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Sensatamente, o povo diz que «uma andorinha não faz a Primavera», querendo transmitir a ideia de que devemos recolher mais do que um pequeno indício antes de afirmar que es- tamos à beira de uma grande mudança. Por isso, confesso que não liguei muito quando as an- dorinhas que habitavam uma caixa de persiana em minha casa decidiram migrar para outras paragens, semanas antes da chegada do tempo frio. Não sei quem lhes faz a previsão meteorológica, mas o certo é que, ao longo dos últimos anos, caracteri- zados por Invernos amenos, elas tinham adoptado aquele espaço como morada perma- nente, levando-me a pensar que as al- terações climá- ticas as haviam tornado se- dentárias, apesar das asas que lhes permitem voar para qualquer local, sem a exigên- cia de mostrar vistos ou pas- saportes à entrada ou obter autorizações de trabalho e de residência nos sítios para onde migravam. Vantagens de se s e r ave e de ga- nhar o céu em vida. Sor- te idên- tica não temos nós, seres huma- nos, que ao longo de séculos inventámos fronteiras, buro- cracias e outros obstáculos para nos protegermos de eventuais ameaças externas. Como nos mostra o artigo Ser imigrante em Portugal, de Elisson S. de Jesus, essa ati- tude defensiva criou um sis- tema em que quem vem de fora precisa de ter documentos para obter trabalho e de ter trabalho para obter documentos. Com a inserção social dificultada, aumenta a vulnerabilidade destas pessoas face a indivíduos pouco escrupulosos que saibam como tirar partido da “pescadinha de rabo na boca”. Num mundo como o actu- al, é preciso reflectir cada vez mais sobre esta temática pois, como nos diz Adel Sidarus no texto Europa aberta, Europa solidária: «Na hora global só existem solu- ções globais! Não há direitos humanos, se faltarem a populações inteiras do globo os meios de exercerem e alcan- çarem esses direitos – a começar pelo direito ao pão, à saúde, à educação, a u m a vida minimamente digna». Preocupada com a questão no seu território, a União Europeia (UE) de- clarou 2010 como o Ano Europeu de Combate à Po- breza e à Exclusão Social (www.2010againstpoverty. eu), com o objectivo de aler- tar consciências e renovar o compromisso políti- co comuni- tário na luta c o n - tra estes problemas, uma vez que as estatísticas indicam que quase 80 mi- lhões de euro- peus vivem no limiar da pobreza, ou seja, vivem num clima de in- segurança e sem aquilo que a maioria das pessoas dá como garantido. Na região de Setúbal, a pobreza e a exclusão social são realidades de todos os dias, como realçou em en- trevista Constantino Alves, pároco de Nossa Senhora da Conceição. Preocupado com a juventude desocupada e em risco de ser seduzida pela marginalidade, o padre critica a quase ausência de parcerias e sublinha que já há quem diga que o exces- so de instituições de apoio nos bairros desfavorecidos torna as pes- soas passivas e destrói di- namismos e redes de soli- dariedade en- tre vizinhos, criando uma cultura de dependência que pre- judica a emancipação individual. Consciente do que está mal, Constantino Alves tem, contudo, esperan- ça num futuro melhor e, para combater o racismo latente na sociedade, usa a igreja como laboratório de interculturalidade e partici- pação de todos. Afinal, é a existência de variedade que torna o mun- do num lugar mais valioso e cumpre-nos a todos pugnar pela salvaguarda das diferen- ças que nos enriquecem. Esta ideia, presente nos artigos de Antunes Dias, Rute Vieira e Lurdes Soares sobre o Ano Internacional da Biodiver- sidade, aplica-se tanto aos ecossistemas naturais como às relações sociais entre se- res humanos. E estende-se às páginas deste mensário. Ao estar aberto à cola- boração dos seus leitores, O SUL – Jornal Cultu- ral e de Debates pretende contri- buir para diversifi- car os temas discutidos no espaço público e o número de vozes que sobre eles se pronunciam, procurando sempre que tal ocorra de forma cons- trutiva e sem aumentar o ruído instalado. Acreditamos que este jor- nal é um indício de novos tempos que se avizi- nham, é uma andori- nha que, não fazen- do sozinha a nova estação, poderá contribuir para que ela surja em breve. Como cantava José Afon- so no seu Coro da Prima- vera, de 1971: «Ou- vem- se o s rumores, ou- vem-se já os cla- mores, ouvem- se já os tambores». Luís Humberto Teixeira [email protected] 2-3 . Constantino Alves, padre e vigário forâneo de Setúbal 4 . Ser imigrante em Portugal 4 . Solidariedade para com os trabalha- dores da Limpersado- Portucel 5 . Europa aberta, Europa solidária 6 . O consumo de animais na alimen- tação contemporânea 7 . Uma lição a aprender com Timor 8 . Biodiversidade e sua importância 8 . Bio adversidades 9 . Um olhar sobre a biodiversidade 10 . Rituais, devoções e manifestações de culto na Palmela do séc. XVI 11 . A placa epigráfica árabe encontrada na Gruta 4 de Maio 12 . Livros, conspirações e revolu- ções 12 . Silêncio e tanta gente 13 . Raquel Mendes, vencedora do Resarte 2009 14 . VI Encontro sobre as Ordens Mi- litares de Palmela 14 . Desafios para as próximas edi- ções 15 . Os círculos de uma gata DIÁRIO DE BORDO Ano: 2010 . nr 01 . Mês: Fevereiro . Mensal . Director: Luís Humberto Teixeira . Preço0,01 € 02 . 10 Olhares sobre a biodiversidade PÁG. 08 . 09 Uma andorinha pode fazer a Primavera ASTROLÁBIO Ser imigrante em Portugal PÁG. 04 NR 01

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Sensatamente, o povo diz que «uma andorinha não faz a Primavera», querendo transmitir a ideia de que devemos recolher mais do que um pequeno indício antes de afirmar que es-tamos à beira de uma grande mudança.

Por isso, confesso que não liguei muito quando as an-dorinhas que habitavam uma caixa de persiana em minha casa decidiram migrar para outras paragens, semanas antes da chegada do tempo frio. Não sei quem lhes faz a previsão meteorológica, mas o certo é que, ao longo dos últimos anos, caracteri-zados por Invernos amenos, elas tinham adoptado aquele espaço como morada perma-nente, levando-me a pensar que as al-terações climá-ticas as haviam tornado se-dentárias, apesar das asas que lhes permitem voar para qualquer local, sem a exigên-cia de mostrar vistos ou pas-saportes à entrada ou obter autorizações de trabalho e de residência nos sítios para onde migravam. Vantagens d e s e s e r a v e e de ga-nhar o céu em vida.

Sor-te idên-t i c a não temos nós, seres huma-nos, que ao longo de séculos inventámos fronteiras, buro-cracias e outros obstáculos para nos protegermos de eventuais ameaças externas.

Como nos mostra o artigo Ser imigrante em Portugal, de Elisson S. de Jesus, essa ati-tude defensiva criou um sis-

tema em que quem v e m

de f o r a precisa de ter documentos para obter trabalho e de ter trabalho para obter documentos. Com a inserção social dificultada, aumenta a vulnerabilidade destas pessoas face a indivíduos pouco escrupulosos que saibam como tirar partido da “pescadinha de rabo na boca”.

Num mundo como o actu-al, é preciso reflectir cada vez

mais sobre esta temática pois, como nos diz Adel Sidarus no texto Europa aberta, Europa solidária: «Na hora global só existem solu-ções globais! Não há direitos

humanos, se faltarem a populações inteiras do g l o b o o s m e i o s d e exercerem e a lcan-ç a r e m e s s e s

direitos – a começar pelo direito ao pão, à saúde, à educação, a u m a vida minimamente digna».

P r e o c u p a d a c o m a questão no seu território,

a União Europeia (UE) de-clarou 2010 como o Ano Europeu de Combate à Po-breza e à Exclusão Social (www.2010againstpoverty.eu), com o objectivo de aler-tar consciências e renovar o

compromisso políti-co comuni-

tário

na luta c o n -tra estes problemas, uma vez que as estatísticas indicam que quase 80 mi-lhões de euro-

peus vivem

no limiar da pobreza,

ou seja, vivem num clima de in-

segurança e sem aquilo que a maioria

das pessoas dá como garantido.Na região de Setúbal, a

pobreza e a exclusão social são realidades de todos os dias, como realçou em en-trevista Constantino Alves, pároco de Nossa Senhora da Conceição. Preocupado com a juventude desocupada e em risco de ser seduzida pela marginalidade, o padre

critica a quase ausência de parcerias e sublinha que já há quem diga que o exces-so de instituições de apoio nos bairros desfavorecidos torna as pes-soas passivas e destrói di-namismos e redes de soli-dariedade en-tre vizinhos, criando uma

cultura de dependência que pre-

judica a emancipação individual.

Consciente do que está mal, Constantino Alves tem, contudo, esperan-ça num futuro melhor e, para combater o racismo latente na sociedade, usa a igreja como laboratório de interculturalidade e partici-pação de todos.

Afinal, é a existência de variedade que torna o mun-do num lugar mais valioso e cumpre-nos a todos pugnar pela salvaguarda das diferen-ças que nos enriquecem. Esta ideia, presente nos artigos de Antunes Dias, Rute Vieira e Lurdes Soares sobre o Ano Internacional da Biodiver-sidade, aplica-se tanto aos ecossistemas naturais como

às relações sociais entre se-res humanos. E estende-se às páginas deste mensário.

Ao estar aberto à cola-boração dos seus leitores,

O SUL – J o r n a l C u l t u -ral e de Debates pretende c o n t r i -buir para diversifi-

car os temas discutidos no espaço público e o número

de vozes que sobre eles se pronunciam,

procurando sempre que tal ocorra de forma cons-

trutiva e sem aumentar o ruído instalado.

Acreditamos que este jor-nal é um indício de novos

tempos que se avizi-nham, é uma andori-

nha que, não fazen-do sozinha a nova estação, poderá

contribuir para que ela surja

em breve. C o m o

c a n t a v a José Afon-so no seu Coro da P r i m a -vera, de 1 9 7 1 :

« O u - v e m -s e j á o s r umores , o u -vem-se já os c l a -mores, ouvem- se já os tambores».

Luís Humberto [email protected]

2-3 . Constantino Alves, padre e vigário forâneo de Setúbal

4 . Ser imigrante em Portugal

4 . Solidariedade para com os trabalha-dores da Limpersado- Portucel

5 . Europa aberta, Europa solidária

6 . O consumo de animais na alimen-tação contemporânea

7 . Uma lição a aprender com Timor

8 . Biodiversidade e sua importância

8 . Bio adversidades

9 . Um olhar sobre a biodiversidade

10 . Rituais, devoções e manifestações de culto na Palmela do séc. XVI

11 . A placa epigráfica árabe encontrada na Gruta 4 de Maio

12 . Livros, conspirações e revolu-ções

12 . Silêncio e tanta gente

13 . Raquel Mendes, vencedora do Resarte 2009

14 . VI Encontro sobre as Ordens Mi-litares de Palmela

14 . Desafios para as próximas edi-ções

15 . Os círculos de uma gata

DIÁRIO DE BORDO

Ano: 2010 . nr 01 . Mês: Fevereiro . Mensal . Director: Luís Humberto Teixeira . Preço0,01 €

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Olhares sobre a biodiversidade

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Uma andorinha pode fazer a Primavera ASTROLÁBIO

Ser imigrante em PortugalP

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PUBLICIDADEPUBLICIDADE

Constantino Alves, padre e vigário forâneo de Setúbal

«Preocupa-me a juventude desocupada»O SUL – Em Maio passa-

do, incidentes na Bela Vista colocaram a sua paróquia nos media. Como observou o tratamento mediático dos acontecimentos?

