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NOVOS OLHARES HISTORIOGRÁFICOS:
NOVAS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
Melina Lima Pinotti1
O artigo apresenta características de renomados teóricos da História e da
Filosofia, que se preocuparam em compreender o diálogo da História com a Filosofia, e
problematizaram a afirmação da História no campo da ciência. As reflexões
apresentadas estão separadas em três partes, e primeiramente como possibilidade de um
novo pensar historiográfico buscou-se enfatizar o conceito de memória, para
compreender a história e cultura de grupos marginalizados. Num segundo momento, a
discussão refere-se às problemáticas acerca da crise da História enquanto ciência e sua
relação com o método. Por último, e em nível de conclusão, reflexões que perpassam
inquietações ao logo do texto, acerca da dialética2 entre o campo teórico representado
pelo ofício do historiador na atividade de pesquisar e na prática escolar, representada
pelo ofício do professor de História na atividade de lecionar.
Entende-se como História, uma forma de estruturar o tempo, ao estudar o que
nele perpetua ou não. Assim, as histórias, mantêm relação ativa com o passado. A partir
do convívio social, cada grupo tem a necessidade de conhecer os elementos do passado
que estruturaram seus espaços de vivências e a forma que, ao longo do tempo, esses
espaços foram moldados a cada necessidade. Considera-se que os espaços são moldados
pela memória, pela identidade e pelo esquecimento. É nesse campo de investigação com
o passado que grupos sociais passam a compreender os aspectos que moldam o
presente.
1.1 – A memória como campo de conhecimento da História
1 Mestranda no Programa de Mestrado em História/PPGH na Universidade Federal da Grande
Dourados/UFGD na Faculdade de Ciências Humanas/FCH. Bolsista da Capes e orientanda do Prof. Dr.
Fernando Perli. 2 O conceito de dialética é empregado no artigo com o intuito de explicar um diálogo entre a pesquisa e o
ensino, ao conciliar a prática da pesquisa com a prática da licenciatura. Neste caso, a tese é a pesquisa e a
antítese o ensino, sendo a síntese o ensino de História como apropriação de um conhecimento crítico que
integre os grupos que estão à margem da História.
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Por diversos motivos, grupos sociais não deixaram como legado documentos
escritos que registrem suas histórias e, portanto, o fio condutor de suas memórias pode
ser frágil ao tempo e cair no esquecimento. Diante dessa problemática, o filósofo Paul
Ricouer3 (2007), contribui para o ofício do historiador, ao ressaltar a possibilidade de
produção de fontes por meio do testemunho. Em seu livro “A memória, a história, o
esquecimento”, Ricouer contribui para o campo da História ao refletir acerca da fase
documental para o trabalho do historiador. Explica que a memória arquivada é a parte
isolada do trabalho historiográfico e aponta dois questionamentos importantes na
construção do conhecimento histórico, como, o que vem a ser um tempo histórico e o
que vem a ser um espaço geográfico, considerando uma articulação entre ambos.
A memória é o compromisso da testemunha e Ricouer ressalta a história oral,
momento em que o testemunho, a memória, ganha forma de escrita, via documento, no
trabalho de transcrição da fonte. A memória passa da matriz da história para ser
observada como objeto de estudo. Neste trabalho, o historiador deve ficar atento, pois
um testemunho pode ser alvo de desconfiança, embora seja por vezes, o que restou ao
historiador. Nesse caso, questionar as desconfianças é uma alternativa para trabalhar o
testemunho.
A memória está ligada com a lembrança, e por ser compartilhada com pessoas
próximas, torna-se coletiva. Como explica Ricouer:
Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e as
suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por
ocasião dessas experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar da
memória, anterior às expressões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior
dessa expressão. (RICOUER, 2007, p. 157).
Nesse sentido, há uma relação com o significado da palavra “local” e o
deslocamento com o corpo, e problemáticas entre o tempo narrado e o tempo vivido.
