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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Nordan Manz Metáforas políticas no gênero tokusatsu: A metamorfose dos signos na mídia japonesa MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Nordan Manz

Metáforas políticas no gênero tokusatsu:

A metamorfose dos signos na mídia japonesa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Nordan Manz

Metáforas políticas no gênero tokusatsu:

A metamorfose dos signos na mídia japonesa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica na área de concentração Signo e Significação das Mídias pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Christine Greiner

São Paulo

2013

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

__________________________________________

__________________________________________

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Para meus professores e colegas que me

ajudaram a perceber o mundo através de um

novo prisma.

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METÁFORAS POLÍTICAS NO GÊNERO TOKUSATSU: A METAMORFOSE DOS

SIGNOS NA MÍDIA JAPONESA

RESUMO

Esta dissertação apresenta exemplificações do tokusatsu, gênero que faz parte do cinema e

televisão japoneses, identificando como, a partir da 2ª Guerra Mundial, surgiram alguns dos mais

importantes personagens e suas metáforas políticas. Após a emergência da chamada cultura pop,

muitas destas metáforas foram descontruídas e despolitizadas. O objetivo do trabalho é analisar o

processo evolutivo destas produções, focando nas mudanças epistemológicas, cujo principal

sintoma é, justamente, a banalização das questões que marcaram o início do movimento. A

fundamentação teórica parte da obra de Yoshikuni Igarashi (2011) que analisou o nascimento dos

corpos monstruosos em diversas mídias japonesas (TV, cinema, mangá, etc.), assim como as

representações simbólicas da guerra e do pós-guerra. Além disso, partimos das teorias de George

Lakoff e Mark Johnson (2002) acerca das metáforas cognitivas e outras bibliografias específicas

referentes ao cinema japonês. Como corpus da pesquisa foram analisadas quatro séries japonesas

de cinema e televisão lançadas entre 1954 e 1985: Godzilla (1954) de Ishiro Honda, primeiro

filme a apresentar um monstro gigante; Ultraman (1966) de Eiji Tsuburaya, que apresenta

discussões de cunho ecológico; a série de P-Production, Spectreman (1971) que também

problematiza temas ecológicos e doutrinação dos corpos; e, finalmente, O Fantástico Jaspion

produzido pela Toei Company, durante a década de 1980 e teve ampla divulgação no Brasil.

Espera-se contribuir com uma bibliografia crítica pouco conhecida no Brasil e que analisa as

tensões entre produções midiáticas japonesas de cunho político que, gradativamente, parecem

tornar-se mero entretenimento e objeto de consumo, amplamente disseminadas pela cultura J-

POP.

Palavras-chave: tokusatsu, cinema japonês, metáforas cognitivas.

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POLITICAL METAPHORS IN THE TOKUSATSU GENRE: SIGN METAMORPHOSIS

IN THE JAPANESE MEDIA

ABSTRACT

This dissertation presents tokusatsu examples, a genre that is part of the Japanese cinema and

television, identifying how, since World War II, some of the most prominent characters and

political metaphors aroused. After the emergence of the so called pop culture, many of these

metaphors were deconstructed and depoliticized. The goal is to analyze the evolutional process of

these productions, focusing on the epistemological changes, whose main symptom is, precisely,

the trivialization of the issues that defined genre landmarks. The theoretical grounding rises from

the works from Yoshikuni Igarashi (2011) who analyzed the birth of monstrous bodies in several

Japanese media (TV, movies, Manga, etc.), as well as war and post-war symbolic representations.

Beyond that, we depart from George Lakoff e Mark Johnson (2002) theories surrounding on

cognitive metaphors and another specific bibliography relative to the Japanese cinema. As the

research corpus four cinema and television series launched between 1954 and 1985 were

analyzed: Godzilla (1954) by Ishiro Honda, first movie to present a giant monster; Ultraman

(1966) by Eiji Tsuburaya, which presented discussions with ecological scope; the P-Production

series, Spectremen (1971) which also questioned ecological themes and bodies control; and,

finally, The fantastic Jaspion, produced by Toei Company during the 1980 decade, which

received great disclosure in Brazil. We hope to contribute with a critical bibliography almost

unknown in Brazil, which analyzes media tensions in Japanese political productions that,

gradually, seemed to become only entertainment and consume object, widely disseminated by J-

POP culture.

Keywords: tokusatsu, Japanese cinema, cognitive metaphors.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 4

CAPÍTULO 1 ......................................................................................................................................... 7

1.1. Contextualização histórica do Tokusatsu .................................................................................... 7

1.2. O papel dos monstros ................................................................................................................ 21

CAPÍTULO 2 ....................................................................................................................................... 35

2.1. A metáfora como fundamento do tokusatsu ................................................................................. 35

2.2. Análise das primeiras séries e seus desdobramentos políticos ................................................ 39

2.3. Redes de Consumo e infantilização: a soberania do merchandising ........................................ 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 112

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS ................................................................................................... 113

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação foi gerada a partir da vontade de entender o processo de

construção dos personagens e narrativas das séries e filmes do gênero tokusatsu, com um

olhar voltado para as fontes de inspiração de seus autores e seus contextos. A princípio, as

séries e filmes pareciam ser amálgamas de histórias de super-heróis e de ficção científica,

oriundas dos EUA e da Europa, com o folclore japonês.

Entretanto, no desenvolvimento do projeto, durante as primeiras análises dos

objetos de estudo, algo mais profundo emergiu. Essas produções foram se revelando

extremamente marcadas por questões políticas, representadas de forma metafórica. Para um

olhar mais superficial, tais questões passavam despercebidas, criando a falsa percepção de

que o gênero tokusatsu possuía apenas produtos voltados para o entretenimento do público

infantil. O corpus da pesquisa foi demonstrando que tal gênero era um campo muito mais

rico, propício a um estudo de ordem comunicacional e semiótica.

Buscou-se entender de forma mais minuciosa como se davam as construções desses

personagens, quais as influências dos contextos social, político e econômico em que

estavam inseridos, e como essas questões eram representadas de forma metafórica nas

produções estudadas. Deste modo, o trabalho foi dividido em dois capítulos, com o intuito

de tornar mais claro o processo de construção e desconstrução dessas metáforas, mais

especificamente, nas produções selecionadas como corpus do trabalho.

O primeiro capítulo é dividido em duas partes. Na primeira parte, realizamos uma

contextualização histórica apresentando o desenvolvimento das produções do gênero, seus

principais personagens, franquias e produtoras responsáveis. A partir de 1954, com o filme

Godzilla, nascem os primeiros super-heróis japoneses, como Super Giant – uma série de

curtas metragens que ganhou versão adaptada para o mercado estadunidense. Abordamos

os primeiros personagens criados para a televisão, como Gekko Kamen, da produtora Toei

Company, mais tarde responsável pela criação de franquias de grande sucesso.

A primeira parte prossegue demonstrando a importância do gênero no Japão e no

mundo. Para dar continuidade à contextualização, descrevemos o surgimento das principais

franquias, como Ultraman, da Tsuburaya Productions, com dezenas de séries e filmes, que

gera novas produções com o herói alienígena enfrentando monstros gigantes até os dias de

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hoje; Spectreman da P-Productions que seguia o mesmo estilo de Ultraman; Kamen Rider

da Toei Company e Super Sentai da mesma produtora, que também geraram dezenas de

produções; e finalmente os Metal Heroes, também da Toei Company, que na quarta série da

franquia apresentaria um dos personagens mais emblemáticos do gênero para o público

brasileiro: O Fantástico Jaspion. Este personagem retomaria na década de 1980 a questão

dos monstros gigantes.

A pesquisa enfatiza, ainda, a importância do Tokusatsu no mundo, ao apresentar um

pequeno panorama das séries e filmes diretamente inspiradas no gênero produzidas fora do

Japão, muitas vezes por iniciativa dos próprios fãs, como France Five (França), Insector

Sun (Brasil), Squadron Sport Ranger (Tailândia), dentre outros.

A segunda parte do primeiro capítulo trata da figura do monstro, amplamente

utilizada no gênero e emblemática para o público. Os monstros, carregados de

significações, foram selecionados como ponto de partida para o estudo das metáforas

dentro do gênero tokusatsu. Um panorama acerca dessas figuras é traçado a partir de

personagens mitológicos e das primeiras aparições da figura do monstro na literatura. Deste

modo, a própria construção da figura monstruosa é colocada em discussão, buscando

marcar as especificidades dos monstros dentro deste gênero.

O segundo capítulo é dividido em três partes. Na primeira, aproveitamos os

desenvolvimentos do capítulo anterior e procuramos instalar a metáfora como fundamento

do gênero tokusatsu, a partir das teorias do linguista George Lakoff e do filósofo Mark

Johnson. Os autores desenvolvem a perspectiva de que as metáforas não são apenas figuras

de linguagem, mas são usadas cotidianamente como modelos cognitivos.

A segunda parte pontua as produções que compõem o corpus da pesquisa: Godzilla,

Ultraman, Spectreman e O Fantástico Jaspion, demonstrando como as metáforas usadas

nos filmes correspondem aos modos de representação dos problemas socioconômicos

abordados em Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion. Apresentamos também um breve

panorama do desenvolvimento do cinema japonês do pós-guerra. Para tanto, a pesquisa

seleciona trechos e episódios específicos que ajudam a entender a rede político-semiótica

envolvida nessas produções.

