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Ano V, Número 17, Março - 2014

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Ficha Técnica

Conselho Editorial:

Stela Mithá Duarte - Doutora em Educação/ Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo - Brasil

Jó Anónio Capece - Doutor em Educação/ Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo - Brasil

Carla Maciel - Doutora em Estudos Ingleses pela Universidade de Illinois - EUA

Félix José Mulhanga - Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Friedrich Schiller -

Alemanha

Crisalita Djeco Funes - Doutora em Ciências Pedagógicas pela Università degli Studi di

Bergamo - Itália

Apoio técnico

Germano Diogo - Licenciado em Planificação e Gestão da Educação pela UP

Titulo: UDZIWI

Publicação: Trimestral

Propriedade: Centro de Estudos de Políticas Educativas (CEPE) da Universidade Pedagógica

DISP. REGº/GABINFO-DEC/2008

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Índice

Editorial 4

A Literatura Oral no Ensino Básico moçambicano: revalorização da cultura autóctone …….........6

Pedro Bila

Aspectos sintácticos das interrogativas-Q do Português de Moçambique …………………….….25

Danifo Ismael Chutumiá

Contribuição para um sistema da gestão e garantia da qualidade da educação básica: perspectiva

sistémica e desenvolvimentista de definição de indicadores da qualidade da educação …..............43

Geraldo Teodoro Ernesto Mate

4

Editorial

Esta é a Revista nº 17 do mês de Março de 2014.

A revista é composta por 3 artigos, que passamos a apresentar.

O 1º artigo, do Mestre Pedro Bila, intitulado "A Literatura Oral no Ensino Básico

moçambicano: revalorização da cultura autóctone", tem como objectivos: compreender as

formas de apresentação da Literatura Oral no Ensino Básico Moçambicano e fundamentar a

pertinência da valorização e aproveitamento efectivos da Literatura Oral no Ensino Básico

Moçambicano, à luz do multiculturalismo e da intercompreensão. O autor apresenta o contexto

das tradições orais em Moçambique; a literatura oral nos materiais escolares do Ensino Básico; a

recolha, arquivo e socialização do património intangível da Humanidade em Moçambique,

recomendando a necessidade de se revitalizarem as línguas autóctenes.

O 2º artigo do Mestre Danifo Ismael Chutumiá, intitula-se "Aspetos sintácticos das

interrogativas-Q do Português de Moçambique", faz uma abordagem sintáctica das

interrogativas Q no Português em Moçambique, comparando-as com as interrogativas do

Português Europeu e do Português Brasileiro. O autor debruça-se sobre alguns tratamentos das

interrogativas parciais; As interrogativas Q no PM: uma abordagem sintáctica; O movimento Q,

o movimento do verbo e a ordem SU-V; A sequência “Q+que” nas interrogativas Q; As

interrogativas Q in situ; O morfema Q na posição média: movimento parcial de Q? Conclui que

há muito que discutir sobre as interrogativas Q no PM, sobretudo no que tange à sua relação com

as línguas Bantu e que seria ainda interessante fazer um estudo relativamente à prosódia das

interrogativas Q.

O 3º e último artigo, do Prof. Doutor Geraldo Teodoro Ernesto Mate intitula-se

"Contribuição para um sistema da gestão e garantia da qualidade da educação básica:

perspectiva sistémica e desenvolvimentista de definição de indicadores da qualidade da

educação" está orientado para a implementação de padrões e indicadores de qualidade para a

escola primária. Nele são discutidas as abordagens actuais sobre a qualidade da educação e as

limitações epistemológicas das mesmas. O autor propõe uma definição da qualidade da educação

baseada no dinamismo sistémico: qualidade da educação como nível de equilíbrio optimal entre

as oportunidades de acesso e as oportunidades educativas oferecidas pelo sistema. Conclui

afirmando que a definição de indicadores para a gestão da qualidade de educação é uma tarefa

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complexa e que há necessidade de adoptar um modelo sistémico e uma perspectiva

desenvolvimentista.

Desejamos a todos os nossos colaboradores, leitores e amigos em geral um Feliz Ano

2014 e que continuem a enviar os vossos artigos para publicação.

Bem Hajam!

6

A Literatura Oral no Ensino Básico moçambicano: revalorização da cultura autóctone

Pedro Bila1

Resumo

No presente trabalho analiso a Literatura Oral no Ensino Básico Moçambicano, expressa originalmente

em línguas moçambicanas de matriz bantu, na modalidade de Ensino Bilingue. Começo por fazer um

debate teórico sobre as noções de Multiculturalismo, Plurilinguismo, Ensino Básico, Ensino Bilingue,

Intercompreensão e Literatura Oral. Num segundo momento, o centro da análise são os materiais de

ensino, cujo objectivo é captar as formas de manifestação da Literatura Oral, o valor que lhe é conferido e

as perspectivas e formas de abordagem que lhes são associadas. Depois, discuto os processos usados para

a recolha, socialização e aproveitamento da Literatura Oral e a forma de conservação usada para o seu

arquivo e outros artigos do património intangível durante as campanhas de recolha havidas a nível

nacional, bem como as implicações decorrentes do processo de tradução e transposição das línguas bantu

e do oral para o Português e para o papel ou memória digital, respectivamente.

Palavras-chave: Ensino Básico, Ensino Bilingue, Literatura Oral, língua, cultura autóctones.

1. Introdução

Moçambique, ex-colónia portuguesa, situada na costa sudoeste de África, é hoje um país

multicultural, multirracial, pluriétnico e plurilingue. Nele confluem culturas de matriz oral

tradicional bantu e outras culturas de origem asiática, árabe e ocidental, resultantes de

intercâmbios comerciais com estes povos e também da situação colonial. As culturas de matriz

oral tradicional bantu predominam e caracterizaram os povos habitantes deste lugar antes da

invasão europeia e árabe.

A pluralidade e/ou diversidade cultural, linguística e racial neste lugar hoje chamado

Moçambique, como em todas as sociedades humanas, não foi sempre vista positivamente como

riqueza, tal que a convivência nesta diversidade não tem sido harmoniosa ao longo dos tempos.

Relendo a História de Moçambique, com particular destaque para a educação, depreende-

se que esta, na era colonial, foi usada como principal instrumento ideológico de dominação

colonial. Através dela, impunha-se a língua, a cultura, a literatura e a civilização ou visão do

1 Mestre em Educação/Ensino de Português. Docente da UP-Gaza.

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mundo ocidentais, marginalizando totalmente as tradições e os direitos universais básicos dos

nativos.

Depois da independência nacional, o Governo da FRELIMO, como que transferindo para

si a política colonial assimilacionista, adopta a Língua Portuguesa como única língua oficial do

Estado que, desde então, assumiu o monopólio da oficialidade de todas as actividades do Estado

até hoje.

Pouco mais de uma década e meia depois da independência nacional, portanto na década

de 90, cresce, entre académicos, pais e encarregados de educação a consciência de que o ensino

exclusivamente em língua portuguesa é um dos principais factores de exclusão, de elevadas taxas

de reprovação e da alienação cultural (Dias, 2002). Esta nova sensibilidade cruza-se com os

apelos da UNESCO e das Nações Unidas para a defesa dos Direitos Humanos dos Povos. E,

nesta causa nobre, o Estado decide valorizar as línguas e culturas nacionais através da Lei 6/92 e

na Constituição da República de 2004, que autorizam e/ou orientam a sua integração

progressiva no ensino - Ensino Bilingue.

Motivado pela experiência de leccionação de Literatura no Ensino Superior e pelo

reconhecimento, por um lado, do profundo vínculo que a Literatura estabelece com a cultura e a

língua na história de um povo, por outro lado, da sua potencial contribuição na formação do

indivíduo nas dimensões social, cognitiva e afectiva, propus-me fazer um estudo subordinado ao

tema: A Literatura Oral no Ensino Básico Moçambicano: Revalorização da Cultura

Autóctone, com os seguintes objectivos:

(i) Gerais:

- Compreender as formas de apresentação da Literatura Oral no Ensino Básico

Moçambicano;

- Fundamentar a pertinência da valorização e aproveitamento efectivos da Literatura Oral

no Ensino Básico Moçambicano, à luz do multiculturalismo e da intercompreensão.

(ii) Específicos:

- Caracterizar o Ensino Básico Moçambicano e a Literatura Oral lá presente;

- Relacionar a Literatura Oral, as Línguas Bantu e Portuguesa e as representações

culturais;

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- Medir o impacto da transposição e tradução das formas literárias de expressão oral e das

línguas bantu para os manuais e programas escolares e para a língua portuguesa,

respectivamente.

Conduziu o processo da pesquisa a seguinte pergunta complexa:

- Como se apresenta a Literatura Oral no Ensino Básico Moçambicano; como se

relaciona com a Língua Portuguesa; que contributo a Literatura Oral pode dar ao Ensino

Básico Moçambicano e qual é o impacto da tradução e transposição da Literatura Oral para a

forma escrita e para o papel, respectivamente?

Fazendo fé em que a matriz de quase todos os valores da nossa moçambicanidade ainda

está assente na oralidade: nas práticas de rituais de iniciação; de morte; de nascimento; etc.,

como respostas provisórias, penso que:

(i) a Literatura Oral apresenta-se, no Ensino Básico Moçambicano, na sua natureza mais

ou menos original/tradicional, porém, com estatuto subalterno, pois serve de pretexto para a

iniciação da leitura e escrita. Ela está representada nos géneros de conto, canção, poesia, fábula,

lenda, drama e lengalengas, recomendadas metodologicamente como actividades intimamente

ligadas à vivência das crianças e que devem ser usadas para a iniciação da leitura e escrita;2

(ii) a Literatura Oral de matriz bantu não tem uma feliz expressão em Língua Portuguesa,

pois os seus grandes tesouros estéticos, pedagógicos, socioculturais, simbólicos e emocionais

estão naturalmente gravados na sua língua tradicional ( Fishman, apud Baker , 1997);

(iii) a Literatura Oral, casada com línguas bantu, presentes imediatamente no Ensino

Básico – Bilingue – ainda com réstias de alienação -, é um potencial meio de resgate e

veiculação da auto-estima; da cultura/identidade; de combate à exclusão e de elevadas taxas

de reprovação; e de acesso ao conhecimento e a uma visão do mundo originais;

(iv) Conforme considera Fishman (1991, apud Baker, 1997), a cultura é criada

parcialmente a partir da língua. Grande parte de uma cultura é representada e transmitida

verbalmente. As canções, os contos populares, as expressões idiomáticas, as adivinhas, os

adágios, as formas apropriadas de saudar e despedir-se, sua história, sua sabedoria e ideologia

estão gravados na língua. O gosto e sentido de uma cultura estão gravados na língua. As

2 MINED/INDE. Programa do Ensino Básico: 1º Ciclo. Maputo, INDE, 2003.

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recordações, a história e as tradições de um povo estão armazenadas na sua língua, portanto, uma

língua/cultura (literatura) sacrifica uma parte do seu significado e sentimento na tradução.

O presente estudo pareceu-me importante pela possibilidade de: (i) despertar a

consciência de académicos, gestores da educação, professores e a própria sociedade civil, sobre o

valor da literatura na formação integral do cidadão; (ii) influenciar as instituições de formação de

professores no melhoramento da qualidade de formação destes em matéria de literatura.

Como metodologia, esta pesquisa é do tipo qualitativo, realizada numa turma da Segunda

Classe de Ensino Bilingue da Escola Primária Completa de Loane (Chissano, Gaza). A pesquisa

bibliográfica caracterizou todo o percurso da investigação, desde a elaboração do projecto, cujo

objectivo era conhecer todo o quadro teórico em que se insere o nosso estudo, até à recolha dos

dados, pois uma das principais fontes da informação que buscamos foram os Programas de

Ensino e Planos Curriculares do Ensino Básico e o Manual do aluno da Segunda Classe.

A recolha de dados assentou também no método etnográfico, em que a observação

participativa jogou um papel importante. Era imperioso inserir-me concretamente não só na

realidade escolar onde decorre o Ensino Bilingue, como também assistir às próprias aulas dadas

em línguas nacionais (assisti a vinte aulas), a fim de observar a atitude real das crianças e dos

professores em relação às suas línguas maternas e à Literatura Oral; colher a sensibilidade do

professor da turma sobre o que está fazendo; a sensibilidade das crianças e do Director da escola

sobre este tipo de ensino. Para este efeito usei a técnica de entrevistas abertas e conversas

informais.

A amostra foi construída de dois professores, dos quais um professor da turma da

Segunda Classe observada, um professor da turma de Primeira Classe, dois membros da

Direcção da escola, seis alunos, sendo três de cada classe, três representantes das instituições

ligadas directamente ao uso das línguas nacionais e literatura oral, nomeadamente, um do INDE,

um do ARPAC e um da RM.

A análise de dados foi baseada na análise de conteúdo, que “é feita sobre textos,

documentos vários, relatórios de entrevistas, etc.” Os métodos de análise de conteúdo podem ser

quantitativos ou qualitativos. Os métodos qualitativos referem-se à “análise de grande número

de informações” (Quivy e Campenhoudt, 1998, apud Dias et al, 2008: 76).

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2. Contexto das tradições orais em Moçambique

Para melhor caracterizar a Literatura Oral que aparece integrada no Ensino Básico

Bilingue, impõe-se-me um olhar retrospectivo, portanto, histórico, do contexto de existência das

tradições orais em Moçambique. E, neste olhar, ocorrem-me três grandes momentos que

chamarei de períodos:

(i) Período pré-colonial – este período é considerado a idade de ouro das tradições orais,

evocado através dos mitos como o paraíso perdido, pois é neste período onde se encontram as

origens e o estado natural e puro das tradições orais, cumprindo a sua principal missão de coesão,

estruturação, comunicação e educação do grupo, por via originalmente oral, de geração em

geração. Destaca-se neste período a ausência em África de um sistema de educação formal,

institucionalizado e, por isso mesmo, não se pode falar ainda de uso da literatura oral para a

educação formal.

(ii) Período colonial – corresponde à fase da história em que a África e as suas tradições

orais estiveram sob o jugo ou domínio colonial. Decorre do processo colonial, naturalmente, um

desprezo total e um ataque de morte das tradições orais, pelo interesse etnocêntrico da ideologia

colonial.

