nosso tempo e tempos modernosinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/revista de filosofía ucr...j. evola,...

4
LUIS \N ASI-lINGTON VITA "NOSSO TEMPO" E "TEMPOS MODERNOS" E' o filósofo, por sua natureza contemplativo, um ser incompreenclido pelos homens de acáo (ou pelos maniqueus que se c1cleitam na acáo ) os quais nao entendem, C01l10 advertía o pranteado Merleau-Ponty, que a reílexáo que separa o filósofo cIo mundo o religa de novo, e mais fortemente que antes, com o mundo, Inquirir o mundo e obrigar-lhe a responder é mi sáo do Iiló oío, indagador por vocacáo e destino. Daí municiar-se de "idéias", entendidas como nocóes que o homen forja para responder as situacóes que se lhe antolham e para compreender a realidade que lhe coube, ou, para usar do vocabulário que Toynbee pos ern circulacáo, busca uma "resposta" ao "desafio" que o meio físico e histórico formula a vida huma- na. Por isso o pensamento quase sernpre funciona entre dificuldades que afligem ao hornen, ruin ocorrendo a reílexáo senáo quando urn obstáculo a atividade, quando a expressáo de algum impulso está tolhida . Este impedimento da ati- vidade reflexiva se reveste dos mais diversos aspectos, sendo o ideológico o mais relevante déles, isto é, quando o filósofo se rnanifesta, através de "idéias", con- dicionado pela constituicáo interna da sociedade . Consequentcmente, nao apenas "conhece" o mundo, mas o "oculta", mascaran do suas aspiracóes mais recón- ditas pois é, as vézes, presa de urna ambivaléncia que emerge de urna situacáo dilemática: sua opcáo entre realidacle e expressáo ideal. E' a possibilidade da "falsa consciencia" de que íalava Hegel e que nos nossos dias se apresenta como problema da distincáo entre "conteúdo ideológico" e "significacáo de urna pro- posicáo cognoscitiva". Admitida a existencia das ideologias como sistemas con- ceituais de ocultacáo isso nao impede que possa ser constituída urna superior e maior objetividade do saber que, nao obstante vinculado as sua raízes sociais e históricas, independe unilateralrnente e exclusivamente clessas raízes. Caso con- trário, a própria socio logia do conhecimento-disciplina "desmascaradora"- seria "ideológica" e, portanto, "ocultadora", quando em verdade é, pelo menos na forma assumida em Mannheim, nao o resultado de urna teoria abstrata, mas o resultado de urna investigacao empírica que implica urna teoria geral sobre a relacáo entre pen samento e acáo, íntimamente relacionados de acórdo com cer- tas normas de dependencia. Daí a possibilidade de poder-se apontar certas dou- trinas filosóficas como marcadas de "falsa consciencia", sutilmente escusa ou inconscientemente mascaracloras. Um exernplo flagrante de comportamento icleológico-no sentido acima expósto=-é toda a obra de Ortega y Gasset, notadarnente em El tema de nuestro tiempo (1923) e, corn menor relevancia e mais escándalo, ern La rebelum. de las masas (1930), Ambos os livros orteguianos-sob outro ponto de vi ta, de indiscutível importancia na história do pensamento conternporáneo-c-sáo frutos de urna ambiéncia "epoca]" de irada crítica contra a "contemporaneidade", per- filando o eminente mestre da chamada Escola de Madrid ao lado de Klages, Spengler, Scheler, Rosenberg, Moeller van den Bruck, J aspers, Georges Sorel,

Upload: others

Post on 25-Apr-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

LUIS \NASI-lINGTON VITA

"NOSSO TEMPO" E "TEMPOS MODERNOS"