Padre Constantino Alves – Os media tiveram um papel importante para dar a conhe-cer as proble-máticas exis-tentes. Porém, houve uma sofreguidão doentia pelo lado maldo-so dos acon-tecimentos, parecia que estavam ávi-dos por mais tiros e carros a arder para terem notícia. Isso levou as pessoas a terem, perante eles, uma atitude de suspeição. Salvo honrosas ex-cepções, todos abandonaram o bairro e deixaram para trás as questões que deveriam ser debatidas.

S – E que questões são essas?

P. CA – Esta nova crise veio aumentar a pobreza e a exclusão social. Isso nota-se nos bairros degradados onde, apesar de organismos nacio-nais e locais terem gasto rios de dinheiro em estudos que apresentaram conclusões cientificamente credíveis, nada sobeja... Nada sobeja! Só ficam promessas perma-

nentemente relembradas, pois o que se faz é tão pouco que se perde perante aquilo que há para fazer.

Preocupa-me a juventude desocupada, que não estuda, nem faz formação profissional, nem trabalha, tornando-se vi-veiro fértil para as tentações

da margi-nalidade. Isto é per-p e t u a d o pela ine-xistência d e u m a p o l í t i c a de juven-tude que aposte nos p r ó p r i o s j o v e n s

como mediadores entre eles, para encontrarem os próprios caminhos e alternativas de vida. Eles são muito capazes de se organizar desde que lhes sejam dadas condições para tal.

O Bairro da Bela Vista e os envolventes – e isto é uma de-núncia que faço – não foram contemplados na 4ª Gera-ção do Programa Escolhas, apesar de terem concorrido pelo menos três projectos, um deles o da paróquia, que fun-cionava há sete anos. Depois queixam-se! Aqui vinham centenas de jovens, ocupar as tardes a estudar, a utilizar os computadores...

Preocupam-me ainda os idosos com magras reformas

“ Há muita gente que desenvolve verdadeiros laços com os outros, sem li-gar às diferenças de origem, raça, língua e cor

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Rua Plácido Stichini, 3 Setúbal . 93 323 89 94 . 91 361 78 29 Horário: Terça-feira a Domingo das 19h às 24h

Venha passar uma noite especial connosco com Blues, Jazz e Guitarra Portuguesa ao vivoFaça a sua reserva!

14 de Fevereiro 2010

Champanhe da Paixão

Salada Amorosa com Frutos Tropicais e Champignons

Lombo Ladeado de Bacon e Forrado de Foie Gras ouAnanás Gratinado com Gambas e Arroz de Açafrão com Romã

Ode ao Silêncio com Pétalas de Rosa

Sangria do Amor

Sumos, Águas e Cafés

Menu S. Valentim

13 de Fevereiro 2010

Camarão ao alhinho

Bacalhau Dourado sobre cebola e Pimentoscom Batatinha no Forno Acompanhada de Gomos de Tomate e Orégãos ouCabrito no Forno à Padeiro com Batatinha no Forno e Paprika Acompanhada de Espinafres Salteados com Azeite

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Inclui águas, sumos, vinho branco ou tinto e café, até ao final da refeição

Menu Fadista

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e carências básicas e a falta de uma política de habitação so-cial. A não construção de mais fogos faz com que as pessoas se amontoem, faz com que os jovens que querem constituir família não tenham possibi-lidade de o fazer.

Preocupa-me também as crianças de famílias vulne-ráveis e fragmentadas e que não haja trabalho político que leve as pessoas a uma cida-dania activa, que as leve à sua emancipação. Estranho que os partidos políticos não tenham uma intervenção organizada nestes bairros para neles de-sencadearem acções de trans-formação. Só aparecem nas campanhas. E preocupa-me muito o desemprego e o tra-balho precário.

S – Foi devido a essa sua preocupação que, durante a procissão pela Paz, se rezou pelas mães grávidas em risco de perder o emprego e pelos

jovens precários?P. CA – Essas são realidades

muito flagrantes nos nossos bairros e a Igreja deve preo-cupar-se com os problemas das pessoas, assim como a l e g r a r - s e c o m a s u a f e l i c i d a d e . O culto não deve ser pie-tista e etéreo, ele tem por finalidade a pessoa hu-mana, a sua d i g n i d a d e , denunciando todas as ex-clusões e as-sumindo um compromisso pela libertação das pessoas, assim como Jesus fez.

S – Sendo esta uma pa-róquia pluricultural, nota a existência de racismo?

P. CA – Existem expressões de racismo não assumido, mas visível. As várias etnias têm culturas muito fortes e tendem

a fechar-se sobre elas m e s m a s . Porém, mais importante, t a m b é m h á m u i t a gente que desenvolve verdadeiros laços com os outros, sem ligar às diferenças de origem, raça, língua e cor. Na pa-róquia, ten-

tamos promover não apenas a tolerância, mas a constru-ção em conjunto. Esta igreja é um laboratório de intercul-turalidade e de participação de todas as pessoas, há um assumir de identidade de to-

dos por aquilo que é comum. Formar na acção!

S – Que balanço faz da in-tervenção do Estado nestes bairros?

P. CA – Apesar de haver medidas positivas no ensino e na inserção social, sinto um défice do Estado no que res-peita ao desenvolvimento de políticas específicas para os bairros ditos problemáticos. Quando há picos de violên-cia, os ministros aparecem, reúnem-se com as mais diver-sas organizações e escutam as propostas e medidas urgentes para políticas de juventude, requalificações urbanísticas e acção cultural. Mas, passados esses momentos, tudo regres-sa ao mesmo.

S – E da acção das orga-nizações não governamen-tais?

P. CA – Numa análise su-perficial, há muito trabalho

feito: desportivo, social, apoio a idosos e crianças. Nota muito positiva para o trabalho com imigrantes e com crianças. Mas existe uma dificuldade de conjugação de esforços entre as várias instituições, de trabalho conjunto, com uma estratégia e objectivos comuns. Há quem diga que a Bela Vista estaria melhor se não tivesse tantas instituições, pois, segundo quem o diz, es-tas trouxeram passividade às pessoas e destruíram dinamis-mos e redes de solidariedade entre vizinhos, criando uma cultura de dependência. É de realçar que quase todos os técnicos das instituições não vivem no bairro e, quando ter-minam o horário de trabalho, vão-se embora e não chegam a comungar verdadeiramente a vida das pessoas.

Leonardo [email protected]

“ Quando há picos de violência, os ministros aparecem, reúnem-se com as mais diversas organizações e escutam as propostas e medidas urgentes para políticas de juventude, requalificações urbanísticas e acção cultural. Mas, passados esses momentos, tudo regressa ao mesmo

«Preocupa-me a juventude desocupada»

Nascido em 1948 em Caste-lo de Paiva, Constantino Alves formou-se em Teologia pelo Seminário Maior do Porto, em 1974. Após a Revolução, participou em projectos de alfabetização, teatro popular, cinema nas ruas e num jornal jovem, e, em 1978, rumou a Sul para concretizar o sonho de

ser operário. Foi servente num estaleiro de reparação naval no Barreiro, tirou o curso de fresador mecânico em Coim-bra e trabalhou em empresas da Amadora e de Setúbal.

Em 1980 foi o primeiro padre ordenado por Dom Manuel Martins, com as se-guintes palavras: «O mundo

operário apresenta-te à Igreja para que te faças Padre, e a Igreja devolve-te ao mundo operário para aí anunciares a boa nova da libertação de Jesus Cristo». Eleito delegado sindical pelos companheiros, nunca foi alinhado partidaria-mente para não criar divisões e poder ajudar a todos. Recu-

sou cargos de direcção para permanecer ligado à base e trabalhar directamente com as pessoas pelos seus direitos.

Há 10 anos, quando o Pa-dre Horácio Noronha foi para assistente nacional da Liga Operária Católica, Constan-tino Alves sucedeu-lhe como pároco de Nossa Senhora da

Conceição e deu continuida-de ao trabalho deste, desen-volvendo a participação dos leigos na vida activa pastoral e dinamizando um serviço de acolhimento e solidariedade para com os mais pobres. É ainda capelão do Hospital do Barreiro e vigário forâneo de Setúbal.

O padre-operário

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Os trabalhadores da Lim-persado, que prestam serviço na Portucel, cumpriram, ao longo de Janeiro, uma jornada de 5 dias de greve, pelo paga-mento dos subsídios de férias e de Natal de 2009. Já tinham realizado 2 dias de greve em 23 e 24 de Dezembro. A greve teve o propósito de denunciar a situação à população, bem como ao Governo Civil. Os trabalhadores, na sua maioria, auferem salários miseráveis de 470 euros/mês. Uma em-presa como a Portucel, S.A., pertença de uma elite eco-

nómica (faz parte do selecto PSI 20 do país), com lucros admiráveis e louváveis, que honram Portugal, vê a sua imagem pública na lama, ao permitir este tipo de explo-ração sobre pessoas, ilegal e indigno de uma empresa modelo. Faz lembrar outros tempos e outras latitudes. O SUL solidariza-se com os tra-balhadores da Limpersado, pois a dignidade do trabalho e do trabalhador são garan-tes essenciais do Estado de Direito.

O Sul

Ser imigrante em Portugal

Recentemente, Portugal foi eleito o país da União Euro-peia que acolhe melhor os imigrantes. Mas acolher não é o mesmo que tratar bem. Não basta apenas abrirmos a porta de nossa casa e abandonar o visitante na sala.

Certa vez, ouvi do pai de um amigo brasileiro, residente em Portugal há 10 anos, que o imigrante para sobreviver tem de matar um leão por dia nessa selva em que se aventura com o objectivo de ser feliz. A caminhada não é fácil, principalmente para quem está em situação ilegal, desprovido de um pedaço de

papel que lhe dê o direito de buscar estabilidade.

Estar ilegal é ter de encon-trar um tecto, muitas vezes dividindo casa com estranhos que têm hábitos aos quais não se estava habituado no país de origem. É procurar trabalho todos os dias para se alimentar. É ter de passar por maiores burocracias para aceder aos serviços médicos, judiciários, sociais. É provar sempre que se é boa pessoa e ter de carregar nas costas estereótipos embutidos nas cabeças dos outros.

Tudo isso sem condições e documentação alguma, à mer-

cê da exploração dos empre-gadores, que lhes dão muitos afazeres, pouca remuneração, péssimas condições de segu-rança e/ou higiene, mau tra-tamento, discriminação, que lhes negam direitos outrora adquiridos para toda a massa trabalhadora.

