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Anais do XVII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178 Anais do II Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420 25 e 26 de setembro de 2012 “NOVOS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE E SISTEMAS DE ESPA- ÇOS LIVRES PÚBLICOS – ÁREA DE ABRANGÊNCIA MUNÍCIPIO DE CAMPINAS” Giovana Bossa Bragiola Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Centro de Ciências Exatas, Ambientais e Tecnologias [email protected] Prof. Dr. Denio Munia Benfatti Requalificação Urbana Centro de Ciências Exatas, Ambientais e Tecnologias [email protected] Resumo: O trabalho proposto tem como objeto o sis- tema de espaços livres públicos da cidade de Campi- nas. Pretende estudar o conjunto dos espaços livres públicos, sua distribuição, qualificação, utilização co- mo lugar da vida pública e as políticas públicas muni- cipais enquanto ações de (des)valorização dos espa- ços livres públicos. Como correlato, pretende ainda problematisar e analisar os espaços de uso público (ou coletivo), onde, segundo nossa hipótese, estariam ocorrendo as novas sociabilidades engendradas pela metrópole contemporânea O trabalho consiste inici- almente de uma revisão bibliográfica envolvendo os temas e conceitos fundamentais da pesquisa propos- ta: cidade /metrópole contemporânea, espaços livres públicos, transformações urbanas e no modo de vida metropolitano. Em seguida o trabalho leva ao estudo seletivo e comparativo de tipologias distintas de es- paços de uso público: os espaços tradicionais – a rua, a praça, o parque – e os espaços engendrados, prin- cipalmente os espaços ligados à circulação – esta- ções, terminais, etc. Palavras-chave: Sistema de espaços livres, espaço público, esfera da vida pública. Área do Conhecimento: Ciências Sociais Aplicadas – Arquitetura e Urbanismo. 1. INTRODUÇÃO: Este resumo expandido resulta do plano de trabalho de Iniciação Científica desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa Requalificação Urbana, CEATEC PUC-Campinas, com apoio de bolsa PIBIC-CNPq, tendo como objetivo geral compreender as relações que se estabelecem na cidade contemporânea entre o sistema de espaços livres, a esfera de vida pública contemporânea, os espaços públicos e/ou coletivos, derivados do modo de vida contemporâneo. Como objetivo específico o trabalho buscou estabelecer a conceituação e definição de espaços livres, espaço público, esfera da vida pública e o papel que os novos espaços derivados do modo de vida contemporâneo desempenham na estruturação do sistema de espa- ços livres da cidade. O município de Campinas con- forma o território geral que será inicialmente analisa- do visando à seleção de um conjunto de espaços e situações urbanas, de uso público (ou coletivo) com manifestações da esfera da vida pública (novas soci- abilidades) engendradas pelo modo de vida e pela metrópole contemporânea. 2. TRANSFORMAÇÕES DA METRÓPOLE CON- TEMPORÂNEA O crescimento das grandes aglomerações, em sua forma contemporânea, coloca problemas administra- tivos, políticos, sociais e culturais cada vez mais im- portantes. Nos últimos trinta anos o tempo urbano afasta-se de seus referenciais tradicionais, do mesmo modo que as sociedades ocidentais se distanciam do modelo industrial e entram na era dos serviços. Os horários variáveis, a individualização das práticas de consumo, o aumento do tempo de trabalho (en- quanto tendência) fora dos locais de trabalho, a alter- nância de períodos de atividade e não atividade (tra- balho temporário), o trabalho de fim de semana e o trabalho noturno, têm produzido significativas modifi- cações na vida urbana. Com isso os horizontes da vida cotidiana foram consideravelmente ampliados. Os cidadãos atualmente tendem a dar maior priorida- de a uma abertura do campo de suas possibilidades espaciais em detrimento de seu tempo livre. Neste novo ambiente urbano em formação, os territó- rios políticos e administrativos oriundos de uma con- cepção de tempo mais estável, de cidades com fun- cionamento mais autônomo, encontram-se desloca- dos em relação aos novos territórios que resultam dos movimentos da sociedade - expansão e disper- são urbana, localização do emprego descolada do local de residência, novas formas de mobilidade, tec- nologias de telecomunicação, funcionamento em re- des, etc.. Atualmente, no lugar de cidades bem orde-