3 Paul Ricouer foi um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período do que seguiu à Segunda
Guerra Mundial. Licenciado em Filosofia em 1936, criou a Revista Être, e mais tarde em 1939 foi preso
pelos nazistas. Ricouer participou de várias universidades contribuindo com debates sobre a linguística, a
psicanálise, o estruturalismo e a hermenêutica.
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Dito de outro modo, a memória está relacionada com o espaço de vivência e isso
perpassa da construção até a natureza.
Ricouer promove diálogos entre o lugar e a escrita dos Annales, entre
geopolítica e a imobilidade, a geografia e a história, o corpo e o lugar. Na definição de
espaço, cita Braudel para explicar que a civilização é o espaço trabalhado pelo homem
inserido na história. Os seres humanos habitam os espaços geográficos, ao mesmo
tempo em que moldam os espaços em favor das suas necessidades. Nesse caso, Ricouer
explica que:
À dialética do espaço vivido, do espaço geométrico e do espaço habitado,
corresponde uma dialética semelhante do tempo vivido, do tempo cósmico e
do tempo histórico. Ao momento crítico da localização na ordem do espaço
corresponde o da datação na ordem do tempo. (RICOUER, 2007, 162).
A memória está ligada ao tempo crônico. Assim, o indivíduo marca um
acontecimento ligado a uma data distanciando-se à medida que o tempo passa. A data,
tanto serve pra relembrar, como para esquecer. É um ponto de partida para a memória,
ao mesmo tempo em que se percebe um afastamento, pelo tempo que passou, e então,
inicia-se o esquecimento.
A sociedade em geral ou grupos específicos, ao longo das gerações também
marcam acontecimentos importantes. Nesse caso, cabe exemplificar o movimento
negro, que em seu histórico de reinvindicações alcançou a legitimidade para marcar
acontecimentos históricos e ensinar sua relevância a partir da comunidade escolar. A lei
10.639 sancionada no ano de 2003 torna obrigatório o ensino da história e da cultura
africana e afro-brasileira em todo âmbito curricular. Pela lei, foi elencado oficialmente
no calendário escolar o “Dia da Consciência Negra”, comemorado no dia 20 de
novembro.
Contudo, ações afirmativas que legitimam a importância da população negra na
formação da sociedade brasileira, não se resumem em datas. É preciso questionar, o que
está sendo lembrado e o que está sendo esquecido da história e da cultura africana e
afro-brasileira. Qual memória está sendo enfatizada? Há quanto tempo iniciou a
diáspora dos africanos escravizados em terras brasileiras? Quais foram os principais
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acontecimentos? Quais foram às rupturas e as continuidades? Qual a relação da
população negra e a estrutura social, política, econômica e cultural do Brasil?
Nesse sentido, a história tem um importante papel, fornecer o passado que é
próprio ao sujeito. Para tanto, a História enquanto ciência enfrentou uma crise para se
afirmar no campo da pesquisa e efetivar seu objetivo. Foi a partir da necessidade de
historicizar novos sujeitos e ampliar o olhar do historiador que a historiografia passou a
repensar o que seria considerado fonte.
1.2 – Reflexões acerca da produção do conhecimento histórico
A Escola dos Annales é considerada a corrente historiográfica que proporcionou
o início da escrita da História, para além dos limites factuais da leitura de documentos
oficiais, trabalhados por historiadores fundamentados em pressupostos positivistas.
Lucien Fevbre4 (1989) em seu livro “Combates pela História” enfatiza a transformação
da História promovida pelos Annales, quando passa a ser considerada História Social.
Revela a evolução das ideias e da mudança incessante do olhar histórico. Discute acerca
da conquista da História ao conseguir espaços dentro das Universidades da França.
Afirma que nesse momento, a História não estava limitada em si, devido aos diálogos
com a Filosofia, principalmente com Auguste Comte.
A História é composta por materiais que formam textos eruditos. Fevbre critica a
exigência feita aos historiadores, na importância dada às datas e nomes históricos.
