_nove amanhãs - isaac asimov (2)

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ISAAC ASIMOV NOVE AMANHÃS EDITORA EXPRESSÃO E CULTURA

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ISAAC ASIMOV

NOVE AMANHÃS

EDITORA EXPRESSÃO E CULTURA

NOTA DO “DIGITALIZADOR”: O título Nove Amanhãs se deve ao fato do livro ser composto denove histórias. Porém as edições brasileiras só contem sete! O motivo, de acordo com a Wikipédia(http://pt.wikipedia.org/wiki/Nine_Tomorrows) é que duas das histórias (A Noite Morimbunda eEstou em Porto Marte Sem Hilda) já haviam sido lançadas aqui. Além disso, o livro não possui osdois poemas (Vale a Pena Ler, Vejam! e Notas de Recusa) inclusos no original. Já a ediçãoportuguesa é completa, e foi dela que retirei os poemas e os contos faltantes.

TEXTO DA ORELHA DO LIVRO: Estes originalíssimos contos de ficção científica constituemflashes imprevisíveis sobre um futuro não muito distante de "o espaço – terra dos homens". Noestilo de Asimov, de transplantar para a futura vida no espaço, não apenas histórias de humanos,mas histórias humaníssimas pelos sentimentos e situações vividas pelo homem em outrasgravitações, e que seguramente os astronautas de hoje já experimentaram, este livro compreendeuma série de contos, no gênero dos célebres "Mistérios de Asimov", cuja segunda edição acabamosde lançar.

Perspicaz nas observações, sadio e malicioso nas intenções, terrivelmente realista, este livro dehistórias do futuro reflete a' incomparável habilidade de Asimov em combinar fatos científicos cominesperados e acientíficos comportamentos do ser humano.

Esta peculiaridade da ficção de Asimov, que o notabilizou nas célebres "Leis da Robótica",enunciadas no seu livro Eu, Robô, já em quarta edição, é, sem dúvida, responsável pelo fascínioque seus livros exercem sobre seus numerosos e fiéis leitores.

TITULO ORIGINAL: NINE TOMORROWS COPYRIGHT, 1959, ISAAC ASIMOV

PRIMEIRA EDIÇÃO: OUTUBRO DE 1971 SEGUNDA EDIÇÃO: JANEIRO DE 1972 RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

TRADUÇÃO DE STELLA ALVES DE SOUZA CAPA DE ERICO

A Betty Shapian,cuja gentileza e ajuda

foram infatigáveis

INDICE

Vale a Pena Ler, Vejam! ("I Just Make Them Up, See!") – Poema

Notas de Recusa ("Rejection Slips") - Poema

Profissão ("Profession")

A Sensação de Poder ("The Feeling of Power")

A Noite Morimbunda ("The Dying Night")

Estou em Porto Marte Sem Hilda ("I'm in Marsport Without Hilda")

Os Abutres Bondosos ("The Gentle Vultures")

Todos os Problemas do Mundo ("All the Troubles of the World")

Escrevam o meu Nome com "S" ("Spell My Name with an S")

A Última Pergunta ("The Last Question")

O Garotinho Feio ("The Ugly Little Boy")

VALE A PENA LER, VEJAM!Oh, Dr. A. -Oh. Dr. A. -Há uma coisa (não se vá embora)Que eu gostaria que me dissesse.Embora preferisse morrerA tentar.Intrometer-me,O caso, como verá,É que a minha menteElaborou a grande pergunta do dia.

Não pretendo fazer qualquer escárnio barato,Portanto, por favor, responda com decisão,E, deixando-se de receios cautelosos e inúteis,Conte-me o segredo da sua visão!Como é queVocê criaEssas impossíveis e loucas ideias?

Será indigestãoE trata-seDo pesadelo que dela resulta?Dos seus olhos a rodopiar,A girar,Dados a enrolarem-seE a desenrolarem-se,Enquanto o seu sangue toca sinos enlouquecidosSeguindo o apaixonado ritmoDo seu abundante e incerto pulso?

Será isso, pense, ou a bebidaQue lhe trará mais depressa o delírio?Pois umPequeníssimoMartíni secoPode bem ser a sua musa privadaOu talvez aqueles Tom e Jerries:Encontrarão asBagas certas Para provocarE libertarEsse truque secreto ou essa excitação:Ou uma horrendaCombinaçãoDe estimulaçãoIlegal,

Maconha com tequila,Que lhe daria aquela sensaçãoDe coisas combinando-seEnquanto começa a sua atividade mental

Ao doido ritmo sincopadoDecerto algo, Dr. A.,O faz elétricoE um pouco excêntrico.

Já que o leio com devoçãoNão me daria uma noçãoDessa poção astutamente criadaDa qual emergem os seus enredos?Essa fantástica e secreta mistura borbulhanteQue lhe deu lugar cativoNos mais apreciados pontos da ficção científica.

Agora, Dr. A.,Não se vá embora -

Oh Dr. A. -Oh Dr. A. –

NOTAS DE RECUSA

a) CULTAQuerido Asimov, todas a leis mentaisprovam que a ortodoxia tem seus defeitos.Considere este componente ecléticoda filosofia de Kant que mordecom fauces incansáveis e antilógicasas gastas e inúteis serrasque ficam presos em culturas de mutantes de nossa era.Aí vai pois seu relato (com ânimo fraco).As palavras anteriores têm amplo motivo.

b) CULTAQuerido Ike, estava preparado(e, menino, realmente assutado)para tragar, vindo de ti, quase qualquer coisa.Porém, Ike, és pura droga,tua forma de escrever é inebriante:só resta tosse seca e inchamento mental.Te devolvo esta porcaria;cheirava, empestava, fedia;

um breve olhar foi espantoso o suficiente.Entretanto, criança, pouco a pouco,tenta de novo.Necessito de algumas Fantochadas, rapaz, adoro teu catarro.

AMÁVELQuerido Isaac, meu amigo,pensei que teu relato era lúcido.Sumamente deliciosoe com méritos, esplendoroso.Significou uma inteiranoite, plenade tensão, amigo,e logo alívio,e acompanhadaem boa medidado deleiteda latenteincredulidade.É uma trivialidade,apenas correto,quase um ato de maldade,declararque há pequenos defeitos.Nada concreto,um retoque, talvez,e por istonão vá desanimar.Permita-me pois expor,sem mais delongas,meu camarada, meu amigo,que o final do teu históriadeixou-me satisfeitoe alegremente sossegado.P.S.Ah, claro,devo confessar(com certo pesar)que, infelizmente!, devolvo em anexo sua história.

PROFISSÃO

GEORGE PLATEN não conseguia dissimular a ansiedade presente em sua voz. Aquilo era demaispara êle. - Amanhã é dia primeiro de maio. Olimpíadas! - disse por fim.

Rolou sôbre o estômago e olhou por cima dos pés da cama em direção a seu companheiro de quarto.Não estaria também ele sentindo o mesmo? Não lhe causaria qualquer impressão?

O rosto de George, que já era magro, afinara um pouco mais ainda durante aquele ano e meio depermanência na Casa. Seu corpo estava magro, mas seus olhos conservavam o azul intenso e obrilho penetrante. Naquele momento apresentavam uma expressão acuada, confirmada pela maneiracomo seus dedos agarravam a coberta da cama.

Seu companheiro ergueu ligeiramente o olhar do livro, aproveitando a oportunidade para ajeitar aluz mural junto a sua cadeira. Chamava-se Hali Omani e era de origem nigeriana. Sua pele, de ummarron-escuro, e seus traços bem marcados pareciam talhados para a serenidade, e a menção dasOlimpíadas aparentemente não o abalava.

_ Eu sei, George - disse êle,

George devia muito à paciência e amabilidade de Hali, quando necessário, mas até mesmo apaciência e a amabilidade podem tornar-se excessivas. Seria por acaso aquele o momento de ficarali sentado, impassível, qual estátua talhada em madeira escura e quente?

George ficou imaginando se também ele acabaria assim, depois de dez anos naquele lugar, eprocurou rapidamente afastar a ideia. Não!

- Acho que você esqueceu o significado de maio - falou em tom desafiador.

- Sei muito bem o que significa - retrucou o outro. -

Não significa coisa alguma! Você é quem se esqueceu disso. Maio não significa nada para você,George Platen, e - acrescentou suavemente - não significa nada para mim, Hali Omani.

- As naves estão chegando em busca dos recrutas. Em junho milhares e milhares delas partirão,levando milhões de homens e mulheres rumo aos inúmeros mundos que existem. E isso não lhe diznada?

- Menos que nada. Afinal de contas o que é que você quer que eu faça? - Omani acompanhou com odedo uma passagem difícil do livro que estava lendo, enquanto seus lábios moviam-sesilenciosamente.

George olhava. Maldição, pensou. Grite, esbraveje; pelo menos isso. Dê-me pontapés, faça qualquercoisa.

Gostaria, apenas, de não se sentir tão solitário em sua ira. Não queria ser o único a acumularressentimento, não ser o único a morrer de uma morte lenta.

Tinha sido mais fácil durante aquelas primeiras semanas em que o Universo estivera limitado a umareduzida concha de luz vaga e sons abafados. Tinha sido melhor antes do aparecimento de Omani,que o fizera voltar a uma vida que não valia a pena ser vivida.

Omani! Ele era velho! Teria pelo menos trinta anos.

Será que também eu estarei assim aos trinta? Será que vou ficar assim dentro de doze anos?

E por temer que assim fôsse, gritou para Omani:

- Quer fazer o favor de parar de ler êsse livro idiota? !

Omani virou uma página e leu mais algumas palavras, levantando depois a sua cabeça recoberta porcabelos muito crespos.

- O quê? - perguntou.

- De que lhe adianta ler o livro? - deu um passo à frente, bufando. - Mais eletrônica! - exclamou,arrancando o livro das mãos de Omani.

Ornani ergueu-se lentamente e pegou o livro. Alisou uma página amarrotada, sem demonstrarrancor.

- Pode chamá-Io de necessidade de satisfazer a curiosidade. Compreendo um pouco mais do assuntohoje, e talvez ainda um pouco mais amanhã. Isso não deixa de ser uma vitória.

- Uma vitória! Que espécie de vitória? É isso . que lhe dá prazer na vida? O fato de conseguir sabero suficiente para ser um quarto de técnico eletrônico registrado quando chegar aos sessenta e cincoanos?

- Talvez isso aconteça quando eu tiver trinta e cinco.

- E aí, quem é que vai querê-lo? Quem o empregará? Para onde irá você?

- Ninguém, ninguém. Para lugar algum. Vou ficar por aqui e ler outros livros.

- E isso o satisfaz? Diga-me! Você me forçou assistir às aulas. Você me fez ler e memorizartambém. Para quê? Nada disso me satisfaz.

- Que é que lhe adianta negar satisfação a si próprio?

- Significa apenas que eu não vou mais continuar com a farsa. Vou fazer conforme planejei desde ocomêço, antes que você me demova amavelmente. Vou forçá-los a ... a ...

Omani largou o livro. Esperou que o outro despejasse toda a torrente de palavras e então perguntou:

- Forçá-los a quê, George?

- A reparar uma injustiça. A recolocar as coisas em seus devidos lugares. Vou pegar aquele Antonellie forçá-lo a admitir que êle. . . êle ...

Omani sacudiu a cabeça.

- Todos que vêm para cá insistem que se trata de um engano. Eu pensava que você já tivesseultrapassado essa fase.

- Não chame a isso de fase! - protestou George violentamente. - No meu caso é um fato. Eu já lhedisse...

- Você me disse, mas bem lá no fundo do seu coração você sabe que ninguém cometeu qualquererro no seu caso.

- Só porque ninguém vai admiti-Ia? Você por acaso acha que algum deles seria capaz de admitir umengano, a menos que fosse forçado a fazê-lo? Pois bem, eu vou obrigá-los a isso!

Era maio que perturbava George; era o mês das Olimpíadas. Sentia voltar o velho ardor que nãoconseguia reprimir. E nem queria. me correra o perigo do esquecimento.

- Eu seria um programador de computadores. Sei que

posso ser um. Eu poderia já sê-Ia hoje, apesar do que êles

dizem ter descoberto pelas análises. - George socava o col-

chão. - Bles estão errados! Bles têm que estar errados.

- Os analistas nunca se enganam.

- :E:les têm que estar enganados! Você duvida da minha

inteligência?

- A inteligência não tem nada: que ver com o caso. Já

não lhe explicaram isso várias vêzes? Será que não é capaz de

compreender?

I George virou e ficou deitado de costas, olhando melancõ-

licamente para o teto.

- O que era que você pretendia ser, Hali?

- Eu não tinha planos definidos. Acho que gostaria de

te~ me especializado em cultivo de plantas aquáticas.

- Você se achava capaz de fazê-Ia?

- Eu não tinha certeza.

George, até então, jamais fizera a Omani perguntas de

_ cárãter pessoal. Parecia-lhe estranho, até mesmo pouco natu-

. ral, que outras pessoas com ambições pudessem ter acabado

ali. Cultivador de plantas aquáticas!

- E você imaginou que acabaria assim?

- Não. Mas ainda assim estou aqui.

- E está satisfeito. Realmente satisfeito. Você está feliz.

Você adora isto aqui. Não desejaria estar em qualquer outro

lugar.

Omani pôs-se de pé, lentamente, e começou ª desfazer

cuídadosamente a cama •

"-.ro,.

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.;

. 14

1

- George, - disse êle - você é dur~' mesmo: Está se

consumindo por não aceitar os fatos como êles são. Você está

~~ aqui no que você chama a "Casa", mas eu nunca o ouvi

pronunciar o nome completo. Diga-o, George, diga-o. E en-

tão vá para a cama e trate de dormir e esquecer.

George rilhou os dentes e mostrou-os.

- Não! - exclamou em voz abafada.

- Então eu vou fazê-lo - declarou Omani, e assim o Iêz,

Pronunciou claramente o nome, sílaba por sílaba.

George sentiu uma vergonha amarga ao ouvi-lo, Virou o

rosto para o outro lado.

Durante grande parte de seus dezoito anos de vida,

George Platen demonstrara somente um objetivo: a profissão

de programador registrado de computadores. Em seu grupo

havia os que cogitavam de espaçonãutíca, técnica de refrige-

ração, contrôle de transportes e até mesmo administração.

Mas George tinha o seu ponto de vista irredutível.

Apresentava méritos tão válidos quanto qualquer um dê-

les, e por que não? O Dia da Instrução se aproximava, sendo

o fato mais importante de suas existências. Aproximava-se pau-

latinamente, tão fixo e certo quanto o calendário: o primeiro

dia de novembro do ano em que qualquer dêles completasse

dezoito anos.

Depois dêsse dia, haveria outros assuntos para ser deba-

tidos. Poderiam discutir uns com outros algum detalhe da

profissão, ou as virtudes da espôsa e dos filhos de alguém, a

situação do time de pólo espacial, ou ainda as experiências de

alguém nas Olimpíadas. Entretanto, antes do Dia da Instrução,

havia um único assunto concentrando os interêsses gerais: era

o Dia da Instrução.

- Que é que você pretende ser? Acha que vai conse-

guir? Diacho, isso não serve. Olhe só os dados; houve cortes

na cota. Agora quanto à logís tica .• '.~

Ou então a hipermecânica... Ou ainda as comunica-

ções .•. Ou os estudos em gravitação.

15

Aliás, especialmente êstes últimos. No período que prece-

deu o Dia da Instrução de George, todo mundo vinha falando

sôbre os estudos gravitacionais e isso em virtude do aperfei-

çoamento do motor de potência gravitacional. Dizia-se que

qualquer um dos mundos localizados num raio de dez anos-

luz de uma estrela anã daria tudo por um engenheiro regis-

trado em gravitação.

:Bste fato jamais preocupou George. Evidentemente seria

a verdade. Mas George ouvira também comentários referen-

tes à técnica recentemente desenvolvida. Racionalização e sim-

plificação sucediam-se constantemente. Novos modelos surgiam

a cada ano; novos tipos de motores gravitacionais; novos

princípios. E assim todos êsses cavalheiros especializados se

veriam logo obsoletos e substituídos por novos modelos com

formação mais recente. O primeiro grupo teria então que se,

resignar com trabalho não especializado, ou então partir para

algum mundo distante ainda não desenvolvido a tal ponto.

Quanto a programadores de computador, êsses sempre

foram requisitados, ano após ano, século após século. A de-

manda nunca atingia limites máximos e também nunca havia

uma corrida louca à sua procura; entretanto a demanda crescia

paulatinamente com o desenvolvimento de novos mundos e à

medida que os mais antigos se tomavam mais complexos.

Ele discutia constantemente o assunto com Stubby Tre-

velyan. Como bons amigos, suas discussões eram obrigatórias

e ferozes, sendo que, evidentemente, nenhum dos dois con-

seguia convencer o outro ou ser convencido.

Trevelyan, porém, tinha um pai que era metalúrgico

registrado e que trabalhara num dos mundos exteriores, e

um avô que também fôra metalúrgico registrado. :Ble mesmo

tencionava seguir a mesma especialidade, quase que como se

isso íôsse um caso de direito familiar, estando firmemente

convencido de que qualquer outra profissão seria sempre me-

nos respeitável.

- Sempre haverá metal - dizia êle - e a moldagem de

ligas de acôrdo com especificações e a espera do desenvolvi-

mento das estruturas constituem uma façanha. E um progra-

16

..

mador o que ficará fazendo? Quedará sentado junto a um

codificador, durante o dia inteiro, fornecendo dados a alguma

máquina cretina com quilômetros de extensão.

Já aos dezesseis anos, George aprendera a ser prático.

Limitava-se a dizer nessas ocasiões:

- Haverá um milhão de metalúrgicos como você.