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Anais do XVII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178

Anais do II Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420

25 e 26 de setembro de 2012

“NOVOS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE E SISTEMAS DE ESPA-ÇOS LIVRES PÚBLICOS – ÁREA DE ABRANGÊNCIA MUNÍCIPIO

DE CAMPINAS”

Giovana Bossa Bragiola Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Centro de Ciências Exatas, Ambientais e Tecnologias [email protected]

Prof. Dr. Denio Munia Benfatti Requalificação Urbana

Centro de Ciências Exatas, Ambientais e Tecnologias [email protected]

Resumo : O trabalho proposto tem como objeto o sis-tema de espaços livres públicos da cidade de Campi-nas. Pretende estudar o conjunto dos espaços livres públicos, sua distribuição, qualificação, utilização co-mo lugar da vida pública e as políticas públicas muni-cipais enquanto ações de (des)valorização dos espa-ços livres públicos. Como correlato, pretende ainda problematisar e analisar os espaços de uso público (ou coletivo), onde, segundo nossa hipótese, estariam ocorrendo as novas sociabilidades engendradas pela metrópole contemporânea O trabalho consiste inici-almente de uma revisão bibliográfica envolvendo os temas e conceitos fundamentais da pesquisa propos-ta: cidade /metrópole contemporânea, espaços livres públicos, transformações urbanas e no modo de vida metropolitano. Em seguida o trabalho leva ao estudo seletivo e comparativo de tipologias distintas de es-paços de uso público: os espaços tradicionais – a rua, a praça, o parque – e os espaços engendrados, prin-cipalmente os espaços ligados à circulação – esta-ções, terminais, etc.

Palavras-chave : Sistema de espaços livres, espaço público, esfera da vida pública.

Área do Conhecimento: Ciências Sociais Aplicadas – Arquitetura e Urbanismo.

1. INTRODUÇÃO: Este resumo expandido resulta do plano de trabalho de Iniciação Científica desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa Requalificação Urbana, CEATEC PUC-Campinas, com apoio de bolsa PIBIC-CNPq, tendo como objetivo geral compreender as relações que se estabelecem na cidade contemporânea entre o sistema de espaços livres, a esfera de vida pública contemporânea, os espaços públicos e/ou coletivos, derivados do modo de vida contemporâneo. Como objetivo específico o trabalho buscou estabelecer a conceituação e definição de espaços livres, espaço público, esfera da vida pública e o papel que os novos espaços derivados do modo de vida contemporâneo desempenham na estruturação do sistema de espa-

ços livres da cidade. O município de Campinas con-forma o território geral que será inicialmente analisa-do visando à seleção de um conjunto de espaços e situações urbanas, de uso público (ou coletivo) com manifestações da esfera da vida pública (novas soci-abilidades) engendradas pelo modo de vida e pela metrópole contemporânea.

2. TRANSFORMAÇÕES DA METRÓPOLE CON-TEMPORÂNEA O crescimento das grandes aglomerações, em sua forma contemporânea, coloca problemas administra-tivos, políticos, sociais e culturais cada vez mais im-portantes.

Nos últimos trinta anos o tempo urbano afasta-se de seus referenciais tradicionais, do mesmo modo que as sociedades ocidentais se distanciam do modelo industrial e entram na era dos serviços.

Os horários variáveis, a individualização das práticas de consumo, o aumento do tempo de trabalho (en-quanto tendência) fora dos locais de trabalho, a alter-nância de períodos de atividade e não atividade (tra-balho temporário), o trabalho de fim de semana e o trabalho noturno, têm produzido significativas modifi-cações na vida urbana. Com isso os horizontes da vida cotidiana foram consideravelmente ampliados. Os cidadãos atualmente tendem a dar maior priorida-de a uma abertura do campo de suas possibilidades espaciais em detrimento de seu tempo livre.

