novelos de silêncio - ii -

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Novelos de Silêncio II Maio ~ Setembro de 2007 eli miguel

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Maio ~ Setembro ~ 2007 textos e imagens publicadas emhttp://novelosdesilencio.blogspot.com

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Page 1: novelos de silêncio - II -

Novelos de Silêncio – II

Maio ~ Setembro de 2007

eli miguel

Page 2: novelos de silêncio - II -

A poesia está na vida,

nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,

nos ascensores constantes,

na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,

nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica

e no fumo da fábrica.

A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,

no vaivém de milhões de pessoas conversando ou praguejando ou rindo.

Está no riso da loira da tabacaria,

vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.

Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.

A poesia está na doca,

nos braços negros dos carregadores de carvão,

no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar

- e só durou esse minuto.

A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,

nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho

das terras sempre mais longe,

nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,

na angústia da vida.

Page 3: novelos de silêncio - II -

A poesia está na luta dos homens,

está nos olhos abertos para amanhã.

Mário Dionísio, "Arte Poética”

Page 4: novelos de silêncio - II -

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada –

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

Álvaro de Campos, Poemas

Page 5: novelos de silêncio - II -

Puccini ,”a bocca chiusa”

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Page 7: novelos de silêncio - II -

O que nos chama para dentro de nós mesmos

é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.

Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar

e nos torna piedosos, como quem já tem fé.

Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida

pelo movimento, pela forma, pelo nome,

voltamos ao zero irradiante, ao ver

o que foi grande, o que foi pequeno, aliás

o que não tem tamanho, mas está agora

engrandecido dentro do novo olhar

Fiama Hasse Pais Brandão, Às vezes as coisas dentro de nós

Page 8: novelos de silêncio - II -

Acontece

um outro acontecer

o lento despertar

de um estranho segredo.

Um rumor de bosque

que se adivinha

rajadas de vento brando,

barcos

em mãos de desejo.

E um olhar de água

como que desfeito

longe,

mesmo muito longe,

felizmente longe

de qualquer razão.

Gundula Stegliz

Page 9: novelos de silêncio - II -

O amor

é uma ave a tremer

nas mãos de uma criança.

Serve-se de palavras

por ignorar

que as manhãs mais limpas

não têm voz.

Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas

Page 10: novelos de silêncio - II -

na praia lá do guincho as velas

de windsurf saltam sobre as ondas

e o meu olhar, equestre,

pula nos peitos das banhistas, enquanto

um cachorro tenta agarrar a cauda.

nos feriados tudo é insuportável

menos o sol e o mar

apesar das famílias.

e sustendo as gaivotas na mais alta

imaginação, porque hoje não vi nenhuma,

o vento traz de tudo

e antónio nobre e lorca às pandas roupas

que modelam os corpos em míticas figuras

com o seu drapejado esvoaçante,

entre dunas e lixo e vendedores de gelados.

restaria o campo, mas

«no campo não há bicas nem paperbacks»

diz uma amiga minha e tem razão.

que seria de nós, bucólicos, sem esses indicadores da alma? dou

lume a uma italiana e enquanto

ela agradece ocorre-me que despi-la já não é

cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão

o algarve é a continuação

da política por outros meios. antes

a nortada, os surfistas,

na crista da onda, a areia que entra no poema,

e o regresso mais cedo, quando já não se

aguenta.

agora que passaste muito queimada do sol

o vento vem pela estrada até à duna

com uma folha de jornal desdobrada

aos baldões e as vozes dos piqueniques.

Page 11: novelos de silêncio - II -

tu desceste da moto e foste

comprar um gelado, afastando impaciente

algumas crianças. era a impostura

para a sede, avivada pelos guarda-sóis

de cor berrante. nas rochas havia

alguns pares esfregando-se

mais ou menos à vista. penduraste

os óculos de sol no decote da blusa

e o gelado avançou para os teus dentes muito brancos.

tudo isto dava uma fotografia

com o teu peito em grande plano

e a cena reflectida nos óculos escuros.

Vasco Graça Moura, Antologia de Convívios

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Na minha juventude antes de ter saído

Da casa de meus pais disposto a viajar

Eu conhecia já o rebentar do mar

Das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]

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Digo: o amor. Há palavras que parecem sólidas,

ao contrário de outras que se desfazem nos dedos.

Solidão. Ou ainda: medo. As palavras, podemos

escolhê-las, metê-las dentro do poema como

se fosse uma caixa. Mas não escondê-las. Elas

ficam no ar, invisíveis, como se não precisassem

dos sons com que as dizemos.