Na terceira parte do segundo capítulo passamos a discutir a desconstrução das

metáforas originalmente elaboradas no tokusatsu. Apresentamos como principal agente

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dessa desconstrução a rede de consumo que se desenvolve em torno de tais produções.

Produtos que fazem uso da imagem dos personagens mas, para alcançar um número maior

de consumidores, acabam infantilizando e tornando mais acessíveis suas imagens/figuras,

personalidades e narrativas.

Como exemplos da desconstrução das metáforas, analisadas neste capítulo,

apresentamos os filmes subseqüentes de Godzilla e sua antropomorfização, a série animada

do mesmo personagem, e itens como o “porta papel higiênico” com a imagem do monstro.

A utilização de Ultraman como garoto propaganda de produtos eletrônicos, além de tantos

outros itens baseados nos personagens Spectreman e Jaspion, que alteram as ideias

primordiais de seus criadores, também nos servem como parâmetro de análise.

Nas considerações finais elencamos uma série de problemas, a serem aprofundados

em etapas futuras da pesquisa, tendo em vista a complexidade das discussões aqui

apresentadas.

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CAPÍTULO 1

1.1. Contextualização histórica do tokusatsu

A palavra japonesa tokusatsu é uma contração da expressão tokushu kouka satsuei,

ou “filme de efeitos especiais” em tradução livre. O termo é usado para classificar filmes e

seriados japoneses em live-action (produções audiovisuais com atores, como o cinema

tradicional) que fazem uso intenso de técnicas de efeitos visuais e de efeitos especiais. Em

geral, os tokusatsu são marcados por temáticas ligadas à ficção científica e à fantasia,

protagonizadas por monstros gigantes (Kaiju Eiga), por heróis gigantes (Kioudai Shiriizu),

ou por super-heróis de transformação (Henshin Horo Shiriizu), nomenclaturas

costumeiramente usadas pelos fãs do estilo para definir cada vertente.

A origem do gênero remonta ao antigo teatro Kabuki, que já apresentava cenas de

ação e luta, e o Bunraku, que já trabalhava com marionetes, uma das primeiras técnicas de

efeitos especiais. Entretanto, foi no início da década de 1950 que o tokusatsu ganhou forma

a partir da proposta de Eiji Tsuburaya, um reconhecido artista de efeitos especiais, e do

diretor Ishiro Honda, referente à produção de um filme que apresentasse um monstro

gigante enfurecido, capaz de destruir tudo em seu caminho.

O resultado dessa parceria é o filme Godzilla (1954). Inicialmente, seus

idealizadores utilizariam para a produção do monstro a técnica do stop motion, a mesma

utilizada em King Kong1, filme que os havia inspirado na criação de Godzilla. Entretanto, o

alto custo da técnica os levou a buscar uma alternativa: o suitmation foi a solução

encontrada – técnica que combina utilização de miniaturas a um ator vestido com uma

roupa de borracha correspondente.

1 Produção de 1933, dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack.

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Figura 1. Godzilla de 1954 – primeiros passos do gênero Tokusatsu.

O impacto de Godzilla na cultura japonesa foi grande. Ao longo dos anos, a figura

do monstro e a técnica de suitmation seriam muito utilizadas nas subsequentes produções

de tokusatsu. Após o sucesso do filme muitos estúdios passariam a investir em filmes de

monstros, além de começarem a dar os primeiros passos em uma variação do estilo, os

filmes de super-heróis.

Em 30 de Julho de 1957, a Shintoho Company, formada por dissidentes da Toho

Company, lançou o primeiro super-herói live-action japonês, Super Giant. A série de curtas

metragens produzida para cinema foi um sucesso, gerando oito sequências. Na década de

1960, a empresa Walter Manley adquiriu os direitos internacionais da série e alterou seu

nome para Starman. A distribuidora Medallion Films lançou os nove filmes em versões

reeditadas e condensadas em quatro longas metragens.

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Figura 2. Supaa Giant – primeiro super-herói do cinema japonês.

Em 1958, o primeiro super-herói produzido para a televisão japonesa é lançado pela

Toei Company. Gekko Kamen teve muito êxito entre o público infantil, que consumia com

entusiasmo os produtos relacionados ao personagem, como pistolas, capas e óculos escuros.

A série foi produzida de 24 de fevereiro de 1958 a 5 de julho de 1959, e contou com 130

episódios. Gekko Kamen também foi adaptado para o cinema, além de ganhar uma versão

em mangá, e em 1972 uma versão em animação. A Toei Company seria responsável mais

tarde pela produção de dezenas de séries e filmes do gênero tokusatsu, como as franquias

Kamen Rider e Super Sentai, e obteve muito sucesso também no mercado de anime através

da Toei Animation.

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Já em 1960 foi ao ar pela NET

(TV Asashi) National Kid, série

produzida pela Toei Company e criada

pelo autor de mangás, Daiji Kazumini,

que mais tarde seria responsável pela

criação do personagem Spectreman. A

produção feita por encomenda pela

National Eletronics Inc (Panasonic) tinha

como objetivo divulgar a marca. No

Japão, National Kid foi exibido de 4 de

agosto de 1960 a 27 de abril de 1961. No

Brasil a série estreou em 1964 e ficou no

ar até o início de 1970, através da Rede

Bandeirantes e da TV Record. National

Kid teve um total de 39 episódios

filmados em preto e branco e mostrava a

luta do professor Masao Hata/National

Kid contra os ataques dos Incas Venusianos, Seres Abissais, Seres Subterrâneos e os

Zarrocos. Apesar da grande popularidade da série no Brasil, no Japão não teve o mesmo

sucesso. Em 2009 foi lançada no Brasil pela Focus Filmes uma caixa com a saga completa

do personagem.

Figura 3. Gekko Kamen – primeiro herói da TV japonesa.

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Figura 4. National Kid – primeiro Tokusatsu.

Na década de 1960, devido aos avanços tecnológicos, principalmente o advento da

televisão em cores, o tokusatsu encontraria um cenário bastante favorável para sua

expansão, com o investimento de muitas produtoras no gênero.

Magma Taishi, de 1966, Vingadores do Espaço, no Brasil, estrearia a transmissão a

cores na TV japonesa, uma evidência da importância do gênero no país. A série foi

produzida pela P-Productions e apresentada pela TV Fuji, chegando ao fim em 1967. No

Brasil foi ao ar em 1973 pela Rede Tupi, sendo reprisada pela Rede Record no fim da

década de 1970. A produção apresenta o herói gigante vindo do espaço que luta contra

monstros igualmente gigantes. A série ganharia anos mais tarde uma adaptação para o

mercado dos EUA com o nome de Space Avengers. O personagem, criado por Osamu

Tezuka2, foi originalmente publicado na revista Shonen Gahosha Magazine, com o nome

de Ambassador Magma.

2 Osamu Tezuka, criador de Astro Boy e A Princesa e o Cavaleiro, é considerado o responsável por uma nova proposta estética e estrutural para os mangás, posteriormente adotada em grande âmbito.

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Figura 5. Vingadores do Espaço – primeira transmissão em cores da TV japonesa.

Em 1963, Eiji Tsuburaya, responsável pelos efeitos especiais de Godzilla, cria sua

própria produtora, a Tsuburaya Productions, e lança o seriado Ultra Q, que apresentava em

seus episódios o encontro com o sobrenatural e seres bizarros. Percebendo a popularidade

dos episódios que mostravam monstros gigantes, Tsuburaya propõe um seriado em que um

humanoide alienígena gigante combatesse, a cada episódio, esses monstros que tanto

agradavam o público. Surge assim, a série Ultraman, o segundo programa da TV japonesa

a ser transmitido em cores, exibida entre junho de 1966 e abril de 1967. No Brasil foi ao ar

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ainda na década de 1960 pela TV Tupi e depois reprisada até a década de 1980 pela Rede

Bandeirantes, TV Record, TV Manchete, TVS e SBT.

Figura 6. Ultraman – franquia de grande sucesso.

A série conta a história do policial da distante Nebulosa M-78, Ultraman, que

durante sua missão de escoltar o monstro Bemlar, chega acidentalmente à Terra e atinge a

nave do oficial da Patrulha Científica, Shin Hayata, que não suporta os ferimentos e morre.

Sentindo-se responsável pelo incidente, Ultraman funde seu corpo ao do oficial trazendo-o

novamente à vida. Deste modo, acaba conferindo a Hayata – que passa a ser uma espécie de

hospedeiro – o poder de alternar sua forma com o corpo gigantesco de Ultraman,

combatendo os ataques de monstros.

Mais tarde a P-Productions produziria uma nova série protagonizada por um herói

gigante que também se tornaria popular no Brasil: Spectreman. O seriado idealizado por

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Tomio Sagisu3 foi exibido entre 1971 e 1972 pela TV Asahi e contou com 63 episódios que

narravam a luta do androide Spectreman contra os simioides (símios humanos) Dr. Gori e

Karas, seu ajudante. No Brasil foi exibido na década de 1970 pela TV Record e reprisado

em 1980 pela TVS (atual SBT).

