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NOS RASTROS DO ATLÂNTICO NEGRO: IMPRENSA E CIRCULAÇÃO DE REFERENCIAIS A PARTIR DO JORNAL NEGRITUDE (1986-2002) André Eduardo Bezerra de Carvalho Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal da Paraíba [email protected] RESUMO: Este artigo tem como objetivo utilizar o jornal Negritude do MNU-PE como fonte para tecer uma reflexão sobre imprensa negra e circulação de referenciais. Com efeito, dois eixos temáticos são propostos no intuito de apontar as ligações entre essa imprensa e a circulação de referenciais pelo Atlântico Negro. Primeiramente, este periódico é abordado como parte associada à imprensa negra recifense. Nesse quadro, o Negritude é analisado desde sua primeira edição, focalizando o olhar na sua materialidade e nas falas mais entoadas ao longo dos anos, nos fazendo enxergar nas representações forjadas elementos de resistência antirracista e de busca por equidade racial. O segundo momento aproxima-se das abordagens da História transnacional e dos estudos da Diáspora Negra para apontar os reflexos de elementos do sistema cultural e político do Atlântico Negro nesses jornais. Busca-se compreender algumas influências externas, analisando como eram representadas nos jornais da imprensa negra recifense e mostrando, ao mesmo tempo, como eram reelaboradas e incorporadas aos discursos e práticas dos protagonistas por trás da comissão de imprensa a partir da perspectiva da circulação de referenciais existente no chamado Atlântico Negro pensado por Paul Gilroy. Palavras-chave: História contemporânea; Imprensa Negra; Atlântico Negro. O Jornal Negritude na órbita da imprensa negra do Recife A imprensa negra contemporânea recifense surgiu num período marcado pelo lento processo de abertura política no Brasil. Esse tempo de transição nos mostra uma conjuntura nacional bastante efervescente no que concerne à busca por reconhecimento público e institucional de direitos fundamentais às ditas minorias sociais, que neste momento voltaram a se organizar em diversos movimentos sociais com o intuito de reivindicar questões caras ao seu cotidiano. Assim foi, por exemplo, que ressurgiram os movimentos negros organizados contemporâneos como o Movimento Negro Unificado, em 1978. Paralelamente a esse panorama e intrinsecamente ligada aos movimentos negros, a imprensa negra recifense começou a angariar seus primeiros passos com a publicação do jornal Angola do Centro de Cultura Afro-Brasileira, em maio de 1981. A partir daí surgiram no Recife outros periódicos inclusive o Negritude com temáticas bastante variadas vinculados a grupos específicos como, por exemplo,

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Page 1: NOS RASTROS DO ATLÂNTICO NEGRO: IMPRENSA E …€¦ · circulação de referenciais existente no chamado Atlântico Negro pensado por Paul Gilroy. Palavras-chave: História contemporânea;

NOS RASTROS DO ATLÂNTICO NEGRO: IMPRENSA E CIRCULAÇÃO DE

REFERENCIAIS A PARTIR DO JORNAL NEGRITUDE (1986-2002)

André Eduardo Bezerra de Carvalho

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História

Universidade Federal da Paraíba

[email protected]

RESUMO: Este artigo tem como objetivo utilizar o jornal Negritude do MNU-PE como

fonte para tecer uma reflexão sobre imprensa negra e circulação de referenciais. Com

efeito, dois eixos temáticos são propostos no intuito de apontar as ligações entre essa

imprensa e a circulação de referenciais pelo Atlântico Negro. Primeiramente, este

periódico é abordado como parte associada à imprensa negra recifense. Nesse quadro, o

Negritude é analisado desde sua primeira edição, focalizando o olhar na sua materialidade

e nas falas mais entoadas ao longo dos anos, nos fazendo enxergar nas representações

forjadas elementos de resistência antirracista e de busca por equidade racial. O segundo

momento aproxima-se das abordagens da História transnacional e dos estudos da

Diáspora Negra para apontar os reflexos de elementos do sistema cultural e político do

Atlântico Negro nesses jornais. Busca-se compreender algumas influências externas,

analisando como eram representadas nos jornais da imprensa negra recifense e

mostrando, ao mesmo tempo, como eram reelaboradas e incorporadas aos discursos e

práticas dos protagonistas por trás da comissão de imprensa a partir da perspectiva da

circulação de referenciais existente no chamado Atlântico Negro pensado por Paul Gilroy.

Palavras-chave: História contemporânea; Imprensa Negra; Atlântico Negro.