Agora, o efeito das palavras. A sua rotação

na cabeça, e pelas artérias, até ao centro:

o coração. Outra palavra com que se diz: o

amor. Mas não falo de sinónimos; de resto,

há palavras que escondem o contrário do que

querem dizer, e só as conhece quem ama, se

a vida não o levou por caminhos confusos.

Amo-te. Também podia dizer: a solidão

com que te amo, ou o medo de te amar. A partir

de uma palavra tudo se pode fazer, numa página,

quando o que aí está é um poema. No entanto,

essas palavras conduzem-me até ti, isto é,

fazem-te viver por dentro delas. É por isso

que tudo se confunde: o amor, a solidão, o medo,

e até a vida, que também é uma palavra.

Nuno Júdice, "Semiologia"

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Die liebe Erde allüberall

Blüht auf im Lenz und grünt aufs neu!

Allüberall und ewig

Blauen licht die Fernen!

Ewig... ewig...

Mahler - Wang Wei, "der Abschied"

Das Lied von der Erde

(a um Amigo)

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Eu em tudo Te vi amanhecer

Mas nenhuma presença Te cumpriu,

Só me ficou o gesto que subiu

Às mais longínquas fontes do meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Gesto"

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Um dia destes vou-te matar

Uma certeira bala de pólen

mesmo sobre o coração

Jorge Sousa Braga, "Carta de Amor"

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SOBRE

O

LADO

ESQUERDO

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se

ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,

deslocando todo o peso do sangue sobre a metade gasta do meu corpo, esmagar o coração».

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

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Ao fim de cada construção diária, ao crepúsculo, o construtor sobe a uma torre de pedra para meditar um pouco. A plenitude

da tranquilidade é perfeita nos campos fulvos e ondulados em redor, cobertos de ervas altas, de flores e arbustos e marginados

por um riacho sob a penumbra verde de um arqueado tecto de folhagem. Dir-se-ia que o olhar do construtor encontrou o ser

em extensão, o ser que se oferece, no seu mutismo eloquente, e ao mesmo tempo se guarda no mesmo espaço do seu tranquilo

esplendor. A meditação não é mais do que a contemplação de uma matéria que contém em si o excesso da sua energia calma e

a densidade materna que envolve todas as interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento. Por isso o construtor se

integra na paisagem e, reflectindo-a, não a elabora nem a altera. Toda a sua vida está intacta e plenamente segura na

indistinção entre o seu íntimo e a túmida e fresca serenidade da paisagem que o envolve. A realidade exterior passou a ser a

matéria mais íntima e mais pura da relação total e, inversamente, o contemplador converteu-se num elemento da paisagem

que a partir dela própria a vê e nela se vê. Esta circularidade é a mais harmoniosa manifestação do uno e o alvo da construção

será criar o espaço mais propício à sua tranquila fulguração. Não há segredo mais supremo nem mais simples do que esta

relação vital entre o corpo e o espaço, entre o alento e a paisagem, entre o olhar e o ser.

António Ramos Rosa, Aprendiz Secreto

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OS JACARANDÁS

Em meados de junho os jacarandás de Lisboa estão em flor, a sua luz fende a pupila, acaricia o dorso da

sombra. É então que - sei lá se pela última vez - a inocência volta a entrar na minha vida. Olhos, mãos, alma,

tudo é novo - recomeço a prodigalizar alegria, uma alegria que não procura palavras porque o seu reino não é

o da expressão. Digamos que esta nova experiência, a que não quero dar nome, não se preocupa em

interrogar, talvez por já não ser tempo de dúvidas, ou então por não lhe dizerem respeito essas verdades

últimas, cegas como facas.

Não é um poema de obediência o que me proponho nestas linhas; trata-se de outra coisa: levar à boca fresca

do ar o ardor das areias queimadas. Mas sem palavras, sem palavras.

Eugénio de Andrade, Vertentes do Olhar

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Sou lindíssimo, disse o autor fascinado. Lindíssimo, lindíssimo, lindíssimo. De tal modo que não posso despegar os olhos do espelho. E

tudo o que existe, sou tentado a converter em ‗eu‘. Porque só tenho olhos para mim.

Sentou-se na cadeira, cruzou as pernas e começou a devorar o mundo. Engolia, engolia, engordava sem medida e a inflação do eu era tão

grande que a certa altura rebentava e caía numa chuva de estilhaços.

E então pacientemente, de gatas, ia procurando os pedaços, aqui e ali, e começava a colá-los outra vez com Araldite.