- É porque é bom ser metalúrgico. É uma boa profis-

são. A melhor de tôdas,

- Mas há muita gente, Stubby. Você poderá acabar lá

bem no fim da fila. Qualquer mundo tem condições de instrnir

seus próprios metalúrgicos, e o mercado para os modelos

terrestres aperfeiçoados não é tão grande assim. E são princi-

palmente os pequenos mundos que os procuram. Você sabe

qual é a percentagem de metalúrgicos registrados que são de-

signados para mundos de categoria A? Pois eu verifiquei. São

apenas 13,3 por cento. Isso quer dizer que você terá sete

chances em oito de dar com os costados em algum mundo

que não terá maiores aperfeiçoamentos que água corrente. É

possível até que fique atolado aqui na Terra, isso em 2,3 por

cento de possibilidades.

- Não é tão terrível assim ficar na Terra - replicou

Trevelyan raivoso. - A Terra também precisa de técnicos, e

dos bons. - Seu avô tinha sido um metalúrgico que permane-

cera na Terra. Trevelyan levou o dedo ao lábio superior,

afagando um bigode ainda inexistente.

George sabia a respeito do avô de Trevelyan e, conside-

rando a situação dos seus próprios antepassados, evitou zom-

bar do outro. Disse então diplomàticamente:

- É claro que isso não constitui nenhuma desgraça inte-

lectual. Mas é bom ir para um mundo categoria A, não é

mesmo?

- Veja só o caso dos programadores. Somente mundos

categoria A têm necessidade do tipo de computadores que

realmente utilizam programadores de primeira qualidade e

assim são êles os únicos existentes no mercado. Além do mais,

as instruções para programador são complicadas e poucos se

ajustam. Eles precisam de mais programadores do que suas

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1

próprias populações são capazes de fornecer. Trata-se de da-

dos estatísticos claros: existe aproximadamente um progra-

mador de primeira classe em um milhão. Digamos que um

mundo tenha uma população de dez milhões e que precise de

vinte programadores. Nesse caso, êles são obrigados a vir à

Terra em busca de cinco a quinze programadores. Certo?

- E você sabe quantos programadores registrados foram

para planêtas de categoria A no ano passado? Pois eu vou lhe

dizer. Todos êles. Se você é um programador, isso já significa

automàticamente que você é um homem escolhido. Isso

mesmo.

Trevelyan ficou carrancudo.

- Se apenas um em cada milhão é capaz de conseguí-lo,

como é que você pode ter certeza que é capaz disso?

- Eu vou conseguir - afirmou George cautelosamente. I

Êle jamais ousara dizer a qualquer pessoa, nem a Tre-

velyan, nem mesmo a seus pais, o que estava fazendo para

estar tão confiante assim. Mas êle não estava preocupado.

Estava simplesmente confiante (essa seria a pior das lembran-

ças nos dias de desespêro que se seguiriam). Estava tão confi-

ante e calmo como qualquer menino de oito anos diante da

aproximação do seu Dia da Leitura - a pré-estréia infantil do

Dia da Instrução.

Evidentemente, o Dia da Leitura fôra bem diferente. Em

parte por causa da infância. Um menino de oito anos é capaz

. de aceitar com naturalidade inúmeras coisas. Num dia não

sabe ler e no dia seguinte já sabe. Simplesmente assim. Com

a mesma naturalidade como aceita o brilho diário do Sol.

Além do mais, disso não dependiam muitas coisas. Não

havia recruta dores à espera, acotovelando-se para ver os resul-

tados das Olimpíadas. Um menino ou uma menina que passa

pelo Dia da Leitura é apenas alguém que tem diante de si

mais dez anos de vida apagada sôbre a superfície da Terra;

apenas alguém que volta ao seio da família de posse de uma

nova habilidade.

18

;

Por ocasião do Dia da Instrução, dez anos mais tarde,

George não teria certeza nem mesmo da maioria dos fatos do

seu próprio Dia da Leitura.

A lembrança mais clara era de que fôra um dia sombrio de

setembro, em que caía uma chuva fina (setembro para Dia da

Leitura; novembro para Dia da Instrução; maio para as

Olimpíadas. Havia até versinhos sôbre isso). George se vestira

com as luzes acesas, com seus pais mais excitados do que êle

próprio. Seu pai era um encanador registrado, trabalhando

na Terra. Para êle êsse fato sempre constituíra motivo de humi-

lhação, se bem que, evidentemente, grande parte de cada

•• 1- geração teria que ficar na Terra, coisa fàcilmente com-

preensível.

Era preciso que na Terra houvesse fazendeiros, mineiros

e mesmo técnicos. Somente as profissões mais especializadas

e modernas eram requisitadas pelos outros mundos, e dos

oito bilhões da população terrestre apenas alguns milhões por

ano poderiam ser exportados. Evidentemente era impossível

que todos os homens e mulhere fôssem incluídos nesse

grupo.

Entretanto, cada homem ou mulher poderia almejar que

ao menos um de seus filhos fôsse um dêles, e Platen, pai,

certamente não constituía exceção à regra. Para êleera óbvio

(assim como para os outros) que George era notàvelmente

inteligente e rápido de raciocínio. :ele deveria sair-se bem já

que era seu filho único. Se George não acabasse num mundo

exterior, êles teriam que esperar pelos netos até outra oportu-

nidade e isso só poderia acontecer num futuro demasiado

distante para que servisse de consôlo.

O Dia da Leitura não provaria evidentemente grande

coisa, mas seria a única indicação que teriam até a chegada

do grande dia. Cada pai da Terra estaria ouvindo, prestando

atenção à qualidade de leitura de seu filho quando êsse voltasse

para casa; procurando detectar um fluir fácil de palavras que

pudesse indicar esperanças futuras. Era bem pequeno o número

de famílias que não tivessem um parente que, do Dia da

Leitura em diante, se transformasse em objeto de grandes

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esperanças, em virtude da habilidade com que manejava os

têrmos trissílabos.

George percebia vagamente a causa da tensão de seus

pais, e se havia qualquer ansiedade em seu jovem coração,

naquela manhã chuvosa, seria apenas em virtude do temor de

que a expressão esperançosa de seu pai se desfizesse quan-

do êle voltasse para casa com a sua leitura.

As crianças se encontravam numa grande sala de reuniões

do Palácio da Educação da cidade. Por tôda a Terra, em

milhões de locais semelhantes, durante aquêle mês, grupos de

crianças estariam se reunindo. George sentia-se deprimido pe•

Ia escuridão da sala e pela presença das outras crianças,

tensas e duras, ataviadas numa elegância não costumeira.

Automàticamente, George fêz como os demais. Procurou o

pequeno grupo representado pelas crianças de seu andar do

edifício e juntou-se a elas.

Trevelyan, que morava na porta ao lado, ainda usava

seus cabelos infantilmente longos e estava então anos distan-

te das costeletas e do b.ode ralo que deixaria crescer assim

que estivesse fisiolõgícamente apto para tal.

Trevelyan (que nessa época chamava George de "Joji")

disse ao vê-lo:

- Aposto que está com mêdo.

- Estou nada - protestou George. Em seguida confi-

denciou: - O meu pessoal colou um trecho impresso no ar-

mário do meu quarto e quando eu voltar vou ler para êles.

(Sua principal preocupação naquele momento era o fato de

não saber onde colocar as mãos. Tinha sido prevenido para

não coçar a cabeça, esfregar as orelhas, mexer no nariz ou

meter as mãos nos bolsos. Com isso ficavam eliminadas qua-

se tôdas as possibilidades.)

Trevelyan meteu suas mãos nos bolsos, dizendo:

- Meu pai não está preocupado.

O pai de Trevelyan servira como metalúrgico em Dipó.

ria, durante quase sete anos, fato que lhe concedia uma certa

superioridade social na vizinhança, apesar de estar aposen-

tado e ter voltado para a Terra.

20

A Terra desencorajava os reimigrantes por causa dos

problemas populacionais, mas ainda assim alguns voltavam. O

custo de vida era mais baixo na Terra e aquilo que seria

uma anuidade insignificante, em Dipória constituía uma renda

confortável na Terra. Além disso havia sempre homens que

tinham maior satisfação de exibir seu sucesso perante amigos

e cenas de sua infância do que diante de todo o resto do

Universo.

Trevelyan pai explicara também que se tivesse perma-

necido em Dipória o mesmo sucederia com seus filhos, e

Dipória era um mundo fora das rotas. De volta à Terra, seus

filhos poderiam acabar em qualquer lugar, até mesmo em

Nóvia.

Stubby se agarrara a êsse dado desde cedo. Mesmo antes

do Dia da Leitura, suas conversas baseavam-se na admissão

pacífica de que em última análise seu destino seria Nóvia.

George, oprimido pela idéia da grandeza futura do outro,

emcontraste com a sua pequenez, era imediatamente leva-

do a um protesto belicoso:

- Meu pai também não está preocupado. Ble só quer

me ouvir lendo porque sabe que vou me sair bem. Acho que

seu pai não vai querer ouvir você logo, porque sabe que você

vai fazer tudo errado.

- Não vou fazer nada errado. E além do mais a leitura

não é nada. Em N óvia, vou contratar gente para ler para

mim.

- Porque você não vai saber ler sozinho, porque é burro.

- Ah, é? E como é que eu vou estar em Nóvia?

E então George fêz a pergunta decisiva:

- b quem foi que disse que você vai para Nóvia? Aposto

que você nao vai a lugar algum.

Stubby Trevelyan ficou vermelho.

- Eu não vou é ser encanador, como o seu pai.

- Trate de engolir isso, seu idiota!

- Você que engula!

Estavam em pé, com os narizes quase se tocando, não

querendo bngar, mas na realidade aliviados por ter algo a

21

fazer nesse lugar estranho. Além do mais, agora que George

crispara os punhos, levando-os diante de seu rosto, o proble-

ma do que fazer com as mãos estava resolvido, pelo menos

temporàriamente. As demais crianças agruparam-se a seu re-

dor, excitadas. Mas tudo isso foi interrompido pela voz de

uma mulher, soando alto através do sistema de alto-falantes.

Fêz-se um silêncio instantâneo. George deixou cair os punhos e

esqueceu Trevelyan.

- Crianças - dizia a voz. - Vamos chamá-los um a um

pelos seus nomes. À medida que cada criança fôr chamada,

êle ou ela deverá dirigir-se a um dos homens que estão posta-

dos junto às paredes. Vocês os estão vendo? Eles vestem uni-

formes vermelhos para que sejam fàcilmente identificados. As

meninas irão para a direita. Os meninos para a esquerda.

Agora olhem a seu redor e vejam qual dos homens de verme-

lho está mais próximo de vocês ...

George encontrou o seu homem imediatamente e ficou

aguardando até que seu nome fôsse chamado. Até então não

tinha sido apresentado às sofisticações alfabéticas e o tempo

decorrido até que seu nome fôsse alcançado o deixou pertur-

bado.

A multidão de crianças ia diminuindo; assemelhavam-se a

pequenos riachos fluindo na direção de cada um dos guias

de vermelho. '{

Quando o nome de George Platen foi finalmente cha-,

mado, seu sentimento de alívio só foi superado pelo de pura

alegria ao verificar que Stubby Trevelyan ainda continuava no

lugar, sem ter sido chamado.

Ao sair, George ainda gritou por cima do ombro:

0'1 _ Ei, Stubby, quem sabe êles não querem você!

. O momento de alegria logo o abandonou. Foi conduzido

para uma fila e depois, através de corredores, em companhia

de crianças estranhas. Todos se entreolhavam, os olhos ar-

regalados e preocupados, mas sem conversas, exceto algumas

exclamações esporádicas como: "não empurra!", ou "olhe

por onde anda!".

22

I

""

Foram-lhes entregues pequenas tiras de papel com instru-

ções para que as conservassem em seu poder. George olhou

curioso para a sua. Continha pequenos sinais negros, de for-

matos variados. Sabia que aquilo eram letras, mas como é

que alguém podia formar palavras com elas? Não era capaz

de imaginá-lo.

Disseram-lhe que se despisse; a êle e a outros quatro

meninos que haviam ficado em sua companhia. Tôdas as rou-

pas novas foram tiradas e os meninos de oito anos ficaram ali

em pé, pequenos e nus, tremendo mais de embaraço do que

de frio. Entraram médicos que os examinaram, verificando,

testando com estranhos instrumentos, espetando-os para reti-

rar sangue. Cada um dêles pegava os cartões, fazendo nos

mesmos sinais adicionais, usando para isso pequenos bastões

prêtos. Os sinais surgiam arrumados e com grande velocidade.

George ficou olhando para os novos sinais, mas êles não eram

mais compreensíveis do que os anteriores. Disseram então às

crianças que voltassem a se vestir.

Sentaram-se então em pequenas cadeiras separadas e

voltaram a esperar. Novamente foram chamados pelos no-

mes, e "George Platen" veio em terceiro lugar.

Dirigiu-se, então, para uma sala ampla, cheia de instru-

mentos assustadores, com botões e painéis de vidro diante

dêles. Havia uma mesa bem no meio e, atrás dela, um ho-

mem sentado, com os olhos sôbre os papéis empilhados diante

de si.

- George Platen? - indagou êle.

- Sim senhor - confirmou George num sussurro trêmu-

lo. Tôda aquela espera e as idas e vindas o haviam tornado

nervoso. Desejava que aquilo tudo estivesse logo terminado.

- Sou o Dr. Lloyed, George. Como vai você?

O médico não o olhava, enquanto falava. Era como se êle

tivesse dito essas palavras tantas vêzes que não precisasse

mais olhar ao fazê-lo.

- Vou bem.

- Está com mêdo, George?

23

- N ... não senhor - balbuciou George, e sua voz soou

assustada até mesmo a seus próprios ouvidos.

- Isto é bom - disse o médico - porque não há nada a

temer, sabe? Vamos ver, George. Aqui no seu cartão diz

que seu pai se chama Peter e que êle é encanador registrado e

também que sua mãe se chama Amy e que ela é uma especi-

alista doméstica registrada. Isto confere?

- S ... sim, senhor.

- Seu aniversário é no dia 13 de fevereiro e você teve

uma infecção no ouvido há mais ou menos um ano. Certo?

- Sim senhor.

- Sabe como é que eu sei de tôdas essas coisas?

- Acho que estão aí no cartão, não é?

- Isso mesmo. - O médico olhou para George pela

primeira vez e sorriu. Mostrou dentes certos e ao fazê-lo pare-

ceu mais jovem do que o pai de George. Um pouco do nervo-

sismo de George desfez-se.

Então o médico entregou o cartão a George.

- Sabe o que querem dizer tôdas essas coisas aí?

perguntou.

Se bem que George não soubesse, ficou espantado pelo

súbito pedido de olhar para o cartão como se êle pudesse

entendê-Io por meio de algum súbito golpe do destino. Mas

havia ali apenas sinais, como antes, e êle devolveu o cartão.

- Não senhor.

- Por que não?

George sentiu uma súbita desconfiança quanto à sanidade

do médico. Não saberia êle a razão?

- Eu não sei ler.

- E gostaria de saber?

- Sim, senhor.

- Por que, George?

O menino ficou olhando, apavorado. Nunca alguém lhe

havia feito tal pergunta. :E:1e não sabia o que responder.

- Não sei - disse por fim, vacilante.

- As informações impressas o guiarão por tôda a vida.

24

I

]

Haverá muita coisa a aprender, mesmo depois do Dia da

Instrução. Cartões como êste lhe dirão. Livros lhe dirão. Telas

de televisão lhe dirão. As palavras escritas lhe dirão coisas tão

úteis e interessantes que não saber ler seria tão ruim quanto

não saber ver. Você me entende?

- Sim, senhor.

- Está com mêdo, George?

- Não senhor.

- Bem. Agora vou lhe dizer exatamente o que vamos

fazer inicialmente. Vou colocar êstes fios em sua testa, bem

acima dos cantos de seus olhos. :Bles ficarão presos aí, mas

não vão doer nada. Depois ligarei algo que vai fazer um

zumbido. O som será engraçado e talvez lhe dê cócegas, mas

não vai doer. Se por acaso doer, você dirá e eu desligo tudo

imediatamente. Mas não vai doer. Está bem?

George anuiu e engoliu em sêco.

- Está pronto?

George confirmou. Fechou os olhos enquanto o médico

se agitava, Seus pais lhe haviam explicado. Também êles lhe

tinham dito que não doeria, mas sempre havia as outras

crianças. Havia os de dez e doze anos que amedrontavam os

de oito antes do Dia da Leitura: • 'Cuidado com a agulha".

Havia ainda aquêles que chamavam um menino de lado e lhe

diziam, confidencialmente: ":Bles têm que cortar sua cabeça

para abrir. Usam uma faca afiada com um gancho enorme na

ponta" - e outros detalhes aterradores.

George nunca acreditara, realmente, mas tivera pesade-

los e agora, de olhos fechados, o terror o invadia.

Não sentia os fios nas têmporas. O zumbido era distante e

ouvia o som do seu próprio sangue latejando em seus ouvi-

dos, um som ÔCO, como se estivesse numa caverna grande.

Lentamente arriscou a abrir os olhos.

O médico lhe dava as costas. De um dos instrumentos

desenrolava-se uma tira de papel, coberta com uma linha on-

dulante, fina e escarlate. O médico arrancou uns pedaços e

colocou-os na abertura de outra máquina. Repetiu a operação

25

diversas vêzes. A cada vez um pequeno pedaço de fita saía, e o

médico o examinava. Finalmente, voltou-se para George com

uma expressão estranha e a testa enrugada.

10 zumbido cessou.

- Acabou? - perguntou George aflito.

- Sim - confirmou o médico, ainda com o cenho

cerrado.