O Jornal Negritude na órbita da imprensa negra do Recife

A imprensa negra contemporânea recifense surgiu num período marcado pelo

lento processo de abertura política no Brasil. Esse tempo de transição nos mostra uma

conjuntura nacional bastante efervescente no que concerne à busca por reconhecimento

público e institucional de direitos fundamentais às ditas minorias sociais, que neste

momento voltaram a se organizar em diversos movimentos sociais com o intuito de

reivindicar questões caras ao seu cotidiano. Assim foi, por exemplo, que ressurgiram os

movimentos negros organizados contemporâneos como o Movimento Negro Unificado,

em 1978. Paralelamente a esse panorama e intrinsecamente ligada aos movimentos

negros, a imprensa negra recifense começou a angariar seus primeiros passos com a

publicação do jornal Angola do Centro de Cultura Afro-Brasileira, em maio de 1981. A

partir daí surgiram no Recife outros periódicos – inclusive o Negritude – com temáticas

bastante variadas vinculados a grupos específicos como, por exemplo,

Page 2: NOS RASTROS DO ATLÂNTICO NEGRO: IMPRENSA E …€¦ · circulação de referenciais existente no chamado Atlântico Negro pensado por Paul Gilroy. Palavras-chave: História contemporânea;

Negritude, do Movimento Negro Unificado de Pernambuco/MNU-PE;

Omnira, do Grupo de Mulheres do MNU-PE; NegrAção, do Afoxé Alafin Oyó

e Djumbay, da Djumbay – Organização pelo Desenvolvimento da Comunidade

Negra. (QUEIROZ, 2011, p.533).

Enquanto práticas emancipatórias do decurso final do século XX, esses jornais

podem ser enxergados como produtos de experiências do povo negro da diáspora por

igualdade racial. Diante disso, a circulação de referenciais no espaço do Atlântico Negro

pensado por Gilroy é relevante uma vez que demonstra o caráter difuso e imbricado no

que tange à formação de identidades negras em África e em diáspora. Andrews diz que

“fluxos de idéias, imagens, práticas e instituições transnacionais constituem parte

indissociável da causalidade histórica em todas as sociedades modernas”. (1997, p.96).

Qual o impacto dos fatores externos na construção político-identitária e no pensamento

racial da comissão de imprensa do referido jornal? Como isso ecoava? A partir dessas

páginas busco traçar, partindo do local ao global e vice-versa, uma análise do Jornal

Negritude como parte da imprensa negra recifense, bem como os reflexos das influências

externas advindas do Atlântico Negro e seu entrelaçamento com questões particulares

daquele contexto.

No tocante ao jornal aqui analisado, vale ser destacado alguns pontos concernentes

ao mesmo enquanto sua materialidade e conteúdo circundante em suas páginas seguindo,

sobretudo, os editoriais e matérias de capa. Como mencionado, o jornal Negritude era o

veículo de informação do MNU-PE, cuja primeira edição teve circulação no ano de 1986,

quatro anos após a fundação da instituição em 1982. Por estar atrelado ao MNU-PE, o

Negritude reflete as inquietações da instituição, marcando as páginas com a pauta que

estava na ordem do dia dos militantes do Movimento Negro Unificado pernambucano.

Era impresso em papel jornal, offset, tamanho ofício e continha, em geral, quatro

páginas; as exceções são as edições especiais de 1988 sobre o centenário da abolição com

oito páginas e a de carnaval do ano de 1994 com duas. A tiragem, a partir do número 6

do ano de 1993, passou a constar no expediente do jornal, contando com a cifra de mil

exemplares que, segundo Martha Rosa Queiroz, eram “distribuídos gratuitamente nas

reuniões do MNU e em eventos da comunidade negra”. (2011, p. 541). Apenas a edição

especial de 1988 foi cobrada uma taxa equivalente a Cr$30,00 (trinta cruzados).

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A perenidade das edições estava à mercê das vicissitudes com as quais a comissão

de imprensa1 se defrontava, notadamente questões de ordem financeira e operacional. É

sabido que essas instabilidades eram comuns ao universo da imprensa negra brasileira

desde o século XIX, entrando nos anos iniciais da República até a temporalidade à qual

se dedica este artigo. À guisa de exemplificação, cito o jornal “O Homem: Realidade

Constitucional ou Dissolução Social” que teve vida no ano de 1876. De acordo com

Pinto, sem embargo a efemeridade dos jornais nesse período, este periódico conseguiu

sobreviver às adversidades durante cerca de um ano, mostrando-se um veículo de bastante

força operacional e reivindicativa. Aliás, este é o primeiro jornal negro recifense que se

tem notícia, havendo, a partir do fim da sua circulação, um hiato de exatamente 105 anos2

entre ele e o Angola, precursor da imprensa negra contemporânea no Recife3.

O jornal Negritude não foge à exceção no sentido de não ter havido periodicidade

regular durante os anos em que esteve presente. Martha Rosa Queiroz avulta que “O

Jornal do MNU-PE atuou de 1986 até novembro de 1994, assim distribuídos: um número

em 1986; três em 1987; uma edição especial em 1988; um número em 1993; três números

em 1994”. (2011, p.541). Portanto, justifica-se a temporalidade proposta com base no

período de circulação em Recife do jornal Negritude – principal fonte usada –,

empregando, para além deles, boletins informativos da instituição disseminados um em

2000 e três em 2002 e um número do jornal NegrAção de 1988.

Já em seu primeiro editorial, em outubro/novembro do ano de 1986, a comissão

de imprensa do Negritude relata as dificuldades para se pôr em prática um jornal que

tratasse das questões da comunidade negra. “Apesar de tantos esforços feitos, o

Negritude demorou muito tempo para ser publicado. Este fato vem comprovar a situação

1 Antes do nº 6, julho/agosto de 1993, a redação do jornal era designada enquanto “comissão de imprensa”,

ou seja, não se assinavam as matérias individualmente. Anterior a isso, apenas os que não eram militantes

da instituição assinavam as respectivas publicações, as demais eram responsabilidade da comissão, que

representava o pensamento da própria instituição. Posteriormente, passou-se a assinar nominalmente as

matérias. 2 A despeito desse hiato, vale ser reiterado que se refere à uma produção jornalística dentro do que se

enquadra como imprensa negra. Apesar disso, várias frentes de luta foram empreendidas em consonância,

inclusive, com movimentos de nível nacional como a Frente Negra Pernambucana em 1936, e outros

posteriores: Centro de Cultura Afro-brasileiro, Movimento Negro do Recife, Movimento Negro Unificado.