Teolinda Gersão, Os Guarda-Chuvas Cintilantes

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Rosa rosa rosam

Rosae rosae rosa

Rosae rosae rosas

Rosarum rosis rosis

Jacques Brel, "Rosa"

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Consuma-se o eterno em cada instante

na crença de reservas infinitas

importa mais o vértice da chama

que a cera a consumir ou consumida

David Mourão-Ferreira, Os Ramos Os Remos

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E o mar imenso

se fez lago

e se tingiu

de fogo brando

para que os dois,

amigos já,

pudessem também brincar.

Gundula Steglitz

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Alguna vez he de volverme

y mirar hacia atrás

si habré de dirigir mis ojos hacia arriba

o hacia abajo, pero tú, a quien no escribí un poema de amor

y di más que el amor, comprenderás

(¿He dicho que no creo en el amor

sino en la luz? Amor . . . He visto demasiado

esas palabras: conteniendo la vida,

engalanando la muerte, arrastrada por lechos,

desvaneciéndose en los idiomas – love,

liebe, amore . . . amore mío, amor: sonidos,

confusión de sonidos que ocultan

algo. Luz: tan sólo en ella creo).

Nadie es su voluntad: es su destino.

Ni es sólo su presente: es el pasado

y el futuro también – un peligroso borde

donde, no siempre ciegos, caminamos -.

Inevitable despeñarse

mas tal vez no terrible. La luz sólo

puede liberar a las sombras,

derretir sus cadenas,

dar a las aguas transparencia y vida,

aire al espacio clausurado.

Y el presente de ayer

no es ya más una soledad sin sentido

en que se puede llamar amor a las sombras.

Porque ¿puede ser una garra el amor?

¿Puede ser un desierto el amor? ¿Puede ser

una alta muralla?

¿Podría haber sido, yo sola, el amor y el amante

viendo otro cuerpo donde nada había?

No sé: ¿cómo saber quién fui, quién, ellos, fueron

sin luz?

Yo, a mí misma,

regresaré por esa luz - semilla de una luz ahora -

restaurando los rostros mordidos por el tiempo,

ordenando la casa que me habita

- puesto el mirto en los vasos

en honor de las sombras ancestrales -,

porque no hay que renunciar a la pena,

ni al testimonio de los escombros,

sino a la destrucción.

Page 30: novelos de silêncio - II -

Porque ser o no ser destruida,

sólo depende de mí: de que mi mano

tape la uz o la deje pasar

por el pequeño espacio que entre mis ojos vive,

hasta el fondo infinito,

y me incluya en su círculo.

En ese día inacabable

en el que los vocabularios se fundan en la luz,

y sea suficiente mirar,

¿para qué llamar nada a nada?

Julia Uceda, Campanas en Sansueña

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Provoca o vento rápido tumulto

de rubros vivos colorindo a base

de os ver, como verdes, sobressaltar

o fundo

da pupila iluminar-se.

Que escuro que é o perímetro do rubro

quando o usufrui a lentidão da análise.

Dói ver mover-se o luminoso fruto

na sua aquosa sapidez na carne

da cor que se saliva. Um vivo lustro

em seu rigor constrange

o volume a crescer no paladar. E o vulto

na líquida retina a deslumbrar-se.

Fernando Echevarria, ―Cerejas‖

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ficar nas vibrações deste espaço receptivo, à espera

que alguém entre, e seja o visitante esperado: Rilke, Müntzer, o pobre, Ana de

Peñalosa, ou alma, ou semelhante.

Maria Gabriela Llansol, Finita, Diário 2

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Some men never think of it.

You did. You'd come along

And say you'd nearly brought me flowers

But something had gone wrong.

The shop was closed. Or you had doubts -

The sort that minds like ours

Dream up incessantly. You thought

I might not want your flowers.

It made me smile and hug you then.

Now I can only smile.

But look, the flowers you nearly brought

Have lasted all this while.

Wendy Cope, "Flowers"

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Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.

Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino.

Quero ser um bom menino

E guardar

Este segredo comigo.

E ter depois um amigo

Que faça o pino

A voar...

Miguel Torga, "Segredo"

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Olhar

o interior das coisas

e procurar

o rumor,

o brilho oculto

das palavras,

o estranho renascer

dos sentidos,

nos beirais

que repousam

como se voassem.