- Já sei ler agora? - perguntou George. Não percebia.

qualquer diferença.

- O quê? - perguntou o médico, e então sorriu súbita e

ligeiramente. - Vai tudo muito bem, George. Dentro de

quinze minutos você estará lendo. Agora vamos usar outra'

máquina e desta vez vai demorar um pouco mais. Vou cobrir;

tôda a sua cabeça e quando eu ligá-Ia você não poderá ver ou'

ouvir nada por um instante, mas não vai doer. Só para tran-

quilízâ-lo vou lhe dar um interruptor para que você o segure

em sua mão. Se sentir qualquer coisa, aperte o botãozinho e

tudo será desligado. Está bem assim ?

Anos depois, diriam a George que o interruptor não pas-

sava de tapeação. Era dado apenas para incutir confiança.

Mas êle nunca verificou isso, pois não chegou a apertar o

botão.

Sua cabeça foi recoberta por um capacete grande, de

curvatura suave e revestido internamente com material es-

ponjoso. Havia três ou quatro pequenos nós que pareciam

apertar seu crânio, mas a pressão era ligeira e desaparecia.

Não havia dor.

- Tudo bem, George? - indagou a voz do médico,

parecendo distante.

E então, sem qualquer aviso, uma camada de fêltro gros-

so caiu sôbre êle. Sentia-se como que separado do seu corpo,

sem qualquer sensação, sem universo, apenas êle próprio e

um murmúrio distante na fímbria do nada, parecendo dizer-

lhe algo, dizer-lhe ... dizer-lhe ...

:ele se esforçou por ouvir e entender, mas havia todo

aquêle fêltro grosso entre êle e o som.

26

r

Então o capacete foi retirado de sua cabeça e a luz lhe

pareceu tão brilhante que chegou a ferir seus olhos, enquanto

a voz do médico martelava em seus ouvidos.

- Aqui está seu cartão, George. O que é que diz aí?

George olhou para o cartão mais uma vez e soltou um

grito estrangulado. Os sinais não eram mais simples sinais.

Eles constituíam palavras. Eram palavras tão claras como se

alguém as estivesse sussurrando a seus ouvidos. Ele como

que podia ouvi-Ias sussurradas, enquanto olhava-as.

- O que diz aí, George?

- Diz. .. diz... "Platen, George. Nascido em 13 de

fevereiro de 6492, filho de Peter e Amy Platen, em"... -

Interrompeu a leitura.

- Você já sabe ler, George - disse o médico. - Aca-

bou.

- Para sempre? Eu não vou esquecer mais?

- Claro que não. - O médico inclinou-se para diante e

apertou sua mão gravemente. - Agora você será levado para

casa.

Passaram-se dias até que George se habituasse à sua nova

habilidade. Lia para seu pai com tal facilidade que o velho

Platen chorava e chamava os parentes para lhes contar a boa

nova.

George andava pela cidade lendo tudo o que encontrava

escrito e imaginando como até então tudo aquilo não fizera

qualquer sentido para êle,

Tentava recordar a sensação de não ser capaz de ler,

mas não conseguia. Parecia-lhe que sempre soubera fazê-lo,

Sempre.

Aos dezoito anos, George era bastante moreno, de esta-

tura mediana, parecendo mais alto em virtude de sua magre-

za. Trevelyan, uns dois centímetros mais baixo, era atarraca-

do, o que justificava o apelido de "Stubby". Naquele último

ano, porém, tornara-se agastado. O apelido não mais podia ser

usado sem protestos de sua parte. E considerando que êle

gostava menos ainda do seu prenome, acabava sendo chama-

27

do de Trevelyan ou qualquer variante decente do mesmo.

Como que para reafirmar sua masculinidade, deixara crescer

com insistência costeletas e um bigode espetado.

Agora suava e estava nervoso. E George, que crescera o

suficiente para deixar de ser "Joji", divertia-se muito com o

fato.

Encontravam-se na mesma sala onde haviam estado dez

anos antes (e não mais desde então). Era como se um vago

sonho do passado tivesse subitamente tornado à realidade.

Nos primeiros minutos, George ficou francamente surprêso

por achar tudo menor do que ficara gravado em sua memó-

ria; então levou tudo à conta do seu próprio crescimento.

O número de presentes era menor do que na época de

sua infância. E só havia homens. As môças tinham um dia

próprio.

Trevelyan inclinou-se para dizer:

- Essa espera acaba comigo.

- É a burocracia - retrucou George. - Não há como

evitar.

- Como é que você consegue ser tão tolerante com tudo

isso?

- Não tenho com que me preocupar.

- Você me dá nojo, meu chapa. Espero que acabe como

espalhador de estrume só para eu poder olhar para sua

cara, enquanto faz o serviço. - Seus olhos sombrios percorri-

am os presentes ansiosamente.

George também olhou ao redor. Não era exatamente o

mesmo esquema utilizado com as crianças. As etapas eram

mais lentas e as instruções tinham sido fornecidas por escrito.

(Uma vantagem sôbre os não leitores.) Os nomes Platen e

Trevelyan estavam impressos em letras de fôrma, e agora êles

eram capazes de lê-los.

Jovens saíam das salas de instrução com expressões preo-

cupadas, recolhiam suas roupas e pertences e então rumavam

para a análise, onde seriam informados dos resultados.

Cada um, ao sair, era rodeado pelos restantes do grupo

agora cada vez menor.

28

- Como foi? Que tal é? Que é que você acha que con-

seguiu? Você está se sentindo diferente?

As respostas dadas eram vagas e reservadas.

George fêz um esíôrço para manter-se afastado dos gru-

pinhos. Isso apenas serviria para aumentar a sua pressão

sanguínea. Todos eram unânimes em afirmar que as melhores

chances estariam com os que permanecessem calmos. Mes-

mo assim, a pessoa sentia as palmas das mãos ficarem frias.

Era engraçado acompanhar o aparecimento de novas tensões

com o passar dos anos.

Por exemplo, os profissionais altamente especializados,

com destino a um mundo exterior, deveriam ser acompanha-

dos de mulher (ou marido). Era importante a manutenção do

equilíbrio entre os sexos em todos os mundos. E se você.

estivesse indo para um mundo categoria A, que garôta seria

capaz de recusá-Io? George ainda não tinha em mente qual-

quer garôta especial; não desejava nenhuma delas. Pelo menos

não por enquanto. Quando já fôsse programador, quando

acrescentasse ao seu nome o título de programador registrado

de computadores, procederia, então, à sua escolha, como

um sultão num harém. A idéia excitava-o e êle procurou afastá-

Ia. Era preciso conservar a calma .

., - De que se trata afinal? - resmungou Trevelyan. -

Primeiro êles previnem que tudo funciona melhor se a gente

estiver descontraído e à vontade. Depois fazem a gente passar

por isso, o que toma impossível manter-se calmo e à vontade.

- Talvez sela de propósito. Para comêço de conversa,

êles estão separando os meninos dos homens. Calma, Trev.

- Cale a bôca.

Chegara a vez de George. Seu nome não foi chamado e

sim apareceu em letras luminosas no quadro de avisos.

Ble acenou para Trevelyan.

- Calma. Não se impressione.

Ao entrar na sala de exames sentia-se feliz. Realmente

feliz.

29

- George Platen? - perguntou o homem por trás da

escrivaninha.

Por um instante fugaz surgiu na mente de George a

imagem nítida de um outro homem, que, dez anos antes, lhe

fizera a mesma pergunta, e pareceu-lhe que fôsse o mesmo

homem e êle, George, tivesse retrocedido aos oito anos ao

atravessar o limiar da porta.

Mas então o homem ergueu o rosto e êste evidentemente

não tinha nada a ver com a imagem que invadira subitamen-

te suas recordações. Seu nariz parecia inchado, o cabelo fino

e espetado e o queixo pendia como se seu dono tivesse

emagrecido muito recentemente.

O homem parecia impaciente:

- E então? - indagou.

George voltou à Terra.

- Eu sou George Platen, senhor.

- Então por que não diz? Eu sou o Dr. Zachary Anto-

nelli e iremos nos conhecer intimamente dentro de instantes.

:E:le passou a examinar pequenas tiras de filmes, se-

gurando-as contra a luz.

George sentiu-se estremecer por dentro. Lembrou-se va-

i gamente daquele outro médico (cujo nome esquecera) olhando

, para um filme dêsses. Seria o mesmo? O outro franzira o

sobrolho na ocasião e êste o olhava agora como se estivesse

zangado.

Sua felicidade então pràticamente desapareceu.

O Dr. Antonelli espalhou o conteúdo de uma pasta volu-

mosa diante de si, colocando os filmes cuidadosamente de lado.

- Aqui consta que você deseja ser programador de com-

putadores.

- Isso mesmo, doutor.

- Ainda continua com o mesmo propósito?

- Sim senhor.

- Trata-se de um cargo difícil e de grande responsabili-

dade. Julga-se capaz de preenchê-lo?

- Sim senhor.

30

- A maioria dos rapazes neste estágio não cita qualquer

profissão específica. Creio que temam falhar.

- Acho que é isso mesmo.

- E você não tem mêdo?

- Acho melhor ser sincero.

O Dr. Antonelli anuiu, mas sem qualquer alteração vi-

sível em sua expressão.

- Por que é que deseja ser programador?

- Conforme o senhor mesmo disse, trata-se de um car-

go difícil e de responsabilidade. É um trabalho importante e

emocionante. Eu gosto dêle e me considero capaz de Iazê-lo,

O Dr. Antonelli deixou de lado os papéis e olhou carran-

cudo para George.

- Como é que você pode saber se gosta do trabalho?

Será porque imagina que o requisitarão para algum planêta

categoria A?

George sentiu um mal-estar. "Ele está tentando embara-

çã-lo. Fique calmo e fale franco", disse para si mesmo.

- Eu acho que um programador tem boas perspectivas,

senhor, mas mesmo se ficasse na Terra eu sei que ainda

assim me agradaria. (Isto é verdade. Eu não estou mentindo,

pensou George.)

- Está bem, mas como pode saber?

O médico fêz a pergunta como quem sabe. que não há

resposta apropriada possível e George quase sorriu. me tinha

a resposta.

- Estive lendo sôbre programação, senhor.

- Você estêve o quê? - Agora o médico parecia franca-

mente surprêso e isso agradou a George.

- Lendo sôbre o assunto. Comprei um livro a respeito e

estive estudando.

- Um livro para programadores registrados?

- Isso mesmo.

- Mas você não seria capaz de compreendê-lo,

- No comêço não. Tenho outros livros sôbre matemática

e eletrônica. Eu aproveitei o máximo. Ainda continuo sem

saber grande coisa, mas sei o suficiente para ter certeza de

31

que gosto do assunto e que sou capaz de fazê-Ia. (Até mesmo

seus pais nunca tinham descoberto o esconderijo secreto de

seus livros, nem imaginavam por que êle passava tanto tempo

em seu quarto ou ainda onde empregava as horas roubadas

ao sono.)

O médico puxou a pele flácida que pendia sob o seu

queixo.

- O que tinha em mente ao fazer tal coisa, meu filho?

- Queria ter certeza de que o assunto me interessava.

- Certamente deve saber que apenas interessar-se não

significa grande coisa. Você poderia sentir-se totalmente absor-

vido por um assunto mas se o esquema físico do seu cérebro

o dirigir mais eficientemente em outro sentido, você será outra

coisa. Você sabe disso, não sabe?

- Foi o que me disseram - confirmou George, cautelo-

so.

- Pois pode acreditar, que é a verdade.

George não disse nada.

O Dr. Antonelli prosseguiu:

- Ou será que acredita que o fato de estudar um deter-

minado assunto é capaz de orientar as suas células nessa

direção, como no caso daquela teoria segundo a qual se uma

mulher grávida ouvir música erudita persistentemente será o

bastante para que seu filho nasça um compositor? Você acre-

dita nisso?

George enrubesceu. Certamente tal idéia já lhe passara

pela cabeça. Imaginara que forçando o intelecto constante-

mente na direção desejada, teria a certeza de levar uma boa

vantagem. Grande parte de sua confiança alicerçara-se justa-

mente nesse ponto.

- Eu nunca ... - começou, sem saber como terminar. -

- Bem, não é verdade. Meu Deus. Escute aqui, rapaz,

o padrão de seu cérebro é determinado ao nascer. Pode ser

alterado por um golpe suficientemente forte para danificar as

células por rompimento de um vaso sanguíneo, ou um tumor

ou ainda uma infecção de grandes proporções, cada vez, evi-

dentemente, tendendo, para pior. Mas certamente não podem

32

ocorrer alterações por ter determinadas idéias. - Olhou pen-

sativo para George, e perguntou: - Quem foi que lhe disse

para fazer isso?

George, agora francamente perturbado, engoliu em sêco,

respondendo:

- Ninguém, doutor. A idéia é minha mesmo.

- E alguém sabia o que você estava fazendo desde que

começou?

- Ninguém, doutor. Eu não queria fazer nada de mal.

- Quem está falando em fazer mal? Eu diria que foi

inútil. E por que você escondeu isso de todos?

- Imaginei. .. imaginei que ririam de mim. (Lembrou-

se de repente de uma discussão recente com Trevelyan.

George trouxera o assunto à baila, muito vagamente, como se

se tratasse apenas de uma idéia que tivera para ir aprenden-

do alguns detalhes pouco a pouco visando utilizar os conhe-

cimentos oportunamente. Trevelyan o tinha apupado: "Daqui

a pouco você vai querer curtir o couro de seus sapatos

e tecer o tecido de suas camisas", sentira-se então grato à

sua atitude de discrição.)

O Dr. Antonelli largou os pedaços de filme que estivera

examinando detidamente. Então disse:

- Vamos analisá-lo. Isto aqui não está me levando a

conclusão alguma.

Os fios foram ligados às têmporas de George. Seguiu-se

um zumbido. Novamente as lembranças nítidas de dez anos

antes voltaram a assaltá-lo.

As mãos de George estavam úmidas; seu coração batia

forte. Nunca deveria ter falado ao médico sôbre a sua leitura

secreta.

Tinha sido a sua maldita vaidade, pensou. Quisera exi-

bir sua iniciativa, mostrar como era empreendedor. Em vez

disso, porém, mostrara-se supersticioso e ignorante, provo-

cando a hostilidade do médico. (Tinha certeza agora de que o

médico o odiava por se ter mostrado tão espertinho.)

33

E agora chegara a um tal estado de nervos que certa-

mente o analisador não mostraria qualquer resultado que fi-

zesse sentido.

Não percebeu o momento em que os fios foram retirados

de sua cabeça. A visão do médico contemplando-o pensativo

penetrou vagamente em sua consciência e nada mais; não ha-

via mais fios. George fêz um enorme esíôrço para reagir. Pràti-

camente já abrira mão de sua ambição de se tornar progra-

mador. Na espaço de apenas dez minutos, tudo se tinha

desvanecido.

_ Imagino que a resposta seja não - falou George,

tris temente.

- Não o quê?

- Não para programador?

O médico esfregou o nariz, dizendo:

_ Pegue suas roupas e todos os seus pertences e vá

para a sala 15-C. Seus registros estarão aí. O meu relatório

também.

_ Já fui instruído? - indagou George completamente

atônito. - Imaginei que isso íôsse apenas para ...

O Dr. Antonelli baixou os olhos para a sua escrivaninha.

_ Vai receber tôdas as explicações. Faça o que eu disse.

George sentiu-se invadido por um sentimento que lhe

pareceu ser de pânico. O que haveria de tão terrível que não

lhe pudessem dizer? Não serviria para mais nada além de

operário registrado? f:les iriam prepará-lo para isso; ajustá-lo à

situação.

Subitamente teve certeza de que seria isso, e foi preci-

so um esfôrço para não começar a gritar a plenos pulmões.

Voltou à sala de espera. Trevelyan não estava mais lá,

coisa que lhe agradaria se tivesse confiança suficiente quanto

ao ambiente. Na realidade, não havia ali quase ninguém

mais, e os poucos restantes que poderiam lhe fazer perguntas

estavam demasiado cansados pela longa espera devida a

seus nomes começarem pelas últimas letras do alfabeto e

assim não perceberam o olhar de ódio que êle lhes lançara.

34

Que direito tinham êles de ser técnicos, enquanto êle seria

um operário? Operário! f:le tinha certeza!

Foi conduzido por um guia uniformizado de vermelho ao

longo dos corredores movimentados, cheios de salas separa-

das contendo grupos; aqui dois, acolá cinco: os mecânicos de

motores, os engenheiros civis, os agrônomos. .. Havia cente-

nas de profissões especializadas e a maioria delas seria repre-

sentada nesta cidadezinha pelo menos por um ou dois.

me os odiava a todos; os estatísticos, os contadores, os

mais e os menos qualificados. f:le os odiava porque êles agora

possuíam conhecimentos, sabiam o seu destino, enquanto

que êle, ainda vazio, seria obrigado a enfrentar mais buro-

cracia.

Ao chegar à sala 15-C, foi convidado a entrar e deixado a

sós numa sala vazia. Por um breve instante animou-se. Evi-

dentemente se aquela fôsse a sala de classificação dos operá-'

rios, haveria ali dentro dezenas de jovens.

A porta se abriu, dando passagem a um homem de cabe-

los brancos. f:ste sorriu, mostrando uns dentes muito certos,

que obviamente seriam postiços, mas seu rosto mostrava-se

vigoroso e sem rugas. Sua voz era forte.

- Boa tarde, George. Pelo que vejo, o nosso setor só

tem um de vocês desta vez.

- Um só? - perguntou George, confuso.

- É claro que há milhares pela Terra a fora. Milhares.

Você não está só.

George sentia-se exasperado.

- Não compreendo, senhor. Qual é a minha classifica-

ção? O que está acontecendo?