No universo dessas pessoas é proibido ficar doente, pois a falta de acesso ao sistema de saúde faz com que se gaste muito dinheiro nas farmácias e hospitais. Para comprar um medicamento, o indivíduo deve-se mentalizar que irá abdicar de algo naquele mês – seja uma roupa nova, um

momento de lazer, uma comi-da com maior qualidade, um mimo ou um cartão telefónico para ligar a família que ficou no seu país natal.

Muitos acabam por se aco-modar com essa triste realida-de, tornam-se reféns do ciclo e não perspectivam melhorias em suas vidas. Se acovardam, escondidos na simples con-dição de ter o dinheiro para pagar as contas no fim do mês e, se tiverem uns trocos para comprar umas cervejinhas – que devem ser consumidas em casa por causa do SEF, que condiciona os passos desses cidadãos, pratica-mente pondo fim à sociabilização – fica tudo “aparen-temente” bem. E se a batalha é árdua para uma pessoa, como será para quem é respon-sável por outra(s), como mulher e filho(s)?

Até que chega o momento do basta! O primeiro passo para mudar esse ciclo vicioso é ter um contra-to de trabalho, o que às vezes leva anos a conseguir, pois muitas entidades patronais não colaboram. Compreende-se, pois se o fizessem perdiam as suas fábricas de fazer di-nheiro, os seus neo-escravos. Alguns patrões até começam a adjectivar negativamente o trabalhador por este almejar um futuro melhor para si. Aquele que era uma máqui-

na, uma galinha dos ovos de ouro, passa a ser chamado de ladrão, louco, malandro, vagabundo e é-lhe desejado o pior.

Uma vez com o contrato assinado e devidamente ins-crito na Segurança Social, per-de-se dias de labuta – que na maioria dos casos não serão pagos, mesmo com a justifi-cativa apresentada ao patrão – para tratar dos documentos exigidos para efeito de legali-zação. Depois de adquiridos os documentos, agenda-se um dia de apresentação ao SEF, onde por certo o imigrante irá

pagar uma mul-ta por ter ficado ilegal durante determinado período. O va-lor dessa multa chega a atingir valores acima de um ordena-do mínimo, fora o dinheiro gas-to nos outros documentos e perdido com a não ida ao tra-balho.

Quando fica por fim em posse do “papel” que o torna mais visível para a sociedade, na maioria das vezes o imi-grante deixa a condição de sub-subemprego e passa a viver no subemprego. E a luta continua, só que em condições parecidas à dos portugueses mais desfavorecidos.

Elisson S. de Jesus (Bob), ex-imigrante ilegal

“ A caminhada não é fácil, prin-cipalmente para quem está em situação ilegal, desprovido de um pedaço de papel que lhe dê o direito de buscar estabili-dade.

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Solidariedade para com os trabalhadores da Limpersado - Portucel

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A Europa está em constru-ção! E esta construção deve ser de todos nós e não apenas de cúpulas cujas intenções e propósitos não são nada transparentes.

Como cidadão português e europeu (“adoptado”, pois sou de origem egípcia), apraz-me partilhar a perspectiva que me move há mais de quatro décadas de vida e de inte-gração europeias. Estudei em vários países europeus, depois de o ter fei-to no Egipto e no Líbano, e vim instalar-me em Portugal, já com uma família luso-egípcia, dois anos depois da Festa de Abril...

Pugnei sempre por uma Europa aberta. Aberta de mente e de coração, e de fron-teiras também! Aberta a nível interno ao mesmo tempo que externo.

A nossa Europa encerra uma grande riqueza humana e cultural! Mas esta riqueza é ainda uma potencialidade que dará os seus frutos se for plenamente respeitado e as-sumido o património material e imaterial das várias culturas nacionais, regionais e locais, incluindo as culturas ditas po-pulares, cheias de sabedoria ancestral e impregnadas por um sentido de identidade pro-funda e valiosa. O mesmo se deve dizer em relação à cul-

tura das populações imigra-das, de etnias e religiões tão diversas, que vivem no meio de nós e partilham as nossas angústias e esperanças...

Temos de assumir também os legados antigos, sobretu-do quando estes continuam

vivos em povos vizinhos, como é o caso do le-gado árabe e islâmico! Com a Primavera de Abril, Portugal tem redesco-berto progres-sivamente essa vertente, longa-

mente recalcada. Mas é a nível europeu que devemos lutar no sentido de uma reconci-liação histórica: ela toda deve tanto à civilização árabe! O recente lançamento da União pelo Mediterrâneo deve in-cluir impreterivelmente essa dimensão essencial, sob pena de vermos a cooperação po-lítica e económica desembo-car num impasse. Quanto me agradou nesse sentido o livro Périplo – histórias do Medi-terrâneo, de Miguel Portas e Camilo Azevedo, falando-nos dos povos vizinhos da outra margem!

Queremos, pois, uma Eu-ropa “solidária”, em particu-lar neste momento de crise. E aqui também uma solidarie-dade entre todos os estratos populacionais, com uma aten-ção especial para os pobres e

os excluídos. Será que vamos continuar a tolerar, numa Eu-ropa que se diz humanista e democrática, a existência de largos milhões de cidadãos pobres e marginalizados?

A Crise veio bater às nos-sas portas e parece querer demorar-se. A “abertura da mente” anteriormente referida aplica-se também à criativida-de e à imaginação necessárias para sairmos dela. Temos de saber tirar as devidas ilações e não remendar apenas, dei-xando tudo na mesma. Para tal, impõe-se libertarmo-nos, em primeiro lugar, dos dog-mas economicistas fabricados para servir o capital e não o Homem. Imaginar, de seguida, soluções novas e rasgar caminhos n ovo s r u m o a uma economia justa, distributiva e equilibrada. Um outro mundo é pos-sível.

O que é essa lógica que veda aos jovens o acesso ao primeiro emprego e empurra outros milhões de cidadãos para o desemprego, tirando-lhes a dignidade do trabalho e o ganha-pão hon-roso, ao mesmo tempo que ela clama para mais horas e anos de trabalho? Ao contrário dos arautos do neo-liberalismo e dos promotores do mercado livre (essa verdadeira arma de destruição maciça!), vozes abalizadas de economistas de

vários horizontes têm vindo a demonstrar como a dinâmi-ca do consenso e da partilha beneficia melhor o capital e a sociedade.

O livro do meu colega e amigo Manuel Couret Bran-co, Economics Versus Human Rights (Routledge, 2009), por exemplo, analisa como o economicismo estreito e a ganância capitalista se reve-lam a prazo contraproducen-tes, enquanto o respeito dos direitos do trabalho e a visão solidária, à vez nacional e in-ternacional, podem garantir, ao mesmo tempo, o bem-estar de todos e o rendimento sen-sato do capital.

Precisamos, com urgên-cia, de congre-gar esforços num espírito de solidarie-dade, unindo os grandes es-tados e os mais pequenos, os detentores do

capital e as forças produtivas, os trabalhadores nacionais e os imigrantes, os governantes e tecnocratas e os povos que eles devem servir.

Mas não nos esqueça-mos também da imperativa solidariedade entre o Norte abastado e o Sul desfavoreci-do. Na hora global só existem soluções globais! Não há di-reitos humanos, se faltarem a populações inteiras do globo os meios de exercerem e al-

cançarem esses direitos – a começar pelo direito ao pão, à saúde, à educação, a uma vida minimamente digna.

Perante o alargamento do fosso que separava as nações do primeiro mundo do tercei-ro, essas comprometeram-se mais do que uma vez, nas dé-cadas de 70 e 80, a conceder um por cento do seu PIB aos países subdesenvolvidos. Ne-nhuma alcançou esta meta, nem de perto! A Suécia dos tempos do “socialismo hu-mano” foi a única a ir até aos 0,7%, e isso apenas durante alguns anos.

Coisa análoga está a passar-se com o tão apre-goado Objectivo do Milénio das Nações Unidas, que visa acabar com a pobreza mun-dial até 2015. Ainda antes da presente Crise, todos os peritos alertavam, ano após ano, que as metas definidas não eram cumpridas. O que vai acontecer agora com esta crise, que atinge prioritaria e profundamente os países em desenvolvimento?

Intolerável! Inumano! Contra natura! Temos de re-agir! Temos de pedir contas aos nossos dirigentes e exigir deles, com base nos pressu-postos aqui expostos, uma mudança radical de rumo. Para o nosso próprio bem e a paz universal.

Adel Sidarus, professor universitário aposentado

Europa aberta, Europa solidária

“ Será que vamos continuar a tolerar a existência de largos milhões de cidadãos pobres e marginalizados

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O consumo de animaisna alimentação contemporânea

A nova economia global impõe significativas alterações à indústria alimentar dado o aumento do consumo de ani-mais, tendo em vista não só a manutenção da competiti-vidade mas até a sua própria sobrevivência. Por seu lado, as alterações ocorridas no estilo de vida dos consumi-dores criam novos requisitos aos alimentos, nomeadamente no que se refere à sua versati-lidade, conveniência de utili-zação, satisfação de consumo e segurança.

Estas características são, cada vez mais, de grande im-portância para o consumidor, verificando-se que, à medida que a concorrência aumenta, cresce igualmente a exigência do consumidor: espera-se que o animal para consumo seja seguro, livre de microrganis-mos patogénicos, de resídu-os e que tenha elevado valor nutritivo.

Dada a premência de pro-duzir mais, mais barato e me-lhor, esta indústria tem vindo a reconhecer a importância da implementação de sistemas de gestão dirigidos para a se-gurança e, simultaneamente, para a melhoria da qualidade e da produtividade.

No que respeita à baixa de custo, tendo em vista a obten-ção de preços competitivos, o comprometimento dos recur-sos necessários à implemen-tação dos programas para a qualidade e segurança pode parecer contrário aos objecti-vos dos agentes económicos. No entanto, a necessária adap-tação à mudança só é possível pela requalificação dos meios físicos e humanos, ou seja, a necessidade de qualidade e segurança do que se conso-me é a razão primária para o investimento, particularmente em programas de formação.

Tudo o referido impõe que a indústria se torne proactiva. A importância de muitos des-tes “factores predisponentes” cresceu e os agentes económi-cos confrontam-se agora com o aumento da sua responsabi-lidade por imposição das leis mas, sobretudo, por pressão dos consumidores e dos meios de comunicação social.

Na UE, apesar de algumas indústrias se terem anteci-

pado à lei e tomado medidas proactivas de autocontrolo, muitas permanecem ligadas aos métodos tradicionais de inspecção, baseados na aná-lise do produto final.

A qualidade de um alimen-to de origem animal depen-de do efectivo cumprimento de um certo número de re-gras, as quais abrangem toda a cadeia, desde o sector primá-rio, da produ-ção animal , até à mesa do consumidor.

Ao longo de toda esta ca-deia é preciso cumprir a re-gulamentação eventualmente existente, bem como as boas práticas de produção. Apenas o cumprimento destas regras torna possível a boa qualidade do alimento, quer se trate de

um alimento fresco ou proces-sado. Cada interveniente desta cadeia deve estar determinado para este objectivo, o que só é possível quando todas as regras são compreensíveis, estando bem especificadas e registadas para cada uma

das opera-ções, seja a produção , o p r o c e s -samento, a embalagem, o armaze-namento ou a distribui-ção.