Há, sobre esta fase de vida das tradições orais, uma crença generalizada de que as

tradições orais teriam morrido, como grande sucesso da colonização. Mas, mais atentamente,

percebe-se que elas ficaram simplesmente num estado latente e, sobretudo, para um discurso

periférico, completamente rural e marginal, porém, como expressão e matriz de vida da maioria

dos moçambicanos até hoje.

Ainda nesta fase de vigência colonial, quero destacar o séc. XIX, como um século

ambíguo: por um lado, é o auge da colonização em África – atesta este facto a grande partilha e

ocupação efectiva de África, sancionada pela Conferência de Berlim -, por outro lado, o séc.

XIX interessa-me particularmente por ser o período em que desperta e ressurge, pela primeira

vez, no seio dos europeus, a consciência do valor das tradições orais.

Numa primeira fase, depois de ter sido avassalada pelas conquistas e domínio de

Napoleão Bonaparte, a Europa vê ofuscada a identidade nacional de cada país, a favor da França

que se torna na capital cultural da Europa. É, portanto, neste contexto que cada nação europeia

decide investir no resgate das suas tradições orais, como único instrumento capaz de definir,

resgatar a marca da identidade nacional.

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Numa segunda fase, aliado à partilha de África, decretada na Conferência de Berlim, os

mesmos europeus iniciam a pesquisa das tradições orais africanas, como único instrumento

seguro de descrição dos povos africanos, através do qual saberiam penetrar com profundidade e

sucesso no povo de seu interesse colonial.

(iii) Período pós-colonial – o sentido cronológico e histórico que conferimos ao termo

pós-colonial corresponde a todo o período da nossa história que se inicia depois do colonialismo,

cuja baliza temporal é o fim da segunda guerra mundial/1945 (Leite, 2003). Emerge deste

contexto, também pela primeira vez, no seio dos africanos, um interesse pelo resgate das suas

tradições orais, com interesse de usá-las para a sua afirmação ao mundo inteiro, como um povo

diferente, mas digno. Mais tarde, sensivelmente a partir da década de 70 do séc. XX, as tradições

orais passam a ser grande preocupação das Nações Unidas (ONU), órgão internacional mediador

entre as nações e povos. Esta preocupação resulta da constatação da posição periférica e de risco

de extinção das expressões culturais de alguns povos.

Decorre desta consciência o apelo da UNESCO para o mundo inteiro, por um lado,

reclamando o direito de todos os povos se expressarem, educarem seus filhos e se afirmarem nas

suas bases identitárias originais e tradicionais, por outro lado, estimulando cada país e Governo a

pesquisar, recolher e a salvaguardar ou preservar as tradições orais, declaradas como

“património intangível da humanidade em risco de extinção”.

É neste âmbito que Moçambique, sendo um dos membros das Nações Unidas, acolhe os

apelos da UNESCO sobre as tradições orais e junta utilmente este desafio ao seu interesse de um

país recém independente do jugo colonial e, portanto, carecente de auto-afirmação em termos

identitários. Então, decide:

a) fazer uma recolha em todo o território nacional de todos os artigos culturais

tradicionais que ajudariam a formatar a identidade nacional;

b) valorizar, através da Lei 6/92 e da Constituição da República de 2004, artigo 9, as

línguas e cultura nacionias através da sua integração no ensino – assim surge o ensino bilingue,

onde vamos encontrar, para além das línguas nacionais a conviverem com a língua portuguesa,

supostamente com o mesmo valor, a literatura oral como parte da cultura nacional.

Pretendo destacar, nesta convivência plural de línguas e culturas no âmbito do ensino

bilingue, e como parte integrante do conjunto das tradições orais de Moçambique, o conceito de

literatura oral como "formas literárias transmitidas pelo sistema verbal oral" (Rosário, 2008).

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3. Literatura Oral nos Materiais escolares do Ensino Básico

Começarei por responder à seguinte pergunta: “porquê estudar a literatura oral no

Ensino Básico?”

A resposta é:

O Ensino Básico é o único espaço criado oficialmente pelo Estado, no âmbito da política

de Ensino Bilingue, para a revalorização das línguas e cultura nacionais, através da sua

integração no ensino formal.

Concebo o Ensino Básico de acordo com Dias (2009:33), como a soma do Ensino

Primário do 1º Grau (1ª a 5ª classes) e do Ensino Primário de 2º Grau (6ª e 7ª classes) que,

conforme assevera MINED (2003: XI), joga um papel importante no processo de socialização

das crianças, na aquisição de conhecimentos, habilidades e valores/atitudes fundamentais para o

desenvolvimento harmonioso da personalidade. Pretende formar um cidadão capaz de se integrar

na vida e aplicar os conhecimentos adquiridos em benefício próprio e da comunidade.

Uma análise minuciosa do Programa do 1º Ciclo do Ensino Básico permite-me

compreender duas perspectivas e/ou princípios orientadores deste subsistema de ensino,

nomeadamente:

(i) Logo à entrada do Prefácio, a ênfase posta nas expressões “cidadão

participativo”, “reflexivo” e “autónomo”, como finalidade última do aluno que se pretende

formar neste grau de ensino denuncia o primeiro fio condutor do Ensino Básico: uma perspectiva

de ensino virada para a formação integral do individuo, fornecendo-lhe os conhecimentos e

habilidades que ele precisará no seu futuro, a fim de garantir uma cidadania activa;

(ii) Mais adiante, no mesmo Prefácio, ainda no esboço do perfil do graduado,

sublinhei as expressões “preservação da unidade nacional”, “manutenção da paz”,

“aprofundamento da democracia” e “respeito pelos direitos humanos e pela cultura

moçambicana” que evidenciam uma outra perspectiva de Ensino Básico, virada para o passado

como objecto, uma herança, um legado, uma marca cultural e histórica da sociedade, cabendo à

escola inculcar no sujeito uma atitude de reverência, preservação, respeito e aprofundamento dos

grandes valores sociolinguísticos, culturais, políticos, históricos, etc.

Posso aduzir que as duas linhas orientadoras do Ensino Básico acima referidas

constituem perspectivas também do ensino da literatura, nomeadamente: (i) a perspectiva

futurista, virada para o uso dos textos literários como instrumentos ou recursos pedagógicos úteis

para a formação dos sujeitos de amanhã; e (ii) a perspectiva passadista, na qual a literatura

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participa também na formação da identidade do sujeito, mais como um testemunho de uma

consciência cultural ou nacional, onde o papel do aluno é de preservar e respeitar esse legado.

Nos objectivos específicos da disciplina de Xichangana como língua no 1º Ciclo, está

bem expresso o interesse pelos textos literários (contar histórias, cantar, recitar poemas, etc.),

para além das actividades respeitantes às noções da gramática de língua.

Se o que está previsto nos programas fosse efectivamente materializado com prudência,

criatividade e profissionalismo por parte dos professores, diria que é reconhecida e aproveitada a

literatura oral no Ensino Básico, como um dos recursos pedagógicos que participa na formação e

educação dos sujeitos, em todas as suas dimensões: cognitiva, afectiva e social. Porém, as

práticas reais de ensino, especialmente no trabalho com os textos literários, parecem muito

distantes do desejado. Apesar de manifesta a consciência e o desejo de inclusão sociolinguística

e cultural no nosso ensino, não chega a ter uma suficiente materialização que realize os

objectivos preconizados, pois a tentativa de valorização das línguas e culturas moçambicanas no

Ensino recorre predominantemente à tradução de conteúdos, valores e normas do universo da

escrita da língua portuguesa, conforme atesta o exposto no Plano Curricular do Ensino Básico:

“A tradução/adaptação dos programas far-se-á por ciclos estabelecidos no Plano

Curricular...” (MINED/INDE, 2003: 64)

Posso inferir a partir daqui que as reformas curriculares havidas privilegiaram o nível

macrocurricular (as políticas linguísticas e os objectivos) e não desceram para os níveis meso e

microcurricular (as condições da escola, os conteúdos nos manuais de ensino, os professores

permaneceram quase os mesmos). Os graduados das instituições de formação de professores

estão preparados em matéria de Linguística Bantu, mas nem sequer sabem falar fluentemente,

muito menos escrever, naquela que é sua língua materna. A famosa política de unidade nacional

na formação e afetação dos professores do Ensino Básico ainda não acertou o passo, parece

bloquear por absoluto a possibilidade de aquisição dos pequenos rudimentos de alfabetização dos

futuros professores na sua língua materna.

No geral, os conteúdos explorados nas aulas de Língua Portuguesa, enraizados no

universo da escrita, porque se usa o manual do ensino monolingue, estritamente estruturais e

gramaticais, só tomam de pretexto as línguas bantu para a sua tradução literal, sem poderem

captar com sucesso o universo da oralidade com os valores que lhe são inerentes (língua, cultura,

literatura, história, visão do mundo, etc.). Continuam gritantes as dificuldades ligadas: (i) à falta

de materiais do professor e do aluno escritos não só em línguas bantu, como também numa

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matriz cultural original; (ii) à fraca formação/alfabetização dos professores na língua materna e

em matéria de ensino bilingue e, daí decorre a dificuldade de planificação, escrita e ensino nesta

língua; (iii) fraca preparação científica dos professores deste nível de ensino sobre a matéria de

Literatura. Isto pode ser justificado pelo facto de a Literatura não possuir uma existência

autónoma como um tipo de conhecimento em quase todo o Ensino Básico e Secundário

Moçambicanos, incluindo os Institutos de Formação de Professores. Ela aparece, através de

textos, sempre subordinada ao ensino da língua, com excepção para o 2º ciclo do Ensino

Secundário Geral. Por isso mesmo, há um défice no próprio professor da noção de Literatura,

Literatura Oral, o que coloca hipótese quase nula de aproveitamento efectivo nas suas aulas do

ensino bilingue dos géneros da Literatura Oral presentes nos programas e manuais de ensino. (iv)

falta duma orientação metodológica específica para o aproveitamento exaustivo das

potencialidades dos géneros da Literatura Oral que aparecem nos programas e nos manuais de

ensino.

O Manual de Xichangana, da 2ª Classe do Ensino Bilingue, introduzido em 2011, é

constituído por 22 textos literários, de variados géneros, mais 3 provérbios contidos nos textos já

referidos. Esta inclusão quantitativa de textos literários no Manual de Ensino da 2ª Classe em si

já revela o reconhecimento do potencial valor da literatura na educação e formação integral dos

sujeitos e o facto de a maioria dos textos, quer pela sua origem, quer pela temática retratada,

serem preferencialmente moçambicanos e de um universo de tradição oral, denuncia uma linha

orientadora do ensino da literatura, com ênfase no valor histórico, nacional e cultural, o que

ajusta à perspectiva de ensino da literatura preconizada no Programa, interessada pelo passado

histórico-cultural como um legado, embora restando ainda aos professores a efectiva utilização e

aproveitamento das suas potencialidades.

Dos textos constantes do Manual, predominam de forma igual o Conto e a Poesia,

seguidos da Canção. Esta predominância pode ser justificada pelo facto de as orientações

metodológicas dadas ao Ensino Básico Bilingue apontarem preferencialmente para o Conto, a

Canção (para a nossa análise estes dois interessam como géneros da Literatura Oral) e a leitura e

interpretação de imagens em cartazes como devendo ser as actividades-guias para a iniciação da

leitura e escrita em L1.

O que constitui minha inquietação é o facto de o uso destes géneros da literatura oral não

ter em si, como finalidade, o ensino da literatura no seu valor literário, estético, simbólico e

cultural. Depois de entoada uma Canção, ou contada uma História, ligadas à vivência das

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crianças, conforme as orientações metodológicas do Programa, nenhuma actividade de

exploração destes géneros artísticos nos seus valores estético-literários, simbólicos e culturais é

desencadeada. Estes géneros da Literatura Oral, integradas nas actividades de desenvolvimento

da oralidade em L1, são simplesmente usados como pretexto para, da sua configuração textual e

puramente linguística, extrair-se uma frase, uma palavra, uma sílaba e um som para ensinar a

leitura e escrita destes no âmbito do ensino bilingue.

Considero, assim, uma instrumentalização e marginalização da literatura oral, um

desperdício flagrante da contribuição que ela poderia dar na formação das crianças nos valores

originais da sua cultura, língua, identidade, etc.

4. Recolha, arquivo e socialização do património intangível da humanidade em

Moçambique

A primeira impressão que certamente fica quando se olha para o título deste capítulo é de

que me desviei do eixo da minha abordagem “Literatura Oral”. Mas, na verdade, não. Então,

porquê do interesse por este novo conceito de “Património Cultural Intangível”? Que relação

tem com o estudo da Literatura Oral?

Usarei a noção de Património Intangível da Humanidade conforme o Nº 1, do Artigo 2,

da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível, da UNESCO, Adoptada em

Paris em 17 de Outubro de 2003, que entende por Património Cultural Intangível “as práticas,

representações, expressões, conhecimento, técnicas que as comunidades, os grupos e, em certos

casos, os indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural (...) transmitido

de geração em geração.”

O «património cultural intangível» manifesta-se nos domínios seguintes: (i) tradições e

expressões orais, incluindo o idioma como veículo do património cultural intangível; (ii)

expressões artísticas; (iii) práticas sociais, rituais e acontecimentos festivos; (iv) conhecimentos e

práticas relativos à natureza e ao universo e; (v) técnicas artesanais tradicionais.

O interesse que o Património Cultural Intangível da Humanidade suscita para o presente

estudo fundamenta-se nos seguintes aspectos:

(i) A Literatura Oral, objecto do meu estudo, é parte integrante das tradições orais e

expressões artísticas de um povo, neste caso, Moçambicano, convencionada pela UNESCO

como «Património Cultural Intangível da Humanidade»;

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(ii) A Convenção para a protecção e salvaguarda do Património Cultural Intangível da

Humanidade estabeleceu como responsabilidades dos Estados Membros, dos quais Moçambique

é parte, entre outras, no Artigo 13º, a “promoção de estudos científicos, técnicos e artísticos, bem

como metodologias de pesquisa para a salvaguarda eficaz do património cultural intangível e,

em particular, do património cultural intangível em perigo”.