- Calma, filho. Está tudo em ordem. É coisa que pode-

ria acontecer a qualquer um. - O homem estendeu a mão e

George pegou-a mecânicamente. Era quente e apertou a sua

firmemente. - Sente-se, meu filho. Eu.i sou Sam Ellenford.

George balançou a cabeça impacientemente.

- Quero saber o que está acontecendo.

35

- É claro. Para começar, você não poderá ser programa-

dor de computadores, George. Creio que você já compreen-

deu.

- Sim, já imaginei - concordou George amargamente.

O que vou ser, então?

- Este é o aspecto difícil de explicar, George. - Ellen-

ford parou, dizendo então com cuidadosa clareza: - Nada.

- O quê?!

- Nada!

- Mas o que significa isso? Por que não podem me

destinar uma profissão?

- Nestes casos não temos escolha, George. O que deci-

de tudo é a estrutura de sua mente.

George ficou mortalmente pálido. Seus olhos se arrega-

laram .

. - Há algo errado com a minha mente?

- Há algo com ela. Eu diria que no que diz respeito à

classificação profissional ela não está certa.

- Mas por quê?

Ellenford deu de ombros.

- Imagino que você saiba como a Terra organiza o seu

programa educacional, George. Pràticamente cada ser huma-

no é capaz de absorver uma quantidade quase ilimitada de

conhecimentos. Entretanto, cada cérebro individual tem um

esquema que possui maior adequação para receber alguns

tipos de conhecimentos em detrimento de outros. Nós procu-

ramos adequar a mente a conhecimentos da melhor maneira

possível, dentro dos limites da cota de exigência de cada pro-

fissão.

- Eu sei disso - anuiu George.

- Sabe, George. De vez em quando vemo-nos diante de

um jovem cuja mente não está talhada para a absorção de

conhecimentos de qualquer espécie.

- Está querendo dizer que eu não posso ser instruído?

- É exatamente isso o que estou dizendo.

36

37

- Mas isso é maluquice. Eu sou inteligente. Compreen-

do ... - Olhou desesperadamente ao redor, como que à pro-

cura de alguma forma que lhe possibilitasse provar que pos-

suía um cérebro aproveitável.

- Procure não me entender mal - retrucou Ellenford

em tom grave. - Você é inteligente. Quanto a isso não há

dúvida. Você tem até uma inteligência acima da média. Infe-

lizmente isso não tem nada a ver com o fato de a mente ser

capaz ou não de aceitar conhecimentos impostos. Na realida-

de para cá são enviadas justamente as pessoas inteligentes.

- Quer dizer que eu não posso ser nem mesmo operá-

rio registrado? - balbuciou George. Subitamente até mes-

mo isso lhe parecia melhor do que o nada que tinha diante de

si. - O que é preciso saber para ser operário?

- Não subestime a função de operário, meu jovem.

Existem dezenas de subclassificações e cada variedade tem o

seu próprio conteúdo de conhecimento detalhado. Acha, por

acaso, que não é preciso uma habilidade especial para saber

erguer da forma certa um pêso? Além do mais, para os operá-

rios precisamos selecionar não apenas mentes como também

corpos adequados. Você não é o tipo que duraria muito como

operário braçal.

George tinha perfeita consciência do seu físico franzino.

_ Mas eu nunca ouvi falar de ninguém que não tivesse

uma profissão qualquer.

_ Não há muitos assim - concordou Ellenford. - E nós

os protegemos.

_ Protegem. .. - George estava confuso e sentia o

mêdo crescer dentro dêle.

_ Você é um protegido do planêta, George. Desde que

entrou por aquela porta nós estamos encarregados de você -

disse Ellenford sorrindo.

Tinha um sorriso agradável. Aos olhos de George, po-

rém, pareceu um sorriso de propriedade; o sorriso que um

adulto tem para com uma criança desamparada.

_ Está querendo dizer que eu vou ficar numa prisão?

- ~ claro que não. Simplesmente ficará em companhia

de outros como você.

Como você. As palavras soaram qual trovoada aos ouvi-

dos de George.

- Você precisa de cuidados especiais - continuou Ellen-

ford. - Nós cuidaremos de você.

George percebeu, horrorizado, que desatava em lágri-

mas. Ellenford afastou-se para a outra extremidade da sala,

desviando o olhar, pensativo.

George lutou para reprimir o chôro desesperado em solu-

ços e por fim para estrangulá-Ios também. Pensou em seu pai

e sua mãe, em seus amigos, em Trevelyan, em sua própria

vergonha.

- Mas eu aprendi a ler - exclamou subitamente re-

voltado.

- Qualquer um que tenha um cérebro normal é capaz

disso. Nunca encontramos exceções. ~ no estágio atual que as

. exceções surgem. iE mesmo na ocasião em 'que aprendeu a ler,

George, já ficamos preocupados com o esquema de sua men-

te. Já então foram anotadas certas peculiaridades observadas

pelo médico encarregado.

- E vocês não podem tentar instruir-me? Vocês nem se-

quer tentaram. Eu quero me arriscar.

- A lei nos proíbe de fazê-lo, George. (Mas escute, não

vai ser ruim. Vamos explicar as coisas a sua família, de modo

que êles não fiquem magoados. No lugar para onde será

levado, você gozará de privilégios. Vamos dar-lhe livros, e você

poderá aprender o que bem desejar.

- Amostra de conhecimento disponível - falou George

amargurado. - Em doses homeopáticas. E então, quando es-

tiver à morte, vou saber o suficiente para ser menino de reca-

dos da Divisão de Clips para Papéis.

- Acontece que eu sei que você já andou estudando em

livros.

George ficou paralisado. Súbita compreensão o invadiu.

- Então é isso ...

- Isso o quê?

38

- Aquêle tal de Antonelli. Ble está tentando acabar comi-

go,

- Nada disso, George. Você está enganado.

- Não venha com essa conversa. - George estava sen-

do tomado por verdadeira fúria. - Aquêle desgraçado está me

passando a perna porque achou que eu era espertinho demais

para êle. Eu li livros e procurei me adiantar no sentido da

programação. Bem, o que é que querem para ajeitar as

coisas? Dinheiro? Não vão conseguir. Eu vou dar o fora

daqui e quando contar tudo isso ...

George estava gritando.

Ellenford meneou a cabeça e apertou um botão.

Dois homens entraram de mansinho e se postaram um

de cada lado de George. Prenderam-lhe os braços ao longo do

corpo. Um dêles aplicou uma injeção na veia de seu braço

direito e o hipnótico penetrou em sua corrente sanguínea com

efeito quase imediato.

Seus gritos cessaram e a cabeça tombou para a frente.

Seus joelhos cederam e somente os homens a seu lado conse-

guiram mantê-Io ereto em seu sono.

Ocuparam-se de George conforme disseram que fariam;

eram bons para êle e muito gentis, pensou George. Tratavam-

no como êle trataria a um gatinho doente de quem se apiedas-

se.

Disseram-lhe que deveria aprumar-se e procurar interes-

sar-se pela vida; e então lhe disseram que a maioria das

pessoas destinadas àquele lugar apresentava a mesma atitude

de desespêro inicial, da qual acabavam por se libertar.

Ble nem mesmo os ouvia.

O próprio Dr. Ellenford visitou-o para lhe dizer que seus

pais haviam sido avisados de que êle fôra obrigado a se ausen-

tar em missão especial.

- :Bles sabem?.. - indagou George num murmúrio.

- Nós não lhes fornecemos quaisquer detalhes - res-

pondeu Ellenford, procurando tranquilizá-lo,

ni.

No princípio, George recusara-se a comer. Eles então o

alimentaram por via intravenosa. Esconderam dêle objetos

pontiagudos com que pudesse se ferir, e passaram a vigiá-lo

constantemente. Hali Omani tornou-se seu companheiro de

quarto e a sua impassibilidade tinha sôbre êle efeito calmante.

Certo dia, simplesmente por sentir-se desesperadamente

enfadado, George pediu um livro. Omani, que lia constante-

mente, olhou-o, sorrindo. George quase desistiu do pedido só

para não lhe dar essa satisfação. Que importa, pensou por fim.

Não especificou qual o livro que queria, e Omani então

lhe trouxe um de química. Era impresso em tipo grande, com

frases sucintas e muitas ilustrações. Destinava-se a adolescen-

tes. Atirou o livro violentamente contra a parede.

Não passaria nunca disso. Seria um adolescente por tôda

a vida. Um pré-instruído eterno, e para êle teriam que ser

escritos livros especiais. Ficou deitado na cama, imóvel,

olhando para o teto, e, cêrca de uma hora depois, levantou-se

lentamente, pegou o livro e começou a ler.

Levou uma semana para terminar a leitura e então pediu

outro.

_ Quer que leve o primeiro embora? - indagou Oma-

George franziu o sobrolho. Havia coisas naquele livro

que êle não conseguira entender, mas não estava em condições

de coníessã-lo.

Omani o ajudou.

_ Pensando melhor, acho que deve ficar com êle. Os

livros devem ser lidos e relidos.

Foi nesse mesmo dia que êle finalmente aquiesceu ao

pedido de Omani para que percorresse o lugar onde se en-

contrava. Seguiu o nigeriano e examinou tôdas as dependên-

cias com olhadelas furtivas e hostis.

Certamente não se tratava de uma prisão. Não havia

muros, nem portas trancadas, nem guardas. Era, entretanto,

uma prisão já que os seus ocupantes não tinham para onde ir

lá fora.

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De certa forma, consolava-o verificar que havia muitos

outros na mesma situação que êle. Era tão fácil imaginar-se

como sendo o único no mundo tão. . . tão mutilado.

- Quantas pessoas há por aqui? - indagou num

múrmurio.

- Duzentas e cinco, George, e êste não é o único lugar

no gênero no mundo. Há milhares dêles.

Homens olhavam-no à sua passagem, onde quer que fôsse;

no ginásio, nas quadras de tênis, na biblioteca (nunca imagina-

ra que existissem tantos livros; êles estavam literalmente em-

pilhados pelas prateleiras.) Olhavam-no com curiosidade, e êle

lhes retribuía o olhar com selvageria. Pelo menos não eram

melhores do que êle; não lhes adiantava nada examiná-lo como

se fôsse algum objeto raro.

A maioria dêles teria aproximadamente vinte anos.

- O que acontece com os mais velhos? - indagou

George subitamente.

- Este lugar é especializado nos mais jovens - esclare-

ceu Omani. \Então, como que compreendendo a implicação

subjacente na pergunta de George que antes não percebera,

balançou a cabeça, dizendo: - :Sles não são simplesmente

encostados, se é isso o que imagina. Há outros estabeleci-

mentos para os mais velhos.

- Que importa - resmungou George, sentindo que es-

tava parecendo interessado e que corria o perigo de entregar

os pontos.

- Você bem poderia se interessar. Ao ficar mais velho,

irá para um lugar com ocupantes de ambos os sexos.

- Mulheres também? - perguntou George surprêso.

- É claro. Ou será que pensa que as mulheres sejam

imunes a êsse tipo de coisa?

George pensou no assunto com mais interêsse e entusias-

mo do que já sentira até então por qualquer coisa. Então

procurou afastar o pensamento.

Omani deteve-se junto à porta de uma sala que continha

um pequeno circuito fechado de televisão.

41

- Esta aqui é uma sala de aula - esclareceu.

- O que é isso?

- Os jovens aí dentro estão sendo instruídos - e acres-

centou - mas não da forma convencional.

- Você diz aprendendo pouco a pouco.

- Exatamente. Esta é a maneira pela qual todos apren-

diam antigamente.

Isto era o que lhe vinham dizendo desde que chegara à

Casa. Mas, e daí? Supondo que tivesse existido uma época em

que a humanidade não conhecesse o forno diatérmico. Isso

por acaso significaria que êle devesse se satisfazer em comer

os alimentos crus num mundo onde os outros os comiam

cozidos?

- Por que é que êles se sujeitam a êsse sistema?

- Para passar o tempo e também porque são curiosos.

- E o que é que êles lucram com isso?

- Sentem-se mais felizes.

George foi para a cama pensando no assunto.

No dia seguinte perguntou a Omani:

- Você pode me levar a uma aula onde eu encontre algo

sôbre programação?

- Claro - respondeu Omani cordialmente.

o processo era lento, e êle se ressentia com isso. Por que

seria preciso explicar e tornar a explicar as coisas? Por que

êle deveria ser obrigado a ler e reler um trecho ou então

olhar para uma equação matemática e não compreendê-Ia de

imediato? As outras pessoas não tinham que ser assim.

Periodicamente desistia. Certa vez, recusou-se a assistir

às aulas durante tôda uma semana.

Entretanto, sempre acabava voltando. O encarregado,

que distribuía as leituras, dirigia as demonstrações de TV e

até mesmo explicava os trechos e os conceitos difíceis, jamais

fazia qualquer comentário a respeito.

Finalmente, recebeu uma tarefa de rotina no jardim e

foi encarregado de diversos serviços de cozinha e limpeza.

Isso lhe era apresentado como prova de progresso, mas êle

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não se deixava enganar. O lugar poderia ser bastante mais

mecanizado do que era, mas êles propositadamente deixavam

o trabalho para os jovens, a fim de lhes dar a ilusão de

ocupação e a sensação de utilidade. Mas a George não conse-

guiam enganar.

Recebiam, mesmo, pequenas somas em dinheiro como

pagamento, com o qual poderiam comprar certos artigos de

luxo ou guardá-lo para qualquer eventualidade na velhice.

George deixava o seu dinheiro num vaso colocado numa pra-

teleira do armário. Não tinha a menor idéia de quanto tinha

acumulado. E nem lhe interessava.

Não estabeleceu nenhuma amizade mais forte, apesar de

ter chegado a um ponto em que um bom-dia educado era de

se esperar. Até mesmo parou de meditar (ou quase) a respei-

to da injustiça que o levara até ali. Era capaz de passar

semanas sem sonhar com Antonelli, com o seu nariz grande e

seu pescoço comprido. Não o via mais em seus sonhos,

arrastando-o para a areia movediça e mantendo-o debaixo dela

até que acordasse gritando, com Omani debruçado sôbre êle,

olhando-o preocupado.

Num dia de fevereiro em que nevou, Omani disse:

- :É extraordinário como você está se adaptando.

Mas isso acontecera em fevereiro, no dia 13 para ser

exato, dia do seu décimo nono aniversário. Depois veio mar-

ço, seguiu-se abril e, com a aproximação de maio, êle percebeu

que não se adaptara absolutamente.

O mês de maio anterior passara despercebido, pois Geor-

ge ainda estava na cama, entregue e sem ambições. Ssse

maio, porém, era diferente.

George sabia que por tôda a Terra as Olimpíadas estariam

sendo realizadas, com os jovens competindo, medindo as

suas habilidades na luta por um lugar num mundo nôvo. Have-

ria uma atmosfera de festa e excitação; os noticiários, os

agentes de recrutamento dos mundos além do espaço, a gló-

ria da vitória ou o consôlo da derrota.

Quanto de ficção haveria em tôrno disso; quanto da sua

própria fantasia da meninice, com que acompanhara os acon-

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tecimentos olímpicos, de ano para ano; quantos de seus

próprios planos ...

George Platen não conseguia dissimular a ansiedade

presente em sua voz. Aquilo era demais para êle,

- Amanhã é dia primeiro de maio. Olimpíadas.

E isto o levou à sua primeira briga com Omani, fazendo

com que êste pronunciasse amargamente o nome exato da

instituição em que George se encontrava.

Omani olhou fixamente para George, dizendo claramen-

te:

- Uma casa para débeis mentais.

Débeis mentais! George Platen enrubesceu.

Procurou afastar o pensamento desesperadamente.

- Vou-me embora - disse em tom monocórdio. As

palavras saíram de sua bôca num impulso. O seu consciente só

as percebeu depois de ouvir sua própria declaração.

Omani, que tinha retomado a seu livro, levantou os

olhos.

- O quê?

Agora George sabia o que estava dizendo. E repetiu em

tom decidido:

- Eu vou embora.

- Isso é ridículo. Sente-se, George, e trate de se acal-

mar.

- Nada disso, eu estou aqui sendo vítima de uma cons-

piração, pode crer. Esse médico, o tal do Antonelli, antipati-

zou comigo. :B a sensação de poder que os tais burocratas

têm. Basta contrariá-los para que o liquidem com uma sim-

ples penada numa ficha qualquer.

- Vai voltar ao assunto novamente?

- E vou insistir nisso até que tudo fique bem esclarecido.

Descobrirei algum jeito para chegar a Antonelli. Vou apertá-lo

e forçá-lo a confessar a verdade.

George respirava ofegante e sentia-se febril. O mês das

Olimpíadas havia chegado e êle não poderia deixá-Io passar. Se

o fizesse, significaria rendição final e êle estaria perdido para sempre.

Omani passou as pernas por cima da cama e pôs-se de pé.

Tinha aproximadamente 1,80m de altura e a expressão em seu rosto dava-lhe o aspecto de um cão são-bernardo vigi- lante. Colocou o braço ao redor dos ombros de George.

_ Se por acaso eu o magoei ...

George sacudiu os ombros, afastando-o.

_ Você apenas disse o que achou que era a verdade e eu

vou provar que não é. É só isso. E por que não? A porta está aberta. Não há trincos. Ninguém jamais me disse que eu não podia sair. Vou simplesmente sair andando.

_ Muito bem. E para onde irá?

_ Para o aeroporto mais próximo e daí então para o centro das Olimpíadas mais próximo. Eu tenho dinheiro. - Dizendo isso pegou o vaso com o dinheiro que êle guardara.

Algumas das moedas rolaram pelo chão.

_ Isto dará para uma semana mais ou menos. E de-

pois?