Uma se-g u r a n ç a

da qualidade integrada, “da quinta à mesa”, envolve a elaboração e a aplicação de códigos e boas práticas, o que seguramente implicará a formação e a qualificação do pessoal que verifica os siste-mas de autocontrolo para que

esteja atento a cada um dos pontos críticos da cadeia de produção.

Não será surpreendente que instalações, equipamento e o layout das linhas de pro-cessamento também tenham um papel fulcral na qualidade do produto que chega ao pra-to do consumidor.

Em produção animal há que seguir o código do bem-estar animal, devendo haver o gosto pela natureza, algumas bases de etologia e genética e seguir cuidadosamente todas as regras de higiene e sani-dade animal. O que se decide fazer com os conhecimentos, certezas ou teorias, que daí emanam, já entra no foro da bioética e, portanto, na ideia subjectiva quanto às nossas obrigações para com os ani-mais.

Deve-se assim fomentar junto dos produtores esta boa prática, comprovando com

dados científicos que eleva-do rendimento corresponde a elevado índice de bem-estar, tal como baixa produção cor-responde a bem-estar redu-zido, o que não significa que a discussão ética seja menos importante.

De grande importância também é o facto de não dei-xarmos extinguir as nossas raças autóctones, e promo-ver o consumo destas, pois são animais bem adaptados às nossas condições, criados quase sempre em sistemas de exploração em extensivo, vivendo em perfeita harmonia com a natureza, ou seja um sistema de exploração mais próximo do natural e de baixos custos de produção. As altera-ções dos hábitos alimentares, exigindo carne com menos gordura e o emprego cres-cente de gorduras vegetais, em detrimento das animais, provocaram um decréscimo destas raças e o cruzamento incontrolado com outras por parte dos criadores. E o êxodo rural levou a um aumento dos salários, tornando inviável a manutenção de muitas explo-rações tradicionais. Conjunta-mente, a quebra de preços dos produtos florestais e a cres-cente mecanização, ditaram também esta regressão. A in-versão das práticas agrícolas para sistemas de exploração alternativos com recurso a raças de maior rendimento e a introdução de novas varie-dades de trigo e outros cere-ais bastante mais produtivos tornaram-se, igualmente, num factor desfavorável.

No entanto, alguns produ-tores mantiveram-se sempre fortemente empenhados em manter vivas estas raças, não deixando de ter nas suas ex-plorações animais puros, com maneio muito tradicional, apesar do reduzido rendimen-to económico e da manifesta falta de apoios e interesse das instituições públicas e priva-das. Deve-se assim preservar estes animais de grande va-lor, quer económico quer de património nacional, além de serem possuidores de carnes de elevada qualidade.

Carla Santos, engenheira zootécnica

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“ De grande impor-tância também é o facto de não deixarmos ex-tinguir as nossas raças autóctones, e promover o consumo destas

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Em 2004, estava em Ma-cau, terra testemunha da mi-nha infância, quando nasceu em mim o desejo de um dia abraçar o país-irmão que é Timor. O povo maubere trans-pira cor, vida e uma beleza rara, que contrastam com a dor de um passado e presente críticos.

Adepto desde 1998 de sistemas comunitários auto-suficientes, inspirados por gentes e eventos alternativos em Portugal e em comuni-dades intencionais no golfo da Tailândia, tive a ideia de criar uma vila multifuncional onde a fusão da comunidade intencional e da tradicional pudesse acontecer em har-monia, aliada a um pequeno aldeamento turístico, onde o visitante participaria activa-mente nas lides diárias e os custos reverteriam para o seu desenvolvimento.

Posteriormente, nasceu o projecto Raio de Sol, ba-seado na construção de um centro comunitário em Bau-cau, segunda maior cidade de Timor-Leste, emergindo daí a associação Naterra que, além de dar apoio na gestão do projecto, iniciou actividades de sensibilização em Macau com o objectivo de reatar a conexão com a natureza em centros urbanos, através da rentabilização de terraços para sistemas permaculturais, de modo a responder à falta de espaços verde, e promovendo a educação ambiental junto das escolas e comunidade.

A chegada a Timor trou-xe incertezas de como agir e actuar, ao observar um povo confuso, com medo de mais uma vez ver a sua cul-tura ameaçada pelos interesses e c o n ó m i c o s externos nos recursos na-turais do país. Na interacção com os timorenses, apercebi-me de que a forma ideal de valorizar a cultura e o orgulho de ser timorense passa por pequenas coisas como um sorriso, partilhar a comida ou dançar as suas músicas.

Timor não se dá bem com as diplomacias de quem vem de fora, com promessas de de-senvolvimento.

Foi importante este mergu-lho e envolvimento na cultura e costumes locais, de modo a diminuir as diferenças entre

dois mundos tão distintos, dando lugar a uma maior aceitação e abertura por parte da comunidade, o que me per-mitiu um maior conhecimen-

to do povo e das suas ne-cessidades. Idealmente, este deveria ser o pri-meiro pas-so dado por quem vem de fora, mas infelizmen-te a grande maioria dos

estrangeiros não demonstra essa intenção. A forma como as operações de socorro e de manutenção da paz entram mais parece uma invasão. Sente-se a influência negati-va das actividades militares das tropas australianas (que

teimosamente vivem Timor como um gigante campo de treino) ou a forma como mui-tos estrangeiros em Timor le-vam uma vida completamente alheia à realidade do povo timorense. É crucial ouvir a voz do povo e equilibrar as

necessidades básicas de que Timor precisa urgentemente com o planeamento de como as gerações futuras poderão erguer o país das cinzas.

No entanto, o conceito de desenvolvimento sustentável por vezes le-vanta interro-gações. Numa apresentação de um projecto de hortas e jar-dins orgânicos de uma orga-nização local, um timorense perguntou-me: «Este tipo de coisas é uma forma de olhar para o futuro ou voltar ao passado?». Apreensivo com a questão levantada, destaquei que, curiosamente, os deno-

minados países desenvolvidos estão a apostar em iniciativas idênticas como resposta aos desafios sociais e ambientais que agora encontram.

As promessas de políticas de desenvolvimento social chocam com o animismo

cultural e social do timo-rense, exigindo na acção do desenvolvimento sustentável menos fundamentos e mais exemplos práticos. Exemplos como a captura e utilização da água da chuva, a produção de

biogás para c o z i n h a r (utilizando estrume de animais e restos or-gânicos), re-duzindo as-sim o abate desmedido de árvores, ou utilizar a compos-tagem para contrariar o facto de o

solo em Timor ser extrema-mente rochoso. Mas o maior trabalho a ser feito é a nível

das consciências, através de actividades contínuas de ca-pacitação e de estimulação pessoal, permitindo que o or-gulho de ser timorense seja mote para um Timor mais autónomo.

Hoje, algumas organiza-

ções locais fazem trabalho em favor do desenvolvimento sustentável e, tendo 50% da população menos de 20 anos, se aliarmos o forte espírito co-munitário de Timor à introdu-ção de tecnologias apropria-das e sistemas sociais mais eficazes, Timor-Leste pode tornar-se num modelo a se-guir em futuros planeamentos de comunidades sustentáveis similares.

Arduamente, a nação vai sobrevivendo no tempo, man-tendo uma genuína vontade de ser feliz e de aceitar a dor que a história trouxe com es-perança. Este exemplo é uma grande lição de humildade e esperança para a humani-dade.

André Madeira, consultor de sistemas de

permacultura.

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“ Se aliarmos o forte espírito comunitário de Timor à introdução de tecnologias apropriadas e sistemas sociais mais eficazes, Timor-Leste pode tornar-se num mo-delo a seguir em futuros planeamentos de comu-nidades sustentáveis

“ A forma ideal de valorizar a cultura e o orgulho de ser timoren-se passa por pequenas coisas como um sorriso, partilhar a comida ou dançar as suas músicas

Uma lição a aprender com Timor

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Costumamos definir o conceito de biodiversidade como o conjunto das dife-rentes espécies (dos reinos vegetal e animal), acrescido da variedade dentro de cada espécie e da variedade dos ecossistemas onde aqueles se desenvolvem.

A biodiversidade é o resul-tado de milhares de anos de evolução das espécies e da sua adaptação às condições do meio pelo que, quando contribuímos para a extinção de qualquer delas (vegetal ou animal), estamos a eliminar, definitiva e irreparavelmente, todo um longo período evo-lutivo e, simultaneamente, a destruir potencialidades que poderiam ser de inestimável valor e benefício para a hu-manidade.

Efectivamente, os outros seres vivos (animais e plantas) não são apenas as nossas fon-tes alimentares, uma vez que mais de 70% dos princípios activos dos medicamentos são extraídos de plantas e cerca de 90% são de origem bioló-gica, como refere o cientista Jorge Paiva – que foi inves-tigador do Jardim Botânico

da Universidade de Coimbra e professor da Faculdade de Farmácia daquela universida-de – na sua obra A Relevância do Património Natural.

Sabemos que as plantas estão na base das ca-deias alimen-tares, porque os animais não são autotrófi-cos, ou seja, não são capazes de produzir maté-ria orgânica a partir de com-postos inor-gânicos, como fazem as plantas através da fotossíntese. Assim sendo, a chamada fitodiversidade é fundamental para a manu-tenção da biodiversidade ani-mal, considerando-se também como um pré-requisito para a respectiva evolução.

A maioria da diversidade biológica (biodiversidade) não é ainda conhecida, estando inventariadas cerca de 3 mi-lhões de espécies, das quais 2,5 milhões são animais e meio milhão são plantas. Há mais espécies de animais do que

plantas porque estas não se deslocam por si para ocupa-rem novos nichos ecológicos e se diversificarem, pois de-pendem que os seus esporos,

sementes e frutos sejam transpor-tados pelo vento, por animais ou pela água.

Fica claro que o património bio-lógico é efectiva-mente essencial e indispensável à sobrevivência da espécie huma-na neste planeta, porque sem os

outros seres vivos não so-brevivemos.

Portugal, situado no extre-mo sudoeste do Continente Europeu e quase confinan-te com o noroeste de África, apresenta condições únicas e determinantes para ser uma das regiões europeias de maior diversidade bioló-gica. Cumpre-nos a respon-sabilidade da sua salvaguarda efectiva e atempada.

Antunes Dias, biólogo

Biodiversidade e a sua importância

“ A biodiversi-dade é o resultado de milhares de anos de evolução das espécies e da sua adaptação às condições do meio

Bio adversidadesO Ano Internacional da

Biodiversidade tem como objectivo travar a perda des-ta até ao final de 2010. Mas o que é a biodiversidade? A biodiversidade engloba a va-riedade de genes, espécies e ecossistemas que constituem a vida no planeta.

Nas últimas décadas temos assistido a extinções de espé-cies e destruições de habitats resultantes da construção desenfreada, dos sistemas de produção agro-pecuária intensiva, da exploração de pedreiras, da desflorestação e da sobre-exploração dos recursos marítimos e flu-viais, da introdução de espé-cies exóticas, da poluição e, principalmente, das alterações climáticas globais.

Um artigo publicado em 2004 na revista Nature sobre os possíveis impactes de alte-rações climáticas moderadas em milhares de espécies de seres vivos em seis zonas ricas em termos de biodiversidade

mostrou que 15 a 37% dessas espécies podem extinguir-se até 2050.