Neste novo ambiente urbano em formação, os territó-rios políticos e administrativos oriundos de uma con-cepção de tempo mais estável, de cidades com fun-cionamento mais autônomo, encontram-se desloca-dos em relação aos novos territórios que resultam dos movimentos da sociedade - expansão e disper-são urbana, localização do emprego descolada do local de residência, novas formas de mobilidade, tec-nologias de telecomunicação, funcionamento em re-des, etc.. Atualmente, no lugar de cidades bem orde-

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nadas dentro de limites facilmente reparáveis, lida-mos com nebulosas urbanas e limites incertos.

No caso da metrópole de Campinas, a rede de circu-lação rápida toma corpo nas rodovias Anhanguera e Dom Pedro e mais notadamente na rodovia dos Ban-deirantes que, por ser uma rodovia segregada, favo-rece a expansão metropolitana de forma descontinua e a prática das migrações alternadas. Essas migra-ções aumentaram muito rapidamente nos últimos 20 anos e dão a medida das possibilidades de coloniza-ção de um determinado ambiente metropolitano. Atu-almente a referência média deste intervalo para a região de Campinas varia entre 1h30 e 2h, o que sig-nifica que a colonização a partir desta metrópole pode chegar até São Carlos e, evidentemente, até São Paulo.

Por outro lado, o alongamento dos deslocamentos cotidianos faz transparecer não apenas o crescimento e a expansão da metrópole, mas indicam também a forma como ocorre esse crescimento. De uma parte esse crescimento se dá por expansão da mancha urbanizada, mantendo ainda alguma continuidade e adicionando novos sub-conjuntos urbanizados. De outra parte, o crescimento ocorre com descontinuida-de e mudança de escala da metrópole, regido por movimentos cotidianos e cíclicos, expandindo seu território para contornos mais amplos de habitação e emprego.

Em vista dessas considerações é possível afirmar que os espaços engendrados e derivados das dinâ-micas urbanas contemporâneas não são simples-mente novas denominações para as grandes movi-mentações urbanas – conurbações, território urbani-zado, urbanização dispersa, megalópole -, mas cons-tituem também e principalmente um modo de vida e de produção específicos, fundados não somente em função das redes de comunicação, mas também na individualização dos tempos, nas práticas familiares, nas práticas de consumo, de trabalho, que remetem em causa as homogeneidades espaço-temporal das organizações metropolitanas precedentes.

Essa nova dinâmica urbana, com suas manifestações sociais e individuais, coloca em cheque as tradicio-nais hierarquias urbanas: sistemas de circulação e transportes, de horários de trabalho, de consumo in-dividual. Interessa-nos também e particularmente como essa nova dinâmica afeta a esfera da vida pú-blica e a definição e constituição dos sistemas de es-paços livres.

3. NOVOS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE Se, como aventamos acima as relações de vizinhan-ça se retraem, é em se deslocando não somente em direção ao ‘habitat’, mas também em direção à cida-de. O desenvolvimento das sociabilidades e das prá-ticas megalopolitanas é o correlato daquele das práti-cas em domicilio: se os habitantes das megalópoles freqüentam cada vez menos nos seus bairros os ci-nemas, os comércios, os cafés, os bares, as igrejas, eles passam cada vez mais tempo em espaços liga-dos a atividade de circulação e deslocamento e utili-zam cada vez mais os espaços especificamente me-galopolitanos: os centros comerciais integrados, os parques, os grandes equipamentos de lazer, os “cen-tros” de negócios, as “zonas” de atividades, os pólos científicos e técnicos.

Como novas formas de sociabilidade, derivadas do ambiente metropolitano, foram analisados sete espa-ços relacionados a circulação, deslocamento, com-templação e lazer: Terminal Cury e Terminal do Mercado Municipal, situado na região central Campi-nas, Terminal Ouro Verde, de localização periférica, situado na macrozona 5, Terminal Rodoviário, de lo-calização central, as praças Bento Quirino e Carlos Gomes, também localizada na região central e o Par-que da Lagoa do Taquaral, situado em bairro de clas-se média e com caráter metropolitano.

Neste texto, em parte estruturado na forma de rela-to/descrição, exploramos apenas as relações apre-sentadas pelos espaços considerados de “nova soci-abilidade: Terminal Cury, Terminal do Mercado, Ter-minal Ouro Verde e Terminal Ramos de Azevedo.