_ Nessa altura, já terei resolvido minha situação.

_ Nessa altura você voltará se arrastando para cá continuou Omani, gravemente - e todos os progressos que fêz até agora estarão perdidos; terá que começar tudo de nôvo.

Você está louco, George.

_ Débil mental foi o têrmo que você usou antes.

_ Está bem, sinto muito tê-lo dito. Fique por aqui, está

bem?

_ Você vai tentar me impedir?

Omani apertou seus lábios grossos.

_ Não, creio que não vou. Isto é problema seu. Se a

única maneira pela qual você consegue aprender é enfrentando o mundo e voltando com o rosto ensanguentado, prossiga.

Isso mesmo, prossiga.

George agora estava junto à porta, olhando para trás por

cima do ombro.

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- Já vou - disse e então voltou atrás para apanhar seus objetos de toalete. - Espero que não se incomode que eu leve alguns pertences pessoais.

Omani deu de ombros. Estava novamente deitado na ca- ma, lendo, indiferente.

George deteve-se mais uma vez, hesitante, junto à porta, mas Omani não levantou os olhos. George rangeu os dentes, girou nos calcanhares e caminou ràpidamente, através do cor- redor vazio, para fora, em direção ao exterior agora mergu- lhado na noite.

Esperava ser detido antes de deixar os terrenos da Casa.

Mas isso não aconteceu. Parou num bar que ficava aberto a noite tôda, a fim de se informar como chegar ao aeroporto. E outra vez imaginou que o proprietário chamaria a polícia. Também isso não aconteceu. Chamou um carro-flutuante e ordenou que o levasse ao aeroporto; o motorista não lhe fêz quaisquer perguntas.

Ainda assim não se animou. Chegou ao aeroporto angus- tiado. Não tinha pensado como seria o mundo exterior. Esta- va rodeado de profissionais. O proprietário do bar ostentava o seu nome inscrito numa placa com um invólucro plástico por cima da caixa registradora. Fulano de tal, cozinheiro regis- trado. O homem do carro-flutuante tinha sua licença afixada: motorista registrado. George sentia o vazio que acompanha- va seu nome, o que lhe dava uma sensação de nudez; pior ainda: sentia-se esfolado. Entretanto ninguém o enfrentou. Ninguém o examinou com suspeita ou exigiu provas de sua categoria profissional.

Quem imaginaria existir alguém sem qualquer categoria?, pensou George amargurado.

Comprou uma passagem para São Francisco no avião das 3 horas da madrugada. Não havia qualquer avião com destino a um centro olímpico de importância considerável que saísse antes da manhã, e êle desejava esperar o menos possí- vel. Dêsse modo, encolheu-se num canto da sala de espera, aguardando a chegada da polícia. Mas ninguém veio buscá-lo.

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Chegou a São Francisco antes do meio-dia e o barulho da cidade atingiu-o como um rude golpe. Era o maior centro urbano que jamais vira e, além do mais, durante um ano e meio estivera recluso num ambiente de calma e silêncio.

Para piorar, aquêle era o mês das Olimpíadas. Quase es- queceu sua própria situação diante da súbita consciência de que parte do barulho, da excitação e confusão era devida a êsse fato.

Os quadros de avisos das Olimpíadas estavam afixados no aeroporto, para maior facilidade dos viajantes que chega- vam, e havia aglomerações em tôrno dêles. Cada profissão de vulto tinha seu quadro próprio, indicando o caminho para o local onde as provas daquele dia daquela determinada profis- são se realizariam, bem como os nomes dos competidores e sua cidade de origem. E, em certos casos, o mundo exterior que estivesse patrocinando a prova.

As competições seguiam um padrão preestabelecido. Geor- ge tinha lido muitas descrições nos jornais bem como visto filmes e assistido a competições pela televisão. Tivera mesmo oportunidade de presenciar uma Olimpíada de pequeno vulto para açougueiros registrados, realizada em sua cidade. Até mesmo, essa competição, sem possível implicação galática (certamente não haveria nenhum extraterreno assistindo), tinha despertado bastante excitação.

Á excitação era causada, em parte, pela própria competi- ção; em parte em consequência do orgulho local (ah, quando havia um rapaz do lugar por quem torcer mesmo que fôsse totalmente estranho) e, ainda, sem dúvida, por causa das apostas. Não havia como evitá-Ias.

George teve dificuldades em aproximar-se do quadro.

Percebeu que examinava agora os espectadores ávidos e apressados sob outro ângulo.

Certamente também êles, em outras épocas, teriam sido material para Olimpíadas. E o que tinham êles feito? Nada!

Se tivessem sido os vencedores, estariam agora longe, em algum ponto da Galáxia, e não metidos ali, naquele lugar da Terra. Quaisquer que fôssem as suas profissões, elas os

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teriam prendido à Terra desde o comêço; ou então teriam sido transformados em escravos em virtude de ineficiência em qualquer profissão altamente especializada que por acaso ti- vessem.

Agora êsses fracassados estavam ali e especulavam sôbre as possibilidades de outros homens mais jovens. Abutres!

Como desejaria que estivessem especulando a seu res- peito ...

Caminhou junto aos quadros, distraído, mantendo-se na periferia dos grupos que se formavam junto aos mesmos. Tinha tomado café a bordo do avião e não sentia fome. Entretanto tinha mêdo. Encontrava-se numa grande cidade, em meio à confusão de início das competições olímpicas. Isso signi- ficava, evidentemente, proteção. A cidade estava cheia de estranhos. Ninguém lhe faria perguntas. Ninguém se importa- ria com a sua pessoa.

Ninguém se importaria. Nem mesmo a Casa, pensou George amargurado. Importavam-se com êle tanto quanto o fariam com um gatinho doente; porém, quando um gatinho doente vai embora, bem, é pena, mas o que se há de fazer?

E agora que estava em São Francisco, o que fazer? Seus pensamentos pareciam esbarrar numa parede invisível. Pro- curar alguém? Quem? Como? Onde ficar? O dinheiro que lhe restava era ridiculamente pouco.

Foi então que o assaltou o primeiro impulso vergonhoso de voltar. Podia ir à polícia. Sacudiu a cabeça violentamente, como se estivesse argumentando com algum interlocutor real.

Uma palavra chamou sua atenção, brilhando num dos quadros. "Metalúrgico". Em letras menores a palavra "não ferroso". Ao fim de uma longa lista de nomes, constava a informação: "!patrocinado por Nóvia".

Isso lhe trouxe lembranças dolorosas: sua discussão com Trevelyan; tão certo estava de que se tomaria um progra- mador, tão certo de que um programador era superior a um metalúrgico, tão certo de que trilhava o melhor caminho, tão certo de que era inteligente ..•

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Fôra tão esperto que sentira necessidade de se mostrar àquele mesquinho e vingativo Antonelli. Que segurança a sua naquele momento em que fôra chamado, deixando Trevelyan nervoso ali em pé.

George soltou uma breve exclamação, arfante e incoe- rente. Alguém voltou-se para olhá-lo, afastando-se em seguida. Pessoas passavam por êle, impacientes, empurrando-o. Dei- xou-se ficar ali, olhando para o quadro, de bôca aberta.

Foi como se o quadro tivesse respondido a seu pensa- mento. Pensava em "Trevelyan" tão intensamente que por um instante pareceu-lhe que evidentemente o quadro respon- deria "Trevelyan".

E lá estava o nome Trevelyan. E mais, Armand Trevelyan (o prenome de "Stubby" que êle tanto detestava, luminoso, para que todos o vissem) e a cidade de origem conferia. E mais: Trev desejara Nóvia, destinara-se a Nóvia, insistira em Nóvia; pois a sua competição era patrocinada por Nóvia.

Tinha que ser Trev; o bom velho Trev. Quase sem pensar, anotou as instruções de como chegar ao local da com- petição e entrou na fila para tomar um carro-flutuante.

E então pensou, sombriamente: Trev conseguiu! :f:le queria ser um metalúrgico e conseguiu.

George sentiu mais frio ainda e a solidão nunca lhe pareceu maior.

Havia uma fila aguardando a entrada na sala. Aparente- mente a Olimpíada Metalúrgica seria uma prova emocionante e muito disputada. Pelo menos, era o que indicava o sinal luminoso acima da sala, e a multidão que se aglomerava devia pensar o mesmo.

Seria uni dia chuvoso, pensou George, a julgar pela côr do céu, mas São Francisco tinha proteção total em tôda sua extensão, da baía até o oceano. Evidentemente, aquilo seria muito dispendioso, mas tôdas as despesas eram feitas quando se tratava de oferecer confôrto aos extraterrenos. Eles esta- riam na cidade para as Olimpíadas. Gastariam bastante. E para cada recruta levado haveria uma certa quantia paga à

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Terra, bem como ao govêrno local, pelo planêta patrocinador da Olimpíada. Valia a pena cultivar na mente dos extra ter- renos a idéia de que uma determinada cidade era um lugar agradável onde passar a época das Olimpíadas. As autoridades de São Francisco sabiam o que estavam fazendo.

George, perdido em seus pensamentos, percebeu subita- mente uma leve pressão em seu ombro ao mesmo tempo que uma voz dizia:

- Você está na fila, jovem?

A fila se deslocara, sem que George percebesse o espaço vazio que aumentava. Avançou ràpidamente, murmurando:

- Desculpe, senhor.

'Sentiu tocarem levemente seu cotovêlo e olhou furtiva- mente em volta. O homem atrás dêle sacudiu a cabeça alegre- mente. Tinha cabelos grisalhos e sob o paletó vestia um suéter antiquado, abotoado na frente.

- Eu não pretendia parecer sarcástico.

- Não tem importância.

- Então ótimo. - Parecia um palrador bem-humorado.

- Não tinha certeza se o senhor não estaria simplesmente em

pé ali, misturado na fila por acaso. Pensei que talvez fôsse um ...

- Um o quê? - perguntou George àsperamente.

- Um competidor, é claro. Parece jovem.

George virou-se para o outro lado. Não sentia vontade nem disposição para bater papo, e as pessoas metidas o irritavam.

Um pensamento assaltou-o. Teriam emitido um alarma à sua procura? Teria sido divulgada sua descrição ou seu retra- to? Estaria aquêle homem grisalho atrás dêle procurando exa- minar o seu rosto?

Não tinha visto qualquer noticiário. Esticou o pescoço para ver a tira móvel de notícias que deslizava através de uma seção da proteção da cidade, um tanto desbotada de encontro ao cinza do céu nublado da tarde. Não adiantava. Logo desistiu. As manchetes não se ocupariam dêle. Era época das Olimpíadas e apenas as notícias referentes aos concor-

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rentes vitoriosos e aos troféus conquistados por continentes, nações ou cidades mereciam manchetes.

A coisa continuaria assim durante semanas, com a conta- gem de pontos obtidos pelas equipes e cada cidade procuran- do de alguma forma se colocar numa posição honrosa. Sua própria cidade certa vez se classificara em terceiro lugar numa Olimpíada para instala dores elétricos; terceiro lugar em todo o Estado. Havia ainda uma placa alusiva ao fato na Prefeitu- ra local.

George encolheu os ombros e enfiou as mãos nos bol- sos. Acabou concluindo que isso chamava mais atenção. Então descontraíu-se e procurou parecer despreocupado, sem, con- tudo, sentir-se mais seguro. Estava no saguão e até agora não sentira qualquer mão autoritária pousando em seu ombro. Entrou, finalmente, na sala, indo colocar-se o mais possível à frente.

Foi com desagradável choque que notou o homem grisa- lho próximo a êle. Desviou o olhar, ràpidamente, procurando raciocinar. Afinal de contas, o homem tinha estado bem atrás dêle na fila.

O homem, além de um sorriso apenas esboçado, não lhe prestou atenção, e além disso a Olimpíada estava prestes a se iniciar. George ergueu-se em sua cadeira para ver se conseguia descobrir a posição destinada a Trevelyan e a partir daquele momento essa passou a ser sua única preocupação.

O salão não era muito grande, tendo o formato oval clássico, com os espectadores dispostos em dois balcões con- tornando-o, enquanto os competidores ocupavam o centro. As máquinas estavam a postos, os quadros de acompanhamento acima de cada bancada estavam escuros, exceto no que dizia respeito ao nome e ao número de cada homem. Os próprios competidores encontravam-se em cena, lendo, conversando; um dêles examinava minuciosamente as unhas. (Evidentemen- te não seria considerado de bom tom se o competidor pres- tasse qualquer atenção ao problema antes de ser dado o sinal de início.)

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George estudou o programa que encontrou na abertura própria no braço de sua cadeira, e procurou o nome de Tre- velyan. Seu número era o doze e, para tristeza de George, verificou que estava na extremidade errada da sala. Podia distinguir a silhuêta do Competidor Doze em pé, com as mãos nos bolsos, de costas para a sua máquina, olhando para o público como se o estivesse contando, a fim de verificar se tinha uma "boa casa". George não conseguia distinguir as suas feições.

E no entanto aquêle era Trev.

George afundou novamente na cadeira. Imaginou se Trev se sairia bem. Esperava, como que num dever de cons- ciência, que assim íôsse. No entanto, lá bem dentro dêle havia uma certa revolta ressentida. George, sem profissão, assis- tindo Trevelyan, metalúrgico registrado, não ferroso, ali com- petindo.

Trevelyan poderia ter competido em seu primeiro ano, pensou George. Alguns jovens às vêzes o faziam caso se sentis- sem especialmente confiantes. .. ou apressados. Era um tan- to arriscado. Por mais eficiente que fôsse o processo de instru- ção, um 'ano preliminar na Terra (para lubrificar o conheci- mento emperrado, segundo dito corrente) garantiria uma atuação melhor.

Se Trevelyan estivesse repetindo, talvez sua situação não Iôsse tão boa assim. George sentiu vergonha ao perceber que essa idéia lhe dava um certo prazer.

Olhou ao redor. Os lugares estavam pràticamente ocupa- dos. Aquela seria uma Olimpíada concorrida, o que significava um esfôrço maior por parte dos competidores, ou talvez um estímulo maior, dependendo de cada indivíduo.

Subitamente pensou: por que Olimpíada? Nunca soube.

Por que não se chamava pão?

Uma vez perguntara ao pai:

- Papai, por que chamam a isso de Olimpíada?

- Olimpíada significa competição - explicara o pai.

- Quando eu e "Stubby" brigamos é uma Olimpíada?

- Não - dissera o Sr. Platen. - As Olimpíadas são uma espécie de competição diferente, e não faça perguntas bôbas. Quando fôr instruído saberá tudo o que Iôr preciso saber.

George, de volta ao presente, suspirou, remexendo-se em sua cadeira.

Tudo o que fôr preciso saber!

Estranho que suas recordações fôssem agora tão claras:

"Quando fôr instruído". Nunca alguém lhe dissera: "Se você fôr instruído".

Parecia-lhe agora que sempre fizera perguntas bôbas. Era como se a sua mente tivesse alguma noção a priori de sua falta de capacidade de ser instruído e então se pusesse a fazer perguntas, a fim de ajuntar pedaços aqui e ali, o melhor que pudesse.

E na Casa êles o encorajavam a fazê-Ia, pois certamente concordavam com seu instinto mental. Era a única maneira.

Endireitou-se de repente em sua cadeira. Que diabo esta- va fazendo? Deixando-se levar por aquela mentira. Estaria se entregando só porque Trev estava ali, diante dêle, um instruí- do, competindo nas Olimpíadas?

Não! Ele não era um débil mental.

E o grito de protesto de sua mente encontrou eco no súbito clamor vindo da platéia, enquanto todos se punham de pé.

O camarote situado numa das extremidades do oval esta- va ocupado com um grupo de pessoas trajando as côres de Nóvia, enquanto o nOme do planêta surgia acima dêles no qua- dro principal.

Nóvia era um mundo categoria A, com população nu- merosa e civilização bastante desenvolvida, talvez a melhor da Galáxia. Era o tipo do mundo em que todos os terráqueos sonhavam viver algum dia; ou, caso não o conseguissem êles mesmos, gostariam de ver seus filhos vivendo lá. (George lembrava a insistência de Trevelyan em considerar Nóvia co- mo sua meta. .. e lá estava êle competindo com essa finalí- dade.)

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As luzes acima do público naquele setor do teto foram desligadas, o mesmo acontecendo com a iluminação mural. O palco central, onde os competidores aguardavam, foi ilumina- do.

Novamente George procurou identificar Trevelyan, mas êle estava demasiado longe.

Ouviu-se a voz clara e bem empostada do apresentador:

- Distintos patrocinadores de Nóvia, senhoras e senho- res. Está prestes a ser iniciada a competição olímpica para metalúrgicos não ferrosos. Os competidores são ...

E então leu cuidadosamente a lista constante do progra- ma. Nomes, cidades de origem. Anos de instrução. Cada no- me recebia ovações, e os naturais de São Francisco eram os mais aplaudidos. Quando o nome de Trevelyan foi finalmente pronunciado, George surpreendeu-se gritando e acenando loucamente. O homem grisalho a seu lado surpreendeu-o mais ainda por gritar da mesma forma.

George não podia deixar de olhar espantado para o seu vizinho e êste inclinou-se em sua direção para dizer, falando bem alto para se fazer ouvir em meio à algazarra:

- Não há ninguém por aqui da minha cidade. Vou tor-

cer pelo seu. ~ alguém que conhece?

George encolheu-se novamente. - Não.

- Percebi que olhava naquela direção. Quer o meu bi-

nóculo emprestado?

- Não, obrigado. (Por que aquêle velho burro não tra- tava da sua vida?)

O locutor prosseguiu com outros detalhes formais, refe- rentes ao número de ordem da competição, o método de marcação do tempo, contagem e assim por diante. Finalmen- te chegou ao âmago da questão e o público ficou em silêncio, ouvindo.