Esta necessidade de recolha das tradições orais surge da consciência e do reconhecimento

cada vez mais crescentes de que elas são “um reservatório dos valores culturais; são o veículo

fundamental de todos os valores, quer educacionais, quer sociais, quer políticos, quer religiosos,

quer económicos, quer culturais” (Rosário, 2008).

a) O processo de recolha

O projecto de recolha do Património Cultural Intangível em Moçambique foi esboçado

depois da 1ª Reunião Nacional da Cultura após a independência, em que, numa das decisões

desta reunião, Samora Machel, então Presidente da República, decide que a cultura era a base

para o povo tomar o poder. Elege-se, então, um grupo para fundar as instituições culturais. Neste

contexto, esboça-se o projecto de recolha de manifestações culturais (dança, música, literatura

oral, contos tradicionais, religião, lendas e mitos).

Dois grupos de inquiridores, sendo um central, do Ministério da Cultura (Maputo), e

outro de activistas das províncias e distritos do país, composto pelos estudantes e animadores

culturais do ensino secundário (5ª e 6ª classes), desencadearam, entre 1979 e 1983, o processo de

recolha do património intangível, no período de férias escolares como uma actividade patriótica.

Centralmente elaborou-se um índice de assuntos, com base no qual se fez, em seguida,

um inquérito composto de perguntas do tipo: Que tipo de ritos? Grupo étnico que pratica. Se é

feminino ou masculino.

Como estratégia, os estudantes e os animadores culturais é que preenchiam as fichas dos

inquéritos. Eles colocavam as questões aos entrevistados na língua materna destes e registavam

as respostas no papel em Português, o que claramente implicava, por um lado, uma tradução

automática, sem muito tempo nem recurso para o efeito; por outro lado, uma transposição de

textos culturais tradicionais e/ou orais para a escrita no papel.

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De acordo com os dados fornecidos pelo ARPAC, foram abrangidos neste processo de

recolha os seguintes géneros culturais tradicionais: dança, música, adornos, desenhos ilustrativos,

cerimónias religiosas, contos, provérbio, mitos, lendas, canções.

O procedimento usado consistia em perguntar aos membros da comunidade, na sua língua

materna, informações sobre os artigos culturais abrangidos no processo de recolha, para pedir, a

seguir, o respectivo significado e, o inquiridor traduzia e registava no papel. Mas, não foi

possível captar a melodia, por exemplo, da música, porque foi tudo grafado no papel.

O material recolhido foi arquivado em duas cópias: um exemplar para a Sede Nacional do

Ministério de Cultura, outro para a Província onde decorreu a recolha. A seguir, toda a

informação foi depositada no Museu Nacional de Arte.

Foi a partir da experiência adquirida na primeira campanha nacional de recolha do

património cultural que nos anos subsequentes se pensou em criar uma instituição especializada

para continuar o projecto de recolha e arquivo de todo o património cultural nacional. Assim,

criou-se o ARPAC, oficializado em 1985, com vista a responder ao objectivo preconizado.

Agora irei destacar, na base do exposto acima, o que considero fragilidade do processo de

recolha do património cultural desencadeado, no concernente à técnica; à estratégia; ao

procedimento e às características do activista usado para o efeito.

Não pretendo nunca anular a iniciativa e o trabalho de prestigiado mérito desencadeado,

mas sim, argumentar que alguns factores, desde o contexto histórico-político até às condições

materiais, técnico-científicas e humanas que nos caracterizam com segurança hoje, e a distância

temporal em que nos situamos, autorizam-nos a olhar com coragem, rigor e honestidade a nossa

insuficiência e fragilidade do passado.

(i) Características do inquiridor/activista: o ARPAC refere dois tipos de inquiridores, um

que partiu de Maputo para as províncias, e outro que é um aluno da 5ª ou 6ª classes ou animador

cultural. Quem, efectivamente, fez a captação da informação cultural, isto é, a verdadeira

recolha, foi o aluno ou animador cultural, porque o inquiridor provindo da Sede desconhecia as

línguas maternas das províncias e distritos.

Sobre os inquiridores, destacam-se claramente duas dificuldades a que estiveram

expostos e que condicionaram, de certa forma, a fragilidade da sua acção: por um lado, eles não

possuem nenhuma preparação ou treinamento técnico-profissional e científico que os habilitem a

realizar a tarefa incumbida com sucesso. Por outro lado, o processo de recolha foi guiado

incondicionalmente pelo espírito de patriotismo, força de vontade e empenho.

18

Acho, assim, que a diferença entre as línguas usadas, uma para o informante e o

inquiridor ouvir (língua materna destes, moçambicana), outra para o inquiridor registar no papel

(portuguesa); o acto de tradução e transposição para o papel; a falta de preparação técnica e

científica por parte do inquiridor, fez com que a informação captada, traduzida e transposta para

o papel na língua portuguesa esteja, em quantidade e qualidade, distante da sua originalidade,

conforme considera Matusse (1998: 55), “pensar noutra língua é também pensar de outra

maneira, nomeadamente quando são confrontadas duas línguas tão diferentes, uma bantu e

outra europeia”.

Concordo também com Bhabha (2001:562), na defesa do pensamento de que “a

transferência de sentido nunca pode ser total entre sistemas diferentes de significação, ou no seu

interior porque a língua da tradução envolve o seu conteúdo como um manto real de amplas

dobras”.

(ii) Características do processo de recolha: o processo de recolha tomou como estratégia,

um inquérito-guião, escrito em Português, para ser preenchido em Português, mas a informação

cultural devia passar por dois processos de tradução (o que chamarei de procedimento): primeiro,

a pergunta ou a informação escrita em Português no inquérito devia ser passada para o

informante na sua língua materna, mediante um processo de tradução pelo inquiridor; segundo,

depois de fornecida a informação cultural requerida, esta devia ser também traduzida para a

língua portuguesa pelo inquiridor.

A estratégia e o procedimento usados, aliados à fraca preparação do inquiridor, terão

contribuído para a redução da quantidade e da qualidade cultural, artístico-literária e mesmo

linguística da informação recolhida e arquivada. No exercício da tradução ou transposição de

uma cultura e língua para outras, e do oral para o escrito, sempre haverá perdas retóricas e

semânticas, por um lado, pela incapacidade de o etnógrafo ou o inquiridor ser um bilingue

perfeito, por outro lado, pela intraduzibilidade de algumas realidades culturais para outra língua,

mas, mais ainda, também pela impossibilidade de imparcialidade total por parte do etnógrafo ou

inquiridor. O inquiridor interfere, necessariamente, ainda que de forma involuntária, com a sua

visão do mundo, com o seu filtro perceptivo sobre o real, condicionado por todas as suas

características sociolinguísticas, culturais, etc.

19

b) Arquivo e socialização

Com vista a captar a informação sobre o aproveitamento feito da informação cultural

captada na Campanha de Recolha do Património Cultural desencadeada entre 1979 e 1983, para

a utilidade social, na educação formal, na pesquisa, na rádio, na televisão ou ainda para outros

fins, inquiri a três principais instituições do Estado que as considero estarem directamente

ligadas ao circuito social de arquivo e socialização da informação em causa, nomeadamente, o

Arquivo do Património Cultural (ARPAC), o Instituto Nacional do Desenvolvimento da

Educação (INDE) e a Rádio Moçambique (RM).

Depois de desencadeada a recolha do património cultural em referência, o ARPAC,

entanto que órgão do Ministério de Cultura, criado para o arquivo deste material, deu o seguinte

tratamento ao material recolhido:

- Organizou e/ou classificou conforme a província e o distrito de proveniência; consoante

os géneros culturais, e simplesmente arquivou no papel que já está num estado obsoleto;

- Não tem nenhum projecto ligado à educação cultural formal ou informal à sociedade,

porque acha que ninguém já se interessou por isso (supostamente as instituições tutelares da

Educação em Moçambique);

- Dado o estado degradado em que se encontra, agora, o material em sua posse, tenciona

passar para o computador, digitalizar, para depois, por um lado, guardar em forma electrónica e

mandar para um site da internet, por outro lado, produzir brochuras como se fosse livro. E, em

caso de num futuro ainda incerto houver algum interesse, como por exemplo, na televisão,

propõe a criação de programas que valorizem a cultura moçambicana.

O INDE, como instituição oficial do Estado directamente ligada ao Desenvolvimento do

Ensino Básico em Moçambique, no que se refere ao possível aproveitamento do arquivo feito

pelo ARPAC do património cultural para fins da educação, declara um feliz relação com esta

última instituição e com a RM, algo que permite ao INDE consultar e seleccionar do arquivo

todo o tipo de informação do seu interesse, de acordo com os objectivos de cada nível de ensino.

Acha, também, que o património cultural recolhido pode ser bastante útil para o enriquecimento

das bibliotecas, como material de consulta para a produção do livro.

É importante, para esta análise, destacar o carácter contraditório das alegações feitas,

primeiro, pelo ARPAC, depois, pelo INDE, no referente ao seu grau de relacionamento. Mas, a

RM, a terceira instituição do Estado com potencial interesse de aproveitamento do património

cultural recolhido e arquivado pelo ARPAC, como que a arbitrar, declara que nunca houve

20

convergência de interesses com o ARPAC, nem relacionamento institucional, cada um faz o seu

trabalho, porque não há abertura. A RM, de forma isolada, também foi sempre incluindo e

valorizando, nas suas emissões, as línguas nacionais e, como suporte destas, para que não

morram, era preciso trazer a lume as suas culturas, tradições. É neste contexto que surge o

interesse do uso, nas emissões radiofónicas, dos contos e outros géneros culturais da tradição

oral, com principal finalidade de valorizar as línguas nacionais e o universo cultural que

representam.

Decorre da necessidade de uso de línguas e géneros culturais tradicionais nas emissões

radiofónicas da RM o segundo tipo de recolha do património cultural, desta vez em línguas

nacionais. Esta recolha foi feita por equipas da RM que se deslocaram ao campo e fizeram a

recolha através de gravadores, mas, às vezes, convidam, também, membros da comunidade para

o estúdio onde se faz a gravação e arquivo em cassetes, bobines e fitas magnéticas. Sublinha-se,

aqui, o facto de a informação ter sido captada e estar arquivada na língua original, na memória

magnética.

Analisando atentamente o exposto acima, no concernente ao arquivo e socialização dos

artigos do património cultural intangível recolhidos, são assentes e convergentes entre as três

instituições intervenientes as seguintes teses:

(i) nada se aproveitou e socializou ainda do património cultural recolhido e arquivado no

ARPAC, pelo menos para a educação formal ou informal dos moçambicanos, como por

exemplo, para o Ensino Bilingue ainda em fase de implementação;

(ii) foram realizados dois tipos de recolha do património cultural, sem a devida

colaboração e partilha de experiências entre as instituições envolvidas, no referente às

estratégias, procedimentos, línguas, pessoas e tipo de arquivo usados. Num caso, a recolha foi

feita usando duas línguas (nacional de cada zona e Português) que envolviam uma dupla

tradução, pelos alunos da 5ª ou 6ª classe, usando um arquivo de papel; noutro caso, a recolha foi

feita por técnicos da RM, usando só línguas nacionais, sem tradução, usando um arquivo

magnético através de gravações. Destes dois tipos de recolha, parece-me possuir uma informação

mais próxima da original, a recolha feita pela RM, porque a informação gravada mantém

intactas, em quantidade e qualidade, a língua, a voz, a semântica linguística e cultural e,

sobretudo, a visão do mundo original.

21

(iii) Os artigos recolhidos do património cultural intangível encontram-se actualmente,

por um lado, num arquivo de papel (arquivo do ARPAC), por outro lado, num arquivo magnético

e digital (o arquivo da RM). Este último tipo de arquivo é considerado pela UNESCO, em

prejuízo da memória oral e colectiva, como sendo o mais seguro e não perde a fonte original

porque privilegia não só a gravação de sons, como também das respectivas imagens do variado

património oral em perigo que é posteriormente arquivado em bibliotecas, mediatecas, nas

estações radiofónicas e televisivas comunitárias e na internet. Pode, também, ser transposto para

o papel a fim de cumprir uma função pedagógica, através da impressão em livros, textos,

brochuras, incluindo a acção de tradução das línguas orais tradicionais africanas para as línguas

escritas de origem europeia que são elas que monopolizam o discurso oficial da educação na

maioria dos países africanos.

Embora este processo permita, à luz dos grandes objectivos da UNESCO, certa

preservação da identidade cultural dessas manifestações originariamente orais e certa

intercompreensão entre as línguas de origem europeia e as línguas africanas, levanta, igualmente,

outros problemas, nomeadamente:

- a perda de autoria colectivizada que é o traço distintivo mais forte das tradições orais.

Quando os investigadores transcrevem e traduzem as histórias contadas pela comunidade, do

canal oral para o escrito e das línguas locais para a língua do investigador, respectivamente,

quase sempre subestimam ou anulam a autoria colectivizada do grupo que conta a história, o que

pode culminar com o apagamento parcial ou total do nome e da legitimidade da voz do autor

colectivizado das histórias quando no papel e em língua portuguesa, o que faz com que a

comunidade indígena não mais a reconheça e assuma como sua (legitimidade), por um lado, ou o

mesmo investigador intencionalmente puxe para si a autoria dos textos traduzidos e transpostos

para o papel, pois a língua e a voz que enuncia a história do investigador são incapazes de

transmitir completamente a semântica, os valores simbólicos e estéticos da língua de origem.

A respeito da legitimidade da voz e da pessoa que assume a autoria de uma narrativa, em

abono à tese que defendo, analisando as narrativas dos indígenas afro-americanos, Castiano

(2010: 30) considera que:

“escutar as histórias da escravatura pela boca do próprio ex-escravo fugido era

«especial» e muito mais convincente. A manifestação seria também uma espécie de palco de

representação, um espaço de apresentação de discursos de objectivação”.

22

- o problema da intercompreensão por causa dos valores associados às línguas

envolvidas. Se atendermos à noção de «intercompreensão», na sua dimensão política, como uma

noção capaz de consciencializar para a diversidade linguística e cultural dos contextos em que o

sujeito se move, numa atitude de valorização e de respeito às formas de comunicação verbal, de

ser e de estar, isto é, que chama a nossa atenção para a vontade de compreender o outro numa

base de respeito pela dignidade humana e pelo direito humano de igualdade como o fundamento

democrática para a interacção social (Byram, Gribkova and Starkey, 2002, apud Andrade et al,

2006), conviremos que o processo de tradução e transposição da literatura oral das línguas

moçambicanas (Xichangana) para as línguas de origem europeia (Português) e para o canal

escrito enferma ainda de um preconceito, voluntário ou não, de inferioridade das tradições orais

no seu canal e línguas originais em relação ao padrão ocidental.