Figura 7. Spectreman – herói gigante da P-Productions.

Spectreman foi concebido como Choujin Elementman. No piloto da série, diferente

da roupa metálica com a qual o personagem ficou conhecido, Elementman usava um

uniforme em que predominava a cor vermelha, ficando a boca do ator à mostra. Em 2 de

janeiro de 1971, a série estreava com o título Uchu Enjin Gori (Gori, o Homem-Macaco

Espacial). Entretanto, devido à falta de popularidade do título, este foi alterado a partir do

episódio 21 para Uchu Enjin Gori Versus Spectreman e finalmente viria a se chamar apenas

Spectreman a partir do episódio 40.

Ainda na década de 1970, outro sucesso dos mangás ganharia adaptação para a TV,

Kamen Rider. O personagem criado por Shotaro Ishinomori, que havia sido assistente de

3 Tomio Sagisu usava o pseudônimo de Souji Ushio quando assinava as produções de mangás.

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Osamu Tezuka, teve 98 episódios e foi exibido entre 3 de abril de 1971 e 10 de fevereiro de

1973 com produção da Toei Company.

Figura 8. Kamen Rider – franquia de grande sucesso da Toei Company.

O grande sucesso da série levou à criação de outras versões do herói. A segunda

série lançada foi Kamen Rider V3 que também obteve sucesso, estabelecendo uma franquia

que dura até hoje, assim como Ultraman. O argumento das primeiras séries da franquia

geralmente apresentava um jovem com o poder de se transformar em um ciborgue mutante

com visual inspirado em insetos, cuja missão era enfrentar alguma organização do mal.

Duas séries da franquia foram exibidas no Brasil: Kamen Rider Black e Kamen

Rider Black RX, ambas pela Rede Manchete durante a década de 1990. Em 2009 foi ao ar

tanto no Brasil como nos EUA a adaptação estadunidense de Kamen Rider Ryuki, Kamen

Rider: Dragon Knight, no Brasil, Kamen Rider: O Cavaleiro Dragão.

Outra franquia de sucesso da Toei Company, Super Sentai, se iniciaria na década de

1970 com a série Himitsu Sentai GoRanger:

(...) cinco super-heróis adolescentes, vestindo uniformes colantes coloridos, refletindo códigos que os japoneses relacionavam com sexo e características de personalidade. Enquanto o azul escuro é uma cor exclusiva de homens e rosa de mulher, amarelo e verde são cores unissex.

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O vermelho que no ocidente é considerada uma cor ‘feminina’, é uma cor considerada masculina e que indica a liderança - portanto o líder do grupo era o Ranger Vermelho (...). (SATO, 2007, p. 320).

Figura 9. Himitsu Sentai GoRanger – primeira série da franquia Super Sentai.

Tanto Himitsu Sentai GoRanger como JAQK Dengeki Tai foram séries criadas por

Shotaro Ishinomori, que deixou de fazer parte da franquia em 1979, ano em que estreava

Battle Fever J. Esta série apresentou pela primeira vez o termo Super Sentai e a figura do

robô gigante, elemento que seria utilizado em todas as produções subsequentes. Foi a partir

de Battle Fever J que os Super Sentai ganhariam uma nova série a cada ano.

A partir de 1982, a Toei Company dá início à franquia chamada de Metal Hero,

com Uchuu Keiji Gyaban (Policial do espaço Gavan), que durou até 1998, com Robotack.

Esta é a franquia da qual Jaspion, série analisada neste trabalho, faz parte. A Toey

Company produziu também outras séries de sucesso, como Sharivan, Metalder, Jiraiya e

Jiban. O argumento geral baseava-se no personagem de um jovem policial da Terra

treinado no espaço para se tornar um policial espacial. Trajando uma armadura metálica e

pilotando uma nave de combate, retornava à Terra para enfrentar alguma sociedade ou clã

maligno que almejava conquistar o universo.

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Figura 10. Sharivan, Gavan e Shaider – trilogia original da franquia Metal Hero.

O tokusatsu influenciou produções em vários países, o que demonstra relevância do

gênero dentro da cultura pop mundial. Na França, a principal série foi Jushi Sentai France

Five (Esquadrão dos Mosqueteiros France Five), cujo nome foi posteriormente mudado

para Shin Kenjushi France Five (Novo Esquadrão de Mosqueteiros France Five). Trata-

se de uma microsérie francesa do gênero criada e produzida por Buki X-4 Productions na

década de 2000, em homenagem aos Super Sentais japoneses, muito populares na França

na década de 1980. Até hoje foram ao ar seis episódios, sendo o último em 2013. A série

foi exibida no Japão, porém não fez muito sucesso, apesar da participação do cantor Akira

Kushida, um dos cantores japoneses de temas de tokusatsu mais populares do mundo,

responsável por interpretar músicas de séries como Jaspion, Jiraiya e Jiban.

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Figura 11. France Five – Tokusatsu produzido na França.

No Brasil, talvez o principal representante seja Mega Powers, série criada por Levi

Luz e produzida pela empresa carioca Intervalo Produções em 2008, em homenagem aos

Super Sentais japoneses. A série teve uma temperada com três episódios e deixou de ser

produzida. No início os episódios foram lançados em DVD pela Vídeo Brinquedo, depois

passaram a ser exibidos online pela WTS Kids, em blocos.

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Figura 12. Mega Rangers – tokusatsu nacional.

Outra série importante no Brasil foi Insector Sun, web série brasileira criada pela

KRI Produções Entretenimento em 2000, baseada nos quadrinhos de super-heróis

nacionais, da mesma produtora. A série teve uma temporada de 12 episódios, com previsão

de lançamento da segunda, com mais 12 episódios.

Figura 13. Insector Sun – tokusatsu nacional produzido por fãs.

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Ainda no Brasil foi produzida outra web série chamada Blast Rangers, criação de

fãs do Rio Grande do Sul com o intuito de manter vivo o estilo no país, tendo Bruno Seidel

Neto como idealizador. A web série foi criada em 1993 e gravada em 2002.

Já SFX Drama Erexion é uma série

nipo-coreana, produzida pela Chungam

entretenimento em 2006. A série é exibida

no canal da KBS 2 e conta a história de sete

personagens cujas caracterizações são

baseadas nos sete dias do calendário asiático:

sol, lua, fogo, água, madeira, metal e terra.

Squadron Sport Ranger (figura

abaixo) é uma série de televisão tailandesa

de super-herói similar ao tokusatsu japonês,

criada pela Broadcast Thai Television.

Liderados pelo Dr. Earth, cinco jovens

esportistas se unem para proteger a Terra do

ataque de uma tribo maligna alienígena. A

primeira temporada da série estreou em 2006

e foi ao ar na Tailândia Canal 3. A

segunda temporada, intitulada Sport

Ranger 2, estreou em 2012 no Canal

3.

Kai Jia Yong Shi é uma série

chinesa criada em 2009, inspirada

nas séries japonesas. A série

apresenta influências estéticas dos

super sentais e dos metal heroes.

Conta a história de cinco jovens

descendentes de cinco diferentes

Figura 14. Erexion – série nipo-coreana.

Figura 15. Squadron Sport Ranger – Tokusatsu tailandês.

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tribos, que juntos devem defender a Terra das ameaças do Imperador da Escuridão e seus

Minions. Foi produzida em 2009 e contou com 52 episódios. Teve seus direitos adquiridos

pela distribuidora estadunidense Televix, ganhando o nome ocidental de Armor Hero.

Zaido: Pulis Pangkalawakan (Zaido: The Space Police) é uma série de origem

filipina, concebida para ser continuação da série japonesa Uchu Keiji Shaider, da Toei

Company. A produtora japonesa recusou a ideia, mas permitiu que a série fosse criada e

divulgada como um spin-off – uma série derivada diretamente de outra –, com uma

passagem de tempo de vinte anos em relação aos acontecimentos da série japonesa. A série

foi produzida pela GMA Network e rendeu apenas seis episódios para a TV, realizados

entre 2000 e 2013.

1.2. O papel dos monstros

Apresentado o panorama geral do universo dos tokusatsu, agora traçaremos o recorte

preciso dos objetos a serem analisados neste trabalho. A produção do gênero tem uma

orientação geral calcada na utilização dos efeitos especiais, mas internamente é bastante

diferenciada no que diz respeito às linhas criativas. Assim, procuramos uma delimitação

que nos permitisse pensar a produção conceitual e os significados dos tokusatsu, através do

aprofundamento de uma de suas perspectivas.

Subsidiariamente ao trabalho com efeitos especiais que define o gênero e o nomeia,

como se viu acima, as franquias definem parâmetros de composição de roteiro que

naturalmente acabam por engendrar padrões de desenvolvimento criativo e, por

conseguinte, significações típicas para cada franquia em particular. Não adotaremos

simplesmente o viés de uma franquia específica, pois seria improdutivo, uma vez que a

profusão de produções em cada uma das linhas de franquia tornaria difícil uma abordagem

científica capaz de redundar em conclusões satisfatórias, dotadas de validade acadêmica.

