético-afetiva com o mundo. É o estético que faz com que surja tanto a

estética filosófica (que, sob esse prisma, é também expressão de um gosto) quanto a estética

da vida cotidiana.

Cumpre sublinhar, entretanto, que o estético assim considerado não corresponde a

nenhum tipo de esteticismo. Pois aquilo que atribui força e sentido ao estético não é algo

externo, isto é, um modo de valer-se da estética para suplantar a metafísica; ao contrário, o

substrato estético é interno, imanente, inerente ao próprio corpo como elemento inescapável

de nossa inserção no mundo. Afinal, “[...] é na experiência individual de cada corpo – seu

modo de sentir, de ser afetado – que as formas de mediação da cultura contribuem na

formação das formas de lidar com a experiência imediata da vida”.34 Significa que o estético

não é direcionado ao alto, ao sublime, à solenidade ascética,35 mas em direção ao baixo, à

superfície epidérmica e cotidiana, à experiência vivida – Erlebnis, nos termos de Nietzsche.36

Dilui-se, sob esse viés, o descompasso entre as “estetizações” e seus cultores e delatores, os

quais estarão sempre à mercê de um sentimento estético.

Logo, se o mundo contemporâneo propicia o triunfo do estético, parece-nos mais

sensato e proveitoso compreender a abrangência interpretativa deste “solo”, juntamente com a

pluralidade dos modos de existir que nele florescem, do que se preocupar ou se contentar com

uma hipótese hiperbólica (crise da beleza, capitalismo artista, arte anestésica etc.) e forçá-la a

valer por toda a contemporaneidade.

Tal intenção hiperbólica está paradoxalmente ligada ao fato de que, para muitos

intelectuais de hoje, a mera alusão a uma noção como “gosto” ainda tende a apontar para algo

vago, inútil ou até mesmo fútil, como se costuma considerar o aspecto controverso e opinável

do “belo”. A difundida noção, por exemplo, de gosto como “consenso sem conteúdo”,37 ao

qual se adere irrefletidamente, parece carregar em si duas concepções que se contradizem: de

um lado, a premissa kantiana de uma faculdade desinteressada e não fundada em conceitos; de

outro, a “distinção” que Bourdieu define como incorporação habitual de preconceitos.38 Ora,

essa desconfiança de que o gosto não passa de consenso irrefletido não presta também tributos

34 Almeida, R. Op. Cit., p. 183. 35 No vocabulário nietzscheano, “ascetismo” designa toda sensibilidade que seja orientada por uma vontade de

verdade, isto é, ao anseio de descobrir o que há por trás das coisas. Por sua vez, o artista quer sempre

“aparência”: vive nela, cria dela e a reafirma. Com efeito, viver a vida como uma obra de arte implica incorporar

uma “boa consciência” para com a aparência e a ilusão, ao passo que o ideal ascético consiste em buscar, a todo

custo e em qualquer lugar, o que estaria por trás das aparências. Cf. Nietzsche, F. Genealogia da moral (GM),

III, § 12. Edição consultada: trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 36 Cf. Ibidem, § 25. 37 Cf. Eagleton, T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 38 Bourdieu, P. Op. Cit.

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O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 21

a certo tipo de distinção? E a deflagração crítica das distinções não expressa também um

(des)gosto? Como quando alguém decreta que o consumismo e a indústria cultural oferecem-

nos somente gostos pré-fabricados, inautênticos, que nos alienam das relações de dominação

que os ordenam; ora, quem é que determina qual é o gosto autêntico e o alienante?

Eis aqui, novamente, o sentimento estético direcionado ao alto, ainda que sob uma

forma não declarada de desgosto. Em A gaia ciência,39 Nietzsche é assertivo ao comentar

sobre a “lei da concordância” em relação à arbitrariedade dos gostos e das opiniões

particulares: trata-se de um acordo prévio acerca do “são intelecto humano”, cujo consenso

funda não mais um gosto comum, mas suscita, nos “espíritos mais eleitos”, justamente um

desgosto em comum. Não menos contundente é o aforismo seguinte, onde o “bom gosto” é

descrito como sendo propriamente o objeto do desgosto.

É por meio dessa perspectiva que podemos compreender os desgostos que consolidam,

conforme argumenta Mario Perniola,40 o clima de neo-obscurantismo que perpassa as

emergentes estéticas politizadas da “estranheza” (noção que, como vimos, é cara ao filósofo

coreano Byung-Chul Han). A ligação entre estética e política foi, não obstante, objeto de todo

um filão de estudos que, a partir de pensadores como Guy Debord, dedicaram-se a dissecar a

encenação do espetáculo político – sem escaparem, majoritariamente, de uma contraposição

estéril entre crítica e apologia dos instrumentos de comunicação de massa. 41

Em contrapartida, ao longo dos últimos anos foram significativos os pensadores que

investiram numa espécie de “passo atrás” em relação às “estéticas ideológicas”42: os estudos

de Michel Foucault sobre o significado estético dos comportamentos ascéticos na

Antiguidade, de Gilles Deleuze sobre o caráter imanente dos gostos e expressões, de Mario

Perniola sobre a importância política da estética ritual na Roma antiga, de Jonathan Crary

sobre a história dos regimes de visualidade.43 Ao lado de Nietzsche, tais autores (entre outros)

abrem caminho a um possível estudo do “estético”, entendido aqui como registro constituinte

de nossa inserção no mundo.

39 GC, §76. 40 Perniola, M. Desgostos: novas tendências estéticas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010, p. 167. 41 Cf. Perniola, M. Op. Cit., 2011. 42 Expressão empregada por Terry Eagleton para concepções que, a exemplo de Kant, elevam a estética para

além de qualquer discussão, isto é, a um registro purificado e inacessível senão por uma forma espectral de

racionalidade. Cf. Eagleton, T. Op. Cit. 43 Cf., respectivamente: Foucault, M. História da sexualidade III: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2005;

Deleuze, G. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968; Perniola, M. Pensando o

ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo: Studio Nobel, 2000; Crary, J. Técnicas do observador: visão e

modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

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Trata-se de reconhecer que dependemos dos gostos para forjar um sentido para as

ocasiões, para nós mesmos e para o mundo. Nesses termos, a constatação de uma “estetização

do mundo” – a arte como entorpecimento alienante, como estratégia capitalista etc. – expressa

nada mais que certa inclinação estética,44 a qual poderia ser traçada, pelo menos, desde as

primeiras décadas do século XX. As páginas dedicadas por Walter Benjamin,45 por exemplo,

às passagens parisienses (o espaço urbano em que a arte entra a serviço do comércio) já

sinalizavam um duplo sentimento: desgosto pela suposta alienação e gosto pela multidão em

transe. Parece, com efeito, que tal sorte de desgosto requer o deslocamento em direção a um

duplo, um vigário, um simulacro do desgosto que se subtrai à identificação imediata. É como

a oposição entre o emergente imperativo “toda arte é política” e o preceito esteticista, em

aparente declínio, segundo o qual nenhuma arte pode/deve ser politizada: ambos expressam

um mesmo desejo de justificar a importância, política ou apolítica, da atividade artística no

âmbito social; algo similar ao que era a religião cristã para a produção artística medieval, isto

é, um pretexto onipresente e inescapável.

A questão é que, contudo, nenhum discurso ou paradigma discursivo é suficiente para

abranger o “estético” de uma época, porque este não se encontra no horizonte autorreferencial

dos sentidos, e sim no registro simbólico-afetivo de “aderência” da vida individual em relação

à vida coletiva. Em especial no caso da ampliação estética que se alastra no mundo

contemporâneo, o que parece se sobressair na esfera cotidiana, aquém dos discursos

politizados, é uma sensibilidade similar à que propõe Nietzsche:46 o estético não como fim em

si mesmo, mas como meio de intensificação da vida.

Em vez de “a vida imita a arte”, fórmula esteticista de Oscar Wilde,47 o que se

perpetua em nosso cotidiano move-se em outra direção: fruição da vida por meio da fruição

estética (não somente artística). A diferença é aquela entre o alto e o baixo, entre um ideal de

vida bela e o viver em si, entre a estética como bússola de elevação (mesmo que corrompida)

e o estético como solo em que se cultiva a própria vida. É nesse indesviável solo estético que

floresce certo “gosto pelo gosto”, pelas aparências, pela superfície das coisas e dos discursos.

44 Nietzsche ilustra essa noção de “inclinação estética” na terceira dissertação de sua Genealogia da moral,

contrapondo a estética de Schopenhauer (como “servidão do querer”) à de Stendhal (como “excitação da

vontade”). Cf. GM, III, § 6. 45 Benjamin, W. Paris, capital do século XIX. In: Kothe, F. R. (org.). Walter Benjamin. Coleção Grandes

Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985. 46 Cf. Rabelo, R. Op. Cit., p. 411. 47 Wilde, O. Complete Works. 5. ed. London: Collins, 2003, p. 1135.

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O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 23

5. O cotidiano estético: considerações finais

Entendendo o “estético” como o registro das experiências sensíveis que formam os

modos de viver e interpretar o mundo, podemos pensar no cotidiano contemporâneo como um

território de passagem pelas mediações estéticas, pelas aparências, gostos e estilos. Por

conseguinte, em vez de pensar em termos de uma estetização “vertical”, como se uma esfera

transcendente tivesse sido profanada e esvaziada, o que observamos é uma abertura horizontal

a um cotidiano estético, a esse espaço pelo qual participamos efetivamente de um mundo que

é indissociável dos sentidos, dos afetos, das aparências. Noutros termos, o estado

contemporâneo da estética foi deslocado da arte para a vida, portanto também da

transcendência para a imanência, isto é, sem qualquer necessidade ou finalidade além da

fruição da vida mesma.

De maneira mais propositiva, acreditamos que é especialmente sob a alcunha do

“design” que, no cotidiano estético contemporâneo, a afirmação da vida aparece com maior

vigor, como ensejo e finalidade para a experiência estética. Visto de maneira ampla, à esteira

de uma filosofia do design,48 o design não se reduz a objetos e produtos, mas abrange a

compreensão sensível das mediações simbólicas que nos perfazem. Tais mediações são

articuladas não somente por meio de produtos, marcas e serviços, mas também por meio de

discursos, estilos, gestos, modos de ser. Mais do que isso, o design aciona novas formas de

aderir ao espetáculo mundano: não jogamos apenas com palavras ou ideias, mas com ícones,

fotografias, vídeos, estilos, representações, de tal forma que o cotidiano estético se abre à

medida que as coisas que nos cercam (imagens, objetos, lugares e pessoas) se coordenam, se

conectam, se compõem.

O design perfaz, desse modo, um ritual diário de assimilar, organizar e articular dadas

mediações de acordo com nossos gostos e com cada ocasião. Não se trata tanto de expressar

uma “visão de mundo”, mas antes de fazer diferentes modos de olhar expressarem-se uns

pelos outros, num processo que é sempre instável, fragmentado, relativo à intensidade dos

fluxos afetivos.

Essa maneira de “dar a ver” o mundo por meio das mediações estéticas que nos

conectam a ele coaduna-se com a noção nietzscheana de “obra de arte”: exercício de

afirmação da vida pela criação de sentidos que se inscrevem nela e que a reescrevem. E por

meio do design os sentidos criados mostram-se menos importantes que o compartilhamento

dessa criação, que é sempre coletiva. A atual amplitude da circulação de gostos e estilos,

48 Cf. Beccari, M. Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design. Teresópolis/RJ: 2ab, 2016.

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Marcos Beccari & Rogério de Almeida

24 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016

afinal, faz comparecer ao palco contemporâneo uma multiplicidade de modos de ser,

situando-nos numa existência sempre mediada por “espelhamentos” estético-afetivos. Tais

espelhamentos se dão, por sua vez, a despeito de um mesmo processo hermenêutico: é ao

compreender a si mesmo que o indivíduo compreende o mundo,49 e é compreendendo o

mundo que o indivíduo se compreende nele, se situa e dimensiona esteticamente sua vida.

Pois bem, retomando as denúncias de Lipovetsky, Serroy e Han, é interessante notar

que aquilo que eles descrevem como “transestética” ou “sociedade da transparência”

pressupõe uma espécie de complacência anestésica (algo próximo ao “soma” como regulação

dos afetos na opus magnum de Aldous Huxley), ao passo que é justamente o contrário que se

destaca no palco contemporâneo: a diversidade e a polarização de valores. De um lado,

condutas reativas, excessivas e controversas são replicadas de modo a incrustar o acirramento

das convivências. De outro, as obras artísticas e de entretenimento não escapam da influência

de uma nova sensibilidade para com os conflitos, as minorias, as diferenças. O que se vê, de

um lado a outro, é nada além de uma abertura ao estético – ou ao “blefe”, nos termos de Louis

L. Kodo:

Por isso, se a coisa abriu-se embaixo e o fascínio pelo blefe superou o reflexo de toda tradição,

é porque a coisa abriu-se em cima. Como? Pela falência. A igreja faliu – quanto ao domínio da

fé; a justiça faliu – quanto à sua representação; o valor aristocrata/burguês faliu – porque agora

pertence a todos; a cidade faliu – como ideia de uma coexistência pacífica. E se tudo faliu, é

porque tudo apareceu, é porque a sua aura deixou-se sob o seu próprio blefe [...]. 50

É nessa paisagem aberta e plural que o design põe em relevo nossas afeições e

rejeições, nosso vocabulário, nossos gestos, nossas referências. Não é que os grandes

discursos tenham se apagado, mas que se abriram ao jogo estético pelo qual o indivíduo

aparece, emerge ao mundo, trafega pela superfície dos valores, aderindo-os ou rechaçando-os,

em função da intensificação da vida. De resto, a corrida econômica avança desenfreada em

busca de lucro, produtividade e atualização, numa lógica que impregna o estético, sem,

contudo, enclausurá-lo.

“Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós, suportável ainda, e pela

arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, de nós próprios,

podermos fazer um tal fenômeno”.51 Ao contrário do remorso em relação a uma suposta

pureza perdida que não encontra respaldo no mundo sensível, essa boa consciência da qual

fala Nietzsche é o que instaura um cotidiano estético por meio do qual o mundo explicita-se

49 Cf. Ricouer, P. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 68. 50 Kodo, L. L. Blefe: o gozo pós-moderno. São Paulo: Zouk, 2001, p. 41. 51 GC, § 107.

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O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 10-26, 2016 25

como aparência de mundo, dando vazão à pluralidade das interpretações e intensificando

nossa relação com o mundo.

Compreende-se finalmente que o registro estético não opera como superestrutura

social (como insistem os porta-vozes do remorso novecentista), mas como infraestrutura

afetiva para todos os âmbitos, inclusive o social. Dessa forma, a vida cotidiana não se subtrai

de um conjunto de referências fixas, mas se intensifica nos mínimos gestos, na manipulação

casual das aparências, no espetáculo fugaz de ver e ser visto. Trata-se da “obra de arte” que

cada indivíduo cultiva por meio do design, na troca constante entre nossos impulsos afetivos e

aquilo que o mundo nos apresenta.

The aesthetical daily life: considerations on the aestheticization of

the world

Abstract: This article aims to reflect on the contemporary aesthetics

from a Nietzschean perspective, focusing mainly on the "aesthetical"

as a dimension that makes life excessive, favoring its affirmation.

Using as a starting point the notion of aestheticization of the world,

subject of recent works by Gilles Lipovetsky and Jean Serroy (2015)

and Byung-Chul Han (2015), we argue that what took place was not

properly a "top-down" aesthetization (as if a transcendent sphere had

been profaned and emptied), but a horizontal opening to an aesthetical

daily life. Afterwards, we turn to Nietzsche and other thinkers in order

to distinguish the term "aesthetical" from the traditional philosophical

aesthetics. We note, finally, that it is increasingly in the aesthetical

daily life, especially under the banner of "design" (as a sensitive

understanding of the symbolic mediations that cross us), that the

affirmation of life appears to be most effective, as occasion and

purpose for the aesthetical experience.

Key-words: aestheticization, aesthetical, Nietzsche, aesthetical

everyday.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 27

Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer: liberdade e

criatividade em uma teoria pós-prometeica da ação

Daniel B. Portugal

Resumo: Este artigo parte de algumas categorias propostas por Bruno

Latour para tecer considerações históricas a respeito de noções como sujeito,

vontade e liberdade. As categorias em questão são as de teoria prometeica e

pós-prometeica da ação. Acrescento a elas, ainda, a categoria de teoria da

ação pré-prometeica. Nesta, o sujeito livre aparece como aquele cuja vontade

adere a uma ordem cósmica ou divina. O referencial prometeico, por sua

vez, rompe com o arcabouço metafísico tradicional e ou nega a liberdade da

vontade, considerando-a determinada pela causalidade empírica, ou propõe a

existência de uma liberdade transcendental desconectada de uma ordem

metafísica estabelecida. Com base nesta, o sujeito pode ser pensado como

legislador ou como artista. Argumento que tanto o referencial pré-

prometeico quanto o prometeico baseiam suas teorias da ação em uma moral

e, atentando para a filosofia de Nietzsche, delineio uma forma pós-

prometeica de conceber o sujeito. Nela, o sujeito é encarado como um

designer que articula valores e aparências.

Palavras-chave: teoria da ação, moral, sujeito, vontade, liberdade.

1. Introdução

Em seu artigo “Um prometeu Cauteloso?”, 1 Bruno Latour vale-se de algumas

conotações do termo design para refletir sobre as formas pós-modernas de encarar a atuação

humana sobre o mundo. Latour não utiliza a expressão “pós-moderno”, uma vez que

considera – como indica o título de um de seus livros mais famosos – que jamais fomos

modernos. Ele prefere falar de uma teoria pós-prometeica da ação. A expressão “pós-

prometeica” é bastante interessante porque sugere, a partir da referência mitológica, algumas

características da teoria da ação em questão.

Na mitologia grega, Prometeu é um titã conhecido por ter roubado o fogo divino para

entregá-lo aos humanos e pela punição que recebeu por tal ato: passar a eternidade preso em

um rochedo tendo o seu fígado devorado por um abutre. Em alguns mitos, Prometeu figura

também como o criador do ser humano. Por isso, ele se tornou uma figura representativa do

ato de criar e, principalmente, do impulso de criar algo a qualquer custo e até em sacrifício de

si mesmo.

Professor da ESDI/UERJ. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. E-mail: [email protected] 1 Latour, B. Um Prometeu cauteloso? Alguns passos rumo a uma filosofia do design (com especial atenção a

Peter Slotedijk). trad. Daniel B. Portugal e Isabela Fraga. Agitprop: revista brasileira de design, São Paulo, v. 6,

n. 58, jul./ago. 2014.

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Daniel B. Portugal

28 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

O modo de ação prometeico, então, é aquele marcado pela megalomania e

desconsideração das consequências do fazer, bem como de tudo aquilo que não se enquadra

no referencial totalizante que guia a ação. Podemos imaginar um engenheiro prometeico

projetando ou construindo (termos de conotação prometeica) um prédio, por exemplo, sem se

preocupar com o relevo e a vegetação locais, com as sutilezas da experiência humana naquele

edifício depois de pronto e muito menos com possíveis impactos sobre o ambiente urbano e

natural. Em contraste, o modo de ação pós-prometeico é aquele que está em consonância com

as algumas conotações que Latour identifica no termo design, dentre elas: atenção aos

detalhes; atenção aos significados e gostos; inclinação adaptativa e valorização do já dado;

reconhecimento da dimensão moral do fazer.

Neste artigo, quero aproveitar as categorias utilizadas por Latour em sua reflexão

sobre a ação social para refletir sobre o sujeito, isto é, sobre uma teoria da ação que diz

respeito não à ação social, mas à relação entre vontade e ação remetidas ao sujeito. O

objetivo, portanto, é utilizar as categorias de teoria da ação prometeica e teoria da ação pós-

prometeica (bem como sua relação com o termo design) para pensar noções como “sujeito”,

“vontade”, “liberdade” e “criatividade”. Tais noções possuem sentidos muito variados em

perspectivas teóricas diversas. E, mais importante, o sentido de tais noções costuma se

construir a partir de uma base ética.

2. Ética e teoria da ação

Em Shame and Necessity,2 Bernard Williams observa que, ao menos desde Platão,

uma visão ética está pressuposta em quase toda teoria da ação. O filósofo se debruça sobre os

escritos gregos da época de Homero e das tragédias para refletir sobre as formas então

vigentes de se encarar a agência humana e os tipos de necessidade às quais elas estariam

ligadas. Ele questiona a famosa teoria de Bruno Snell segundo a qual uma leitura atenta dos

textos homéricos permitiria concluir que os gregos dessa época não eram “sujeitos”, não se

consideravam a fonte de suas próprias ações. Em seu contra-argumento, Williams apresenta

diversos exemplos de textos homéricos e trágicos que, para serem escritos como foram, sem

dúvida pressupõem certa noção de agência humana e responsabilidade.

O que, então, pergunta-se Williams, “faltaria” à visão dos gregos antigos em

comparação à visão atual, para que uma teoria como a de Snell pudesse surgir e ganhar ampla

aceitação? A resposta de Williams: o que falta é a mistura de uma teoria da ação com uma

2 Williams, B. Shame and Necessity. Berkeley: University of California Press, 2008.

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Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 29

orientação ética. O que “falta” nos gregos antigos, enfim, é a noção implícita de que “[...] as

funções da mente, sobretudo aquelas referentes à ação, são definidas em termos de categorias

cujo sentido se baseia na ética”.3 Essa, observa Williams, é uma noção que “certamente falta

em Homero e nos autores das tragédias. Deixou-se para o pensamento grego posterior a tarefa

de inventar essa noção, e ela raramente foi abandonada desde então”.4

Como sabemos, Williams não está sozinho ao encontrar nos gregos pré-socráticos um

exemplo interessante de possibilidades éticas posteriormente encobertas pela moralidade ou

pela cultura ocidental. Schiller, Nietzsche, Heidegger e Foucault, entre outros, já haviam

efetuado, de maneiras diferentes e com objetivos diferentes, tal “retorno”.

A percepção de muitos que efetuam esse resgate é a de que a teoria da ação está, no

ocidente pós-socrático, intimamente entrelaçada não apenas à ética, entendida em sentido

amplo, mas a uma moral específica ‒ uma moral que, como percebe Nietzsche, poderia

declarar do seguinte modo suas pretensões: “eu sou a moral mesma, e nada além é moral!”.5

Com efeito, a ação livre ou autêntica que se remete ao sujeito é tradicionalmente

aquela que se aproxima de um suposto Bem cósmico, divino ou absoluto. A ação considerada

má, por outro lado, costuma ser remetida a uma instância externa ao sujeito, mesmo que seja

uma externalidade interiorizada. Em uma perspectiva cristã, por exemplo, certas ações podem

ser remetidas à carne ou ao “pecado que habita em mim”, para utilizar a expressão de São

Paulo que figura em uma de suas considerações mais conhecidas sobre a dualidade humana:

[…] eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer

está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal

que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que

habita em mim. […]. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; Mas

vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende

debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.6

A carne, assim, habita o sujeito mas não é parte dele ou, ao menos, de seu núcleo

principal. Os termos, aqui, tornam-se equívocos, pois na medida em que há uma exterioridade

interior, a noção mais ampla de sujeito se descola de uma espécie de núcleo autêntico, livre,

bom ou consciente do sujeito – o “eu”, se assim quisermos chamá-lo. O que importa, de todo

modo, é a localização de dois (ou mais, como na teoria da tripartição da alma de Platão)

centros de agência conflitantes no sujeito: um encarado como o núcleo bom e verdadeiro; o

3 Ibidem, p. 42, tradução minha. 4 Ibidem. 5 Nietzsche, F. Além do bem e do mal (ABM), § 202. Edição consultada: trad. Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2005. 6 Rm, 7: 18-23. Versão da Bíblia consultada: Almeida corrigida e revisada, fiel.

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Daniel B. Portugal

30 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

outro visto como uma exterioridade invasora. Nesse sentido, apenas a ação advinda do

primeiro poderia ser efetivamente considerada uma ação livre, autêntica ou verdadeira – ou

seja, uma ação propriamente realizada pelo sujeito. Essa polarização do sujeito em uma parte

boa (genuína) e uma parte má (exterioridade interior), representada de inúmeras maneiras na

filosofia, na literatura e no senso comum, é provavelmente o modo mais comum de embasar

moralmente uma teoria da ação.

É claro que tal polarização do sujeito não resolve necessariamente os muitos

problemas relacionados à questão da ação, como, por exemplo, a questão central da liberdade

da vontade. É preciso admitir, na verdade, que, ao menos em parte, ela cria esse tipo de

problema, pois a própria pergunta por uma liberdade da vontade – ou seja, uma liberdade para

além da não restrição de nossa ação por fatores externos – parece pressupor algum tipo de

polarização subjetiva.

O caráter moral de tal polarização é bastante evidente quando pensamos, por exemplo,

que o diabo domina nossa vontade, mas não tanto quando pensamos que nossa vontade não é

livre porque ela é o efeito necessário de causas empíricas. Contudo, mesmo esse tipo de

percepção da “necessidade da vontade” pode ter bases morais. Isaiah Berlin, ao escrever sobre

a história do conceito de liberdade, aponta que a percepção de que nossa vontade é

determinada pela necessidade natural “‘liberta-nos’ da sensação de frustração induzida por

abrigarmos um desejo irracional, por exemplo”. 7 Ou seja, a noção de determinação da

vontade, no caso, articula formas de valoração de nós mesmos a partir de sua suposta verdade.

Seja como for, as bases a partir das quais o problema da liberdade da vontade é colocado não

o resolvem de imediato. Prova disso são as muitas polêmicas que giram em torno do tema em

diversos registros teóricos e morais.

Dentro do registro cristão, o tema da liberdade da vontade é o centro, por exemplo, da

disputa entre Lutero e Erasmo no século XVI. Para Lutero, no que diz respeito à escolha do

Bem e do Mal, do pecado ou da redenção, nossa vontade não possuiria nenhuma agência. A

batalha interior entre a carne e o espírito seria apenas a encenação, no sujeito, de uma batalha

cósmica entre Deus e Satanás. Nossa vontade seria, portanto, como um jumento entre dois

cavaleiros: “Se Deus está sentado nele, ele quer e vai como Deus quer […]. Se Satanás está

sentado nele, ele quer e vai como quer Satanás, e não está em seu arbítrio correr para um dos

dois cavaleiros ou procurá-lo; antes, os próprios cavaleiros lutam para o obter e possuir”.8 A

7 Berlin, I. A ideia de liberdade. In: _____. Ideias políticas na era romântica: ascensão e influência no

pensamento moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 156. 8 Lutero, M. Da vontade cativa. In: _____. Obras selecionadas. v. 4. São Leopoldo: Sinodal, 1993, p. 49.

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Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 31

verdadeira liberdade da alma não consistiria em nada além de sua posse pelo Espírito Santo e,

portanto, em sua não-liberdade.

Embora assuma aqui uma forma radical, essa conclusão paradoxal, segundo a qual a

liberdade da vontade coincide com sua não-liberdade, está longe de ser uma idiossincrasia

luterana. Ela apenas revela, de maneira mais explícita do que a conclusão oposta, o

pressuposto moral paradoxal de que a vontade livre se dirige necessariamente para o bem.

3. Do sujeito inserido na ordem ao sujeito como legislador e artista

Aproveitando a digressão sobre a base moral das teorias da ação realizada na seção

anterior, apresentarei agora, de maneira mais sistemática, a proposta de aplicação das

categorias de Latour mencionadas no início do texto a algumas visões sobre o sujeito, a

vontade e a liberdade.

No registro platônico-cristão, do qual retirei os exemplos acima oferecidos, o

entrelaçamento entre moral e teoria da ação oferece uma base para pensar a motivação e o

direcionamento da ação do sujeito. O próprio Bem (ou Deus) aparece como a direção natural

da vontade humana quando ela não é perturbada por nenhuma exterioridade má

(costumeiramente representada, aqui, pelos desejos apetitivos ou paixões da carne). Essa base

metafísica marca o arcabouço moral pré-prometeico. Nesse registro, o sujeito livre é o sujeito

em harmonia com a ordem do Bem. Sua verdadeira liberdade não é senão a liberdade de se

inserir em tal ordem.

Ao menos desde meados do século XVII, começa a ganhar impulso uma tradição

materialista que busca remeter a vontade humana inteiramente aos apetites ‒ justamente,

portanto, àquela parte de nós que, na perspectiva platônico-cristã, aparecia como uma espécie

de “outro” mau em nós (nossa vontade corrompida, para usar a expressão agostiniana). Para

Hobbes, por exemplo, a vontade deve ser definida como “o apetite resultante de uma

deliberação precedente”.9 O filósofo inglês critica o entrelaçamento tradicional entre vontade

e razão, argumentando que, se a vontade fosse necessariamente racional, não poderia haver

ação livre contrária à razão. Ora, é justamente a impossibilidade da existência de uma ação

verdadeiramente livre contrária à razão que marca o registro metafísico tradicional – que

estou chamando aqui de pré-prometeico –, pois nele a razão nos aponta diretamente o alvo

legítimo de nossa vontade. No máximo, um outro tipo de ordem do Bem substitui a ordem

racional, como a noção de um Bem divino alheio à razão humana.

9 Hobbes, T. Leviathan: or, the Matter, Forme and Power of a Common-wealth, Ecclesiasticall and Civil.

London: Andrew Crooke, 1651, p. 38, tradução minha.

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Daniel B. Portugal

32 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

Com Hobbes, porém, está claro que a razão (ou outro substituto) não pode mais

oferecer um fim à vontade humana diferente do fim indicado pelos apetites. O sujeito poderia

somente ser mais ou menos racional ao perseguir a satisfação de seus apetites, mas não possui

nenhum tipo de liberdade para além deles.

Talvez justamente por rejeitar a moral subjacente à teoria da ação platônico-cristã, a

perspectiva materialista inglesa, quando resolve adentrar no âmbito da moral – e ela sempre o

faz –, encontra dificuldades insolúveis. Os utilitaristas do século XVIII, por exemplo, ao

sobrepor bem moral e felicidade ou prazer (termos que eles utilizam como sinônimos), não

conseguem explicar por que um sujeito movido por seus apetites agiria com o intuito de

maximizar a felicidade do maior número de pessoas e não a sua própria. Pode-se argumentar,

é claro, que é ao perseguir o próprio bem que o sujeito indiretamente promove o bem alheio.

Segundo o célebre argumento de Adam Smith em A riqueza das nações, por exemplo, ao

menos no terreno econômico, seria justamente na medida em que cada agente persegue sua

própria satisfação que ele produz mais felicidade para os demais agentes. Contudo, a noção de

moral se dissolve completamente quando o bem não diz mais respeito à vontade. E os

materialistas do século XVIII não estão preparados para – como propõe Nietzsche um século

depois – colocar a moral em questão.