Os argumentos a favor desta atitude na educação e na ciência, em geral, variam desde o

nível político (a necessidade de manter a coesão e/ou unidade nacional entre diferentes etnias

através da educação numa língua não marcada etnicamente); económico (a fragilidade financeira

do Estado Moçambicano para desenvolver as línguas nacionais em pouco tempo, e o facto de a

língua portuguesa continuar a ser a única língua associada aos domínios institucionais mais altos

(Firmino, 2002:115); até o tecnológico (a alegação de que as língua moçambicanas ainda não

estão suficientemente desenvolvidas para veicular o conhecimento científico universal). Isto só

contribui para esculpir hierarquia de prestígio, valor cultural e civilizacional entre as línguas

envolvidas, o que nega a essência da intercompreensão.

5. Conclusão

Apesar de os géneros da Literatura Oral estarem previstos nos materiais do Ensino Básico

Moçambicano, desde os Programas, os Planos Curriculares até ao Livro do Aluno, concebidos

como potenciais recursos pedagógicos que concorram para a formação dos sujeitos de amanhã,

numa perspectiva futurista e passadista, não encontram suficiente materialização devido, por um

lado, à inexistência de materiais não só produzidos em línguas nacionais, mas que sejam de uma

matriz cultural bantu, por outro lado, à fraca preparação linguística do professor que não está

alfabetizado na sua língua materna na qual deve ensinar, no âmbito do Ensino Bilingue, mas

também pouca informação científica, sobre Literatura, em geral, e Literatura Oral, em particular,

e metodológica, para a sua exploração nas aulas.

23

Os dois tipos de pesquisa/recolha do Património Cultural Intangível havidas, recorrendo,

por um lado, à tradução e transposição do oral e das línguas bantu para o papel e Português, por

outro lado, à gravações e arquivos magnético e digital, foram feitas de forma isolada pelas

instituições do Estado com interesse desta matéria, o que não propiciou uma partilha dos saberes

ou experiências (no referente às estratégias, procedimentos, línguas e pessoas usadas para a

recolha e arquivo) adquiridos e aproveitamento adequado do produto da recolha pelos agentes da

educação formal bilingue;

A Literatura Oral, presente no Ensino Básico e expressa em línguas bantu, no programa

de Educação Bilingue, é seguramente um lugar oficial para a revalorização da cultura autóctone,

através: (i) da revitalização das línguas autóctones; (ii) da ligação do universo da oralidade de

origem da maioria das crianças moçambicanas com o novo mundo trazido pela escola formal;

(iii) reforço à formação da identidade das crianças, da sua visão do mundo e auto-estima, nos

seus valores socioculturais, históricos e simbólicos originais de matriz bantu; (iv) educação das

crianças nos valores da intercompreensão, plurilinguismo e multiculturalismo como filosofia de

vida.

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24

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25

Aspectos sintácticos das interrogativas-Q do Português de Moçambique 3

Danifo Ismael Chutumiá 4

Abstract

The aim of this study is to analyse the syntax of wh interrogatives of Mozambican Portuguese (MP),

comparing them with those of European Portuguese (EP) and Brazilian Portuguese (BP). The data suggest

that there are a few similarities in the wh-interrogatives of the three varieties of Portuguese.

Notwithstanding these similarities, there are in MP interrogatives with the constituent wh on an

intermediate position, which seems to be a particularity of this variety, revealing an innovative change in

relation to the other two standards of Portuguese language.

Keywords: wh interrogatives; Mozambican Portuguese; wh movement.

1. Introdução

O Português em Moçambique é L2 para a maioria da população, que tem uma língua

Bantu como L1. Assim sendo, o Português falado neste país possui regras e traços gramaticais

distintos do Português Europeu (PE); como consequência, muitos locutores têm «competências

múltiplas5», sendo o seu discurso gerado por traços e regras comuns às do PE, mas também

próprios da «nova» gramática.

Nos estudos sobre o Português de Moçambique (PM), os linguistas são unânimes em

afirmar que no Português oral ocorrem realizações linguísticas de algum modo “estranhas” à

norma do PE.

Neste contexto, são necessários estudos sobre as especificidades desta variedade africana

do Português.

O presente artigo faz uma abordagem sintáctica das interrogativas Q no PM,

comparando-as com as interrogativas do PE e do Português Brasileiro (PB). A análise dos corpus

3 Este artigo baseia-se na minha dissertação de mestrado com o título As interrogativas-Q do Português de

Moçambique: Contribuição para uma análise comparativa com o Português Europeu e o Português Brasileiro,

apresentada e defendida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sob orientação da Profª Doutora Ana

Maria Brito, a quem agradeço. Uma palavra de reconhecimento também para a Dra. Nélia Alexandra, da FLUL,

arguente principal da minha dissertação. 4 Mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Assistente Estagiário na Universidade

Pedagógica de Moçambique, Delegação de Maxixe. Membro do Centro de Linguística da Universidade do Porto. 5 Termo usado por Lightfoot, retomado em Gonçalves (2010).

26

recolhido6 mostra não só semelhanças relativamente às interrogativas Q das outras variedades

comparadas (PE e PB), como também assimetrias que revelam uma gramática inovadora

relativamente às interrogativas, caracterizada, em particular, pela possibilidade de interrogativas

com o constituinte Q numa posição intermédia.

Vejamos alguns exemplos:

(1) a. Onde esteve o João na noite passada?

b. Onde o João esteve na noite passada?

(2) Os miúdos fizeram o quê?

(3) Quem que chegou?

(4) Vais quando à Beira?

Como os exemplos ilustram, as interrogativas Q do PM apresentam comportamentos

semelhantes às do PE (preferência por interrogativas com movimento Q para posição inicial (cf.

(1)), e às do PB (interrogativas com movimento Q mas sem inversão do sujeito-verbo (cf. (1b)),

interrogativas com o morfema in situ (2) e interrogativas com o «COMP duplamente

preenchido»7 (cf. (3)). Para além destes tipos, encontramos no PM interrogativas em que o

morfema Q ocupa uma posição que chamamos intermédia (cf. (4)).

As interrogativas Q no PE e no PB foram analisadas por vários linguistas. Por isso, na

próxima secção, faremos uma breve incursão pelas hipóteses apontadas para o tratamento destas

interrogativas nos autores portugueses e brasileiros que consideramos mais importantes. No

ponto 3. avançaremos para o estudo das interrogativas do PM e no ponto 4. faremos algumas

conclusões.

6 O corpus sobre o qual trabalhamos é constituído a partir de quatro fontes: (i) os dados de Santos (2009); (ii) uma

amostra constituída por frases obtidas a partir de tarefas de produção escrita provocada; (iii) juízos de

gramaticalidade produzidas por falantes moçambicanos perante algumas frases fornecidas. Tanto em (ii) como em

(iii) trata-se de estudantes (87) dos cursos propedêuticos universitários (CPU´s) da Universidade Pedagógica

Sagrada Família da Maxixe. 7 Esta é a designação de Chomsky & Lasnik (1977), numa fase dos estudos sintáticos em que o movimento Wh era

concebido como movimento para COMP. Apesar de não ser essa a concepção actualmente aceite, vamos usar esta

expressão ao longo do artigo.

27

2. Alguns tratamentos das interrogativas parciais

Nesta secção veremos em que aspectos os autores convergem e divergem nas

perspectivas de abordagem estrutural das interrogativas Q, sobretudo no que concerne à análise

da periferia esquerda de frase. Destacamos as hipóteses de Duarte (2000) e Ambar (2006) para o

PE.

Duarte (2000) e Ambar (2006) são unânimes em afirmar que, no PE, o movimento Q para

início de frase deve ser acompanhado de inversão sujeito-verbo (cf. (5)). Há, no entanto, duas

situações de excepção: os casos em que o constituinte interrogativo é “D-linked” (formado por

Det/Qint+N) (6) e quando é usada a sequência “é que”, como no exemplo (7):

(5) O que comeu o corvo?

(6) Que vinho o João bebe habitualmente?

(7) O que é que o corvo comeu?

Apesar disto, estas autoras divergem nas perspectivas de abordagem estrutural das

interrogativas Q.

Duarte analisa as interrogativas como SCOMP, em que um COMP sem realização lexical

mas com os traços [+wh, +Foco] pode legitimar o sintagma-Q e motiva, em geral, o movimento

dos constituintes Q para Esp de SCOMP.

Desenvolvendo Rizzi (1997) e (2004), Ambar (2006) assume que o domínio de SCOMP

(CP) se desdobra em diferentes projeções e que os constituintes interrogativos se movem sempre

para WhP, como se descreve em (8):8

(8) [AssertiveP [Assertive’ [WhP [Wh’ [FocusP [Focus’ [IP….]]]]]]]

Voltaremos a estas duas concepções quando analisarmos os dados de interrogativas Q no

PM.

3. As interrogativas Q no PM: uma abordagem sintáctica

Tendo como base os dados de produção provocada e um inquérito sobre juízos de

gramaticalidade e também recorrendo às minhas intuições de falante desta variedade do

Português, podemos afirmar que o PM contemporâneo exibe os seguintes tipos gerais de

interrogativas-Q:

8 Amaral (2009) desenvolve Ambar (2006) quanto à periferia esquerda e acrescenta a categoria EvaluativeP.

28

(9) O que os miúdos fizeram?

(10) Quem que chegou?

(11) Vais à Beira quando?

(12) Vais quando à Beira?

Em (9) temos uma interrogativa com movimento Q para posição inicial, sem inversão

sujeito-verbo; em (10) mostra-se que, tal como no PB, nesta variedade do Português ocorrem

interrogativas com o "COMP duplamente preenchido", isto é, com a sequência Q+que; em (11)

temos uma interrogativa sem movimento Q, i.e., com Q in situ, que pode adquirir duas

interpretações, de verdadeira interrogativa ou de interrogativa em eco; e, por fim, em (12)

encontramos uma interrogativa com o constituinte Q numa posição intermédia.

Nos próximos parágrafos vamos discutir e analisar cada um dos tipos de interrogativas.

3.1. O movimento Q, o movimento do verbo e a ordem SU-V

Um dos aspetos que mais sobressaem na produção de interrogativas parciais dos falantes

do PM e nos dados do corpus é a tendência para optar por interrogativas do tipo Q…V; portanto,

os falantes desta variedade do Português movem Q, preferencialmente, para a posição inicial de

frase.

Isto acontece com verbos inergativos (13a), inacusativos (13b e 13e), transitivos (13c) e

predicativos (13d). O sujeito ocupa a posição pré-verbal (13c, d) ou aparece omisso (13e):

(13) a. Quem tossiu?

b. Quem chegou?

c. O que os miúdos fizeram?

d. Onde o João esteve na noite passada?

e. Quando vais à Beira?

Em (13) temos frases com movimento do morfema-Q para a posição inicial de frase, que

de acordo com Ambar (1992) e Brito (2003)) é a de Esp de SCOMP, motivado pela presença em

COMP dos traços [+INT; +Q].

As frases com verbos transitivos (13c), diferentemente do PE, mostram que a ordem dos

constituintes não é alterada, portanto, não se dá a «inversão sujeito-verbo». De acordo com

Ambar (1992) tal inversão é obtida por um movimento longo de V para COMP.

29

Nos exemplos em análise, o verbo apenas se desloca para Tempo para adquirir os traços

temporais, portanto, dá-se apenas um movimento curto de V, como se mostra na representação

simplificada em (14):

(14)

Podemos, a partir desta análise, avançar a seguinte hipótese:

(15) No Português de Moçambique (PM), a subida do verbo para COMP, que

justifica a alteração da ordem de palavras, especificamente a chamada

“inversão sujeito-verbo” nas interrogativas Q, não é obrigatória.

Quer dizer, existe no PM uma gramática inovadora relativamente ao PE sem a

propriedade do movimento do V para COMP. Tal como acontece no PB, nas interrogativas Q do

PM não é exigido que a expressão Q e o verbo finito sejam adjacentes.

3.2. A sequência “Q+que” nas interrogativas Q

De acordo com a minha condição de falante do PM, é possível ouvir com grande

frequência frases com o «COMP duplamente preenchido», como em (16):

(16) a. Onde que o João esteve na noite passada?

b. O que que os miúdos fizeram na noite passada?

c. Quem que chegou?

V SN

SN T’

T SV

ST COMP

SN COMP’

SCOMP

[+int;+Q] os miúdos o quei [v]i

[v]j fizeramj

30

No inquérito realizado, estas interrogativas são tidas como pouco naturais, devido à

presença do morfema que em posição pós-morfema Q e são das que tiveram maior número de

incerteza (duvidoso) por parte dos falantes (ver Anexo). Ainda assim, parece haver alguma

diferença nas respostas, pois as interrogativas de (16a) e (16c) ocorrem com maior frequência,

relativamente às de (16b).

Em (16a) onde e que estão adjacentes. O mesmo fenómeno parece ocorrer também em

orações relativas em textos escritos por estudantes moçambicanos9, estudados por Lindonde

(2002), como se mostra no exemplo (17):

(17) Nós artistas não temos sítios próprios [onde que podemos apresentar os

nossos trabalhos].

Em relação a este tipo de relativas locativas, Lindonde afirma que “o que é um

complementador, sendo gerado no núcleo de COMP, e onde na posição de Esp de SCOMP”

(Lindonde, 2002:94-95). Adotando a mesma ideia, propomos que nas interrogativas do tipo

Q+que, tal como nas relativas, o que é gerado no núcleo de COMP, e onde ocupa a posição de

Esp de COMP, como se descreve simplificadamente em (18):

(18)

3.3. As interrogativas Q in situ

9 Lindonde trabalhou com um corpus escrito constituído por testes escritos de estudantes universitários

moçambicanos do 1º do curso de Direito da U. Católica, em Nampula.

COMP’

ADV V

Ondei estevej na noite

passada

noite

[v]j [v]i

SADV

SCOMP

[+int;+Q]

que

T’ SN

SV T

COMP ST

SV SP

o João

31

No PE, tal como no PB, há interrogativas em que os morfemas Q surgem numa posição

interna à frase a que pertencem (in situ), seja ela uma posição argumental seja ela de adjunção.10

Este tipo de construção também ocorre no PM, como mostram os exemplos em (19):

(19) a. Vais à Beira quando?

b. Os miúdos fizeram o quê?

c. Deste o livro a quem?