No âmbito da procura por uma delimitação produtiva, na fase de mapeamento geral

do gênero tokusatsu, uma possibilidade de recorte surgiu diretamente da pesquisa de linhas

teóricas a serem adotadas neste trabalho. Através do estudo de textos de George Lakoff e

Mark Johnson, mais especificamente do livro Metáforas da vida cotidiana (2002), a adoção

da metáfora surgiu como uma forma precisa de abordagem de criações artísticas, pensada

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como um padrão identificável para o pensamento e para a realização de ações, e não apenas

como um recurso estilístico.

No capítulo seguinte a abordagem dos autores supracitados será desenvolvida. Por

isso, aqui nos ateremos a apenas pontuar esses conceitos de Lakoff e Johnson para que se

possa entender como eles moldaram a definição do recorte temático adotado. A postulação

de que a metáfora transcende seus usos e efeitos estilísticos foi o argumento que nos fez,

primeiramente, buscar metáforas presentes nos tokusatsus. Alguns padrões narrativos que

redundam em metaforizações passíveis de serem analisadas: o eterno dialogismo entre o

bem e o mal; o papel do herói, nos moldes da jornada do herói conforme conceituada por

Joseph Campbell; a formação de equipes de combatentes e a utilização de cores simbólicas.

Dentro do vasto universo metafórico descoberto, um em especial chamou-nos

atenção: o amplo uso da figura dos monstros nas narrativas. Em uma parte bastante

considerável do gênero, os monstros aparecem como antagonistas, tornando-se figuras

balizadoras das histórias. Em um ambiente narrativo marcado pela presença de heróis que

combatem forças malignas, os monstros representam um recurso retórico poderoso,

colocando à frente dos protagonistas um desafio de grande porte, extremamente difícil de

ser superado.

José Gil em seu livro “Monstros” (2006) realiza uma análise sobre a composição da

figura monstruosa que pensamos primordial para o entendimento do significado da

presença dos monstros no tokusatsu. Portanto, passamos a expor aqui seu ponto de vista.

Cotejando alguns autores, Gil apresenta dois pontos fundamentais com relação à

figura do monstro: o fato dos monstros serem pouco vistos e o fato de serem sinais de um

extraordinário. De acordo com o autor, estes dois fatores são ligados ao olhar. Os monstros

seriam entidades que se ocultam, mas que, ao mesmo tempo, quando se dão a ver, oferecem

uma superabundância.

Segundo José Gil, tal efeito se dá porque “um monstro é sempre excesso de

presença” (2006, p. 75). O monstro é visto pelo autor como uma combinação de elementos

que redunda em uma imagem que “(...) contém sempre mais substância que uma imagem

vulgar” (2006, p. 75). Conforme se verá, isso é muito importante na concepção dos

monstros do tokusatsu, pois, tradicionalmente, a fisiologia de seus monstros é orientada

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pelo acúmulo de substâncias naturais e/ou não-naturais, o que gera justamente a impressão

do excesso de substância e ou presença.

Ainda segundo José Gil, essa característica peculiar dos monstros - que aparece com

proeminência nos monstros do gênero – confere a eles “uma autêntica vocação para

representação” (2006, p. 76). Desse modo, fica claro que a composição da figura

monstruosa não é fruto de um simples acúmulo desordenado, mas obedece a um sentido

que, mesmo subterrâneo, se torna marcante enquanto arquitetura de significação. Essa

retórica ficará mais clara quando discorrermos a respeito da presença dos monstros nos

filmes e séries que compõem nosso corpus de pesquisa.

Outra colocação importante para nós advinda de Gil é a afirmação de que o monstro

é “(...) ao mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco” (2006, p. 78).

Segundo o autor, encarar um monstro é ter a atenção definitivamente capturada, o olhar

“(...) paralisado, absorto num fascínio sem fim (...)” (2006, p. 78). Ainda, essa extrema

absorção seria conjugada com uma impossibilidade real de conhecimento a respeito do que

se vê, pois o monstro nada revela, sendo uma fonte de informação não codificável, uma

espécie de alfabeto desconhecido que não se pode desvendar.

Assim, surge uma perspectiva sobre o monstro que é a do extraordinário

materializado e, mais importante ainda para nossos objetivos, de um extraordinário que se

esconde e que, quando aparece, revela. Tal processo de construção de sentidos está no

cerne da composição da metáfora enquanto instrumento de linguagem, o que traz à tona

sua função original. É importante perceber, também, que é justamente o funcionamento

das metáforas em sua função original de significação enviezada e paralela o que nos

aproxima dos conceitos de Lakoff e Johnson que utilizaremos como base analítica. Esse

processo também se revelará como estrutura de construção narrativa das próprias séries e

filmes aqui analisados, uma vez que os monstros figuram justamente como entidades que,

com sua magnitude de extraordinário, expõem o que se pretende ocultar, mas que não pode

ser verdadeiramente ocultado.

A profusão de monstros nos tokusatsu tem sua origem no que se convencionou

chamar, no contexto japonês, de Kaiju Eiga, ou “filmes de monstros”. Estes filmes tiveram

grande impacto cultural, tornando-se muito populares. Etimologicamente a expressão

comporta as seguintes significações: a palavra japonesa Kaiju pode ser traduzida como

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“besta estranha” e tornou-se uma expressão muito comum no universo do tokusatsu; a

palavra Eiga significa “filme”. Essas significações da expressão serão, no desenvolvimento

deste item, bastante importantes, com ecos na análise das metáforas a ser apresentada no

capítulo a seguir.

Godzilla, de 1954, foi um dos primeiros filmes de monstro do mundo e o pioneiro

no Japão. À época do lançamento do filme, a expressão tokusatsu ainda não fora cunhada,

mas a obra certamente influenciou o gênero, dando a primeira forma a alguns de seus

pressupostos e instalando o monstro como uma de suas figuras centrais. Ghidorah,

Mothra, Gamera, monstros antagonistas de filmes japoneses, passaram a fazer parte do

imaginário popular não só no Japão, mas de fãs ao redor do mundo.

Figura 16. Ghidorah – a onda dos monstros no cinema japonês.

Na imagem acima pode-se facilmente perceber um atributo ligado à figura

monstruosa que comparece nos filmes de monstros japoneses e nos tokusatsu de modo

muito marcante: os monstros, via de regra, são proporcionalmente muito maiores e mais

fortes que os heróis, tornando-se, assim, entidades amedrontadoras. Devido ao tamanho e à

força, os monstros impõem-se ainda como obstáculos incontornáveis. Os heróis devem

combatê-los prontamente, pois os monstros, de maneira geral, entram em cena causando

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uma destruição larga e contínua, impondo um grande número de estragos materiais e

colocando em risco e/ou eliminando um grande número de vidas.

O tamanho e a força sobrenaturais dos monstros são associados ao fisicamente

hediondo. Na maioria das vezes, as imagens concebidas e desenvolvidas para os monstros

são causadoras de repulsa ou, ao menos, de aversão, desviando-se de padrões estéticos

ligados ao belo, ou ao que é agradável aos olhos.

A forma física anômala é quase um atributo natural dos monstros. Ao longo da

história e, em especial, nos contos de fada tradicionais, existe o pressuposto da “ética pela

estética” – o bom é belo e o mau é feio. Um exame dos contos coletados pelos irmãos

Grimm e por Charles Perrault pode facilmente revelar esse aspecto: belas princesas são

ameaçadas por bruxas fisicamente hediondas; crianças inocentes são ameaçadas por lobos

devoradores de humanos.

A anomalia não está relacionada apenas à feiura, mas também às combinações não

naturais. A Quimera é geralmente descrita e representada como a união dos corpos de um

leão, uma cabra e uma serpente; o Grifo como o amálgama do corpo de um leão com uma

cabeça de águia; o Minotauro tem corpo de homem e cabeça de touro. O que está em jogo

nessas combinações é um atestado do estado não natural dessas criaturas. Ao promover a

união de espécies que não se misturam na natureza, promove-se a inserção imediata da

criatura-amálgama no âmbito de um estado sobrenatural, que não pode ter uma ascendência

biológica definida e que, portanto, geralmente repele qualquer origem derivada do humano

e/ou do divino.

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Figura 17. Quimera – a combinação não natural.

Em Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, de 1818, o

protagonista Victor Frankenstein, obcecado em banir a morte da humanidade, cria um ser

humano artificial a partir de pedaços de diversos cadáveres. Sua criação tem a missão

primária de se tornar um novo paradigma humano, quase uma melhoria genética. O ser

criado, pensado como esse novo paradigma, a princípio belo e comparável a Adão, revela-

se fisicamente hediondo, sendo, por isso, imediatamente rejeitado por seu criador. Além

disso, o ser criado por Frankenstein não tem alma, o que o faz sentir-se inferior aos seres

humanos e mesmo aos demônios. Por essas razões o monstro não é nomeado na obra de

Mary Shelley.

Desse modo, a criatura de Frankenstein é uma criatura de um estado não natural.

Não se trata de um amálgama de espécies, mas da composição de um corpo humano que se

quer vivo a partir de pedaços de corpos humanos mortos. Além do desafio ao

desenvolvimento natural da espécie e, obviamente, aos desígnios divinos, é importante

notar que o caráter hediondo e não natural da criatura decorre também e justamente de seu

caráter de conjunto não harmonioso.