É interessante notar, nesse sentido, que o próprio Adam Smith havia escrito, em 1759,

um livro intitulado A teoria dos sentimentos morais, no qual, fortemente influenciado por

Hutcheson, ele argumenta que o ser humano possui naturalmente a capacidade de empatia por

seus semelhantes. A ação eticamente boa, nesta obra, é aquela fundada principalmente nas

afecções benevolentes e empáticas, e não nos interesses ou afecções egoístas:

Sentir muito pelos outros e pouco por nós mesmos, restringir nossas afecções egoístas e seguir

nossas afecções benevolentes constitui a perfeição da natureza humana. É somente através

disso que o homem pode ter a harmonia dos sentimentos e paixões que constitui toda a sua

graça e propriedade.10

A oposição entre afecções egoístas e afecções benevolentes, como é fácil perceber,

recupera a dualidade cristã em um registro materialista. Mesmo que a razão não indique mais

o caminho do bem, em oposição ao caminho mau dos desejos, podemos ainda localizar em

nós afecções boas, diferentes das paixões (más) da carne. A reinserção do dualismo

metafísico-moral em um registro materialista também é realizada por Stuart Mill cerca de um

século depois. Ao dar seguimento ao utilitarismo de Bentham e de seu pai, James Mill, ele

10 Smith, A. The Theory of Moral Sentiments. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 30, tradução

minha.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 33

sente a necessidade de dividir os prazeres – do ponto de vista utilitarista, o único guia de

nossa vontade – em prazeres baixos (os prazeres do corpo) e prazeres elevados (os prazeres

benevolentes). Os prazeres elevados, que indicam o caminho da felicidade genuína (e

liberdade, aqui associada à liberdade de buscar a felicidade), opõem-se àqueles provenientes

da faculdade apetitiva: “Os seres humanos têm faculdades mais elevadas do que os apetites

animais e, quando eles se tornam conscientes delas, não veem como felicidade nada que não

inclua a sua gratificação”.11

No que diz respeito à relação do sujeito com a ação e com o bem, portanto, a tradição

materialista acaba, muitas vezes, retomando a base moral da teoria da ação platônico-cristã

por baixo dos panos. E, quando não o faz, prende-se a um materialismo cientificista no qual o

sujeito não pode ser pensado como nada além de um elo na corrente universal da causa e do

efeito. Nesse caso, abandona-se a noção de livre arbítrio apenas para cair no seu oposto, o

“cativo-arbítrio” como o chama Nietzsche.12

A noção materialista de uma vontade determinada, mas cujas causas poderiam ser

conhecidas por meio da ciência, estabelece um novo tipo de dualismo entre o sujeito

conhecido “objetivamente” (através de uma análise do cérebro, por exemplo, ou de uma

análise behaviorista) e o sujeito conhecido “subjetivamente” – a representação de si do sujeito

consciente. Essa talvez seja, hoje, a polarização do sujeito mais difundida no senso comum.

Como acontece no registro platônico-cristão, há diversas maneiras possíveis de encarar a

liberdade da vontade no registro cientificista. Uma das mais comuns, e cuja base moral é

evidente, associa a liberdade da vontade a um funcionamento correto do que aparece então

como seu aparato objetivo. Desse modo, um indivíduo “normal” seria livre enquanto um

indivíduo disfuncional (depressivo, por exemplo), seria escravo de sua disfunção. Em um de

seus best-sellers, o psiquiatra americano Peter Kramer, que ajudou a popularizar o Prozac,

apresenta essa oposição em uma frase de efeito bastante explícita: “a depressão é o oposto de

liberdade”.13

O título do livro de Kramer em questão, Against Depression, indica a pretensão

prometeica do psiquiatra: erradicar a depressão e tornar os humanos felizes (e livres).

Tenhamos em mente que a única diferença entre depressão e infelicidade, em tal registro, é a

conotação de “anormalidade” da primeira, que indica, justamente, que ela deveria ser

11 Mill, J. S. Utilitarianism. Kitchner: Batoche Books, 2001, p. 11, tradução minha. 12 ABM, § 21. 13 Kramer, P. Against Depression. New York: Penguin, 2005, p. 14.

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34 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

suprimida. Aqui adentramos, então, pela vertente cientificista, no registro prometeico, que

lida com a polarização entre vontade livre e vontade cativa de novas maneiras.

Outras vertentes da teoria da ação prometeica, para as quais atentarei em seguida,

pensam o sujeito como dotado de uma liberdade transcendental que se apresenta como

paradoxal se submetida às categorias por meio das quais seria possível pensá-la. Kant é, aqui,

o pensador-chave.

É a partir da filosofia kantiana que se pode pensar o sujeito como possuidor de

liberdade no âmbito transcendental e, ao mesmo tempo, como tendo sua vontade determinada

no nível empírico. Ainda assim, é indispensável que algo se dê na experiência que nos

permita apreender a liberdade, caso contrário ela seria apenas uma dessas ilusões metafísicas

produzidas pela dialética que Kant critica duramente. Com efeito, na Crítica da razão prática,

Kant reconhece que a noção de liberdade é paradoxal (para o entendimento), pois se refere a

algo incognoscível, mas aponta que ela precisa ser admitida a partir de uma base prática

porque é “a condição da lei moral”.14 A liberdade humana, observa Kant, é “provada por uma

lei apodítica da razão prática”.15

A lei moral, lembremos, ganha na filosofia kantiana a forma do imperativo categórico,

ou seja, de uma lei que não pretende indicar os meios para que o sujeito atinja seus desejos –

os fins apetitivos particulares –, mas sim regras universais que valem de uma vez por todas,

independentemente das particularidades dos apetites ou das circunstâncias. Assim, à medida

que determina a vontade para além das causalidades particulares – pois se baseia nas máximas

universais e imutáveis da razão –, a lei moral prova a liberdade do sujeito. De modo

paradoxal, portanto, o sujeito toma consciência de sua liberdade justamente ao submeter-se a

leis morais universais ao invés de seguir seus apetites ou seus motivos (pois estes, mesmo que

sejam “racionais” em sentido instrumental, reconhecem como único fim os apetites, a

necessidade natural em nós).

Mesmo após romper a ligação cósmica entre liberdade e Bem (que marcava o

referencial pré-prometeico), contudo, Kant sente a necessidade, ao pensar sobre a moral, de

considerar que o Bem seria o objeto a priori da vontade determinada moralmente. Desse

modo, ele reintroduz Deus em sua filosofia crítica, argumentando que Ele seria condição de

tal objeto (o Bem).16 Esse retorno de Deus, e do Bem como fim último da vontade livre,

14 Kant, I. Crítica da razão prática (KpV), A 5. Edição consultada: trad. Valerio Rohden. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2012. 15 KpV, A 4. 16 KpV, A 6.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 35

direciona o sistema kantiano novamente para o referencial pré-prometeico do qual ele havia

saído com tanta elegância. Não à toa, Nietzsche o compara a “[...] uma raposa que se extravia

de volta para a jaula – e a sua força e esperteza é que havia arrombado a jaula!”.17

Ainda assim, é possível dizer que, em Kant, o sujeito ganha um novo estatuto e

aparece como um legislador. Ele é livre à medida que sua vontade é determinada pela lei

moral, efeito da liberdade, mesmo que essa liberdade, em princípio radical, esbarre aqui e ali

em certas limitações: no plano metafísico, como observei acima, Kant eleva o Bem

novamente a objeto a priori da vontade, e, no plano empírico, há sempre a limitação da

natureza em nós ‒ mesmo que Kant acredite descobrir “um curso regular” no

desenvolvimento da humanidade, que a torna cada vez mais independente dos instintos, ou

seja, cada vez mais livre, mais capaz de se autodeterminar com base no uso da razão.18 A

necessidade natural continua a atuar, portanto, como uma exterioridade interior, e nossa

vontade, se não é mais o palco de uma disputa cósmica entre Deus e Satanás, como em

Lutero, é a arena de uma luta entre a natureza e o sujeito livre transcendental.

O sujeito, na versão kantiana da teoria da ação prometeica, é eminentemente um

legislador racional livre. Outras versões, que podemos chamar genericamente de românticas,

mantêm em destaque a liberdade do sujeito, mas dão ênfase não à racionalidade e à

legislação, e sim à sensibilidade e à criação. Tais versões procuram unir a liberdade do sujeito

proposta por Kant com o que Charles Taylor chama de “expressivismo”. 19 A corrente

expressivista, que teria em Herder uma de suas raízes, critica o iluminismo por perder de vista

a unidade viva e expressiva do humano, desmembrando-o pela razão analítica.

Schiller é provavelmente o primeiro filósofo que, seguindo Kant de perto, procura

remendar sua proposta divisionária, na qual o caminho do bem é pensado como uma vitória

unilateral da razão sobre a natureza. O humano é também definido pela sensibilidade, e, se

sua vontade se encontra sempre no jogo entre a natureza e a razão, seria neste jogo mesmo

que sua liberdade reside. Para Schiller, se a razão busca uma soberania irrestrita sobre a

natureza, ela coloca o humano contra si, do mesmo modo que a natureza o faz quando exerce

uma dominação total. Neste último caso, o homem seria um selvagem; no primeiro, um

17 Nietzsche, F. A Gaia Ciência (GC), § 335. Edição consultada: trad. Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012. 18 Kant, I. Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2016. 19 Taylor, C. The Sources of the Self: the Making of the Modern Identity. Cambridge: Cambridge University

Press, 1989.

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36 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

bárbaro, que “escarnece e desonra a natureza, mas continua sendo escravo de seu escravo por

um modo frequentemente mais desprezível que o do selvagem”.20

De um modo ou de outro, pelo abuso dos sentidos ou da razão, o homem torna-se um

fragmento do todo e não consegue mais elevar-se à totalidade, como conseguiam os gregos,

“naqueles dias do belo despertar das forças espirituais”.21 Tal estado fragmentário do humano

seria efeito da civilização, que seguiu o desenvolvimento unilateral do pensamento

instrumental pragmático e do pensamento analítico abstrato. Com isso, a civilização afastou o

humano da vida:

[...] o pensador abstrato tem, frequentemente, um coração frio, pois desmembra as impressões

que só como um todo comovem a alma; o homem de negócios tem frequentemente um

coração estreito, pois sua imaginação, enclausurada no círculo monótono de sua ocupação, é

incapaz de elevar-se à compreensão de um tipo alheio de representação.22

A restauração da totalidade do humano, que foi “destruída pelo artifício”, deveria, para

Schiller, ser o objeto de uma “arte mais elevada”.23 Pensando a oposição entre razão e

natureza a partir de impulsos que moveriam o sujeito – o impulso racional e o impulso

sensível –, o filósofo mostra que o conflito entre esses dois impulsos não é necessário: eles

podem atuar em conjunto. Nessa conjunção, podem ser pensados como um terceiro impulso:

o impulso lúdico.

Os impulsos sensível e racional “[...] impõem necessidade à mente: aquele por leis da

natureza, este por leis da razão. O impulso lúdico, entretanto, em que os dois atuam juntos,

imporá necessidade ao espírito física e moralmente a um só tempo”.24 Paradoxalmente, ao

suprimir, com essa dupla imposição de necessidade toda a contingência, “[...] ele suprimirá,

portanto, toda a necessidade, libertando o homem tanto moral quanto fisicamente”.25 Ou seja,

o impulso lúdico acaba com a luta entre duas determinações da vontade, dissolvendo a

separação entre uma espécie de vontade verdadeira (racional) em oposição a uma

exterioridade interior (a carne, vontade corrompida, natureza ou apetite). O sujeito estético

integra em um impulso livre os dois impulsos que entram em conflito quando o homem se

encontra em estado corrompido ou fragmentário: o sujeito digno do nome é uma totalidade

20 Schiller, F. A educação estética do homem, carta IV. Edição consultada: trad. Roberto Schwarz e Márcio

Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990. 21 Ibidem, carta VI. Pode-se observar, aqui, a direção do “retorno” schilleriano aos pré-socráticos. 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 Ibidem, carta XIV. 25 Ibidem.

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 37

que integra a lei moral e a necessidade natural em uma liberdade viva e criativa. O sujeito já

aparece aqui, portanto, não tanto como um legislador, mas como um artista.

Um tratamento sobre as diversas formas de se pensar o sujeito como artista no registro

romântico exigiria, é claro, um artigo – ou mesmo um livro – à parte. Aqui, o que interessa é

notar a liberdade do sujeito transcendental que marca parte do referencial prometeico. Como

legislador ou como artista, o sujeito se conecta com algum tipo de criação livre que se opõe ao

mundo empírico, regido pela necessidade natural. O humano é pensado na oposição entre uma

liberdade transcendental criativa ou racional (ou racional-criativa) e uma necessidade natural

que, pensada cientificamente, assume menos o caráter de um mal metafísico do que um

caráter maquínico, inumano. Na versão romântica, o caráter maquínico ou inumano da

natureza é atribuído à razão analítica (ou ao abuso da “verdadeira” razão), que nos levaria a

olharmos a natureza querendo dominá-la, controlá-la. Seria esse olhar que só revelaria o lado

maquínico e inumano, da natureza, e não sua força viva e criativa. Vislumbrada

integralmente, a natureza, longe de se opor a uma exterioridade interior em nós, levaria à

totalidade (e liberdade) do sujeito.

4. O sujeito como designer

A partir das categorias de teoria da ação pré-prometeica e teoria da ação prometeica,

tracei até aqui algumas das principais formas de concebermos, na história do pensamento

ocidental, a vontade humana e, com ela, a agência e liberdade do sujeito, a partir de divisões

de base moral. Agora, gostaria de pensar algumas possibilidades para uma teoria pós-

prometeica da ação.

Como apontado na introdução, retirei a categoria de “teoria pós-prometeica da ação”

do artigo Um prometeu cauteloso?, de Bruno Latour. Nesse texto, o autor constrói uma

conexão entre a forma pós-prometeica de encarar a ação e algumas mudanças no significado

de design. Latour sugere que, no período moderno (ou prometeico), o termo design costumava

indicar apenas uma espécie de verniz estético que se adicionava àquilo que realmente

importava: “[...] era uma forma de revestir a eficiente porém entediante prioridade dos

engenheiros e das equipes de vendas”. 26 O design acontecia quando alguns elementos

superficiais (de valor subjetivo) eram acrescentados a um suposto núcleo duro, mais real (de

valor objetivo), eficaz e importante. Nas últimas décadas, porém, o termo design se expandiu

de tal modo que pode ser aplicado a “cidades, paisagens, nações, culturas, corpos, genes [...] e

26 Latour, B. Op. cit., s.p.

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38 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

[à] própria natureza”.27 Essa expansão do termo esvazia, anula, o suposto núcleo duro que

antes se opunha àquilo que era “meramente” subjetivo (que dizia respeito aos interesses

demasiado humanos):

Não apenas a natureza como o lado de fora da ação humana desapareceu (isso já se tornou

senso comum); não apenas “natural” se tornou um sinônimo de “cuidadosamente

administrado”, “habilidosamente encenado”, “artificialmente mantido”, “inteligentemente

elaborado” (isso é especialmente válido para os assim chamados “parques naturais” ou

“alimentos orgânicos”); mas também a própria ideia de que usar o conhecimento dos cientistas

e engenheiros para lidar com uma questão é necessariamente o mesmo que recorrer às

inquestionáveis leis da natureza está se tornando obsoleta.

A ação social, portanto, não pode mais se pautar em supostas “questões de fato”, em

resoluções tidas como absolutas e verdadeiras. Na teoria pós-prometeica da ação, a dualidade

entre subjetivo e objetivo se dilui. Quero observar, agora, de que modo essa diluição pode

embasar também uma nova forma de pensarmos sobre o sujeito e sobre as noções de vontade,

liberdade e criação. Delinearei, assim, uma visão pós-prometeica do sujeito.

O sujeito pós-prometeico pode ser caracterizado como um designer, se aproveitarmos

algumas das conotações que Latour observa no termo: design sugere, primeiro, uma atenção

aos detalhes, aos significados e gostos, ou seja, à superfície; segundo, uma inclinação

adaptativa e valorização do já dado; terceiro, um reconhecimento da dimensão moral como

criativa.

O sujeito encarado como designer é um articulador de aparências28 cuja criação não se

liga mais à busca por uma verdade, por um Bem já dado, por uma liberdade transcendental ou

por uma totalidade qualquer. Ele é, como Nietzsche diz dos gregos, 29 superficial por

profundidade. É o sujeito que ama as máscaras porque sabe que não há nada por trás delas:

nem Bem, nem liberdade moral, nem todo harmônico.

A filosofia de Nietzsche servirá como a principal base para pensarmos uma teoria da

ação pós-prometeica. Tal apontamento exige algumas ressalvas, uma vez que seria possível

encarar a filosofia de Nietzsche também como uma continuação do registro prometeico.

Como mostra Edmilson Paschoal, seria essa, por exemplo, a visão de Antônio Marques, para

quem Nietzsche dá seguimento à concepção moderna do sujeito “por meio da categoria de

sujeito autoafirmativo, que constitui a cultura da Aufklärung, e que se opõe, no campo da

27 Ibidem. 28 Aproveito a noção de articulação proposta por Marcos Beccari em Articulações simbólicas: uma nova filosofia

do design (Teresópolis: 2ab, 2016). Design é sinônimo, aqui, da atividade de articular aparências. 29 GC, Prólogo.

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Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 39

moral, à ideia de uma determinação do sujeito por um ser, por um em si, por um telos

universal e anteriormente dado”.30

Com efeito, se fosse o caso de utilizar apenas as categorias de teoria da ação pré-

prometeica e teoria da ação prometeica – a citação acima considera apenas essas duas

alternativas –, não há dúvida de que utilizaríamos a última para caracterizar a filosofia de

Nietzsche. E seria fácil justificar tal classificação recorrendo a alguns trechos de Assim falou

Zaratustra. Em “Do caminho do criador”, por exemplo, Zaratustra pergunta: “Podes dar a ti

mesmo teu mal e teu bem e erguer tua vontade acima de ti como uma lei? Podes ser de ti

mesmo juiz e o vingador de tua lei?”.31 Em “Dos filhos e do matrimônio”, ele faz pergunta

semelhante: “És o vitorioso, o vencedor de si próprio, o soberano dos sentidos [...]. Ou em teu

desejo fala o animal e a necessidade?”.32

Em certo sentido, portanto, Nietzsche dá seguimento à concepção do sujeito como um

legislador-artista. O filósofo rompe, porém, em um ponto central, com o referencial

prometeico: ele retira a moral da base da teoria da ação e a coloca em questão, perguntando

por que temos a necessidade de encarar certas ações ou certas vontades como moralmente

boas ou más. Para Nietzsche, nada possui em si um valor moral – nós atribuímos valor moral

às coisas. É esse o sentido de sua famosa máxima: “Não existem fenômenos morais, apenas

uma interpretação moral dos fenômenos...”.33

Com essa virada, Nietzsche dissolve a oposição prometeica entre livre-arbítrio e

cativo-arbítrio que, como ele percebe, se baseia ou na moral ou em um abuso das leis de causa

e efeito. Tanto livre-arbítrio quanto cativo-arbítrio são, aos olhos de Nietzsche, “conceitos-

monstro”, uma vez que “No ‘em si’ não existem ‘laços causais’, ‘necessidade’, ‘não-liberdade

psicológica’, ali não segue ‘o efeito à causa’, não rege nenhuma ‘lei’”.34 A vontade é algo que

se dá, um factum, e nós é que a interpretamos como livre ou determinada. Não cabe, porém,

verificar se tal interpretação é verdadeira, pois não há discurso verdadeiro no sentido de

duplicador fiel do real. Como Marino no conto Uma rosa amarela, de Borges,35 Nietzsche

percebe que o discurso não é “um espelho do mundo, mas uma coisa a mais acrescentada ao

30 Paschoal, E. Nietzsche, Kant e a filosofia como sedução da moral. Kant e-Prints. Campinas, v. 4, n. 2, p. 323-

340, jul.-dez., 2009. 31 Nietzsche, F. Assim falou Zaratustra (Z), I, Do caminho do criador. Edição consultada: trad. Paulo César de

Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 32 Z, I, Dos filhos e do matrimônio. 33 ABM, § 108. 34 ABM, § 21. 35 Borges, J. L. Uma rosa amarela. In: ____. O fazedor. trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das

Letras, 2008, p. 34.

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40 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

mundo”. O mesmo vale para os valores morais. Eles são criações que não se dirigem a

nenhum Bem já dado e nem a nenhuma totalidade (como a que muitos românticos supunham

existir entre o homem e a natureza antes da civilização). “Estimar é criar”, diz Zaratustra.36

Isso não significa, contudo, que os valores sejam pouco importantes. Ao contrário, “O próprio

estimar é, de todas as coisas estimadas, o tesouro e a joia”.37 É nossa capacidade de criar

valores que nos define como humanos, que nos torna “uma corda, atada entre o animal e o

super-homem”.38

Contudo, nem toda forma de valoração indica o caminho da superação, do super-

homem louvado por Zaratustra. Nietzsche contrapõe a essa forma ativa de valoração uma

forma reativa, proveniente do ressentimento.39 A crítica a tal forma de valoração é o foco de

sua Genealogia da moral. Nessa obra, ele lança um olhar de suspeita sobre a criação dos

valores da moral da abnegação, de base platônico-cristã, que há muito dominam o Ocidente.

Sem entrar em detalhes a respeito da genealogia nietzschiana, quero destacar aqui o

olhar que, partindo dela, podemos lançar sobre o conceito de livre-arbítrio. Na moral do

ressentimento, tal conceito desempenha papel crucial, uma vez que permite transformar a

impotência do fraco na virtude do moralmente “bom”.

[...] graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, [a prudência de

não fazer o que não se tem forças para fazer] tomou a roupagem da virtude que cala, renuncia,

espera, como se a fraqueza mesma dos fracos [...] fosse um empreendimento voluntário, [...]

um mérito.40

A liberdade da vontade é, nesse caso, uma criação que afirma a própria impotência.

Ela oferece, ainda, a possibilidade de uma vingança imaginária dos impotentes em relação aos

potentes, na medida em que a própria força é caracterizada como uma escolha (moralmente

má) – escolha passível de ser punida em uma espécie qualquer de “julgamento final” ou

“ciclo do karma”.

36 Z, I, Das mil metas e uma só meta. 37 Ibidem. 38 Z, Prólogo, 4. 39 Essa oposição entre uma forma de valoração ativa e uma reativa não é tão simples quanto pode parecer. A

moral do ressentimento, afinal, é também apresentada por Nietzsche como o último remédio frente ao niilismo,

e, com sua derrocada, o niilismo aparece novamente como um perigo iminente. A própria moral do

ressentimento, porém, forjou certa estabilidade na vontade que pode servir como uma base para uma superação

afirmativa do niilismo. Assim, a relação entre uma moral reativa e uma moral afirmativa não é sempre de

oposição direta, podendo a última aparecer também como sucedânea da primeira – aquilo que adveio de sua

superação. 40 Nietzsche, F. Genealogia da moral, I, § 13. Edição consultada: trad. Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009.

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Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 41

Tal noção metafísica de liberdade da vontade é completamente diversa da noção de

livre-arbítrio que, em oposição, provém da sensação de superioridade daquele que manda, da

sensação de não ter que obedecer. Nesse caso, “O que é chamado livre-arbítrio é,

essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem que obedecer: ‘eu sou

livre, ‘ele’ tem que obedecer’”.41

Como podemos observar, Nietzsche está sempre se questionando sobre as fontes

psicofisiológicas de conceitos, ideais etc., e não sobre uma suposta verdade dos mesmos. E,

ao não ancorar sua teoria da ação sobre uma verdade e muito menos sobre a suposta verdade

de uma dualidade moral, Nietzsche se afasta tanto do referencial prometeico quanto do pré-

prometeico. É por isso que ele pode encarar de uma só vez o materialismo cientificista, a

filosofia crítica de Kant e o romantismo como diferentes produtos da decadência. Eles seguem

o mesmo ímpeto dos ideais pré-prometeicos.

A questão, com Nietzsche, não é mais a de saber, como nos referenciais pré-

prometeico e prometeico, se temos liberdade da vontade ou não, para então justificarmos

nossa impotência como bondade ou, de modo inverso, colocarmo-nos na condição de vítima

de uma exterioridade má que torna nossa vontade cativa. Uma vez que o sujeito é agora a

fonte da valoração, a questão que se coloca é a de saber por que ele adere a certos valores e

não a outros, ou cria certos valores e não outros. O sujeito pós-prometeico é, portanto, um

criador de valores. Um criador diferente do prometeico, entretanto, que não pretende trazer ao

mundo o transcendente, mas afirmar este mundo e criar para além de si dentro dele,

articulando e afirmando o existente. O sujeito pós-prometeico é um designer, um articulador

criativo.

O sujeito pós-prometeico, portanto, articula as aparências sem justificá-las ou negá-las

por meio de um outro mundo transcendental, e é ele mesmo a fonte do valor de tais

aparências. Sua vontade é uma força criadora e a própria pergunta sobre a liberdade da

vontade e a agência do sujeito é encarada em sua dimensão hermenêutica, como sendo

passiva apenas de interpretações criativas, e não de um conhecimento tido como verdadeiro

ou objetivo.

5. Considerações finais

Neste artigo, parti de algumas categorias propostas por Bruno Latour para tecer

considerações históricas a respeito de noções como sujeito, vontade e liberdade. As categorias

41 ABM, § 19.

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42 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016

são as de teoria prometeica e pós-prometeica da ação. Latour as utiliza para pensar a ação

social, mas propus que elas seriam fecundas também para estruturar uma reflexão sobre

questões relacionadas à agência do sujeito e à liberdade da vontade. Acrescentei às duas

categorias mencionadas uma terceira: teoria da ação pré-prometeica – que faz referência ao

modo metafísico tradicional de entender o sujeito, a vontade e a liberdade. Nele, a liberdade

da vontade é remetida à adesão do sujeito a uma ordem cósmica ou divina. O referencial

prometeico, por sua vez, rompe com tal arcabouço e ou considera a vontade como em última

instância determinada pela causalidade empírica (versão prometeica do cativo-arbítrio), ou

propõe a existência de um outro tipo de liberdade transcendental – ou, ainda, procura

harmonizar as duas vertentes referindo a liberdade da vontade a uma espécie qualquer de

totalidade.

Tanto o referencial pré-prometeico quanto o prometeico, argumentei, baseiam suas

teorias da ação em uma moral. A crítica de Nietzsche à moral enxerga os dois como novas

versões do ideal ascético ruim que dominou o ocidente por muitos séculos. Ele propõe uma

nova maneira de olhar para o sujeito, a vontade e a liberdade – maneira esta que abandona a

correlação entre moral, verdade e universalidade. Nietzsche encara a moral como sintoma de

certa organização de forças, e a vontade justamente como essa força imanente à qual não faz

sentido aplicar categorias como liberdade ou necessidade. Assim, a pergunta sobre a liberdade

da vontade e da agência do sujeito é remetida não mais à verdade ou a um Bem universal, mas

às formas de criação de tais noções. O sujeito pós-prometeico aparece, assim, como um

criador. Mas não um criador prometeico, que traria para o mundo algo de uma esfera

transcendental, e sim um designer, que articula, na imanência, valores e aparências.

From the subject as a legislator / artist to the subject as a designer:

Freedom and creativity in a post-Promethean theory of action

Abstract: This paper uses some categories proposed by Bruno Latour to

weave historical considerations about notions such as subject, will and

freedom. The mentioned categories are the Promethean and post-Promethean

theories of action. I add to them also the category of pre-Promethean theory

of action. In this last one, the free subject is the one which will adhere to a

cosmic or divine order. The Promethean theoy of action breaks with the pre-

Promethean metaphysical framework and either denies the freedom of the

will, considering it to be determined by empirical causality, or proposes the

existence of a different transcendental freedom, based on which, the subject

can be thought of as a legislator or as an artist. I argue that both the pre-

Promethean theory of action and the Promethean one are based in a moral

perspective. I then consider the philosophy of Nietzsche in order to outline a

post-Promethean way of conceiving the subject. In it, the subject is seen a

designer who articulates values and appearances.

Keywords: action theory, morals, subject, will, freedom.

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Do sujeito como legislador/artista ao sujeito como designer

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 27-43, 2016 43

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44 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-56, 2016

Desgraça, sem graça e nem de graça:

três visões possíveis sobre o riso no design do humor

Bolívar Teston de Escobar

Resumo: O presente ensaio propõe três formas de posicionamento perante o

riso: a sua completa recusa, uma abertura parcial e a completa abertura. Para

isso, o humor é tratado como possível produto do design, dada sua

interpretação como sensibilidade. Os pressupostos que embasam cada

posicionamento ao riso são demonstrados e a filosofia trágica é apresentada

como justificativa para uma abertura completa deste.

Palavras-chave: humor, riso, moral, filosofia trágica, sensibilidade.

1. Introdução

Rir ou não rir de alguma coisa: a dúvida suscitada por essa escolha evoca conturbados

debates morais em torno do humor e da comédia. O documentário O Riso dos Outros1 é um

exemplo de inquietação sobre os chamados “limites do humor”, vulgo, até onde é aceitável rir

e por quê devemos nos conter e tratar determinados assuntos como sérios. Forma-se quase um

anátema em meio aos comediantes quanto a isso, já que o que é motivo de riso para uns pode

ser, simultaneamente, um convite ao choro para outros – cabe aqui uma paráfrase

contemporânea de Heráclito, que chorava, e Demócrito, que ria ao ver os homens.

Havemos de reconhecer que, anteriormente a debates ou problematizações, o riso é

uma das experiências mais frequentes a aparecer ao longo do dia do ser humano, não

importando a cultura ou localização geográfica. Rir, assim como chorar ou gritar, é uma

expressão, um ato que responde ao humor, à fruição, à vivência. Vonnegut, escritor norte-

americano, dizia:

O riso é exatamente tão honorável quanto as lágrimas. Ambos servem como resposta à

frustração e à exaustão, à futilidade do pensamento e do esforço. Eu, pessoalmente, prefiro rir,

já que há menos limpeza para fazer depois – e eu posso voltar a pensar e a pelejar mais cedo2.

Pagotto-Euzebio trata o riso literalmente como decisão, exemplificando através do

filme “A Vida de Brian”: no artigo em questão3, o autor defende a escolha do riso em vez das

tentativas desesperadas do homem de superar o hiato entre o mundo e as palavras (religião,

ideologias políticas, ciência etc). Isso é ilustrado pelo filme do grupo de humor britânico

Mestrando em Design de Sistemas da Informação na UFPR. E-mail: [email protected] 1 Documentário produzido e exibido em 2012 pela TV Câmara, sob direção de Pedro Arantes. 2 Vonnegut, K. Palm Sunday: an autobiographical collage. Nova York: Dial Press, 2009, p. 262 (tradução livre). 3 Pagotto-Euzebio, M. S. “A vida de Brian, de Monty Python”. In: Almeida, R.; Ferreira-Santos, M. (orgs.)

Cinema e contemporaneidade. São Paulo: Képos, 2012, p. 138.

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Desgraça, sem graça e nem de graça

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-54, 2016 45

Monty Python no qual Brian, o personagem-sátira do messias, se convence, em plena tortura

da crucificação, de que vale mais a pena cantar e “olhar o lado bom da vida” do que lamentar.

Supondo que o ato de rir seja consequência de uma escolha, é possível afirmar que

existem fatores e considerações que a guiam, tenham eles sua origem no contexto social,

econômico ou psicológico de cada indivíduo que, em determinadas situações, escolhem rir. O

riso insiste em ser uma espécie de chamariz ao conflito quando sua ocorrência é posta em

paralelo ao “sério” ou ao sagrado, como se rir fosse a constatação da presença do objeto do

escárnio e do profano – ou seja, como se houvesse uma dualidade intrínseca à graça.