Defende que o fato deve ser analisado, porém, o fato, deve estar relacionado com o
próprio contexto. Nesse caso, a problemática é definir o que é um fato. Assim, Fevbre
explica que:
O essencial do seu trabalho consiste em criar, por assim dizer, os objetos de
sua observação, com o auxílio de técnicas muitas vezes bastante complicadas.
E, uma vez adquiridos esses objetos, “ler” os seus cortes e as suas
preparações. Tarefa singularmente árdua; porque descrever o que se vê, ainda
vá; o difícil é ver o que é preciso descrever. (FEVBRE, 1989, p.19).
4 Lucien Fevbre foi um importante historiador para as instituições acadêmicas da França, principalmente
em Paris. Em 1930, juntamente com Marc Block, iniciou uma crítica ao positivismo com a fundação da
Escola dos Annales, que influenciou demais historiadores de gerações posteriores.
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Fevbre defende que a História não deve estar limitada a um método, e que a
História que escreve sobre o poder, não é uma ciência, posto que História não é apenas
isso, e que o método é como uma sombra que pode esconder o verdadeiro corpo da
História. A crise da História é iniciada pela dúvida. “E deu-se o despertar, brusco e
desagradável. Em plena crise, no meio das dúvidas”. (FEVBRE, 1989, p.19). A História
que parecia poderosa, ideal em sua completude, deixa rastros de sua imperfeição,
abrindo oportunidades para novos questionamentos, que para serem respondidos
necessitavam de novos métodos.
Nesse caso, foi preciso ampliar a noção de documentos e possibilitar diálogos
com outras disciplinas. A História como ciência dos fatos, é história. Os sujeitos não se
lembram do passado em memória, é preciso reconstruir e registrar. É a partir do
presente que se interpreta o passado. “A voz do passado, captado ao vivo”. (FEVBRE,
1989, p. 26).
Diante das inquietudes acerca das temporalidades o historiador Jacques Le Goff5
(1992), trabalhou verbetes que formaram ensaios em se livro “História e Memória”, por
estarem interligados sugerem relações entre historiadores e filósofos. Em suas reflexões,
buscou centralizar a História na problemática das temporalidades. “A história é só do
passado ou é contemporânea?” (LE GOFF, 1992, p. 23).
Pode ser citado como um incômodo para Le Goff (1992), entender o passado, o
presente e o futuro. Preocupou-se em questionar como a História organiza as diferentes
temporalidades e a possibilidade de manipulação daquele que realiza as pesquisas.
Acredita que a História tem um compromisso com a verdade, sendo a problemática, a
definição dessa verdade, posto que a verdade é um processo. Nesse sentido, Le Goff
(1992) busca compreender o lugar que o passado ocupa numa sociedade, sendo que
conservar a memória, é conservar o passado, e que isso pode contribuir no futuro.
5 Jacques Le Goff foi um renomado historiador francês, medievalista, da terceira geração dos Annales, na
década de 90. Devido a sua produção histórica, recebeu vários prêmios e veio a falecer há pouco tempo,
no ano de 2014.
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A mentalidade histórica de uma época define a compreensão da história, pois em
cada período histórico, o passado é interpretado de um modo. Para Le Goff (1992) a
História e a Filosofia são distintas, mas que podem dialogar, sem que uma reduza a
outra, ou seja, sem buscar um embate. Define que a História é uma ciência porque para
escrevê-la é preciso métodos. “A melhor prova de que a história é e deve ser uma
ciência é o fato de precisar de técnicas, de métodos e de ser ensinada”. (LE GOFF,
1992, p. 105).
Contudo, Febvre (1989) defende que a História não deve ser limitada às leis e
métodos, mas que o historiador deve viver a história, na precisão dos pequenos detalhes,
sendo História, um estudo conduzido cientificamente. A História deve-se interessar pela
história dos mais variados sujeitos, entendidos na sociedade como um todo. Para ele, o
historiador não precisa estar inserido num grande acervo para realizar uma pesquisa,
porque ele pode pôr as problemáticas e formular hipóteses sobre qualquer objeto. A
História deve ser compreendida pelo seu conteúdo, não pelo seu método, pois este, não
passa de um método crítico.