Ora, infelizmente o deno-minador comum a todas estas causas é a acção abusiva e de-sequilibrada do homem sobre o ambiente, com a arrogância própria de quem pensa que é a Natureza quem o serve e

não o contrário.Provavelmente quem lê, e

por vezes até quem escreveu este texto, tende a culpabili-zar as grandes empresas e os governos por esta situação, esquecendo que cada um tem a responsabilidade, como ci-dadão e, acima de tudo, como habitante deste planeta, de

mudar esta realidade.E não é difícil, basta cada

um em sua casa alterar hábitos de consumo de água e energia, reciclar, andar mais a pé, de bicicleta , de t r a n s p o r t e s públicos ou de boleia, respei-tar e preservar as paisagens naturais, com-prar produtos a l i m e n t a r e s da época e, de p r e f e r ê n c i a , nacionais, e, muito importante, exercer o seu dever de cidadão partici-pando nas consultas públicas de decisão dos processos de avaliação de impacte ambien-tal, nos dias abertos que algu-mas empresas promovem, nas sessões públicas municipais e em todas as acções partici-pativas de esclarecimento ou

decisão acerca de processos que causem impactes no am-

biente. Se existir uma

consciência global menos egoísta e mais responsá-vel será mais fá-cil impedir que a biodiversidade não diminua e que to-dos os seres vivos possam coexistir em melhores con-dições, incluindo o homem, esse ani-mal que até agora é o único com ca-pacidade racional comprovada em

termos científicos.Já agora, se este jornal

depois de lido não for para guardar ou para qualquer ou-tra utilização, o seu sítio é no ecoponto azul. Obrigada!

Rute Vieira, bolseira de investigação

científica no LNEC

“ Se existir uma consciência global menos egoísta e mais respon-sável será mais fácil impedir que a biodiversidade não diminua e que todos os seres vivos possam coexistir em melhores con-dições

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A escolha da Assembleia-geral da ONU ao declarar 2010 como Ano Internacio-nal da Biodiversidade colo-ca o tema da fragilidade dos ecossistemas e a destruição da biodiversidade nas agen-das políticas e diplomáticas. Aguarda-se, com expectativa, que chegue a todos urgente-mente a mensagem: ao actual ritmo de desenvolvimento e modo de vida a perda de bio-diversidade atingirá contornos irreparáveis com profundas consequências para o mundo natural e o nosso bem-estar enquanto espécie.

A consciência colectiva da velocidade a que se perdem espécies e da premente ne-cessidade de tomar medidas com vista à sua conservação não é uma questão recente, pelo contrário, há muito que é invocada por investigadores e debatida nas conferências sobre ambiente e sustenta-bilidade. Em Junho de 1972, durante a Conferência de Estocolmo, a conservação da natureza, da vida selvagem e dos recursos genéticos foi identificada como uma área prioritária. Mais tarde, em 1992, na Conferência do Rio, foi apresentada a Convenção sobre a Diversidade Biológica, assinada por 175 países.

Desde então a perda de biodiversidade intensificou-se em termos espa-ciais e temporais, tornando quase insignificantes a l g u m a s d a s medidas toma-das com vista à sua preservação. Desenganem-se os que julgam que tudo se recompõe, ou aqueles que consideram que os “outros” é que são respon-sáveis. O Homem modificou,

sobretudo nos últimos 50 anos, os ecossistemas mais rápida e extensivamente que em qualquer intervalo de tem-

po equivalente na história da Humanidade e a natureza não conse-gue repor-se ao ritmo a que destruímos.

E s t a é a real idade a nível mundial e se analisar-

mos a situação em Portugal apercebemo-nos que esta não difere. Segundo o rela-tório Millennium Ecosystem

Assessment, disponível em http://www.ecossistemas.org, «nos últimos 50 anos assisti-mos a alterações significativas nos ecossistemas portugueses impulsionadas por profundas modificações socioeconómi-cas. A economia aumentou mais de seis vezes, o núme-ro de agricultores diminuiu mais de 60% e a área agrícola reduziu-se em 40%. Ocorreu a intensificação agrícola e a florestação com monocultura de eucalipto, com impactes negativos na biodiversidade e nos serviços de regulação dos ecossistemas. Os nossos rios sofreram modificações dramáticas com a construção

de barragens e com o aumento da poluição proveniente da agricultura e da indústria. O problema das espécies exó-ticas invasoras agravou-se nas ilhas e aumentou a pressão sobre os ecossistemas coste iros . Em muitos ecossiste-mas manteve-se ou agravou-se o nível de sobre-caça e sobre-pesca».

Convém real-çar que a biodi-versidade exis-tente em Portugal Continental inclui mais de 3.000 espécies de plantas vascu-lares, cerca de 400 espécies de vertebrados, e um número desconhecido de espécies de invertebrados. Nos Açores e na Madeira existem mais de 1.700 espécies de organismos que não existem em mais ne-nhuma parte do mundo (en-démicos).

Num país em que a pro-dução alimentar é deficitária em 30% em relação ao con-sumo, de acordo com dados do Millennium Ecosystem Assessment, uma maior destruição dos ecossistemas implica uma maior dependên-cia face ao exterior. Contudo, diariamente ouvimos rela-tos da destruição de fundos marinhos, comercialização de espécies ameaçadas e em extinção; destruição de flo-restas através de incêndios, e não só; práticas agrícolas pouco ou nada sustentáveis e mais um rol de outras acções que directa e indirectamente contribuem para a devastação dos ecossistemas.

Respeitar as áreas prote-gidas, preservar espécies em extinção, modificar comporta-

mentos, são algumas das ati-tudes de cidadania que devem ser intrínsecas a qualquer ser humano. Há que tomar cons-

ciência que os p r o b l e m a s a m b i e n t a i s das próximas décadas e a consequente d e g r a d a ç ã o da biodiversi-dade só serão minimizados se cada um de nós, em parti-cular, e a so-ciedade, num todo, tomar uma atitude mais pró-ac-tiva, colabo-

rativa e responsável.No seu livro Eco-inteligên-

cia, Daniel Goleman alerta: «Compramos champôs con-tendo químicos industriais que podem ameaçar a nossa saúde ou contaminar o ambiente. Mergulhamos para ver recifes de corais, não tendo consciên-cia de que um ingrediente do nosso protector solar alimenta um vírus que mata o recife. Usamos t-shirts de algodão biológico, mas não sabemos que os seus corantes podem fazer os operários correr o risco de contrair leucemia».

Neste alerta está implícita a devastação da biodiversi-dade e a consequente perda de qualidade de vida para o ser humano. Que o Ano In-ternacional da Biodiversidade contribua para uma sociedade mais sustentável e com seres humanos mais respeitadores das espécies que connosco partilham o planeta e que num todo formam a Biodi-versidade.

Lurdes Soares, doutoranda em Estudos Avançados de Ecolo-

gia Humana na FCSH-UNL

Um olhar sobre a biodiversidade

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“ Ao actual ritmo de desenvol-vimento e modo de vida a perda de bio-diversidade atingirá contornos irrepará-veis com profundas consequências para o mundo natural e o nosso bem-estar enquanto espécie.

“ Desenganem-se os que julgam que tudo se recompõe, ou aqueles queconsideram que os “outros” é que são responsáveis.

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Rituais, devoções e manifestações de culto na

Palmela do século XVICom este breve texto pre-

tendemos fazê-lo comungar do “Culto” a Santiago, Santa Maria, São Pedro e ao Espírito Santo e participar na “Festa”, ao partilhar todo o espírito ri-tualista destas manifestações que fizeram parte do quoti-diano da Vila de Palmela no século XVI.

O Culto de SantiagoEm 1510, determinou o

mestre D. Jorge que se deveria celebrar e festejar, condigna-mente, em todas as igrejas da ordem, o dia do Apóstolo (25 de Julho), assim como o dia da sua trasladação de Jeru-salém para Espanha (30 de Dezembro).

Nas Disposições Gerais da Visitação mandava-se que em cada ano, na véspera do dia de Santiago, o patrono da ordem, se fizessem varrer e paramen-tar as igrejas e re-picar os sinos com grande solenidade; fossem cantadas as vésperas, assim como a missa do dia, principalmen-te nas cerimónias do convento, para que todo o povo fosse assistir. Man-dava-se, também, que se fizesse procissão tão solene como a de Corpo de Deus e que as ruas por onde a procissão passasse estivessem varridas e alumiadas.

Também existiam as festas do bodo, onde se fazia correr um touro e no fim da corri-da matava-se o dito, sendo um quarto do bicho dado ao pregador do dia e os restantes distribuídos pelo povo da vila, por amor de Deus.

Por Palmela passava o Caminho de Santiago, pro-veniente do Norte de Áfri-ca, atestado nas camas do

Hospital do Espírito Santo e na Âmbula do Peregrino encontrada nas escavações arqueológicas.

O Culto da Virgem O antiquíssimo culto de

Nossa Senhora recrudesceu a partir do século XIII e teve como principais defensores os membros das Ordens Milita-res. As igrejas destas ordens puseram-se sobre a invocação da Virgem, ainda que tives-sem por orago outros Santos. No Sínodo de Braga de 1505 estabeleceu-se que se deviam celebrar todas as festas em honra da Virgem.

Mas se até ao século XIV o culto mais notório foi o de Santa Maria, a partir daí ele alargou-se ao culto da Anun-ciação e, também, a Nossa Se-nhora do Rosário, da Graça, da Estrela, de Tróia e da Ata-

laia - algumas representadas nas duas igrejas de Palmela.

Esta devo-ção ficou bem p a t e n t e n a descrição das igrejas de Santa Maria do Caste-lo e São Pedro, em que, bem à

moda Tridentina, estas igrejas se foram cobrindo de altares e imagens da Virgem Maria.

Também não é de esquecer as confrarias, muitas delas em honra de Nossa Senhora.

O Culto de São PedroO culto de S. Pedro é, a

seguir ao da Virgem Maria, o mais praticado e, por isso, não é de estranhar que, numa terra ligada ao mar e em que a pesca era parte integrante da vida quotidiana, os habitantes escolhessem para orago da sua (segunda) igreja matriz

o santo padroeiro dos pesca-dores e primeiro patriarca da igreja. Devia-se guardar, jejuar e festejar o dia do Santo, que é a 29 de Junho. Há também referência à festa do Bodo no dia comemorativo do Santo.

O Culto do Santíssimo Sacramento

A reforma tridentina vem consubstancializar o culto do Santíssimo Sacramento. Es-tamos perante o acto de fé, o dogma da transubstanciação em que o crente, ao receber a Eucaristia, acredita que está a receber o corpo e o sangue de Cristo.

Assim como Trento tinha determinado que se fizesse a adoração de Cristo presente no sacrário, também o fez quanto à realização de pro-cissões em honra do Corpo de Deus, muitas das vezes organizadas pelas confrarias de invocação do Santíssimo,

outras por mandado régio ou do mestre da Ordem, como foi o caso de Palmela, em que D. Jorge determinou que se fizesse procissão solene em dia de Corpo de Deus, com as ruas por onde esta passava varridas e iluminadas.