Destaca-se, igualmente, a resistência individual por parte de diversos nomes da militância negra do Recife. 3 Para uma leitura mais densa e apurada acerca do jornal O Homem: Realidade Constitucional ou

Dissolução Social ver: PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra do

século XIX (1833-1899). Brasília: Dissertação (Mestrado em História). UnB, 2006.

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de pobreza em que vive a população, mesmo depois de cem anos de uma falsa abolição

da escravatura.” 4 No mesmo editorial, em meio a críticas ao mito de “democracia racial”

no Brasil, a comissão de imprensa se diz “na frente de batalha para que um dia possamos

viver em plena democracia racial”5 e afirma que é neste contexto que o Movimento Negro

Unificado de Pernambuco lança para a comunidade negra seu primeiro veículo impresso

de circulação; sendo este, “ um meio de comunicação que falará das nossas coisas, contará

as nossas histórias, divulgará nossos eventos festivos e políticos”.6 É relevante notar aqui

como os próprios negros definiam seus meios de comunicação impressos no Recife. O

editorial de julho de 1993 deixa manifesto os anseios da comissão de imprensa do

Negritude ao afirmar que

Esperamos que o Negritude se concretize como um instrumento de informação

para a comunidade negra. E para isso deverá ser utilizado por todo aquele que

acredita na construção de uma sociedade, partindo do ponto de vista do povo

negro. Ele não é apenas o Boletim do MNU. Ele é de todos os negros que estão

irmanados na luta por uma sociedade onde Racismo seja coisa do passado7

O que se designa por imprensa negra, nesse sentido, são os “jornais criados e

mantidos por afro-brasileiros e dedicados a tratar de suas questões”. (DOMINGUES,

2018, p. 267). Ademais, o que realmente distingue essa imprensa de outras são suas vozes

de reivindicação por equidade sociorracial, isto é, o teor étnico-racial de suas páginas.

Isso fica evidente nas falas do Negritude que ao longo dos anos noticiou temas como “O

negro e a constituinte”, “a situação da mulher negra”, “o leão coroado e a resistência

negra”, “o racismo na Nova República”, “13 de maio: dia da traição”, “moda e costume

afro-brasileiro, “legalização das terras dos remanescentes dos quilombos”8.

A introdução desses periódicos no debate público da época, portanto, se mostra

racializado e com uma tônica antirracista que tinha como mote a discussão em torno das

questões caras à população negra a partir de seus deslocamentos discursivos como, por

exemplo, a recorrente batalha contra a falácia da “democracia racial”. Com efeito, a luta

4 Negritude, nº1, Ano I, outubro/novembro de 1986. 5 Negritude, nº1, Ano I, outubro/novembro de 1986. 6 Negritude, nº1, Ano I, outubro/novembro de 1986. 7 Negritude, nº6, julho/agosto de 1993. 8 Negritude, nº1, Ano I, outubro/novembro de 1986; Negritude, nº1, Ano I, outubro/novembro de 1986;

Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de 1987; Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de

1987; Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de 1987; Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de

1987; Negritude, nº8, novembro/dezembro de 1994.

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que se dava contra a sustentação da tese de harmonia sociorracial era também a que

propunha uma reformulação da identidade nacional.

O editorial e matéria de capa da edição de

maio/junho/julho de 1987 trazem a lume as querelas que

envolvem a data da abolição e o anseio da comunidade negra

em transpor as festividades para o 20 de novembro. “13 de

maio dia da traição” é a chamada da matéria de capa. A

charge em tom trágico que figura ao lado compõe o texto. É

notória a insatisfação da comissão de imprensa com o

discurso governamental de igualdade racial e dizem que

“para estas festas não tem faltado apoio oficial a todos os

negros ou entidades que se disponham a realizá-las”9,

complementam ainda que não há “qualquer motivo para

comemorações neste dia”10. Nesse sentido, os integrantes do Negritude fazem uma

chamada convocando “a comunidade em geral para nos unirmos no processo de

desmascaramento da tão propagada “abolição””11. Estabelece-se, assim, um ponto de

inflexão. Justamente no ano anterior ao centenário da abolição no qual a Nova República

traçava as comemorações para esta data, a matéria de capa do Negritude brigava para

ressaltar “a verdadeira luta do povo brasileiro, para resguardar o que realmente representa

o 20 de novembro, lançado pelo MNU, em 1979, como Dia Nacional da Consciência

Negra. Comemorado e reconhecido nacionalmente”12. Apesar de quase uma década da

presença do MNU e da latência envolvendo esta refrega, a disputa contra setores oficiais

continuava aberta a fim de se alçar uma memória do povo negro a partir de suas próprias

contingências, questionando e politizando o evento da abolição e os pressupostos de

mestiçagem e democracia racial difundidos oficialmente.