E' o filósofo, por sua natureza contemplativo, um ser incompreenclidopelos homens de acáo (ou pelos maniqueus que se c1cleitam na acáo ) os quaisnao entendem, C01l10 advertía o pranteado Merleau-Ponty, que a reílexáo quesepara o filósofo cIo mundo o religa de novo, e mais fortemente que antes, como mundo, Inquirir o mundo e obrigar-lhe a responder é mi sáo do Iiló oío, indagadorpor vocacáo e destino. Daí municiar-se de "idéias", entendidas como nocóes que ohomen forja para responder as situacóes que se lhe antolham e para compreender arealidade que lhe coube, ou, para usar do vocabulário que Toynbee pos ern circulacáo,busca uma "resposta" ao "desafio" que o meio físico e histórico formula a vida huma-na. Por isso o pensamento quase sernpre funciona entre dificuldades que afligem aohornen, ruin ocorrendo a reílexáo senáo quando há urn obstáculo a atividade,quando a expressáo de algum impulso está tolhida . Este impedimento da ati-vidade reflexiva se reveste dos mais diversos aspectos, sendo o ideológico o maisrelevante déles, isto é, quando o filósofo se rnanifesta, através de "idéias", con-dicionado pela constituicáo interna da sociedade . Consequentcmente, nao apenas"conhece" o mundo, mas o "oculta", mascaran do suas aspiracóes mais recón-ditas pois é, as vézes, presa de urna ambivaléncia que emerge de urna situacáodilemática: sua opcáo entre realidacle e expressáo ideal. E' a possibilidade da"falsa consciencia" de que íalava Hegel e que nos nossos dias se apresenta comoproblema da distincáo entre "conteúdo ideológico" e "significacáo de urna pro-posicáo cognoscitiva". Admitida a existencia das ideologias como sistemas con-ceituais de ocultacáo isso nao impede que possa ser constituída urna superior emaior objetividade do saber que, nao obstante vinculado as sua raízes sociaise históricas, independe unilateralrnente e exclusivamente clessas raízes. Caso con-trário, a própria socio logia do conhecimento-disciplina "desmascaradora"-seria "ideológica" e, portanto, "ocultadora", quando em verdade é, pelo menosna forma assumida em Mannheim, nao o resultado de urna teoria abstrata, maso resultado de urna investigacao empírica que implica urna teoria geral sobrea relacáo entre pen samento e acáo, íntimamente relacionados de acórdo com cer-tas normas de dependencia. Daí a possibilidade de poder-se apontar certas dou-trinas filosóficas como marcadas de "falsa consciencia", sutilmente escusa ouinconscientemente mascaracloras.

Um exernplo flagrante de comportamento icleológico-no sentido acimaexpósto=-é toda a obra de Ortega y Gasset, notadarnente em El tema de nuestrotiempo (1923) e, corn menor relevancia e mais escándalo, ern La rebelum. delas masas (1930), Ambos os livros orteguianos-sob outro ponto de vi ta, deindiscutível importancia na história do pensamento conternporáneo-c-sáo frutosde urna ambiéncia "epoca]" de irada crítica contra a "contemporaneidade", per-filando o eminente mestre da chamada Escola de Madrid ao lado de Klages,Spengler, Scheler, Rosenberg, Moeller van den Bruck, Jaspers, Georges Sorel,

280 SEGUNDO CONGRESO EXTRAORDINARIO INTERAMERICANO DE FILOSOFIA

J. Evola, todos engajado na "revolta contra o mundo moderno" (precisamenteo título de um dos livros do último autor citado). O inconformismo déstes pen-sadores contra o mundo uioderno é de tal monta que, a fórca de mascará-locom uma típica ironia "Iin-de-siécle" (o epíteto dado ao século XIX, que é amatriz da presente contemporaneidade e celeiro de categorias polémicas, por umdos inspiradores do fascismo-século estúpido-é a premissa maior da qual serádeduzida a conclusáo irracionalista dos movimentos reacionários de todos osmatiz es, verdadeiro "assalto a razáo" como teve enséjo de denunciar GeorgLukács), ostenta hoje urna facies medonha cle tragéclia ressentida ou de ressen-timento trágico. Dimensóes désse clrama-que já foi comédia e tende a elegia-é El tema de nuestro tiempo, oncle "nosso tempo" cleve ser entendido como urnacategoria historiológico-espiritual, símile ma nao sinómina de outra categoria,"tempos modernos", pois na primeira importa a rerum qcstarutn, a descricáo ounarrativa da realidacle histórica, Geschichtsersdlilunq, enquanto "saber do mundo",e na segunda a res gestae, a realidade histórica, das Geschebcn, enquanto "aconteceno mundo". "I os so ternpo" seria a expresáo ideal do filósofo; "ternpos modernos",a realidacle em toda sua crueza fáctica e, nem por isso, túrgida de anseios. N oprimeiro caso estamos cliante de uma "escamoteacáo metafísica" e no segundo.urna "compreensáo histórico-sociológica", oncle, ao invés de idéias, os persona-gens do drama sáo hornens de carne e os o e países que Iorcam sua entrada nahistória.