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O que mais assusta no ser criado por Victor Frankenstein é o fato dele ser uma

junção/costura de pedaços diversos de cadáveres. As partes isoladas não são identificadas

com os corpos aos quais pertenciam e, em conjunto, formam um ser tão heteromorfo e

deformado que não pode ser contido nos limites da normalidade humana. Assim, promove-

se a inserção imediata da criatura-amálgama no âmbito de um estado sobrenatural – não há

uma ascendência biológica definida e natural e, por conseguinte, não há qualquer

possibilidade da associação a uma origem divina

Figura 18. O monstro de Frankenstein – a composição a partir de pedaços.

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Nesse sentido, os monstros do tokusatsu podem ser pensados como monstros de

matriz frankensteineana. São anômalos e dotados de origens imprecisas, o mais das vezes

tendo sua geração ligada a eventos não naturais e a problemas socioeconômicos, como

poluição e desastres nucleares. Em seu caráter anômalo, os monstros do tokusatsu tem

características muito próprias, não sendo apenas amálgamas de criaturas conhecidas como a

Quimera, o Grifo e o Minotauro.

As anomalias físicas da Quimera e do Grifo são geradas através da união de

espécies constantes nas instâncias biológicas conhecidas. A anomalia física do Minotauro é

fruto da união de uma espécie animal com o gênero humano. Na maioria das vezes, os

monstros do tokusatsu,, diferentemente, não são junções improváveis de espécies

conhecidas ou interações do humano com o animal.

A concepção da monstruosidade no gênero é bastante particular. Notadamente, ou

se trata de seres dotados de uma unidade, mas de uma unidade que não cabe em nenhum

padrão biológico ou estético; ou se trata de seres que parecem, justamente, ser resultado de

uma mistura ainda mais improvável, a da junção de partes variadas de seres integrais cujo

fenótipo não é conhecido ou esperável.

Lafuente e Valverde dizem que “(...) há monstros para todos os gostos e de qualquer

condição imaginável (...)” (2000, p. 19). Citando uma pequena lista dessas condições, os

autores consideram a categoria dos monstros por hibridação. Se o monstro de Frankenstein

pode ser encaixado nessa categoria, e quanto a isso parece não haver dúvida, os monstros

do tokusatsu podem ser considerados ainda mais monstruosos, uma vez que nenhuma ou

quase nenhuma de suas partes constituintes é identificável.

Constituindo-se em exemplos bastante claros desse tipo de construção hibridizada,

os monstros do tokusatsu constituem-se como seres que carregam em si uma grande

intranquilidade. Se o monstro de Frankenstein causava asco e repulsa por ser uma

miscelânea de cadáveres diversos, esse efeito provavelmente pode ser sentido em maior

grau quando se fala de uma mistura de partes inidentificáveis. E, como os monstros do

gênero não pertencem aos reinos biológicos conhecidos nem ao seu congraçamento, não

pode haver uma origem divina que os sustente.

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Seguindo os padrões de constituição da monstruosidade, os monstros do tokusatsu

são, portanto, fisicamente hediondos, formados por uma costura artificial de partes

incombináveis, passíveis de constar em bestiários dos mais diversos, desde os

premeditadamente ficcionais até os que se ocupam de uma arqueologia catalográfica

mais vinculada ao real. Misturam em seu corpo muitas vezes os reinos animal e vegetal,

dotados, ainda, de profusas intervenções maquinais. O que se constrói é, portanto, uma

origem artificial que tende a ser – e é – muitas vezes associada a uma não naturalidade que

se prende a uma geografia inexistente e a um decorrente caráter maléfico.

Tal conformação, como nota Quinteiro instaura ainda os monstros do

tokusatsu como “figuras irrepetíveis” (2006, p. 73), que sob essa condição são tornados

“sujeitos associais, à margem quer da lei humana quer da lei divina” (Punter, 1998:

46).

Reforçando nossa argumentação, Quinteiro define que os monstros são gerados:

(...) fora de um útero materno, fora dos padrões físicos que definem um ser humano normal, fora da família e da sociedade (que os rejeitam), fora da lei e dos princípios que regem a sociedade burguesa e, até mesmo, fora da vida e da morte (...). (QUINTEIRO, 2006, p. 77).

Ora, os monstros não tem um útero, não compartilham com os humanos um padrão

físico, não tem uma família – em geral, são únicos e estéreis –, não provém de uma

sociedade específica – portanto, não têm semelhantes ou quem os aceite –, são

definitivamente “foras da lei” e, mais importante, fora da vida e da morte. Não apenas

no tokusatsu, se os monstros “vivem”, esta vida é anômala. Se não vem diretamente da

morte como em Frankenstein, os monstros, por seu desencaixe em todas as categorias da

existência, são seres cuja natureza de aberração parece destinada a ser dizimada para que as

naturezas biológica e cultural que conhecemos sobrevivam.

Este aspecto da biologia dos monstros aqui tratado é importante para o

desenvolvimento das narrativas por dois motivos. Primeiro porque a conformação física

hedionda dos monstros é atributo correlato a seu tamanho e força hiperbólicos e, segundo,

porque uma vez que não têm origens precisas, e já que não são seres reconhecíveis como

parte da biosfera terrestre, são anomalias viventes que podem ser eliminadas pelos heróis

sem muito pesar ou culpa.

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O morticínio de um grande número de pessoas é normalmente ancorado na

desumanização das mesmas. O massacre justificado pela desumanização talvez encontre no

Holocausto seu exemplo mais tocante e contundente. Ancorado nessa descaracterização do

humano, o quadrinista Art Spiegelman escreveu e ilustrou a história em quadrinhos Maus –

a história de um sobrevivente (maus significa “rato” em alemão). Na obra, baseada nas

memórias de seu pai referentes ao Holocausto, Spiegelman retrata os alemães como cães,

os estadunidenses e seus aliados como gatos e os judeus – o povo caçado – como ratos. As

significações aqui desenvolvidas e a desumanização dela derivada é correlata à que os

monstros sofrem no tokusatsu.

Como se pode perceber, os monstros são criaturas sempre além dos limites.

Superam os limites físicos humanos e os limites biológicos que conhecemos; rompem os

limites de unicidade das espécies, propondo amálgamas; encontram um terreno próprio

desvinculado de um nascimento e chamador da morte. Como Quinteiro afirma, os monstros

“caracterizam-se sempre pelas múltiplas transgressões dos limites” (2006, p. 79), e é pela

palavra “transgressão” que podemos abordar os monstros de tokusatsu, no contexto mais

geral de construção da monstruosidade e dentro de seu universo específico.

Os monstros do gênero são derivações bizarras de criaturas conhecidas como

insetos ou lagartos, deturpações de figuras mitológicas e/ou de fantasia, como os dragões,

junções improváveis de arquiteturas biológicas não identificáveis ou, ainda, um amálgama

dessas três orientações arquitetônicas. A tudo o que já foi dito, é possível acrescentar uma

característica peculiar dos monstros do tokusatsu: se fossem considerados padrões

biológicos conhecidos, em boa parte dos casos esses monstros seriam mecanicamente

disfuncionais. Este fato é importante para o desenvolvimento das significações no gênero, e

tal disfunção mecânica será muito importante quando analisarmos as metáforas constituídas

nas obras analisadas.

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Figura 19. Gamera – anatomia do monstro.

A disfunção mecânica é oriunda do tamanho desproporcional dos monstros, de sua

composição em amálgama, das origens imprecisas de suas partes componentes e até mesmo

de sua procedência não divina. Seu tamanho gigante impossibilitaria uma existência real,

uma vez que é sabido que a massa de um corpo da proporção de um monstro do gênero

seria insustentável para qualquer esqueleto. Sua composição corporal de misturas inviáveis

e proporções inconciliáveis os impediria de atuar em um combate contra um herói

tradicional, mesmo nos mínimos níveis de velocidade e agilidade. Ainda, não há uma

origem divina que pudesse suplantar essas impossibilidades.

Todavia, no tokusatsu os monstros não respeitam essas limitações. Na análise das

metáforas essa condição aparecerá com mais força e precisão. Por enquanto basta ressaltar

que não respeitar essa naturalidade é parte da função dos monstros nas obras analisadas.

Para transgredir ainda mais, a maioria dos monstros é caracterizada com garras, dentes

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bestiais e uma série de “acessórios”, cabíveis em sua natureza abominável e polimórfica,

que os torna ainda mais ameaçadores, evocando alta capacidade de agressão.

A movimentação dos monstros do gênero é desajeitada e sua forma de andar é

desconexa. Além disso, os monstros emitem frequentemente sons guturais

incompreensíveis, gritos e urros, que fazem parte de seu arsenal bélico e não humano.

Portanto, cria-se um composto de significações que, acumuladas reiteradamente, reforçam

tanto a monstruosidade das criaturas quanto seu caráter de ameaça iminente.

Tal nível de construção potencialmente agressiva dos monstros pode denotar uma

busca por torná-los paradigmáticos. A junção de origem não natural, tamanho e força

hiperbólicos, caminhar e movimentação desarmônicos e a presença de instrumentos bélicos

em seu próprio corpo aparece como a representação de inimigos prototípicos. Assim, na

mesma medida que a ameaça dos monstros é intensificada, há também uma intensificação

do valor dos heróis que os vencem.