Em maio de 1988, a primeira folha que compunha a edição do Negritude com

maior número de páginas não precisou se valer de tantas palavras – bastando apenas

“Zumbi o nosso abolicionista” e uma imagem – para expressar as críticas da comunidade

9 Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de 1987. 10 Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de 1987. 11 Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de 1987. 12 Negritude, nº3, Ano III, maio/junho/julho de 1987.

Figura 1: Negritude, nº 3.

Recife, maio/junho/julho de

1987. Fonte: Acervo digital

LAHOI-UFPE.

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negra em meio ao universo oficial de “comemorações” em torno do centenário da

abolição. O editorial é marcado pelas dificuldades enfrentadas e pelo tom incisivo a

respeito de como a instituição propunha a causa que defendia.

Neste ano, em que se comemora um século de uma mentira histórica, o

Movimento Negro Unificado, que há dez anos denuncia essa farsa, lança mais

um número do Negritude, apesar do eterno estado de penúria financeira da

nossa organização. Durante todo esse tempo o MNU viveu basicamente da

força e vontade de seus militantes e da solidariedade dos simpatizantes

brancos13

Neste cenário, o jornal do Movimento Negro Unificado de Pernambuco buscou,

ainda com base no editorial, dirimir algumas críticas acerca de sua proposta e pensamento

institucional. “Começamos dizendo que o negro não é uma classe social, o negro é parte

integrante de uma civilização que foi escravizada por uma outra, a civilização branca”14.

Com efeito, se quer demonstrar que a instituição não é uma entidade de classe, mas sim

uma organização social que tem por fim “transformar o

sentimento de auto-rejeição do negro em orgulho”15, além de

promover ações que valorizem uma efetiva igualdade étnico-

racial. Além disso, quando se fala em civilização branca “não

queremos dizer, absolutamente, que rejeitamos o branco

enquanto pessoa humana”16. Isto, certamente, está

relacionado às críticas do período de que os movimentos

negros eram racistas e iriam promover um antagonismo racial

desnecessário no país. Outrossim, existia ainda no imaginário

social o medo do “fantasma da haitinização (jacobinismo

negro), fenômeno caro às elites brasileiras desde o final do

século 18”. (FLORES, 2008, p. 119).

Após a publicação da edição de 1988 houve uma fenda de cinco anos aberta até a

retomada das atividades em julho de 1993. Isto se justifica, como já demonstrado, pelas

dificuldades financeiras atravessadas pela instituição.

Seguindo as marcas e sinais deixados pelos editoriais dos jornais pode-se apontar

que os ventos de mudança e dissabores no que tange à capilaridade do ordenamento

13 Negritude, Edição especial, nº5, Ano III, maio de 1988. 14 Negritude, Edição especial, nº5, Ano III, maio de 1988. 15 Negritude, Edição especial, nº5, Ano III, maio de 1988. 16 Negritude, Edição especial, nº5, Ano III, maio de 1988.

Figura 2: Negritude, Edição

especial, nº 5. Recife, maio de

1988. Fonte: Acervo digital

LAHOI-UFPE.

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sociorracial no Brasil e no mundo ditavam, de certa maneira, as idas e vindas da atividade

publicista. Em julho de 1993, o Negritude “volta a circular junto à comunidade negra

recifense num momento bastante importante no Brasil e no mundo”17. No que se refere

ao plano exterior, observa-se que justamente neste momento de retorno do jornal a luta

antirracista na África do Sul ganhava novos contornos. O acirramento das tensões e lutas

pelo fim do apartheid transpassaram-se, no ano seguinte, em eleições democráticas e

multirraciais que deram vitória a Nelson Mandela pelo Congresso Nacional Africano. Por

outro lado, no Brasil, as transformações pareciam lentas e os reveses da violência racial

insistiam em não amenizar. No mesmo editorial, vários casos de racismo. Destacam-se:

“os skinheads (carecas neonazistas) ganham as ruas de São Paulo e outros estados, à

procura de negros para violentar e matar”; “a filha do governador do Espírito Santo,

negra, é agredida num prédio de luxo por ter usado o elevador social”; “o comerciante

Kleber é preso numa agência do Itaú em Recife, por querer descontar um cheque de sua

própria conta e após ter comprovado que a gerente do banco estava errada em suas

suspeitas de que ele houvesse roubado o cheque”18

O número circulado em março de 1994 trouxe mais conteúdo de crime de racismo

e o sentimento de descontentamento da instituição por não poder acompanhar

sistematicamente os vários casos de agressão e, igualmente, pela inoperância de um

dispositivo legal criado justamente para conter, amainar e punir os contraventores19.