Gundula Stegliz

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Tómate esta botella conmigo

en el último trago nos vamos

quiero ver a qué sabe tu olvido

sin poner en mis ojos tus manos

Esta noche no voy a rogarte

Esta noche te vas de veras

que difícil tratar de olvidarte

sin que sienta que ya no me quieras

Nada me han enseñado los años

siempre caigo en los mismos errores

otra vez a brindar con extraños

y a llorar por los mismos dolores

Tómate esta botella conmigo

en el último trago me bejas

esperamos que no haya testigos

por si acaso te diera vergüenza

Si algún día sin querer tropezamos

no te agaches ni me hables de frente

simplemente la mano nos damos

y después que murmure la gente

Nada me han enseñado los años

siempre caigo en los mismos errores

otra vez a brindar con extraños

y a llorar por los mismos dolores

Tómate esta botella conmigo

en el último trago nos vamos

Chavela Vargas, "En el último trago"

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alma limpa

nas calmas águas

que teus temores pairem sobre elas

enquanto o reflexo do que és

mergulha na profundeza do teu ser

sairás deste banho

com a alma limpa

c peres feio

Page 38: novelos de silêncio - II -

Flor lilás de vida efémera

Caíste beijando a pedra nua

E ficaste adormecida…abandonada…

Olho-te e vejo-te perto longe.

Impossível tocar-te…

Qual pedaço sublime de céu

Descido até cá,

Flor de jacarandá.

Como tu, espero irmãs

Que ao cair, possam

Reflorir, sentir-me amada

E ver o milagre da vida renovada…

Não te sintas sozinha.

Caíste mas no beijo

Vestiste a pedra de desejo.

Cristina Peres

Flor lilás de vida efémera

Caíste beijando a pedra nua

E ficaste

adormecida…abandonada…

Olho-te e vejo-te perto longe.

Impossível tocar-te…

Qual pedaço sublime de céu

Descido até cá,

Flor de jacarandá.

Como tu, espero irmãs

Que ao cair, possam

Reflorir, sentir-me amada

E ver o milagre da vida

renovada…

Não te sintas sozinha.

Caíste mas no beijo

Vestiste a pedra de desejo.

Cristina Peres, "Flor lilás de

vida efémera"

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é em sítio nenhum que escrevo.

o que parece ser eu

é o lugar onde não existo.

maria azenha

Page 40: novelos de silêncio - II -

Le moulin tourne au fond du soir, très lentement,

Sur un ciel de tristesse et de mélancolie,

Il tourne et tourne, et sa voile, couleur de lie,

Est triste et faible et lourde et lasse, infiniment.

Depuis l'aube, ses bras, comme des bras de plainte,

Se sont tendus et sont tombés ; et les voici

Qui retombent encore, là-bas, dans l'air noirci

Et le silence entier de la nature éteinte.

Un jour souffrant d'hiver sur les hameaux s'endort,

Les nuages sont las de leurs voyages sombres,

Et le long des taillis qui ramassent leurs ombres,

Les ornières s'en vont vers un horizon mort.

Autour d'un vieil étang, quelques huttes de hêtre

Très misérablement sont assises en rond ;

Une lampe de cuivre éclaire leur plafond

Et glisse une lueur aux coins de leur fenêtre.

Et dans la plaine immense, au bord du flot dormeur,

Ces torpides maisons, sous le ciel bas, regardent,

Avec les yeux fendus de leurs vitres hagardes,

Le vieux moulin qui tourne et, las, qui tourne et meurt.

Emile Verhaeren, «le moulin»

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No lugar da árvore. No lugar do ouvido.

No lugar do chão. Unidade crepitante no

silêncio aberto no trânsito. Tronco, calma

bomba indeflagrável, dádiva de identidade.

António Ramos Rosa,

Nos seus olhos de silêncio

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O jardim não mudou, o silêncio está intacto.

A verdade ainda não irrompeu para possuir

A manhã vazia nem a hora prometida

Abalou a vibração de Maio.

W.H. Auden, "Pensamento"

Tradução de José Alberto Oliveira

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A ria é uma longa fita de muitos verdes

fios doiro de julho que reflectem

acidentes de luz.

João Miguel Fernandes Jorge, Obra Poética

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A minha vida é como um certo corredor sombrio

de tecto baixo e lúgubre dos lados

com inúmeras portas mas fechadas

e só lá muito ao fundo se divisa

se é que se divisa uma janela

que me promete árvores e relva

e um mundo de verdura que perdi

até porque em criança vastamente o conheci

Ruy Belo, "Agora o verão passado"

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Le silence est comme le vent :

il attise les grands malentendus et n'éteint que les petits.

Elsa Triolet, L'écrivain et le livre ou la suite dans les idées

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Espero cada momento seu

como se espera o rebentar das amoras

Herberto Helder, Ou o Poema Contínuo

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Descobrir o

valor do

abstracto,

esquecer

qualquer

realidade

preexistente

e construir

uma nova!

Gundula Steglitz

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Penso che forse a forza di pensarti

potrò dimenticarti, amore mio.

Patrizia Cavalli, Poesie

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Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

Thiago de Mello, "Artigo III"

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Así en horas profundas sobre los campos he visto

doblarse las espigas en la boca del viento.