Com efeito, o que tem em vista Ortega com seu "tema de nosso tempo"-enfático título que clez anos depois, em 1932, o próprio pensador madrilenhoo considerou "demasiado solene" (O. C., IV, 404)-, propósto nurn momentoem que o mundo se dividia sob a lideranca de Lénin ? Seu objetivo é, simples-mente, denunciar o racionalismo. E sa denuncia pode ser assim resumida: pelomenos desde a época de Descartes os filósofos modernos mostraram constantee extrema propensáo a fiar-se quase inteiramente das verdades universais abs-tratas. Esta propensáo tem UIl1 nome: é o racionalismo. De acórdo com o racio-nalismo, o homem é primariamente um animal racional cuja missáo consiste erndescobrir princípios racionais indubitáveis capazes de ser aplicados sem falhanáo sómente ao reino da filosofia e da ciencia, mas também ao da ética e dapolítica. Déste supósto básico se seguem consequéncias extremadamente impor-tantes: a desconíianca na espontaneidade humana, a propensáo ao pensamentoutópico, e a crescente tendencia em sobrepór a cultura a vida e a razáo pura aocomportamento espontáneo Pode- e pensar que, com isso, simplificou-se ao ex-tremo o complexo quadro do pensamento filosófico moderno. E, com efeito,assim acontece. E' possível explicar a idade moclerna, mesmo considerada doponto de vista das idéias filosóficas e científicas, como o evolver do racionalismo?Ortega sabe que nao é possível. Outras tendencias básicas devem ser tidas emconta. Entre elas, urna que constitui a contrapartida do racionalismo. Esta ten-dencia consiste essencialmente ern negar a existencia de verdades universais eem destacar ao máximo o caráter mutável da realidacle e da vida. Muitos Domesse deu a essa tendencia, mas U1l1 déles é particularmente revelador: o relativismo.Entre seus partidários figuram muitos empiristas e cépticos da época moclerna.Ora, nem o racionalismo nem o relativismo podern manipular adequadamente asdificuldacles suscitadas pela coexistencia de fato clas perspectivas individuais ehistóricas com o inegável anclo por conseguir verdacles universais. O "tema de110SS0 ternpo" se faz, com isso, bastante preciso: consiste em encontrar umasolucáo para a disputa entre o racionalismo e o relativismo. Esta aspiracáo coin-

22·26 JULIO 1961 - SAN JOSE· COSTA RICA 281

cide com anteriores ]UIZOS formulados por Ortega que, já em 1916, havia ma-nifestado que nao estava dispósto a ser um "hornem moderno" (O. c., II, 22-4) .COIl1 isso, clava a entender que "o tema moderno" se exaurira e que o séculoXX marca o coméco de urna nova época a qual lhe sáo formulados novos pro-blemas, uma época que aspira a clescobrir novas solucóes em filosofia, em ciencia,em arte e em política (O. C., VI, 304, 306 e 312). Portanto, consoante adverteJosé Ferrater Mora, El tema de nuestro tiempo nao foi escrito "para opor-se.ao moderno com o fim cle retroceder ao antigo, mas para superar o moderno.e conservar dele o que tivesse cle valor e de incitacáo" (Ortega y Gasset: etapasde .una filosofía, 1958, p. 69; d. pp, 67-8). Em resumidas contas, era precisoreconquistar o império de razáo pura, tornando-se entáo imperativo redescobriras potencias da vida, libertar a vida de sua subrnissáo a razáo pura, em suma,reconhecer-se que a "razón es sólo una forma y función de la vida" (O.c., III,178).

C0l110 se ve, perfeito foi o "assalto a razáo", primorosa a tática, estupentaa estratégia e a presa cle guerra foi a "razáo vital" ou "razáo viven te" da qualse depreende que nao basta desdenhar a razáo (como fazem os irracionalismos detodos os matizes) nern manter-se dentro dos escaninhos da razáo tradicional, mas-reconhecer=-como assinala J ulián Marías-que "sómente quando a própria vidafunciona como razáo conseguimos entender algo humano". Desta modo a razáo(vital) é a própria vida enquanto é capaz de dar conta de si mesma e de suaspróprias situacóes . Mas nao é nosso propósito discutir o problema do rácio-vitalismo orteguiano, e sim defini-lo C01110U111 dos mais conspícuos críticos dacontemporaneidade. J este sentido, La rebelión de las masas faz perfeito pendanicom El tema de 1111es!1'otiempo, nao enquanto posicáo "aristocratizante" em de-trimento do hornem-massa (como se sabe, Ortega reconheceu também que oimpério das masas "apresenta. .. urna vertente favorável enquanto significa urnaelevacáo de todo o nivel histórico, e revela que a vida média se move hoje emaltura superior a que ontem pisava", O. C., IV, 156), mas enquanto de-nunciador das debilidades do hornem-massa, realidade social bastante incomodae, por isso, lamentável, poi s reconhece que as acóes recíprocas entre massas eminorias poderáo desaparecer com a eliminaco destas últimas. Dai choca-lo oadvento do homern-rnassa, expressáo e símbolo do mundo contemporáneo