- Cada competidor receberá uma barra de liga não fer- rosa de composição inespecífica. Deverá fazer a amostragem

e o ensaio, assinalando todos os resultados corretamente, até quatro decimais e em percentagem. Todos utilizarão para

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tal um microespectrógrafo Beeman, modêlo FX-2. ~sses apa- relhos, no momento, não estão funcionando corretamente.

Ouviu-se um grito de aprovação do público.

- Cada competidor deverá analisar o defeito do apare- lho e corrigi-lo, Serão fornecidas ferramentas e peças. A peça sobressalente necessária, entretanto, poderá não estar dispo- nível, caso em que deverá ser solicitada e o tempo de sua entrega será deduzido do tempo total. Todos os competidores estão prontos?

O quadro acima do Competidor Cinco brilhou com uma luz vermelha. O Competidor Cinco correu e voltou um instan- te depois. 'O público riu, bem-humorado.

- Todos os competidores prontos?

Os quadros permaneceram apagados.

- Alguma pergunta?

Ainda nada.

- Podem começar.

Não havia meio, evidentemente, para que qualquer pes- soa do público pudesse avaliar os progressos de um candida- to, exceto de acôrdo com as anotações que apareciam no qua- dro de avisos. Isso, porém, não importava. 'Excetuando-se os metalúrgicos presentes na platéia, ninguém entenderia mes- mo nada sob o aspecto profissional do concurso. O importante era quem ganhava, quem chegava em segundo lugar e quem chegava em terceiro. Para aquêles que haviam feito apostas quanto às classificações (ilegais mas inevitáveis) aí sim é que tinha importância. Tudo o mais podia ir para o inferno.

George assistia tão ansioso quanto os demais, olhando para os competidores, observando como um tinha removido a capa de seu microespectrógrafo utilizando para tal uiii pe- gneno instrumento e gestos hábeis; como outro examinava detalhadamente o objeto; como ainda um terceiro ajustava a sua barra de liga em seu suporte; e como um quarto ajustava

um vernier, com movimentos tão reduzidos que parecia estar momentâneamente paralisado.

Trevelyan estava tão absorvido quanto os demais. Geor- ge não podia saber como êle estaria se saindo.

O quadro de avisos acima do Competidor Dezessete ilu- minou-se: lâmina de foco desajustada,

A assistência vaiou furiosamente.

O Competidor Dezessete podia estar certo, como tam- bém, evidentemente, poderia estar errado. Nesse último ca- so, seria obrigado a rever seu diagnóstico posteriormente e, assim, perderia tempo. Ou poderia nunca corrigir seu diag- nóstico e ser incapaz de completar sua análise, ou, pior ainda, terminar por chegar a um resultado completamente errado.

Entretanto isso por ora não importava e a platéia aplau- dia ou apupava.

Outros quadros acenderam-se. George olhava para o Quadro Doze. E êste finalmente exibiu os dizeres: "Suporte da amostra fora de centro. Necessário nôvo depressor de garra".

Um funcionário acorreu com uma nova peça. Se Treve- lyan estivesse enganado, isso significaria um atraso inútil. E o tempo perdido aguardando a peça não seria deduzido. George percebeu que prendia a respiração.

Começaram a surgir os resultados no Quadro Dezessete, em caracteres brilhantes: alumínio, 41.2649; magnésio, 22.1914; cobre, 10.1001.

Aqui e ali começaram a aparecer cifras em outros qua- dros.

A platéia estava tumultuada.

George ficou imaginando como é que os competidores eram capazes de trabalhar em meio a um tal pandemônio, e acabou concluindo que talvez isso até íôsse uma boa coisa. Um técnico de primeira linha deveria saber trabalhar sob tensão.

O Número Dezessete levantou-se em seu lugar no mo- mento em que o seu quadro aparecia emoldurado em verme- lho, o que significava conclusão. O Quatro seguiu-o, apenas dois segundos depois. E então veio outro, e mais outro.

Trevelyan continuava a trabalhar, com os constituintes secundários de sua liga ainda não anunciados. Com quase

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todos os competidores já de pé, Trevelyan acabou por levan- tar-se também. E então, por último, ergueu-se o Número Cinco, acolhido por uma ovação irônica.

A competição ainda não terminara. As comunicações ofici- ais eram naturalmente demoradas . O tempo gasto era de mui- ta importância, mas a precisão tinha igual valor. E depois, nem todos os diagnósticos apresentavam igual dificuldade. Era preciso levar em consideração uma série de Iatôres.

Finalmente soou a voz do locutor:

- Vencedor com o tempo de quatro minutos e doze segundos, diagnóstico correto, análise correta dentro de uma média de zero ponto sete partes por cem mil. Competidor número Dezessete, Henry Anton Schmidt de ...

O que se seguiu foi engolfado pelos gritos. Depois veio o Número Oito e depois o Quatro, que tinha perdido tempo num êrro de cinco partes em dez mil na cifra referente ao nióbio. O Doze não chegou sequer a ser mencionado. Era um mero concorrente, sem classificação.

George atravessou a multidão dirigindo-se para a porta de saída dos competidores, esbarrando com um mundo de gente, à sua frente. Haveria ali parentes chorosos (de alegria ou tristeza, dependendo do caso) para saudá-Ios, jornalistas para entrevistar os melhores, ou os conterrâneos, os caçadores de autógrafos, os sequiosos de publicidade e também os simplesmente curiosos. Haveria igualmente garôtas esperanço- sas de vislumbrar um vencedor, certamente destinado para Nóvia (ou talvez um perdedor que necessitasse de consôlo e tivesse dinheiro para tal).

George manteve-se recuado. Não via ninguém que conhecesse. Estando São Francisco tão longe de casa, parecia bastante provável que não haveria parentes para consolar Trev.

Os competidores emergiam, sorrindo ligeiramente, ace- nando em direção aos gritos de aprovação. Policiais man- tinham a multidão a distância suficiente para deixar uma pas- sagem livre. Cada um dos bem classificados saía levando

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consigo uma parte da multidão, como que um ímã agindo sôbre um monte de limalha.

Quando Trevelyan saiu não havia quase mais ninguém (George pensou que êle teria se atrasado de propósito). Tinha um cigarro em seus lábios duros e desviou-se, com os olhos baixos, para afastar-se.

Era o primeiro sinal de casa que George via em quase um ano e meio que na realidade lhe parecia uma década e meia. Quase surpreendeu-se ao ver que Trevelyan não tinha envelhecido, parecendo ainda o mesmo velho Trev que vira da última vez.

George adiantou-se. - Trev!

Trevelyan voltou-se ràpidamente, surprêso. Olhou para George e então exclamou:

- George Platen, com mil demônios!

E quase simultâneamente em que uma expressão de pra- zer surgiu em seu rosto, ela o abandonou. Sua mão pendeu, antes que George tivesse tempo de apertá-Ia.

- Você estava aí dentro? - perguntou Trev, indicando

o salão com um gesto de cabeça. - Estava, sim.

- Para me ver?

- Isso mesmo.

- Eu não me saí tão bem assim, não é? - deixou cair

seu cigarro e pisou-o, olhando em direção à rua, onde a multi- dão que saía começava a se desfazer, dirigindo-se para os carros-flutuantes, enquanto novas filas se formavam para a Olimpíada programada a seguir. - E daí - prosseguiu Trevel- yan pesadamente. - É apenas a segunda vez que eu falho.

Quero que Nóvia vá para o inferno depois do fracasso de hoje. Há planêtas que me aceitariam imediatamente. Mas es- cute aqui. Eu não o vi mais desde o Dia da Instrução. Para onde você foi? Seu pessoal me disse que você estava numa missão especial, mas não deu detalhes e você jamais escreveu. Bem que poderia ter escrito.

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- Eu deveria - disse George, sem jeito. - Bem, de qualquer forma eu vim até aqui para lhe dizer que senti muito por terem as coisas corrido como correram.

- Não precisa ter pena. Eu lhe disse que Nóvia pode se danar. Eu já deveria estar prevenido. Eles vinham dizendo há semanas que as máquinas Beeman seriam as usadas. Todo o dinheiro estava empatado nas máquinas Beeman. As mal- ditas fitas de instrução pelas quais passei eram tôdas para máquinas Henslers e quem é que usa Henslers? Os mundos

. de Goman, se é que se pode chamá-los de mundos. Não foi uma bela peça a que me pregaram?

- E você não pode se queixar a ...

- Não seja bôbo. :f:les me diriam que o meu cérebro não

está preparado para Beeman. Vá discutir. Tudo saiu errado. Eu fui o único que tive de mandar buscar uma peça. Você reparou?

- Mas êles deduziram o tempo perdido, não é?

- Claro, mas eu perdi tempo imaginando se estaria

certo em meu diagnóstico quando notei que não havia um. depressor de garra nas peças fornecidas. Isso êles não deduzi- ram. Se fôsse uma Henslers, eu saberia que estava certo. Como podia estar em pé de igualdade com os outros? O vencedor era daqui de São Francisco. O mesmo quanto a três dos quatro seguintes. E o quinto era de Los Angeles, :f:les recebem as fitas de instrução de cidades grandes. O que há de melhor. Espectrógrafos Beeman e tudo o mais. Como é que posso competir com êles? Eu vim até aqui só para ter a oportunidade de competir numa Olimpíada patrocinada por Nóvia e já se vê que teria feito melhor ficando em casa. Eu bem que sabia, não

há dúvida. Mas não faz mal, Nóvia não é o único pedaço de rocha no espaço.

Éle não estava falando com George. Não se dirigia a ninguém em particular. Simplesmente queria falar e estava com a corda tôda. George sabia disso.

- Se você sabia com antecedência que seriam usadas Beemans, não poderia ter estudado? - perguntou George.

S9

- Elas não constavam de minhas fitas.

- Mas você poderia ler a respeito, em livros.

A última palavra perdeu-se sob o súbito olhar duro de

Trevelyan. .

- Você está a fim de me gozar? Acha que é engraçado?

Como é que imagina que eu vou ler livros e tentar memorizar o suficiente para me equiparar com alguém que realmente sabe?

- Eu pensei ...

- Tente você fazê-Io, Tente só ... - E então, subitamen-

te: - A propósito qual é a sua profissão? - Seu tom era hostil.

- Bem ...

- Vamos. Se você está se metendo a sabichão, vamos

ver o que você conseguiu fazer. Você continua na Terra, pelo que vejo, de modo que não é programador de computadores, e sua missão especial não deve ser grande coisa.

- Escute, Trev, - disse George - estou atrasado para um encontro. - Dizendo isso procurou afastar-se tentando sorrir.

- Nada disso - protestou Trevelyan agarrando George pela manga do paletó - Primeiro vai responder à minha

pergunta. Por que tem mêdo de me dizer? Que é que há com você ? Nada de vir me atirar as coisas na cara a menos que esteja disposto a ouvir também. Você está me ouvindo?

:Ble sacudiu George, como que num frenesi e logo os dois estavam lutando e rolando pelo chão quando a voz do destino pareceu soar nos ouvidos de George, sob a forma do grito feroz de um policial.

- Chega! Vamos parar! Parem já com isso!

O coração de George pesou qual chumbo e batia assusta- do. O policial tomaria nota dos nomes, pediria cartões de iden- tificação, coisa que George não possuía. :Ble seria interrogado e sua falta de profissão se revelaria imediatamente; e, diante de Trevelyan, o que era pior, o qual estava traumatizado pela derrota sofrida e consideraria o fato como um lenitivo para seus próprios sentimentos feridos.

George não poderia suportá-lo. Livrou-se de Trevelyan e dispôs-se a correr, mas a pesada mão do policial já estava em seu ombro.

- Pare aí. Vamos ver a sua identidade.

Trevelyan já estava apanhando a sua carteira, enquanto falava ríspido:

- Eu sou Armand Trevelyan, metalúrgico, não ferroso.

Eu estava competindo nas Olimpíadas. Mas é melhor desco- brir quem é êle, oficial.

George olhava para os dois, os lábios secos e a garganta

incapaz de emitir qualquer som.

Subitamente ouviu-se outra voz, calma e bem-educada: - Um momento, oficial.

- Sim senhor - anuiu o policial, dando um passo atrás.

- Bste jovem é meu convidado. Qual é o problema?

George olhou ao redor, completamente atônito. Era o ho- mem grisalho que estivera sentado a seu lado. O homem fêz um leve gesto com a cabeça em direção a George.

Convidado? Estaria maluco? O policial estava explicando:

- Estes dois estavam perturbando a ordem, senhor.

- Alguma acusação criminal? Algum prejuízo?

- Não senhor.

- Bem, nesse caso, eu me responsabilizo. - E dizendo

isso, apresentou um pequeno cartão ao policial, o qual, ao vê-Io, afastou-se imediatamente.

Trevelyan começou a protestar, indignado:

- Espere aí... - mas o policial, voltando-se em sua

direção, interrompeu-o.

- Muito bem. Tem alguma queixa?

- Eu só ...

- Vá andando - atalhou o homem grisalho. - E vocês

cambém, dispersem-se. - Uma considerável multidão se ajun- tara e agora, relutantemente, começava a dispersar-se.

George deixou-se levar até um carro-flutuante, mas esta- cou antes de entrar.

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- Obrigado, - protestou - mas eu não sou seu convi- dado. (Seria aquêle um ridículo caso de identidade trocada ?) Mas o homem grisalho sorriu, dizendo:

- Não era, mas agora é. Permita que eu me apresente.

Sou Ladislas Ingenescu, historiador registrado. - Mas •••

- Venha, não vai lhe acontecer nada. Eu lhe garanto.

Afinal de contas eu apenas quis lhe poupar algum aborreci- mento com o policial.

- Mas por quê?

- Quer uma razão? Bem, então digamos que temos

algo em comum. Somos conterrâneos honorários. Ambos tor- cemos pelo mesmo homem, lembra-se, e nós, conterrâneos, precisamos ser unidos, mesmo que apenas honorários.

E George, completamente inseguro quanto àquele homem, Ingenescu, e também quanto a êle próprio, viu-se dentro do carro-flutuante. Antes que pudesse tomar qualquer decisão de saltar, já tinham deixado o solo.,

O homem deve ter uma posição importante, pensou con- fuso. O policial obviamente respeitara sua superioridade hie- rárquica.

Estava quase esquecendo que o verdadeiro propósito de sua presença em São Francisco não era o de encontrar Tre- velyan, mas o de achar alguém com suficiente influência para forçar uma reavaliação de sua capacidade em instrução.

Talvez Ingenescu fôsse a pessoa indicada. ,E estava bem aí, à mão. Tudo poderia estar se encaminhando muito bem, bem mesmo. ·E no entanto essa possibilidade não parecia encontrar eco em seus pensamentos. Estava inquieto.

Durante o curto trajeto, Ingenescu manteve uma palestra despreocupada, mostrando os pontos principais da cidade e lembrando outras Olimpíadas :passadas às quais assistira. George, que prestava atenção apenas o suficiente para emitir vagos grunhidos durante as pausas, examinava ansioso a rota de vôo.

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Estariam se dirigindo para uma das aberturas da prote- ção para deixar a cidade? Não. Estavam descendo e George suspirou aliviado. Sentia-se mais seguro naquela cidade.

O carro-flutuante desceu na cobertura de um hotel e en- quanto êle apeava, Ingenescu disse:

- Espero que jante comigo em meu quarto, está bem?

- Sim - concordou George, sorrindo sem afetação.

Tinha acabado de perceber o vazio que sentia no íntimo por não ter almoçado.

Ingenescu deixou George comer em silêncio. A noite caía e as luzes murais acenderam-se automàticamente. (George pensou: já estou em liberdade há quase 24 horas.)

E então, depois do café, Ingenescu finalmente voltou a falar:

- Você estêve se comportando como se imaginasse que eu pretendia lhe causar algum mal.

George enrubesceu, descansou a xícara e procurou ne- gar, mas o homem mais velho riu, sacudindo a cabeça.

- ~ a verdade. Eu o estive vigiando desde o primeiro momento em que o vi, e acho que já sei bastante a seu respeito.

George começou a levantar-se, horrorizado.

- Mas sente-se - disse Ingenescu. - Eu só quero ajudá-lo.

George voltou a sentar-se, mas seus pensamentos conti- nuavam girando loucamente. Se o velho sabia quem êle era, por que não deixou que o policial se ocupasse dêle? Por outro lado, por que se ofereceria para auxiliá-lo?

- Quer saber por que desejo ajudá-lo? - índagou Inge- nescu. - Não fique tão alarmado. Eu não sei ler os pensa- mentos. Apenas acontece que o meu treinamento possibilita- me julgar as pequenas reações que traem as mentes. Você está compreendendo?

George sacudiu a cabeça.

- Pense só na primeira vez em que eu o vi. Você espera- va na fila para assistir a uma Olimpíada e no entanto as suas micro-reações não combinavam com o que estava fazendo. A

expressão em seu rosto estava inadequada, os movimentos de suas mãos estavam errados. Isso significava que havia algo errado de um modo gera1. E o que despertou o meu interêsse foi o fato de que, fosse o que fôsse, não seria nada comum, nada óbvio. Talvez, pensei eu, fôsse algo que estivesse fora do alcance de sua mente consciente. Não pude deixar de segui-lo, de me sentar a seu lado. Segui-onovamente quando você saiu e escutei a conversa que teve com seu amigo. Depois disso, bem, você se tornou um objeto de estudo extremamente interessante - sinto muito se isso lhe soa excessivamente frio - para que eu deixasse que um policial o levasse. Agora, diga-me, o que é que o está preocupando?