Pablo Neruda, "Ah Vastedad de Pinos..."

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E pairo nas alturas com as costas voltadas

Aos séculos de pasmo que para trás deixei.

José Carlos Ary dos Santos, "Viagem"

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Em que língua se diz, em que nação,

Em que outra humanidade se aprendeu

A palavra que ordene a confusão

Que neste remoinho se teceu?

Que murmúrio de vento, que dourados

Cantos de ave pousada em altos ramos

Dirão, em som, as coisas que, calados,

No silêncio dos olhos confessamos?

José Saramago, "No Silêncio dos Olhos"

Page 53: novelos de silêncio - II -

Chamo...

Por um momento julgo ouvir resposta.

Fico à espera.

É o apelo de alguém, chamando como eu chamei.

...E assim são as conversas dos homens.

Jaime Salazar Sampaio, Em rodagem

Page 54: novelos de silêncio - II -

Aqui me tenho

como não me conheço

nem me quis

sem começo

nem fim

aqui me tenho

sem mim

nada lembro

nem sei

à luz presente

sou apenas um bicho

transparente.

Ferreira Gullar, "Um Instante"

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["78"]

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há uma hora azul

permeando de poesia

minha existência cinza;

uma hora hortênsia

que se abre em fins de tarde

(maybe in my mind)

Valéria Tarelho, "happy hour"

Page 57: novelos de silêncio - II -

Sentada,

no rasto do tempo,

sem desviar o olhar,

procuras-te

sem procurar,

longe de ti

cansada

de esperar o vento

Joaquim Castilho, Artesanato

Page 58: novelos de silêncio - II -

Meu moinho abandonado,

meu refúgio de inocente,

meu suspiro impertinente,

meu social transtornado.

Meu sussurro de oceano,

meu ressoar de caverna,

minha frígida cisterna,

minha floresta de engano.

Minha toca de selvagem,

meu antro de vagabundo,

minha torre sobre o mundo,

minha ponte de passagem.

Meu atributo coitado,

meu tanger de hora serena,

rolo de pedra morena,

silêncio petrificado.

António Gedeão,"Moinho sem velas"

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FEIGENBAUM, SEIT WIE LANGE SCHON IST'S MIR BEDEUTEND

Figueira

ó árvore que irrompes da tua secura

suportando o penoso desdobrar de teus ramos

amaldiçoada

ofereces ainda a doçura de teus frutos

a sombra de tuas folhas

a firmeza do teu apego à terra

Ó dura bruta forma

heroína da escassez

ó teimosa

que insistes e insistes

e nos ensinas

que a vida é feita de incessantes mortes

e que a nós

suas futuras vítimas

nos aguarda

a todo o momento

a derrocada do templo

sem nenhum outro fruto

além da amargura

Ó doçura

porque amargas tanto

a nossa tentação de florir

ao mesmo tempo sendo tudo

e nada ?

Ana Hatherly,"A nossa tentação de florir"

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Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.

Jorge de Sena, "Sem Data"

Page 63: novelos de silêncio - II -

Las superficies de vagos remolinos,

recuerdan en la espuma las ondinas perdidas,

en su música menuda de huidizas ondas rotas,

y a los submarinos que no pueden volver a los vientos.

Vicente Gerbasi, "Vigilia del Náufrago"

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Page 65: novelos de silêncio - II -

De todas as palavras, uma ficou gravada em minha memória, uma só, pura, insubmissa, mas ao

alcance das tuas mãos.

De todos os minutos, também um se encheu de uma alegria íntima, e no entanto sobrenatural, com

que festejei os teus olhos e deixei que repousasse minha cabeça no teu ventre, quando meu corpo

cansado e ferido, abandonando-se nos teus braços, foi o princípio da noite, o chamamento do vento, a

agonia dos pássaros.

Se eu pudesse dizer o teu nome essa palavra bastar-me-ia. Chamando-te, iria ao teu encontro, e não

importa onde estivesses, porque não importa onde estás, e, num minuto, toda a ternura voltaria a

acordar meu sangue e minhas mãos para acolher o teu corpo onde, hoje, o meu corpo treme e a minha

boca vacila.

Que nada, ao menos, meu amor, me possa perturbar a tua ausência, presente na alegria magoada do

meu coração inquieto.