Nesse sentido, há uma contribuição do historiador, por poder influenciar os
demais, à medida que problematiza a história e busca origens das problemáticas
elencadas. Nesse caso, o método não importa, mas sim compreender as problemáticas,
levantar hipóteses e compreender a pesquisa. “É que pôr um problema é precisamente o
começo e o fim de toda a história. Se não há problemas, não há história. Apenas
narrações, compilações”. (FEVBRE, 1989, p. 31). Se a pergunta conduz a pesquisa,
nesse sentido, a História aproxima-se da Filosofia. Assim, o interesse não é mais
questionar se a História é ou não uma ciência, mas conceituar o que é ciência em cada
contexto.
Relacionado à crise da História em se afirmar como ciência e a problematização
do método na construção da pesquisa, Jörn Rüsen (2007) desenvolveu uma série de
argumentos e críticas aos intelectuais que insistem em contestar a História enquanto
ciência. Na crítica, utilizou de conceitos para definir a cientificidade da História,
considerando o objeto como base para seus argumentos.
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Rüsen (2007), fundamentado em Droysem, refletiu acerca dos princípios que
fundamentam o pensamento histórico, dando ênfase aos processos históricos de
formação da moderna ciência da História e a apropriação do conhecimento histórico no
contexto da vida social, que o autor define como “função didática da História”. Pela
“matriz disciplinar” apresenta o sistema de teoria da História e busca perceber as
problemáticas da prática dos historiadores, como o vínculo entre conhecimento histórico
e a vida humana, e a relação entre pesquisa e a escrita.
Segundo Rüsen (2007), para realizar uma pesquisa é preciso duas bases como
princípios: primeiro, ter uma perspectiva em relação ao passado, e segundo, ter um
método como procedimento. Assim, a pesquisa ao apresentar um método, ela passa a
ser ciência, a problemática é fazer valer os métodos que serão utilizados. Porém, há de
se preocupar na formação dos fatores que determinam o pensamento histórico.
Em seu livro, “Reconstrução do Passado”, Rüsen (2007) questiona quando a
História é tratada como ciência e como isso acontece. Para ele, a História toma forma de
paradigma a partir da reflexão teórica e do procedimento metodológico. Nesse caso, a
“matriz disciplinar” forma-se com os métodos em função do pensamento histórico, e
esse pensamento é racional, ou seja, para a pesquisa ser ciência é preciso, racionalizar a
História. Assim, assegura como regra básica, que para a realização de uma pesquisa é
preciso ter um método, pois este é a luz da pesquisa. Define que o historiador é um
especialista, a partir do momento que se orienta por um método. Nesse sentido, o
método se aproxima da prática do historiador e a teoria da reflexão. É o método que
orienta as formulações da “matriz histórica”, e por meio dele, compreende-se a
orientação do presente, à medida que o historiador aproxima-se do passado.
Assim, considera que o método é uma técnica aplicada na pesquisa e orientada
por suas regras. Porém, enfatiza que a essas regras é cabível certa liberdade e autonomia
ao historiador, pois os estudos das fontes (gnosiológicas) e as teorias do conhecimento
(epistemológicas) são amplas e não focalizam em regras. Portanto, Rüsen (2007),
compreende as regras sob a crítica do método histórico, à medida que identifica o que é
histórico. Afirma que o passado se manifesta por meio das fontes e a pesquisa história é
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um processo cognitivo, na qual ao estudar as fontes, se obtêm um conhecimento
histórico, controlável e limitado.
Porém, o autor faz uma crítica ao afirmar que realizar uma pesquisa não é
somente colher conhecimentos das fontes e que por vezes o historiador pergunta aquilo
que possivelmente já tem a resposta, usando a fonte não para descobrir um
conhecimento, mas para provar o que, de certa forma, já se conhece.