George sentia-se invadido pela agonia da indecisão. Se aquilo fôsse uma armadilha, por que deveria ser tão indireta e complicada? E, afinal, êle tinha que recorrer a alguém. Tinha vindo à cidade, a fim de encontrar ajuda, e aí estava a ajuda lhe sendo oferecida. Talvez o errado fôsse o fato de estar sendo oferecida. Vinha com demasiada facilidade.

- É claro - continuou Ingenescu - que aquilo que você me disser, sendo eu um sociólogo, é comunicação privilegia- da. Sabe o que isso quer dizer?

- Não, senhor.

- Significa que seria desonroso para mim repetir o que

você me disser, a qualquer pessoa, sob qualquer pretexto. Além do mais, ninguém tem o direito legal de me obrigar a repeti-lo.

George, invadido por súbita suspeita, retrucou: - Pensei que o senhor fôsse um historiador.

- E sou mesmo.

- Mas acabou de dizer que é sociólogo.

Ingenescu explodiu numa ruidosa gargalhada e descul- pou-se logo que pôde falar:

- Sinto muito, meu jovem. Eu não deveria rir e na reali- dade não estava rindo de você. Estava achando graça da Terra e da ênfase que é dada às ciências físicas e a seus aspectos práticos. Aposto que você é capaz de enumerar tôdas as subdivisões da tecnologia da construção ou daengenharia mecânica, mas é totalmente ignorante no que diz respeito à ciência social. - Pois bem, o que é então a ciência social?

•..... Ciência social estuda grupos de sêres humanos e possui ramos extremamente especializa dos, assim como acontece, entre outras, com a Zoologia. Por exemplo, há os culturistas que estudam a mecânica das culturas, seu crescimento, de- senvolvimento e decadência. Culturas - explicou êle, anteci- pando uma pergunta - são todos os aspectos de um modo de vida. Incluem, por exemplo, a maneira pela qual conduzi- mos a nossa vida, as coisas de que gostamos e em que acreditamos, as que consideramos boas ou ruins, e assim por diante. Está entendendo?

- Creio que sim.

- Um economista, não um estatístico econômico, mas um

economista mesmo, especializa-se no estudo do modo pelo qual uma determinada cultura obtém as necessidades índiví-: duais de seus membros. Um psicólogo especializa-se no indiví- duo que faz parte de uma sociedade e na forma pela qual êle é afetado pela mesma. Um futurólogo especializa-se em plane- jar o desenvolvimento futuro de uma sociedade, e um histo- riador. .• é aqui que eu entro.

- Sim senhor.

- Um historiador especializa-se no desenvolvimento

passado de nossa própria sociedade, bem como das sociedades de outras culturas.

George estava interessado.

- E no passado as coisas eram diferentes?

- Posso dizer que sim. Até há mil anos atrás, por

exemplo, não havia instrução, pelo menos não como nós a compreendemos agora.

- Eu sei - disse George. - As pessoas aprendiam pou- co a pouco, através dos livros.

- Como é que sabe disso?

- Ouví dizer - respondeu George cautelosamente. B

prosseguiu: - Adianta alguma coisa preocupar-se com o que

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aconteceu há muito tempo? Quero dizer, já está tudo conclu- ído, não é?

- Nunca está tudo concluído, meu rapaz. O passado explica o presente. Por exemplo, por qu~ o nosso sistema educacional é o que é?

George agitava-se inquieto. O homem a tôda hora voltava ao assunto.

- Porque é melhor - disse êle impacientemente.

- Sim, mas por que é melhor? Agora ouça-me por um

momento e eu explico. Então poderá me dizer se há alguma utilidade na história. Mesmo antes do desenvolvimento das viagens interestelares. .. - Êle interrompeu-se, percebendo a expressão de completo espanto estampada no rosto de George. - Bem, você por acaso imaginou que elas sempre existissem?

- Na realidade nunca pensei sôbre isso.

- Acredito. Mas houve uma época, quatro ou cinco mil

anos atrás, em que a humanidade estava confinada à superfície da Terra. Mesmo então sua cultura tomara-se muito tecnoló- gica e sua população havia atingido proporções tão elevadas que qualquer falha na tecnologia significaria fome em massa e doenças. A fim de manter o nível e o progresso tecnológico em face da superpopulação, um número cada vez maior de cien- tistas tinha que ser treinado. Entretanto, com o avanço da ciência, o seu treinamento tomava-se cada vez mais demorado. Ao serem desenvolvidas, inicialmente, as viagens interplane- tárias e depois as interestelares, o problema ia se tomando cada vez mais agudo. Na verdade a colonização real de pla nê- tas extra-solares foi impossível durante aproximadamente mil e quinhentos anos, em, virtude da escassez de homens adequa- damente treinados para tal. Reviravolta ocorreu com o ad- vento da mecânica de armazenamento dos conhecimentos no cérebro. Depois disso, tomou-se possível preparar fitas de instrução que possibilitavam a colocação dentro do cérebro de uma enorme quantidade de conhecimentos já prontos. Mas isso você sabe. Uma vez isso feito, podíamos ter homens treinados aos milhares e milhões, começando então aquilo que

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foi chamado de "Preenchimento do Universo". Há agora mil e quinhentos planêtas habitados na Galáxia e não há fim à vista. Você percebe as implicações? A Terra exporta instrução em fitas para profissões de baixa especialização e isso conser- va a cultura galática unificada. Por exemplo, as fitas de leitu- ra garantem uma única língua para todos nós. Não fique tão surprêso, outras línguas são possíveis e no passado existiram centenas delas. A Terra exporta, igualmente, profissionais altamente especializados e mantém, assim, sua própria popu- lação num nível suportável. Uma vez que as pessoas são enviadas, obedecendo-se a uma proporção equilibrada quanto ao sexo, elas representam unidades auto-reprodutivas e assim possibilitam o aumento das populações nos mundos externos, onde tal aumento é necessário. Além do mais, fitas e ho- mens são pagos em material de que muito necessitamos e do qual depende a nossa economia. Agora você compreende por que a nossa instrução é a melhor?

- Sim senhor.

- Será que isso o ajuda a entender por que sem ela a

colonização interestelar foi impossível durante mil e quinhen- tos anos?

- Sim senhor.

- Então você já vê a utilidade da história. - O histo-

riador sorria. - E agora gostaria de saber se você já entendeu por que eu estou interessado em você.

George voltou subitamente à realidade. Ingenescu apa- rentemente não falara sem propósito. Tôda essa exposição tinha sido um artifício visando abordá-Io de um nôvo ângulo.

Mais uma vez, hesitante e preocupado, perguntou: - Porquê?

- Sociólogos trabalham com sociedades e as sociedades

são compostas de pessoas. - Certo.

- Mas as pessoas não são máquinas. Os profissionais

das ciências físicas trabalham com máquinas. Há apenas uma quantidade limitada de coisas a saber a respeito de uma máquina e os profissionais sabem tudo a êsse respeito. Além

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do mais, tôdas as máquinas de determinada espécie são apro- ximadamente parecidas, de modo que não há nada que lhes

interesse especialmente numa determinada máquina. Mas as pessoas ... bem, trata-se d~ estruturas tão complexas e diferen- tes umas das outras, que um sociólogo nunca é capaz de saber tudo ou mesmo uma boa parte do que há por saber. Para compreender sua especialidade êle deve estar sempre pronto a estudar as pessoas; especialmente os espécimes incomuns.

- Como eu - comentou George, inexpressivo.

- Não deveria chamá-Ia de espécime, creio eu, mas você

é fora do comum. Você merece um estudo e, se me permitir tal privilégio, eu, em retribuição, o ajudarei caso tenha pro- blemas e se isso estiver ao meu alcance.

Os pensamentos de George giravam loucamente. Tôda essa conversa sôbre pessoas e colonização possível por meio da instrução. Era como se as suas idéias estivessem sendo arrancadas de sua cabeça e expostas impiedosamente.

- Deixe-me pensar - disse por fim, apertando os ouvi- dos com as mãos. 'Então retirou-as dizendo: - O senhor fará algo por mim ?

- Se eu puder - respondeu Ingenescu, amàvelmente.

- E tudo o que eu disser nesta sala constitui comunica-

ção privilegiada. Foi o senhor mesmo que o disse. - E estava falando sério.

- Então consiga-me uma entrevista com um represen-

tante de um mundo externo, com um noviano.

Ingenescu parecia espantado. - Bem ...

- O senhor é capaz disso - prosseguiu George ansioso.

- O senhor é importante. Eu vi o olhar do policial quando pôs

a carteira diante dos olhos dêle, Se recusar, eu ... eu não permitirei que me estude.

Aquilo soou como Uma ameaça tôla até mesmo aos pró- prios ouvidos d~ George, Era, sobretudo, inconsistente. E no entanto pareceu ter efeito sôbre Ingenescu.

- Trata-se de uma condição impossível. Um noviano du- rante o mês das Olimpíadas ..•

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- Muito bem, consiga-me ao menos uma ligação telefôni- ca com um noviano e eu farei os arranjos necessários para uma entrevista.

- Acha que é capaz?

- Sei que sou. Espere e verá.

Ingenescu fitou George pensativo e então dirigiu-se para o visofone. George aguardou, meio ébrio com a sua nova visão do problema e com a sensação do poder daí decorren- te. Não podia falhar. Simplesmente não podia. Ainda seria um noviano. Deixaria a Terra em triunfo, apesar de Antonelli e de todo o bando de idiotas da Casa para (quase riu alto) débeis mentais.

George esperava, aflito, enquanto a tela do visofone se iluminava. Dessa forma seria aberta uma janela para uma sala de novianos, uma janela para uma pequena porção de Nóvia transplantada para a Terra. Em 24 horas, êle havia conseguido chegar até aquêle ponto.

Ouviu-se uma gargalhada sonora quando a tela clareou e a imagem tomou-se nítida. Mas ainda não se podia ver nenhu- ma cabeça, apenas as sombras de homens e mulheres que passavam rápidas. Por fim ouviu-se uma voz clara, tendo por fundo o murmúrio das conversas.

- Ingenescu? ~le quer falar comigo?

E então lá estava êle, olhando-os da tela. Um noviano. Um verdadeiro noviano. (George não tinha a menor dúvida. Havia algo de absolutamente extraterreno naquela figura. Na- da que pudesse ser definido com exatidão, mas que era, por outro lado, inconfundível mesmo que visto apenas momentâ- neamente.)

Tinha a pele morena e uma onda de cabelos escuros penteados para trás. Usava um bigode prêto e fino e uma barbicha pontuda, igualmente escura, que mal chegava ao

limite inferior de seu queixo fino. Mas o resto de seu rosto era tão liso que parecia depilado.

Ele sorria.

- Ladislas, isso já está indo longe demais. :e claro que admitimos ser espionados, dentro do razoável, durante a nos- sa permanência na Terra. Mas a leitura de pensamentos já é demais.

- Leitura de pensamentos, excelência? - Confesse! Você sabia que eu ia chamá-lo esta noite.

Sabia que eu estava apenas esperando acabar êste drinque. - Sua mão ergueu-se e êle olhou através de um pequeno cálice contendo um licor ligeiramente violáceo. - Creio que não me é possível oferecer-lhe um.

George, fora do campo de ação do transmissor de Inge- nescu, não podia ser visto pelo noviano. Isso o aliviava. Que- ria ganhar tempo para compor-se, coisa de que muito precisa-

va. Parecia-lhe que era feito tão-somente de dedos inquietos que tamborilavam, tamborilavam ...

Mas êle acertara. Não se equivocara. Ingenescu era real- mente importante. O noviano o tratava pelo seu prenome.

ótimo! Tudo corria bem. O que George perdera com Antonelli, recuperaria, com vantagem, junto a Ingenescu. E, algum dia, quando finalmente estivesse por conta própria e pudesse voltar para a Terra tão poderoso quanto um noviano, como êsse que podia gracejar negligentemente com o nome de Ingenescu, e ser tratado de "excelência", quando voltasse, êle acertaria as contas com Antonelli. Tinha um ano e meio de vida para cobrar-lhe.

Perdera-se naqueles sonhos e subitamente sentia-se retor- nar à ansiosa consciência de que estava perdendo o fio da meada dos acontecimentos.

O noviano dizia: _ ..• assim não é possível. Nóvia tem uma civilização

tão complicada e avançada quanto a da Terra. Afinal de con- tas, não somos Zeston. É ridículo que tenhamos de vir aqui em busca de técnicos individuais.

_ Apenas para os novos modelos - protestou Ingenescu, apaziguador. - Nunca se tem certeza se os novos modelos serão necessários. Comprar fitas de instrução lhes custaria o

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mesmo preço de mil técnicos, e como podem saber se preci- sarão de tantos assim? O noviano atirou longe o que restava de sua bebida e riu. (Desagradava a George, de certa forma, que um noviano fôsse tão frívolo. Pensou, aflito, que talvez o noviano não devesse ter bebido aquêle copo, ou até mesmo uns dois anteri- ores.)

- Isso é tipicamente uma fraude, Ladislas. Você sabe muito bem que nós temos pedidos para todos os modelos recentes que possamos conseguir. Esta tarde eu escolhi cinco metalúrgícos . . .

- Eu sei, - disse Ingenescu - eu estava lá. - Vigiando! Espionando! - exclamou o noviano.

Vou lhe dizer o que é isso. Os metalúrgicos do nôvo tipo diferiam dos anteriores apenas pelo fato de conhecerem o uso dos espectrógrafos Beeman. As fitas não podiam ser mo- dificadas a êsse ponto, tomando por base o modêlo do ano passado. Vocês introduzem os novos modelos apenas para nos obrigar a comprar e voltar aqui humildemente.

- Nós não os obrigamos a comprar. _ Não, mas vocês vendem os técnicos em modelos mo-

dernos para Landonum e assim nós temos que nos manter à altura. É um carrossel em que vocês nos aprisionam, seus terráqueos espertos. Mas cuidado, pois pode ser que en- contremos uma solução.

_ Honestamente, espero que assim seja. 'Por enquanto, no que diz respeito ao propósito de minha chamada ...

_ Isso mesmo, foi você quem chamou. Bem, eu disse o que tinha a dizer e creio que no próximo ano haverá um nôvo modêlo de metalúrgico para nos obrigar a gastar mais, provà- velmente com um nôvo truque para ensaios de nióbio e sem qualquer outra alteração; e no outro ano. .. Mas diga, o que deseja?

_ Está aqui comigo um jovem com quem gostaria que falasse.

_ Ah, sim? - O noviano não parecia muito satisfeito com a notícia. - A respeito de quê?

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- Não sei. Êle não me disse. Narealidade êle não me disse sequer seu nome ou sua profissão.

- E então para que tomar meu tempo? - perguntou o noviano com o cenho franzido.

_ :Ble parece bastante confiantede que você estará inte-

ressado no que êle tem a dizer. - Duvido.

_ Gostaria que o fizesse como um favor para mim. O noviano deu de ombros.

_ Faça-o aparecer e diga-lhe que seja breve. Ingenescu afastou-se, sussurrando para George: - Trate-o por excelência. George engoliu 'em sêco. A sorte estava lançada.

George sentiu o suor cobrí-lo de umidade. A idéia era recente e no entanto lhe parecia tão segura. Tudo come- çara quando da sua conversa com Trevelyan, desenvolvendo- se, então, e tomando forma durante aconversa com Ingenes- eu, Depois os comentários do noviano pareceram ajustar to- dos os pontos em seus devidos lugares.

_ Excelência, eu estou aqui para lhe indicar uma saída dêsse carros sel. - Propositadamente recorria à metáfora do próprio noviano.

Onoviano olhou-o gravemente. -

Que carrossel? _ O senhor mesmo o disse, excelência. O carros sei em

que Nóvia se transforma sempre que o senhor vem à Terra para. .. para obter técnicos. - (Georgenão conseguia impe- dir que seus dentes batessem de excitação e não de mêdo.)

_ Está tentando me dizer que conhece uma maneira pela qual seríamos capazes de escapar ao supermercado mental da Terra? É isso?

_ Sim senhor. Vocês poderiam controlar o seu próprio

sistema educacional. - Hum ... Sem fitas? - Ss. . . sim, excelência. O noviano, sem desviar os olhosde George, chamou:

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I - Ingenescu, apareça. O historiador aproximou-se, tomando um lugar onde po-

deria ser visto por cima do ombro de George. _ Que história é essa? Parece que não estou entendendo. _ Asseguro-lhe solenemente que, qualquer coisa que se- ja, é iniciativa própria do jovem, excelência. Não inspirei isso. Não tenho nada com isso.

_ Bem, então o que tem a ver com êste jovem? Por que me chama a seu serviço?

_ Ele é objeto de estudo, excelência. Ble tem valor para mim e, por isso, eu faço a sua vontade.

- Que espécie de valor? _ :e. difícil de explicar; coisas de minha profissão. O noviano riu. _ Bem, cada um com sua profissão. - Então fêz um

sinal para uma pessoa ou pessoas invisíveis, fora do campo da tela. - Lá está um jovem, um protegido de Ingenescu, ou qualquer coisa dêsse gênero, que nos explicará como instruir sem fitas. - Estalou os dedos e outro cálice de licor pálido surgiu entre seus dedos. - Bem, meu jovem?

Agora havia muitos rostos visíveis na tela. Homens e mulheres que se comprimiam para ver George, suas fisiono- mias apresentando nuances de curiosidade e incredulidade.

George procurou manter uma expressão desdenhosa. Todos êles estavam, à sua maneira, tanto os novianos como o terráqueo, estudando-o como se Iôsse um inseto prêso com um alfinête. Ingenescu permanecia sentado num canto, olhando-o atentamente.

Todos uns idiotas, pensou tenso. Mas êles teriam que compreender. Ele os obrigaria a entender.