Essa constatação, na sua mais direta consequência, abre a possibilidade de indagações:

na presença da desgraça, como é possível rir? Ou ainda: considerando a predominância do

sério, como é possível o fazer rir, ou seja, um design do riso?

O caminho a ser percorrido nas investigações sobre o dualismo do rir e do fazer rir

passa, portanto, pelo reconhecimento do humor intencional, ou seja, o trabalho humorístico de

articulação de significado cômico: o humor como um produto do design e o riso, portanto,

como um produto do humor. Essa possibilidade é vista por Beccari4 ao tratar o design como

sensibilidade, ou seja, como vetor de afetos, sendo o humor uma prática subversiva,

transgressiva ou ritualística – um reconhecimento da existência.

Com a finalidade de ilustrar as práticas desse humor intencional e suas consequências

na escolha do riso, recorre-se, no presente texto, a dois autores cujas obras são ricos

compêndios histórico-filosóficos da comédia em suas manifestações ao longo da história:

John Morreall5 e Georges Minois6. Reconhece-se a existência de outros estudiosos do tema.

Entretanto, considerando o escopo e os resultados esperados desta breve dissertação,

considera-se o trabalho de Morreall e Minois como suficiente para defender a ideia das três

escolhas do riso.

2. Nem de graça: a ausência do riso

Após insistir na publicação de charges consideradas ofensivas pelo público islâmico, o

tabloide francês Charlie Hebdo sofreu mais um ataque terrorista - desta vez causando

repercussão mundial – no qual foram vítimas 12 pessoas: jornalistas, chargistas, policiais e

outros funcionários do jornal. Os atiradores invadiram o escritório, em Paris, proferindo

4 Beccari, M. Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design. Rio de Janeiro: 2AB, 2016, p. 55. 5 Doutor em filosofia e fundador da International Society for Humor Studies (ISHS). 6 Doutor em história.

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Bolívar Teston de Escobar

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palavras de vingança pelo profeta Maomé7 enquanto disparavam suas metralhadoras. O

atentado ocorreu por causa do conteúdo de alguns desenhos humorísticos veiculados pelo

Charlie, que retratavam o profeta em situações consideradas blasfêmias pelos fiéis.

Resguardando os comentários sobre o evento para mais adiante, notemos, no entanto,

a ocorrência da repressão ao riso: o sufocamento do humor é um eco de um ideal platônico de

seriedade. Morreall vê a rejeição do humor como a origem para o paradigma dualista que

incorpora o discurso idealista propositor de supostas áreas de “não-riso”, de completa

ausência do cômico. Segundo o autor, foi n’A República que Platão originalmente evoca o

abandono do humor pelos Guardiões do Estado, identificando o riso como uma hostilidade

ou, nas palavras do próprio, como uma “demonstração de superioridade”8.

A ideia do riso como consequência de superioridade leva Platão a condená-lo como

uma das causas da discórdia entre os homens. Morreall demonstra as consequências dessa

concepção platônica no pensamento religioso com o exemplo de uma citação do teólogo

Éfrem da Síria (séc. IV) que identifica o riso como “o início da destruição da alma”, e

conclama aos monges para iniciarem uma série de orações e penitências no primeiro sinal do

desejo de rir9.

Diante de tal paradigma, o humor ficar relegado à sombra de assuntos ditos “sérios” e,

portanto, dignos somente da atenção dos homens que buscavam o conhecimento e a elevação

espiritual. Sequelas desse pensamento se apresentam com maior evidência em obras de

grandes cânones do pensamento ocidental, como bem observa Minois ao comentar sobre a

reação desconfiada de Hegel perante o riso10. Para o filósofo alemão, o ironista (aquele que ri

e faz graça) arruína a possibilidade da construção intelectual, já que o ato da ironia consiste da

destruição, no rebaixamento e na descrença. Assim, portanto, ao não se firmar em nada, o riso

não teria motivos para existir. Se Platão ligara o riso com a violência, Hegel acabara de

sepultá-lo das faculdades nobres da humanidade ligando-o à ignorância. Não é à toa que

Brecht relembra Hegel como um “grande humorista” e o senso de humor como pré-requisito

para o entendimento de sua obra:

Ele tinha tanto senso de humor que não conseguia pensar, por exemplo, na ordem sem a

desordem. Era claro para ele que, nas vicinidades diretas da maior ordem reside também a

maior das desordens – a tal ponto que ele até mesmo ousou dizer: reside no exato mesmo

lugar. (...) Como todo grande humorista, ele falava tudo isso com uma expressão

7“Ataque à sede do jornal Charlie Hebdo em Paris deixa mortos”, disponível em

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/tiroteio-deixa-vitimas-em-paris.html (Acesso em 30/08/2016) 8 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. West Sussex: John Wiley & Sons, 2011, p. 4. 9 Ibidem, p. 5. 10 Minois, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003, p. 512.

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Desgraça, sem graça e nem de graça

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-54, 2016 47

completamente séria.11

Morreall define, portanto, a teoria da superioridade como o cerne do posicionamento

platônico perante o humor, enquadrando sua existência como indesejável em uma sociedade

utópica na qual os homens coexistem em igualdade – a superioridade é, naturalmente, inimiga

deste ideal utópico social. Retornando ao atentado de Charlie Hebdo, percebe-se um reflexo

dessa ideologia nas tentativas terroristas de suplantar o que se considera foco de riso e

escárnio, como se a sátira das figuras religiosas fossem uma demonstração de superioridade

do mundo ocidental secularista perante os ídolos de um povo monoteísta.

Entretanto, alternativas à visão negativa do humor já eram contemporâneas à Platão.

De acordo com Morreall, elas apenas não receberam a devida atenção histórica12.

3. Sem graça: o direcionamento do riso

Cansada da violência e do terror que a Guerra do Peloponeso vinha espalhando pela

Grécia, Lisístrata decide reunir mulheres atenienses e espartanas em uma greve de sexo

unificada, com o objetivo de fazer os homens que estavam lutando desistirem das lanças e dos

escudos: esse é o enredo da peça Lisístrata13, a grande obra satírica do dramaturgo Aristófanes

(447 a.C. - 385 a.C.). O gênero humorístico demonstrava, através dela, algumas características

inovadoras perante a tragédia grega. A protagonista, por exemplo, era uma personagem

feminina. Os homens, os grandes generais e soldados, em vez de terem seu lugar central e

heróico na narrativa, eram deslocados para a posição de escracho, ou seja, de alívio cômico

dentro da história.

A inversão de papéis sociais denunciados pela comédia de Aristófanes é uma pista

para um entendimento inicial da comédia fora do paradigma platônico. Lisístrata traz um

subtexto no qual a futilidade da guerra e um efeito colateral cômico das figuras patriarcais dos

generais e soldados são expostos. Ao aferir à uma mulher o papel de protagonista e,

consequentemente, zombar dos valores militaristas, Aristófanes convidava a platéia a, por

meio do riso, questionar as bases morais da própria sociedade. O riso desempenhava, ao

contrário do que acreditavam Platão ou Hegel, um papel de posicionamento filosófico perante

os problemas do homem.

11 Brecht, B. “Flüchtlingsgespräche” (1961). In: Arnold, H. L. (org.): Kindlers Literatur Lexikon. 3., völlig neu

bearbeitete Auflage. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2009, p. 118–119 (trecho traduzido pelo CEII – Círculo de

Estudos da Ideia e da Ideologia, disponível em www.lavrapalavra.com/2016/02/11/sobre-a-dialetica-hegeliana/ –

acesso em 09/06/2016). 12 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. p. X. 13 Aristófanes. “Lysistrata” In: Garvin, T. The Project Gutenberg EBook of Lysistrata, by Aristophanes. Domínio

Público, 2008. Disponível em http://www.gutenberg.org/ebooks/7700 – acesso em 09/06/2016.

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Bolívar Teston de Escobar

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A comédia era valorizada na visão de Aristóteles, que citava as peças de Aristófanes

como um exemplo de eutrapelia: a virtude do fazer rir. Para ele, já que a vida “inclui tanto

relaxamento quanto atividade, parece existir, portanto, a possibilidade de bom gosto nas

relações sociais, bem como a propriedade no que dizemos e em como o dizemos”14. O que

Aristóteles pregava era a possibilidade do riso na quantidade certa – um suposto equilíbrio

entre o indivíduo sério, monótono, e o bufão, excessivamente irônico.

Segundo Morreall, o ato de rir como necessidade social só apareceria novamente em

Tomás de Aquino (1225 – 1274), que resgataria diretamente de Aristóteles a potencialidade do

riso como parte indispensável da vida. Para o teólogo, desde que não haja obscenidade ou

blasfêmia, o riso traz benefícios e merece ser incorporado à vida do homem como prática

saudável15. A ideia do riso como contraparte vital a uma realidade séria é corrente no

cristianismo. A chacota e a graça aparecem como características diabólicas, mas são

cultivadas pela própria igreja através de instituições como o carnaval – uma festa

originalmente pagã e sincretizada pelo catolicismo, que chega aos nossos dias transparecendo

um objetivo de servir de alívio ou extravasamento de tensões sociais16.

O riso como válvula para extravasar a pressão social é uma das teorias17 alternativas à

da superioridade que ajudam a observar o entendimento do humor como um fenômeno que

perpassa o dualismo platônico. Morreall enfatiza que tais teorias começaram a surgir como

complementos adequados para diferentes contextos do riso18. O autor comenta o riso como

visto através da incongruência (Kant e o humor decorrido da constatação da incongruência, ou

seja, da ausência de harmonia, da inconsistência), do alívio (o riso resultante de pressões,

como Freud propõe através da repressão da sexualidade e de piadas como relaxantes, válvulas

mentais), e de teorias mais recentes, como a do play mode, esclarecida por Morreall como

tendo suas raízes na biologia, ao constatar que animais “brincam” e “se divertem” quando

entram em um estado de jogo, ou seja, se desarmam de suas defesas para realizar exercícios

sociais e jogos. O riso, portanto, seria um subproduto da nossa tendência para o engajamento

social:

Quando experienciamos uma mudança cognitiva, há uma tendência natural para o riso. É uma

habilidade que não é aprendida, tal e qual a disposição ao choro; ambas emergem no

14 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. p. 23. 15 Ibidem. 16 Ibidem, p. 59. 17 Embora não mencionado por Morreall, Bakhtin desenvolve um conceito parecido quando teoriza sobre as

manifestações medievais carnavalescas cujas características incluiam a inversão das normas sociais. O riso,

portanto, era uma válvula por onde aliviavam-se as tensões durante os festivais populares. 18 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. p. 7.

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Desgraça, sem graça e nem de graça

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-54, 2016 49

desenvolvimento natural do cérebro. Em todas as culturas, os bebês começam a sorrir entre 2 e

4 meses de idade. (...) Sendo o humor uma experiência fundamentalmente social, quando

alguém falha em compartilhar da diversão, surgem preocupações. Se em uma festa um amigo

não ri nenhuma vez após três horas, nós nos inclinamos a penas que alguém o ofendeu ou que

ele está deprimido.19

Lançamos mão de teorias que justificam o riso nas mais variadas ocasiões. Entretanto,

quando tratado como escolha, o riso que surge como resultado da fruição perante o objeto

humorístico pode se encontrar, simultaneamente, acompanhado de lamentos ou injúrias por

parte de pessoas que “preferem não rir” do que pode ser “sério” ou “delicado”. Se o ideal

platônico condenava o riso, condenações com motivações similares podem surgir quando o

humor se destina a zombar ou fazer pouco caso do que é considerado sagrado ou

simplesmente sério, motivo de preocupação, para as pessoas.

O riso é, portanto, sempre direcionado: existem coisas que fazem rir, outras que não

fazem. Esse direcionamento lembra a tríade invocada por Almeida20: as três escolhas

possíveis do homem em relação ao mundo (negá-lo, afirmá-lo parcialmente ou afirmá-lo

totalmente) refletem-se quando o viés interpretativo do mundo é o humor. A segunda escolha

(abrir-se parcialmente) diz respeito a uma suposta restrição, uma salvaguarda de interesses

cuja integridade depende do controle que o ser humano tem sobre potenciais risadas que

venha a proferir sobre eles. Mesmo em olhares pessimistas sobre o mundo, como o de

Schopenhauer, é possível identificar essa restrição moralista sobre o riso. Para Minois, o

filósofo alemão enxergava o mundo através de um olhar pessimista, considerando, justamente

por isso, o riso como um objeto de profundo interesse. Ele tinha a “consciência de viver em

um mundo que já é naturalmente ‘humorístico’, isto é, onde todos riem de qualquer coisa e

cuja hilaridade é a expressão de idiotice”21. Morreall comenta que Schopenhauer enxergava

no humor um potencial “libertador” das amarras morais da sociedade22. Ou seja, trata-se de rir

de uma sociedade má para expressar o bem de ser contrário a ela.

Schopenhauer, entretanto, deixa pressuposto que o riso deve partir de um

posicionamento perante o mundo. É em Nietzsche, que o riso assume uma forma

genuinamente amoral, como o ato de dizer “sim” para a vida, mesmo perante todo o

sofrimento. Em Assim Falou Zaratustra, o autodenominado “profeta do riso” pergunta se seus

seguidores são capazes de rir de toda a tragédia do mundo, já que é pelo riso, e não pela raiva,

19 Ibidem. p. 58. 20 Almeida, R. Aprendizagem de desaprender: Machado de Assis e a pedagogia da escolha. Educação e

Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 4, out./dez. 2013, p. 1001-1016. 21 Minois, G. História do riso e do escárnio. p. 517. 22 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. p. 16.

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que se dará a destruição do Espírito do Pesadelo23. Esse homem elevado, segundo o filósofo,

caracteriza-se pela transcendência das questões morais, restando apenas o riso como a última

afirmação da vida. A esse posicionamento trágico perante o humor, Rosset chama de riso

exterminador24.

4. Desgraça: o riso engolidor

O jornal Charlie Hebdo teve sua tiragem recorde uma semana após o atentado de

janeiro de 2015: um tabloide que não ultrapassava 10 mil cópias na sua veiculação semanal

recebeu uma demanda de mais de 3 milhões de exemplares em sua edição de número 1178.

As charges ofensivas que antes eram consumidas por um restrito público francês agora

percorriam os sete cantos do mundo. O impulso extremista de censurar o jornal através da

violência causou o efeito contrário da consequência moral à qual se propunha, resultando em

uma punchline maior do que o que qualquer piada jamais causaria. É apenas através de uma

lógica que compreenda uma total abertura para o riso que podemos ver o fenômeno do

atentado do Charlie Hebdo em seu verdadeiro desdobramento cômico: o humor como objeto

atacado e o humor como consequência do ataque.

A abertura total do riso vai além do proposto por Kant: segundo Morreall, o filósofo

defendia uma fruição estética do humor desprendida, desinteressada do objeto do riso como

fazendo parte de uma esfera de interpretação fora do mundo racional (a teoria da

incongruência anteriormente mencionada)25. Entretanto, o pressuposto aqui é a consideração

de uma pretensa ordem por trás do humorístico, que “se esconde” enquanto rimos, mas que

retorna logo em seguida.

Para desviarmos nossa visão do condicionamento pressuposto pela existência dessa

ordem, Almeida propõe que cheguemos às bases do trágico, partindo do mundo ou do

homem. O homem, segundo o autor, sofre de uma cisão (vivida como sensação) a partir da

noção da consciência de si, que se coloca como um mistério do qual se origina a cultura, a

linguagem, a magia etc. Essa cisão encerra a constatação da morte e a consequente rejeição

desta, comportamento que se reflete em uma matriz para as demais cisões26 (corpo/alma,

natureza/artifício ou, no caso de Platão, o sério/engraçado). Almeida sugere que o pensamento

trágico

23 Nietzsche, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras (2011). 24 Rosset, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 188. 25 Morreall, J. Comic relief: A comprehensive philosophy of humor. p. 32. 26 Almeida, R. “Considerações sobre as bases de uma filosofia trágica”. In: Diálogos Interdisciplinares vol. 2, n.

3, 2013, p. 52-63.

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Desgraça, sem graça e nem de graça

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expressa justamente esse descompasso entre uma consciência que pensa e sente um mundo

que jamais esteve no mundo, a não ser na própria consciência, ainda que essa consciência seja

fruto do mundo, produzida por ele e, como tal, parte dele. Essa impossibilidade de conciliação

pode ser tanto fruto de ilusão, desespero quanto de alegria27.

É com base em uma filosofia trágica que Rosset propõe duas modalidades de riso: o

riso longo, irônico, e o riso curto, exterminador. Para exemplificar, o filósofo francês busca no

Titanic a plena ideia de idiotia absoluta como alternativa a uma suposta ordem, representada

pela impotência do maior navio na época, construído pelo maior estaleiro, ao afundar e

desaparecer no oceano28. O que resta, após o incidente, é apenas o riso, dada a sua

configuração puramente idiota, singular, incapaz de correção moral.

Rosset comenta que o riso irônico opera, em contrapartida, pela estabilização do

sentido:

Se entretanto um tal cômico possui existência e eficácia no âmbito de uma certa disposição de

espírito, seremos levados a distinguir entre duas grandes maneiras de rir: uma que fornece, em

seu rir, considerações; a outra que as dispensa – donde o caráter honesto da primeira e

escandaloso da segunda. 29

O riso direcionado, visto anteriormente, é interpretado como um mero desvio para

uma nova construção lógica: se visa destruir um sentido, está ao mesmo tempo construindo

outro. É, portanto, moral em sua essência, mesmo quando anti-ideológico ou “politicamente

incorreto”, já que mesmo atos incorretos carregam a inferência, mesmo que camuflada, da

ideia da ordem, do correto, não trágica.

O riso curto (exterminador) seria a contrapartida: o riso que não constata nenhum

sentido, mas ri dessa própria tentativa de constatação. Tomando a busca por sentido como

uma “fórmula pronta” para cada situação, Rosset propõe o riso como a manifestação da

impossibilidade dessa busca em um mundo que é, antes de tudo, desprovido de sentido30.

Retomemos o caso Charlie Hebdo: Žižek, ao referir-se a um caso anterior de 2005 no

qual algumas caricaturas de Maomé, desta vez publicadas em um jornal dinamarquês,

incitaram a ira da comunidade islâmica, propõe um argumento próximo ao trágico para a

interpretação do evento:

E se as verdadeiras caricaturas do Islã fossem as próprias manifestações violentas anti-

dinamarquesas, que ofereceriam assim uma imagem ridícula do Islã em correspondência exata

com os clichês ocidentais? A suprema ironia é, sem dúvida, que a ira das turbas muçulmanas

se tenha virado contra a Europa que os anti-islamitas empedernidos – como a conhecida

jornalista Oriana Fallaci, que morreu em setembro de 2006 – viam como demasiadamente

27 Ibidem, p. 62. 28 Rosset, C. Lógica do pior. p. 190. 29 Ibidem, p. 191. 30 Ibidem. p. 192.

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tolerante frente ao Islã, ou pronta a capitular perante as suas exigências31.

Em última análise, o riso sugerido por Žižek seria melhor enquadrado como um riso

direcionado, dada a visão psicológica do filósofo, perante a qual os extremistas configuram-se

como “recalcados” no sentido freudiano: extravasam na violência a inveja perante o gozo do

ocidente secularista32. Diferentemente do que propõe Rosset, que vê no riso a expressão pura

do caos, e não um resgate de uma moral cuja aceitação traria sentido para o ocorrido: não há

sentido; portanto, há riso.

5. Conclusão

Esta foi uma piada que ouvi pela primeira vez em ambiente familiar: meu pai,

apontando para três mulheres na rua, sussurra para mim, baixinho: “olha só, lá vem as três

graças: a desgraça, a sem-graça e a ‘nem de graça’”.

A escolha de nomear cada uma das três visões sobre o humor deliberadamente com

cada uma das três “graças” irônicas da piada é um convite para uma reflexão

descompromissada sobre as possibilidades da manifestação do riso – aqui, brevemente

explicadas em suas circunstâncias filosóficas. Quando diálogos e debates surgem sobre o quão

errado seria rir em determinadas ocasiões, devemos lembrar que esse tipo de evocação – os

chamados contextos sérios – é, na verdade, um retorno ao idealismo platônico, traduzido pelo

desejo de delimitar um campo da seriedade, transcendental e nobre, versus uma área

indesejável, por onde apenas os espíritos zombeteiros e malintencionados se atrevem a

percorrer, chamada comédia, ou humor.

Não obstante, direcionar o riso, ou seja, instrumentalizá-lo a favor de um sentido

lógico ou de uma moral, significa igualmente relegar sua manifestação à limites permitidos

por éticas preestabelecidas: deixa de existir o riso mau, dando lugar ao riso planejado, o riso

permitido ou, como escreve Rosset, o riso longo, que não destrói, mas compensa “pela

aprovação a contrário dos princípios que contribuíram para a colocação em cena de uma

agressão cômica”33.

É através da lógica trágica que podemos compreender um riso que não se dá quando

somente é possível um acesso a áreas permitidas, que não demanda reconstruções após o ato.

Assim, o riso desvela-se em sua verdadeira face, a que se basta por si mesma, que não

ressignifica e não julga: apenas é. Como Minois sugere, o riso está “na encruzilhada do físico

31 Žižek, S. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p. 80 (versão para ebook). 32 Ibidem, p. 67. 33 Rosset, C. Lógica do pior. p. 191.

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Desgraça, sem graça e nem de graça

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-54, 2016 53

e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na

indeterminação”34. É por esse caráter aleatório, indeterminado, que Rosset encara o riso

(exterminador) como “em última análise, a vitória do caos sobre a aparência da ordem”35.

Existem, portanto, infinitas respostas para a pergunta levantada no início desse texto.

Tanto o rir quanto o fazer rir – ambos expressões da sensibilidade, o design do humor e da

expressão cômica – sujeitam-se a aberturas. Decidir rir pode ser decidir também construir ou

destruir, a expressão do mais afirmador ou do menos afirmador dos atos, a maior das graças

ou a pior das desgraças. E enquanto houver o homem, haverá a graça.

The design of the humor: three possible interpretations on laughter

Abstract: This essay proposes three ways to look into the laughter: its

complete refusal, a partial opening and the complete acceptability.

Humor is, therefore, seen as a possible product of design, given its

interpretation as sensibility. The implications for each one of the three

ways are demonstrated and the tragic philosophy is presented as

justification for the complete acceptance of the laughter.

Keywords: humor, laughter, moral, tragic philosophy, sensibility.

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http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/tiroteio-deixa-vitimas-em-paris.html (Acesso em

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34 Minois, G. História do riso e do escárnio. p. 16. 35 Rosset, C. Lógica do pior. p. 197.

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Bolívar Teston de Escobar

54 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 44-54, 2016

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O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”

Suzie Ferreira do Nascimento

Resumo: Quando de suas primeiras reflexões sobre os gregos, Nietzsche

concluiu que o aspecto formal das esculturas pré-helênicas revelava desejo

de eternidade ou “otimismo”. Nesse artigo irei aproximar essas reflexões ao

estilo que ficou conhecido entre nós como “Modernista”, haja vista algumas

similaridades formais. Pretendo argumentar que esse estilo teve caráter de

“necessidade”, todavia uma necessidade que não encontrou paralelo nos

ideais dos seus criadores e críticos. Entendê-lo como “necessário” levará à

constatação de sua “inocência”. Com esses argumentos pretendo questionar

o modo como a “Pós-modernidade”, ao referir-se ao “Modernismo” como

algo a ser “corrigido”, desconsidera seu caráter “necessário”, negando-lhe a

“inocência”.

Palavras-chave: Modernismo, Design, Filosofia, Arte Grega, Crítica.

O que é uma visão Dionisíaca do mundo

Amor Fati: Quero aprender a ver como belo tudo

o que é necessário nas coisas - assim me tornarei

um daqueles que fazem belas as coisas.

F. Nietzsche

A expressão “visão dionisíaca” serviu de título a um pequeno texto que Nietzsche

escreveu, ainda muito jovem, e deu de presente mais tarde à Cosima Wagner. Nesse texto,

escrito de forma dissertativa1, Nietzsche se propõe a contribuir com uma discussão muito

frequente à época, a saber, as origens da arte grega. Vale dizer, para o séc. XIX tratava-se de

uma tese bastante ousada. Um dos nomes mais respeitados do classicismo alemão e que veio a

ser personagem chave da história da arte do ocidente é o arqueólogo Johann Winckelmann, a

partir de quem se estabeleceu dois princípios definidores da arte grega: a nobre simplicidade e

calma grandeza. Esses dois princípios, por sua vez, determinavam o que se considerava “bom

gosto”. Sobre isso dizia Winckelmann: “O bom gosto, que se espalha cada vez mais pelo

mundo, começou a se formar pela primeira vez sob o céu grego”. Não pretendo aqui

argumentar sobre o gosto compartilhado pelos classicistas ou sobre os motivos pelos quais se

deveria imitar os gregos; o que eu gostaria de ressaltar, e esse é o ponto no qual a tese

defendida por Nietzsche é audaciosa, são os conflitos morais nos quais se enredaram os

classicistas ao tentarem conciliar moralidade burguesa com cultura grega. Havia, é verdade,

Doutoranda em Design na ESDI/UERJ. E-mail: [email protected] 1 NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo. Tradução de Marcos SP Fernandes e Maria Cristina dos

Santos de Souza; revisão de tradução Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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Suzie Ferreira do Nascimento

56 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 55-70, 2016

um grande debate sobre de que modo arte e moral se relacionam e é justo dizer que Schiller

antecedeu Nietzsche em alguns aspectos quando, a partir de Kant, pensou a relação da arte

com a moralidade, com a razão e com a cultura2. O burguês contemporâneo à Nietzsche

aspirava à “nobre simplicidade e calma grandeza” de Winckelmann, ele queria ser grego no

sentido “clássico” e Nietzsche com sua visão Dionisíaca de mundo enaltece o grego

“helênico” e trágico, representado em heróis que sofrem as agruras do destino, capazes de

muita nobreza, é verdade, mas também de muito ódio, mesquinharias e até vingança. Heróis

que ao sofrer gritam como touros torturados por um machado errante e não apenas suspiram.

A pergunta que se impõe então é como poderia uma bela aparência trazer em seu bojo tão

desprezíveis sentimentos? Como poderiam os gregos antigos não terem sido iluministas por

excelência? Vejamos como Nietzsche constrói sua teoria.

O texto presenteado a Cosima apresenta a hipótese de que o Helenismo teria resultado

da união fortuita entre dois impulsos da natureza representados pelas divindades Apolo e

Dionísio, sendo que o segundo seria um ensandecido deus estrangeiro com o qual o equilíbrio

do primeiro teria tido que negociar terreno. Dionísio, o deus da verdade terrível, que “penetra

nos mais íntimos pensamentos da natureza, conhece a terrível pulsão para a existência e ao

mesmo tempo a contínua morte de tudo o que chegou à existência”, que engendra deuses

“bons e maus” que não têm compaixão ou prazer no belo3, teria representado uma grande

ameaça à cultura apolínea grega4, afeita à reflexão, de cuja a qual as esculturas arcaicas, de

membros hirtos e olhar vazio, são testemunha. Apolo teria então negociado, seduzido esse

terrível deus estrangeiro de modo a contê-lo sem que ele percebesse. De acordo com a tese de

Nietzsche, o responsável por essa negociação foi Homero, na condição de poeta. Ele teria

ouvido a terrível música Dionisíaca, vislumbrado o total despropósito da vida humana e, a

partir de sua vivência, engendrado um mundo intermediário onde heróis, que são homens

quase deuses, são atingidos por eventos sobre os quais não têm controle, mitificando o maior

perigo que pode acometer o homem: desejar a morte por não ver sentido na vida. As aventuras

do herói narradas pelo poeta – notadamente em Sófocles e seu Édipo Rei - e depois

2 SÜSSEKIND, P. “A Grécia de Winckelmann”, KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, Jun./2008, p. 67-77. 3 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo Roberto de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999, p.19. 4 Note-se que essa menção a uma cultura apolínea e otimista se justifica pelo fato de a mitologia grega apresentar

Dionísio como estrangeiro e, para Nietzsche, o mito representar as verdades de um povo. Assim sendo, não vem

ao caso se houve historicamente ou não tal situação, o que conta é que ela existe nos mitos. Nos textos tardios

Nietzsche passa a criticar o otimismo e cultura moderna que teriam eliminado a sabedoria trágica. Se nos

primeiros escritos Dionísio chega quando a cultura apolínea grega está estabelecida, nos demais, a cultura

apolínea moderna é que afugenta Dionísio.

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O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 55-70, 2016 57

representadas pelo ator no drama trágico, apresentam um herói “inocente”, no sentido de que

não lhe é permitido, por meio de ação ou saber, modificar seu destino. O drama, escreve

Nietzsche em uma nota de pé de página de O Caso Wagner, diz respeito ao pathos, não à

ação. Ao ator da tragédia cabe apresentar genuinamente o sentimento de sofrer a ação dos

deuses, é sobre isso que versa a tragédia, sobre o pathos. É a partir dessa noção de

“inocência”, de impossibilidade de determinação do futuro por meio da ação que se estabelece

a “beleza”. E como isso se daria?

Para compreendermos a relação entre inocência e beleza é preciso considerar que

Nietzsche reúne duas categorias em uma mesma argumentação: primeiro o sentimento

humano, segundo, a representação plástica que dá conta desse sentimento. O sentimento do

belo na contemplação se define pelo momento em que sentimos prazer diante de algo porque

constatamos que nesse algo nada falta e nada sobra, o que equivale a dizer que tudo ali é

necessário, ou ainda, que nada ali é por acaso. Por outro lado, conforme Nietzsche, toda a arte

é sintomática de um determinado modo de valorar a vida, seja pelo artista seja pelo

espectador. Assim sendo, uma arte bela só pode existir a partir de um sentimento de

aprovação e amor incondicional à vida, a partir do qual tudo nela é necessário: o bom, o ruim,

o cruel, o sem sentido, o feio e o belo. Voltando a Sófocles, o fato de haver na mitologia

Grega narrativas nas quais o herói sofre de seu destino a despeito de suas ações, seria

sintomático dessa aprovação incondicional da vida humana. Somente um povo com uma

visão de mundo aprovadora teria criado heróis que vivem essa mesma vida, nas mesmas

condições. Vem daí a obrigatoriedade da inocência para o sentimento do belo: o

reconhecimento dos limites do homem e da impossibilidade de controle do destino nos liberta

para a aprovação. Os fatos ruins e injustos não são mais consequências de erro e passam a ser

reconhecidos como “necessários”. A vida só pode ser perfeita, digna de admiração e desejo,

se tudo nela for aprovado como necessário e não como algo defeituoso ao qual caberia

correção. O contrário da inocência, nesse caso, é a visão ressentida: a constatação de que a

vida contém erros, e tais erros ou são injustiças ou derivados de nosso desconhecimento.

Seguindo o pensamento de Nietzsche, toda a produção artística deriva dos valores de sua

época, de modo que sendo a arte grega afirmativa, sem lamentações, que nada exclui de si

mesma, esses teriam que ser também os valores do povo a partir do qual ela veio a ser. Esse é

o principal aspecto de uma Visão Dionisíaca do Mundo: Um viver “inclusivo” dos fatos da

vida, dos impulsos do corpo, do belo e do feio, do justo e injusto, do alegre e do triste. Vale

dizer, uma inclusão com disputa e tensões, na qual os vetores têm de permanecer vivos e

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Suzie Ferreira do Nascimento

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atuantes, de outro modo não seria possível a beleza, pois não seria válido o “tudo é

necessário”. Vejamos como Nietzsche mesmo mais tarde resumiu esse pensamento em um

aforismo de A Gaia Ciência:

Quero aprender a ver como belo tudo o que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um

daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este doravante o meu

amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar

os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E tudo somado e em suma:

quero ser, algum dia, apenas alguém que diz sim! (GC 276)5.