A argumentação desenvolvida até aqui fornece as bases necessárias para apresentar

os monstros como centro das metáforas do tokusatsu. Uma aproximação primeira e

primária traria, via esse desenvolvimento, o paradigma da “ética pela estética”, largamente

desenvolvido nos contos de fadas, onde o belo é bom e o feio é mau, como já apresentado

anteriormente.

Tratando da construção do corpo humano, Alexander Lowen afirma que “a beleza,

em seu significado mais simples, representa a harmonia dos elementos de uma cena ou de

um objeto” (1984, p. 127). O significado de beleza do qual o autor trata, baseado na

harmonia dos elementos, é o que funda a concepção de ética baseada na estética clássica

dos contos de fada. Assim, a ética é pensada como um conjunto de ações harmônicas em

sua arquitetura e em sua orientação para o bem, e por isso, belas. Fisicamente, os monstros

são impossibilitados de alcançar esse ideal – sua construção desarmônica é complexa, mas

principalmente entrópica.

No entanto, há mais a ser considerado. Por conta de seus atributos físicos os

monstros espalham a desordem, são arautos da destruição e do caos. Uma vez que

atrapalham o andamento ordenado do mundo, poderiam, ou mesmo deveriam, ser

eliminados. Só que no tokusatsu a questão não é tão simples assim. Todas as construções e

seus respectivos significados referidos acima estão presentes e fazem parte da semiose do

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gênero, mas nos exemplos estudados há um aspecto complementar: os monstros são

também entidades narrativas e símbolos das situações que servem de esteio para a

confecção das obras.

Desse modo, os monstros do gênero mostram o que está errado com o mundo, ou

com a situação específica da qual extraem seu fundamento criativo. Talvez por conta disso,

muitas vezes os monstros são, na verdade, inocentes – ou são enganados/ludibriados pelos

vilões ou são por eles afetados/transformados para que atuem como destruidores da ordem

estabelecida. Em um número bastante significativo de episódios das séries estudadas, os

monstros mortos pelos heróis, no clímax das narrativas, não tem efetivamente culpa de sua

condição de ameaça. Esse aspecto de “inocência” permite pensar que sua eliminação tem

ares de injustiça.

Vale ressaltar que, no contexto que nos interessa neste trabalho, a presença dos

monstros no gênero tokusatsu, entendida sob a luz das metáforas conforme abordadas por

Lakoff e Johnson, funciona de forma a extrapolar sua condição de “bestas estranhas”. Se os

monstros são seres repugnantes, hiperbólicos, bélicos e ameaçadores, mas podem também

ser considerados inocentes, torna-se necessário pensar que suas significações estão

carregadas de significados paralelos. Uma vez que esses significados paralelos e, portanto,

as metáforas constituídas, estão ligados a conteúdos histórico-culturais, é relevante

discorrer sobre as séries escolhidas como objetos de estudo desta pesquisa.

Os tokusatsu selecionados foram quatro: Godzilla, Ultraman, Spectreman e

Jaspion. As narrativas desenvolvidas nas séries elencadas, dentro de suas peculiaridades

estruturais e semânticas, representam questões socioeconômicas de seu tempo. Godzilla

trazia indagações acerca do horror atômico. Ultraman e Spectremen discorriam sobre o

problema da poluição. Jaspion funcionava como uma síntese dos temas de outras séries, e

ainda trabalhava questionamentos acerca dos possíveis males do desenvolvimento

tecnológico desenfreado.

Nas séries analisadas, os desenvolvimentos acerca dos significados das figuras dos

monstros funciona em consonância com os temas apontados no parágrafo anterior. Mais

que isso, pode-se pensar num trânsito intercamadas, onde os significados universais das

figuras monstruosas assomam nos tokusatsus e, ao mesmo tempo, estão associados aos

temas de base. Desse processo de construção imanente e em palimpsesto, decorre uma

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interpenetração entre as camadas de significação e uma fertilização semântica cruzada, o

que gera polissemia.

Este é o sentido assumido ao tratarmos das metáforas, sob a égide dos conceitos de

Lakoff e Johnson. No gênero estudado, a associação das figuras monstruosas e suas

peculiaridades aos temas subsidiários, tratados em cada uma das séries, é a própria

metáfora. As características físicas dos monstros e suas decorrentes simbologias são

acionadas simultaneamente com os temas e as contestações socioeconômicas. Assim, os

deslocamentos de sentido das metáforas tornam-se presentes.

As séries analisadas tratam de seus temas específicos através de ficções, falando

sobre tais temas sem abordá-los diretamente, o que se constitui como processo metafórico.

Já que esse processo metafórico tem em si propósitos moralizantes, chamando a atenção

para assuntos então pouco ou nada tratados, está claro o vínculo com o sentido das

metáforas trabalhado por Lakoff e Johnson. Em Godzilla, Ultraman, Spectreman e Jaspion,

os monstros são símbolos dos problemas socioeconômicos e, neste sentido, constituem-se

em instigadores e modelos metafóricos dos pensamentos e das ações.

Considerando, então, que os monstros funcionam como sinais indubitáveis dos

problemas da época, tornam-se uma espécie de aviso metafórico vivo e incontornável. Uma

vez que se quer abordar um problema de modo não direto e ilustrativo, tão mais eficiente

será essa ilustração quanto ela for, disfarçadamente, impositiva. A presença dos monstros

não é uma imposição em seu sentido mais estrito. Porém, se as criaturas monstruosas do

tokusatsu são gigantescos agentes do caos que não se pode esquecer ou ignorar, os

conteúdos metafóricos por eles disparados também são impositivos e incontornáveis.

Estando definido o papel dos monstros no gênero estudado e o modo como esse

papel aciona o sentido metafórico conforme entendido por Lakoff e Johnson, no próximo

capítulo passaremos a um estudo mais profundo do significado das metáforas segundo

esses autores.

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CAPÍTULO 2

2.1. A metáfora como fundamento do tokusatsu

O universo referencial sobre o qual este trabalho se debruça baseia-se nos conceitos

desenvolvidos por Geroge Lakoff e Mark Johnson em Metáforas da vida cotidiana (2002).

O pressuposto maior dos autores é o de que metáforas podem ser entendidas como um

modelo de pensamento, sendo não apenas uma figura de linguagem e um exercício retórico,

mas uma rede cognitiva que constitui o pensamento e a expressão humana.

Esse entendimento pode ser aplicado à análise do tokusatsu, já que se caracteriza

como gênero no qual os efeitos especiais se apresentam como elementos de linguagem. Nos

tokusatsu, os efeitos especiais não são meramente ilustrativos, não funcionam apenas como

apoio para a construção das narrativas, são, na verdade, parte fundamental da estrutura das

mesmas. Portanto, os efeitos especiais são essenciais para a construção e para o

entendimento da linguagem e das significações do gênero.

No entanto, trata-se de uma questão delicada. Mesmo que a existência de efeitos

especiais evidentes e não “de ponta” ou “invisíveis” seja uma orientação bastante

proeminente no gênero, há séries de tokusatsu que apresentam esses efeitos com um nível

de realização técnica bastante elevada. Porém, o recorte que apresentamos não contempla

nenhuma dessas séries. As obras aqui estudadas apresentam a acepção mais comum de

efeitos especiais: a do efeito que se mostra e que, ao mostrar-se, acaba sendo importante

elemento de narração.

A linguagem típica do gênero, ao evidenciar os limites técnicos de produção

conforme poderá ser percebida nas obras aqui analisadas, constitui uma camada de

significação. As metáforas desenvolvidas internamente nos filmes constitui outra camada.

Poderíamos pensar em uma série de outras camadas, como a edição, as vestimentas, os

temas dos episódios, etc., no entanto, o foco aqui é outro.

A questão das técnicas de produção é extremamente relevante, bastando lembrar que

a tradução de tokusatsu é “filme de efeitos especiais”. Assim sendo, é quase obrigatório que

uma produção do gênero seja ancorada ou, no mínimo, conte com uma quantidade

significativa de efeitos. As séries aqui abordadas são exemplos marcantes do uso de efeitos

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especiais. Estes são claramente reconhecíveis no processo de montagem, por vezes

destoante bastante das cenas gravadas. É o caso do primeiro episódio de Jaspion, em que a

animação é utilizada de tal maneira que se nota claramente sua inserção, podendo ser

tomada como uma intervenção grosseira.

As quatro séries aqui analisadas – Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion –

desenvolvem, em seus respectivos contextos, metáforas consistentes que nos episódios e ao

longo do desenvolvimento das séries, instituem seus sentidos, de maneira específica e

também em um viés mais universal.

De maneira específica entendem-se as mensagens pensadas em termos dos

episódios individuais e destes em relação à série como um todo. Em um viés mais universal

entendem-se as mensagens em relação aos episódios e à série, mas voltadas a contextos

mais amplos, referentes ou ao Japão, ou à relação do Japão com outros países ou, ainda, a

questões globais.

Godzilla discorre primordialmente acerca do horror atômico. Ultraman e

Spectremen desenvolvem-se, essencialmente, em torno da questão da poluição. Jaspion

funciona como uma síntese dos temas abordados em séries anteriores, colocando bastante

em cena os problemas do desenvolvimento econômico e tecnológico. Todas essas temáticas

podem e devem ser pensadas por sua apresentação nos episódios, mas também não podem

deixar de ser entendidas como fruto de ambientes histórico-culturais precisos e

identificáveis, que trazem em seu bojo mensagens capazes de promover discussões e

movimentações derivadas e paralelas.