O Culto do Espírito SantoA Idade Média desenvolveu

o culto do Espírito Santo, que conseguiu arrastar consigo todos os estratos sociais tor-nando-se na mais importante, senão a maior, devoção dos portugueses até aos nossos dias. Esta devoção tinha mui-to de popular e folclórico e, porque não, sobrevivências de cultos pagãos que a igre-ja, com os seus dogmas, não podia aceitar. Mas não acabou com eles. Antes converteu lu-gares, tempos e práticas em culto cristão.

No século XIV e seguintes encontram-se ermidas, con-

frarias, albergarias e hospitais, como é o caso de Palmela, a cujo Hospital do Espírito Santo será acrescentada a Igreja da Misericórdia. Este hospital tinha uma mera fun-ção assistencial a enfermos, pobres e peregrinos a nível dos primeiros cuidados de hi-giene, repouso e, se possível, cura. Pode dizer-se que a sua missão era fornecer luz, água, cama e roupa lavada.

O culto do Espírito San-to manifestava-se tanto nas celebrações litúrgicas, em Seu louvor, como, também, em outras expressões de fé e devoção, que conduziam à realização de obras de arte.

As festas do Espírito San-to eram comemoradas, por todo o país, entre Abril e Ju-nho, a começar no Domingo de Páscoa e a terminar no Pentecostes, altura em que era distribuído o bodo. Para Palmela pouco há a acrescen-tar sobre esta devoção, mas a legislação eclesiástica obriga a que se guardem os dias de Pentecostes e da Santíssima Trindade e que nesses dias se faça jejum - quem o quebrasse ficaria sujeito a uma “multa” a ordenar pelo abade.

As manifestações (inse-paráveis) de Fé na Santís-sima Trindade e no Espírito Santo, o seu culto e devoção, atingiram a sua expressão mais clara na construção de igrejas, capelas, hospitais e confrarias, que mais tarde se iriam transformar em hospi-tais da Misericórdia (caso de Palmela), erguidas para Lhe prestarem culto.

Ficam, assim, aqui presen-tes alguns sinais de CULTO e FESTA da Palmela quinhen-tista.

Regina Bronze, mestre em História Medieval

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“ Por Palmela passava o Caminho de Santiago, pro-veniente do Norte de África, atestado nas camas do Hos-pital do Espírito Santo

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A gruta 4 de Maio foi des-coberta em 2008 e, como o seu nome indica, foi identifi-cada nessa data, que corres-ponde ao dia do Senhor das Chagas, de muita devoção na vila de Sesimbra.

Desde essa al-tura e até ao pas-sado dia 21 de Ju-lho de 2009, esta gruta, onde com muita dificuldade entra uma pessoa e de dificíl imo acesso, não pas-sava de mais uma cavidade natural localizada sob a serra da Azóia, junto ao Vale das Lapas, como muitas ou-tras que perfuram os calcários da região.

Apesar da ausência de documentação arqueológica até então patente, entendeu a equipa da Carta Arqueológica de Sesimbra apresentar um levantamento topográfico ac-tualizado. Foi no âmbito desse trabalho, levado a cabo por Rui Francisco e Miguel Amigo, no qual foi necessário desviar algumas pedras para obter

as medidas correctas, que no canto mais inacessível da gruta surgiu, de forma inespe-rada, uma placa em madeira, preenchida com um texto em

árabe. Refeitos da surpresa, contactaram-me de imedia-to, bem como a dois eminentes arabistas – An-tónio Rei e Ni-cole Cottart.

A PlacaA p l a c a

d e s c o b e r t a é de madei-ra compacta,

rectangular, com 58 cm de comprimento por 15,5 cm de largura e 1 cm de espessura. O topo superior e inferior estão ligeiramente arredondados. A metade superior encontra-se completa, provavelmente consequência directa do am-biente em que foi depositada. Sugere que terá sido ligeira-mente danificada por acção do fogo.

O campo epigráfico, que ainda não foi traduzido, ini-cia-se no topo da placa, nos

dois lados da mesma, e desen-volve-se quase até à metade inferior, deixando um espaço livre adequado para ser segu-rado por ambas as mãos.

Segundo a leitura prelimi-nar de Nicole Cottart, estamos perante um fragmento do Co-rão. Na realidade, a placa deve ser entendida como um fólio do livro sagrado e não como uma placa de madeira, porque a estrutura gramatical contida no texto é idêntica à encontra-da no Corão. Para esta arabista, esta-mos perante uma placa semelhante às usadas nas Ma-drassas e que até há pouco tempo eram utilizadas no Norte de África para ensinar o Co-rão e a língua ára-be. Curiosamente, o macro topónimo da região – Azóia – correspondia a locais onde um professor de sen-sibilidade religiosa tinha a sua congregação e en-sinava a ler ou a escrever.

A presença desta placa

numa gruta de Sesimbra, escondida provavelmente em meados do século XII, num ambiente de guerra, obriga-nos a ser prudentes na apresentação de hipóteses de trabalho. O do-cumento sesim-brense é único em Portugal, porque sabemos exac-t a m e n t e o n d e foi encontrado e qual o contexto envolvente. Em território português, só temos conhecimento, com base num artigo do Arquivo de Beja, de um conjunto de placas em madeira similares, em depó-sito no Museu de Beja, mas de proveniência desconhecida.

Enquadramento Cultural: Leitura Preliminar

Estamos perante um acha-do que ainda está em fase de estudo. A ausência da tradu-ção do texto escrito na placa é uma limitação por ora in-contornável. A aparente au-sência de outra documentação arqueológica associada, como cerâmicas, é outra das limi-tações sentidas para definir cronologicamente o achado.

Numa primeira fase, tive-mos de nos cingir à análise da tipologia do texto como meio para definir um horizon-te cronológico coerente com o observado. Depois, procu-rámos entender o contexto do achado, numa gruta de tipo esconderijo, na conjun-

tura política da época.

No distrito de Setúbal, a epigrafia islâ-mica era, até ao momento, conhecida em Alcácer do Sal, Palmela e no Alto da Quei-mada/Palmela, tendo como su-porte a pedra, a cerâmica e res-tos etiológicos. O achado de Sesimbra, além

de ser notável em variados as-pectos, está num tipo de su-porte completamente novo

e muito raro no Garb al-An-dalus (a área mais ocidental da Península Ibérica). O seu

texto é de estilo cúfico, coerente com o que era usado no sécu-lo XII, em con-texto Almorá-vida. Segundo os arabistas consultados, o texto será pro-vavelmente de tipo magrebi-no.

Se o estilo empregue no texto é coerente com o usado no século XII, o facto de esta placa ter sido escondida numa gruta peque-na, de acesso difícil mesmo nos dias de hoje, sugere que o objectivo seria esta não ser encontrada. O perigo, na pers-pectiva islâmica, provinha dos avanços e recuos portugueses na serra da Arrábida, após a conquista de Lisboa em 1147. Como hipótese de trabalho, sugerimos que a data de ocultação desta placa tenha ocorrido em 1165, ano que representa a primeira con-quista do Castelo de Sesimbra pelos Portugueses, ou pouco depois.

A palavra de Deus é sagra-da para o crente muçulmano, independentemente do supor-te usado. É dever do crente impedir que os não crentes tenham acesso a ela. O fac-to de o objecto portador de baraka/bênção estar oculto é benéfico para a região en-volvente, porque mesmo que o território caia nas mãos dos cristãos, a palavra de Alá per-mite uma ligação “simbólica” à terra do Islão na perspec-tiva do crente islâmico. Pro-vavelmente, quem escondeu a placa queria simbolizar a fuga de Maomé para Medina, que antecede o seu regresso triunfal a Meca.

Seja como for, a placa per-maneceu estes últimos séculos escondida, numa região que conseguiu manter o seu nome de origem árabe, revelador do carácter sagrado que possuía nesses tempos conturbados de Sesimbra.

António Rafael Carvalho, arqueólogo

A Placa Epigráfica Árabe

“ Estamos perante uma placa semelhante às usa-das nas Madrassas e que até há pouco tempo eram utili-zadas no Norte de África para ensinar o Corão e a língua árabe

encontrada na Gruta 4 de Maio, na Serra da Azóia

“ Como hipó-tese de trabalho, sugerimos que a data de ocultação desta placa tenha ocorrido em 1165, ano que representa a primeira con-quista do Castelo de Sesimbra pelos Portugueses, ou pouco depois

“ O facto de esta placa ter sido escondida numa gruta pequena, de acesso difícil mesmo nos dias de hoje, sugere que o objectivo seria esta não ser encontrada

Placa Epigráfica Árabe

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2010 promete ser uma au-têntica revolução no paradig-ma da produção historiográ-fica regional sobre os séculos XIX e XX. Recentemente, foi publicado o estudo e antolo-gia de Anita Vilar acerca de Mariana Angélica d’Andrade, a denominada “ p o e t i s a d o Sado” , onde se dá a conhe-cer o percurso de uma mu-lher influente na sociedade sadina, na se-gunda metade de Oitocentos. Com este livro termina um longo silêncio so-bre a participação feminina na construção da sociedade de então, que demonstra todo um novo potencial campo de

pesquisa, prometendo alterar a tradicional visão sobre este período.

Ainda mais recente, igual-mente publicado pelo Cen-tro de Estudos Bocageanos, a quem felicitamos a intensa actividade editorial, é Anarco-

sindicalistas e republica-nos, Setúbal na Primeira República , de Álvaro Arranja, his-toriador de créditos fir-mados, que

nos traz uma proveitosa leitu-ra, renovada, sobre as classes trabalhadoras setubalenses no período enunciado, se bem que estendendo retrospecti-vamente a observação até à

segunda metade do séc. XIX e dilatando-a, evocando, no final, Jaime Rebelo, o “homem da boca fechada”.

Muito em breve sairá Setú-bal 1909, a cidade e o congresso do Partido Republicano, edita-do pela Câmara Municipal de Setúbal. Para além de retratar a exposição realizada no ano transacto na Biblioteca Muni-cipal, conta com importante estudo de Carlos Mouro e Ho-rácio Pena que, com sucesso, procura caracterizar a cidade de Setúbal nos últimos anos de Oitocentos e inícios de Novecentos a partir de uma matriz social e económica.

Estes trabalhos vêm re-novar, com novas leituras e a preços muito acessíveis, a visão de Maria da Conceição Quintas que, com um conjunto

de obras, havia praticamente encerrado este tema desde os anos 90. Trazem, além de fres-cura, uma visão coerente que dimana das três obras – uma Setúbal agitada e conturbada, fervilhando de revolucionários nas mais distin-tas áreas, tais como a políti-ca, a educativa e a cultural.

Este aparen-te consenso será posto em causa, já no final deste ano, pela jovem, mas expedita e resoluta, historiadora Danie-la Silva, com a apresentação da tese de mestrado sobre assistencialismo em Setúbal nos séculos XIX e XX, onde

às abordagens de tipo mate-rialista contraporá uma pers-pectiva positivista.

Assim sendo, para os a m a n t e s da história local, 2010 a p r e s e n t a i n ú m e r o s livros car-regados de novas histó-rias intensas, de conspira-ções e revo-luções, que

nos obrigam a reflectir sobre o colectivo urbano, antigo e actual, e promete polémicas que muito se prolongarão para além dele.

José Luís Neto,[email protected]

Livros, conspirações e revoluções

Pedro Palma e João Lino são dois artistas de Setúbal que têm em comum a pas-sagem pela Faculdade de Be-las Artes da Universidade de Lisboa e distinções nas duas edições do concurso de artes plásticas Resarte.