Creio que nunca é demais lembrar que “dizer sim” nesse sentido é algo bem distinto

de resignar-se, do mesmo modo como “incluir” não quer dizer convívio pacífico. O prazer

que marca o sentimento do belo não coaduna com resignação ou ausência de tensão. Dizer

sim é aprovar, é ver tudo como necessário, é amar o que se é e reconhecer que todo o passado

é parte do que se é. O belo não olha para trás em busca de culpados, não acusa “nem mesmo

os acusadores”, ele diz sim a si mesmo. O grego de Nietzsche, para construir beleza, diz sim

ao feio, ao sem sentido, ao triste, a tudo que é humano, porém, representado de forma a

proporcionar o sentimento do belo. É disso que dão testemunha os heróis cantados em poesia

e representados nas esculturas, cujo sentimento do trágico os gregos vivenciavam nas

tragédias. Como se vê, não segue da visão dionisíaca uma apologia ao feio ou o sem sentido,

trata-se sim de tudo incluir como necessário e assim fazendo transformar tudo em beleza.

Ainda um último parágrafo sobre o Dionisíaco antes de falarmos sobre design. Para o

que eu vou defender a seguir creio ser válido compreender como Nietzsche relaciona o

encontro estre esses dois impulsos e uma determinada forma plástica. Apolo é o deus da

beleza e do conhecimento; a ele concernem os contornos, o que delimita, o que permite

conhecer algo, pois o homem só conhece aquilo para o qual consegue estabelecer contornos e,

por outro lado, são os contornos que nos permitem apreensão. De Apolo surgem linhas sem

dubiedade, finitas. Dionísio seria o impulso que tende a romper com tais limites, revelar a

falsidade do contorno e do conhecimento. Conforme a tese de Nietzsche, o grande diferencial

grego teria sido o modo como essa cultura negociou com o deus estrangeiro, sem suprimi-lo,

mas controlando-o, sem afrontá-lo, mas seduzindo-o. Desse agir feminino teria vindo a ser o

contorno sinuoso do helenismo: a linha reta tona-se curva para dar contorno àquilo que se

recusa a dar-se a conhecer. Essa interpretação de Nietzsche pode nos ajudar a compreender

5 GC corresponde a abreviação aceitável do título A Gaia Ciência de Nietzsche. O número a seguir, diz respeito

ao aforismo. Outra referência possível seria: NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de

Paulo Roberto de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.187.

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O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 55-70, 2016 59

melhor o caráter retilíneo do Estilo formal que se impôs no Ocidente em meados da primeira

metade do século XX.

Estilo: onde ética e estética se encontram

Por fim, quando a obra está consumada, torna-se

evidente como foi a coação de um só gosto que

predominou e deu forma, nas coisas pequenas

como nas grandes: se o gosto era bom ou ruim não

é algo tão importante como se pensa – basta que

tenha sido um só gosto! [...]Pois a visão do feio

nos torna maus e sombrios.

F. Nietzsche

Para o que eu estou aqui argumentando, o termo estilo é imprescindível. Entendo

como estilo a estética que se impõe como representante da ética de uma determinada época da

história humana. Como ética, entendo o modo como são escolhidas as virtudes, no sentido

que esse termo tem em Nietzsche, Ortega Y Gasset e outros: as construídas e consolidadas a

partir das limitações de um povo. Em determinadas épocas, por exemplo, a maestria em matar

o inimigo é uma virtude, em outras, essa mesma maestria pode ser considerada um defeito de

caráter. Esse fato é sintomático de quanto essa época ou povo é capaz de resolver suas

questões pelo simples exercício da força. Nesse sentido, um estilo nunca é fruto da intenção

direta dos seus atores, mas representa os valores partilhados por todos eles numa perspectiva

distanciada, considerando que os estilos que historicamente herdamos, foram assim chamados

após sua conclusão. Dito de outro modo, à medida que cada estilo condensa em si todos os

valores de uma época, é justo afirmar que ele se impôs como estilo justamente porque os

atores dessa época encontraram nele significado para as suas angústias e desejos, a despeito

da intenção dos seus criadores. Para exemplificar meu argumento introduzo aqui um pequeno

texto de Gropius, ilustrativo do modo como estilo e intenção criativa podem ser divergentes:

Isto levou a um falso conceito de que a Bauhaus constituía uma apoteose do racionalismo. [...]

ainda se interpreta o movimento da Bauhaus, como uma tentativa de se criar um estilo

histórico, exemplos desse imaginário “estilo Bauhaus”. Isto é o oposto daquilo que

pretendíamos. A meta da Bauhaus não consistia em propagar um “estilo” qualquer, mas sim

exercer uma influência viva no “design”. Um estilo Bauhaus significa cair num academicismo

estéril e estagnado, contra o qual precisamente criei a Bauhaus. Nossos esforços visavam

descobrir uma nova postura, que deveria desenvolver uma consciência criadora nos

participantes, para finalmente levar a uma nova concepção de vida6.

6 GROPIUS, W. Bauhaus: nova arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 32.

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Suzie Ferreira do Nascimento

60 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 55-70, 2016

O texto deixa clara a decepção de Gropius com o fato de o “estilo” Bauhaus não ter

correspondido aos ideais dos fundadores da escola Alemã. Uma explicação plausível para esse

fenômeno pode ser o simples fato de que estilo não é algo que se proponha. Ele ocorre quando

uma determinada criação artística dá conta de um valor de sua época, quando essa mesma

época se reconhece nessa expressão plástica. Felizmente esse acontecimento é da ordem da

experiência estética e como tal, não se submete a conceitos, fato que a fala de Gropius só vem

a confirmar. As formas nos falam, nos causam prazer ou desprazer, ainda que não possamos

apreendê-las pela razão. Assim colocado, é quase de se lamentar que Gropius não tenha

recebido o estilo Bauhaus como uma experiência bem sucedida, pois, é digno de nota seu

esforço à época para desenvolver o lado artístico dos alunos. Não deveria ser surpresa que tais

criações tivessem alcançado excelência e adquirido vida própria, vindo a se tornar estilo.

Pergunto-me se não seria possível que os alunos da Bauhaus tivessem de fato se tornado tão

artistas de modo a conseguir, magistralmente, objetivar os valores da psique moderna. O

estilo, assim compreendido, é um “sintoma”, ele revela um estado de saúde porquanto resulta

dos valores. Falemos um pouco então sobre os valores que a estética da primeira metade do

século XX carrega e ao mesmo tempo revela.

A estética do otimismo

Inversamente, o que mais sofre, o mais pobre de

vida, necessita ao máximo de brandura paz e

bondade [...]; e igualmente da lógica, da

compreensibilidade conceitual da existência – pois

a lógica tranquiliza, dá confiança – em suma, de

uma certa estreiteza cálida que afasta o medo, um

encerrar-se em horizontes otimistas.

F. Nietzsche

Nesse item pretendo fazer algumas aproximações entre o estilo “Modernista” e aquele

ao qual Nietzsche remete e que hoje é interpretado como pertencente ao período Arcaico da

Grécia. Notadamente estou me referindo àquela expressão artística que antecedeu o período

Helenístico, esculturas que têm um “que” de egípcias, por assim dizer. Seus membros

raramente se movem e porque não se movem também não se quebram. Tais esculturas não

perdem membros, elas permanecem íntegras por mais tempo porque são estáveis também

fisicamente. Nelas o desejo de eternidade da cultura à qual pertencem encontra um correlato

na forma e nos materiais duráveis. Creio que em temos de figura humana um dos poucos

exemplos nesse sentido é O Kouros de Anavissos, c. 530 a.C. Aqui neste texto, o importante é

perceber que Nietzsche faz certa conexão entre a “mais leve reflexão e perspicácia”

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caracterizadoras da cultura Apolínea para a qual Dionísio se apresentava como estrangeiro, e

essas produções artísticas contidas em si mesmas, plantadas firmemente no chão, centro de

gravidade baixo, capazes de resistir às mais duras intempéries durante séculos, anteriores ao

período helenístico. Seu aspecto formal revela otimismo e um desejo de tornar-se eterno.

Passemos agora ao estilo “Modernista”. O termo vai em aspas porque não pretendo

aqui acrescer nada às já inúmeras delimitações entre moderno, modernista, vanguarda e assim

por diante e quero menos ainda me tornar refém dele. O que me interessa é o teor racionalista

que levou à abstração, presente nas expressões artísticas às quais pretendo aproximar as

reflexões de Nietzsche sobre os gregos. Assim sendo, me permito unir em um mesmo estilo as

produções de design e arquitetura do período que vai do imediatamente anterior à Segunda

Guerra na Europa e o que se produziu após ela do outro lado do Atlântico. Posso também

excluir outras que, mesmo consideradas “Modernistas”, não se sujeitam à pureza das formas,

às linhas retas e ao racionalismo. No intuito de manter aqui meu “hibridismo”, utilizarei duas

reconhecidas definições, uma de arquitetura e outra de design, que se reforçam mutuamente e

atestam a validade da minha proposição. Da arquitetura faço uso da definição do prof. Silvio

Colins, segundo quem “estilo internacional” refere-se, stricto sensu, à arquitetura racionalista-

funcionalista produzida, sobretudo dos anos 1930 a 1950 no mundo ocidental.

Correspondente ao pleno desenvolvimento dos princípios defendidos pelas vanguardas

modernistas europeias dos anos 1920, a partir de modificações introduzidas nos Estados

Unidos, podendo ser também chamado Alto Modernismo7. Quanto à sua especificidade, farei

uso da descrição do historiador de arquitetura americana Henry-Russell Hitchcock: ênfase às

texturas superficiais, ornamentação reduzida a formas abstratas, sem nenhuma referência ao

passado, priorização do “volume” e do “plano”, em detrimento do chamado “valor de

massa”8. Agora, a título de comprovar a proximidade estilística entre arquitetura e design

desse período vejamos como são descritos por J. Abbot Miller os princípios da Bauhaus, em

seu A Escola Elementar:

A Bauhaus assumiu as proporções míticas do momento originário da vanguarda, quando a

gramática fundamental da visualidade foi desenterrada dos escombros do historicismo e das

formas tradicionais. Um elemento central dessa “gramática” foi – e continua a ser – o

triângulo equilátero, o quadrado e o círculo. A repetição desse trio de formas básicas e cores

primárias na obra de professores e estudantes da Bauhaus, evidencia o interesse da escola na

7 HITCHCOCK Appud COLINS, Sílvio http://coisasdaarquitetura.wordpress.com /2011/09/28/estilo-

internacional. 8 Ibidem

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abstração e seu foco nos aspectos da visualidade que poderiam ser descritos como

elementares, irredutíveis, essenciais, fundadores e originais.9

A citação que fiz de Miller cumpre aqui dois propósitos: comprova o

compartilhamento de valores formais entre arquitetura e design, mas, sobretudo, deixa claro

como o “pós” se refere ao que lhe antecedeu: “quando a gramática fundamental da

visualidade foi desenterrada dos escombros do historicismo e das formas tradicionais”. Assim

descritos, os valores formais que tornaram possível o estilo são interpretados como uma

retomada equivocada de “formas tradicionais” que jaziam nos escombros e de lá não

deveriam ter nunca saído. Voltarei a esse ponto mais adiante. Por ora creio que essas

definições asseguram que há uma estética que perpassa tanto os trabalhos de design quanto as

construções arquitetônicas criados na primeira metade do século XX no ocidente. É sobre os

valores, sobre a ética desse período que pretendo refletir. Entendo que esse estilo guarda

similaridades com o dos gregos pré-helênicos, ao modo como Nietzsche o descreve: uma

estética que valoriza formas puras e estáveis, associada à reflexão, e “otimista”, no sentido de

desejo de eternidade. E aqui a história se torna complexa, pois, não estamos mais falando dos

valores gregos, sobre os quais podemos inferir isso ou aquilo a partir do que está dado no

tempo. O “estilo internacional”, bem como todo o “Modernismo” e/ou arte Moderna, têm sido

lidos a partir do que se sabe das intenções dos seus respectivos criadores e idealizadores. Boa

parte do que se chamou “modernismo” foi expresso primeiro em “manifestos”, em exposição

concatenada de ideias, cujo fim último era, via de regra, transformar uma sociedade de

contrastes, regida por “elites”, em uma sociedade mais “social” ou democrática. E aqui temos

um problema: considerada a “ideologia” defendida por meio dos manifestos, a arquitetura e o

design produzidos no período que compreende o entorno e a Segunda Guerra nunca poderiam

refletir um homem satisfeito de si mesmo, não há compatibilidade entre otimismo e a terrível

realidade cantada em verso e prosa e fotografada por todos os ângulos nos campos de

Auschwitz. O que se vê é que, a despeito dos esforços ideológicos dos teorizadores da

criação, o que se impôs como aspecto visual desse período não foi nem “social”, no sentido

que a ideologia socialista atribui à palavra, nem refletiu a crueldade e o insano que se fizeram

presentes nesse período. O otimismo racionalista que antecedeu a Segunda Guerra e que, para

os amantes da “causa e efeito”, foi talvez sua causa, não sucumbiu sob os destroços, ele se

afirmou do outro lado do Atlântico. Para os mesmo amantes da “causa e efeito”, isso se deveu

às intenções nefastas do capital. Não preciso aqui rebater esses argumentos, pois pretendo

9 LUPTON, E. & MILLER, J. A. (orgs.). A B C da Bauhaus: a Bauhaus e a teoria do design. São Paulo: Cosac

Naify, 2008. P.8.

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utilizar aqui o estilo como sintoma ao qual não cabe combater, apenas compreender. O

curioso e o que mais perturba é o fato de tal estética ter se tornado quase hegemônica e, para

usar a expressão de Paul Greenhalgh, em termos de quantidade, ter sido talvez o visual “mais

bem sucedido jamais inventado!”10. Como explicar então que uma produção estética, nascida

de [responsável por?] tais horrores, que encontrou interlocução na burguesia, fosse tantas

vezes replicado?

Obviamente que se podem apresentar aqui muitas “causas”, tais como disponibilidade

de material, a necessária expansão industrial, a explosão populacional nas grandes cidades, e

assim por diante. Todavia eu gostaria de aventar outra possibilidade, fora do âmbito das

“causas” e, sobretudo, da “culpa”, pois essas “causas” não explicam o seu caráter “otimista”,

sua pretensão à eternidade. Minha leitura dos fatos encontra suporte nas reflexões de outro

filósofo Alemão, conhecido sobre tudo pela aproximação que fez entre filosofia e o que veio a

ser depois a sociologia. Refiro-me a Georg Simmel, particularmente seu ensaio As Grandes

Cidades e a Vida do Espírito de 1903. Trata-se de um ensaio de psicossociologia escrito a

partir das observações do filósofo a respeito das cidades de Berlim e Viena, sujeitas ambas, no

seu entender, aos princípios ordenadores da racionalidade capitalista e do anonimato11. De

modo muito sucinto, Simmel analisa a grande metrópole sob o ponto de vista da necessidade:

O homem é um ser que faz distinções, isto é, sua consciência é estimulada mediante a

distinção da impressão atual frente a que lhe precede. As impressões persistentes, a

insignificância de suas diferenças, a regularidade habitual de seu transcurso e de suas

oposições exigem por assim dizer menos consciência do que a rápida concentração de imagens

em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o

caráter inesperado das impressões que se impõem.12

O homem que vive em metrópoles não dá conta, conforme a análise de Simmel, da

infinidade e da violência dos estímulos aos quais é submetido. Ele precisa preservar-se na

racionalidade e na abstração, ele precisa encontrar as “universalidades” que podem lhe

permitir hierarquizar os estímulos. Segue Simmel:

Assim, o tipo do habitante da cidade grande — que naturalmente é envolto em milhares de

modificações individuais — cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as

correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas

sobretudo com o entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela mesma

10 GREENHALGH, P. Modernism in Design, Edited by P. Greenhalgh, London: Reaktion Books, 1990, p.4.

11 FORTUNA, C. “Simmel e as cidades históricas italianas – Uma introdução”. Revista Crítica de Ciências

Sociais, 67, Dezembro 2003: 101-127

12 Ibidem

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causa, propicia a prerrogativa anímica. Com isso, a reação àqueles fenômenos é deslocada

para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da

personalidade.13

Se observarmos bem, é possível ver algo de sabedoria trágica nesse indivíduo citadino

que Simmel descreve. Ele cria, para poder viver, uma “aparência” que o distancia. Vale dizer

essas não são ações movidas por intencionalidades, é o homem no pathos, é ele sendo

impactado pelo insuportável e disso vem a ser seu entorno. Eu gostaria de propor um olhar

sobre aquelas construções abstratas e sem vínculo com a história ou culturas locais que

caracterizam o “estilo internacional”, agora sob a perspectiva de Simmel. A mim parece

inquestionável que essa arquitetura se impôs como estilo porque atendeu de modo magistral à

necessidade vital desse homem moderno. Ela foi a expressão que mais se ajustou à ética que

por sua vez se impôs por necessidade: a ética do distanciamento. Se Simmel está correto,

nunca coube aos agentes de uma cultura, por meio de argumentos lógicos ou morais,

determinar o que de sua expressão artística seria o “visual mais bem sucedido”, em fim, qual

seria a estética que corresponderia à ética desse tempo em específico, cuja junção perfeita e

fortuita definiria um “estilo”. Tão pouco o julgamento desta ética pode fazer frente ao que por

si só se impõe como estilo, a despeito do que sobre ele se diz. Todavia os artistas, arquitetos e

estilistas dos quais veio a ser um estilo, invariavelmente trazem em si algo de dionisíaco, pois

são capazes de sentir em si mesmos o feio, o injusto e o cruel de seu tempo, capazes também

de, a partir disso, criar representações com as quais nos identificamos. Lembro-me de um

aforismo de Nietzsche, um dos poucos em que ele cita a arquitetura como sinônimo de

“grande estilo”:

Na edificação, o orgulho, a vitória sobre o peso, a vontade de potência devem se tornar

visíveis; a arquitetura é uma espécie de eloquência da potência através das formas; ora

convincente, mesmo lisonjeadora, ora meramente ordenadora. O sentimento mais elevado da

potência e da segurança vem à expressão em meio ao que possui grande estilo. A potência que

não precisa mais de nenhuma prova; que desdenha do agrado; que responde dificilmente: que

não sente nenhuma testemunha em torno de si; que vive sem consciência de que há uma

contradição em relação a ela; que repousa em si, fatalisticamente, uma lei sob leis: isto fala de

si com grande estilo (CI, Incursões de um Extemporâneo, 11)14.

Esse é o ponto que eu gostaria de frisar: o “grande” estilo repousa em si a despeito da

sua contradição, ele não reage e não tem percepção de que o tempo passa a sua volta, ele não

13 Ibidem

14 CI corresponde a abreviatura aceitável do livro Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche. Sendo que o número 11

corresponde ao “aforismo” dentro do capítulo “Incursões de um Extemporâneo”. Outro modo seria:

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Trad. Marco Antônio Casa Nova.

Revisão Técnica: André Luís Mota Itaparica. Relume- Dumará. Rio De Janeiro 2000. p 73.

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se dá conta que ao seu redor tantos outros simplesmente desaparecem, ele simplesmente é. Ele

não quer provar nada, não liga para “agrados”, não se interessa por juízos a ele atribuídos. Eu

ousaria dizer que ele não dá também muita importância a “manifestos” de boas intenções, pois

o fato de ter se estabelecido prova sua completude, prova que o bom e o mau, o bonito e o

feio, o justo e o injusto neles se encontram valorados na justa medida da necessidade do

homem da época e do local à qual pertence. O estilo fala dos valores demasiado humanos, não

dos valores ideais, ainda que reproduza uma estética idealista, como parece ter sido o caso dos

gregos. Todavia, se há algo visível nos prédios que compõem o “estilo internacional” é

confiança. Eles apontam para o futuro, um futuro fundado na verdade das formas e na

transparência dos materiais, eles enaltecem a modernidade e a razão. Não há lamento sobre si

nesse estilo. Em que medida essa confiança dependeu da abstração de sua própria realidade,

do não estar ciente de sua própria contradição seria difícil dizer, e é nesse ponto que eu vejo

semelhança entre esse estilo e o pré-helênico. Lembremos que, conforme a tese de Nietzsche,

foi Dionísio, o deus estrangeiro, que revelou a verdade àqueles gregos Apolíneos. O que

Simmel, e também Nietzsche, nos levam a concluir é que todo estilo, entendido como o que se

impõe como estética de uma determinada época, traz em si “necessidade” e deve ser

observado a partir dessa perspectiva. O “Modernismo” como ademais todas as expressões

culturais que assim foram chamadas, carrega a síntese de todos os valores de sua época,

incluindo os mais vergonhosos, e os devolve em beleza, como expressão artística da qual

“todos” podem fruir, ainda que não seja possível a todos possuí-la. Um transeunte fruirá as

linhas retas dos edifícios à moda do Estilo Internacional sem nunca neles adentrar,

reproduzirá essas linhas em seu dia-a-dia, em seus móveis, em sua casa. O mesmo no que diz

respeito a certos artefatos, penso particularmente os criados a partir da Bauhaus. São criações

humanas que se aproximam da arte, porquanto resultantes de talento e excelência, carregados

de significados, e essa poderia ser uma explicação para o distanciamento entre eles e os ideais

socializantes dos manifestos elaborados pelos seus criadores: eles adquiriram valor de arte, e

como tal, se tornaram objeto de desejo. E porque se tornaram objeto de desejo se replicaram

para além dos exemplares que alguns afortunados podiam adquirir ou fazer uso. Eles foram

desejados porquanto artefatos e signos de poder, mas também, e esse é o meu ponto, porque

atenderam a uma necessidade vital daquele período: a alienação. Utilizando Charles Jencks

como exemplo, ainda que ele esteja correto ao afirmar que muitas reproduções do Estilo

Internacional se deveram a simples viabilidade econômica15, creio ser importante também

15 JENCKS, C. “What then is post-modernism?” In The post-modern reader, edited by Charles Jencks, pp. 14-

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considerar o que disse Aristóteles: Imitar é natural no homem, todos têm prazer em Imitar.

Logo, faz parte da conformação de um estilo o espraiamento de aspectos formais, seja por

reconhecimento de valores, por imitação, e/ou por questões econômicas e sociais,

insegurança, medo, ressentimento e até inveja. A estética de uma época, porquanto sintoma,

tem de ser a somatória de todos eles. Esse é um efeito que antecede em milhares de anos o

capitalismo. E com isso em mente me encaminho para o último tópico deste artigo, no qual

pretendo refletir sobre o que significa a estética das épocas não corresponder a ideologias.

Por uma crítica sem ressentimento

Everyone designs who devises courses of action

aimed at changing existing situations into

preferred ones.

Herbert Simon

Tudo isso acolher em sua alma: as coisas mais

antigas e as mais novas perdas, esperanças,

conquistas, vitórias da humanidade: tudo isso

afinal, ter uma só alma e reunir num só

sentimento: - Isso teria que resultar numa

felicidade que até agora o homem não conheceu

[...] Esse sentimento se chamaria então –

humanidade!

F. Nietzsche

Neste item me dirigirei aos discursos que se pretendem “pós” modernos. Há uma

infinidade de definições que tentam justificar o termo, mas eu procurarei me manter firme às

características do “Modernismo” porque acredito que, uma vez tendo ele se imposto como

estilo resume da melhor maneira os valores em questão, a favor ou contra. Ademais, como eu

disse acima, a racionalidade e a abstração que o caracterizam também me permitem

aproximá-lo do estilo que Nietzsche identificou nos perspicazes gregos adeptos da reflexão,

antes da revelação dionisíaca de sua própria contradição. Pois bem, entendo aqui “pós” como

aquilo que se pretende seu oposto. Cito, a título de comprovar minha definição, novamente os

escritos de Charles Jencks. Segundo ele, pós-moderno, em termos de arquitetura, tem a ver

com pluralismo, mediações entre gostos diversos e efêmeros. Jencks também esclarece que,

muito embora ele tenha usado o termo pós-moderno como título de um de seus livros e, de

algum modo o popularizado, foram os “argumentos morais” de nomes como Jane Jacobs,

Robert Venturi e outros que lutaram por um urbanismo mais justo e complexo que o tornaram

37. New York: John Wiley & Sons, 2010, p. 24.

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O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”

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realidade16. O texto continua e Jencks argumenta que essa arquitetura “pós” moderna,

porquanto impura e eclética, seria mais acessível a um maior número de pessoas, e vai além

afirmando que “nesse sentido”, pós-modernismo seria um “estilo social” [social style] e o

Modernismo um “estilo das elites” [elite style] e parece crer ter sido uma “ironia” do destino

que a abstração tivesse sido tão popular17. Creio que esses pequenos trechos que retirei do seu

The Post-Modern Reader são suficientes para levar o leitor ao ponto que quero discutir.

Voltemos agora aos gregos: Considerada a tese Nietzschiana, toda a expressão artística

grega tem uma mesma matriz que são os valores gregos presentes nos heróis idealizados por

Homero. As narrativas, no entanto, adquirem matizes diversos a partir de outros poetas. Nas

tragédias de Sófocles, por exemplo, o lamento do herói não se devia a uma ação equivocada

ou erro. Esse é um ponto importante para Nietzsche porque assim sendo, não havia nada a

corrigir, apenas a sofrer. Este “nada a corrigir” seria a “ética” por trás da estética do “tudo é

necessário”. Vale dizer, uma estética do belo, à medida que se entende por “belo” tudo o que

é capaz de proporcionar sentimento de prazer por sua completude, produções nas quais o

espectador conclui que nada falta e nada sobra; e, se nada ali se dá ao acaso, tem-se que

concluir que “tudo é necessário”. O jovem filósofo, a partir de sua convicção de que as

produções artísticas refletem valores, intentava demonstrar que na arte grega não havia espaço

para ressentimentos com a falta de sentido dos fatos da vida; sua beleza estava justamente no

caráter necessário de cada detalhe e, sendo assim, esses tinham que ser também os valores

morais dos gregos. O contrário desse valor afirmativo que a tudo inclui, Nietzsche identificou

na tragédia de Eurípedes, pois sua narrativa do drama heroico denunciava já um modo de

valorar segundo o qual todo o infortúnio decorre de erro, levando à culpa e à busca de causas.

Com isso em vista, eu proponho uma breve reflexão sobre o discurso que pretende

defender a existência de algo como “pós” moderno, particularmente com as características

que Jencks reuniu em seu texto: pluralista, mediador, acessível, eclético, um “estilo social”.

Vale dizer, ideais que em muito se aproximam daqueles defendidos pelos manifestos

vanguardistas quanto à sua finalidade. De início, espero ter demonstrado que um estilo,

entendido como eu proponho aqui, é a estética que melhor apresenta os valores de uma época.

Tais valores são “demasiado humanos”, para me manter no léxico nietzschiano, não

correspondem a proposições ideológicas. Sobre o sintoma não cabe dizer “isso deveria ser

16 Ibidem

17 Ibidem

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diferente”; se a estética moderna é sintomática de decadência, o discurso do “como deveria

ser” não faz o menor sentido. Agora, se houve uma mudança nos valores humanos, deverá

surgir um novo estilo que dê conta deles. Não segue daí que ele corresponda a qualquer

discurso ideológico pré-determinado; identificar a ética por traz desse eventual novo estilo é

um trabalho que exigirá distanciamento e um novo Nietzsche. Ainda assim, creio que

podemos avançar um pouco observando a partir de que valores se faz a crítica ao

“Modernismo”. É nesse sentido que a menção de Nietzsche a Eurípedes pode ser interessante.

Creio que o caráter universalista/racionalista do Modernismo que permitiu ao homem

Moderno abstrair-se de sua realidade é o que mais lhe pesa como crítica. Se nos basearmos

em Simmel, o fato dessa estética ter se tornado um estilo demonstra que ela se impôs por

necessidade e não apenas como resultado da intervenção capitalista, ainda que o capitalismo

seja parte inquestionável dessa época. Sua permanência e espraiamento hegemônico

testemunham sua “beleza”, sua completude. Tudo nele foi e é necessário ao homem moderno

ocidental, inclusive a racionalidade exacerbada. Conforme eu quero argumentar, pensar o

“Modernismo” como “causa” da abstração do homem moderno é fazê-lo à moda de

Eurípedes: confundir o que vem antes com causa; herdamos da ciência o raciocínio segundo o

qual sempre que uma nuvem antecede a chuva ela tem de ser também sua causa. Não há que

se perder aqui em raciocínios do tipo “Não tivesse havido a Bauhaus, não haveria também o

estilo Bauhausiano”. O problema apontado por Nietzsche em Eurípedes é o ressentimento:

trata-se de, a partir de um desgosto com o sem sentido da vida buscar atribuir-lhe um sentido

nos fatos históricos que a partir daí passam a ser interpretados como “causa”. De acordo com

esse raciocínio, o Modernismo, e tudo que a ele se associa, seria a “causa” da alienação e

decadência do homem moderno devendo então ser “corrigido”. Daí eu ter trazido em epígrafe

a definição do economista Simon18 que tem orientado muito do que se entende como design

até hoje. A noção segundo a qual fazer design é transformar situações existentes em situações

preferíveis é quase aforística e permite apropriação ideológica, sobretudo se considerarmos

que é próprio das ideologias defenderem um “como deveria ser”. Simon tem sido usado para

fortalecer um design ao qual cabe a função de resolver “problemas”, problemas esses

identificados pela ideologia com a qual seus pensadores e criadores são alinhados e que têm

no capitalismo seu maior inimigo. Esse viés interpretativo do lugar do designer no mundo o

impede de ser “dionisíaco”, impede de amar sua própria história e alimenta um ressentimento

18 SIMON, H. The sciences of the artificial. Cambridge, Ma: The MIT Press, 1998.

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O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”

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sem sentido, se é que algum o tem, uma vez que não caberá ao designer determinar o modo

como suas criações serão recebidas pelo mundo. Creio que não temos caso mais significativo

que o Estilo Bauhausiano. A despeito dos ideais reformistas de Gropius, a necessidade do

momento era o distanciamento e foi essa a ética que determinou sua recepção, pelas mais

diversas vias. Outro exemplo histórico é Willian Morris, cujo ideal socialista acabou por

chocar-se com suas próprias criações que, de tão valorosas, acabaram por se tornar

aristocráticas19. Digno de nota também é a observação do sociólogo francês Henry-Pierre

Jeudy, denunciando a “demagogia social”20 dos designers: o esforço para explicar seus

artefatos a partir de uma necessidade social. Esses exemplos me autorizam a dizer que, no que

diz respeito à vida social dos artefatos, não é o discurso moral dos seus criadores que

determina seu status de estilo, pois estilo não resulta de “argumentos morais”, ele revela a

moral da época. A produção artística, a estética de uma época será, invariavelmente, aquela

que revela sua ética, e sua ética será reflexo imediato daquilo essa época é capaz de suportar.