Ainda assim, diante de um caso de racismo sofrido por Luciene Michel, em janeiro de

1994, num restaurante em Boa Viagem – Recife, os membros do corpo editorial

escreveram estar “dispostos a ir até as últimas consequências, para que a prática do

racismo deixe de ser crime apenas no papel e se torne uma realidade de justiça para o

povo negro”20. Para tanto, “neste caso específico, realizamos um ato de protesto em frente

ao restaurante em questão, com a participação de inúmeras entidades negras e acionamos

17 Negritude, nº6, julho/agosto de 1993. 18 Negritude, nº6, julho/agosto de 1993. 19 A legislação antirracista no Brasil tomou maior impulso a partir da Constituição Federal de 1988, na qual

foi aprovada a proposta que tornou a prática do racismo crime sujeito a pena de prisão, inafiançável e

imprescritível. No ano seguinte, o Congresso aprovou a proposta do deputado Luiz Alberto Caó (lei

7.716/89), conhecida como Lei Caó, regulamentando a disposição constitucional e definindo os crimes

resultantes de preconceito de raça ou de cor. 20 Negritude, nº7, março/abril de 1994.

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a imprensa local, que esteve presente ao ato e em outros momentos do desenrolar do

processo”21.

Diante do limite do artigo e de maneira bastante resumida, visto que as

possibilidades de se utilizar o Negritude e os demais impressos supracitados como fonte

de análise são múltiplas, essas são algumas especificidades de um jornal urdido no Recife

na trama da resistência negra. Um veículo de comunicação que tinha em seu desígnio

escancarar as mazelas da comunidade negra para reclamar igualdade, mostrando também

as belezas, as festividades e o orgulho de pertencimento a ela.

Circulação de referenciais e influências externas a partir do Negritude

A par do contexto local em que se insere a gênese do jornal Negritude e da

imprensa negra contemporânea do Recife é notório, também, acrescentar o plano externo,

cuja relevância é percebida nas representações permeadas nas folhas dos jornais. Pesa,

assim, a influência dos movimentos norte-americanos, o Négritude franco-caribenho e as

diversas lutas nacionalistas e emancipatórias pelo continente africano, sendo todos

eventos históricos importantes que deram visibilidade às questões étnico-raciais assim

como foram representados ao longo dos anos nos jornais da imprensa negra do Recife.

O Negritude e demais órgãos de imprensa citados são exemplares de experiências

emancipatórias negras num contexto contemporâneo. As frequentes referências locais e

internacionais, presentes e passadas, mostram que a construção da negritude estava

circunscrita a uma historicidade de práticas e lutas tratadas com destaque nas páginas

daqueles jornais. As diversas matérias referentes ao quadro transnacional do movimento

antirracista, especialmente o sul-africano, apontam para uma aderência aos ideais da

descolonização, ainda num momento em que a África do Sul brigava contra o regime

racista do apartheid.

É sabido que existiam diversas conexões no mundo negro, sendo assim, ancorando

a reflexão proposta neste artigo, objetiva-se apontar como esses elementos se refletiam

nessa imprensa negra. Para compor este cenário, o estudo proposto por Paul Gilroy sobre

a circulação de referenciais na diáspora negra em um grande eixo que para ele forma o

Atlântico Negro é de grande relevo. O autor o define como um circuito trans-local que

21 Negritude, nº7, março/abril de 1994.

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abrange a Europa, a África e o Novo Mundo e forma um panorama dinâmico de

convergências e interseções no que tange à cultura e ao antirracismo político. Essas ações

e fluxos internacionais vividos pelos indivíduos da diáspora negra desde o final do século

XV são enxergados num grande movimento transnacional de intercâmbios de ideias e

referências que para o autor estão na base da própria construção do negro. (GILROY,

2012). Ao trazer à baila a relação dos fragmentos disseminados nas folhas com uma

esfera mais ampla que de maneira semelhante tinha como propósito precisar horizontes

no que concerne à luta contra a discriminação racial serão demonstradas que essas

influências externas não eram recebidas passivamente, mas sim dirimidas criticamente.

Nos rastros do Atlântico Negro, podemos observar como esse conjunto cultural e

político que se derrama pelas águas atlânticas e contamina de maneiras multifacetadas as

vivências negras se configura na imprensa negra do Recife. Essa experiência editorial

compõe mais uma empreitada em meio a tantas pelo Atlântico Negro e é uma relevante

matriz para pensar seus pressupostos nas últimas décadas do século XX. As influências

externas presentes nas páginas dos jornais apontam para o caráter dinâmico da circulação

de referenciais nesse espaço. Esses reflexos na imprensa negra do Recife demonstram a

fluidez com que as ideias circulavam e se transpassavam para as páginas dos jornais, nos

fazendo refletir acerca de referências estrangeiras e seu entrelaçamento com o local,

rompendo as barreiras do nacionalismo e proporcionando uma formação intercultural

dessa parcela responsável pela edição dos jornais. Logo, a emergência de identidades

negras nesse contexto só pode ser entendida levando em consideração os ideais advindos

do Atlântico Negro que, a rigor, a eles são sempre atribuídos novos significados e leituras

como veremos mais adiante.

Partindo da constatação de que existiam influências advindas do Atlântico Negro,

produtos de elementos culturais, políticos e ideológicos do povo negro no continente

africano e em diáspora, viso analisar como elas eram representadas especialmente no

jornal Negritude; mostrando, ao mesmo tempo, como isso era processado e incorporado

aos discursos e práticas dos sujeitos por trás da comissão de imprensa, sem ter como fim,

no entanto, estabelecer efetivos intercâmbios entre esses jornais com outros veículos de

informação ou movimentos negros internacionais. Ainda que não se possa afirmar a partir

das páginas desses jornais que houvesse uma concreta interação entre os componentes da

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comissão de imprensa com integrantes de movimentos negros pelo mundo afora, no

momento é possível dizer que havia um diálogo unilateral com o universo do movimento

antirracista negro. Portanto, a partir desses jornais pode-se pensar na ampliação dos

diferentes papéis do Brasil nessa dinâmica transatlântica pela igualdade racial, ao mostrar

a vinculação de referenciais advindos sobretudo das lutas na África do Sul às práticas

discursivas e ações pela equidade sociorracial de militantes de movimentos negros do

Recife.