As descrições da cidade e do território configuram, desde os anos noventa do século vinte, uma forma recorrente de fazer emergir o fragmento, o específico, mostrando que o espaço da dispersão não é homo-gêneo, mas constituído de agrupamento de elemen-tos fragmentários. Segundo Secchi, a descrição tor-na-se um exercício limite. “Esforçando-se em resistir à linearidade das explicações pré-construídas... a descrição procura construir, como elemento ordena-dor, uma vasta gama de experiências: forma dos e-lementos, quantidade desses elementos, modos nos quais eles se distribuem no espaço uns em relação a outros e dimensões relativas de cada um” [1].

Um traço importante na elaboração desses relatos é o reconhecimento das diferenças entre os grupos so-ciais, modos de vida, cultura, e a dificuldade em inte-ragir em contextos sociais que manifestam interesses diversificados, tornando complexas as relações entre as pessoas. Entretanto, é desta dificuldade, imposta ao pesquisador, que emerge, ao mesmo tempo, o

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reconhecimento e o contraditório: o reconhecimento de que somos iguais, que queremos interagir, mas ao mesmo tempo somos diferentes, razão pela qual nem sempre conseguimos nos entender da melhor forma no face a face que a cidade nos coloca todos os dias.

Nestes relatos temos como subentendido que são as grandes transformações contemporâneas que sobre-determinam os fatores mais estruturantes da vida atual e que, obviamente, são também estruturantes da cidade atual. O território influencia os modos de vida, ou seja, reconhece-se nestes relatos, a impor-tância dos espaços na estruturação das interações sociais. Mais do que espaço em sentido estrito, esta-mos aqui relacionando a cidade e mais particularmen-te o espaço público, o espaço de uso público, como o fato urbano que reflete as interações sociais. Ela, a cidade, condiciona a expressão dos modos de vida pelo que propicia (ou não) de conforto urbano ou, por outro lado, expressa o lugar de conflito e de concilia-ção.

3.1 Terminal Cury

Figura 1. Terminal Cury. Localização

“Todo relato é uma viagem, uma prática do espaço. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam” [2]. Compreender a cidade é vive-la. As leituras são, evi-dentemente, necessárias, mas não me pareceram suficientes: “a vida urbana deixa sempre mais remon-tar aquilo que o projeto urbanístico dela exclui” [3]. Muita coisa vai além do lido e do vivido de minha ex-periência - a vida no centro, os terminais de transpor-te público -, era preciso entrar na cidade, naqueles espaços, entender todos os caminhos que se traçam

entre eles, o convívio social destes espaços que, pú-blicos ou privados, conformam o cotidiano da vida urbana da cidade de Campinas [4]. Me refiro aqui, além dos espaços públicos, aos luga-res identificados por Solà-Morales como ‘espaços coletivos’: “um tecido que, como os espaços públicos, configuram os itinerários mestres da vida do cidadão” [5]. Espaços ao mesmo tempo gerados e geradores de novas sociabilidades dentro da cidade de Campi-nas, mais precisamente os terminais rodoviários e suas imediações, escolha esta feita em função das dimensões e da capacidade de conformação social que esses espaços possuem na cidade contemporâ-nea. A escolha desses ‘lugares’ não tem relação com sua qualidade físico-espacial, pois em sua maioria esses locais se encontram em condições estruturais precárias, muitas vezes degradados, pequenos, su-jos, etc., contudo, protagonizam o espaço dos sobre-viventes e proporcionam as mais diferentes formas de convívio e troca: vender, comprar ou simplesmente local de passagem. A vivência e ao mesmo tempo a análise dessas práti-cas singulares e plurais do sistema urbanístico con-temporâneo teve como objeto o Terminal Cury. Até os anos 1960, o local era uma praça bucólica, com lago e patinhos e hoje totalmente ocupado por um grande terminal de ônibus urbanos. Aqui proliferam as astú-cias e os poderes sem identidade, legíveis a um se-gundo olhar, difíceis de tomadas apreensíveis e de perceber alguma transparência racional. Isso se tor-nou patente na dificuldade de iniciar o relato. Fez me voltar ao início: compreender a cidade é vivê-la, chegar aos lugares pelo rés do chão, com os pas-sos, como a maioria dos que deambulam pelo centro do cidade, por aquelas vias tomadas por pequenas barracas de comércio ambulante, tomando inicial-mente todo o passeio público e depois adentrando a kasbah do interior da parte comercial do terminal. Apesar disso o relato tem início não pelos passos, mas, como todos os passantes, pelo transporte públi-co que acessa o terminal. A parada final foi o ponto da Av. Moreira Sales, o mais próximo do terminal. A maioria das pessoas também descem ali, espalham-se rapidamente. Sem destino, num universo de sin-gularidades, conduziram-me os passos decididos da multidão de pessoas que dessem dos ônibus. Impos-sível não notar a presença dominadora de todo o co-