A frequentar o 4.º ano de Pintura, Pedro Palma recebeu o 2.º prémio em 2009, com o quadro Lisboa, tela de home-nagem à cidade que lhe abriu «horizontes mentais, tanto na faculdade como na vida boé-mia», mas que também o fez conhecer a solidão.

«Em Setúbal não precisava tanto dos extremos: estar so-zinho ou sempre com amigos. É uma cidade onde vivo com mais estabilidade. Mas Lisboa para mim é 8 ou 80 – ou estou na vida boémia ou tenho de me isolar, descansar e desligar o botão», revela, explicando que «se tivermos uma relação completamente extrema, se soubermos muito bem o que é a vida e o que é a morte, o que é a boémia e o que é a solidão, encontramos uma noção de meio-termo muito interes-sante, composta pela união de experiências opostas».

Igualmente «adepto dos jogos de extremos e dos contraditórios», João Lino

começou pela pintura, mas o ingresso no curso de Escul-tura, que concluiu em 2009, fê-lo desenvolver o gosto por trabalhar os volumes, apesar de considerar que esse não é o caminho do futuro.

«Cada vez mais vivemos da imagem e das artes digi-

tais, de coisas mais efémeras. A escultura é o oposto disso: tem presença, é pesada, é algo concreto que não dá para gra-var num CD e copiar. E em-bora pense que o caminho do futuro é o digital, a escultura é a minha forma de expressão, pois gosto de criar objectos físicos, andar à volta deles e tocar-lhes», afirma o escul-tor, revelando a sua atracção por «máquinas barulhentas» e pela «agressividade do ferro», que o desafia a «explorar o conceito de leveza», como se evidencia na peça Reflexão de um anjo (esboço), 3.º prémio do Resarte 2009.

O trabalho com máqui-nas também não é estranho a Pedro Palma, que descobriu o seu talento para trabalhar vidro há alguns meses, depois de um professor dos Estados Unidos o ter convidado para o seu atelier em Nova Iorque. Na origem do desafio esteve um workshop de vitral, em que o artista norte-americano se manifestou surpreendido com o perfeccionismo do jovem setubalense no polimento das peças, tendo em conta o equi-pamento ao seu dispor.

No que respeita a ferra-mentas e materiais, João Lino destaca que os custos eleva-

dos muitas vezes o obrigam a adaptar os projectos que idealizou ao orçamento dis-ponível. Porém, não encara isso como um contratempo mas como um desafio: «Se as coisas não correm como estamos à espera, temos de

resolver, improvisar, fazer de outra forma e muitas vezes, acidentalmente, acabamos por descobrir algo novo. Porque é a criar que criamos”.

Luís Humberto [email protected]

Silêncio e tanta gente : os extremos da arte

“ Quan-do se vive da arte, criam-se expectativas no público.

“ uma Setúbal agita-da e conturbada, fervi-lhando de revolucioná-rios nas mais distintas áreas

“ para os amantes da história local, 2010 apresenta inúmeros li-vros carregados de novas histórias intensas, de conspirações e revolu-ções

Lisboa, segundo prémio Resarte 09, de Pedro PalmaReflexão de um anjo, terceiro prémio Resarte 09, de João Lino

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Entre as 44 obras que con-correram ao concurso de artes plásticas Resarte 2009, uma fotografia da setubalense Raquel Mendes destacou-se e valeu-lhe os 500 euros do primeiro pré-mio, atribuídos pela Câmara Municipal de Setúbal . L i-cenciada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e mestre em Artes Visuais pela Glasgow Scho-ol of Art, da Escócia, Raquel Mendes tem, aos 32 anos, um currículo onde figuram quase

40 exposições e o primeiro prémio de Fotografia Jovens Criadores 2005.

O SUL – Como surgiu esta participação no Resarte?

Raquel Men-des – Soube do Resarte num bar, em Agosto. Como nunca tinha feito nada na minha terra – sou uma artista ausente –, decidi participar, mais para ver

como é que as pessoas re-agiam ao meu trabalho e se identificavam, ou não, com ele do que com a ambição de ganhar, até porque acredito

que os prémios dificilmente abrem portas.

S – Ter uma ligação à terra onde cresceu é importante para si, enquanto artista?

RM – Nunca o pensei dessa forma, nunca foi uma posição. Mas é onde vivo e tenho todo o gosto em identificar-me com a cidade sem ser apenas atra-vés de uma relação nostálgica, que deriva do facto de só ter memórias antigas das ruas por onde passo, dado que agora a minha vida se faz mais fora de Setúbal do que dentro.

S – Mas foi em Setúbal que começou o gosto pelas artes...

RM – Sim, na Escola Co-

mercial. Depois fui para Lisboa, para a Faculdade de Belas Artes. Aí surgiu a opor-tunidade de fazer um Eras-mus na Noruega, onde tinha de desenvolver um trabalho que pudesse tra-zer de volta para Portugal. Só que a minha especiali-dade era pedra... e como não ia trazer pedra da Noruega, a fotografia apa-receu como uma solução viável. E gostei tanto de trabalhar a ima-gem que comecei a dedicar-me mais a isso. A escultura foi ficando para trás.

S – Desistiu da escultura?RM – Em termos artísticos,

concebo primeiro a ideia e de-pois penso na melhor manei-ra de a concretizar: pode ser em madeira, em fotografia ou até em pedra, pois não ando a fugir dela. Mas trabalhar a pedra exige um investimento muito forte num espaço, pois há barulho, há poeiras... não é algo que se possa fazer na garagem de um prédio. Isto para dizer que não desisti da escultura, apenas tenho tido ultimamente mais ideias bidimensio-nais, na área do vídeo e da foto-grafia.

S – O seu cur-rículo já tem al-guma extensão, com experiências na Noruega, Es-cócia e Islândia. Como surgiram estas oportuni-dades?

RM – Um cur-rículo constrói-se com persis-tência. Ultrapassar obstáculos dá-nos uma dinâmica que depois torna as coisas mais frequentes, mais naturais, cada vez menos impossíveis. Em Portugal nunca consegui bolsas, mas lá fora as coisas aconteceram, talvez porque há mais apoio às artes e transpa-rência em todos os processos. Na Islândia nem a língua foi uma barreira, pois tudo se processou em inglês.

Tenho um fascínio pelos

países frios porque neles se trabalha mais. Como não há bom tempo, ficamos em casa e concentramo-nos no que temos a fazer (risos). Mas não é só isso. Identifico-me com a

cultura desses países porque, quando alguém diz que é para fazer, é mesmo para fazer. Não há um “diz que disse”, um “va-mos ver como é”, que nos faz gastar muita energia em coi-

sas mínimas. Lá, tomam-se decisões e, se está dito, está dito, não é preciso relembrar todas as semanas o que ficou combinado.

Se posso trabalhar com essas pessoas e estar nesses sítios onde me dão melhores condições de trabalho, por-que não hei-de ir ter com eles? Não sou masoquista, trabalho onde me deixarem trabalhar.

S – E consegue viver só do trabalho artístico?

RM – Nunca me vi obri-gada a sobreviver através do meu trabalho artístico e não

sei se gostaria de passar pela e x p e r i ê n c i a de tê-lo como principal fonte de subsistência. Quando se vive da arte, criam-se expectativas no público, que depois procu-ra determina-do tipo de tra-balhos pelos quais somos c o n h e c i d o s .

Se estivermos dependentes disso para viver, se calhar até cedemos e acabamos por fa-zer sempre o mesmo. Quando não dependemos disso, temos liberdade total para arriscar coisas novas, experimentais, que o mais certo até é darem para o torto mas, ainda assim, queremos experimentar. E eu não gostaria de prescindir dessa liberdade.

Luís Humberto [email protected]

Raquel Mendes, vencedora do Resarte 2009«Sou uma artista ausente»

“ Ultrapassar obstáculos dá-nos uma dinâmica que depois torna as coisas mais frequentes, mais naturais, cada vez menos impossíveis.

“ Quando se vive da arte, criam--se expectativas no público.

“ Tenho um fascínio pelos países frios porque neles se trabalha mais.

«Andava de carro à procura de uma casa abandonada, que tivesse o tecto a ruir, quando descobri este apeadeiro na Linha do Sado, não muito longe das Pontes. Não tendo o tecto em ruínas, ele apresentava outros aspectos que me cativaram. O dia da fotografia foi um dia de mudanças, em que coloquei lá a mobília e as personagens. São uma mistela de gente disponível: a protagonista é uma amiga e a família que lá está não é a dela nem a minha – é a de outra amiga nossa. Já o retrato de casamento sobre o móvel é dos meus pais. No fundo, a casa degradada surge como uma pista daquilo que não se diz, revelando as tensões internas. Vicia o ambiente para que o observador, mais do que perceber o que vê, sinta o que vê».

Raquel Mendes

s/ titulo, primeiro prémio Resarte 09, de Raquel Mendes

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FICHA TÉCNICA:Propriedade e Editor: Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL Morada: Largo António Joaquim Correia, n.º 7 1º Dto - 2900-231 Setúbal Director: Luís Humberto Teixeira Subdirectores: José Luís Neto e António Serzedelo Consultor Especial: Fernando Dacosta Conselho Editorial: Anita Vilar, Hugo Silva, Leonardo da Silva, Maria Madalena Fialho e Patrícia Trindade Coelho Directora de Arte: Rita Oliveira Martins Consultor Artístico: João Raminhos Sede de redacção: Rua Deputado Henrique Cardoso, 30-34 - 2900-109 Setúbal E-mail: [email protected] Site: http://www.jornalosul.com Nº ERC: 125 830 Depósito legal: 305788/10 Periodicidade: Mensário Tiragem: 6.000 exemplares Tipografia: Tipografia Rápida de Setúbal Morada da tipografia: Travessa Jorge d'Aquino, 1 r/c - 2900-389 Setúbal

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Desafios para as próximas ediçõesO Sul é um jornal aberto

à colaboração de todos, aco-lhendo artigos de opinião, reflexão ou análise, reporta-gens, entrevistas ou textos de divulgação científica, que se-rão lidos pela Direcção e pelo Conselho Editorial, estruturas cuja função é seleccionar o que será publicado online e/ou em papel.

São aceites todos os con-tributos, sem restrições te-máticas, mas como sabemos que às vezes o mais difícil é decidir sobre o que escrever, avançaremos em cada edição com sugestões de temas para as edições seguintes. Seguem abaixo os nossos desafios para os próximos números. As sugestões são meramen-

te indicativas e os ângulos de abordagem dependem da criatividade de cada um.

Edição n.º 2Entrega: até 26 de FevereiroSai em meados de Março

Mulher – Catalogadas como “sexo fraco” durante séculos, as mulheres têm hoje um pa-pel cada vez mais relevante. Escreva-nos com o seu ponto de vista acerca dos custos in-dividuais e sociais desta as-censão, recorde sufragistas como Ana de Castro Osório ou conte-nos histórias de ou-tras mulheres, reconhecidas ou nem por isso.