Em tese defendida em 2010 na UFF, Amílcar Pereira tece um panorama no qual

se pode visualizar uma grande malha que engloba organizações, instituições, lideranças

e ideias que numa trama de conexões, fluxos e interações vazaram para além dos limites

impostos pelas fronteiras artificiais que definem os Estados e identidades. Em meio a

esses intercâmbios pode-se observar a dinâmica das relações entre os movimentos negros,

inclusive brasileiros, num contexto transnacional. Ele mostra, por exemplo, a circulação

de informações e pessoas ligadas aos jornais The Baltimore Afro-American dos Estados

Unidos e o Clarim d’Alvorada de São Paulo nas décadas de 1920/30 e como um e outro

se influenciavam a partir de diversos referenciais. Com o passar do século XX, essa

ambientação tomou novos contornos pari passu com as transformações sociais. Voltado

às referências estrangeiras que fizeram parte da constituição do movimento negro

contemporâneo no Brasil, ele relata as variadas interações ocorridas nas décadas de

1960/70 com as lutas antirracistas norte-americanas e africanas e como o movimento

negro contemporâneo no Brasil passou a ter maior repercussão internacional no final da

década de 1970, em especial com a criação do Movimento Negro Unificado em 1978.

Dessa efetiva influência mútua criou-se, segundo o autor, um celeiro de importantes

referenciais que influíram na construção de identidades negras.

Não estando restritos a Estados-nação, estes desdobramentos da política negra

certamente atingiram o movimento negro recifense e se refletiram nos jornais

disseminados na cidade a partir da década de 1980. Esses veículos de comunicação

tiveram papel imprescindível para a circulação de ideias e referenciais múltiplos, além do

caráter informativo acerca da luta contra o racismo no Brasil e em outras partes do mundo.

Logo, as influências externas são demasiado importantes para a trajetória de

enfrentamento dos jornais e de seus integrantes ligados a movimentos negros.

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O jornal Negritude, como exposto, sempre apresentou matérias com uma tônica

social e histórica forte, quiçá uma marca preponderante que nos faz enxergá-lo num viés

bastante politizado no que tange ao processo histórico do negro no Brasil e sua situação

social. Para além disso, no bojo das discussões sobre racismo, identidade negra e

cidadania as influências externas são partes indissociáveis desses jornais e compõem o

quadro de formação crítica dos sujeitos envolvidos com a atividade publicista.

Nesta perspectiva, em alusão ao fato ocorrido em 21 de março de 196022 o

Negritude diz que

o racismo não pode ser entendido como particularidade de um país, de uma

sociedade. Ao contrário, deve ser visto como uma ideologia que se cria e se

sustenta internacionalmente. Seu combate também precisa ser pensado de

forma mais ampla. Nelson Mandela, na África do Sul, e outras lideranças

negras de ontem e hoje, são personagens importantes não apenas em seus

países de origem, mas, juntos, simbolizam a possibilidade concreta de

libertação, de autonomia e de independência dos povos negros do mundo23.

Embora não tivesse a intencionalidade de teorizar o internacionalismo negro, é

visível a tomada de posição a partir deste excerto de que podemos pensar o Negritude

como parte de um lócus de expressividade no qual diferentes contingências relacionadas

ao grupo sociorracial negro são representadas, inclusive transnacionais. Os movimentos

antirracistas, nesse sentido, extravasavam os limites territoriais impostos, deixando vazar

pelas fronteiras nacionais os referenciais de luta, de organização política, de cultura e

liderança que tinham como foco a liberdade e a igualdade racial. Com efeito, diante desse

trecho, o racismo é um denominador comum que estabelece ligações entre negros em

África e em diáspora, logo, seu enfrentamento, segundo o Negritude, precisaria ser

refletido de maneira mais abrangente.

A mesma matéria traz à tona que a data não mira apenas em atrair olhares para o

racismo em África, mas também em outros continentes onde há população negra

22 No dia 21 de março de 1960 ocorreu em Sharpeville, na África do Sul, um massacre contra a população

negra local. Durante uma manifestação pacífica contra medidas racistas do governo sul-africano, sobretudo

a Lei do Passe, segundo a qual um negro só poderia transitar fora de áreas a ele destinadas se portasse um

tipo de passaporte que garantisse permissão para tal, a polícia agiu de maneira repressiva e violenta

resultando num saldo de dezenas de assassinados e centenas de feridos. O massacre tornou-se um símbolo

importante de resistência ao sistema de segregação racial na África do Sul, como também um referencial

internacional na luta antirracista. Em 1969, em referência a este acontecimento, a Organização das Nações

Unidas implementou o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial – 21 de março –,

demonstrando a relevância do estabelecimento dessa luta em todos os cantos do mundo. 23 Negritude, nº7, março/abril de 1994. “21 de março: Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação

Racial”.