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mércio que se encontrava ao redor, cada um com tamanho e cor diferente, com fachadas completamen-te distintas umas das outras, vendendo os mais dife-rentes tipos de mercadorias, desde guarda-chuvas à coxinhas de frango e "churrasquinho de gato", tudo isso em meio a postos de gasolina, estacionamentos, semáforos, canteiros centrais, moradores de rua, la-tões de lixo, praças cívicas, etc. A cidade real, impossível de ser descrita e prevista nos planos. Completamente diferente do dia a dia apartado em que vivo, e que apenas neste momento percebo, com os passos, somos iguais e diferentes. “Vendo as coisas no nível mais elementar, o ato de caminhar tem como efeito uma função enunciativa: é ao mesmo tempo um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre e uma realização do lugar” [6]. Caminhando um pouco mais em direção ao Terminal Cury as calçadas se estreitam por conta do comercio de barraquinhas que neste trecho ocupam o espaço publico. Todo o cuidado é pouco para não trombar nas barracas, nas pessoas que ofereciam de tudo e entregavam panfletos, ou pra não cair nas graças dos comerciantes que vendiam todos os tipos de réplicas de Rolex colocados nos braços desde o pulso até o cotovelo. “Essa história começa no rés do chão, com passos. São eles o número, ... Sua agitação é inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam o espa-ço. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses “sis-temas reais cuja existência faz efetivamente a cida-de”, mas “não tem nenhum receptáculo físico” [7]. De repente, diante daquela parafernália de sons e mercadorias, adentra-se em um local com pouca lu-minosidade e ainda mais estreito. Ao lado esquerdo pequenas lojas que não devem ter mais do que 2,0m x 1,5 m, estreitas, mal distribuídas e dotadas de mer-cadorias em todas as paredes, prateleiras e “vitrines”, que contrastam com grandes lojas de tapetes e horti-fruti localizadas logo à frente. Era como se tivesse entrado em um grande portal, um mercado árabe co-berto por um toldo vermelho, quente e claustrofóbico, lotado de gente, imerso nos mais diferentes tipos de

som e música, odores, vendendo desde coisas cotidi-anas como carteiras de bolso até planos de saúde. Ainda adentrando esse universo, cruzamos uma rua de pedestres que corta perpendicularmente aquele Shopping de Camelódromos. Com calçamento de paralelepípedo, a rua Alvares Machado é realmente uma rua de pedestre, não só pela proibição da circu-lação de automóveis, mais pela presença em peso da população que ali circula e vive. Abarrotada de gente circulando nos dois sentidos en-tre o centro da cidade e o Terminal Cury, a rua é to-mada por estabelecimentos comerciais muito diver-sos: lojas de departamentos disputam a clientela com a infinidade de box de comércio situadas no passeio público. Há ainda todos os tipos de comércio, entre eles alguns cafés e lojas de bijuterias de boa qualida-de. Barracas de frutas e verduras montadas alí mes-mo, a céu aberto no meio do calçamento, oferecem aperitivos servidos em palito de dente e bandeja de isopor. Há até mesmo clínicas: portas de metal e vi-dro que dão para uma íngreme escada estreita nos levam a salas lotadas de fluor, shampoo para cachor-ro e bisturís. As pessoas conversam, passam, co-mem, vendem, compram, se consultam ou são con-sultadas alí, em um pequeno grande espaço. Continuando na Alvares Machado no sentido centro, a paisagem pouco se modifica, com pequenas diferen-ças no comércio, na variedade de produtos ofereci-dos nas diversas lojas. O calçamento de paralelepí-pedo, o alvoroço das pessoas em meio aquele som de cidade e musica em auto-falante, torna o caminhar continuo e vidrado. Acompanhando o fluxo, cruzamos a rua Ferreira Pen-teado e uma paisagem muito parecida como a ser descortinada: um novo complexo de camelódromos. Dessa vez as barracas tomavam conta da Alvares Machado, pois nesse quarteirão a rua se encontrava inteiramente coberta por uma estrutura metálica e toldo vermelho, idêntica à usada nas lojas mais pró-ximas ao terminal central.