Joaquim Pessoa, os olhos de Isa

Page 66: novelos de silêncio - II -

Há muito estavas longe

Mas vinham cartas poemas e notícias

E pensávamos que sempre voltarias

Enquanto amigos teus aqui te esperassem

Sophia de Mello Breyner Andresen, Correspondência

Page 67: novelos de silêncio - II -

Cuándo

con qué fuerza

de qué modo asumir

nuestro destino

Dionisio Aymará, Vivir y otros enigmas

Page 68: novelos de silêncio - II -

Onde inda vibram

Do extinto amor os ecos

Luís Miguel Nava, Vulcão

Page 69: novelos de silêncio - II -

[...] ciò che noi conosciamo nelle cose è niente altro che noi stessi.

Antonio Gramsci, Quaderni del carcere

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Creio que é isto: não a angústia crua

da morte física, mas as incomparáveis

agonias da misteriosa manobra mental

necessária para passar de um estado do ser

para outro.

Vladimir Nabokov, Transparências

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Era preciso mais do que silêncio,

era preciso pelo menos uma grande gritaria,

uma crise de nervos, um incêndio,

portas a bater, correrias.

Mas ficaste calada

Manuel António Pina, Poesia Reunida

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Eu tinha chegado de um outro mundo e agora era preciso

que o tempo passasse para que lentamente este voltasse

a tomar conta de mim.

Pedro Paixão, A Cidade Depois

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como uma flor de sono te guardo,

tão impossível, o real

Pedro Sena-Lino, as flores do sono

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Page 75: novelos de silêncio - II -

fui ao Douro em busca do nada

olhar suas águas brilho de ónix

ouvir margens enganadas pelo tempo

num choro que marca a manhã

com incêndios pôr de sol

esperanças em nova era

morreram na barca que habito

tornar a voltar ao Douro agora

num naufrágio de águas calmas

nevoeiro cerrado

humidade no ar

em mistura com lágrimas

c peres feio, "Douro triste"

Page 76: novelos de silêncio - II -

O que há de novo na tarde

Verdadeiramente tarde

Verdadeiramente terna

É este gosto novo de cantar

É esta fome absurda de verão

Amélia Pais, "Verão"

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Regressas

na esteira do sol ao

interior do Mar.

Deixas-me a luz quente

que era tua.

E sei o que já sabia.

Fernanda Sal Monteiro, "Rosas ao fim da tarde"

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Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei-de aprender com ele

A partir de uma vez

– Sem medo,

Sem remorso,

Sem saudade.

Manuel Bandeira, "Lua Nova"

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Levanta-te, não chores.

Tens de saber que às vezes é difícil

matar o que nos mata,

ir aguçando o gume do cutelo

e movê-lo depois, logo em relâmpago,

até que o monstro seja degolado

e não fique sequer uma gota de sangue,

da cicuta voraz que lhe corria

plas veias tão geladas, sob a pele

que terias beijado quase a medo

em busca de um sabor que fosse o fogo

e o ar e a água,

mas era só veneno adocicado,

daquele que vicia sem parecer viciar

e nos deixa sem cura a vida inteira.

Levanta-te, bem sabes,

desde o tempo dos contos infantis,

que todo o mal procura disfarçar-se

em rostos como aquele,

na perfeição volátil desse abismo

a que chamam beleza e vai ardendo

em lânguidos sorrisos e olhares

feitos de pura seda, seduzindo

espíritos como o teu,

demasiado inocentes ou perversos

para desconfiar da eternidade

ou para resistir à luz fosforescente

que, obedecendo às leis da natureza,

sempre soube atrair até à morte

o alucinado voo das borboletas.

Levanta-te, vá lá, não tenhas medo

de apertar o gatilho as vezes necessárias

para que tudo morra - os estertores

da tua alma ou do teu corpo

mesmo assim doem menos, acredita,

que o travo torvo dos piores remorsos.

E se vires que é preciso

rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,

os mil e um poemas

que haverias de ler, talvez sem esforço,

à flor daquela face, não hesites,

porque a felicidade tem um preço

e os versos, quaisquer versos, são apenas

a memória infiel deste vento que move

as árvores lá fora enquanto é noite,

mas que às primeiras horas da manhã

deixará elevar-se um nevoeiro

tão espesso e esbranquiçado, que o amor

será nesse momento uma palavra baça

que nada te dirá, a ti ou a ninguém.

Fernando Pinto do Amaral, "Exorcismo"

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Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

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You said you'd come but you have gone and left no trace;

I hear in the moonlit tower the fifth watch bell.

In dream my cry could not call you back from distant place;

In haste with ink unthickened I cannot write well.

The candlelight illuminates half our broideret bed;

The smell of musk still faintly sweetens lotus screen.

Beyond my reach the far-off fairy mountains spread;

But you're still farther off than fairy mountains green.