Estabelecida a crítica, Rüsen problematiza como o historiador pode conduzir sua
pesquisa, de maneira a não cair em tal armadilha. Afirma que o melhor caminho é
teorizar as fontes e interpretá-las, relacionando com outros resultados e as integrando no
saber histórico. Dito de outra maneira, é fazer uma leitura teórica para aprender a lhe
dar com as fontes, apropriar-se da sua pesquisa ao modo que possa concretizá-la na
escrita. Segundo Rüsen:
O processo da pesquisa vai além do procedimento de apreender as
informações das fontes sob a égide das teorias. Ele continua até a
conformação historiográfica dos resultados das pesquisas, porque é nela que,
em última análise, se decide que interpretação lhe cabe em relação a outros
resultados e como pode ser integrada no saber histórico disponível até então.
(RÜSEN, 2007, p. 105).
Ao trabalhar com as fontes deve-se atentar para o processo cognitivo, e então,
obter informações. Isso não é o mesmo que exagerar nas fontes, pois o conhecimento
gerado pela pesquisa tem um objetivo e um limite, por mais que o historiador tenha
liberdade. A variedade dos procedimentos metódicos enriquece a pesquisa, caso o
historiador dê conta de apresentar uma ampliação histórica. Nesse sentido, Rüsen faz a
crítica ao método único da pesquisa. Porém, alerta que tal ampliação deve ter uma
orientação e regras.
Feita as definições, Rüsen estabelece uma nova problemática: “De que modo às
regulações metódicas da pesquisa histórica correspondem à unidade do conhecimento
histórico, embutido no princípio da ampliação das perspectivas?” (RÜSEN, 2007, p.
108). A esta pergunta, formula duas respostas distintas e relacionadas. Primeiramente,
de maneira formal, deve-se investigar como a pesquisa atinge as regras e num segundo
momento, de maneira material, perceber o que a teoria define como história. Assim, de
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modo forma, ao relacionar a ampliação das perspectivas e métodos, e de forma material,
ao considerar o domínio das interpretações.
Nesse sentido, abre-se um novo questionamento: “Como fica então, essa unidade
do método formal e material do método histórico?” (RÜSEN, 2007, p. 110). A pesquisa
é regulada ao obter e apreender informações das fontes, mesmo abrangendo uma
multiplicidade de técnicas que terminam num conhecimento orientado. Para tanto, o
processo do conhecimento histórico é feito por fases e a pesquisa é uma delas. Nesse
processo, as histórias são as respostas das perguntas e as análises dos procedimentos
levam às perguntas. Ao iniciar uma pesquisa, o historiador se depara com as seguintes
fases: primeiramente, formular perguntas históricas, para depois dirigir essas perguntas
às fontes e delas obter informações, por último, organizar as informações obtidas das
fontes como respostas. É nesse processo que acontece a formação da resposta histórica,
ou seja, a partir de uma pergunta histórica, sendo este o trabalho do historiador.
Para Rüsen (2007) o determinante para a pesquisa é o método utilizado no
trabalho com as fontes. Para tanto, é preciso uma fundamentação teórica para trabalhar
com as fontes, e por meio da teoria, observar o fato, para então, obter e esclarecer novos
fatos. “São as perspectivas teóricas sobre o passado humano que decidem o tipo de
informação a ser extraído das fontes, e em que medida isso vai acontecer.” (RÜSEN,
2007, p. 107).
Como procedimento metódico importante para a pesquisa Rüsen apresenta duas
operações relevantes, as operações substanciais (a heurística, a crítica e a interpretação)
e as operações processuais (a hermenêutica, a analítica e a dialética). Desse processo
Rüsen explica que:
Nas operações substanciais da pesquisa histórica trata-se do que foi levantado
das fontes e interpretado como “história”. Suas regras determinam o ponto
sobre o qual devem incidir as perguntas, que informações devem ser
extraídas das fontes e que contextos constituem o caráter histórico dos fatos
do passado. Se nas operações processuais da pesquisa se tratou de regras que
garantem sua forma dinâmica, agora se trata do conteúdo dessa forma, da
história como conteúdo experiencial de históricas (proposições históricas),
que deve ser apreendido no processo dinâmico do progresso cognitivo.