De resto, o termo "moderno", como problema a albergar um outro pro-blema, o do fato "moderno", é bastante antigo, pois é empregado, consoante R.Eucken, desde o século X nas polémicas filosóficas ou religiosas, e quase semprenuma acepcáo subentendida, ora laudativo (amplitude e liberdade de espírito,conhecimento dos Iatos mais recen temen te descobertos ou das idéias mais recen-temente formuladas, ausencia de preguica e de rotina), ora pejorativo (Ievian-dade, preocupacáo pela moda, amor da mudanca pela mundanca, tendencia emdeixar-se levar, sem apreciar nem compreender o passado, pelas impressóes domomento). Informa ainda Eucken os principais usos que se fizeram da palavra"moderno", distinguindo entáo, no que concerne ao uso atual, por um lado umajusta modernidade, que corresponde as transíormacóes, progressivas e necessá-rias do pensamento; por outro, urna modernidade superficial (ein Flachmoderne),que consiste na ignorancia da tradicáo, no amor da novidacle qualquer que seja,na agitacáo, na propaganda e na pugna d. verbo "Moderne" in V ocabulaire deLalande). Claro está que o problema nao é apenas sernántico mas, principalmente,histórico-espiritual e, assim sendo, pletórico de dificuldades. Em primeiro lugardever-se-ia examinar se toda a modernidade nao é, no fundo, como Comte sus-

282 SEGUNDO CONGRESO EXTRAORDINARIO INTERAMERICANO DE FllOSOFIA

tentara repetidamente, senáo urna fase da crise histórica, um momento de anarquíanecessária para chegar a uma nova ordem, mesmo admitindo o moderno em seuconjunto como urna época histórica relativamente fechada e possuidora de caracte-rísticas próprias, como urna fase histórica relativamente normal inserida entreduas crises-a renascentista e a atual-, seria conveniente examinar a partir deque momento o moderno entra própriamente em crise. Por outro lado, em plenaldade Media encontramos inúmeras antecipacóes do que depois será consideradocomo. "moderno", enquanto no pensamento atual sobrevivem urna grande quan-tidade de temas "modernos". E modernismo quer dizer racionalismo, uma espéciede "senha" que permanece no revesamento do si temas filosóficos que compóerna história do pensamento especulativo. Contra esta "permanencia" se rebela Or-tega; o criador do rácio-vitalismo, useiro e vezeiro em anunciar livros que nuncaescrevera (e publicar outros jamais anunciados), esqueceu-se de apregoar um,nunca escrito mas cujo prefácio sáo suas reflexoe sobre o "tema de nosso tempo" ;La rebelión de la razón ...

A crise da contemporaneidade se entremostra no revolvimento da filosofiahegeliana, quando ela baixa do céu a terra, e atinge sua maturidade quando osesquema abstratos da dialética se revestem de carne e sangue, acordando POyOS

ágrafos e feudais para a modernidade, para os tempos modernos. Nao e trata,agora, de construir o conteúdo da história mediante categorías rigorosamente fi-losóficas (como queria Hegel e sua ilustre progenie historicista), nem mesmo deuma reílexáo sobre a [ormo: intelectual da historiografia (como praticara Rickerte os retardatários epígonos do neokantismo da escola de Baden), mas de umacompreensáo histórico-sociológico-política de um advento humano que rompe ashieráticas balisas da lógica da história-sem negar sua racionalidade-e trans-borda, inundando tudo e todos. Nao é mai o nosso tempo, substantivacáo pe-queno-burguésa de um pronome possessivo, mas tempo presente, aqui e agora, aclamar biblicamente; comigo ou contra mim , A sorte está jogada. Do lado dabanca estáo os críticos da contemporaneidade, os rebelados da razáo ; do lado do.ponto os meditadores que flutuam sobre o socóbro da sociedade contemporánea,indagando sobre o sentido de seu desastre, nao para criticá-lo ou acusá-lo deilusório, mas para compreendé-lo, como Mannheim, Sartre, Muníord, Merleau--Ponty, Lukács, Ferrater Mora, Hans Freyer, que nos oferecem, ao mesmo tempo,o diagnóstico e a terapia dos tempo modernos, com plena responsabilidade, parao proces o de auto-criacáo histórica do hornen e para a preparacáo do seu futuro;desocultando e desma carando a realidade.

Seria realmente assim? Eis o tema que propomos a consideracáo do IICongreso Extraordinario Interamericano de Filosofía com o objetivo de clari-ficar a presente con juntura espiritual do mundo, convidando os pensadores pre-sentes ao certame para seu debate e, quem sabe, sua solucáo . Jamais como néstemomento coube aos homens contemplativos-verdadeiros incubadores da acáo-oferecer os expedientes re olutivos da erise. Somos filósofos numa encruzilhada :atrás de nós o Caribe e a ilha cástrica ; diante de nós, o imenso Pacífico cujosconfins é o Mar da China; e sobre nós o eolosso iánque . Meditemos essa geografiana sua dimensáo recóndita e no seu ·entido humanistico . Porque eterno é o prin-cípio de Protágoras; horno meusura.