_ Eu estive na Olimpíada Metalúrgica esta tarde. _ Você também? - indagou o noviano. - Ao que pare-

ce a Terra tôda estêve por lá. _ Não, excelência, mas eu me encontrava lá. Tinha um

amigo que estava competindo e que se saiu muito mal porque vocês estavam usando aparelhagem Beeman. Em sua instru- ção constavam apenas aparelhos Hensler, ao que tudo indica um modelo mais antigo. Disse que a modificação envolvidaera pequena. - George ergueu dois dedos próximos um do outro imitando conscientementeo gesto que o outro fizera. - E o meu amigo soubera com alguma antecedênciaque o conhecimento das máquinas Beeman seria exigido.- E que é que isso significa?- Candidatar-se a Novia era a grande ambição da vida do meu amigo. Já conheciaas Hensler. Tinha de conhecer as Beeman para ter chance e sabia-o. Para aprender a

trabalhar com as Beeman seriam necessários apenas mais alguns fatos, mais algunsdados, talvez um pouco de prática. Com a ambição de uma vida em jogo, ele poderiater conseguido...- E onde teria ele obtido uma fita com os dados e os factos adicionais? Ou a educaçãotomou-se num assunto pessoal para estudar em casa, aqui na Terra?As caras no fundo riram obedientemente.- Foi por isso que ele não aprendeu, Honorável - disse George. - Pensou que precisavade uma fita. Sem fita nem sequer tentaria, fosse a que preço fosse. Recusou-sea tentar sem fita.- Recusou-se, eh? Talvez fosse o gênero de tipo que se recusaria a voar sem deslizador?- Mais riso e o noviano, derretendo-se num sorriso, disse: - O rapaz é divertido.Continue. Dou-lhe mais alguns minutos.- Não pense que isto é uma brincadeira - disse George tensamente. - As fitas são,de fato, prejudiciais. Ensinam demais; são demasiado indolores. Um homem queaprenda dessa forma não sabe aprender de nenhuma outra. Fica congelado em qualquerque seja a posição que lhe derem as fitas. Agora se não dessem fitas a umapessoa e a forçassem a aprender manualmente, por assim dizer, desde oinício; entãoessa pessoa ganharia o hábito de aprender, e de continuar sempre a fazê-o. Nãoé lógico? Assim que tenha esse hábito bem enraizado, pode ser-lhe dadauma pequenaquantidade de conhecimento em fita, talvez, para preencher falhas ou ajustarpormenores. Depois pode fazer novos progressos por ele próprio. Poderiatransformaros seus metalúrgicos Hensler em metalúrgicos Beeman dessa forma e não precisariade vir à Terra buscar novos exemplares.O noviano acenou e sorveu um pouco da sua bebida.- E aonde é que vamos buscar o conhecimento, sem fitas? No vácuo interestelar?- Nos livros. Estudando os próprios instrumentos. Pensando.- Livros? Como é que é possível compreender os livros sem educação? .

- Os livros são feitos de palavras. As palavras podem, na sua maior parte, ser entendidas.As palavras especializadas podem ser explicadas pelos técnicos que vocêsjá têm.- E a leitura? Autoriza as fitas de leitura?- As fitas de leitura estão bem, acho eu, mas também não há qualquer razão paraque não se aprenda a ler à maneira antiga. Pelo menos em parte.- Porque assim se ganham bons hábitos desde o início? - disse o noviano.- Sim, sim - disse George alegremente. O homem estava a começar a perceber.- E quanto à matemática?- Isso é o mais fácil de tudo, Sr.... Honorável. A matemática é diferente das outrasmatérias técnicas. Começa com determinados princípios simples e avança por etapas.Pode começar-se do nada e aprender. Está praticamente estruturada para isso. Depois,quando já se sabe o tipo de matemática indicado, os outros livros técnicos tornam-se bastante compreensíveis. Especialmente se se começar com os mais fáceis.- Há livros fáceis?- Com certeza. Mesmo que não houvesse, os técnicos que vocês já têm podiamtentar escrever livros fáceis. Alguns deles podiam ser capazes de pôr algum do seuconhecimento em palavras e símbolos.- Meu Deus! - disse o noviano às pessoas que o rodeavam. - O diabinho tem respostapara tudo.- Tenho. Tenho - gritou George. - Perguntem-me.- Já tentou, você mesmo, aprender através de livros? Ou isto ainda é só teoriapara si?George virou-se para deitar um rápido olhar a Ingenenescu, mas o historiador estavaimpassível. A sua expressão não indicava nada a não ser um interesse moderado.- Já - disse George.- E acha que funciona?- Sim, Honorável- disse George impacientemente. - Leve-me consigo para Novia.Posso organizar um programa e dirigir...

- Espere, tenho mais algumas perguntas a fazer. Quanto tempo seria necessário,supõe você, para que você se tornasse num metalúrgico capaz de operar uma máquinaBeeman, supondo que partia do nada e não utilizava fitas Educacionais?George hesitou.- Bem... anos, talvez.- Dois anos? Cinco? Dez?- Não lhe sei dizer, Honorável.- Bem, aí está uma pergunta vital para a qual você não tem resposta, ou tem? Digamos,cinco anos? Parece-lhe razoável?- Acho que sim.- Muito bem. Segundo esse seu método, teríamos um técnico a estudando metalurgiadurante cinco anos. Durante esse período de tempo não teria para nós qualquerutilidade, como deve reconhecer, mas teria de ser alimentado, alojado e pagodurante todo. esse tempo.- Mas...- Deixe-me acabar. Depois, quando ele tivesse terminado e pudesse usaras Beeman,teriam passado cinco anos. Não acha plausível que nessa altura já usássemosBeemans diferentes, que ele não seria capaz de operar?- Mas nessa altura já ele seria perito em aprender.Poderia estudar os novos pormenores necessários numa questão de dias.- É o que você diz. E supondo que esse seu amigo, por exemplo, tivesse estudadoas Beeman por sua conta e tivesse conseguido aprender o seu uso; seriaele tão peritonelas como qualquer concorrente que o tivesse aprendido através de fitas?- Talvez não... - começou George.- Ah - disse o noviano.- Espere, deixe-me acabar. Mesmo que não saiba tão bem determinada coisa, a capacidadede aprender sempre mais é que é importante. Seria capaz de inventar coisas,coisas novas que nenhuma pessoa educada pelas fitas poderia. Teria umdepósitode pensadores criativos...- Enquanto estudava - disse o noviano - inventou alguma coisa nova?- Não, mas sou apenas um e não estudei muito...

- Sim... Bem, senhoras e senhores, já fomos suficientemente entretidos?- Espere - gritou George, em súbito pânico. - Quero marcar uma entrevista particular.Há coisas que não posso explicar pelo visifone. Há pormenores...O noviano olhou por cima de George.- Ingenenescu! Acho que já lhe fiz o favor. Agora, falando a sério, tenho um diamuito cheio amanhã. Passe bem!O visor apagou-se.As mãos de George saíram disparadas na direção do visor, como se numimpulsoextremo pretendesse devolver-lhe a vida com safanões.- Ele não acreditou em mim - gritou George. - Ele não acreditou em mim.- Claro que não, George -disse Ingenenescu - Pensavas realmente que ele acreditaria?George mal o ouvia.- E por que não? É tudo verdade. É tudo para seu beneficio. Sem riscos. Eu e algunshomens com quem trabalhar... Uma dúzia de homens aprendendo durante anoscustariam menos que um técnico... Ele estava bêbado! Bêbado! Não compreendeu.George olhou em volta sem fôlego.- Como é que eu posso entrar em contacto com ele?Tenho de fazer. Isto foi mal feito. Não devia ter usado o visifone. Preciso de tempo.Face a face. Como é que eu...- Ele não te receberá, George - disse Ingenenescu - E se o fizesse não acreditariaem ti.- Acreditaria sim, estou-lhe dizendo. Se não estiver bebendo. Ele... - George virouseabruptamente para o historiador e os seus olhos aumentaram de tamanho. - Porque é que me chamou George?- Não é o teu nome? George Platen?- Conhece-me?- Sei tudo sobre ti.George permaneceu imóvel, excetuando a respiração que fazia o seu peito subir edescer.- Quero ajudar-te, George - disse Ingenenescu -Já te disse. Tenho lhe estudado equero ajudá-o.George gritou.

- Não preciso de ajuda. Não sou débil mental. O mundo todo é que é, eu não. -Rodou sobre si mesmo e dirigiu-se para a porta.Abriu-a com violência e dois policiais levantaram-se repentinamente dos seus postosde guarda e agarraram-no.Por mais que se debatesse, George sentiu o hipo-pulverizador na zona macia mesmoabaixo da curva do seu maxilar, e foi tudo. A última coisa de que se lembrava erada cara de Ingenenescu, observando-o com leve preocupação.George abriu os olhos para a brancura de um teto. Lembrava-se do que tinhaacontecido. Lembrava-se muito de longe, como se tivesse acontecido a outra pessoa.Olhou o teto até que a brancura lhe encheu os olhos e lhe lavou o cérebro, deixandoespaço, parecia, para novos pensamentos e novas formas de pensar.Não sabia há quanto tempo ali estava deitado, ouvindo o fluir dos seus própriospensamentos.Ouviu uma voz ao ouvido: - Estás acordado?E George ouviu os seus próprios gemidos pela primeira vez. Teria estado gemendo?Tentou virar a cabeça.- Dói-te, George? - disse a voz.- Curioso - murmurou George. - Estava tão ansioso por deixar a Terra. Não compreendi.- Sabes onde estás?- De volta à... à Casa. - George conseguiu virar-se. A voz pertencia a Omani.- É curioso eu não ter percebido - disse George... Omani sorriu docemente.- Dorme outra vez...George adormeceu.E acordou de novo. A sua mente estava lúcida.Omani estava sentado ao lado da cama lendo, mas pousou o livro logo que osolhos de George se abriram.George sentou-se com muito esforço. - Olá - disse. -Tens fome?- Podes crer. - Fitou Omani com curiosidade. - Fui seguido quando saí, não fui?Omani acenou com a cabeça.- Estiveste sempre sob observação. Íamos conduzir-te a Antonelli e deixar-te descarregar

a tua agressividade. Sentimos que essa era a única forma de progredires.As tuas emoções estavam bloqueando o teu avanço.- Estava completamente enganado a respeito dele disse George, com uma pontade embaraço.- Agora não interessa. Quando paraste para olhar para o quadro de informaçõesde Metalurgia, no aeroporto, um dos nossos agentes comunicou-nos a lista dos nomes.Tu e eu tínhamos falado suficientemente sobre o teu passado para que eu percebesseo significado do nome de Trevelyan ali. Perguntaste o caminho para a Olimpíada;havia possibilidades disto acabar no tipo de crise que procurávamos; mandamosLadislas Ingenenescu ir ter contigo ao salão e tomar conta do caso.- Ele é um homem importante no governo, não é?- É, sim.- E vocês mandaram-no tomar conta do caso. Faz-me sentir importante.- Tu és importante, George.Tinha chegado um guisado espesso, fumegante, cheiroso. George arreganhou osdentes como um lobo e empurrou os lençóis de maneira a libertar os braços. Omaniajudou-o a montar o tabuleiro de cama. Por um momento, George comeu em silêncio.Depois disse:- Acordei aqui uma vez, antes, por pouco tempo.- Eu sei - disse Omani - Eu estava aqui.- Pois, eu lembro-me. Sabes, tudo tinha mudado. Era como se estivesse demasiadocansado para sentir emoções. Já não sentia raiva. Só podia pensar. Era como se metivessem dado uma droga para acabar com as emoções.- Não deram - disse Omani. - Apenas um sedativo. Tu descansaste.- Bem, de qualquer forma, estava tudo claro, como se eu sempre tivessesabidomas nunca tivesse ouvido a mim próprio. Que é que eu queria que Noviame deixassefazer?, pensei. Queria ir para Novia e levar comigo um grupo de jovens não educadospara ensinar através de livros. Queria estabelecer uma Casa para DébeisMentais(como aqui), e a Terra já as tem, muitas até.Os dentes brancos de Omani brilharam quando ele sorriu.

- O nome correto para sítios como este é Instituto de Estudos Superiores.- Agora percebo - disse George - tão facilmente que estou espantado com a minhacegueira anterior. Afinal, quem é que inventa os instrumentos novos quenecessitamde novos técnicos? Quem é que inventou os espectrógrafos Beeman, porexemplo?Um homem chamado Beeman, suponho, mas não poderia ter sido educado atravésde fitas, senão como é que ele teria feito esse progresso?- Exatamente.- E quem é que faz as fitas Educacionais? Técnicos especiais de fabricação defitas? Então quem é que faz as fitas para formá-os? Técnicos mais avançados? Entãoquem é que faz as fitas... Percebes o que quero dizer. Tem de haver um fim em algumponto. Tem de existir em algum lugar homens e mulheres com capacidade parapensamento criativo.- Sim, George.George reclinou-se, olhou por cima da cabeça de Omani, e por momentos algo deirrequieto voltou aos seus olhos. - Por que é que não me disseram tudo isto noinício?- Ah, se pudéssemos - disse Omani -, o trabalho que isso nos pouparia. Podemosanalisar uma mente, George, e dizer que este dará um arquiteto competente e aqueleum bom carpinteiro, mas não temos nenhum processo de detectar capacidadepara pensamento original e criativo. É algo demasiado sutil. Temos alguns métodosempíricos para detectar indivíduos que possivelmente ou potencialmente podem teresse talento.No Dia da Leitura, esses indivíduos nos são comunicados. Tu foste um deles, porexemplo. Grosso modo, o número de indivíduos comunicados nessas condições andapor volta de um em dez mil. Quando chega o Dia da Educação, esses indivíduos sãoverificados outra vez, e chega-se à conclusão de que nove em cada dez eram falsosalarmes. Os que sobram são enviados para lugares como este.

- Bem, que é que há de mau em dizer às pessoas que um em cada... em cada cemmil acaba em lugares como este? disse George. - Nesse caso já não seriaum choquetão grande para os que vêm.- E os que não vêm? Os noventa e nove mil novecentos e noventa e nove que nãovêm? Não podemos permitir que todas essas pessoas se considerem unsfalhados.Aspiram a uma profissão e, de uma forma ou de outra, todos a conseguem. Todospodem pôr a seguir ao nome: Não-sei-quantos registrado. De uma ou doutra formacada indivíduo tem o seu lugar na sociedade e isso é necessário.- Mas, e a nós? - disse George. - As exceções, uma em cada dez mil?- Não podemos lhes dizer. É precisamente isso. É o teste final. Mesmo depois determos reduzido as possibilidades no Dia da Educação, nove em cada dez dos quevêm para aqui ainda não são propriamente gênios criativos, e não há qualquer forma automatizada de distinguir esses nove do décimo que nós queremos. O décimo temde se denunciar a ele próprio.- Trazemos-lhes para uma destas casas para Débeis Mentais e aquele que nãoaceitar esse fato é o homem que nós queremos. É um método um poucocruel, masfunciona. Não adianta dizer a uma pessoa: «Podes criar. Cria.» É muito mais seguroesperar que alguém diga «Eu posso criar, e vou fazê-o quer vocês queiram quernão.» Há dez mil pessoas como tu, George, que suportam o avanço tecnológico demil e quinhentos mundos. Não podemos dar-nos ao luxo de perder um recruta paraesse número, ou de desperdiçar o nosso esforço em alguém que não preenche ascondições necessárias.George afastou o prato vazio do caminho e levou uma chávena de café àboca.- Que é que acontece às pessoas que vêm para aqui e não... preenchem as condições?- Normalmente são educados através de fitas e transformam-se em cientistas sociais.Ingenenescu é um deles. Eu sou psicólogo registrado. Somos da segundadivisão,por assim dizer.

George terminou o café.- Ainda tenho uma dúvida - disse.- E o que é?George atirou o lençol para o lado e levantou-se. - Por que é que lhe chamamOlimpíadas?

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Vale a pena ler, vejam! («I Just Make Them Up, See!»). Copyright © 1957 by FantasyHouse,Inc. Originalmente publicado en Fantasy and Science Fiction, fevereiro de 1958.Profissão («Profession»). Copyright © 1957 by Street and Smith Publications, Inc.Originalmente publicado em Astounding Science Fiction, julho de 1957.A Sensação de Poder («The Feeling of Power»). Copyright © 1957 by Quinn Publishing Co.,Inc. Originalmente publicado em //: Worlds of Science Fiction, fevereiro de 1958.A noite Moribunda («The Dying Night»). Copyright © 1956 by Fantasy House, Inc.Originalmente publicado em Fantasy and Science Fiction, julho de 1956.Estou em Porto Marte sem Hilda («I’m in Marsport without Hilda»). Copyright © 1957 byFantasy House, Inc. Originalmente publicado em Venture Science Fiction, novembro de 1957.Os Abutres Bondosos («The Gentle Vultures»). Copyright © 1957 by Headline Publications,Inc. Originalmente publicado em Super-Science Fiction, dezembro de 1957.Todos os Problemas do Mundo («All the Troubles of the World»). Copyright © 1958byHeadline Publications, Inc. Originalmente publicado em Super-Science Fiction, abril de 1958.Meu Nome se escreve com «S» («Spell My Name with an S»). Copyright © 1958 byBallantine Magazine, Inc. Originalmente publicado em Star Science Fiction, janeiro de 1958,com o título: S, as in Zebatinsky.A Última Pergunta («The Last Question»). Copyright © 1956 by Columbia Publications, Inc.Originalmente publicado em Science Fiction Quarterly, novembro de 1956.O Garotinho Feio («The Ugly Little Boy»). Copyright © 1958 by Galaxy PublishingCorporation. Originalmente publicado em Galaxy Magazine, setembro de 1958, com o título:Lastborn.