A despeito das intenções dos seus criadores, os artefatos lançados no mundo ocupam o lugar

que a necessidade do momento lhes permite ocupar, e parece inquestionável que a abstração

foi, ou ainda é, uma das mais fortes necessidades do homem ocidental moderno. Nesse

sentido, não faz muita diferença se esse homem se aliena na compaixão e na moral ou na

racionalidade. Com isso em mente eu proporia, para além de mais uma vez associar

decadência a Modernismo, que se observasse seus críticos sob a lente do ressentimento. O

“pós” ou “anti” moderno repete um discurso de lamento sobre si mesmo e busca na

Modernidade, da qual veio a ser, um culpado. Ele se propõe a denunciar a alienação formal,

mas se exangue no esforço de apontar responsáveis para o mundo que ele só faz lamentar.

Vale dizer, a expectativa socializante do discurso “pós” moderno nada mais é que a retomada

dos ideais que deram origem ao Modernismo. Há que se perguntar ao menos uma vez por que

é que esse discurso não se confirma em “estilo” em identificação com os reais valores de uma

época. Creio ser justo dizer que, assim como os Alemães frustravam-se em não conseguir

definir os gregos a partir de seus ideais iluministas, o Modernismo também se apresenta como

algo incômodo aos ideais pós-modernos, sobretudo por usa popularidade. Creio que um bom

modo de aproximar-se dele, até mesmo de criticá-lo sem recorrer ao mecanismo da culpa, é

buscar compreender esse fenômeno a partir da experiência estética, do sentimento, e não dos

conceitos. Ao modo de Nietzsche, poderíamos perguntar pelo sintoma que a proliferação de

19 NAKAYAMA, S. “The Impact of Willian Morris in Japan, 1904 to the present”. Journal of Design History

Vol.9 no. 4, 1966. P. 276. 20 JEUDY, Henri-Pierre. “Philippe Starck Ficção Semântica”. ARCOS vol. II, 1999. Número Único, p.46.

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determinadas formas revela, que necessidades a elas se associam. Sob essa perspectiva,

designers, arquitetos e artistas são, sem dúvida, fornecedores de formas e com sorte, algumas

delas encontram ressonância nas necessidades humanas. Pretender determinar que

necessidade é moralmente válida e digna de ser atendida por meio da arte ou do design, mais

de uma vez já se demonstrou um expediente inútil.

Modernist style in the light of “necessity” and “innocence”

Abstract: When Nietzsche first reflected about Greeks, he concludes

that the formal aspect of Pre-Hellenic sculpture reveled desire for

eternity or “optimism”. In this paper, I will approach those reflections

to one Style, which among us, became known as “Modernist”, given

some formal similarities. I intend to argue that this Style was

necessary, but not in that way its creators and critics expect it happen.

Understand it as necessary will make us realize it was also innocent.

With these arguments I intend to question the way that “Post-

Modernity”, when it refers to “Modernism”, claims it should be

corrected, and in doing that deny its “innocence”.

Key words: Modernism, Design, Philosophy, Greek Art, Criticism.

Bibliografia

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 71

Entre aura e simulacro:

o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Helena de Barros*

Jorge Lucio de Campos**

Washington Dias Lessa***

Resumo: O conceito benjaminiano de aura (proposto na década de 1930)

atribuiu valores especiais ao original único da obra de arte, em oposição à

destruição da aura instaurada a partir de sua reprodutibilidade técnica. Sob a

perspectiva da realidade do século XXI, buscar-se-á aqui reunir argumentos

capazes de resignificar a cópia impressa no contexto atual, através do con-

ceito de “simulacro aurático”, da efemeridade dos impressos e de novas tec-

nologias de impressão que tornaram ainda mais difusa a distinção entre o

original e a cópia. Nossa reflexão se apoiará fundamentalmente nos conceitos

de fetiche da mercadoria de Karl Marx e de simulacro nas visões de Jean

Baudrillard e Gilles Deleuze.

Palavras chave: Aura. Original. Reprodução. Impresso. Simulacro. Efême-

ros.

Considerações preliminares

Na primeira metade do século XX, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940)

utilizou o termo “aura” em alguns de seus ensaios,1 na tentativa de isolar a singularidade do

objeto artístico e da experiência estética. O conceito é identificado por ele como uma caracte-

rística exclusiva do objeto original único, estando ligado intimamente à experiência direta:

[...] o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a apari-

ção única de uma coisa distante, por mais perto que esteja. Observar em repouso, numa tarde de

verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós,

significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.2

Além da singularidade, a aura se relaciona também com a autenticidade, a autoridade,

a tradição, a origem, a duração material e o testemunho histórico. Juntos, esses atributos com-

põem, para Benjamin, o caráter singular da obra de arte. Sua perspectiva histórica não está

presa apenas ao contexto de origem, mas também às transformações que esta acumula, ao

longo do tempo, em sua estrutura física ou em suas relações de propriedade, no transporte de

* Graduada em Desenho Industrial e Mestre e Doutoranda em Design pela ESDI/UERJ.

** Professor da ESDI/UERJ. Doutor e Pós-Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. E-mail: jorgelucio-

[email protected]

*** Professor da ESDI/UERJ. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. 1 “Pequena história da fotografia”, de 1931; “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de 1935; e

“Sobre alguns temas em Baudelaire”, de 1939. 2 Walter Benjamin, 1994, p. 1.

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Helena de Barros & Jorge Lucio de Campos

72 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016

um passado móvel e impregnante, que se manifesta no aqui e agora, atribuindo-lhe o caráter

de existência única e autêntica com a passagem do tempo.

O crítico português Miguel Cardoso comenta que, em “Sobre alguns temas em Baude-

laire”, Benjamin atribui

a qualidade “aurática” aos objetos que têm a capacidade de devolver o nosso olhar. Isto significa

que são as marcas de temporalidade e vivência do próprio objeto que forçam o olhar a se demo-

rar nele, a se confrontar com uma profundidade, um valor que ultrapassa o valor comercial ou de

exposição. Por outras palavras, a aura é um veículo de “desaceleração” que parece se diluir ou

ser incompatível, na visão do autor, com a experiência de “choque” da modernidade e com os

sonhos de consumo imediato do capitalismo.3

A existência única da obra de arte é também o que lhe garante certo distanciamento e

veneração: o valor de culto. Em “Pequena história da fotografia”, Benjamin identifica o dese-

jo moderno de aproximação do objeto e sua viabilidade através da reprodução que, ao contrá-

rio da obra de arte cultuada, vem ao encontro do espectador.

[...] Fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas é uma tendência tão apaixonada do ho-

mem contemporâneo como a superação do caráter único das coisas, em cada situação, através da sua re-

produção. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na

imagem, ou melhor, na sua reprodução. E cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como

ela nos é oferecida pelos jornais ilustrados e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a uni-

cidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a reproduti-

bilidade.4

Nesta breve passagem, já se pode notar um julgamento de valor negativo em relação

às reproduções, à sua banalização e ao seu rebaixamento qualitativo. A reflexão é aprofunda-

da em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, no qual são discutidas as

transformações na arte, a partir do desenvolvimento de sistemas de reprodução. O texto, que

se mantém pertinente e polêmico ainda nos dias de hoje, diagnostica a alteração profunda do

objeto artístico e a “perda da aura” como consequências das transformações tecnológicas.

Embora o eixo principal do ensaio seja a contextualização de formas de expressão relativa-

mente recentes na época, como a produção fotográfica e cinematográfica no universo da arte,

podemos nos valer de grande parte de suas considerações, deslocando-as em relação à questão

do original e à imagem impressa.

A aura do original, que motiva a atitude ritualística de contemplação introspectiva e

devoção individual é inevitavelmente destruída através da disseminação. Conquista-se outro

tipo de valor: o de ser visto pelo maior número de pessoas, que, por sua vez, promove a circu-

lação da informação. Com a fotografia, a questão da autenticidade das cópias deixa de ter sen-

3 Miguel Cardoso, verbete “Aura”. In: Carlos Ceia, E-Dicionário de termos literários. 4 Walter Benjamin, op. cit., p. 1.

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tido, transformando a função social da arte. A atitude ritualística é convertida numa atitude

política, capaz de atingir não apenas o indivíduo, mas a própria sociedade. Contudo, o caráter

de devoção e recolhimento provocado pelo contato com o objeto singular acaba por dar lugar

ao entretenimento, à distração corriqueira. O que é essência se converte tão somente em apa-

rência.

Mesmo antes da fotografia, a cromolitografia – técnica de impressão seriada colorida

que tornou possíveis as primeiras reproduções manuais e interpretativas de pinturas – já en-

frentava um processo de superficialização semelhante ao que seria diagnosticado, posterior-

mente, por Benjamin. Para a elite cultural, a cromolitografia não passava de uma falsificação

barata produzida em larga escala, capaz de destruir o senso estético e munir as massas das

ideias mais equivocadas sobre a arte. Críticas severas sobre o seu poder refletem também o

seu impacto social, como, por exemplo, a do editor do periódico americano The Nation,

Edwin Lawrence Godkin, publicada em 1874:

uma palavra hifenizada comunica tudo que é feio e falso: CROMO-CIVILIZAÇÃO. [...] A cromolitogra-

fia é a quintessência da democratização e, portanto, a degradação da alta cultura. Ela representa uma

“pseudocultura”, sendo uma pletora de mídia maligna [...] que difunde pela comunidade a superficialidade

de todos os tipos de conhecimento, um gosto por “arte” que se traduz num desejo de ver e possuir imagens

[...] munindo-os com uma autoconfiança sem precedentes para lidar com todos os problemas da vida, sus-

citando em suas mentes um patamar onde não se vê nada acima, maior ou melhor do que a si próprios. (...)

Cópia barata de uma bela pintura, a cromolitografia destrói o caráter especial do original para o observa-

dor.5

No tempo moderno, o momento etéreo simbolicamente eternizado, porém fugaz, da re-

cepção ótica diante da obra de arte, precisa ser aproximado, tocado, possuído, assimilado, supe-

rado. Converte-se numa recepção tátil, material. Já se afirmava no século XIX que “as cromos

também abriam caminho para a criação de uma ‘cultura’ de ocasião, da tirania das massas pe-

la aparência externa. [...] Uma civilização forte e saudável estaria menos preocupada com a

disseminação da cultura e mais dedicada à busca da verdade”.6

No início do século XX, a disseminação de imagens já havia progredido ainda mais

através da fotografia e de sua reprodução industrial, por meio da impressão por retícula, ense-

jando, segundo Benjamin, uma profunda refuncionalização da arte. Como observa ainda Car-

doso “o foco de Benjamin não é apenas a modernização, mas também a modernidade, que ele

definiu enquanto mudança na estrutura da experiência”.7 Para este, “[urgiria] fazer do gigan-

tesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das intervenções humanas,8 sendo esta a única

5 Peter C. Marzio, 1979, pp. 1-2. 6 Peter C. Marzio, op. cit., p. 2. 7 Id. ibid. 8 Walter Benjamin, 1994, p. 174.

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alternativa possível à destruição da aura. Assim, “a arte contemporânea será mais eficaz quan-

to mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu

centro a obra original”.9 Mas, na medida em que seu acesso é facilitado e generalizado, ao

mesmo tempo em que se reconhece um potencial emancipatório, as conclusões do filósofo são

eminentemente negativas: a perda da aura poderia significar “a liquidação do valor tradicional

do patrimônio da cultura”.10

1. A questão do simulacro

O prejuízo da dimensão simbólica em função da potencialização exacerbada do entre-

tenimento para as massas continuaria em voga no período pós-moderno, posto à luz na voz de

autores como Guy Debord (1931-94) ou Jean Baudrillard (1929-2007). Apesar das especifici-

dades de cada linha de pensamento, o denominador comum entre eles é o diagnóstico de que

“os objetos [artísticos e não só] estão inseridos numa teia sincrônica em que distinções entre

tecnologia e cultura, original e cópia, ou realidade e representação, parecem ter perdido, em

grande medida, o sentido (dando lugar a categorias como simulacro ou espetáculo).11

A questão da destruição da aura na sociedade contemporânea configura-se num para-

doxo. De um lado, coloca-se o desejo pelo verdadeiro, pelo autêntico, pela experiência única e

original, pelo conhecimento e pela informação. Do outro, a restrição de que essa experiência

seja transmitida, difundida ou propagada sem perda de sentido. A posse da experiência é dese-

jada por todos, mas reservada apenas a uma pequena parcela. Sua assimilação é alterada tanto

pelas limitações da reprodução técnica quanto pela diluição do entretenimento de massa.

Mesmo com o desenvolvimento tecnológico, a experiência através da reprodução é tão distor-

cida que se torna desprezível. O conhecimento, de uma forma ou de outra, se mantém inaces-

sível à sociedade de forma global e a elite social ou cultural continua sendo detentora deste

privilégio.

Não nos cabe aqui discutir a pertinência da visão apocalíptica contemporânea a respei-

to da massificação da imagem, mas, a partir desse diagnóstico, nos propomos a refletir sobre a

imagem impressa, reunindo sentidos que a aproximem de algo mais proveitoso do que os ró-

tulos de protagonista tirânica da destruição da aura ou de promotora de um capitalismo vazio.

Esta investigação visa estabelecer distinções conceituais e técnicas, levando em conta catego-

9 Walter Benjamin, op. cit., p. 174. 10 Op. cit., p. 180. 11 Miguel Cardoso, op. cit.

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Entre aura e simulacro: o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 75

rias e particularidades que possam identificar e relativizar diferentes níveis de significação e

valor simbólico presentes nos impressos.

Não é nosso objetivo discutir aqui os méritos do original em si, seja ele um desenho,

uma pintura, uma arte gráfica original, uma fotografia ou uma imagem sintetizada que se co-

loquem exemplarmente como resultado do trabalho artístico (tendencialmente compreendido

como paradigma da produção aurática), mas de estabelecer a caracterização, a partir das colo-

cações de Benjamin e de outros autores, de como poderíamos reavaliar e qualificar melhor o

valor da produção seriada de imagens, seus fatores intrínsecos e sua relatividade em relação à

categoria de original.

Partindo do campo da gravura como prática artística, o especialista suiço em tecnolo-

gia da impressão Felix Brunner expõe que, em se tratando de impressões:

Arte gráfica original é considerada aquela onde o próprio artista executou a chapa. Ele pode

também ter supervisionado o processo de impressão e por isso confere sua assinatura pessoal a

cada impressão. [...] Mesmo parecendo haver uma definição, a linha divisória entre arte gráfica

original e reprodução é bastante difusa na prática atual. [...] somente o genuíno terá duração e re-

terá seu valor enquanto o ilegítimo, mais cedo ou mais tarde, será reconhecido pelo que ele é

[tradução nossa].12

A partir daí, pode-se concluir que, mesmo dentro da questão da reprodução, se faz ne-

cessária uma distinção de valores. É atribuído um valor simbólico maior à criação e à produ-

ção da arte gráfica original do que à reprodução de um original preexistente. Mesmo

considerando que, quando se trata de qualquer produção em série, o valor do original único já

está diluído pela quantidade de reproduções, as questões de legitimidade e autoria estão pre-

sentes na gravura artística.

Nesse sentido, a produção seriada que envolve o trabalho manual direto do artista está

situada de forma privilegiada em relação à reprodução por aparelhos ou dispositivos técnicos,

sendo esta última desprovida de qualquer valor aurático. Podemos estruturar a atribuição de

valor simbólico na arte através do seguinte gráfico:

Objeto artístico:

Obra original

Produção seriada manual

(arte gráfica original)

12 Felix Brunner, 1962, p. 9.

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Reprodução seriada por dispositivo técnico

O topo da pirâmide indica o ponto de maior valorização simbólica, com a obra original

e única do artista. Também se observa um valor simbólico relativo em produções manuais

seriadas produzidas por artistas (em quantidade restrita): as gravuras de arte e as artes gráficas,

como, por exemplo, os cartazes de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901) ou de Alphonse

Mucha (1860-1939). Já na reprodução que não mantém nenhum vínculo direto com o autor da

obra e, portanto, sem o caráter de originalidade – as reproduções de imagens preexistentes,

em que se deseja apenas reapresentar a informação da maneira mais fiel possível, normalmen-

te produzida em grande quantidade – a hierarquia de valor simbólico se inverte. Na base da

pirâmide vigora o valor de exposição, um valor político de disseminação da informação, des-

provido de qualquer valor simbólico.

Neste caso, a capacidade dos dispositivos técnicos (câmera fotográfica e impressão in-

dustrial) de reproduzir as características visuais da obra original sem alteração do enunciado

pictórico é mais eficiente e confiável do que a reprodução manual. Opondo-se à aura, o que

vemos atuar, neste caso, não é o caráter de originalidade, mas, ao contrário, o de simulação.

O conceito de simulacro nos ajuda aqui a entender o porquê do julgamento negativo

em relação à imagem seriada e, principalmente, à reprodução fidedigna. Segundo Jean

Baudrillard, todo simulacro esconde uma capacidade ardilosa:

Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-

se a uma presença, o segundo a uma ausência. [...] Fingir, ou dissimular, deixam intacto o prin-

cipio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simu-

lação põe em causa a diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário.13

Quanto maior a capacidade de simulação de uma reprodução, ao contrário do que se

poderia supor, mais ameaçadora é sua posição em relação ao original. Aqui faz-se necessário

acrescentar que as técnicas de reprodução de imagens avançaram muito nos últimos anos.

Damos destaque às técnicas de reprodução de arte iniciadas na década de 1990 – apelidadas

de Giclée – e, hoje em dia, mais comumente chamadas de impressão de arte ou jato de tinta

pigmentada. Trata-se de impressões produzidas em impressoras jato de tinta de alta qualidade,

com amplo espectro cromático (oferendo estabilidade de cor de até 350 anos, comprovada

cientificamente em laboratório) e em papéis nobres. Este tipo de impresso representa o tom

contínuo de maneira eficiente (com pontos microscópicos que não são visíveis a olho nu) e

13 Jean Baudrillard, 1991, pp. 9-10.

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Entre aura e simulacro: o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 77

chega a superar a longevidade de gravuras, aquarelas e a fotografia de base química. Por esses

motivos, vem se tornando uma nova forma de comercialização de arte, especialmente para a

fotografia e a arte digital, não mais necessariamente se referenciando na reprodução de origi-

nais físicos. Assim, esta nova tecnologia põe em cheque o próprio conceito de reprodução,

podendo assumir o status de original, já que não há outra forma de materializar matrizes vir-

tuais, sintetizadas por computador.14

Voltando à questão do simulacro, reproduções fotomecânicas de baixa qualidade em

preto e branco (como as que eram frequentes na época de Benjamin) são consideradas cópias

“inofensivas” da obra de arte, pois simplesmente comunicam algumas de suas características

visuais sem, contudo, pretenderem substituí-la, como é o risco da reprodução de arte de alta

qualidade da tecnologia atual, que tende à simulação.

Quando, além da materialidade propriamente dita, se considera a questão de um poder

subjetivo − como é a aura e seu valor de culto − a questão se torna tão complexa como é, para

algumas religiões, a representação da divindade: “Proibi a existência nos templos de qualquer

simulacro porque a divindade que anima a natureza não pode ser representada”.15 O simulacro

põe em cheque as dimensões subjetivas, reduzindo toda a profundidade de sentido a uma esfe-

ra visível, puramente material. É justamente nessa substituição de valores por uma aparência

vazia que se concentra o seu maior perigo, na ameaça de aniquilação da profundidade e do

verdadeiro pelo falso e superficial, sendo que “o que começa como uma interiorização defini-

da pela presença torna-se uma exteriorização afirmada pela ausência, o sólido é transformado

numa aparência oca” [tradução nossa].16

2. O simulacro aurático

Em um de seus artigos,17 Charlie Bertsch reúne argumentos para reconsiderar as ques-

tões da aura, propondo uma atualização da categoria de simulacro: o simulacro aurático. Para

tanto, se apoia na compreensão marxista da mercadoria como fetiche e na interpretação de

ideias presentes na troca de correspondência entre Benjamin e Theodor Adorno (1903-69).

Inserida na lógica do capitalismo, a equivalência entre o capital e a mercadoria, que

resulta na derrocada do valor único, já havia sido diagnosticada por Karl Marx (1818-83):

“como mercadoria, a identidade única de cada objeto pode ser mensurada através do capital e,

14 Mamata B. Herland, 2003; Harald Johnson, 2004. 15 Jean Baudrillard, op. cit., p. 11. 16 Charlie Bertsch, 2006, p. 14. 17 Charlie Bertsch, op. cit., p. 22.

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portanto, cada mercadoria pode ser substituída indefinidamente” [tradução nossa].18 E con-

forme a crítica de Adorno:

a autonomia da obra de arte e sua forma material não correspondem diretamente a elementos

mágicos. A aura não estaria necessariamente ligada à sua presença. Objetos autônomos podem

ser auráticos, mas não o são necessariamente [tradução nossa].19

Segundo Bertsch, o conceito de fetiche da mercadoria teve uma grande influência na

reflexão de Adorno, podendo ser pertinentemente considerado na construção de outro ponto

de vista sobre a questão da aura. Já que a reprodução mecânica exteriorizou e desencantou o

mistério interno dos objetos, algo ainda continuaria a manter o equilíbrio do mundo, funcio-

nando como uma espécie de substituto do elemento de culto mágico.

O conceito freudiano de fetiche designa o investimento psíquico num objeto inanima-

do como uma possível operação de desenvolvimento do ego frente ao medo da castração. A

projeção de uma “consciência” no objeto é seguida pelo esquecimento deste ato. Já na pers-

pectiva marxista, o processo de fetichização da mercadoria se torna definidor da relação social

entre os homens, atribuindo aspectos fantásticos na relação entre as coisas. Em ambas as idei-

as, o fetiche se coloca como um triunfo simbólico sobre as relações humanas, pois não há po-

deres maiores que os que as pessoas são capazes de criar e atribuir. Nas religiões tradicionais

a ideia de Deus é uma mera projeção do poder da coletividade. No capitalismo a mercadoria

concentra o poder do trabalho coletivo. O mistério que parece emanar da mercadoria é reflexo

do poder nela investido em resposta à autoalienação das capacidades do trabalhador.20

Deduz-se, então, que o valor de culto não emana do próprio objeto, mas da maneira

como as pessoas percebem a sua relação com ele. O conceito de aura simulacral determina as

diferenças entre o mundo encantado21que antecede a modernidade e o reencantado produzido

pela lógica da mercadoria. Assim, a destruição da aura é acompanhada pela construção de seu

simulacro, sendo que este deixa de ser compreendido como o duplo “negativo” de uma auten-

ticidade perdida. A aura deriva de uma presença e o seu simulacro de uma ausência. Quando

um objeto se converte em mercadoria na lógica capitalista, ele é completamente desconectado

de sua natureza física. Sua matéria e autenticidade podem ser substituídos indefinidamente

por quaisquer outras de valor equivalente. Benjamin parece não querer confrontar o feitiço

18 Id. ibid., p. 22 19 Theodor W. Adorno apud Charlie Bertsch, op. cit., p. 22. 20 Charlie Bertsch, op. cit., p. 22. 21 Os conceitos de encantamento e desencantamento foram pioneiramente desenvolvimentos pelo pensador ale-

mão Max Weber (1864-1920) no artigo "Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva" (1910) e no

livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (1920). Uma boa introdução ao assunto é fornecida tanto por

Antonio Flávio Pierucci em O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito (São Paulo: Editora 34,

2004) quanto por Carlos Eduardo Sell em Max Weber e a racionalização da vida (Petrópolis: Vozes, 2013).

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Entre aura e simulacro: o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 79

aurático da mercadoria com a aura tradicional derivada da presença. Nas condições atuais, há

cada vez menos esperanças de se ter contato com o natural, podendo as experiências serem

reproduzidas apenas sinteticamente. O autêntico corresponde à tradição natural, enquanto o

inautêntico corresponde ao sintético, ou seja, à tentativa de reviver a tradição por meios artifi-

ciais.

Paradoxalmente, o efeito da mercadoria é o de tentar diminuir a homogeneidade da re-

petição sobre o indivíduo. As pessoas têm a chance de projetar seus anseios sobre o inanima-

do ou o intangível. Para perceber a aura de um objeto, procuramos investi-lo com a habilidade

de refletir a nós mesmos. Neles projetamos nossa identidade, nossos gostos, desejos, prefe-

rências estéticas, culturais e sociais, assim como lhe atribuímos uma credibilidade histórica.

Temos a expectativa de nos cercar de elementos que ajudem a constituir e exteriorizar nossa

identidade no mundo exterior. Então, se há, de fato, diferença entre a aura e o simulacro, esta

só pode ser compreendida na mente das pessoas, em seus critérios pessoais ou naqueles esta-

belecidos por grupos de poder.

Esta colocação abre novas possibilidades para a compreensão da simulação imagética

(não só a impressa, mas também a imagem virtual, que se apresenta hoje na internet e redes

sociais em baixa ou alta resolução), na medida em que se considera a positividade da presença

de seu equacionamento técnico. É preciso levar em conta que objetos reproduzidos tecnica-

mente podem não ser totalmente descartáveis e apenas consumíveis como defendem alguns

estudiosos, mas também apresentar algum nível de resistência histórica.22

3. Dinâmica da renovação técnica

Para reconsideramos a simulação imagética, devemos lembrar que a introdução de no-

vas tecnologias – como, por exemplo, a cromolitografia, mais tarde a fotografia e, atualmente,

a impressão de arte digital, entre tantas outras – sempre encontrou resistência em setores tra-

dicionais. No entanto, com o decorrer do tempo e sua assimilação, ela estimula a abertura de

território para formas de expressão antes insuspeitadas. Tal interferência é capaz não só de

promover a experimentação e o desenvolvimento do novo, como também de renovar propos-

tas nas práticas mais tradicionais. Foi o que ocorreu com a pintura no fim do século XIX, a

partir da introdução da fotografia, que substituiu a função de registro da realidade e, em con-

22 Vale a pena consultar a respeito os livros Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da foto-

grafia (São Paulo: Hucitec, 1985), de Vilém Flusser, e Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológi-

cas (São Paulo: Edusp, 1993), de Arlindo Machado.

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sequência, fundou outras questões expressivas para ambas as linguagens, pavimentando o

caminho para a visão abstracionista.

O problema da relação entre as técnicas artísticas e as novas técnicas industriais se concretiza,

especialmente para a pintura, no problema dos diferentes significados e valores das imagens

produzidas pela arte e pela fotografia. Sua invenção (1839) e rápido progresso técnico [...] tive-

ram, na segunda metade do século passado, uma profunda influência sobre o direcionamento da

pintura e o desenvolvimento das correntes artísticas, ligadas ao impressionismo.23

Para o crítico estadunidense Jonathan Crary, as rupturas com os modelos clássicos da

visão no século XIX não podem ser separados de uma vasta reorganização do conhecimento e

das práticas sociais que, de inúmeras maneiras, modificaram as capacidades produtivas, cog-

nitivas e desejantes do sujeito humano.24

Alterações de padrões tecnológicos não devem ser vistas como elementos isolados que

influenciam mudanças, mas como parte dos indícios de um processo global constante e inin-

terrupto de mudanças de ordem filosófica, científica e tecnológica que se realiza de maneira

dinâmica e conjunta. Crary os identifica como uma pluralidade de forças e regras que com-

põem o campo da percepção, ou seja, uma montagem coletiva de partes díspares que, atuando

em uma única superfície social, significam um conjunto de acontecimentos relacionados que

tiveram um papel decisivo nos modos pelos quais a visão foi debatida, controlada e incorpo-

rada em práticas culturais e científicas, e delinearam um sujeito observador, a um só tempo,

causa e consequência da modernidade no século XIX.

Seguindo este modelo, no contexto atual, as novas tecnologias deslocam constante-

mente a visão para um plano que se torna, cada vez mais, dissociado do observador humano:

o da simulação no qual a formalização e a difusão das imagens geradas por computador anun-

ciam a implantação onipresente de “espaços” visuais fabricados, radicalmente diferentes das

capacidades miméticas do cinema, da fotografia e da televisão.25 A severa crítica contempo-

rânea aosimulacro pode assim ser encarada como uma maneira de resistir às transformações

23 Giulio C. Argan, 1988, p. 78. 24 Jonathan Crary, 2012, p. 13. 25 Jonathan Crary, op. cit., p. 11.

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Entre aura e simulacro: o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 81

tecnológicas e socioculturais que ainda não foram totalmente assimiladas ou compreendidas

em sua total extensão.26

Em teoria, reproduções industriais são feitas para serem consumidas e não para durar.

Baseado nesta premissa, o termo “efêmero” tem sido utilizado mais recentemente (a partir do

final da década de 1960) para designar estudos na área de história realizados a partir de do-

cumentos que tem relevância por curto período de tempo, referindo-se basicamente a todo

impresso “não livro” e indicando o seu limitado poder de permanência. Apesar de produzidos

em quantidade − podendo ter sido tiragens em massa na data de sua produção – poucos “efê-

meros”, como o próprio nome já diz, têm a chance de se perpetuar por um longo período. Po-

demos considerar, então, que está virtualmente embutida em cada exemplar a chance de que

venha a se tornar uma testemunha única de seu tempo. Os que conseguiram se perpetuar re-

presentam apenas a ponta de um iceberg do que deve ter existido outrora. A passagem do

tempo e o descarte progressivo transformam o múltiplo em único.

O apelo essencial da maior parte das formas efêmeras reside na sua fragilidade, na sua vulnera-

bilidade – ou mesmo na sua improbabilidade de sobreviver. Para muitos efemeristas, ter uma co-

leção é um ato de cavalheirismo – salvar, proteger, honrar e admirar.27

Os “efêmeros” vêm se tornando ferramentas significativas em pesquisas de cunho an-

tropológico e social. Graças a eles, podemos reconstituir peculiaridades de épocas pretéritas:

compreender, com um distanciamento histórico, como sociedades e culturas distintas manti-

nham determinados hábitos e lidavam com fatos corriqueiros, que podem ter sido negligenci-

ados pela história tradicional. Na área do design, o resgate destas amostras recupera também

uma diversidade de estilos, de visualidade, de métodos de reprodução, de qualidade gráfica e

de acabamentos. Impressos efêmeros passam, então, a ser valorizados por seu testemunho his-

tórico e adquirem um relativo valor simbólico que, na área do colecionismo, é chamado de

genius papyri, ou seja:

a alma e o espírito que reside no substrato de cada impresso efêmero, a permanente essência de

sua mensagem, conteúdo e origem. A evocação reside não apenas no traço e na forma das ima-

26 Na dissertação O impacto da giclée (Herland, op. cit.), comenta-se que nenhum dos museus interrogados na

pesquisa relatou reações negativas à impressão de arte digital, ao mesmo tempo em que são capazes de citar ar-

tistas conhecidos internacionalmente que fazem uso dessa tecnologia, como David Hockney (n. 1937), Richard

Hamilton (1922-2011), Robert Rauschenberg (1925-2008), entre outros. Alguns artistas, entretanto, ainda co-

mentam a dificuldade de aceitação da giclée. Enquanto Pedro Meyer diz que “Qualquer transformação cria mui-

tas reações negativas, a princípio”, James Faure-Walker defende que “impressores e galerias precisam proteger o

seu território. Há dez anos, a objeção era que elas eram feitas pela máquina e não pela mão, i. e. geradas por

computador [...] Atualmente se tornou uma discussão enfadonha, pois muitos artistas em voga fazem uso da gi-

clée.” e Stephen Shore completa: “Artistas fazem uso do que funciona para eles” (apud Herland, op. cit., pp. 31-

2 (tradução nossa). 27 Maurice Rickards, 1988, p. 15.