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resultante de diásporas. Compara-se a África do Sul e o Brasil enquanto países racistas,

muito embora as legislações divirjam no tocante à institucionalização do apartheid, como

era o caso da África do Sul. Por conseguinte, se quer apontar que não só onde o racismo

é institucionalizado que há práticas racistas, mas também naqueles onde mesmo não

havendo tais códigos legais a violência racial se efetiva no cotidiano de maneiras

multifacetadas contra negros e negras. “Mesmo na ausência de uma legislação, como no

caso do Brasil, os efeitos do racismo são visíveis”24. No editorial de 1987 sobre a mesma

efeméride a comissão de imprensa relata que

no Brasil, usamos o 21 de março para denunciar o racismo aqui existente e

mostrar que entre a África do Sul e Brasil há apenas a diferença de estilo, mas

não de essência. O afro-brasileiro aproveita esta data para mais uma vez

ratificar o que sempre fez questão de dizer: o Brasil é um país racista, que se

esconde debaixo da conveniente “democracia racial”, propagada aos quatro

ventos pelos diplomatas do Itamaraty25.

Como se pode notar, os signos desta data incorporaram-se aos discursos e práticas

antirracistas no Recife e no Brasil, refletindo nas páginas da imprensa negra. As inscrições

por detrás desta data são assim projetadas e repensadas para as particularidades das

relações étnico-raciais locais, além de serem a ponta da lança para se rememorar e

rediscutir as atrocidades cometidas naquele país. O Espaço Azeviche – lugar do jornal

destinado a publicações acerca de eventos da comunidade negra – em março de 1994

noticiou que o MNU-PE realizaria um ato de protesto em memória dos negros

assassinados em Sharpeville no próximo dia 21, afirmando que “a negritude recifense

precisa se fazer presente”26. Com efeito, é patente o modo como os referenciais

ultrapassam os limites do nacional e se germinam em outros portos do Atlântico, sendo

reelaborados num quadro de grande dinamicidade.

Em idos finais deste mesmo ano, a comissão de imprensa estava atenta ao contexto

relativo à política transnacional negra. O editorial afirma que o ano de 1994 foi

determinante em diferentes perspectivas.

Começando pelos países africanos, assistimos a esmagadora vitória de Nelson

Mandela sobre o regime racista da África do Sul, nas eleições presidenciais.

Por outro lado o agravamento do estado de miséria do povo etíope em que a

mídia fez questão de noticiar todo o tempo, mas que não foi suficiente para

sensibilizar as forças políticas da ONU em viabilizar campanha de caráter

mundial de solidariedade aos irmãos etíopes. No Haiti, a intervenção

imperialista norte-americana gerou uma onda de violência que abalou o país

24 Negritude, nº7, março/abril de 1994. 25 Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de 1987. 26 Negritude, nº7, março/abril de 1994.

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em toda a sua estrutura. Resta-nos torcer para que o povo do Haiti consiga

resgatar sua histórica capacidade de luta e trace um novo caminho para seu

país27.

Este foi o tom de retrospectiva dado naquele momento, ora de ganhos ora nem

tanto. O panorama da conjuntura política negra internacional se confunde com o brasileiro

por entre as linhas do mesmo texto, demonstrando um elo no que tange a esse assunto

apesar das dessemelhanças. Ao mesmo tempo em que entoava “o desenvolvimento

crescente de lutas travadas por diversas entidades negras pela legalização das terras dos

remanescentes dos Quilombos”28 via, desconcertantemente, o quadro de poucas

alterações nas eleições federais e estaduais que “confirmaram mais uma gestão política

do povo branco”29, ou seja, de pouca representatividade às demandas da população negra.

A visita do Arcebispo sul-africano Desmond Tutu30 – Prêmio Nobel da paz em

1984 – ao Recife, em 1987, também virou notícia nas páginas da imprensa negra

recifense. No dia 18 de maio daquele ano, Tutu foi à capital pernambucana “visando

pressionar o governo brasileiro para tomar medidas contra o governo da África do Sul”31.

Sua passagem causou burburinho por trazer à tona discussões sobre a questão racial no

Brasil. No Recife, além de ser recebido por políticos locais, como o prefeito Jarbas

Vasconcelos à época, Tutu também inseriu em sua agenda uma ida à residência de Dom

Hélder Câmara, que estava nos Estados Unidos e resolveu antecipar sua volta ao Brasil

para receber o líder anglicano. Além de amigos, ambos eram defensores dos direitos

humanos e clamaram juntos por ajuda na luta sul-africana em direção à reconciliação do

país e pelo fim do preconceito racial, ainda que o Ministro das Relações Exteriores na

época, Abreu Sodré, tenha declarado que no Brasil não havia problema em relação à

discriminação racial.