(RÜSEN, 2007, p. 134).
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Nesse sentido, Rüsen (2007) pretendeu ressaltar o ponto da identidade na
pesquisa e ajudar na compreensão do processo de desenvolvimento histórico,
esclarecendo controvérsias sobre o método. Após as análises em relação às operações
processuais e substanciais, Rüsen (2007) afirma que a plenitude da pesquisa encontra-se
na historiografia e que a pesquisa histórica não tem um fim em si mesmo e nem é
apenas um trabalho com as fontes, pois busca uma comunicação entre passado e
presente. Transforma-se de pesquisa para historiografia, porém, pode ser separada da
pesquisa, que segue vinculada ao método.
A pesquisa compreende o passado e o diálogo com o presente, busca dessa
forma perceber o futuro. Porém, a pesquisa só é válida se estiver relacionada com a
historiografia. Por muito tempo, não se percebeu como uma problemática a pesquisa
estar relacionada com a historiografia, já que esta era o resultado da própria pesquisa.
Atualmente, é percebido como problemática, pois a metodologia pode passar
despercebida e o historiador deve trabalhar com uma teoria que se importa com a
racionalidade.
1.3 – A historiografia na atividade de ensinar História
Dada a importância do método para a História, cabe ressaltar que o professor ao
ensinar História, necessita conhecer a historiografia. Nesse sentido, um diálogo entre a
atividade de lecionar e compreender a pesquisa é relevante para apropriação do
conhecimento. Contudo, esse diálogo nem sempre é proposto, a começar pelos cursos
de História que optam por enfatizar a licenciatura ou a pesquisa nos currículos.
Pesquisadoras do ensino de História como Kátia Abud (2009) e Circe
Bittencourt (2009) defendem a ideia que trabalhar de forma dialética é imprescindível.
A licenciatura não pode estar separada da pesquisa e vice e versa. Visando reconhecer e
interpretar as “verdades absolutas” priorizadas por correntes historiográficas, que por
vezes, podem dominar a escrita dos materiais didáticos, faz-se necessário que o
professor de História tenha conhecimento acerca das diferentes correntes
historiográficas, para que assim o ensino de História possa ultrapassar o tradicionalismo
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da escrita e ampliar o conhecimento. Envolvendo ao ensino, a História de grupos que
durante um período, foram negados pela própria historiografia.
A humanidade pode ter problemas políticos, sociais e econômicos, mas o
importante é o problema humano. Ao citar o drama da civilização, Febvre (1989)
explica que uma civilização chega ao fim, mas o problema é qual civilização se formará
em seu lugar. Portanto, para a realização de uma pesquisa é preciso que o historiador
consiga situar-se no tempo e no espaço. Sendo o planeta a nossa casa, e com o passar
dos anos vivemos misturados aos outros, é preciso algumas disciplinas para possibilitar
um bom convívio, como: aprender a conhecer a organização do planeta, situar-se em
relação aos nossos antepassados e aos antepassados dos demais, buscar compreender a
cultura do outro. Assim, o tempo é a história e o espaço a geografia, e nesse movimento
o homem deve olhar para si e buscar compreender o outro, o contexto que o formou.
De certa forma, a História deixou de evoluir num período de crise, enquanto
outras disciplinas se transformavam, porém, Febvre (1989) eleva a crise da história a
uma crise do espírito humano. Nesse sentindo, busca classificar, definir a História
dentro do campo da ciência. Questiona as ciências físicas e naturais e coloca que ambas
precisam ser inovadas, ou seja, se a História está em crise, às outras ciências também
estão. O historiador, em seu ofício, não deve estar totalmente voltado para o passado,
mas ao dar as costas ao passado buscar compreender junto a ele as continuidades e
descontinuidades. “Entre a ação e o pensamento não há separação”. (FEVBRE, 1989, p.