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gens e dos caracteres, mas na sua própria substância [...] que juntos encapsulam seu espírito.

Quando examinamos um efêmero, seu papel, tinta e textura (escutando ainda os ligeiros sinais

de seu manuseio), somos transportados ao momento de sua primeira aparição. [...] o componente

implícito de todo efêmero são os leitores que repousam sobre seus ombros [...] podemos ouvir as

suas vozes e momentaneamente nos inserir dentro delas [...] todos os que o observaram e manu-

searam antes também fazem parte do coração da matéria.28

Este conceito indica o relativo valor de culto que alguns impressos adquirem em de-

terminados contextos, principalmente quando se trata de produções manuais, de técnicas de

reprodução já obsoletas, ou mesmo as que foram executadas por artistas consagrados. Não se

pode negar que o ato de execução da reprodução, o engenho e a sensibilidade do técnico que

as executou também se situam no tempo e no espaço. O momento de origem e o “aqui e agora”

relativos ao impresso se constituem igualmente em marcos de autenticidade a serem transpor-

tados com a matéria. A maior parte das gravuras de arte feitas por processos manuais identifi-

cam o gravador no canto inferior direito da imagem, com a mesma deferência dada ao autor

da obra de referência, indicado tradicionalmente no canto inferior esquerdo. Desta forma, tan-

to o autor como o gravador relacionam-se com os conceitos de autenticidade, autoridade, tra-

dição, origem e duração.

Considerações finais

A grande sedução exercida pela confusão entre o original e seu simulacro é uma ques-

tão abordada desde a antiguidade. A descoberta do sombreado na pintura propiciaria ainda na

era pré-cristã as primeiras disputas entre pintores, a fim de consagrar a habilidade de pintar

mais realisticamente. Segundo alguns mitos gregos, o objetivo da pintura era a imitação da

natureza, a cópia simulada da realidade. O historiador romano Gaius Plinius Secundus (23-79

d. C.) – mais conhecido como Plínio, o Velho − relata a seguinte anedota no livro XXXV de

sua obra Historia natural:

Conta-se que Parrasio de Éfeso competiu com Zeuxis de Heraclea, a fim de eleger o melhor pintor ilusio-

nista. Quando Zeuxis retirou a manta que cobria sua pintura de uvas, estas pareceram tão convidativas, que

pássaros a cercaram, voando à volta da cena. Cheio de orgulho pelo julgamento dos pássaros, este se

apressou em descobrir a cortina que encobria a tela de Parrasio. Ao molhar os dedos com tinta fresca, deu-

se conta de seu engano (a cortina era a própria pintura) e concedeu a vitória a seu rival, porque enquanto

ele havia enganado os pássaros, Parrasio enganara a ele próprio, o artista.29

Não podemos deixar de abordar a referência filosófica fundamental que embasa a con-

ceituação do simulacro como algo negativo e enganador: a filosofia de Platão. O perigo ofere-

cido pela dificuldade da distinção entre o verdadeiro e o falso, que foi uma questão essencial

28 Maurice Rickards, op. cit., p. 17. 29 Artehistoria, www.artehistoria.jcyl.es/arte/contextos/2941.htm (tradução nossa).

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Entre aura e simulacro: o original e sua reprodução impressa sob uma perspectiva benjaminiana

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 71-85, 2016 83

na filosofia platônica, é abordado pelo pensador francês Gilles Deleuze (1925-95) em seu en-

saio30 “Platão e o simulacro”. Embora o registro desta leitura crítica se desenvolva no âmbito

propriamente filosófico, as implicações da compreensão conceitual são pertinentes ao nosso

tema de ressignificação dos impressos.

Segundo Deleuze, Platão coloca a importância de selecionar as linhagens, de distinguir

os pretendentes, os puros e os impuros, a coisa mesma e suas imagens, o original e a cópia, o

modelo e o simulacro.

“[...] (o mito) que permite erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes serão jul-

gados. [...] Distinguir a essência da aparência, o inteligível e o sensível, a ideia e a imagem, o

original e a cópia, o modelo e o simulacro. [...] de um lado as cópias ícones, do outro os simula-

cros-fantasmas. [...] é a ideia que compreende as relações e proporções constitutivas da essência

interna [...] o pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se conforma (inte-

riormente e espiritualmente) sobre a Ideia”.31

Assim, as raízes do que o simulacro procura representar não estão necessariamente no

objeto da pretensão, mas no próprio fundamento da ideia: “o simulacro implica grandes di-

mensões, profundidades e distâncias, que o observador não pode dominar. É porque não as

domina que ele experimenta uma sensação de semelhança”.32 É justamente na profundidade

do que o observador não domina que reside o poder de simulação. Ou seja, quanto menos dis-

tinguível for a aparência do pretendente e do objeto da pretensão, maior será o seu poder de

simulação.

Se toda cópia implica na diminuição de sentido e de superficialidade, está implícita a

resistência em aceitá-las. No pensamento inclusivo de Deleuze está a chave para que possa-

mos considerar a reversão do platonismo.

Para falar de simulacro, é preciso que as séries heterogêneas sejam realmente interiorizadas no

sistema, compreendidas ou complicadas no caos, é preciso que sua diferença seja incluída. [...]

Reverter o platonismo significa, então, fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os

ícones ou as cópias. [...] O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência posi-

tiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução.33

Os simulacros fazem parte do mundo complexo em que vivemos atualmente. Sua in-

clusão é o que possibilita a compreensão das diferenças, a transformação de padrões e o di-

namismo dos processos de significação.

[...] afirmar os simulacros será desprezar as exigências de pretensão impostas em função de mo-

delos externos supostamente superiores, e, neste lugar instalar o jogo pleno das potências, a su-

30 Intitulado originalmente em francês, “Renverser le platonisme”. 31 Gilles Deleuze, 1998, pp. 259-62. 32 Gilles Deleuze, op.cit., p. 264. 33 Id., ibid., p. 267.

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perfície do mundo – suas formas, seus eventos, sua visibilidade manifesta enfim – como simples

efeito desse jogo, efeito sempre em perspectiva, necessariamente múltiplo e mutável, jamais ab-

soluto ou definitivo. [...] Estes caminhos não são, aliás, o que devemos descobrir, mas aquilo que

podemos criar, de maneira que cada falsa estrada criada é a assunção de uma verdade. A arte,

lugar por excelência dos falsários, já de muito o sabia.34

Temos as diversas produções imagéticas, elaboradas, isolada ou combinadamente, se-

gundo as diversas técnicas pictóricas manuais; ou a partir de dispositivos de registro fotoquí-

mico, eletrônico, ultrassônico ou a partir de sínteses digitais, e a presença destas mesmas

técnicas (e outras) nos processos de elaboração de matrizes para a impressão de cópias simu-

lacrais.

A comunicação da humanidade, a constituição do patrimônio da cultura, assim como a

evolução de todas as ciências foi e continua sendo extremamente beneficiada pelas tecnologi-

as de reprodução da imagem, sejam elas “boas cópias” ou os “simulacros mais baixos”. Re-

verter o platonismo significa abraçar a todas, entendendo a pertinência e a adequação de cada

solução, no mundo complexo da pós-modernidade.

Between aura and simulacrum: the original and his printed re-

prodution over a benjaminian perspectiv

Abstract: The Benjaminian concept of aura (proposed in the 1930s) ascribed

special values to the unique original of the work of art, as opposed to the de-

struction of the aura established from its technical reproducibility. From the

perspective of the twenty-first century reality, we will try to gather argu-

ments capable of reframing the printed copy in the current context, through

the concept of "auratic simulacrum", the ephemerality of printed matter and

new printing technologies Which made the distinction between the original

and the copy even more diffuse. Our reflection will rely heavily on the con-

cepts of the fetish of the Karl Marx commodity and the simulacrum in the

visions of Jean Baudrillard and Gilles Deleuze.

Keywords: Aura. Original. Reproduction. Printed. Simulacrum. Ephemerals.

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ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992;

ARTEHISTORIA. Disponível em: <http://www.artehistoria.jcyl.es/arte/contextos/2941.htm>

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34 Alessandro Sales, 2004.

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Pragmatismo do disforme no Design

Talita Tibola

Barbara Peccei Szaniecki*

Resumo: Para Gilles Deleuze, o conceito de estilo não é uma forma que se

aplica posteriormente a uma matéria para dar-lhe determinada qualidade

estética ou ornamental. Estilo, em Deleuze, refere-se ao próprio processo

produtivo de signos. Neste artigo, propõe-se assumir o estilo em Deleuze

para pensar o design, do ponto de vista metodológico e ontológico, que está

compenetrado em processos criativos. O estilo, então, está associado a uma

pragmática, e não pode funcionar senão no interior de práticas concretas. Em

vez de pensar o designer como aquele que dota um mundo sem design de

formas, o caso aqui é abandonar o modelo hilemórfico, que cria uma

hierarquia entre forma e matéria, para desenvolver um design em processo

de interferências mútuas com o campo não-formalizado.

Palavras-chave: estilo, design, pragmática

1. Introdução:

Gilles Deleuze, na entrevista O abecedário de Gilles Deleuze1, constante do vídeo

realizado por Pierre-André Boutang e Michel Pamart, afirma que o seu interesse pelo conceito

de estilo está ligado a uma fascinação por tudo aquilo que emite signos. Não se trata de uma

questão de elegância, como poderia parecer pela pergunta de Claire Parnet, jornalista que o

entrevista no vídeo, sobre a elegância de sua mulher Fanny e de seu amigo Jean-Pierre. A

aproximação ou indiferenciação entre estilo e elegância feita por Parnet, segundo Deleuze,

não faz sentido já que também a não-elegância emite signos. Os signos não são acessórios que

adjetivariam a coisa, tornando-a mais ou menos elegante, mais ou menos bela.

O que importa no estilo, para Deleuze, é a capacidade de transformar determinada

sintaxe, causar um desvio nas linguagens, de criar uma nova linguagem no interior da

linguagem, enfim, propor novas sintaxes. Partindo da maneira que Deleuze, como também

dele em seu trabalho conjunto com Felix Guattari, desenvolve o conceito de estilo,

gostaríamos de refletir sobre a pertinência do conceito e do debate levantado em torno dele,

para o campo do design. Na medida em que, para os autores, o estilo não é apenas algo que se

somaria a objetos e linguagens, mas ferramenta em si mesma constituinte dos processos de

criação, o estilo está implicado na emissão de signos e estes participam das coisas, de sua

matéria constitutiva.

Pretende-se, portanto, a partir de uma reflexão sobre o estilo, discutir o design do

Pesquisadora Capes/PNPD no Programa de Pós-graduação da ESDI/UERJ. E-mail: [email protected] Professora da ESDI/UERJ. Doutora em Design pela PUC-RJ. E-mail: [email protected]

1Boutang, P.A; Pamart, M. L’Abécedaire de Gilles Deleuze. Paris, 1988.

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Pragmatismo do disforme no Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016 87

ponto de vista de uma pragmática. Em vez de um design que seria aplicado a um mundo

essencialmente sem design, onde o design dá forma à matéria “bruta”, um design que já é

participante ativo do mundo, já está implicado nos signos, mesmo quando não seja

usualmente chamado de “design”. Visto dessa maneira o design não seria apenas uma

aplicação, uma forma aplicada de fora; mas, em si próprio, um modo de pensamento com

efeitos de transformação no mundo. A pragmática permite assim trabalhar o design como

presente nas práticas, com o que se pode relacionar, no que se intervém, e a partir do que

ocorrem as transformações reais.

2. Estilo em Deleuze e Guattari, uma pragmática dos signos

Ao afirmar que não somente a elegância emite signos, Deleuze distingue-se do que

seria um entendimento dualista de estilo, baseado, por exemplo, na Retórica de Aristóteles. O

filósofo da antiguidade grega formula forma e matéria como categorias metafísicas, que

classificariam o ser. Isto também acontece na linguística de Ferdinand Saussure, base do

estruturalismo linguístico no século XX, em que todo signo estaria submetido a uma lógica da

linguagem e suas categorias de “significado”, “significante” e “referente”, cujo equilíbrio é

buscado no ato da expressão.

Para Deleuze, diferentemente de Aristóteles e da linguística saussureana, o estilo não

se manifesta simplesmente por meio de elementos formais da linguagem, que dariam forma à

matéria “bruta” das coisas. O estilo não diz respeito à beleza, à proporção ou equilíbrio, mas à

capacidade de desvio, de provocar derivas no real. Os signos têm essa força de determinar

“curvas” no ser, iniciando processos de criação/transformação. De certa forma, os conceitos

baseados na concepção dualista (forma e matéria) também têm seu fundamento numa idéia de

desvio. Mas o desvio ao qual faz referência o conceito clássico é apenas ornamental: “le style,

au moins depuis Aristote, se comprend comme un ornement formel défini par l’écart par

rapport à l’usage neutre ou normal du langage”2. Não se trata de um desvio constitutivo, que

transforma a coisa qualitativamente, como aquele relacionado ao estilo pragmatista em

Deleuze e Guattari, desvio este que desestabiliza a linguagem e apresenta novos elementos de

composição e sentido, para além de códigos significantes.

A noção mais tradicional de estilo se fundamenta sobre um outro tipo dualismo, aquele

entre linguagem e pensamento, que implica por exemplo que seja possível mudar a maneira

2 “O estilo, pelo menos a partir de Aristóteles, é compreendido como um ornamento formal definido pelo desvio

em relação ao uso neutro ou normal da linguagem”. (Tradução nossa). Compagnon, A. Le démon de la théorie –

littérature et sens commun. Paris, Éditions du Seuil, 1998. p. 182.

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Talita Tibola & Barbara Peccei Szaniecki

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que escrevemos uma frase sem mudar seu conteúdo. A mesma coisa poderia ser escrita de

diversas formas, onde o que define essa diversidade seria o estilo. Dessa maneira dualista, que

separa o “mesmo” da “diferença”, o desvio incidente não passa de um acessório, uma

mudança adjetiva que muda somente a forma da linguagem sem afetar a sua matéria (o que

Saussure chamaria de “referente” extralinguístico), um desvio que meramente procura

conferir mais elegância à escrita, à arte como qualificação do real (a arte reduzida a uma

categoria aplicada à realidade essencialmente não-artística). Isto na verdade repercute o que

Deleuze chama de imagem dogmática do pensamento, que se funda solidamente na identidade

(o “mesmo”), a partir do que se aplicariam categorialmente as “diferenças”, sendo impossível

uma diferença existir por si própria para além de alguma identidade anterior e pressuposta3.

Muito diferente disso, o desvio de que nos fala Deleuze, – herdeiro da tradição materialista do

“desvio mínimo” dos atomistas helenísticos4, – coloca em jogo a criação de uma sintaxe, e

desse modo, a consequente emissão de novos signos.

Além de contraposta a uma estilística tradicional, formalista ou funcionalista, o estilo

em Deleuze contrapõe-se a uma linguística saussureana, no qual todas as expressões do ser

estariam submetidas à lógica da linguagem. Estaríamos aprisionados a jogos e regras

estruturais da linguagem, por mais complexas que forem, para se produzir sentido. Na

afirmação de que “o importante no mundo é tudo que emite signos”5, Deleuze inclui

realidades que emitem signos sem serem linguísticas. A própria matéria emite seus signos,

que podem ser perseguidos, trabalhados, desenvolvidos, o que, em Mil Platôs, o autor com

Guattari chama de “phylum maquínico”, – no sentido que o carpinteiro funcionaria com a

emissão de signos da madeira, o surfista das ondas do mar, ou o músico das ondas sonoras. A

codificação dos signos segundo um sistema de linguagem, com suas articulações estruturais

entre significados e significantes, como teoriza Saussure, já constitui um segundo momento,

de captura, dessa emissão diretamente derivada da própria matéria:

Com efeito, o phylum maquínico ou a linha metálica passam por todos os agenciamento; nada

é mais desterritorializado que a matéria-movimento. Porém, essa comunicação de modo algum

se produz da mesma maneira, e as duas comunicações não são simétricas. Worringer dizia, no

domínio estético, que a linha abstrata possuía duas expressões muito diferentes, uma no gótico

bárbaro, a outra no clássico orgânico. Diríamos que o phylum tem simultaneamente dois

modos de ligação diferentes: é sempre conexo ao espaço nômade, ao passo que se conjuga ao

espaço sedentário. Do lado dos agenciamentos nômades e das máquinas de guerra, é uma

espécie de rizoma, com saltos, desvios, passagens subterrâneos, caules, desembocaduras,

3Deleuze, G; Diferença e repetição; Rio de Janeiro: Graal, 1988. 4Serres, M.; O nascimento da física no texto de Lucrécio; correntes e turbulências; São Paulo: ed. UNESP,

2003.

5Boutang, P.A; Pamart, Op. Cit.

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Pragmatismo do disforme no Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016 89

traços, buracos etc. Mas, no outro lado, os agenciamentos sedentários ou aparelhos de Estado

operam uma captura do phylum tomam os traços de expressão numa forma ou num código,

fazem ressoar os buracos conjuntamente, colmatam as linhas de fuga, subordinam a operação

tecnológica ao modelo do trabalho, impõem às conexões todo um regime de conjunções

arborescentes6.

Deixando um pouco de lado a profusão de conceitos da passagem citada, o par

desdobrado por Deleuze e Guattari, entre a conexão do phylum ao espaço nômade (da

criação), e a conjugação dele ao sedentário (da codificação/categorias, da captura), se dão as

estratégias e pragmáticas que são colocadas em jogo pelo estilo. Porque, nessa filosofia

imanentista, além das cadeias semióticas significantes normalmente descritas e estudadas nas

linguísticas estruturais, é possível formar-se diretamente no espaço nômade cadeias

semióticas assignificantes. Ou seja, libertadas das regras dos significantes, não enquadradas

em nenhum regime de signos específico7. É essa assignificância que permite a constituição de

novos sentidos, novas organizações do mundo, a criação de novos estilos, sem passar pelo

filtro da linguagem e seus “agenciamentos sedentários ou aparelhos de Estado”. Tem-se assim

um estilo para escapar das capturas, para fazer escapar pedaços do real e da linguagem.

Deleuze dá algumas pistas sobre essa escapada ontológica por meio de experiências como a

meditação, o uso de psicotrópicos, as mudanças atmosféricas, – situações em que se

produzem alterações corporais/mentais e não se está preso à interpretação e à busca de

significados, quando a constituição da realidade é colocada em jogo por uma própria

diferença de disposição e abertura dos corpos. Esta é a zona intermédia, também, onde opera

o estilo, na arte, no design, numa pragmática criativa.

O conceito de estilo desenvolvido por Deleuze e Guattari está ligado à potência de

intervenção para além da linguagem, linha de problematização persistente nos estudos de

ambos os autores. Ao invés de trabalhar a partir do dualismo saussuriano significado x

significante, que separa de modo binário o que é propriamente lingüístico (significante) do

que não é lingüístico (significado), eles vão propor uma pragmática dos signos que retiram a

primazia necessária do significane, para pensar uma potência de transformação, um desvio

incidente sobre a matéria sem que se projete sobre ela uma forma, categoria ou função

preexistente. A linguagem seria impossível de ser pensada sem as transformações que se

provocam nela por meio dos signos materiais. Exemplo recorrente na obra dos autores para

referir-se a esse fenônemo, é a a fala do juiz que, ao proferir a sentença “culpado“, não está

somente passando uma informação, mas performando a transformação do corpo do réu em

6Deleuze, G; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 5; São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 99, 100.

7Deleuze, G; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2; São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 27, p.16.

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Talita Tibola & Barbara Peccei Szaniecki

90 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016

oficialmente culpado, com efeitos diversos apenas a partir dessa transformação8.

A pragmática que propõem Deleuze e Guattari está ligada a uma tentativa de sair de

um domínio autoritário da linguagem, a partir da proposição de que todo enunciado tem uma

dimensão performática, uma engrenagem implicada em usos e funcionamentos. Como diriam

eles: de agenciamentos do real, de processos onde o enunciado, mais do que significar ou

comunicar, ele funciona, age, suscita.

a pragmática deixa de ser uma "cloaca", as determinações práticas deixam de estar submetidas

à alternativa: ou se voltar para o exterior da linguagem, ou responder a condições explícitas

sob as quais elas são sintaxizadas e semantizadas; a pragmática se torna, ao contrário, o

pressuposto de todas as outras dimensões, e se insinua por toda parte;9

Em consequência, as coisas não têm sentido em si, são sempre relacionais. Mas não

para por aí, no deslocamento da identidade para a relação constitutiva. Afinal, também para

Saussure a linguagem também é relacional e coletiva. O que importa nesse pragmatismo é que

as coisas sejam também produtivas, que produzam transformações. Se, para Saussure, a

língua tende à repetição, necessária para a compreensão a partir da linguagem, e devidamente

codificada como uso social das regras e ligações; Deleuze e Guattari vão estar interessados na

diferença que ocorre em meio repetição. A diferença não acontece por causa da falta de

repetição (ao não repetir, difere), surgindo-se o novo do nada. Na inversão deleuziana da

lógica da identidade, é a própria repetição que precisa subtrair em certa medida a diferença

para ocorrer, porque a diferença é primeira e é ela quem possibilita que algo se repita em

primeiro lugar. Sem a capacidade da diferença assumir muitos graus, até o grau mínimo da

repetição, haveria apenas um perpétuo fluxo heraclitiano infinitamente diversificado e

complicado. A repetição é a menor medida pelo que a diferença se exprime. A modulação

desse fluxo, isto é, as várias tonalidades e graus que a diferença pode assumir, é o que define

o estilo, quando pensado como imanente a processos criativos, expressivos, diretamente

implicados na própria matéria viva.

Em contraposição à dupla significado × significante de Saussure, na qual conteúdos

(significados) precisam tomar uma forma (significante) para serem expressos, segundo

Deleuze e Guattari haveria matéria e forma tanto de conteúdo quanto da expressão. Essa

proposição contrasta não só com Saussure, mas com qualquer modelo hilemórfico, baseado na

divisão forma-matéria, como por exemplo corpo – alma, matéria prima da arte – forma da

arte. Para os autores, a própria matéria já tem seus feixes de expressão10, ou melhor,

8 Ibidem, p.20

9 Ibidem, p. 15 10Deleuze, G.; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 1997.

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Pragmatismo do disforme no Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016 91

poderíamos falar – como sublinha Ingold11, -que seria mais apropriado nos referirmos a

materiais e formas.

3. Teoria e prática: forma, matéria, ornamento

Junto a outras disciplinas, como direito, dança, teatro, comunicação, administração,

museologia, o design é classificado, nas distinções disciplinares do Ministério da Educação

(MEC), como uma ciência social aplicada. A noção de “aplicação” em ciência parte de uma

divisão entre um saber prático (aplicado) e um saber teórico (filosófico, abstrato), separação

esta, também herdeira da divisão hilemórfica aristotélica. Para falar com Vilém Flusser, um

mundo em que os fenômenos, por como o percebemos com nossos sentidos, são “uma geléia

amorfa por trás da qual encontram-se ocultas as formas eternas, imutáveis, que podemos

perceber graças à perspectiva suprassensível da teoria.”12

A insistência na não separação entre forma e matéria é um dos motivos pelos quais o

conceito de estilo pode ser fecundo para uma reflexão a partir do design. Ao questioná-la,

Deleuze e Guattari estão questionando também uma moldagem hierárquica da matéria e

“mantida através da lei”13. É seguindo a trilha aberta por Gilbert Simondon que eles vão

afirmar que é a ideia de lei que garante a coerência do modelo hilemórfico, “já que são as leis

que submetem a matéria a tal ou qual forma, e que, inversamente realizam na matéria tal

propriedade essencial deduzida da forma”14. Para Simondon, o problema do modelo

hilemórfico seria “considerar a forma e a matéria como dois termos definidos cada um de seu

lado, (...) a exemplo de uma simples moldagem, sob a qual já não se apreende a modulação

contínua perpetuamente variável15. A importância é inverter essa lógica hierárquia, para

pensar a modulação (diferentes graus internos à matéria, que se forma por si mesma), e não a

moldagem prévia, que seria aplicada como forma a uma matéria, uma forma que vem de fora.

Por exemplo, o artista ou designer como provedores de forma ao disforme, seguindo a

concepção cristão-criacionista de Deus que sopra sua forma divina para dar à matéria a forma

humana. O artista ou designer aparecem assim como “pequeno deus” que realiza o milagre da

criação num mundo originalmente disforme e sem qualidades.

Se transpusermos o raciocínio para o caso do urbano – que, como afirma João de

11Ingold, T. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. In:

Horizontes antropológicos. Porto Alegre: Jan/Junho, 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-

71832012000100002

12Flusser, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, 2007. p26

13Deleuze , G; Guattari, F., Op. Cit, p. 90. 14Ibidem.

15Ibidem, p.91.

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Talita Tibola & Barbara Peccei Szaniecki

92 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016

Souza Leite16, é onde podemos perceber o design em toda sua complexidade, a partir da

constituição, pelos modos de vida das pessoas, dos artefatos e espaços que criam para si – a

reprodução contemporânea do modelo hilemórfico pode ser percebida no planejamento

hierárquico, urbanístico ou arquitetônico, aplicado sobre os territórios que têm seus próprios

agenciamentos e espaços nômades, seu próprio phylum maquínico no que se podem conectar

outras práticas. Isto significa a busca planificadora realizada apenas a partir de traçados de

ruas, de geometrias diretoras ou mesmo de planos econômicos, ou seja, de alto para baixo, de

fora para dentro, sem considerar as múltiplas histórias que constituem, pelo seu próprio

movimento, o espaço. É pensar o espaço urbano como um vazio de formas à espera do

planificador, em vez de trabalhar com o espaço nômade, o espaço como matéria-movimento

em que o disforme emite signos independente de códigos estabelecidos.

Considerando desse modo a história da cidade, e não apenas o traçado de suas ruas,

mas “da vida das pessoas, dos agrupamentos sociais, com tudo que dela faz parte: suas

identidades, seus hábitos, seus modos vários de produção tangível e simbólica, seus padrões

de consumo, seus objetos, os pertences coletivos e individuais, o público e o privado”17, tem-

se uma compreensão da cidade que se dá por um projeto não centralizado. Não se está nesse

movimento apenas levando em conta mais elementos para a constituição do urbano, mas

consideram-se os próprios elementos em formação.

É por isso que, ao propor um olhar descentralizado, o que se tem não é o

desaparecimento do projeto, o que se poderia argumentar dada a sua falta de direcionalidade

(verticalidade), mas um projeto intrínseco ao próprio crescimento não-linear do urbano, um

projeto de outra natureza. Não se tem um projeto como modelo, mas como processo, a

trabalhar-se com ele. Nesse contexto em que o projeto passa, de maneira difusa, a ser um

elemento presente na própria criatividade da metrópole18 o que se chama estilo, não é um

fator ornamental, mas os diversos modos de emergência desse processo.

Ao mesmo tempo que não se trata apenas de um fator ornamental, tampouco é apenas

uma prática pura, separada de qualquer reflexão, ou ligada “aridamente” a um funcionalismo

(por exemplo, urbanístico, típico de Plano Diretor). Quando Deleuze e Guattari referem-se a

uma pragmática da linguagem não se referem a um puro funcionalismo. Como afirma

Portugal, se não coloca o campo da aparência como separado daquele da função é por

16Souza Leite, J., “A noção de projeto como racionalidade transdisciplinar. Um plano de estudos para a situação

brasileira”. In: Textos selecionados de design. Rio de Janeiro: PPDESDI, 2013. pp. 31-45, p.32

17Ibidem, p.33

18Szaniecki, B. Disforme contemporâneo e design encarnado: outros monstros possíveis.Tese de doutorado.

Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2010.

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Pragmatismo do disforme no Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016 93

simplesmente não reconhecer sequer o primeiro. Portugal mostra uma “inclinação

funcionalista avant la lettre” no platonismo, que é uma tendência hilemórfica, ao propor que

“a perfeição de um utensílio se mede pela adequação à função para a qual ele existe”.

Mostrando que, enquanto Platão “rejeita as aparências por que opõe a elas o plano superior

das essências”, o funcionalismo presente em escolas de design, ao não acreditar em tal plano

superior, “resulta apenas em um árido pragmatismo materialista e em uma exaltação da

eficácia”19, Haveria no entanto, como pensarmos um pragmatismo que incorpore as

aparências como elemento constitutivo?

4. Função imanente

A noção de estilo em Deleuze e Guattari foi bastante influenciada pelo pragmatismo

de William James. James em seus estudos do pragmatismo, por sua vez, foi fundamental para

a teorização de diversos funcionalismos em diferentes campos do conhecimento. Em

psicologia, por exemplo, passa-se da análise da experiência imediata para uma análise

funcional. Não será mais a experiência direta a ser analisada, mas, considerando que a

verdade não existe em estado anterior, mas somente na prática, poderemos apreender dela

somente os seus efeitos, as consequências da ação. É assim que o pragmatismo pressupõe

... extrair de cada palavra o seu valor de compra prático, pô-lo a trabalhar dentro da corrente

de nossa experiência. Desdobra-se então menos como uma solução do que como um programa

para mais trabalho, e mais particularmente como uma indicação dos caminhos pelos quais as

realidades existentes podem ser modificadas [...] As teorias assim tornam-se instrumentos e

não respostas aos enigmas, sobre as quais podemos descansar20

Apesar desse viés aberto de uma metodologia que se coloca como não relacionada à

busca da verdade, mas da sua constituição na prática e de práticas; várias vertentes do

funcionalismo vão inspirar-se no pragmatismo e em sua análise dos efeitos da ação na

realidade. No entanto, no pragmatismo jamesiano a ação é constituinte e não é separada de

onde se dá. Acontece numa afetação entre aquele que age e o meio onde acontece a ação.

Como diria Vinciane Despret, a partir de obra de James, num processo de afetar e ser afetado.

Já na busca de adaptabilidade (funcionalismo) o meio ao qual é preciso adaptar-se já está

dado, eliminando o caráter imanente do que seria avaliado como uma “função adequada”. A

função adequada só pode se dar concomitantemente. É nesse sentido que a forma não

prescinde da função, mas ao mesmo tempo, não a precede. Forma e função só podem ser

19Portugal, D. B. Sobre Sócrates e Alces. In. Mizanzuk, I; Portugal, D. B. ; Beccari, M..Existe design? :

indagações filosóficas em três vozes. Teresópolis, RJ : 2AB, 2013. pp. 25 – 32. p. 30.

20James, “Pragmatismo” In: Os Pensadores.São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.20

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Talita Tibola & Barbara Peccei Szaniecki

94 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016

pensadas de forma imanente.

O que importa destacar, neste breve digressão, é que o pensamento pragmatista já traz

uma alternativa ao modelo hilemórfico para quem forma e função surgem como instância

transcendente, que chega numa matéria disforme ou disfuncional à espera do Criador e seus

apóstolos. Isto indica uma linha de ressonância entre um design pensado para processos

produtivos e criativos que não se separam dos territórios do urbano ou de usos e

funcionamentos coletivos, e essa filosofia em que a ação é constituinte do real, mais do que

um elemento a posteriori.