Por outro lado, o posicionamento pacifista na luta contra o apartheid de Desmond

Tutu não agradou a todos. Em matéria da diretoria de imprensa do jornal NegrAção do

ano de 1988 foi expresso que a mudança do regime de segregação aos moldes pacifistas

27 Negritude, nº8, novembro/dezembro de 1994. 28 Negritude, nº8, novembro/dezembro de 1994. 29 Negritude, nº8, novembro/dezembro de 1994. 30 Desmond Tutu é um Arcebispo da Igreja Anglicana nascido em 1931 na África do Sul. Foi o primeiro

negro a ocupar o cargo de Arcebispo na Cidade do Cabo, capital legislativa da África do Sul, bem como

um dos nomes centrais do movimento antiapartheid neste país. Ainda que tivesse altas posições no clero

africano, Tutu não hesitou em lutar contra a segregação racial em seu país. Mediante seus esforços contra

as medidas racistas sul-africanas, Desmond Tutu recebeu o Prêmio Nobel da paz em 1984. 31 Negritude, nº3, Ano II, maio/junho/julho de 1987.

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era uma estratégia que garantiria a continuidade da exploração de modo mais sutil e “para

atingir esses objetivos usam os colaboradores, entre eles o famoso Tutu, que não é à

mineira”32. A atuação do Arcebispo anglicano era controversa no seio da militância negra.

Sua política é contraditória, por um lado reclama sansões contra o governo sul-

africano, por outro lado exige dos negros que não executem os agentes do

regime branco. O seu discurso é a não violência, só que os brancos

exterminaram os negros com as formas mais violentas possíveis33.

Fica aparente que parte dos militantes de movimentos negros do Recife não estava

de acordo com a forma pela qual Desmond Tutu buscava aplacar o sistema

segregacionista sul-africano. Para eles, este tipo de comportamento coadunava-se aos das

forças imperialistas e buscava “jogar água gelada no incêndio que está prestes a

ocorrer”34. O descontentamento desses sujeitos pode ser explicado pela formação

ideológica de esquerda revolucionária que prezavam, reclamando medidas mais radicais.

No entanto, ainda que bastante crítica em relação a Desmond Tutu, a militância negra do

Recife aproveitou a visita para escancarar seus gritos de protesto contra o racismo aqui e

na África do Sul, no embalo da repercussão na mídia do Arcebispo no país.

O Negritude também não poupou críticas ao clérigo.

O negro é maioria

Mas o branco é mais cruel.

Sem armas não se faz luta.

Tutu, deixa o Nobel!

Com fogo não se brinca

Ele queima, ele arde

Vamos Botha pra fora

Acabar o Apartheid

Fatimo35 Nestes versos, assinado por Fátimo, há a referência “Tutu, deixa o Nobel! Com

fogo não se brinca”36. Se faz uma menção contra a sua postura de haver recebido o Prêmio

Nobel da paz em 1984, certamente por ser advindo de potências nacionais que, aos olhos

de parte dessa militância, buscava camuflar os efeitos nocivos do regime de apartheid,

bem como desmobilizar uma arregimentação de vertente mais radical no país. Mais

adiante se diz “vamos Botha pra fora”37 em alusão ao Presidente de Estado da situação

Pieter Willem Botha, cuja política almejava restabelecer melhores relações com o

32 NegrAção, nº 1, Ano I, novembro/dezembro de 1988. 33 NegrAção, nº 1, Ano I, novembro/dezembro de 1988. 34 NegrAção, nº 1, Ano I, novembro/dezembro de 1988. 35 Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de 1987 36 Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de 1987. 37 Negritude, nº2, Ano II, fevereiro/março/abril de 1987.

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Ocidente para, ao fim e ao cabo, reverter sanções econômicas que sofria a África do Sul

naquele momento.

À guisa de conclusão, pode-se apontar que o jornal Negritude e outros da imprensa

negra recifense são um lócus palpável para demonstrar a concretização dos fundamentos

elencados num contexto histórico contemporâneo a partir da ligação entre imprensa e

circulação de referenciais pelo Atlântico Negro e sua incidência na construção da

negritude. Ademais, a latência na representação de determinados autores, líderes e temas

nos jornais38, nos confirma a relevância que tiveram na edificação do escopo teórico da

comissão de imprensa do Negritude, bem como na construção de referenciais de

identidade e de luta. Estes, por sua vez, foram ressignificados aos moldes das

particularidades das relações raciais no Recife, isto é, de forma alguma constituem uma

absorção passiva por parte dos sujeitos envolvidos, mas sim uma conjuntura de

influências e referências que dão a tônica da pluralidade das identidades negras

diaspóricas. Ainda que esses jornais permitam de momento uma análise apenas unilateral

dessa trama, já se foi demonstrado o liame entre o universo dos movimentos negros no

Brasil e no exterior numa conjunção de matérias que se derrama para além das fronteiras

e ganha sempre novos delineamentos. Portanto, existe a possibilidade de se dar novos

contornos analíticos ao se pensar as efetivas interações transnacionais, de mão-dupla.

Para isso, no entanto, é necessário que se debruce numa malha maior de fontes que abranja

o universo dos movimentos negros na cidade do Recife e fora dela.

38 Por exemplo, Samora Machel, Nelson Mandela, Martin Luther King, James Baldwin, Frantz Fanon, Aimé

Césaire. E temas como dia internacional pela eliminação da discriminação racial, apartheid, pan-

africanismo, guerras e fome em África.

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30 anos de uma visita para ser relembrada. Blog Oficial do Instituto Dom Hélder Câmara.

2017. Disponível em: <http://institutodomhelder.blogspot.com/2017/05/atualidades-30-

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