Nestas interrogativas, os morfemas interrogativos permanecem na sua posição baixa. Em

(19a) temos o morfema Q adjunto com valor temporal (quando); em (19b) e (19c) temos

morfemas Q argumentais: um objecto direto (o quê) e um objeto indireto (a quem),

respectivamente.

O PE e principalmente o PB apresentam interrogativas Q in situ. Este fenómeno tem

justificado perspectivas de abordagem estrutural divergentes, que se relacionam sobretudo com

as concepções sobre a periferia esquerda da frase.11

Três soluções parecem possíveis para

descrever a estrutura sintáctica deste tipo de frases.

(i) “o Q in situ não se move” (Duarte, 2000). Para esta autora o Q in situ mantém-se na sua

posição baixa, mas estabelece com COMP [+int] uma relação de acordo (Agreement) à

distância.

Analisando frases interrogativas com Q in situ em PE, Duarte afirma que, por razões de

economia, os constituintes-Q podem permanecer in situ e a interrogativa-Q é interpretada como

interrogativa de eco. Assim, uma interrogativa como (19b) teria a seguinte representação

(simplificada):

10

No presente artigo não consideramos interrogativas múltiplas que sempre têm um morfema Q in situ. 11

As diferentes análises relacionam-se também com a diferença de interpretação verdadeira ou em eco. Assumimos

neste artigo, tal como em Brito (2003) e Kato (2013), que as interrogativas Q in situ possuem duas interpretações: de

eco e de verdadeiras interrogativas.

32

(20)

De acordo com esta visão, em (20) o único movimento que se observa é o do verbo para

T, para verificar o traço de tempo. O morfema Q permanece na sua posição baixa; porém,

mantém uma relação à distância com o COMP [+INT, +Q].

Contrariamente a esta proposta de Duarte (2000) há duas outras soluções para estas

interrogativas, que consideram que, de qualquer modo, há movimento do constituinte Q.

(ii) Ambar (2006) e Amaral (2009) consideram que nas interrogativas in situ o constituinte Q

se move para uma posição designada WhP e o resto da frase também se move mais para

cima, por “remnant movement”.

Segundo esta análise a estrutura de (19b) seria como descrita em (21) e (22):

(21) [AssertiveP [Assertive’ [ [WhP [Wh’ [FocusP [Focus’ ti [ [TP os miúdos fizeram o quê]]]]]]]]]

(22) [AssertiveP [os miúdos fizeram] k [Assertive´ [ [WhP o quêi [Wh´ [FocusP ti [Focus´ [ [TP tk

ti]]]]]]]]]

Ambar (2006) e Amaral (2009), desenvolvendo Rizzi (1997) e (2004), considerarem que

o sistema de SCOMP contém várias categorias funcionais que correspondem à periferia esquerda

e que representam a relação entre o conteúdo de frase (TP) e o discurso.

Em (22) o fenómeno Q in situ resulta da aplicação do movimento Q para a categoria WhP

nas interrogativas Q e de um movimento remanescente (remnant movement) do resto da frase

para uma categoria funcional na periferia esquerda (AssertiveP).

V SN

SN T’

T SV

ST COMP

COMP’

SCOMP

o quê [v]j fizeramj [+int;+Q] os miúdos

33

Um ponto fraco desta abordagem, apontado por Alexandre (2009), é o seguinte: como é

que uma interrogativa contém uma projeção funcional AssertiveP? Ou seja, “as interrogativas

não possuem valor de verdade e, se as propriedades assertivas não estão presentes nestas

construções, então uma projeção funcional assertiva não deve aparecer.” (Alexandre,

2009:122).

Num outro trabalho, Ambar & Veloso (2001) consideram que o movimento remanescente

de TP em (22) é justificado pelo facto de nas construções Q in situ a primeira parte ser

declarativa; e o Pedro comprou algo atribui um valor declarativo ao enunciado.12

As autoras,

com base no contraste interpretativo entre o Q in situ e Q inicial, afirmam que a resposta a uma

interrogativa Q verdadeira (23) e em eco (24) apresentar diferenças:

(23) a. O João comprou o quê? (eco)

b. ?*Nada.

(24) a. O que comprou o João? (verdadeira interrogativa)

b. Nada.

Para Ambar (2006:114), em (23a), o falante já sabe ou pressupõe que o João comprou

alguma coisa, e quer saber o quê. Deste modo, para alguns falantes há um contraste entre (23b) e

(24b): (23b), contendo uma resposta negativa, não é uma resposta adequada a (23a).

Ainda assim, Alexandre (2009) considera que o problema reside na confusão entre

asserção e pressuposição. E acrescenta: “se a questão (23a) é interpretada como uma

interrogativa eco, a resposta não pode ser negativa. Mas, se interpretada como uma verdadeira

interrogativa, a resposta negativa é gramatical porque não estará ligada discursivamente”

(Alexandre, 2009:122).13

Em síntese, Alexandre (2009), opondo-se à ideia de Ambar & Veloso (2001) e Ambar

(2006), considera que as interrogativas Q in situ não parecem exigir um valor assertivo e, por via

disso, não necessitam de uma projeção funcional AssertiveP. E sobre o movimento do morfema

Q em interrogativas Q in situ, esta autora segue a opinião de Duarte (2000), segundo a qual há

ausência de movimento Q nas interrogativas in situ.

Finalmente, interessa apresentar Kato (2013) sobre a existência de dois tipos de

interrogativas Q in situ.

12

Do ponto de vista semântico, quer em interrogativas verdadeiras quer em interrogativas em eco há sempre uma

implicação lógica (O João comprou algo). 13

Tradução minha.

34

A partir de diferenças prosódicas, a autora encontra dois tipos de in situ no PB: (i) com

entoação ascendente, quando a interpretação é de interrogativa eco (cf. (25a)) e (ii) com a

entoação descendente, quando se trata de uma interrogativa verdadeira (cf. 25b)).14

(25) a. Os miúdos fizeram o quê? ↑

b. Os miúdos fizeram o quê? ↓

c. Os miúdos fizeram um bolo? ↑

A frase (25a) é uma interrogativa eco, possui uma entoação ascendente e é um caso real

de in situ, possuindo uma entoação semelhante à das interrogativas sim/não, como em (25c).

Em (25b), pelo contrário, temos uma verdadeira interrogativa, tratando-se de um “falso”

in situ.

Comparando a sua perspectiva com a análise de Ambar (2006), segundo a qual o Q in

situ resulta da aplicação de movimento remanescente (remnant movement), Kato aponta como

ponto fraco desta abordagem o facto de esta não explicar por que razão o verbo não acompanha o

morfema Q para WhP antes do remnant movement, quando o PE contém um Q inicial, em frases

como O que comprou o Pedro? (cf. Kato (2013:182).

Dadas estas razões, Kato apresenta então uma terceira hipótese para as interrogativas Q in

situ, que apresentamos em (iii):

(iii)Apoiando-se em Belletti (1998)15

, Kato considera que o constituinte Q in situ se move

para uma posição acima de vP e que se justifica aceitar uma nova “área” funcional

para categorias ligadas a Tópico e Foco junto de vP.

Para analisar estas interrogativas Kato (2013:183) baseia-se na estrutura de Belletti

(1998) para o Italiano, segundo a qual acima de vP há um lugar para constituintes topicalizados

ou focalizados:

(26) [CP [TP [Top [FocP [TopP [vP [VP …

14

Embora esta distinção de prosódia seja interessante, não vamos fixar-nos nela em relação ao PM, pois os nossos

dados, que na totalidade são resultado de aplicação de inquéritos escritos, não nos permitem perceber a diferença

entre o Q in situ com a interpretação de eco e a de interrogativa in situ verdadeira. 15

Belletti (1998) recorre às interrogativas Q dos dialectos do Italiano com o sujeito na posição pós-verbal para

explicar esta ideia, como se mostra nos exemplos:

(1) Quando l’è venuta la Maria?

Quando elacl+tem vindo a Maria?

Nesta construção temos um clítico que normalmente sinaliza a inversão de SU nas frases declarativas. O sujeito

mover-se-ia para uma posição baixa de Tópico.

35

Quer dizer, para Kato, nas interrogativas Q in situ, não temos um movimento Q para a

posição de Esp de SCOMP, mas, em vez disso, temos um movimento de um tipo mais curto para

uma categoria funcional na periferia esquerda de vP. Por outras palavras, seja em interrogativas

com Q inicial seja em interrogativas com o Q in situ, o morfema Q é sempre movido. Vejamos o

exemplo (27):

(27) Você viu quem?

(27) teria a estrutura (28):

(28) [IP você viu [FP quem [vP tvocê tviu [VP [tviu tquem]]]]] ↓

Em (28), quem move-se para uma posição designada FP, à beira de vP, requerendo nesta

posição um esforço nuclear e uma queda prosódica.

Aplicando a análise de Kato (2013) às interrogativas Q in situ do PM, o morfema Q

mover-se-ia para uma posição designada FP, próxima de vP. A frase (25b) teria a estrutura em

(29):

(29) [TP [os miúdos fizeram [FP o quê [vP tos miúdos tfizeram [VP tfizeram to quê]]]]]

Antes de tomar uma posição sobre esta hipótese, analisamos no parágrafo seguinte um

outro tipo de interrogativas do PM, pois ele vai servir para confirmarmos ou não a ideia de

movimento Q parcial e a legitimação do constituinte Q movido.

3.4. O morfema Q na posição média: movimento parcial de Q?

Nos dados dos nossos inquéritos encontramos interrogativas com o Q numa posição

intermédia16

, como ilustram os exemplos:

(30) a. Tu vais quando à Beira?

b. Fizeram o quê os miúdos?

c. Deste a quem o livro?

Interrogativas do tipo SN V Q SX, como as de (30), são pouco encontradas em PE e PB,

mas, atualmente, ocorrem no PM e as respostas aos nossos inquéritos confirmam-no17

.

16

Estes dados do PM são confirmados por Santos (2009), no seu trabalho sobre as interrogativas diretas no

Português de Maputo. 17

De acordo com a Dra. Nélia Alexandre estas construções também podem ser produzidas por falantes do PE na

oralidade.

36

Em (30) temos frases interrogativas com o morfema Q numa posição “intermédia”, isto é,

o morfema Q não se encontra nem no início de frase nem na sua posição in situ. Em (30a) temos

o advérbio interrogativo quando com valor de tempo e que na base deverá ser projectado como

adjunto a SV; em (30b) um objecto directo a separar o verbo e o sujeito; em (30c) um objecto

indirecto a separar o verbo e o objecto direto.

Não ocupando estes constituintes a posição de Esp de SCOMP, a questão a discutir é se

eles são movidos ou não e como são legitimados.

Vamos assumir que os constituintes Q quando ocupam esta posição intermédia são

movidos.18

Mas podem colocar-se de qualquer modo duas hipóteses.

Hipótese 1: O movimento opera parcialmente e o constituinte Q é legitimado por um

operador interrogativo na periferia esquerda de vP. De acordo com esta hipótese, o operador

[+int] ocuparia o núcleo da categoria funcional intermédia FP, explorando as hipóteses de

Belletti (1998) e Kato (2013).

Segundo esta hipótese teríamos a seguinte estrutura para (30b):

(31)

18

Para dar conta de frases como (30b) poder-se-ia explorar uma hipótese alternativa, segundo a qual o constituinte o

quê se move para a posição de Esp de vP para verificar caso acusativo; nesse caso não seria necessária uma posição

intermédia FP. Em relação ao OI em (30c), se o Português, em particular o PM, tiver um padrão de ordem de

palavras V OI OD pode colocar-se novamente a hipótese alternativa de o SPREP a quem ocupar uma posição

adjacente ao verbo sem precisar de ser postulada a categoria intermédia FP.

ti

Beir

aBei

raBri

rai

tk os miúdos tk

FP

T

NP F’

F vP

NP v’

v VP

NP

P

V’

V NP

NP

TP

pro [+int] o quêi

ti

fizeramk

37

Apesar de os dados em (30) apontarem para o movimento parcial de Q, a hipótese de que

o constituinte é legitimado pelo operador imediatamente acima de vP parece-nos pouco credível,

pois temos vindo a assumir que, em construções interrogativas Q, o operador com os traços

[+int] ocupa a posição do núcleo de CP.

Deste modo, uma segunda hipótese afigura-se necessária para dar conta da interpretação

deste tipo de interrogativas Q.

Hipótese 2: O movimento Q opera parcialmente e o constituinte Q é legitimado por um

operador [+int] em COMP por concordância à distância.

(32)

Seguindo esta hipótese, neste tipo de interrogativas existiria uma posição intermédia FP

para acomodar o sintagma Q objeto direto, ocupando o sujeito uma posição pós-verbal. Mas, o

operador interrogativo estaria em COMP. Cremos que esta é a hipótese mais unificadora e que

o quêj [pro] [+int]

tj tk tk tk

fizeramk

F’

CP

v VP

F vP

T’ NP

T FP

V NP

V’ NP

TP C

NP

v’ NP

PPP

PPP

tj os miúdos

38

permite incluir não só as interrogativas Q in situ analisadas em 3.3. como aquelas em que o

movimento Q opera para uma posição intermédia.

Se assim for poderá manter-se a ideia clássica de Duarte (2000) e Alexandre (2009)

segundo a qual o operador COMP [+int] ou legitima localmente o morfema Q ou legitima à

distância um morfema dessa natureza, quer este esteja numa posição final quer este esteja em

posição intermédia.

4. Conclusões

Neste trabalho pretendemos analisar as interrogativas Q no PM. A análise dos resultados

de dados de produção e de juízo de gramaticalidade permitiu-nos identificar quatro tipos de

interrogativas Q:

(i) com movimento Q para posição inicial, com e sem inversão sujeito-verbo;

(ii) com o chamado «COMP duplamente preenchido»;

(iii) sem movimento Q, i.e., com Q in situ (verdadeira ou em eco);

(iv) com movimento Q para uma posição intermédia.

O estudo permitiu chegar à conclusão de que, nesta variedade do Português, os falantes

optam por interrogativas com movimento Q. Porém, diferentemente do PE, no PM a subida do

verbo para COMP, que justifica a alteração da ordem de palavras, especificamente a chamada

“inversão sujeito-verbo” nas interrogativas Q não é obrigatória. Tal como acontece no PB, nas

interrogativas Q do PM não é exigido que a expressão Q e o verbo finito sejam adjacentes.