5. Considerações finais

Iniciamos falando que estilo não se trata de ornamento, acessório, adjetivo. O estilo

está em tudo aquilo que emite signos, como distintos graus por meio do que a diferença se

exerce continuamente. Não há estilo e não-estilo, como não há arte e não-arte, mas um

gradiente contínuo, uma sucessão de limiares, em que os casos extremos são apenas graus

máximos ou mínimos de uma tensão que atravessa a produção do mundo. Nesse sentido,

trabalhar o estilo consiste numa peça para uma estratégia que possa provocar desvios no real,

transformações, criações. Com isto, se escapa do modelo hilemórfico, onde formas e funções

se aplicam sobre a matéria. Quando, aqui, se fala em “função adequada”, está se considerando

uma pragmática estilística.

O desvio ao qual se referem Deleuze e Guattari pode ser pensado como o encontro da

estética com um modo de pensar, visto dessa maneira, o design não seria apenas uma

aplicação, mas um elemento de pensamento implicado, com efeitos de transformação no

mundo. E nessa operação para além do hilemorfismo, funcionará por modulações, conexões,

práticas, pela capacidade de intervenção no mundo por parte do design.

O que está em questão não é adaptar-se ao mundo que nos precede, produzindo

utilidades para espaços que já estão dados. O design tem, pelo contrário, a possibilidade de

projetar novas espacialidades, desenvolver outros agenciamentos, escapar das capturas e

potenciar as transformações nos processos. Noutras palavras, contribuir para viabilizar

emergências.

Pragmatics of formless in Design

ABSTRACT: For Gilles Deleuze, the concept of style isn´t a form to be

enforced a posteriori to a preexistent matter, in order to give it a certain

aesthetical or ornamental quality. Within Deleuze, style refers to the signs’

production process itself. In this paper, Deleuze´s concept of style is adopted

to think design, in onthological and methodological perspective, directly

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Pragmatismo do disforme no Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 86-95, 2016 95

interpenetrated in creative processes. The style, thus, is related to a

pragmatics and can not work other than within concrete practises. Rather

than thinking the designer as those who gives forms to a designless world,

here the idea is leaving behind hilemorphical model, that forges an hierarchy

between form and matter, in order to develop a design in constant mutual

interferences with a non-formalized field.

Keywords: Style. Design. Pragmatics.

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96 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design:

fenomenologia do projetar e teoria da ação

Eduardo Camillo K. Ferreira

Resumo: O trabalho procura introduzir uma epistemologia do design de

cunho fenomenológico. Calcado especificamente nos textos e pensamentos

de Edmund Husserl e sua fenomenologia, esclarecemos alguns conceitos

usados no trabalho, especificamente de mundo de vividos, e de atitudes

frente ao fenômeno. Com isso, conduzimos uma análise da ideia de projeto

propondo uma ontologia fenomenológica ao projetar como uma atitude

frente ao mundo, e que deriva diretamente da atitude natural, extrapolando

suas características realistas. Introduz ainda a possibilidade de

desmembramento da análise por via de uma teoria da ação, que auxiliaria

entender parte das consequências de tal atitude projetual para a área do

design.

Palavras-chave: ontologia fenomenológica do projetar, design e projeto,

teoria do design.

1. Introdução e justificativa

A literatura teórica do Design possui esparsos registros de aproximações com a

fenomenologia se comparado com outros braços das ciências humanas, em geral se

restringindo a análises de projetos, como auxílio à fase de pesquisa, ou a aproximações para

tomá-la como parte da metodologia projetual. Olhares de caráter epistemológico ao campo

(no sentido de compreensão da natureza do design, de sua definição ou constituição, ou seja,

uma epistemologia do design de viés fenomenológico), no entanto, ainda são raros, sendo

esta justamente a possibilidade que se nos mostra como uma das mais frutíferas atitudes

fenomenológicas sobre o campo (senão a única, de princípio), e será esse ponto que

apresentaremos neste texto.

Na definição para a fenomenologia como "ciência de 'fenômenos'"1 ou "ciência

'eidética'"2, Husserl acaba por localizá-la como a ciência que por direito estuda a

intencionalidade e os objetos intencionais a partir do ponto de vista da própria consciência.

Diferencia-se de qualquer análise ou ciência de abordagem "natural", ou seja, de realidades

e factualidades. O ponto do autor é fornecer por meio dessa ciência de essências uma base

epistemológica que nem o empirismo puro ou positivismo empirista conseguiram (como se

pode ver em seu argumento quanto ao fracasso do empirismo3). A suspenção de qualquer

julgamento de existência no sentido de empreender um questionamento metódico do

fenômeno (p.80), como simulação e não como questionamento efetivamente ontológico do

Mestrando em Arquitetura na FAU/USP. Bacharel em Design pela FAU/USP.

1 HUSSERL, E. (1913) Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, tradução de Márcio

Suzuki. 2ª Ed., Editora Idéias & Letras: São Paulo, 2006, p.25

2 HUSSERL, Op.Cit., p.28

3 HUSSERL, Op.Cit. p. 61-72

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Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016 97

objeto fenomenológico, assim como para afastar-se de toda factualidade necessária para uma

análise não situacional e sim essencial4.

As ideias de intencionalidade, essência, objetos intencionais, consciência, e outras

trazidas pela fenomenologia nos fizeram crer numa possibilidade interessante de análise

sobre o design desde 2009, quando iniciamos nossa aproximação a essa corrente filosófica.

Apenas recentemente, no entanto, aventou-nos a possibilidade de, ao invés de olhar o design

ou atividades do design em si, olhar a atitude projetual como possibilidade frutífera de

análise fenomenológica, e por meio do “projetar” chegar no design (e ao mesmo tempo,

olhar as demais áreas tradicionalmente projetuais, como arquitetura, engenharia etc.).

Respaldamos nosso empreendimento na própria ideia de Husserl para a fenomenologia em

relação às ciências: possibilitar a construção de um terreno mais firme e seguro apenas pelo

fato de compreender-se aspectos da ontologia regional que compreende determinado campo

(elucidaremos esse ponto alguns parágrafos adiante).

O objetivo do presente trabalho é lançar tal aproximação a público com a única

finalidade de levantar opiniões e críticas e promover o debate com outros pesquisadores, a

fim de validá-lo e avaliá-lo em suas possibilidades. Trata-se de uma teoria em estágio

embrionário, e espera-se que no certame em questão encontraremos um retorno frutífero

sobre a mesma. Cabe ainda notar que muito provavelmente boa parte das visadas sobre o

fenômeno do projetar, ou do design do ponto de vista da fenomenologia projetual, não serão

contribuições inéditas ao que já se afirmou a respeito de ambos. Isso pois, assim como afirma

Husserl, a fenomenologia não invalida as constatações já feitas pelas ciências de fato quando

em atitude natural, senão antes organiza tais constatações fundamentadas nos fluxos de

consciência e essências dos fenômenos em questão. Então, se constatações se repetirem, é

não necessariamente por demérito dessa abordagem em reproduzir conceitos, senão antes por

mérito próprio dos que vieram antes e desenvolveram consciência eidética da área projetual

e do design.

Cabe ressaltar que não realizaremos uma introdução à fenomenologia aqui. Para tal

finalidade, encaminhamos o leitor às obras de Salanski5, Sokolowsky6, Moran7, Spiegelberg8,

e aos próprios originais de Husserl, e demais autores tradicionais da área. E da mesma

maneira, o vocabulário usado no trabalho é o vocabulário técnico da fenomenologia. Termos

como "intuição", "momento", "visada", "vividos", etc., estão em seu significado na

fenomenologia, e não no sentido social comumente utilizado.

2. Revisão bibliográfica: fenomenologia na literatura do design

A possibilidade frutífera de aproximar a fenomenologia do design se reflete,

certamente, na variedade (que não deve se confundir com quantidade) de abordagens

produzidas em cima dessa ideia.

4 MORAN, D. Introduction to Phenomenology. London & New York: Routledge, 2000, p. 132-133

5 SALANSKI, J-M. HUSSERL. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2006

6 SOKOLOWSKY, R. Introdução à Fenomenologia. São Paulo: Editora Loyola, 2004

7 MORAN, Op.Cit.

8 SPIEGELBERG, H. The Phenomenological Movement: A Historical Introduction, 2nd edition, vol. 1 and 2, The Hague:

Martinus Nijhoff, 1965

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Eduardo Camillo K. Ferreira

98 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

O levantamento bibliográfico nos apresenta quatro abordagens distinstas baseadas na

fenomenologia, variando conforme leitura da teoria e resultados almejados. 1. Há,

primeiramente, uma fenomenologia de caráter Hermenêutico, onde o entendimento da

vivência do usuário seria o foco do problema e a descrição fenomenológica um dos principais

meios de alcançar o mesmo; 2. Há outra de viés cognitivo e perceptivo, onde

desenvolvimentos analíticos da relação do corpo, percepção e design são os principais pontos

de interesse, e tornam-se base à projetação, não enquanto método, mas enquanto insumo ao

projeto. 3. Há, ainda, o viés metodológico, onde aproveita-se da própria metodologia

desenvolvida na escola filosófica para se desenvolver de maneira análoga; 4. E por fim,

encontramos um viés epistemológico, que toma a fenomenologia não como fornecedora de

insumos, nem como método projetual ou hermenêutico, senão como base filosófica para a

constituição de uma epistemologia do campo, proposta da qual nossa linha de pensamento

mais se aproxima.

Para a primeira abordagem, o autor Bernard Bürdek, em Design: História, Teoria e

Prática9, dedica um tópico do capítulo "Design e Metodologia" a como a Fenomenologia,

junto da Semiótica e Hermenêutica, influenciou a prática do design e em quais contextos se

materializaram. A aproximação de Bürdek, no entanto, restringe-se também a investigação

da experiência do usuário:

Como método fenomenologico pode ser designado um procedimento onde se procura

entender a vida das pessoas de forma integral, com a inclusão do dia-a-dia e do ambiente.

Apenas com mergulho no mundo da vida diária é que se pode compreender os objetos da vida

diária10

Os exemplos seguidos pelo autor são análises do uso e impacto do Walkman, do

controle remoto, materiais, entre outros na vida de usuários. Não há menção, entretanto, a

qualquer possível estudo epistemológico do design ou do projetar sob o olhar

fenomenológico.

Na mesma linha da proposta de Bürdek, alguns artigos no Journal of Engineering

Education utilizam uma abordagem fenomenológica que chamam por Phenomenografia 11

para entender aspectos internos de pessoas sobre determinados assuntos (termo

possívelmente mais adequado a tratar de análises de objetos sob a intencionalidade de outrém

do que o uso de Bürdek e autores comentados sob o nome da Fenomenologia). Outro exemplo

foi encontrado também no Call for chapters de um livro sobre Filosofia do Design, feito pelo

autor Stéphane Vial, onde este elencou a fenomenologia como parte dos possíveis assuntos

a serem abordados, descrevendo dessa maneira: “(...) phenomenology of design: the use of

hermeneutics in design processes and in design projects considered as lived experiences”12.

9 BÜRDEK, Bernard. Design: História, Teoria e Prática do Design de Produtos. 1ª Ed. São Paulo: Editora Blucher, 2006

10 BÜRDEK, Bernard. Op.Cit, p.240

11 DALY, S.; ADAMS, R.; BODNER, G. What does it Mean do Design? A Qualitative Investigation of Design

Professionals' Experiences, in Journal of Engineering Education, April 2012, vol. 101, No. 2, pp. 187-219

12 VIAL, S. Call for chapters // Philosophy of Design: An Exploration // Edited volume at Springer [mensagem de fórum

online]. Publicado em 7 Mai 2015. Acessado em 20 Mai 2016. Disponível em: https://www.jiscmail.ac.uk/cgi-

bin/webadmin?A2=ind1505&L=PHD-DESIGN&P=R4060&1=PHD-

DESIGN&9=A&J=on&d=No+Match%3BMatch%3BMatches&z=4

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Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016 99

Na segunda abordagem, focada na percepção, vemos no design de interações uma

grande quantidade de pesquisas em cima do trabalho de Maurice Merleau-Ponty13 sobre

percepção, corpo e interação ("embodied interaction"), onde a própria fenomenologia estaria

nas bases de teorias de Human-Computer Interaction (HCI). Essa abordagem pode ser

encontrada em alguns trabalhos como o de Paul Dourish14, ou de Smyth15, entre outros. O

foco, entretanto, de tais pesquisas reserva-se à observação fenomenológica da percepção (e

por isso derivam diretamente de Merleau-Ponty), e das consequências para a interação

humano-máquina dessa perspectiva. Existem diversas pesquisas da área de arquitetura nesse

mesmo caminho de análises perceptivas (como Wang, D. & Wagner16).

No Brasil, encontramos duas situações onde a terceira abordagem, metodológica,

aparecem no P&D Design. Na edição de 2008, foi publicado o trabalho Design e

fenomenologia: pensando o método por meio de uma leitura sobre experiência, vivência e

intuição, de Rodrigo Gonçalves dos Santos17. No P&D Design de 2014, Wagner Bandeira e

Cleomar de Sousa Rocha apresentaram o artigo A Fenomenologia como Método de

Investigação do Design de Experiência18. Em ambos os casos, a abordagem é explicitamente

metodológica. No primeiro caso, Santos afirma que: "Podemos, então, considerar a

fenomenologia como base filosófica de um possível método que visa a percepção dum objeto

na sua globalidade, tal como ele se apresenta fisicamente à consciência"19. A fenomenologia,

ciência de essências, seria a maneira de sair do metodologismo cientificista do pós-guerra

para retornar às coisas mesmas e às perguntas necessárias a projetar tais coisas. Utilizando-

se especificamente de Merleau-Ponty, o autor não chega a sugerir a metodologia de fato,

senão antes indica a fenomenologia como interessante possibilidade.

O mesmo acontece no trabalho de Bandeira & Rocha20. No viés do Design da

Experiência, os autores utilizam-se também de Merleau-Ponty (embora seja o Merleau-Ponty

comentando Husserl, mais do que o trabalho do próprio autor) para construir a ideia de uma

metodologia para avaliação e alcance nalgum nível da UX (User Experience) do ponto de

vista do próprio usuário, mas também não concretizam a proposta metodológica. A menção

a Donald Norman talvez insinue que a abordagem seria próxima da psicologia

fenomenológica, e não tanto pela metodologia filosófica em sí.

13 MERLEAU-PONTY, M. (1945) Fenomenologia da Percepção, tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Coleção

Biblioteca do Pensamento Moderno, 4ª ed., São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011

14 DOURISH, P. Where The Action Is: The Foundations of Embodied Interaction, MIT Press: EUA, 2011

15 SMITH, M. Haunting Space - The Role of the Body in Design Interaction. In Proceedings of the 7th International Design

Conference, Dubrovnik, 2002. ISBN 953-6313-45-6

16 WANG, D. & WAGNER, S., A Map of Phenomenology for the Design Disciplines, in Environmental & Architectural

Phenomenology, vol.18, 2007 p. 10

17 SANTOS, R. G. Design e Fenomenologia: pensando o método por meio de uma leitura sobre experiência, vivência e

intuição, in Anais do 8º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design [=P&D Design 2008], São Paulo:

2008

18 BANDEIRA, Wagner; ROCHA, Cleomar de Sousa; a fenomenologia como método de investigação do design de

experiência, p. 1167-1177 . In: Anais do 11º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design [= Blucher

Design Proceedings, v. 1, n. 4]. São Paulo: Blucher, 2014. ISSN 2318-6968, DOI 10.5151/designpro-ped-00400

19 SANTOS, R. G. Design e Fenomenologia: pensando o método por meio de uma leitura sobre experiência, vivência e

intuição, in Anais do 8º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design [=P&D Design 2008], São Paulo:

2008

20 BANDEIRA, Wagner; ROCHA, Cleomar de Sousa; Op.Cit.

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Eduardo Camillo K. Ferreira

100 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

Por fim, para a quarta abordagem temos como exemplo o caso do mestrado de Marcos

Namba Beccari21, calcado nos estudos do Imaginário, de influência junguiana. Apresenta a

fenomenologia como uma das bases tanto ao próprio imaginário, quanto à teoria do

conhecimento que calca o estudo (no caso, a Teoria do Conhecimento de Hessen22). No

entanto, o foco do trabalho não está nas implicações e análises fenomenológicas diretamente

sobre o campo.

3. Novo aporte: fenomenologia como ontologia e não como insumo projetual

Do levantamento realizado, nossa proposta aproxima-se especialmente do quarto

ponto (visada epistemológica da fenomenologia por sobre o design), embora a abordagem

geral torne-se bastante diferente pela nossa tentativa de entendimento ontológico do projetar

pela fenomenologia, ou seja, qual a constituição do projetar, ou qual sua estrutura de

acontecimentos23. Assim, nossa linha será totalmente calcada na fenomenologia, mais

especificamente nos escritos de Edmund Husserl e comentadores. Nalgumas passagens,

comentamos sobre outros autores que se apoiam em Husserl para suas teorias, como será o

caso de Paul Ricoeur e Jean-Paul Sartre, sem fugir do autor original.

Curiosamente, a proposta de Santos24 aproximou-se dessa maneira de olhar o design,

mas não desenvolveu-a. Podemos perceber isso no trecho onde diz que a:

(...) metodologia clássica do design ocupa-se quase que exclusivamente dos métodos de ação

física (amplamente documentados), enquanto que até hoje não se trabalhou uma descrição

extensa dos métodos de ação intelectual no design. Descrever os métodos de ação intelectual

se torna necessário pois as novas tendências do design indicam cada vez mais a aplicação de

métodos semióticos (de signos) e hermenêuticos (de interpretação)".25

Embora o autor comente dos diversos métodos de ação intelectual no design, acaba

por focalizar unicamente nas questões metodológicas desses métodos. Em vez de sugerir ou

efetuar uma descrição pormenorizada de tais métodos intelectuais tão particulares ao design,

termina por propor que um outro método, o fenomenológico, torne-se a base para a

constituição do mesmo.

Nossa abordagem difere radicalmente desse rumo, e vê que o olhar de fato a tais ações

intelectuais do campo é que possibilitariam a revisão imaginada pelo autor. A simples

importação metodológica soa inócua se a base epistemológica não se encontra fundamentada

21 BECCARI, Marcos Namba (2012). Articulação Simbólica: uma abordagem junguiana aplicada à Filosofia do Design.

Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná - UFPR, Curitiba: 2012

22 HESSEN, J. (1925). Teoria do Conhecimento. Trad. João Vergíllio Gallenari Cuter. 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes,

2013

23 Nosso interesse de compreender a ontologia do projetar assemelha-se ao desejo de Sartre de entender o ser do aparecer

intencional, ao que ele diz que, fenomenologicamente, o ser do aparecer é sua própria capacidade de aparecer, ou seja,

podemos intuir fenomenologicamente o aparecer justamente por essa sua capacidade, e não há ser no aparecer senão pela

sua própria constituição de aparecer. O jogo de palavras é confuso, mas a solução ao entendimento está em ver que se trata

de uma investigação fenomenológica do fenômeno do aparecer (afinal, se conseguimos entender que as coisas aparecem a

nós, se mostram a nós, conseguimos, portanto, ver esse dado da aparição, e o entendimento de sua ontologia é entender

qual é a natureza de tal aparição). Assim, não assumimos o projetar como um ser a ser tocado, algo físico ou metafísico,

nem nada do tipo. Pelo contrário, queremos entender qual é a natureza do projetar, quando ele se mostra, e como ele se

mostra, entendendo-o como objeto intencional que se dá à consciência.

24 SANTOS, Op.Cit.

25 SANTOS, Op. Cit.

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Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016 101

para essa investida (qual a justificativa para adoção de nova estrutura metodológica, ainda

mais de maneira arbitrária como seria tomar o método fenomenológico, de natureza

filosófica, a uma atitude de projeto?).

a. Fluxos de Vivências e Mundos Intencionais

É por esse desejo de um olhar fenomenológico sobre as bases intelectuais do design

que nosso foco está no projetar, e em entender quais são suas características e ontologias

fenomenológicas. Cabe, assim, localizar onde se localiza o projetar dentro do universo de

vivências e mundos da fenomenologia.

Husserl apresenta a ideia de Ontologia Regional no primeiro capítulo de Ideias..26. O

autor inicia distinguindo as ciências de estados de coisas (portanto, contingentes) das ciências

de estados de essência (designadas como universais). Para a primeira, atribuem-se os fatos,

enquanto para a segunda, as essências em geral. Coloca-se a seguir que toda essência de fato

depende e constrói-se sobre as ciências de essência, enquanto esta possui total autonomia da

primeira para acontecer (haja visto a matemática, que Husserl insistentemente utiliza como

exemplo de ciência completamente eidética, ou seja, de essências, e ausente de fatos. Ao

contrário dela, pura eidética, toda manifestação de fatos das demais essências calcam-se

nalgum momento sobre a matemática. Aponta a física como um exemplo dessa relação de

dependência sobre a primeira). E toda ciência de fatos, por constituir-se sobre ciências de

essência, melhor desenvolve-se quando tais essências são desveladas. Sua racionalidade só

chega ao ápice após a compreensão de tais essências. E não há maneira de chegar em

essências puras que não seja pela total abstração (e até abstenção) da factualidade: torna-se

necessário, assim, a epoché, ou redução fenomenológica, que é olhar para o problema em

questão retirando-se do horizonte todas características singulares de factualidade (entre elas,

a existência), e emergindo apenas o universal, ou seja, o que há de essencial, sua característica

mais profunda como objeto de consciência.

Desse modo, Husserl instaura a mudança de atitude, da chamada orientação natural

(focalizada no mundo de fatos, na vivência corriqueira) para a orientação fenomenológica

(focalizada em essências e em análises que fazem emergir essências).

Tais diferenças de orientação trazem implicações à maneira como vemos o mundo.

Pode-se dizer que, quando estamos pensando matemáticamente, pelo seu caráter de ciência

de essência, estamos numa orientação diferente da simples atitude natural justamente por

tratar de questões de um objeto-de-essência e não de um objeto-de-fato, e mesmo lidando

com objetos-de-fatos, como calcular a quantidade do troco a ser devolvido, a atitude

empregada em tal cálculo é, em última instância, uma atitude de essência numérica e

matemática.

Moran27 aponta que, para Husserl, a existência dessas outras atitudes intencionais não

deva ser colocada em paralelo à atitude natural, mas dentro dela, ou fundada nela:

Other [than natural] attitudes may arise – if specifically motivated – only within or funded on

this natural attitude. It is crucial to recognize that Husserl’s lifelong meditations on the nature

of science are illuminated by his recognition that the objectivist, scientific attitude and the

26 HUSSERL, Op. Cit. P.44

27 MORAN, Op. Cit.

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102 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

formal mathematical attitude are both abtractions from the natural attitude and in a sense,

pressupose it.28

A essas diferentes atitudes, chamamos diferentes mundos intencionais29, sendo a

intencionalidade entendida como o próprio movimento do sujeito em direção ao objeto.

Os mundos intencionais são nossas diferentes maneiras de operação dessa

intencionalidade: se a consciência é sempre consciência de alguma coisa, a natureza dessa

determinada coisa, ou a natureza de como a estamos olhando (nossa atitude perante ela) deve

implicar em diferentes formas de doação à consciência, e, portanto, diferentes modos de

movimento do sujeito ao objeto. Naturezas factuais diferem-se intencionalmente de naturezas

essenciais, assim como seus subtipos e graus de evidência.

Portanto, segundo Husserl, estamos entre mundos destituídos de qualquer relação uns com os

outros (...). Flutuamos de um mundo a outro, somos essencialmente e antes de tudo esse

mover (...). Mas, se podemos flutuar assim, encontrar a entrada e saída dos mundos (...), é

porque há um território de nossas aventuras, de nossas veleidades, de nossos deslizamentos.

Uma imanência na qual estamos constantemente perdidos. Durante toda a sua vida, Husserl

chamou esse lugar de imanência de fluxo heraclitiano dos vividos.30

O fluxo de vividos, para Husserl31 possui diversas manifestações em nossa

consciência, quer seja de uma intuição atual do que está então à nossa frente, quer seja de

uma intuição correlata do atual, quer seja de uma intuição colateral ou periférica, ou mesmo

de uma intuição passada, revivida concomitante à intuição atual, modificando-a em nosso

entendimento, e inclusive vividos de essências puras (sem conteúdo psicológico), derivados

de conhecimentos essenciais puros (Salanski32 faz uma explicação simples e clara sobre

vividos e intencionalidade, onde comenta sobre os conteúdos hiléticos, as noeses e os noemas

e seu papel na intencionalidade).

Adentrar-se em diferentes atitudes para diferentes mundos intencionais implica,

igualmente, que diferentes vividos são produzidos e ativados. Husserl fala constantemente

da matemática, mas podemos falar de outros, tais como a lembrança, a empatia, etc.

b. Primeiros desenvolvimentos para uma ontologia fenomenológica do projetar

Compreendendo melhor nossa capacidade de ter atitudes perante o mesmo mundo

doado a nós, partimos à descrição fenomenológica do projetar propriamente dita. A descrição

fenomenológica aqui realizada visa perceber as nuances de um momento projetual quando

comparada com outras ações executivas, bem como perceber as fronteiras e proximidades

dentre diversas áreas que se utilizam de pensamento projetual para realizar-se. Não é,

portanto, uma análise restrita ao campo do design, mas a uma gama grande de atividades com

viés de projeto. E seguindo a tradição de análises fenomenológicas, será feita na primeira

pessoa, que é a única instância onde está o fenômeno apodítico.

28 MORAN, Op.Cit, p.55

29 Que não deve ser entendido de maneira literal, mas como uma diferente maneira de olhar o mundo, uma diferente atitude

perante o que se doa à consciência.

30 SALANSKI, Op. Cit, p.31

31 HUSSERL, Op. Cit. p.87-89

32 SALANSKI, Op. Cit. p.60

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Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016 103

Quando me vejo olhando um problema ou necessidade de ação com uma finalidade

bem ou mal definida, mas com uma finalidade, é o momento que identifico como “estar

projetando”. Quer seja a concretização de um projeto gráfico, de uma construção de

ambiente, solução de um mecanismo de engrenagens, desenho de uma vestimenta específica,

ou a criação de uma nova receita culinária, estou numa posição de indefinições e impasses à

concretização de tal tarefa.

Importa ressaltar tanto o caráter de indefinição, quanto de ação, ambos momentos da

minha atitude frente ao fenômeno que se faz presente. O debruçar-se característico do

projetar é um debruçar-se “inquisidor”, de procurar no dado presente as relações que possam

interpretar e preencher as indefinições e lacunas impostas pelo problema. O sentimento de

preenchimento de lacunas é patente, é um dos momentos da atitude projetual, junto da

averiguação por pedaços que complementem o problema.

O uso da palavra “inquisidor” no parágrafo anterior não é ao acaso, e muito menos

exagerado, pois a agonia (em maior ou menor grau) da indefinição e da momentânea

incapacidade de preenchimento de partes das lacunas do problema são um perigo à análise

do dado evidente, que pode resultar em interpretações forçadas, e provavelmente inadequadas

do problema, especialmente em suas causalidades (e é interessante como quando projeto, não

tenho pudores na aferição de causalidades como numa análise mais científica teria. Essa

aferição e resguardo é a posteriori, depois do insight). Quando pelo contrário, consigo me

atentar às essências dos dados, e assim dar significado às lacunas baseando-me na relação

entre as partes do problema, assim chego a um insight condizente com o fenômeno,

possivelmente efetivo quando em realização.

O reconhecimento das relações que me levam dar determinado significado ao

problema pode ter diversas naturezas. Pode ser um movimento de caráter dedutivo,

especificamente lógico, e com um grau de efeito mais localizado, restrito e situacional no

problema como um todo, dando conta apenas de uma parte do mesmo. Outra possibilidade

seria o reconhecimento da relação ter um caráter mais indutivo, que generaliza tal significado

a todo um grupo de problemas. Husserl localiza a indução como algo normal e generalizado

da atitude natural (Husserl33, apud Banchetti-Robino34), como uma forma de assumirmos

pontos gerais sobre o presente, passado e possibilidades futuras de assuntos mesmo

cotidianos, e não apenas do campo científico, ao que ele identifica como “variação eidética”,

de cuja finalidade se extraem insights de essências (Levin, 1968, e Morris, 2005). A partir do

insight relacional que formulo, tenho um momento da atitude projetual resolvido, que é o da

indefinição primordial.

Descolado por alguns instantes da indefinição que embasa o princípio da atitude

projetual, passo a testar a hipótese formulada. Tal teste pode ser realizado mentalmente, por

meio de artifícios materiais, ou de qualquer maneira que eu valide de alguma maneira minhas

ideias do problema levantado. Não precisa se tratar ainda de, de fato, uma solução a ele. Pode

ser apenas a validação da relação encontrada.

33 HUSSERL, Edmund. The Crisis of the European Sciences and Transcendental Phenomenology: An Introduction to

Phenomenological Philosophy. Indiana: Northwestern University Press, 1970, p. 31 e 51

34 BANCHETTI-ROBINO, Marina Paola. Phenomenology of Science and the Problem of Induction. In Logic and Scientific

Methods, Volume One of the Tenth International Congress of Logic, Methodology and Philosophy of Science. Florence,

August 1995. ISBN 0-7923-4385-9

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Eduardo Camillo K. Ferreira

104 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

Esse processo todo de um momento projetual repete-se em maior ou menor número,

em diversos graus, com maior ou menor extensão, e maior ou menor acuidade conforme o

problema e dados que tenho apresentados. O alcance desse movimento frente à realidade é

muito variado e extenso. Encontrar soluções para pequenos problemas, tais que uma pequena

“gambiarra”, ou problemas de extensão e complexidade gigantescos (chamados wicked

problems), o movimento projetual é o mesmo.

Da descrição acima nos chama a atenção como o projetar termina sendo muito mais

uma atitude frente ao dado que um conjunto de métodos ou de ações que repetimos ou

sistematizamos para olhar tal dado.

Todas as evidências apontam que a matéria, processo e resultado do projetar são do

grupo dos fatos. E se a busca por essências de fatos implica em uma ciência de fatos para

organizar-se, e estas tiram implicações e dados e ciências de essência (como a lógica,

matemática etc.), podemos dizer que tão importante quanto reconhecer a factualidade do

projetar é encontrar seus fundamentos eidéticos mais gerais. Paralelamente, tal ciência de

fatos (aqui importa mais ater-se ao vocabulário husserliano do que caracterizar o projetar

como efetivamente uma ciência) possui característica intencional acordada com sua natureza

material, ou seja, a dos fatos. A atitude que impera na vivência de tais ciências de fatos

necessariamente está de acordo com essa natureza factual e sua região eidética

correspondente.

Tais descrições do projetar nos levam a crer que uma fenomenologia da ação teria

apenas a contribuir para a fenomenologia do projetar, e esta encontra profundo material na

obra de Paul Ricoeur, por exemplo, em sua Fenomenologia da Vontade, e O Discurso da

Ação, entre outros livros (a produção do autor não será abordada aqui, por ora, e a reservamos

como futura leitura, posterior a esse trabalho, dadas as importantes diferenças entre a

produção de Ricoeur e Husserl quanto à fenomenologia).