40).
Não é apenas o fato que deve ser analisado, mas o que levou o fato acontecer. A
escrita vai definir o que é história ou não, sem resgate ou reconstrução, e sim
construção. Febvre (1989) propõe uma ruptura com uma ciência fechada, seu principal
elemento é pôr os problemas e formular hipóteses. Trabalhar com a subjetividade da
pesquisa, problematizar o que promoveu o tema da pesquisa. Nessa perspectiva, o
debate sobre ciência passa por uma relação de poder.
Relacionado à problemática de compreender o contexto do fato, o historiador
José Carlos Reis (2010), atenta para a importância de se pensar sobre a interpretação do
leitor. Assim, questiona a ideia do passado a partir de narrativas históricas. Enfatiza que
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o problema é como o historiador dá esse significado, se para ele, tudo que é da natureza
foi nominado, ou seja, foi atribuído significado. Ao exercício de escrita e leitura
também foram atribuídos significados e ao ler um texto é importante compreender as
questões que o texto irá provocar, ou seja, a sensação que o texto vai causar. Na
pesquisa, o historiador não deve ficar preso às discussões de fontes e métodos, mas
também discutir a narração histórica.
Segundo Ricouer (2007), a memória pode ser um elemento que vai historicizar
certos períodos, conforme a história de cada sociedade, e preservar a memória de
fenômenos violentos pode servir para que os mesmos não se repitam. Nesse sentido,
faz-se relevante trabalhar a história da escravidão em seu período de acontecimento, e
enfatizar que esta memória do negro está relacionada ao passado, e que atualmente a
realidade desses povos deve ser conduzida de outra forma, à maneira que os mesmos se
integrem no meio social.
A História e as demais ciências sociais têm um objeto em comum, que é o
homem social, e a partir daí, é que se tem a interdisciplinaridade. A memória do período
da escravidão, não deve ser negada, porém, a população negra deve ser compreendida
para além desse acontecimento, pois estão inseridos em outros contextos da história do
Brasil.
Na compreensão do passado de diferentes grupos, sobretudo étnico-culturais, a
ciência histórica, somada principalmente à Sociologia, à Etnologia e à Antropologia,
renovou a escrita da História. Assim, formaram-se correntes historiográficas que
oferecem novas perspectivas para os rumos das pesquisas históricas, novas fontes ao
trabalho do historiador, possibilitando estudos acerca dos grupos à margem da história.
Podem ser citadas a Nova História Cultural e a Etno-história, correntes historiográficas
que aos poucos ocupam lugar dentro das academias, em pesquisas com dimensões
interdisciplinares.
As questões acerca da pluralidade cultural são relevantes no meio acadêmico, e,
por vezes, compreendidas como fatos irrefutáveis, portanto se faz necessário que as
escolas brasileiras também se adequem a essa realidade étnico-cultural que forma o
presente e o passado dos brasileiros. Nas últimas décadas, os brasileiros passaram a
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olhar para as singularidades de suas vivências, buscando um ponto de equilíbrio para
entender a necessidade das diferenças.
A diversidade cultural é uma característica da sociedade brasileira, pois ela se
faz presente em crenças, gestos e costumes do cotidiano. Para ir às escolas, os alunos
não deixam suas diferenças em casa, eles adentram o ambiente escolar carregando
consigo seus materiais escolares e toda a bagagem cultural que forma sua identidade.
Portanto, a diversidade cultural se faz presente no cotidiano escolar e, também,
na sociedade. Para um ensino que valorize as diversidades históricas e culturais, o
professor precisa conhecer e dominar a variedade da historiografia no que se refere aos
povos marginalizados, pois uma historiografia centrada na história tradicional, não dará
conta de sistematizar a amplitude da história e da cultura africana e afro-brasileira, que
atualmente tem seu ensino defendido por lei. Para explicar história, é preciso
primeiramente apropriar-se da mesma, é preciso compreendê-la em sua plenitude
teórico-metodológica para então lecionar.
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