Relativamente ao fenómeno apresentado em (ii), ainda que pareça não ser tão frequente

como nas relativas, é possível encontrar no corpus escrito interrogativas com a sequência

Q+complementador que, embora as respostas dos inquéritos não sejam muito claras.

Na análise das interrogativas verdadeiras in situ discutimos três hipóteses, (i) a de Duarte

(2000), que assegura que, nestas construções o morfema Q permanece in situ, sendo legitimada à

distância por COMP [+int]; (ii) a posição de Ambar (2006) e Amaral (2009), que consideram

que o constituinte Q se move para uma posição designada WhP e o resto da frase também se

move mais para cima, por “remnant movement”; (iii) finalmente a de Kato (2013), que considera

que o constituinte Q in situ se move para uma posição acima de vP, que a autora designa FP,

uma nova “área” funcional para categorias ligadas a Tópico e Foco junto de vP.

Assumimos que nas interrogativas Q in situ os morfemas-Q não se movem e são

legitimados pelo operador COMP [+int] à distância, tal como propõe Duarte (2000).

39

Relativamente ao fenómeno que ocorre em (iv) aventámos duas hipóteses, (i) o

movimento opera parcialmente e o constituinte Q é legitimado por um operador na periferia

esquerda de vP; (ii) o movimento Q opera parcialmente e o constituinte Q é legitimado por um

operador Q em COMP, isto é, trata-se de um caso de concordância à distância. Cremos que a

hipótese mais provável e unificadora é a de que o operador interrogativo está em COMP.

Julgamos que ainda há muito que discutir sobre as interrogativas Q no PM, sobretudo no

que tange à sua relação com as línguas Bantu; seria ainda interessante fazer um estudo

relativamente à prosódia das interrogativas Q.

5. Referências Bibliográficas

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40

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Mestrado em Linguística. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013.

DUARTE, I. "Português europeu e Português brasileiro – 500 anos depois: a sintaxe".

Comunicação apresentada no Congresso Internacional dos 500 Anos de Língua Portuguesa

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Universitária, Maputo, 2009, pp. 95-155.

41

Anexo

Tarefas de juízos de gramaticalidade

Frases interrogativas OK ? *

1. a. Quem tossiu?

b. Quem é que tossiu?

c. Tossiu quem?

d. Quem que tossiu?

2. a. O que comeste ao almoço?

b. Comeste o quê ao almoço?

c. Ao almoço comeste o quê?

d. O que é que comeste ao almoço?

e. Que que comeste ao almoço?

f. O que que comeste ao almoço?

3. a. Quando vais à Beira?

b. Vais quando à Beira?

c. Vais à Beira quando?

d. Quando é que vais à Beira?

e. Quando que vais à Beira?

4. a. O que estás a fazer?

b. O que é que estás a fazer?

c. Estás a fazer o quê?

d. Que que estás a fazer?

e. O que que estás a fazer?

5. a. Quem chegou?

b. Quem que chegou?

c. Quem é que chegou?

d. Chegou quem?

6. a. Onde é que o João esteve na noite passada?

b. Onde que o João esteve na noite passada?

c. Onde o João esteve na noite passada?

d. Onde esteve o João na noite passada?

7. a. O que os miúdos fizeram?

b. Fizeram o quê os miúdos?

c. Os miúdos fizeram o quê?

d. O que que fizeram os miúdos?

e. Que que fizeram o quê?

f. O que é que os miúdos fizeram?

8. a. Perguntei que os miúdos fizeram.

Indique o seu juízo de gramaticalidade relativamente às frases abaixo, marcando-as com “OK”

(bem formada); “?” (pouco natural ou “duvidoso”) e “*” (inaceitável e agramatical).

42

Resultados da tarefa de juízos de gramaticalidade (%)19

Juízo

Gramaticalidade

P1a P1b P1c P1d P2a P2b P2c P2d P2e P2f

Gramatical 70.1 41.4 2.3 4.6 81.6 18.4 18.4 43.7 3.4 6.9

Duvidoso 27.6 55.2 11.5 34.5 14.9 72.4 51.7 41.4 9.2 17.2

Agramatical 2.3 3.4 86.2 60.9 3.4 9.2 29.9 14.9 87.4 75.9

Juízo

Gramaticalidade

P3a P3b P3c P3d P3e P5a P5b P5c P5d P6a

Gramatical 54.0 21.8 14.9 87.4 2.3 81.6 6.9 65.5 6.9 86.2

Duvidoso 27.6 62.1 46.0 10.3 27.6 13.8 33.3 28.7 29.9 11.5

Agramatical 18.4 16.1 39.1 2.3 70.1 4.6 59.8 5.7 63.2 2.3

Juízo

Gramaticalidade

P6b

P6c

P6d

P7a

P7b

P7c

P7d

P7e

P7f

P8a

Gramatical 5.7 43.7 66.7 58.6 29.9 36.8 9.2 4.6 66.7 11.5

Duvidoso 35.6 41.4 25.3 34.5 52.9 43.7 19.5 11.5 29.9 28.7

Agramatical 58.6 14.9 8.0 6.9 17.2 19.5 71.3 83.9 3.4 59.8

Juízo

Gramaticalidade

P8b P8c P8d P9a P9b P9c P9d

Gramatical 10.3 48.3 71.3 78.2 41.4 28.7 44.8

Duvidoso 52,9 27,6 23.0 14.9 46.0 44.8 31.0

Agramatical 36,8 24,1 5.7 6.9 12.6 26.4 24.1

19

A frase 4 não foi considerada neste trabalho.

b. Perguntei que é que os miúdos fizeram.

c. Perguntei o quê os miúdos fizeram.

d. Perguntei o que é que os miúdos fizeram.

9. a. A quem deste o livro?

b. Deste a quem o livro?

c. Deste o livro a quem?

d. A quem é que deste o livro?

43

Contribuição para um sistema da gestão e garantia da qualidade da educação básica:

perspectiva sistémica e desenvolvimentista de definição de indicadores da qualidade da

educação

Geraldo Teodoro Ernesto Mate20

Resumo

O presente artigo enquadra-se no contexto nacional da «Implantação do Sistema de Gestão e Garantia de

Qualidade», e tem como enfoque a definição de dimensões e indicadores de qualidade para a escola

primária. Metodologicamente, o autor começa por discutir as abordagens actuais sobre a qualidade da

educação, agrupando-as em quatro grupos teóricos: perspectiva organizacional-empresarial, perspectiva

quantitativa, perspectiva histórico-relativista e perspectiva da eficácia formativa. Para superar a tendência

reducionista destas perspectivas propõe uma definição da qualidade da educação baseada no dinamismo

sistémico: qualidade da educação como nível de equilíbrio optimal entre as oportunidades de acesso e as

oportunidades educativas oferecidas pelo sistema. Para a definição dos indicadores e padrões de qualidade

(segundo ao autor: especificadores), o autor propõe a consideração de duas dimensões, que, ao mesmo

tempo, constituem componentes de um modelo de abordagem, portanto, perspectivas: a perspectiva

sistémica e a perspectiva desenvolvimentista. Na primeira são identificados indicadores e especificadores

do nível de integração interna e externa, indicadores e especificadores do nível de coordenação e

indicadores da excelência funcional do sistema. Na segunda, que fecha a contribuiçao, o autor apresenta

os desafios para a garantia da qualidade, isto é, para o aumento da excelência da acção sistémica.

1. Em jeito de introdução: abordagens actuais sobre a qualidade da educação

A ideia de que a qualidade da educação é um constructo teórico dificilmente mensurável

está muito divulgada, tornando-se, muitas vezes, a qualidade da educação um campo tenebroso,

ao qual poucos desejam aceder, mesmo entre os cientistas da educação. Sob o ponto de vista do

discurso político, a qualidade da educação tem sido usada como «cavalo de troia», para

fundamentar, na óptica de alguns, o «fracasso» do sistema.

Em relação ao primeiro aspecto, existem muitas contribuições científicas e de

organizações, que têm em vista o desenvolvimento de modelos de avaliação da qualidade da

educação, na busca de critérios objectivos e da cientificidade da sua mensuração. Poderíamos

identificar quatro grupos de tendências: abordagem organizacional-empresarial, abordagem

quantitativa, abordagem histórico-relativista e abordagem da eficácia formativa.

20

Doutor em Ciências da Educação. Docente da Universidade Pedagógica de Moçambique, Faculdade de Ciências

de Educação e Psicologia, Departamento de Ciências de Educação. Membro da Comissão de Autoavaliação da UP

(CAUP).

44

1.1. Abordagem organizacional-empresarial

A Unesco tem proposto, como critério de avaliação da qualidade da educação, a análise

da relação entre insumos-processos-resultados (Dourado; Oliveira; Santos: 2013: 7), o que, na

minha óptica, não obstante significar a busca de um critério objectivo da definição da qualidade,

constitui uma transposição do conceito da qualidade empresarial para o contexto da educação.

Nesta perspectiva analógica, "(...) a qualidade é definida envolvendo a relação entre os recursos

materiais e humanos, bem como, a partir da relação que ocorre na escola e na sala de aulas, ou

seja, os processos ensino aprendizagem, os currículos, as expectativas das crianças, etc. (...).

Ainda (...) –nesta perspectiva 21

- a qualidade pode ser definida a partir dos resultados

educativos, representados pelo desempenho do aluno" (Idem, apud Unesco, 2013: 12).

Portanto, a visão da Unesco e de outros organismos internacionais sobre a qualidade da

educação assenta na perspectiva organizacional/empresarial, que destaca a qualidade de

recursos, a qualidade dos processos e a qualidade dos resultados, sem contudo, explicitar a

relação intrínseca e necessária entre essas dimensões da qualidade.

1.2. Abordagem quantitativa

Outra perspectiva de abordagem da qualidade da educação é uma perspectiva mais

quantitativa, que está presente nos estudos internacionais e nacionais sobre a qualidade da

educação. É uma perspectiva comparativa e orientada para a qualidade dos resultados. Exemplo

dessa perspectiva são os estudos da SACMEQ, do PISA e mesmo do INDE. Trata-se da

"vinculação do conceito de qualidade à medição, rendimento e a indicação da necessidade da

avaliação da aprendizagem, além de apontar algumas condições básicas para o alcance da

qualidade pretendida" (Dourado; Oliveira; Santos: 2013: 11). Estes estudos, nos dizem como é a

qualidade, mas não como se chega a ela, quer dizer, não respondem a pergunta do porquê.

1.3. Abordagem histórico-relativista

A terceira perspectiva pode ser designada de perspectiva histórico-relativista. O

pressuposto epistemológico é o de que a qualidade é um conceito histórico (Dourado; Oliveira;

Santos: 2013: 3; Pavievitch; Sohn; Eyng, 2011, apud Dourado; Oliveira, 2009: 203), isto é, um

21

A clarificação é minha.

45

conceito que varia segundo o tempo e o espaço, podendo-se identificar, na história da

humanidade e dos povos, diferentes tendências de percepção e interpretação da qualidade. É

nesta lógica que alguns autores referem-se à qualidade sincrónica (qualidade numa época) e uma

qualidade diacrónica (qualidade ao longo da história).

1.4. Abordagem da eficácia formativa

A quarta perspectiva, basicamente defendida pelo Banco Mundial e seus organismos, é a

perspectiva da eficácia formativa. Neste óptica, a eficácia da escola depende de três factores

fundamentais, a saber (Dourado; Oliveira; Santos, 2013):

Conhecimento por parte dos professores, dos conteúdos e metas do currículo;

Organização da classe de forma a favorecer a aprendizagem; e

Avaliação do progresso do aluno e da eficácia pedagógica.

Associada à ênfase nos factores da eficácia escolar, o que tem muito a ver com o

assegurar o rendimento dos investimentos na escola, está uma perspectiva de ajustamento

contínuo e permanente, em busca de uma relação optimal entre os diferentes factores. Neste

sentido, esta perspectiva também se pode considerar uma perspectiva operativa, orientada para

a eficácia da acção pedagógica. Esta perspectiva preocupa-se, portanto, com os indicadores de

uma escola eficaz. Segundo Lück, são nove os indicadores de uma escola efectiva (numa

perspectiva positiva): liderança escolar, flexibilidade e autonomia, apoio à comunidade, clima

escolar, processos de ensino e aprendizagem, avaliação do desempenho académico, supervisão

dos professores, materiais e textos de apoio pedagógico e espaço físico adequado (2013:1-5).

1.5. Limitações epistemológicas das abordagens actuais sobre a qualidade da

educação

Todas estas tendências de abordagem ou conceptuais sobre a qualidade da educação tem

uma determinada contribuição nos esforços internacionais na busca de uma concepção de

consenso e mais operativa, no sentido da busca de uma concepção baseada em padrões concretos

e mensuráveis da qualidade. Todas elas têm como aspecto característico a busca de um critério

objectivo de medida da qualidade. Contudo, a limitante comum de todas as perspectivas

apresentadas é a falta de uma visão holística (sistémica), incorrendo, por isso, todas elas no risco

46

de uma visão linear, sob a qual está subjacente um paradigma reducionista da qualidade do

fenómeno educativo.

A perspectiva reducionista é também o denominador comum do discurso político,

anteriormente mencionado, que vê a qualidade da educação como um «cavalo de troia» para

fazer a sua reivindicação política, descurando a questão da historicidade do sistema, realçando as

perdas, mas esquecendo os ganhos.

2. Pressupostos epistemológicos de uma visão sistémica e desenvolvimentista

O modelo de abordagem aqui proposto, para evitar o reducionismo na abordagem da

qualidade, pode ser designado de modelo sistémico e desenvolvimentista.

A perspectiva sistémica constitui uma atitude epistemológica, portanto filosófica, em

relação a abordagem do fenómeno educativo. Nela se realça a necessidade de uma visão

holística, em oposição a uma abordagem reducionista, isto é, uma visão que considere a

multiplicidade de causas que determinam a eficácia do processo educativo. O sistema contudo, é

uma realidade dinâmica determinada pela relação entre estrutura e função.

Por um lado, a estrutura é o substracto material do sistema e sua acção, na realização da

sua intencionalidade e, por outro lado, a função constitui a ligação viva entre a intencionalidade

sistémica e a praxis, determinando o funcionamento do sistema através do exercício dos

diferentes papeis, aplicação das normas, da capitalização de competências e da própria realização

de tarefas).