Ainda assim, embora o projetar conecte-se logicamente a uma teoria da ação pela

efetivação do conteúdo do projeto, ele se mostra como um processo de retroalimentação: é o

fato (um fato qualquer) que gera vivências e essências para, pelo projetar, se formar em

projeto (projeto construído sob os dados daquele fato), o qual, quando efetivado, reverte-se

novamente em ação de outrem, o usuário ou vivenciadores daquilo, com novos fatos e

essências ao mesmo ou novo projeto. Os pressupostos teleológicos do fato fundador da

vivência do projeto afetam, mas não implicam em uma teleologia para o próprio projeto, o

qual também não gera implicação na vivência e ação teleológica do usuário ao final do

processo. São processos imbricados, ligados, mas não estanques e fechados. Como diferentes

fluxos de vividos perpassam diferentes espaços das relações entre insumos, projética,

manifestação e posterior uso, as construções teleológicas de cada fase não são

determinísticas.

E ressalta-se da natureza mental do projetar: embora faz-se uso de ferramentas e

manifestações diversas do conteúdo então em projeto para verificar hipóteses ou validar

dados e cálculos, o projetar dá-se inicialmente no nível do raciocínio e imaginação, quando

muito em situação compartilhada (discussão de projeto), mas mesmo nessa situação o insight,

a análise e raciocínio abdutivo todo se dá individualmente e mentalmente. O nível da ação se

dá na efetivação do projeto, mas seu estatuto inicial, sua constituição primeira, não é

enquanto ação, mas enquanto um tipo específico de olhar analítico sobre o fato.

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Primeiras notas para um olhar fenomenológico sobre o Design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016 105

De todas essas observações, intuímos que o projetar não se resume a um tipo de ação,

ou de resultado intelectual. Nossa hipótese aqui é que, pelos elementos que constituem o

projetar (tais que: sua natureza de olhar sobre o factual; a necessidade teleológica de

princípio mas não de consequência; sua fundação em ciências de essência; movimentos

indutivos, dedutivos — e possivelmente abdutivos — para debruçar-se sobre o problema; a

busca de consequências factuais e de correspondente ação para tais problemas, portanto

ligado a uma fenomenologia da ação; e sua particularidade de dar-se inicialmente em situação

de imaginação e supor uma situação de ação), temos insumo suficiente para desconfiar que

a ontologia do projetar é, fenomenologicamente falando, um tipo de atitude frente ao

mundo, portanto uma Atitude Projetual. E por atitude, o equiparamos à atitude aritmética,

ou à atitude psicológica, ou seja, uma atitude fundada na atitude natural, mas com

desmembramentos próprios, e que são nossa maneira de olhar o fenômeno. Ou seja,

afirmamos que, quando adentramos em situação de projeto, estamos saindo da atitude

condizente ao mundo natural ou a quaisquer dos mundos antes observados por Husserl, para

então colocarmo-nos uma atitude projetual, com um fluxo e estrutura intencionais

particulares a esse mundo, e, portanto, diferente dos anteriores, embora a diferença aqui seja

que, no geral, é justamente a atitude natural que fornece o insumo necessário à intuição

projetual (portanto, funda-se nela).

4. Considerações Finais e Futuros Desenvolvimentos

O próximo passo seria averiguar as implicações de tal atitude projetual ao design. A

mudança epistemológica que demos ao projetar certamente possui desmembramentos

importantes à própria natureza do design (assim como das demais áreas projetuais), inclusive

(agora sim) metodológicas. Fundamentar as categorias ontológicas do projetar, e do design

(tanto consequentemente, quando especificamente) possibilita o entendimento das

capacidades a serem melhor desenvolvidas e otimizadas para que a atitude projetual aconteça

em sua plenitude.

Não desenvolvemos, infelizmente, tal discussão e descrição de maneira satisfatória

ainda. Portanto, não apontaremos muito mais sobre o assunto nesse trabalho. Apenas

indicaremos que não são poucas as análises, descrições e reduções que precisarão ser

atentadas. Algumas, por exemplo, são da natureza do design (como prática), do designer

(como prático), da especialização de tal postura atitudinal etc. Tal desenvolvimento será

apresentado num trabalho futuro, após as primeiras discussões sobre essas ideias iniciais.

Por hora, acreditamos que o proposto aqui constitui um novo aporte à discussão

teórica e epistemológica do campo, e propõe diálogos e debates interessantes com outras

vertentes da teoria do design, como a semiótica (haja visto que falamos algumas vezes por

aqui de a atitude projetual dar sentido ao problema e às soluções), metodológica, entre outros.

First Notes for a Phenomenologycal Aproach on Design: a

phenomenology of designing and a theory of action

Abstract: The work aims to introduce an epistemological

phenomenological approach of design. Based specifically in

the texts and thoughts of Edmund Husserl and his

phenomenology, we clarify some concepts used in the work,

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Eduardo Camillo K. Ferreira

106 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 96-107, 2016

specifically of world of livings, and attitudes toward the

phenomenon. Thus, we conducted an analysis of the project

idea by proposing a phenomenological ontology of designing

as an attitude towards the world, which derives directly from

the natural attitude, extrapolating its realistic basis. It also

introduces the possibility of dismembering the analysis by

means of a theory of action, which would help understand some

of the consequences from this attitude towards the design area.

Keywords: phenomenological ontology of designing, project

and design, design theory.

Bibliografia

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108 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, 2016

Tradução

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Desmobilizar

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Publicado originalmente em Critique, 1978, nº 369, p. 246-250.

Rogério de Almeida

Luiz Antonio Callegari Coppi

É difícil imaginar que a Filosofia, enquanto tal, possa ter exercido influência notável

sobre o curso das coisas. Há muitos filósofos maldosos, mas conheço poucos que conseguiram

ser verdadeiramente perigosos. A não ser para seus próximos ou colegas, mas trata-se de um mal

sem grandes consequências, a não ser para os interessados, e que de todo modo é comum a quem

pertence a uma instituição. Mesmo aqueles de quem a história reteve o nome na conta de grandes

filósofos: seus pontos de vista aparecem como mais ou menos geniais, mais ou menos

penetrantes, mais ou menos promissores ou preocupantes, mas também sempre como mais ou

menos inofensivos. Nem Platão, nem Hobbes, nem Hegel tiveram influência notável sobre a

estrutura social; tampouco Epicuro, Spinoza ou Nietzsche conseguiram, mesmo hoje em dia,

quando todas as homenagens lhes são unanimemente rendidas, transformar em profundidade a

natureza do homem.

Então me parece vã a tarefa de defender a filosofia quando se vê ameaçada e questionada

pela impossibilidade de demonstrar sua eficiência: mostrar que a filosofia, aparentemente sem

interesse em oferecer algum recurso em caso de crise, é contudo capaz de “oportunidades”

inesperadas na concretude. Trata-se, no melhor dos casos, de uma falsa promessa; no pior, de

prostituição, já que no imediato é assim que a filosofia às vezes consegue se vender, em todos os

sentidos do termo: respondendo a questões concretas, a preocupações momentâneas que não são

de sua alçada. Sabe-se passar por útil aos olhos de um público semi-cultivado a quem jamais

interessará a questão do ser e do nada, mas que se importa em saber se se deve ser a favor ou

Professor Associado da Faculdade de Educação da USP, onde coordena o Lab_Arte e o GEIFEC. Email:

[email protected] Mestrando da Faculdade de Educação da USP, com bolsa da CAPES, e pesquisador do GEIFEC. Email:

[email protected].

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Clément Rosset

110 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 109-113, 2016

contra a guerra da Argélia ou do Vietnã, se deve votar ou não pela união da esquerda, confiar ou

não sua angústia e sua tristeza aos cuidados de um psicanalista. Tais questões são legítimas e,

independente da resposta, ninguém é indiferente a elas. Mas não se trata de questões filosóficas: a

essas questões a filosofia, enquanto tal, não tem o que responder. Sem dúvida um filósofo pode

ter suas preferências, escolhas políticas, opiniões sobre tal ou qual problema concreto. Da mesma

forma, terá seus cineastas preferidos, ideias sobre a psicologia de seus parentes, gostos e

desgostos em matéria sexual ou culinária.

Mas não é por isso que ele é filósofo. Mesmo Marx – que provavelmente seja um caso

limite, já que parece ter sido o único, é verdade que por intermediários (Engels e Lênin entre os

primeiros), a ter uma incidência real sobre o curso das coisas – não é filósofo por ser o autor da

esperança revolucionária de um melhor-ser da humanidade (sequer é o autor dessa esperança, que

é bem anterior a ele), mas sim por ter sido o primeiro a pensar uma certa relação entre as

estruturas sociais e suas manifestações explícitas.

Dizer isso de maneira alguma é dar razão aos “adversários” da filosofia (mas quais

adversários exatamente, e qual filosofia?), ou seja, àqueles que têm a intenção de condenar a

filosofia em razão de sua impotência em resolver algum problema de momento. A filosofia não

tem efeito notável sobre o real, mas isso não é importante para ela, porque seu interesse está

noutro lugar. Em uma palavra, digamos que ela constitui geralmente um questionamento acerca

de objetos independentes do estado atual das coisas, independentes das contingências do

momento. Assim, questões sobre o que é exatamente uma coisa, o que é o ser, o que é existir,

morrer, pensar, sentir amor ou alegria, não são suscetíveis de serem modificadas pelas

contingências da atualidade, regozijando-se com o grave ou o trágico de serem o que são. A

influência dos totalitarismos pelo mundo, as milhões de mortes no Camboja, uma eventual

catástrofe nuclear anunciam circunstâncias infinitamente inquietantes e deploráveis; do ponto de

vista filosófico, porém, não são mais que contingências, detalhes. Não se pode indignar-se com a

filosofia ou repreendê-la por se desinteressar do mundo e de seus dramas. É verdade que a

filosofia tem seus olhos voluntariamente fechados – o que não implica de forma alguma (ao

menos não sempre) uma alergia quanto ao real. Mas ela pode reabri-los facilmente – exceto em

certos casos desagradáveis, tal qual o do filósofo posto em cena por Marivaux em L’Île de la

raison: ele é o único a manter suas ilusões, contra ventos e marés, enquanto todos seus

companheiros, do rei até os subalternos iletrados, se rendem à evidência; e, ao espetáculo da

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Desmobilizar

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atrocidade, da estupidez cega, dizer seu desespero e seu desgosto. Essa voz solitária, que não

passa da voz de um filósofo, isto é, de um homem entre outros, não é de maneira alguma uma voz

especificamente filosófica. Se ele me diz que isso é horrível e imundo, que é preciso tentar

remediar, ele tem razão e não deixarei de compartilhar de seu desgosto. Mas, por outro lado, se

ele me propõe para isso um discurso filosófico, eu o abandonarei imediatamente, não pela causa

em si, que é estimável, mas pelo homem que a defende, porque é um farsante. Tal é a

ambiguidade do estatuto do “filósofo engajado” que nos valeu, notadamente desde o fim da

Segunda Guerra Mundial, e até hoje em dia, uma abundante produção de obras propriamente

inqualificáveis, dado que não saberíamos decidir por nós mesmos o que são nem o que valem.

Caberia ao autor nos informar se fez obra de circunstância ou filosófica, mas geralmente ele não

diz nada. De sorte que permanecemos num dilema, hesitando entre a aquiescência sem reservas e

a negação total, porque tais obras são tão ambivalentes quanto ambíguas: seu valor é tão incerto

quanto seu sentido. Como tomadas de posição úteis e corajosas em um dado momento, como

sobreposição a barbarismos arraigados nos costumes, elas são estimadas (sobretudo as que estão

entre as primeiras a assinalar – embora o processo não seja geralmente muito notado – a

enormidade de um abuso de poder). Entretanto, quando se apresentam como obras filosóficas,

seu valor é na maioria das vezes dos mais insignificantes.

A incidência da filosofia sobre os problemas da sociedade ou sobre os dos indivíduos me

parece praticamente nula. Podemos, é verdade, imaginar que a filosofia, avaliada em termos de

rentabilidade imediata, não seja absolutamente vã. Efetivamente, exercer uma ação benéfica

sobre o curso das coisas é um viés que a torna útil, tanto no plano social quanto individual: desse

modo, ao silenciar suas próprias preocupações, se entrega a um engajamento de corpo e alma,

breve ou duradouro, num problema persistente, numa crença inabalável, numa devoção

irrevogável a respeito de uma causa mais ou menos duvidosa e absurda. Em contrapartida,

quando posta em prática por quem conservou os meios de ouvi-la, a filosofia torna-se uma arte de

afastar o outro e, sobretudo, a si mesmo e suas próprias preocupações: enfim, uma maneira de

acessar sem muita angústia o real. Tomei consciência pela primeira vez desse poder da filosofia,

poder até então um pouco insuspeito para mim, quando no fim de um ano universitário um aluno

que nunca havia se pronunciado veio ao meu encontro e colocou uma garrafa de whisky sobre

minha mesa, dizendo: “Agora, graças a você, eu me f... completamente”. Deixei de lado os

sentimentos da ocasião, de autocomplacência duplamente motivada, e passei à moral que poderia

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Clément Rosset

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tirar do incidente; assim, disse a mim mesmo que a filosofia, além de seu interesse intrínseco,

indiferente às boas ou más fortunas de quem quer que seja, é também dotada de certo valor

extrínseco, de ordem terapêutica, ou ainda catártica, como afirmaram há quase vinte e cinco

séculos Aristóteles e Epicuro. Ela não funciona, socialmente falando, no vazio, mas possui uma

virtude que, sozinha, bastaria para que se declarasse seu interesse público (e privado): a função de

desmobilização – de desmobilização geral.

Desmobilizar: uma operação simples na aparência – na aparência apenas. Relativamente

simples se a mobilização prévia procede de um móbil cuja falta de fundamento podemos apontar

ou, não sendo possível, mostrar que, embora anteriormente válido, agora caiu em desuso. Mas o

que fazer se a mobilização que nos esforçamos por desfazer não repousar em nenhum móbil?

Desmobilizar não seria um problema se bastasse des-mobilizar, extirpar o móbil. Mas como

proceder à desmobilização se não há, na origem da mobilização, nenhum móbil real para fazer

desaparecer? A tarefa se torna então duramente árdua, embora seja a essa tarefa impossível que

se dedicarão os que querem desmobilizar os homens ou a si mesmos: porque é o destino de todas

as mobilizações profundas não estarem associadas a nenhum móbil. Para resumir em poucas

palavras uma análise que demandaria um longo desenvolvimento: a mais forte adesão é adesão a

um objeto flutuante e incerto, ou seja, não importa a que objeto se adira, já que ele não existe; e

não haverá dificuldade em encontrar tais objetos, uma vez que é numerosa a legião de coisas que

não existem. É por isso que todo objeto de adesão é flutuante e incerto, não somente porque seu

valor é duvidoso, mas também e sobretudo porque sua realidade é imprecisa e confusa no próprio

espírito de quem a ele adere. Tal como o fascismo hitleriano e seus fantasmas do Ariano, da boa

saúde, da eliminação das doenças: todo bom alemão acreditava, mas nenhum deles sabia

exatamente no quê – com exceção de alguns astutos que sabiam de fato não crer em nada. Freud,

em O futuro de uma ilusão, aproximou esse não-saber fascista ao não-saber adulto diante da

vistosa sexualidade infantil. Cito aqui o exemplo do fascismo, mas poderia da mesma forma

mencionar, a título de exemplo, a ambição, o gosto pelo poder, a religião, o patriotismo cego, e

não importa qual outra dessas crenças tão ferozes e intratáveis quanto; elas não têm objeto no

qual repousar, tomada aqui a palavra em todas as acepções do termo. Acredita-se, mas em nada.

É por isso que geralmente a crença não é desenraizável: não há objeto a desenraizar. E a

mobilização, tão difícil de desmobilizar: não há móbil a arrancar. A filosofia às vezes o consegue:

por uma mudança na disposição do espírito, que deixa então de almejar o desaparecimento de um

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Desmobilizar

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 109-113, 2016 113

objeto, que de qualquer modo está ausente, para apagar suas sombras por meio de um

distanciamento da tendência desejante em si.

Se há uma tarefa específica da filosofia – e isso independentemente de seus interesses

fundamentais, que, uma vez mais, são outros –, é a de curar o homem de sua loucura: vasto

empreendimento que promete à filosofia um futuro longo e durável, contrariamente aos crentes,

que se exprimem aqui e acolá. Porque nada dura tanto quanto aquilo que não tem chance

nenhuma de conduzir a lugar algum. A filosofia, considerada somente em seu aspecto utilitário,

tem ainda belos dias à frente. Não há, certamente, complacência, porque ela dificilmente

consegue arrebatar o homem de suas manias. Mas mesmo raramente, vez ou outra ela o faz:

façanha modesta que no entanto parece ser suficiente para situar sua eficácia um pouco mais além

dos resultados obtidos até aqui, na mesma linha, pela medicina, psicologia ou psicanálise.

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114 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, 2016

Resenha

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016 115

Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design

Louis L. de Oliveira

BECCARI, Marcos. Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design.

Teresópolis, RJ: 2 AB Editora, 2016.

A vida é sempre irredutível às teorias. Espetacular, ela não recepciona aquilo

que tomamos como seu, pois não devota nada de si mesma à quem quer que seja. Como

um nada, ela não necessita de nós. Mas, por outro lado, só pode ser enquanto imaginário

em nós, elaborada por nós. Nesta elaboração, um eterno convite para a arte e para às

múltiplas formas de imprecações. A arte? Uma desculpa para brincar de dar sentido à

vida e projetar possibilidades. Ou seja, uma boa saída. As imprecações? As teorias, que

imaginam a vida procurando inventá-la à força de epistemes ou de histórias comuns,

tudo a mesma coisa. Mas, com a vida, não temos saída, pois, só ao representá-la é que

nós também nos tornamos aptos a representação. E, para isso, necessitamos assolar sua

nadificação e realçar sua presença, ainda que uma profanação, uma imprecação. E essa

necessidade sempre chega como um grito que assalta àquele que se vê afligido e que,

para não morrer, sobre o calor de uma desdita, apronta a sua voz mais apurada para

pronunciar que ainda que engolido, que ele pode mencionar quem o abocanha. É assim

que trabalhamos, sempre à espreita daquilo que nos engole. Algum mal nessa prática? O

contrário.... beleza!!!

Nesse universo de beleza e encarando essa vida repleta de narrativas,

gramáticas, paisagens, imprecações etc., é que se coloca esta obra de Marcos Beccari

(2016) “Articulações Simbólicas – uma nova filosofia do design”. E se coloca como um

grito alegre, que tece um aporte teórico sobre o design sem afirmar-se douta ou senhora

de um fato. Contesta e brinca, trama e compõe, aprofunda e arrazoa a profundidade,

porque seus fundamentos se baseiam no pensamento trágico. E o trágico aparece como

o que desdiz tudo e, sempre, a impossibilidade de se alcançar qualquer validade sobre à

vida. Assim, alegre e também injurioso, esse livro traz a miragem do gracejo trágico,

fazendo falar o trágico do design ou, o design trágico, que acaba por compor uma

filosofia do design enquanto uma a mais dos indicadores do mundo. Um indicador

enquanto fruto de uma hermenêutica trágica, que serve para sacodir a poeira

armazenada à tempos na soleira de uma porta com velhas vergas; uma porta que

Professor Doutor da Faculdade de Educação da Universidade de Santo Amaro. Doutor em Educação pela USP.

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Louis L. de Oliveira

116 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016

qualquer um poderia abrir, mas que só alguém esvaecido no trágico, no sopé desse

lugar, poderia fazê-lo.

Marcos Beccari (2016) faz isso. E o faz porque combina ousadia e curiosidade,

trazendo como retaguarda a poesia, a pintura – o autor é também um artista -, o ímpeto

do pensamento trágico e o emparelhamento da erudição com a atividade mais comum,

sempre à procura da reconquista do irremediável. Inicia sua obra, “Articulações

Simbólicas: uma nova filosofia do design”, entrando no universo da explicitação de um

dado sentido, do design, para tratar dos sigilos que qualquer disciplina pode guardar

para afirmar um ou mais caminhos. E o autor escolhe, em sua expertise, seguir um

caminho menos tortuoso, porque, ao contrário de alinhar-se com a secura da

ascendência acadêmica, arma-se com a literatura nos moldes de Paul Auster, nos

seduzindo com breves prelúdios, interlúdios e poslúdio, que escavam, semelhante à

força dos explosivos de Alexandre Farto, essa sua obra “Articulações Simbólicas”. Por

isso, um aviso: não tenha pressa ao tocar nesta obra. Saboreie suas viragens literárias e

teóricas, teóricas e literárias e siga lentamente. Caso contrário, caro leitor, perderá muito

no percurso.

Lendo este livro, sinto que a tese maior não é o design em si, mas o homem que

se quer tocar por um tipo de olhar. Ou seja, um é meio, o design, o homem ou os

homens, o fim. O próprio autor, na introdução dessa obra, deixa claro que

O ponto que eu gostaria de destacar é que, seja por meio de “efemeridades” ou de

“projetos ideais”, o design constitui um espaço de significação e narrativa de quem

somos — sob a mediação de condutas, “estilos de vida”, valores e discursos — em

relação a uma existência socialmente partilhada. Ainda que não se trate de um modo

tradicional de narrativa — que teria, segundo Benjamin, se perdido na modernidade —,

e sim de uma nova forma, “volátil e efêmera”, de narração (Almeida, 2015a, p. 151),

trata-se de assimilação e tradução de formas que informam, formam e reformulam

experiências, vividas ou imaginadas, de existir no mundo. (p. 25-26)

Assim, pensando o design e deixando-o escorregar de um para outro lado,

Beccari (2016) indicia que

(...) a importância deste trabalho não reside tanto em dizer o que é design — em última

análise, design é um nome novo para uma conduta antiga que reaparece revigorada —,

mas sim em propor uma filosofia do design que forneça um quadro conceitual

apropriado a abarcar a amplitude que o termo design tem adquirido.

Essa amplitude? Dar-se com o mundo para fazê-lo falar. Nesse sentido, situa o design

como uma articulação simbólica por meio da qual se busca a compreensão do mundo e

mesmo um modo de se situar nele. E, se situar, sem se apoderar de nada, mas como um

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Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016 117

meio de sorvê-lo sem tirar-lhe coisa nenhuma, nem significados ou altas representações,

essas coisas anti-trágicas.

Beccari (2016), em sua abordagem, parte da filosofia trágica, como

compreendida por Nietzsche e Clément Rosset, para desestabilizar as pretensões de um

conhecimento como expressão da verdade ou da coincidência entre pensamento e

realidade. Nesse processo, emerge uma “hermenêutica trágica”, conceito construído

para apontar o modo como os sentidos (ou sua ausência) são operados na mediação com

o mundo, por meio da valorização da experiência estética. Essa experiência? É possível

tocá-la no “Interlúdio III – A Reconquista do Irremediável”,

O centro está em toda parte, e o perímetro, em lugar nenhum. Se a contradição não

cessa de acentuar-se, é menos por conta de uma imprecisão teórica do que pela precisão

de se querer pensar o que não é pensável: o primeiro e último observatório no qual

podemos contemplar tudo por um instante. (p.117)

Eis uma obra que brinca seriamente com a vanidade do real. E o real, seja o que

for, é aqui poesia, melodia, algo que salta de um gesto estético e desaparece tão logo se

passa à tentativa de precisá-lo. O real, aqui,

(…) é tudo que está aí, inclusive nossas ilusões e interpretações do real. O recurso de

separar o real do que quer que seja é meramente in- telectual e, não obstante, mal-

intencionado uma vez que serve para justificar determinadas concepções, certas

“verdades” que são desejadas enquanto tais. (p. 91)

Dividido em quatro capítulos, o livro se inicia justamente com a busca de uma

compreensão mais ampla das linhas de força da filosofia para então propor cinco eixos

de uma filosofia do design. Sem a pretensão de elaborar uma teoria, mas atento às

possibilidades de formular hipóteses filosóficas sobre o design, o autor articula: I)

Design e linguagem; II) Design e sensibilidades; III) Design, ética e tecnologia; IV)

Design, consumo e cultura midiática; e V) Design, epistemologia e ontologia. A

abordagens dos cinco eixos visa menos a um enrijecimento conceitual que a uma

abertura filosófica que possibilite compreender o design como a articulação simbólica,

isto é, um conjunto de mediação e (re)criações de significados e interpretações que

possibilitam uma relação estética, de ordem imaginária, portanto simbólica, com o real.

A esse respeito, de uma filosofia do design, nada de um ofício profissional de um

filósofo catedrático e mau humorado. A questão é mais simples. Simples, porque

trágica; simples, porque

(...) se partirmos, por exemplo, da premissa de que qualquer coisa que seja pensável ou

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Louis L. de Oliveira

118 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016

passível de expressão não escapa de conceitos, signos e artifícios do conhecimento,

notaremos que não resta parte alguma do que chamamos de “mundo” para além disso:

tudo que nos é “desconhecido” somente o é porque pode ser conhecido. Tanto que

qualquer teoria filosófica, a meu ver, mesmo a mais exaustivamente sistematizada

(acessível apenas a alguns “iniciados”), compõe-se de ideias simples, que boa parte de

nós já teve ou poderia ter”. (p. 46)

O segundo capítulo trata de um recorte filosófico em que privilegia o trágico,

expresso como nada, acaso e convenção, a partir da leitura que Rogério de Almeida faz

de Friedrich Nietzsche e Clément Rosset. A partir dessa perspectiva, introduz os

conceitos de real e imaginário, tratados de modo complementar, em que o real aparece

como tudo, acaso e convenção, inspirado na definição do trágico, mas que apresente o

tudo como o que existe concretamente, restando ao nada todas as projeções imaginárias

de sentido. “Amor, valor, sentido, finalidade, necessidade, desejo – tudo isso concretiza

nada, não expressa nada de real, mas é real na medida em que nos afeta. São ficções

humanas, procedem do imaginário, podendo tanto nos inserir quanto nos afastar do real

(...)” (p. 92). E sobre o real recaem as forças do acaso e das convenções. Acaso, sob o

prisma trágico, como “(...) um mecanismo constitutivo da existência: são infinitas as

possibilidades tanto de formas reais quanto de traduções imaginárias, mas a realização

de cada possibilidade depende de encontros fortuitos, isto é, efetiva-se de acordo com

ocasiões que acontecem ‘por acaso’”. (p.93) E a convenção,

(...) Avançando em nossa digressão acerca do real, ‘o pensamento do acaso é assim

conduzido a eliminar a ideia de natureza e a substituí-la pela noção de convenção. O

que existe é de ordem não natural, mas convencional — em todos os sentidos da

palavra’ (Rosset, 1989, p. 101). Se não há ordem, vontade ou qualquer princípio que

possa reger o real, então o real é sempre acidente, aparência, convenção, sem mistério

ou sentido oculto que nos impeça de (re)convencioná-lo. (p. 94)

E, no momento subsequente, Beccari (2016) define o imaginário como nada,

convenção e ficção. Sua ideia central é de que a “imagem é real enquanto imagem, mas

é também imaginária por propor uma fabulação, um sentido para o real” (p. 98).

O capítulo seguinte é dedicado à construção de uma hermenêutica trágica. Para

isso, realiza a análise de três peças narrativas: os filmes Mr. Nobody, Synedoche, New

York e a obra literária Em busca do tempo perdido, das quais extrai o fundamento de sua

hermenêutica trágica em confluência com o símbolo, a ficção e a criação estética.

Assim, a hermenêutica trágica pode ser definida como um modo-de-ser expresso pela

compreensão, desde que essa compreensão não pressuponha um conteúdo específico a

ser interpretado, mas que faça o trágico falar, que o retire do silêncio. Opera, portanto,

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Articulações Simbólicas: uma nova filosofia do design

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016 119

com as ficções, as criações de sentido que realizam a articulação simbólica que

possibilita dar sentido ao real insignificante, que não expressa nenhum sentido. Assim, a

hermenêutica trágica tem a tarefa de fazer o mundo falar. Ora, dessa constatação,

(…) essa sociedade na qual se insere o design é uma sociedade que não se fundamenta

em nada, porque ela mesma é expressão da convenção, seja a dos estratos de classe, seja

a dos jogos de poder. Dada de modo narrativo e simbólico, a convenção opera de

maneira ficcional: ela não explica nem fornece respostas, mas aciona sentidos possíveis

para a experiência vivida, conduzindo valores, comportamentos, generalizações,

contradições, dissonâncias e insuficiências. (p. 209)

O último capítulo do livro defende a tese de que o design opera como articulação

simbólica, como um registro estético, filosófico, um modo de olhar, portanto, como um

processo amplo que articula as formulações simbólicas do imaginário com o trágico da

existência. Para compor sua narrativa, o autor realiza um passeio pela memória do

design, afrontando velhos cânones que atestam sua origem na contemporaneidade.

Aqui, o design é manifestação humana e, portanto, sua presença acompanha a própria

consumação da cultura. Para chegar a esse ponto o autor envereda-se por uma bela

discussão, colando frente-a-frente Flusser, Sloterdick, Meggs, Quintavalle, Latour,

Almeida, Cardoso, Perniola, e outras tantas figuras da filosofia e do design,

apresentando que, sob o sabor da hermenêutica trágica,

(…) de que não há nada a ser efetivamente criado, somente acaso que se acrescenta ao

acaso. De um lado, portanto, design implica não um criar ex-nihilo, a partir do nada,

mas uma articulação simbólica, uma intervenção nos modos de olhar; de outro, é apenas

frente ao acaso e às convenções que somos impelidos a criar. Sob esse viés, fica

evidente que quaisquer “novi- dades” seguem formas-rituais já consolidadas: o novo

não nasce senão por meio de imperceptíveis reformulações do velho, mínimos desvios

do já conhecido, redesign das ocasiões.” (p. 237)

Tratar com essa obra é revirar nossos modos de olhar, desejando - se não nos

colocarmos na defesa, armados para não cair numa cilada que pode alterar nossos

modos de ver o mundo - jogar com o que está aí, com todas as convenções e as mais

variadas possibilidades narrativas, fantasiosas ou mesmo líricas, que muitos teimam em

afirmar que já se foi. Nada se foi ou nada se deixa na perspectiva trágica. O que temos,

enfim, é uma coisa deixando seu lugar e passando à outra esfera de representação, às

vezes menor, às vezes grande demais, em outras quase silenciosa, desaparecida até, e no

momento seguinte, forte em sua suposta lógica dominadora. Esta obra? Uma bela

companheira, às vezes maledicente, traidora – porque sacode o que tínhamos como

norte -, às vezes apaziguadora, porque nos leva a sentir que o mundo, com seu design

escorregadio, nos permite tudo, ver tudo, sentir tudo, ainda que esse sentimento nos leve

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Louis L. de Oliveira

120 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v.9 nº 3, p. 115-120, 2016

à encontrar com o trágico, e aí, sob seu som mais surdo, perceber que continuamos a

viver sem explicações, pressentindo que, fazendo ou não escolhas, que viver “É como

escolher um bom perfume para encobrir, não por muito tempo, os incontáveis orifícios

que nos encobrem.” (p. 248)

E como um poslúdio – aqui imitando o autor – fica um aviso: o trágico aqui

trabalho é o trágico da virulência. Se se quer o design limpo, afeito à arte mais nobre,

esqueça essas páginas. O design, abraçando o trágico – o que autor faz tão bem –

reverbera em nós uma outra acuidade e o mundo, na superfície de seu toque, pode cair

um outro, na medida em que já não é mais nada, a não ser idiotès.

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