Cumpre, agora, apresentar a veia conceitual através da qual as metáforas presentes

nos tokusatsus aqui estudados serão abordadas. De acordo com os conceitos de George

Lakoff e Mark Johnson, apresentados em Metáforas da vida cotidiana já no primeiro

capítulo, “a metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da imaginação poética e um

ornamento retórico” (2002, p. 45). Os autores advogam que a metáfora é, no mais das

vezes, entendida como presente apenas na esfera da linguagem, e que a metáfora está

“infiltrada (...) no pensamento e na ação” (2002, p.45).

O que chama a atenção na argumentação de Lakoff e Johnson é que, para eles, a

metáfora constitui “nosso sistema conceitual da vida cotidiana” (2002, p.45). Assim sendo,

haveria uma base metafórica para o pensamento e para a ação que é alimentada

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cotidianamente, de maneiras mais ou menos conscientes. No decorrer de seu texto, os

autores demonstram como construções conceituais metafóricas inserem-se na elaboração de

linguagem e, assim, na elaboração de pensamento e, até mesmo, no planejamento e na

execução de ações.

Para os autores, a metáfora se instala no pensamento e na vida cotidiana como um

sistema conceitual complexo, capaz de guiar construções da inteligência e de moldar

atitudes, desde os níveis mais imperceptíveis aos mais evidentes. É no desenvolvimento da

linguagem e do pensamento, nutrido por e dependente dela, que os autores encontram, em

suas análises linguísticas, traços fortes e complexos da presença da metáfora enquanto

modelo de pensamento e ação. Uma vez que as séries analisadas também apresentam em

sua construção de linguagem a utilização de metáforas que estruturam, promulgam e

reiteram suas temáticas peculiares, é presumível a proposição de que é através dessas

metáforas que esses tokusatsu constroem suas esferas de significação.

Esta argumentação, todavia, pertence ainda à esfera da linguagem. Para utilizar os

conceitos de Lakoff e Johnson acertadamente é necessário que as metáforas sejam vistas

principalmente como modelos conceituais, além de oriundas da estruturação da linguagem.

Se esses modelos são capazes, segundo os autores, de configurar pensamentos e ações, são

igualmente capazes de fornecer paradigmas norteadores suficientemente fortes para que um

determinado tema seja posto em discussão e debatido, com o advento de uma potencial

conclusão. “Um conceito pode ser metafórico e estruturar uma atividade cotidiana” (2002,

p. 46).

O entendimento das metáforas como instrumentos de construções conceituais que

configuram procedimentos e raciocínios deve, então, ser pontuado na esfera dos tokusatsu.

As quatro séries selecionadas como objetos de estudo deste trabalho tem um ponto em

comum: a figuração de monstros como antagonistas. Os monstros – e suas ações – são

justamente as metáforas em questão, representam os problemas socioeconômicos

enfrentados pelos protagonistas de Godzilla, Ultraman, Spectremen e Jaspion.

Uma vez que monstros são, via de regra, muito maiores e mais fortes que os heróis,

são sinônimos de ameaças de grande porte que devem ser enfrentadas. Os monstros são

também esteticamente feios, normalmente configurados e descritos como repugnantes e

ameaçadores, atentam contra o tradicional ideal estético dos heróis e ao postulado da beleza

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38

e da admirabilidade enquanto posicionamento ético. Os monstros são, também, aberrações,

fruto de mutações ou interferências não naturais de modelo frankensteineano, contrapõem-

se, assim, à noção da natureza benfazeja do herói.

Portanto, a existência de monstros no tokusatsu é metafórica, uma vez que são

metáforas para as ameaças de base que guiam cada uma das séries. Godzilla é o monstro-

metáfora do horror nuclear, do mesmo modo que os monstros enfrentados por Ultraman,

Spectremen e Jaspion são metáforas das ameaças socioeconômicas que cada um desses

heróis têm como antagonistas mais profundos.

Nas séries investigadas neste trabalho é primordial que as metáforas sejam tratadas

como modelos de pensamento e ação, como proposto por Lakoff e Johnson. Assim, no

gênero estudado podemos pensá-las de duas formas: como instrumentos de criação e como

instrumentos de recepção. Pensá-las como instrumentos de criação nos remete à gênese das

obras e a seu processo de criação conceitual e de roteiro – os criadores, consciente ou

inconscientemente, utilizaram as metáforas para elaborar suas criações. Pensar as metáforas

como instrumentos de recepção nos remete aos modos como as obras finalizadas e

transmitidas são recebidas pelos espectadores – os procedimentos metafóricos constituintes

das obras, percebidos ou não, certamente disparam a constituição de outras metáforas

pessoais e coletivas, usadas como interpretantes.

Após a apresentação das metáforas como modelo de pensamento, vale lembrar que

a abordagem proposta aqui é justamente de inversão deste processo. Trataremos da

desconstrução das metáforas constituídas no tokusatsu através do desenvolvimento de

procedimentos de comercialização de produtos relacionados às séries. Tal desconstrução

tem seu cerne na utilização de elementos das séries analisadas para a montagem de um

portfólio de produtos comerciais, gerando a construção de uma rede de consumo desses

produtos. Tendo em vista os procedimentos comerciais inerentes a este processo, os

significados primeiros das obras artísticas acabam sendo depauperados em termos de

alcance semântico.

Não se trata de uma demonização da publicidade e da indústria cultural, mas, sim,

da exposição de acontecimentos documentados nos quais se pode notar o desvio dos

objetivos iniciais das séries e do gênero tokusatsu. Como consequência temos a

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39

constituição de outras metáforas, fundamentalmente mais pobres em termos de constituição

semântica. Tal deslocamento será apresentado a seguir.

2.2. Análise das primeiras séries e seus desdobramentos políticos

O processo narrativo do gênero tokusatsu tem características próprias ligadas aos

efeitos especiais, como já apresentado. O corpus deste trabalho ancora-se na utilização dos

citados efeitos especiais e encontra sua coesão na proeminência das figuras monstruosas em

suas narrativas. Godzilla, Ultraman, Spectreman e Jaspion desenvolvem suas histórias, a

seu modo e com suas peculiaridades temáticas, sob a égide da figura dos monstros. As

metáforas a serem analisadas residem justamente nesta figura e em sua performance nas

narrativas.

Os monstros das séries analisadas são objetos posicionados na fronteira entre o

significado de base, mais geral, e o significado particular, mais específico. Mais

pormenorizadamente, os monstros são as entidades narrativas que fazem a ligação entre o

que se quer realmente significar, com maior peso cultural, e o que se comunica em termos

de superfície, o que se comunica em cada um dos episódios das séries do gênero sobre as

quais nos debruçamos.

Portanto, consideramos os monstros como as principais metáforas. Nas séries que

compõem o corpus deste trabalho, a justificativa para a existência dos monstros é fundada

muitas vezes em ambivalências histórico-culturais e socioeconômicas que lhes serviram

como leitmotiv. Neste sentido, a obra de Yoshikuni Igarashi é uma referência fundamental

sobre os efeitos da 2ª Guerra Mundial no Japão, “(...) um país que estava em ‘uma posição

intermediária’, como um ‘espaço que dava passagem a uma série de coisas’, como uma

entidade limiar e fronteiriça, capaz de debilitar, insidiosamente, os efeitos das perdas

nacionais da Guerra do Pacífico na Ásia” (2011, p. 253-254).

Na afirmação acima, o próprio país comparece metaforicamente, na medida em que

é entendido como uma “posição intermediária”, “espaço de passagem” e “entidade limiar e

fronteiriça”. A pontuação que se faz acerca da guerra é bastante focada nos acontecimentos

e nas consequências da 2ª Guerra Mundial no e para o Japão, em especial com relação aos

problemas socioeconômicos do pós-guerra e aos efeitos das bombas nucleares jogadas em

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40

Hiroshima e Nagasaki. Essa construção conceitual fornece sólida base para a abordagem

das séries analisadas, pois as metáforas nelas desenvolvidas são metáforas dos problemas

evocados por Igarashi.

A configuração do Japão como limiar e fronteiriço rende ainda mais aproximações

com a questão da composição das metáforas no tokusatsu quando o autor diz que “esta

configuração cultural camuflava (...) a desagregação criada pela derrota na guerra”

(IGARASHI, 2011, p. 254). Se o Japão como lugar de passagem é entendido como

camuflagem de uma condição, é evidente que a metaforização emerge nesse contexto. A

metáfora, em sua estrutura, pode ser entendida como figura de linguagem que “camufla” o

significado mais imediato, na medida em que diz sobre seu objeto sem se referir

diretamente a ele.

Ao discorrer sobre autores japoneses do período pós-guerra, Igarashi cita Nobuo

Kojima e Kenzaburô Ôe, cujas obras constroem personagens em posições intermediárias,

em interação com personagens estadunidenses, instaurando seus corpos “como locais onde

o leitor poderia se debater com desejos contraditórios: o desejo de ocultar e o desejo de

manter vivas, as memórias do passado” (2011, p.254). Especificando ainda mais a relação

com as metáforas aqui analisadas, o autor diz que Ôe tentava “manter exposto o que (...) era

uma infeccionada ferida interna” (2011, p.254).