A perspectiva desenvolvimentista realça a historicidade do sistema da educação, não

necessariamente da qualidade da educação. Nela pressupõe-se que "servindo a sociedade e o

Homem e inscrevendo-se num Pró Vir dinâmico e contínuo, a educação e o sistema da educação

que a oferece, é uma realidade ontológica em crescimento e realização" (Mate, 2012). A

historicidade aqui referida não é aquela que se rende ao espírito do tempo (no sentido de que a

qualidade da educação é apenas aquela que hoje podemos ter), mas é aquela de orientação

futurista, conquanto se preocupe com a identificação de indicadores para a elevação da

maturidade sistémica.

Neste sentido, o sistema de educação, tal como o organismo vivo, percorre estágios e

fases de maturidade, numa construtividade que se vai autosuperando em diferentes estágios

qualitativos, numa tendência progressiva, pese embora os regressos sejam parte da sua história.

Em todas essas fases, o sistema tem determinadas tarefas evolutivas, para o seu crescimento, a

47

realizar. A realização de tais tarefas evolutivas interage com forças contextuais e com

necessidades, no tempo e espaço. Essa interação determina as prioridades de cada tempo.

Daí, a questão epistemológica básica na construção da qualidade para o sistema, é a

identificação de tarefas evolutivas, aquelas que quando realizadas aumentam qualitativamente o

nível do desempenho do sistema ou nível da acção sistémica, e relançam o sistema numa rota de

desenvolvimento. Esta é uma perspectiva construtiva que deve estar subjacente na monitoria da

qualidade da educação.

Portanto, os indicadores da gestão da qualidade da educação devem se definidas em duas

dimensões:

Sistémica; e

Desenvolvimentista.

A consequência de consideração destas duas dimensões é a necessidade da definição dos

indicadores da gestão da qualidade da educação em níveis. Os indicadores da gestão da

qualidade da educação são por mim percebidos como os índices de controle dos processos de

monitoria e avaliação da qualidade real do sistema, o que implica a avaliação da capacidade do

sistema para manter o equilíbrio entre as exigências da qualidade (exigências evolutivas do

sistema) e o desempenho das tarefas sistémicas.

3. Qualidade da educação na perspectiva sistémica e desenvolvimentista

A qualidade da educação, na perspectiva sistémica, não será apenas percebida através da

qualidade de recursos, dos processos ou dos resultados, ou apenas na sua dependência em relação

ao tempo e ao espaço ou, ainda, através da medição dos resultados. Ela será, antes demais,

entendida como a capacidade do sistema de estabelecer um equilíbrio optimal entre a garantia do

acesso ao sistema e a oferta de oportunidades educativas.

Enquanto o acesso à educação é medido através da taxa de escolaridade, quer dizer, da

capacidade do sistema ou subsistema em termos de cobertura populacional (resposta è demanda),

a oferta de oportunidades educativas é a capacidade do sistema ou subsistema de se adequar às

características e às necessidade da população alvo.

Portanto, numa primeira acepção, a qualidade da educação será garantida quando todos

os indivíduos da população escolarizável forem escolarizados e quando à essa população, nas

suas variações individuais, for garantida uma resposta adequada às suas necessidades e às suas

48

características, o que inclui uma educação para a sociedade e para a cidadania. Neste nível,

consequentemente, os indicadores de uma educação de qualidade, particularmente da educação

básica (para o nosso caso, Primária), serão:

Orientação para a população escolar (criança), através do currículo e da praxis

pedagógica;

Adequação às necessidades educativas da faixa etária;

Adequação às necessidades educativas especiais (inclusão), partindo do pressuposto de

que todo o aluno é pessoa de necessidades educativas especiais e que estas são

diferenciais (em grau e tipo de necessidade);

Organização do espaço de aprendizagem (infraestruturas, relação entre a demanda e

espaço físico);

Relação entre as exigências da aprendizagem, suas finalidades e propósitos

epistemológicos e a oferta do espaço;

Tempo de aprendizagem (adequação aos standartes internacionais);

Relação entre o perfil do ensino primário, as características da sua população e as

exigências da tarefa docente com a qualificação pedagógica dos professores;

Oferta da educação para a cidadania;

Adequação do perfil escolar às necessidades e finalidades educativas.

Na perspectiva desenvolvimentista, a qualidade será o conjunto de acções sistémicas,

tarefas evolutivas ou desafios sistémicos, que quando realizados aumentam a maturidade

sistémica, o nível da acção sistémica ou o ajustamento adequado do sistema ao seu ambiente

social e natural.

Tanto a qualidade sistémica, como a qualidade evolutiva, são bens sistémicos ou

benefícios sociais contextuais, cujo alcance depende muito da compreensão e da definição do

perfil escolar das escolas da educação básica. Neste contexto, a definição da estrutura e funções

do subsistema terá em conta a missão da escola primária, como (1) escola genuinamente

destinada à criança; (2) escola do ensino geral e obrigatória; (3) como escola comum para todas

as crianças (sem descriminação, nem exclusão); e (4) escola-base para todo o sistema (Mate,

2013: 42, apud SCHORCH, 1998, et al).

Na óptica da missão da escola primária, são também critérios e princípios da qualidade

educativa, os seguintes:

49

O pedocentrismo: orientação para a criança;

Oferta de uma educação geral e obrigatória;

A democraticidade do acesso: acesso não discriminatório, sob qualquer que seja o

critério: raça, dinheiro, origem étnica, proveniência geográfica, etc.;

Capacidade de provocar a sustentabilidade do sistema: transmissão de conhecimentos e

desenvolvimento de competências que permitam a progressão e uma continuidade bem

sucedida no sistema.

O conhecimento do perfil da escola primária determinará a escolha adequada das opções

pedagógicas (incluindo a alocação de professores com qualidade profissional), a definição

adequada de recursos, estratégias e opções metodológicas, etc. Como parte integrante do perfil

da escola, está o perfil do aluno. No nosso caso, em Moçambique exige-se a discussão sobre a

tipologia da aprendizagem a ser implementada e sobre as medidas de implementação e os

recursos necessários.

4. Perspectiva sistémica de gestão da qualidade da educação: integração, coordenação,

funcionalidade como critérios de qualidade

Na perspectiva sistémica, portanto, holística da abordagem do fenómeno educativo, na

busca de um modelo interpretativo ou de um paradigma de análise, o sistema da educação ou

qualquer um dos seus subsistemas, pode ser considerado um fenómeno integrado e coordenado e

como um organismo funcional(Cfr. Mate, 2012). Trata-se do cruzamento de duas dimensões:

uma dimensão estrutural e uma dimensão funcional. Estas dimensões são simbióticas e

constituem uma unidade, conquanto a estrutura implica uma função e a função gera estrutura.

Portanto, não se trata de um simples funcionalismo ou estruturalismo, mas de uma relação

dinâmica e dialéctica, num contexto de inter-actividade e influência recíproca. As duas

dimensões interagem dentro de um ambiente envolvente, o tempo, a história.

4.1. Integração sistémica como critério de qualidade

Sob o ponto de vista da estrutura, os indicadores da gestão da qualidade da educação

pressupõem dois níveis de definição. Ao nível de integração do sistema e ao nível da

coordenação dentro do sistema. "Como fenómeno integrado, o sistema da educação implica uma

integração interna, com vista a sua sustentabilidade e equilíbrio interno" e, uma integração

50

externa, quer dizer, "uma integração nas tendências regionais e internacionais, assim como uma

integração num contexto e ambiente sóciocultural" (Mate, 2012).

4.1.1. A integração interna do sistema como critério de qualidade

A integração interna do sistema pressupõe a definição de indicadores de coerência interna

do sistema. Ela define a identidade, o perfil do sistema, fundamenta-se nas inter-relações e

interdependência entre os elementos do sistema e realiza-se a diferentes níveis.

Integração interna do sistema da educação

Níveis de integração

interna

Componentes de integração

Macro Meso Micro

Nível 1 Demanda e expectativas

sociais

Desenho curricular Competências (perfil de

saída)

Nível 2 Política da educação Recursos Estrutura operativa do

sistema

Nível 3 Objectivos e finalidades

do sistema

Programas de ensino e

aprendizagem

(conteúdos)

Gestão do PEA (espaço

didáctico)

Nível 4 Objectivos estratégicos Gestão e organização do

sistema

Planos de

desenvolvimento

Nível 5 Visão da escola Estilos e concepções de

docência

Estilos e concepções de

aprendizagem

Os níveis de integração constituem o esquema da hierarquia e da organização lógica e

ordenada da acção sistémica, como conjunto de actividades e processos necessários ao

funcionamento do sistema. É o que Luhmann designa de autopoieses, que é a capacidade interna

do sistema de se manter independente, estável e autoregulado.

A hierarquização da acção sistémica não é estática, mas dinâmica, do mesmo modo que

não é unidireccional, mas implica uma ordem de interacção reversível. Acção sistémica tanto

pode se orientar da macroesfera para a microesfera e, como também da microesfera para a

macroesfera. Do mesmo modo que a acção sistémica pode-se hierarquizar-se em níveis de acção,

vertical ou horizontalmente, numa perspectiva reversível. Nesta perspectiva, acrescenta-se um

indicador da qualidade sistémica: a capacidade e as potencialidades comunicativas entre as

diferentes esferas. Para usar os conceitos de Habermas: a capacidade de promover a acção

comunicativa, em oposição a uma acção estratégica, que é caracterizada pela imposição de um

plano individual num contexto organizacional. A acção comunicativa, pelo contrário,

51

caracteriza-se pela orientação para o entendimento mútuo, para a harmonização dos interesses e

planos de acção, e para a busca do consenso (Wikipedia). Neste sentido, a cultura comunicativa

e participativa é um pré-requisito da qualidade integrativa do sistema.

Retomando a questão dos níveis de integração, o quadro anterior mostra que existem

cinco níveis básicos de integração. Esses níveis são indicadores expressos da qualidade da

educação, neste caso, da educação básica, e incluem especificadores. Assim:

Da necessidade da integração entre a demanda/expectativas sociais, o desenho curricular

(incluindo programas de ensino e aprendizagem) e o perfil de saída do aluno

(competências) deriva, como indicador, a qualidade formativa, que indica a eficácia

(realização das expectativas sociais) e eficiência (realização das expectativas sociais em

tempo real e transformação das expectativas em competências concretas);

Da necessidade de integração entre a Política da Educação, os recursos e a estrutura

operativa do sistema ou subsistema, deriva o quarto indicador da integração interna como

critério de qualidade. Trata-se do indicador qualidade da acção sistémica, que indica a

capacidade do sistema de implementar ou operacionalizar a sua Política Educativa ou

visão filosófica. Portanto, é um critério de medida da eficiência e eficácia na

transformação da intenção em objectivos e acções concretas. Os recursos, como

especificadores da qualidade da acção sistémica devem ser percebidos numa perspectiva

ampla. Para além dos recursos materiais e humanos, existem os recursos técnicos e

estratégicos. Os recursos técnicos designam os conhecimentos e as competências

necessárias e subjacentes à acção sistémica, sobre os quais se deve basear a

implementação da intencionalidade sistémica (política). Os recursos estratégicos

constituem os planos que expressam as estratégias de acção e a ligação lógica e

necessária entre os seus elementos e momentos (fases). Neste sentido, a qualidade da

acção sistémica integra especificadores como o nível dos recursos materiais, a

qualificação dos recursos humanos, o nível do conhecimento sistémico (é o nível de

aproximação e identificação entre o conhecimento disponível e conhecimento necessário

para a realização da acção sistémica), o nível dos objectivos estratégicos e dos planos

estratégicos (tendo em conta os diferentes campos e zonas de acção e numa perspectiva

inclusiva);

52

A necessidade da integração entre objectivos (finalidades do sistema), programas de

ensino e aprendizagem, e a gestão do PEA (espaço didáctico) gera como indicador a

qualidade gerencial, que indica a orientação do sistema (sob o ponto de vista da política,

filosofia e da perspectiva teleológica - visão sobre o homem a ser formado - sob o ponto

de vista da oferta curricular e sob o ponto de vista da visão pedagógica);

A qualidade de integração gerencial concretiza-se na qualidade operativa, que expressa a

capacidade do sistema de adoptar uma estrutura operativa, que se baseia na integração

entre os objectivos estratégicos, a gestão/organização do sistema e os planos de

desenvolvimento dentro do sistema. Trata-se da definição tridimensional da acção

sistémica e de estratificação dos seus dos níveis de acção: dos objectivos estratégicos

(acção planificada), passando pela estruturas necessárias (tipologia ou zona da estrutura:

gestores, professores, alunos, técnicos, pais, etc.), que incluem o campo da acção (campo

da estrutura), até aos planos de acção para cada zona ou tipologia da estrutura. Por sua

vez, os planos de acção devem ter uma ligação lógica e intrínseca;

A qualidade da acção didáctica é o terceiro indicador da gestão da qualidade da

educação. Este indicador deriva da necessidade da integração entre a visão da escola

(perfil pedagógico da escola), os estilos/concepções sobre a docência e os

estilos/concepções sobre a aprendizagem, que expressa o nível de integração didáctica ou

coerência pedagógica do sistema, mais concretamente, o nível de integração entre o perfil

pedagógico definido para a escola e as opções didácticas (escolha dos métodos,

estratégias, definição de tarefas de aprendizagem, organização da aprendizagem, etc.) e

os resultados de aprendizagem, que poderíamos chamar de qualidade de rendimento ou

qualidade dos resultados. A qualidade do rendimento inclui especificadores como:

rendimentos pedagógico dos professores, rendimentos dos alunos, competências

didácticas dos professores, competências de aprendizagem e do perfil dos alunos e

competências de gestão pedagógica da escola.

4.1.2. A integração externa como critério de qualidade

A integração externa como dimensão da gestão da qualidade da educação constitui a

capacidade do sistema de ajustar a sua política, a sua acção sistémica e os seus resultados aos

padrões internacionais e regionais de excelência.