Teatro – Em Março celebra-se o Dia Mundial do Teatro,

uma arte milenar que conti-nua a atrair espectadores. Se a vida é um palco em que todos desempenhamos um papel, terá qualquer um capacidade para ser actor? E como pode uma arte que vive da presença física competir com o apelo de novos mundos virtuais à distância de um clique?

Ecologismo – Há 25 anos teve lugar em Tróia o primeiro Encontro Nacional de Eco-logistas. Esteve lá e gostaria de recordar algum episódio curioso? E o que pensa da evolução do movimento eco-logista e da implantação des-tes ideais na nossa sociedade? Se ainda estamos longe de ser uma civilização sustentável, o que podemos todos nós fazer

para passar a sê-lo?

Edição n.º 3Entrega: até 26 de MarçoSai em meados de Abril

Precariedade – A Constituição da República Portuguesa de-fende a segurança no traba-lho, mas cada vez se respeita menos este direito. Que me-didas podem ser tomadas para inverter esta situação, tanto a nível legal como de organi-zação dos trabalhadores?

Lusofonia – «Minha pátria é a língua portuguesa», afirmava Bernardo Soares, semi-hete-rónimo de Fernando Pessoa. Se assim for também para nós, o que significa o novo acordo ortográfico? E por-

quê tanto desassossego em torno dele?

Religião – Se o que faz a reli-gião é a prática, fará sentido alguém afirmar-se católico (ou muçulmano, ou judeu) não praticante? E como são hoje vistas as efemérides reli-giosas? E a fé individual?

Os artigos devem seguir as normas para envio de con-tributos indicadas abaixo e ser enviados para o e-mail [email protected]. Caso não tenha possibilidade de usar este meio de comu-nicação, contacte-nos através do telefone 963 883 143 para, em conjunto, encontrarmos uma solução.

O VI Encontro sobre Or-dens Militares, vai decorrer em Palmela entre 10 e 14 de Março, sob o tema Freires, Guerreiros, Cavaleiros. Com um conjunto de sete dezenas de oradores, provenientes de algumas das mais prestigia-das universidades do mundo, o Encontro, promovido pela Câmara Municipal de Pal-mela, permitirá actualizar

o conhecimento que temos, hoje, sobre o papel dual des-tes homens que, um pouco por todo o mundo, se dedi-caram, simultaneamente, à fé e à guerra.

Além das comunicações, o programa integra um con-junto de momentos de inte-resse geral. São exemplo uma sessão-debate sobre Ordens Militares e Literatura Actual,

com a presença de historia-dores, escritores e editores portugueses e espanhóis; a apresentação do Dictionnaire Européen des Ordres Militaires au Moyen Âge, pelos Professo-res Doutores Nicole Bériou e Philippe Josserand, coordena-dores da obra, que contou com a participação de especialistas portugueses; e o lançamen-to do livro Ordens Militares

e Religiosidade, que compila os textos apresentados no 9º Curso sobre Ordens Militares, com apresentação pelo Pro-fessor Doutor José Mattoso, a quem é dedicada a edição. Mesas-redondas, debates, visitas de estudo, animação musical e a assinatura de um conjunto de acordos de cola-boração entre o Município de Palmela e vários municípios

e instituições com ligações às Ordens Militares em Portugal são mais alguns dos pontos de interesse do programa, que conta com oradores de Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Reino Uni-do, Hungria, Brasil e Estados Unidos da América.

Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago

VI Encontro sobre Ordens Militares em Palmela

Freires, Guerreiros, Cavaleiros

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Os círculos de uma gata

Os tempos que vivemos, tal-qualmente tantos ou-tros, deixam encruzilhadas e ocultam conexões misterio-sas que só estão ao alcance de paranóias ou, em alternativa, desvelam o sentir da essência das coisas e revelam o senti-do de unidade que se esconde por detrás da confusão geral aparentemente aleatória.

Assim, uma gata preta foi atropelada numa via de Setú-bal e cambaleava em círculos fatais, cuspindo dolorosamen-te sangue no alcatrão, en-quanto um grupo de adoles-centes esperava calmamente que novo automóvel passasse para o golpe de misericórdia mortal. Um país das Caraíbas, pobre como muito poucos, é abalado por um terramoto brutal, sendo de calcular que cerca de 10% da população de Port-au-Prince tenha fa-lecido. São Francisco de Assis, muitos séculos antes, viu-se finalmente entendido na sua mensagem de partilha quan-

do, farto de adulterações face ao que dizia, fez um dos seus mais célebres discursos, tendo como público uma multidão de pássaros. Em Portugal dá-se início às comemorações do centenário da república, pe-dindo aos portugueses que se lembrem da revolução, mas pouco, pois para convulsões já bastam as do Orçamentos de Estado. A pro-posta feita pelos promotores das celebrações é: «Lembrem-se da revolução que aqui nos pôs, mas não se recordem de uma nova, pois de outra forma não vos podemos infernizar mais a vida!» Nisto, já há cem anos um poeta estranho, enfezado, confessava que Portugal era um país inviável e que urgia cumpri-lo, disseminando-o até se perder como realidade administrativa e sobreviver

como utopia cultural e civi-lizacional, cumprindo o dever de sentença após os diagnós-ticos críticos de Eça, Ramalho, entre outros. Pessoa era seu nome.

As incongruências deste mundo duro, desapiedado, agressivo, não podiam ser

mais claras. Tal é bem visível nesta região, esta Margem Sul, onde cam-peiam os bair-ros sociais, o desemprego, a precariedade, o endividamen-t o i n s u s t e n -

tável das famílias e a fome. Anunciam-se, com o OE novos estrangulamentos, o agravamento dos fossos sociais e o empobrecimento geral destas populações da periferia. Antevê-se, conse-quentemente, o aumento da corrupção e da criminalida-de. Decorrente, mais violência

sobre aqueles que não podem dela fugir, discursos alarmis-tas de sofreguidão securitária, para fazer zumbir estrondosa-mente o chicote sobre todos, algozes e vítimas, apelando à conformidade do seu esta-do. Anuncia-se um terramoto social, não menos doloroso e real que um terramoto ge-ológico.

Poucos demonstram uma percepção tão aguda desta nossa realidade como um jo-vem artista plástico, de nome Francisco Noá. Indivíduo ta-lentoso, sombrio, adoptou uma estética neo-gótica, en-quanto espera pela invenção da cor no mundo ou que um dia o sol desponte no Poen-te. A sua obra é perturbadora, interpelante, artificializa e de-forma a natureza sob o pris-ma da periferia. As flores são tão cinzentas e secas quanto os edifícios indiferenciados dos bairros-dor-mitório. Nela se transporta dimen-são interiorizada e aterradora da paranóia colectiva, pelo que cada peça, visceralmente or-gânica, agride com violência, tal e qual como a realidade social suburbana de onde des-ponta. Noá abraça a violência que perpassa as diferentes di-mensões da pólis suburbana, mas não só, não lhe basta. Desconcertante, ultrapassa espaço e tempo, transmuta a guerra colectiva e interna numa linguagem universal, pois com a violência vem também uma esperança hu-manista pungente. Alquimista, demonstra que para além das actuais circunstâncias está o potencial de transformação individual e social numa su-peração feita de beleza sim-ples, ao alcance de cada um. Para lá das probabilidades, ou do negativismo que tolda os horizontes, no campo das relações imperceptíveis, há uma centelha de espírito em todos nós, individual e co-lectivamente, que nos revela mais do que somente simples aglomerado de carne e ossos; como nos segreda no título de uma das suas obras: O fluxo do nosso sangue move as es-trelas!

Estranha sensação em que,

para lá do medo e do ódio, se percepciona uma longa suces-são de eventos, em que tudo o que aconteceu e acontece obedece a um padrão per-feito, que a tudo e todos liga, do qual não podemos fugir, pois os artistas usam mentiras apenas para revelar verdade. Assim, o OE de hoje é igual aos de sempre, visa impor obediência e medo, com vista a assegurar a continuidade do bem-estar das elites, mas não apaga a memória de um povo, que sabe que nada deve ser celebrado quando ainda está por cumprir. A liberdade po-lítica é mais que um voto em urna. É corolário de todas as outras, adicionado às esqueci-das igualdade e fraternidade, colocadas no arquivo-mor-to pelas elites governantes.

Esta elite em nada difere da outra, que de-turpou o repto de igualdade e fraternidade de S. Francisco sé-culos antes, até porque as elites usam parcelas

de verdades imperfeitas para dizer as suas mentiras. A estu-pidez dos povos não devia ser dada como adquirida. O Haiti não recebe caridade, antes co-bra dívida bissecular do seu contributo universal – a ideia de que todos nascem livres e iguais, ideia de nação nascida de uma revolta de escravos, na qual ensinou a França em particular, e o mundo em ge-ral, a praticar a sua própria revolução. O poeta Pessoa anteviu que a generosidade lusa se difundiria no mundo, após as difíceis convulsões de a transformar numa civiliza-ção espiritual. A gata, qual pi-tonisa e heterónima, tal como nós sofreu, penou, mas res-suscitou, vivendo feliz agora numa família que adoptou e a ama, contente com as vidas que lhe sobram. Das vítimas da sua Paixão, aqueles que a queriam esfolada no chão, esquecimento, nada ficou na memória. Eis o que se revela nas pinceladas largas e se-guras de Francisco Noá. Esta arte não é do atelier, é sim das trincheiras da periferia.

José Luís Neto,[email protected]

“ As incongru-ências deste mundo duro, desapieda-do, agressivo, não podiam ser mais claras .

“ (...) tudo o que aconteceu e acon-tece obedece a um padrão perfeito, que a tudo e todos liga.

ENSAIO 15 NR

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RUA DEPUTADO HENRIQUE CARDOSO NR 34 , SETÚBAL . http://primafolia.blogspot.com . 96 388 31 43

ACADEMIA PROBLEMÁTICA E OBSCURAa questionar desde 1721

ORGANIZAÇÃO:

Dia 12 de FevereiroSexta - feira às 22:00h

Inauguração da exposição de pintura, intitulada Fragmentos do predicado, de Chona, que pretende focar a analogia de uma “oração” desfragmentada.

Expressões de caos sem prenúncio, de sofrimento sem contestação, marcam o quotidiano, na consternação que se agita em espasmos de complacência.

Um olhar dialéctico, oblíquo, que reconstrói as coisas sob diferentes ângulos.

Chona

Dia 19 de FevereiroSexta - feira às 21h30

Palestra sobre Experiência de um Padre Sindicalista,

por Constantino Alves.

Entrada Livre!

Dia 20 de FevereiroSábado às 22:00h

Concerto do Grupo João da Ilha.

O Grupo João da Ilha apresenta um estilo próprio, integrando várias influências que começam na música Tradicional Portuguesa, passam pelo Jazz, atravessam a Pop, absorvem as Músicas do Mundo, e culminam numa sonoridade acústica, calma e sobretudo viajante!

João da Ilha

Entrada 1€

Dia 26 de FevereiroSexta - feira às 20h

Jantar Cultural sobre A importância da tomada de decisão,

com palestra de Fernanda Rodrigues, Mestra em Gestão de Informação.

Jantar – 10 Folias (8 Divinus)

Dia 5 de Março

Sexta-Feira às 21:30h

Palestra sobre A Mulher Autarca,

por Graça Andrade.Entrada Livre!

Present Sky, pintura de Chona