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Figura 2. Rua Alvares Machado. Camelódromo coberto.

“Em primeiro lugar, se é verdade que existe uma or-dem espacial que organiza um conjunto de possibili-dades (por exemplo por um local onde é permitido circular) e proibições (p. ex., por um muro que impede de prosseguir), o caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da cami-nhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elemen-tos espaciais”. [8]. As estruturas metálicas, a cobertura, a paisagem toda soa como se nunca tivéssemos deixado o interior dos corredores de comércio do Terminal Cury. Melhor seria dizer que continuávamos nos tentáculos do pol-vo. As demarcações são imprecisas e dependem dos “jogos de passos que moldam o espaço” e, do mes-mo modo, esvaziam ou preenchem os lugares. O complexo de comércio e serviços envolvendo o Ter-minal Cury não se restringe aos seus limites físicos, às suas fronteiras, expande-se por todo seu entorno voltado principalmente para o coração da cidade, pa-ra seu centro comercial, para o centro tradicional da cidade. Extende-se também em um de seus tentácu-los, pelas vias que ligam ao Mercado Municipal e ao terminal que leva seu nome.

“Nessa organização, o relato tem papel decisivo. Sem dúvida ‘descreve’. Mas, toda descrição é mais que uma fixação, é um ato culturalmente criador. Ela tem até poder distributivo e força performativa (ela realiza o que diz) quando se tem um certo conjunto de cir-cunstâncias. Ela então é fundadora de espaços. Re-ciprocamente: onde os relatos desaparecem (ou se degradam em objetos museográficos), existe perda de espaço” [9]. Apesar da aparente desordem espacial, da pouca racionalidade, esse universo mixto de terminal e cen-tro de comercio e serviços ‘obedece’ a uma gestão com representação própria e ‘observada’ pela admi-nistração municipal. O SINDIPEIC (Sindicato dos Empreendedores Individuais de Ponto) é esse órgão de representação/gestão ao qual estão vinculados cerca de mil pontos de comercio, instalados no interi-or do terminal e em suas imediações. Depois de caminhar por algum tempo no sentido Terminal Cury- Centro, retomei o caminho inverso, pela Alvares Machado em direção ao Terminal Cury. Passando inicialmente por algumas lojas, ainda pro-tegidas pela estrutura de toldo vermelho escuro e tre-liça metálica, logo mais estava novamente a céu a-berto, vendo por cima da cabeça os automóveis que circulavam pelo Viaduto Cury. E logo estamos pas-sando pelos baixos do viaduto, um túnel completa-mente escuro, e a luz distante no fim do túnel. Ao a-travessá-lo caímos em um espaço circular a céu a-berto, de novo um mundo de barracas, agora sob as lajes do viaduto. O espaço circular é o centro do Vi-aduto Cury, e por conta disso a disposição das barra-cas se dá de maneira circular. O local é superlotado e sua razão é bastante óbvia: as barracas estão na bo-ca de uma das saídas, das catracas do Terminal, sendo portanto o prímeiro espaço de comércio que os passantes tem ao entrar ou deixar o terminal. Um ponto cativo. No terminal: pessoas que passam por ali, obrigatori-amente, a caminho do trabalho ou de volta pra casa; gente que de forma cativa é obrigada a passar cotidi-anamente por esse terminal; que passa e compra a carne e os legumes do jantar, ou financia os novos eletrodomésticos; que faz corte de cabelo por cinco reais ou compra o guarda-chuva pra se proteger da chuva repentina, que toma uma água de coco ou um shot de pinga.