Li Shangyin, 300 Tang Poems

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Porque está esta barca amarrada ao velho cais?

para onde partiu então o homem nestas montanhas azuis?

enquanto esperamos por ele façamos do poema uma pintura

que possamos contemplar

gritos de gansos selvagens, folhas de canas secas

sombra duma pluma branca, flor fria duma campainha de água

o grou no ninho, no alto dum pinheiro, a tarde

Zhang Kejiu, Cinquenta "Xiaoling"

Tradução de Albano Martins

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Corpo meu fará quadrado.

Corpo meu duro que é

Embora palavra não diga

Palavras guarda. E responde.

Anónimo. China, séc.XVIII,

"Poema Enigma"

Tradução de Gil de Carvalho

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Yuefu Songs with Regular Five-Syllable Lines

A Choice Sellection Of Ancient Poemes (Chinese-English)

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Quando as pessoas assumem a beleza

como emanação do belo

É porque a fealdade existe

E quando assumem a bondade

como ideia subjacente ao bom

é porque existe a maldade

Portanto como conceitos entre si recorrentes

Prevalecem a Existência e a Não-Existência

Conjugam-se o fácil e o difícil

O longo e o curto rivalizam-se

O alto e o baixo contrapõem-se

A voz e o eco harmonizam-se

A dianteira e a traseira não se distanciam

O sábio rege-se pela inacção

Ensinando sem falar

Deixando as dez mil coisas nascerem e crescerem

Sem reivindicar nisso a sua participação

Promove a sua evolução gradual

Sem nisso mencionar a sua contribuição

Nem reclamar por isso qualquer mérito

E como não se expõe

Permanece na mais absoluta solidão

Lao Za, séc. VI a.C.

Tradução de João C. Reis e Mª Helena O. Reis

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Em nós

tudo é presente,

infinito e nada

Li Bai, Poemas de Li Bai

Versão de A. Graça de Abreu

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Camões - pormenores da estátua - Coloane

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Escondido atrás de ferrolhos e barras duplas, cobertas de musgo.

No fundo dos corredores, nos quartos mais recônditos deambulo.

Um presságio de que irá levantar-se vento: a auréola à volta da lua.

Ainda a estação das geadas, os botões por desabrochar.

Um morcego atravessa a persiana. Inquietação sem fim.

Um rato perturba a teia de aranha na janela, alarmado por suspeitas breves.

À luz da lâmpada, falo a uma fragrância que persiste no ar

E, como antes, desprevenido, canto «Levanta-te Na Noite E Vem».

Li Shang-Yin, "Primeiro mês: em casa de Ch'ung-Jang"

Tradução de José Alberto Oliveira

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Kublai domanda a Marco: - Quando ritornerai al ponente, ripeterai alla tua gente gli stessi racconti che fai a me?

Io parlo, - dice Marco, - ma chi m'ascolta ritiene solo le parole che aspetta. Altra è la descrizione del mondo cui tu presti benigno orecchio,

altra quella che farà il giro dei capannelli di scaricatori e gondolieri sulle fondamenta di casa mia il giorno del mio ritorno, altra ancora quella

che potrei dettare in tarda età, se venissi fatto prigioniero da pirati genovesi e messo in ceppi nella stessa cella con uno scrivano di romanzi

d'avventura. Chi comanda al racconto non è la voce: è l'orecchio.

I. Calvino, Città invisibili

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Desocupado visitei um antigo mestre

A bruma e as montanhas sucediam-se em camadas

O mestre mostrou-me o caminho de regresso

A lua estava suspensa como redonda lanterna

O vagabundo do Dharma. 25 poemas de Han-Shan

Versão poética de Ana Hatherly

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Pa vôs, Macau quirido, pequinino,

Nésga di chám pa Dios abençoado,

Macau cristám, qui fórça di destino

Já botá na caminho alumiado;

Pa vês, iou pensá vêm co devoçám,

Rabiscá unga poema di amôr,

Enfeitado co vôs no coraçám,

Pa têm mercê di bénça di Sinhôr.

II

Tera qui nôsse Rê chomá lial,

Sômente unga: sã vôs, bunitéza,

Filo di coraçám di Portugal,

Alma puro inchido di beléza.

Iou querê vêm contá co sentimento,

Vôsso estória pa mundo uvi!

— Qui di péna fino? Qui di talento?

Ai, qui saiám Camões nom-têm aqui!

Adé, José dos Santos Ferreira, "Poéma di Macau"

(em Doci Papiaçam di Macau)

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Muito estranho sempre me pareceu

Os homens adorarem um deus.

E a vida a esse deus dedicarem

E diante dele se curvarem.

Que os deuses são feitos por dentro

Da matéria da sombra ou do vento.