53

Da perspectiva dos documentos internacionais relativos ao Ensino Básico, tais como a

Declaração Mundial da Educação para Todos, A Declaração de Salamanca, A Declaração de

Dakar, A Convenção da ONU dos Direitos da Criança, a Convenção sobre a Eliminação de

Todas as Formas de Descriminação das Mulheres, entre outros, derivam outro indicadores para a

gestão da qualidade da educação. Estes indicadores incluem, por sua vez, especificadores. A

seguir faço uma arrolamento dos indicadores e seus especificadores:

A garantia de uma educação básica para todos: especificada na taxa de escolaridade real,

no grau de retenção do sistema (expresso nas taxas de repetição, desistência) e no grau

de aprovação (que indica a capacidade de promoção do sistema);

A oferta de uma educação de qualidade: que é especificada pela capacidade do sistema

de garantir uma base para a continuidade do aluno no sistema, de garantir uma educação

polissémica, quer dizer com múltiplos significados para a vida (expressos na aquisição

de competências da aprendizagem para além da vida e na formação integral da pessoa

humana, formação para a competência reflexiva, para acção social e comunicativa e para

a reconstrução social), e uma educação multidimensional, que permita a aquisição de

competências cognitivas, sociais e psicomotoras;

A garantia de uma educação inclusiva: que é especificada na capacidade de resposta às

necessidades educativas especiais (sem esquecer que todos são pessoas de necessidades

educativas especiais: organização e oferta de espaços e organização e oferta de produtos

didácticos), às necessidade do género e às necessidades da igualdade e justiça social;

A garantia de uma educação básica alargada: cujo especificador é a duração da

educação básica, que deveria incluir os primeiros anos do ensino secundário, isto é,

estender-se até oferecer uma boa base para a profissionalização;

Processos de gestão de qualidade: que inclui como especificadores o nível de gestão do

sistema, a correspondência entre as necessidades de gestão do sistema e a

disponibilidade dos recursos (materiais, humanos, técnicos e estratégicos) e a

correspondência entre as finalidades sistémicas, o plano de acção sistémica e a qualidade

dos resultados;

A integração global do sistema: que é especificada pela capacidade do sistema de gerar

«produtos humanos», sob o ponto de vista de competência, capazes de se integrar com

sucesso no contexto global e regional. Este especificador tem como eixos gravitacionais

54

e de geratividade (para a derivação de outros indicadores), a capacidade do sistema para

desenvolver competências linguísticas globais e para a capitalização do conhecimento

universal;

A integração local do sistema: que é especificada através da capacidade do sistema ou

subsistema de capitalizar o conhecimento comunitário, de oferecer um currículo

relevante, de desenvolver a competência e a consciência reflexiva sobre as questões

existenciais, de desenvolver níveis de interação estruturada entre o sistema ou subsistema

e outros sistemas sociais, partilhando saber e construindo conjuntamente o saber e acção

humana.

4.2. Coordenação como critério de qualidade da educação

A coordenação como critério ou dimensão da qualidade da educação é uma constelação

de vários campos da acção sistémica. Nesta perspectiva pode-se falar de diferentes dimensões da

coordenação, a saber: a coordenação institucional, a coordenação curricular, a coordenação

pedagógica e a coordenação intersistémica.

A coordenação institucional, é a simbiose necessária entre as diferentes subestruturas do

funcionamento do sistema ou subsistema, é, portanto, o nível de ofertas mútuas e de

sustentabilidade estrutural do sistema. Entre as subestruturas mais significativas incluem-se as

seguintes: instituições de ensino, instituições de gestão central do ensino, instituições de

formação, instituições de investigação e instituições comunitárias (família, Igreja, ONGs, etc.).

Estas subestruturas podem subdividir-se em instituições de gestão (instituições de ensino e de

gestão) e instituições de apoio. As primeiras gerem o sistema e o PEA, respectivamente. As

segundas fornecem serviços de apoio (formação, pesquisa e extensão) para uma gestão de

excelência. A coordenação entre os dois níveis de subestruturas é, por isso, um indicador de

qualidade. Partindo do pressuposto de que as instituições de gestão da educação devem fornecer

um campo de reflexão, de sustentabilidade e de acção contextualizada, portanto um campo

referencial, às instituições de apoio, podem definir-se os seguintes especificicadores da

qualidade da educação:

Actualidade e relevância da formação e pesquisa;

Continuidade entre a formação inicial e formação em serviço dos professores;

55

Sustentabilidade, pelas instituições de apoio, dos planos do desenvolvimento institucional

e pessoal;

Prática do diálogo institucional (entre as subestruturas);

Capacidade de aprendizagem organizacional;

Gestão sustentada (sustentada no conhecimento científico, na produção contínua do

conhecimento, acção reflexiva).

A coordenação curricular é uma função ou resultado do isomorfismo curricular. Parte-se

do princípio de que instituições ensino e de formação que perseguem um objectivo comum, neste

caso, a educação básica, devem organizar a sua acção sistémica baseadas num paralelismo

curricular. O paralelismo curricular como indicador, implica os seguintes especificadores:

Correspondência da acção sistémica (toda acção dentro do sistema) ao perfil psicológico

do aluno e perfil pedagógico da escola;

Correspondência da acção didáctica ao perfil pedagógico da escola;

Correspondência da acção didáctica ao perfil psicológico e cultural do aluno.

A Coordenação pedagógica é uma resultante da necessidade da adequação da acção das

subestruturas (ciclos, graus, áreas disciplinares, direcções, etc.) ao princípio da correspondência

da acção sistémica ao perfil pedagógico da escola e ao perfil psicológico do aluno, bem como da

tentativa do controlo das variáveis ambientais da aprendizagem, de modo a garantir o sucesso

pedagógico. Os especificadores deste indicador de qualidade são a seguir descritos:

Garantia e nível dos serviços de supervisão, monitoria e avaliação pedagógica;

Oferta e nível de serviços de apoio vocacional;

Oferta e nível de apoio psicopedagógico;

Nível de gestão do ambiente de aprendizagem;

Nível de interacção com outros serviços.

A coordenação intersistémica como indicador da qualidade da educação, expressa a

capacidade do sistema ou subsistema, dentro de uma perspectiva de autopoiesis (Luhmann), de

fornecer «produtos consumíveis» e relevantes aos outros sistemas ou subsistemas (social,

político, cultural, económico ou religioso) e de promover a sua autosustentabilidade através da

capitalização dos produtos recebidos de outros subsistemas, com a intenção sistémica da

obtenção de uma estrutura sustentável e de uma maior sucesso na acção sistémica. A

coordenação intersistémica pode ser operacionalizada através dos seguintes especificadores:

56

Nível de efectividade dos projectos pedagógicos;

Nível de efectividade dos projectos comunitários;

Nível de ressonância do perfil, isto é, impacto da educação na comunidade e na vida das

outras instituições sociais;

Alocação dos recursos financeiros e materiais;

Produção sustentável dos materiais didácticos;

Abrangência do quadro de competências, isto é, capacidade do sistema de sustentar,

simultaneamente, a integração social, cultural, política e económica da pessoa humana.

4.3. Funcões sistémicas como critérios de qualidade

Até aqui falamos dos indicadores da qualidade da gestão da educação na perspectiva do

sistema como estrutura com determinadas funções.

"Como subsistema da educação para todos e como subsistema de base, a problemática –

ou a função22

- da alfabetização situa-se no seu centro, sobretudo do primeiro ciclo. A

aprendizagem da leitura e da escrita, bem como a aprendizagem de conceitos básicos da

Matemática, nos primeiros anos do subsistema, constituem objectivos do perfil23

" (Mate, 2012).

"O segundo ciclo do ensino primário tem como objectivo de perfil assegurar uma educação

geral, interdisciplinar e básica, conquanto o terceiro ciclo, além de aprofundar a concretização

da realização dos objectivos de perfil do segundo ciclo, tem por objectivo orientar para o ensino

secundário e para a vida independente e autónoma" (Mate, 2012). Comum também aos dois

últimos ciclos é a função de iniciação para a ciência.

Assim, ao indicador qualidade funcional do sistema como critério da gestão da qualidade

da educação, estão subordinados os seguintes especificadores:

Relevância e eficácia da alfabetização para autonomia na aprendizagem e na vida e para a

continuação no sistema;

Abrangência da alfabetização, que deve incluir a alfabetização social (educação para os

valores de cidadania e para convivência social e democrática);

A adequação da oferta didáctica às exigências da alfabetização;

22

O acréscimo, entre Hífens, é meu. Quando escrevi o artigo «Educação em Moçambique: Colapso ou desafio»,

ainda não tinha integrado a noção dinâmica de estrutura e função na minha abordagem sistémica. 23

O conceito de objectivo de perfil é o conceito anteriormente usado por mim para designar função. Com a

introdução deste último conceito, os dois passaram a ser equivalentes.

57

Adequação do currículo e da oferta didáctica, como praxis curricular, à educação geral,

interdisciplinar e básica;

Adequação do currículo e da oferta didáctica à iniciação científica, incluindo a

organização de condições para a reflexão causal e para a experimentação causal.

5. Perspectiva desenvolvimentista da gestão da qualidade da educação: definição de

tarefas evolutivas como critério de qualidade

Uma visão ontológica do sistema, na perspectiva de uma visão dialéctica e dinâmica da

relação entre estrutura e função é, sem dúvidas, uma grande contribuição para uma visão

abrangente dos indicadores de qualidade, no sentido de contribuir com uma exploração exaustiva

das relações e interdependências dos componentes do sistema ou subsistema. Mas ela não estaria

completa se não nos oferece uma visão para o futuro. O sistema estará estrutural e

funcionalmente amadurecido quando ele tiver consciência das tarefas de autosuperação que deve

realizar, para se tornar um organismo de ajustamento adequado e com um índice de sucesso na

realização da acção sistémica, esta é a essência da perspectiva desenvolvimentista. A perspectiva

desenvolvimentista, baseia-se na historicidade do sistema, na perspectiva relativa da qualidade da

educação, como um bem sistémico e um benefício social em construção. Neste sentido, a gestão

da qualidade da educação deve incluir a consciência e a definição das tarefas evolutivas (como

desafios sistémicos e como tarefas de autosuperação).

"Paralelamente, pode-se afirmar que o estágio actual da educação em Moçambique não

é um estágio terminal, conquanto o sistema é uma realidade dinâmica em mudança, ao qual se

colocam desafios e tarefas de autosuperação. O grande desafio é identificar as actuais tarefas

evolutivas do sistema e as suas potencialidades de crescimento" (Mate, 2012).

A seguir apresento as tarefas evolutivas do sistema, diga-se, por mim identificadas e os

respectivos especificadores:

1. Estabelecimento do equilíbrio entre o crescimento qualitativo e quantitativo do

sistema, que pode ser especificado através do desenvolvimento de modelos e concepções

didácticas adequadas à situação e exigências da escola moçambicana; da revitalização

dos padrões de qualidade (qualificação e formação de professores, tempo de

aprendizagem escolar, qualidade dos materiais de aprendizagem, pesquisa, etc.);

resolução dos desequilíbrios quantitativos entre os efectivos e a rede escolar, sobretudo

58

nas zonas urbanas e, consequentemente, entre o professor e os alunos; exploração

maximizada dos espaços físicos da escola, sobretudo nas zonas urbanas, através, por

exemplo, do investimento em modelos de construção vertical e aumento de número de

salas de aulas; e formação e colocação de professores em áreas de aprendizagem e

segundo os objectivos dos ciclos, para melhorar o perfil dos graduados (apud Mate,

2012);

2. Recuperação da visão teleológica do sistema: cujo especificador é o desenvolvimento

de uma visão humanista da educação, que deve centrar-se na autonomia da pessoa

humana, no desenvolvimento das suas potencialidades (incluindo as comunicativas) e na

capitalização das potencialidades de escolha (apud Mate, 2012);

3. Aumento da integração interna e externa do subsistema: que deve especificar-se no

nível de estratificação optimal entre os diferentes níveis da acção sistémica (Vide níveis

de integração) e no ajustamento as tendências regionais e internacionais (apud Mate,

2012);

4. Estabelecimento de relações isomórficas: que é especificado pelo níveis optimais da

coordenação institucional, curricular, pedagógica e intersistémica (apud Mate, 2012);

5. Revisão dos objectivos do perfil dos ciclos: que deve ser medida pela adequação da

acção didácticas as diferentes funções do ensino básico (apud Mate, 2012);

6. Recuperar a perspectiva evolutiva do subsistema: cujos especificadores são, a reflexão

sobre os diferentes paradigmas da educação nos diferentes períodos históricos, a

identificação dos pontos fortes e fracos da evolução do sistema, desenvolvimento de uma

visão reconstrutiva e construtiva do sistema, isto é, adopção de uma perspectiva do

Redisign (que supera a perspectiva da reforma) e o desenvolvimento de uma Pedagogia

Reconstrutiva e Contextualizada, que busque a história da educação dos povos africanos,

as potencialidades das suas formas metódicas e mediáticas, a riqueza das suas finalidades

educativas e a sua proposta de resolução do conflito entre a educação e o ensino.

Conclusões

A definição de indicadores para gestão da qualidade da educação é uma tarefa complexa,

cuja resolução implica a adopção de um modelo sistémico e de uma perspectiva

desenvolvimentista. A abordagem sistémica tem a vantagem de diminuir o perigo de uma

59

perspectiva reducionista (tanto sob o ponto de vista científico, como sob o ponto de vista do

discurso político).

Por um lado, a abordagem sistémica fundamenta-se no reconhecimento das relações

dialécticas e de interdependência entre os elementos sistémicos, bem como da sua relação

necessária. Por outro lado, não obstante na abordagem sistémica residir uma crítica ao

estruturalismo e funcionalismo, como percepções acríticas e a-dinâmicas do sistema, o sistema

realiza-se na sua missão e essência através da estrutura e da função, como componentes

sistémicas. Estas, por sua vez, interagem continuamente, num processo de influência recíproca.

Sob o ponto de vista da estrutura, podem ser definidas como dimensões de qualidade, a

coordenação e a integração e, sob o ponto de vista da função, a funcionalidade sistémica

constitui a dimensão de base para gestão da qualidade. Ao nível da integração, os indicadores de

qualidade são definidos tendo em conta que a integração pode ser interna ou externa, conquanto

que ao nível da coordenação os indicadores são definidos partindo do pressuposto de que existe

quatro formas de coordenação: institucional, curricular, pedagógica e inter-sistémica. As funções

do subsistema são a base para a definição dos indicadores da gestão da qualidade, ao nível da

funcionalidade do sistema.

Os indicadores de qualidade na perspectiva sistémica complementam-se através dos

indicadores definidos na perspectiva desenvolvimentista do sistema, isto é, das tarefas evolutivas

do sistema.

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