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Dentro do Terminal Cury não se tem acesso apenas ao centro de Campinas, a Rua Treze de Maio e ao Largo do Rosário. Se atravessarmos todo o terminal de ônibus iremos nos deparar com outra catraca, com outros complexos de camelódromos, que através de seus caminhos escuros, sinuosos e cheio de escadas de concreto degradado, nos levará a Avenida João Jorge, Avenida Lix da Cunha e a Rua Lidgerwood, vias de grande importância que nos levam do centro para a periferia da cidade. Um lado mais obscuro, uma coincidência. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS No contexto das principais indagações deste trabalho privilegiamos o impacto do espaço na vida cotidiana e as grandes transformações recentes que alteraram a estrutura dos modos de vida. Com razoável freqüên-cia o pensamento sobre o urbanismo tende a valori-zar essas grandes transformações, esquecendo-se frequentemente da escala geográfica da vida cotidia-na. Nesta reflexão procurou-se valorizar as tensões e conflitos mais evidentes que se interpõem entre a vida cotidiana e as formas de organização da cidade. Para isso as interrogações voltam-se a cidade toma-da não apenas como o lugar da moradia, da mobili-dade e do consumo, mas, acima de tudo, como lugar civilizacional. Reconhecemos com isso a importância dos espaços na estruturação das interações sociais e assume-se que agir sobre o espaço é, simultanea-mente agir a sobre a sociedade. Uma das vertentes de nossa reflexão procurou analisar os espaços liga-dos á mobilidade: os terminais de transporte urbano. Neste aspecto a metrópole de Campinas, uma das economias mais dinâmicas do Estado de São Paulo, é uma cidade com deficientes equipamentos de su-porte a vida cotidiana, com espaços recortados e gue-tizados (como o exemplo do Terminal Cury), sem re-lação entre si, com diferentes condições de mobilida-de e acessibilidade. Deste ponto de vista, portanto, é uma cidade sem qualidade, uma cidade que dificulta sua apropriação funcional e simbólica e, por outro lado, facilita distanciamento social. Um dos problemas da contemporaneidade está na dificuldade de organizar uma cidade que satisfaça a diversidade e as diferentes expectativas e modos de vida. Na cidade industrial, a temporalidade era larga-mente determinada pela produção, com nítida sepa-ração entre tempo de trabalho e de não trabalho. Atu-almente, na era da metápolis [10], a cidade e o territó-

rio são estruturados por outras configurações da rela-ção espaço-tempo que se traduzem na maior auto-nomia do sujeito, e para tal as novas configurações urbanas precisam traduzir essas exigências com um mínimo de inteligência e racionalidade. Mesmo consi-derando toda a vitalidade envolvendo o Terminal Cury, não há nada ali que se possa elogiar do ponto de vista do conforto cotidiano ou da racionalidade da metrópole. Essa forma de estar na cidade, de viver na cidade como parte da megalópole, precisa de meios de deslocamento com qualidade, onde os tempos de espera ou de apropriação sejam espaços de satisfa-ção não apenas pelo conforto, mas também pela ur-banidade. Também não se trata apenas da relação casa-trabalho, mas da capacidade de suportar os equipa-mentos necessários a vida familiar. O conceito de habitat apela a esta integração territorial das respos-tas em equipamentos e serviços.

REFERÊNCIAS [1] SECCHI, B. Primeira lição de urbanismo. São Pau-

lo: Perspectiva, 2006, p. 50.

[2] CERTEAU, M. Artes de fazer: a invenção do coti-diano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 183.

[3] CERTEAU, M. Artes de fazer: a invenção do coti-diano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 161.

[4] ABRAHÃO, S. L. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume; Fapesp, São Pau-lo, 2008, p. 56.

[5] SOLÀ-MORALES, Ignasi & COSTA, Xavier. Me-tropolis. Gustavo Gili, Barcelona, 2004, p. 104.

[6] CERTEAU, Michel. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 164.

[7] CERTEAU, Michel. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 164.

[8] CERTEAU, Michel. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 165.

[9] CERTEAU, Michel. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 191.

[10] ASCHER, François – Métapolis ou l’avenir des villes.Editions Odile Jacob, Paris, maio, 1995.