Yüan Mei

Tradução de Maria Ondina Braga

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Usem as vossas jóias de oiro e os vossos vestidos de seda.

Saboreiem enquanto é tempo os frágeis prazeres da vida.

Os ramos ficarão despidos quando vier o grande frio.

Sem o sol, emurchecidas as flores, que é a vida? Apenas saudade.

Tu Chiu Nang

Tradução de António Ramos Rosa

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Contemplo ainda a poeira do mundo

exterior:

Na esfera do sonho que faria eu de novo?

Han-Shan, O vagabundo do Dharma

Versão poética de Ana Hatherly

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[…] la domanda del Kan ―A che ti serve tanto viaggiare?‖ si chiude con Marco che afferma:

―L‘altrove è uno specchio negativo. Il viaggiatore riconosce il oço che è suo, scoprendo il molto

che non há avuto e non avrà.‖

I. Calvino, Città invisibili

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L‘Empereur, penché en avant, la main sur les yeux, regardait s‘éloigner la barque de Wang qui

n‘était dejà plus qu‘une tache imperceptible dans la pâleur du crépuscule. Une buée d‘or s‘éleva et

se déploya sur la mer. Enfin, la barque vira autour d‘un rocher qui fermait l‘entrée du large ;

l‘ombre d‘une falaise tomba sur elle ; le sillage s‘effaça de la surface déserte, et peintre Wang-Fû et

son disciple Ling disparurent à jamais sur cette mer de jade bleu que Wang-Fû venait d‘inventer.

Marguerite Yourcenar, « Comment Wang-Fû fut sauvé »

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Nasce o sol trabalhamos

Põe-se o sol descansamos.

Cavamos um poço, p'ra beber,

Lavramos um campo, p'ra comer:

O Imperador e o seu poder

- Queremos lá saber!

China - anónimo, séc. III a.C.,

"Canção de bater no chão"

Tradução de Gil de Carvalho

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Transcorrida a sétima lua não recordo

as mulheres de cuja sabedoria aprendi.

Guardo o claro rosto daquela

que me recebia no templo do seu corpo

como se eu fora um deus.

Tao Li

Tradução de Rui Knopfli

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Nada é mais flexível e fraco do que a água

mas para vencer o que é duro e forte, nada a ultrapassa

e nada poderia substituí-la.

A fraqueza vence a força;

a flexibilidade vence a dureza.

Todos o sabem

mas ninguém o consegue pôr em prática [...]

Lao Tse, Tao te King - Livro da Vida e da Virtude

Tradução de António de Melo

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Une fois par an, allez quelque part

où vous n'êtes jamais allé auparavant

Dalaï-Lama

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Rejeitaram a vida procurando a Via. As suas pegadas diante de nós.

Decisão inabalável: oferecer os pensamentos, destroçar os corpos.

Julgando-o enorme um grão de milho engana-nos sobre o Universo.

Julgando-o pequeno o Mundo esconde-se na ponta de uma agulha.

Antes de ter o ventre cheio a ostra pensa na nova acácia.

O âmbar, quando se deposita, recorda ter sido um pinheiro.

Se acreditarmos nas palavras escritas nas folhas indianas

Ouviremos todo o passado e o futuro num toque do sino do templo.

Li Shang-Yin, "Escrito na parede de um mosteiro"

Tradução de José Alberto Oliveira

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O tempo é uma indiscrição de Deus. A

noção de tempo é-nos dada para nos

situarmos aos pés de qualquer acção que

se repetirá pelos milénios fora com a

mesma sagacidade e importância

inefável. Se perguntardes a um chinês

quanto tempo leva a desenhar uma cena

quase imperceptível numa pedra, ele

dirá: ―Dois ou três anos‖.

- Então, em toda a vida, não pintará

senão vinte pedras‖ – direis. E ele

responde:

- ―Nesta vida‖.

Agustina Bessa luís, ―A Pedra Pintada‖

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Mas, sobre as mulheres de Macau, nem

as vinte pedras dão decerto uma ideia. A

mulher oriental é um reino à parte.

Vemos uma pequenina chinesa entrada

na idade circular entre asslot-

machines do casino, com uma alegria

pueril e ao mesmo tempo capaz de

vencer o destino. Tinha uma força

dinástica no pequeno corpo levíssimo; e

riu-se como se tudo fosse obra dos seus

sentidos. Riu-se francamente, como

fazendo troça sem malícia, gozando uma

liberdade a que se rendia a sua

curiosidade por milénios insatisfeita.

Agustina Bessa Luís, ―A Pedra

Pintada‖

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Novelos de Silêncio

Maio ~ Setembro de 2007

eli miguel