O processo de ocultar e de, concomitantemente, manter vivos os significados é

metafórico por excelência. É a metáfora que diz sem dizer, que oculta e mantém. Nas séries

analisadas, os problemas abordados não são diretamente atacados, mas, sim, trabalhados

através do ocultamento dos mesmos, operado nas narrativas via procedimentos metafóricos.

Esse não dizer é, justamente, o que diz. Nas séries estudadas os monstros são figuras

centrais do que é dito. Podemos considerar, assim, tanto o gênero tokusatsu, de forma geral,

quanto nosso corpus de pesquisa, profundamente metafóricos.

Nesse contexto, os monstros, como corpos que metaforicamente representam os

significados imanentes, são as próprias feridas internas infeccionadas. Nada mais

metafórico e nada mais evidente. A conformação polimórfica e as origens não naturais e/ou

não divinas dos monstros instauram-nos como uma espécie de enfermidade ou, ao menos,

como sintoma de uma enfermidade.

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41

Uma vez que Godzilla é resultado do horror atômico, que os monstros de Ultraman

e Spectreman relacionam-se com o problema da poluição, e que os monstros de Jaspion são

resultado também da poluição, associada a problemas relacionados ao desenvolvimento

tecnológico exacerbado, esses monstros podem ser tratados tanto como a enfermidade em si

quanto como sintomas.

Os personagens que combatem os monstros, por conseguinte, podem ser pensados

como portadores de algum poder de limpeza ou de cura. Eliminar a doença e seus sintomas

é uma prerrogativa da área médica, os profissionais dessa área são percebidos, em geral,

como pessoas boas e confiáveis exatamente por desempenharem essas funções.

Como se evidencia neste trabalho, no tokusatsu essa questão não é tão simples.

Mesmo podendo ser entendidos como doenças ou como sintomas dessas doenças, os

monstros do gênero não são simplesmente ruins. Muitas vezes, os monstros são vítimas dos

problemas que representam. Os problemas abordados metaforicamente pelas séries é que

geram as figuras monstruosas ou que as despertam ou que, de alguma maneira, contribuem

para que realizem ações consideradas más no contexto humano.

Portanto, os monstros, se podem ser considerados doenças e/ou sintomas, o são, na

maioria das vezes involuntariamente sem culpa. Assim, a “função de cura” dos personagens

que os combatem é posta em dúvida ética, e suas eliminações também representam dilemas

morais. Tais percepções reforçam nossa abordagem do tokusatsu como um gênero

complexo e polissêmico; reforçam também nossa percepção dos monstros como metáforas

presentes nas narrativas estudadas, à luz do conceito de metáfora como figura de linguagem

e à luz do desenvolvimento conceitual de Lakoff e Johnson.

As metáforas conforme desenvolvidas em cada uma das séries serão aqui tratadas

em breve. Porém, como essas metáforas são fruto do desenvolvimento nacional do Japão

que deve ser entendido como uma espécie de “causa geral”, é importante detalhar esse

contexto. Em especial, o exame de algumas questões que marcam o pós-guerra no Japão

devem ser esmiuçadas, pois os acontecimentos políticos desse período são profundamente

significantes e fomentadores de significados derivados e fundamentam um corpo de

imaginário muito específico, que traz à luz uma esfera potencial de narrativas dele

decorrente.

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42

Esse eixo narrativo potencial e geral é reiterado na concepção das narrativas e dos

personagens do gênero estudado. Acontecimentos como os esforços de guerra para prover

um corpo militar japonês, o horror atômico nas cidades de Hiroshima e Nagasaki e suas

consequências, além da rendição do imperador Hirohito aos EUA são alguns dos fatos que

merecem ser considerados.

A 2ª Guerra Mundial e os anos que se seguiram com a ocupação estadunidense

afetaram diretamente as produções culturais japonesas, de maneira ainda mais marcante as

produções para o cinema e para a televisão. No cinema, os acontecimentos desse período

passariam a ser manifestados de diversas maneiras. Todo um subgênero cinematográfico é

criado: os “filmes sobre a guerra”, como coloca Maria Roberta Novielli (2007), são

produções ambientadas no período da guerra e do pós-guerra, representando batalhas e

determinadas figuras militares. Uma tragédia japonesa (1946) de Fumio Kakei e Regresso

à pátria (1950) de Hideo Oba são alguns exemplos.

Outro subgênero, chamado “filmes de tese”, apresentava críticas diretas à

sociedade: Zona evacuada (1952) de Satsu Yamamamoto e o manifesto pacifista e

antiamericano de Tadashi Imai, A torre dos lírios (1953), são títulos bastante reconhecidos.

O impacto dos ataques nucleares em Hiroshima e Nagasaki foi tal que também gerou um

subgênero de filmes, nomeado Hibakusha Eiga, expressão que significa “filmes sobre

vítimas da radiação atômica”.

Mesmo que, como Novielli aponta, a cinematografia sobre os ataques em Hiroshima

e Nagasaki seja limitada, sua existência deve ser tomada como uma consequência artística

de um fato político. Desta maneira, a acepção de Lakoff e Johnson sobre as metáforas,

ligada à construção metafórica do pensamento e das ações, fica novamente evidenciada, se

entendermos os Hibakusha Eiga tanto como processos de pensamento como ações que

põem em movimento e em exposição tais pensamentos. A força desses filmes era tal que,

durante a ocupação estadunidense, a censura imposta pelos ocupantes recaía sobre a

representação da tragédia atômica, não permitindo qualquer referência explícita e direta às

explosões, a menos que tal representação contivesse uma conclamação de perdão aos EUA.

Decorrente do horror atômico e dos Hibakusha Eiga, ainda durante a década de

1950 surge um novo subgênero de filmes, o Kaiju Eiga ou “filmes de monstros gigantes”.

A obra pioneira e a maior representante é Godzilla (1954), do diretor Ishiro Honda e dos

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roteiristas Shigeru Kayama e Takeo Murata. O filme é considerado um importante

manifesto contra o horror atômico e, como evidenciamos, é parte primordial do corpus da

pesquisa e, portanto, será abordado adiante.

Yoshikuni Igarashi (2011) esclarece que, para sobreviver à derrota na 2ª Guerra

Mundial, o Japão se reinventou como uma nação pacífica e, assim, pôde acionar seu

ressurgimento e atingir um grau de desenvolvimento elevado, muitas vezes referido como

milagre econômico. Mesmo ao enfrentar um difícil processo de reconstrução e a

instauração de um Japão transformado e modernizado, a sombra da guerra ainda pairava

sobre a nação. As memórias das perdas humanas e do horror que as ocasionou continuava

muito presente. Meio século após o fim da 2ª Guerra Mundial, o anseio pelo esquecimento

da tragédia era de tal monta que o recurso da lembrança reinventada acaba perseverando.

Sabemos que não se pode falar em exatidão de registro histórico, uma vez que suas

fontes, em geral, não podem ser consideradas absolutamente inequívocas. A consulta a

textos, por exemplo, apresenta o problema da presumível imprecisão do registro, mediado

pela percepção de quem escreve. A pesquisa arqueológica traz a questão da interpretação

das evidências. O que se processou no Japão, todavia, não é algo dessa ordem, mas, sim, a

evidente imposição de uma determinada interpretação que é desviante da verdade,

imprimindo uma ideologia oficial e textos portadores dessa ideologia. Como consequência,

tal interpretação vai, progressivamente, construindo uma memória histórica japonesa

fomentadora de um espírito de ordem social positivista e de qualidades desejáveis à nação e

a seu povo.

Nesse sentido, é impossível não pensar no livro de George Orwell, 1984. Escrito em

1948, portanto, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, quando o Japão ainda se encontrava

sob interferência dos EUA, o romance configura um mundo com frequentes conflitos, no

qual a ideologia dominante se vale justamente das lembranças continuamente inventadas

enquanto recurso de manutenção da ordem social.

Na obra orwelliana, há todo um sistema de produção de registros oficiais, mídia e

entretenimento cuja mecânica tem a função de promover e instaurar tanto o esquecimento

das memórias que não convinham, quanto de propor e cristalizar novas memórias,

adequadas às mudanças de orientação promovidas pela ordem vigente. O sistema criado é

totalitarista e cruel, e parece mesmo ser inescapável fugir da máquina criada por ele.

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44

Não nos cabe, neste trabalho, fazer uma análise mais pormenorizada de 1984, mas é

importante referenciar o livro de Orwell, pois se trata de uma obra que apresenta ao leitor o

que é considerado por muitos o epíteto literário da invenção e da reinvenção ditatorial da

memória, um dos momentos máximos da consagração da alienação. Até hoje, a ideologia

oficial instaurada no período da reconstrução japonesa perdura como modelo máximo na

educação e no pensamento japoneses. É comum que opiniões em contrário, que postulam

ideias mais verídicas, sejam vistas como invenções ou, no mínimo, inverdades.

Assim, esse esforço por dar sentido e por suportar as perdas da guerra não pode ser

considerado apenas um trabalho semiótico de construção de linguagem, mas deve ser

entendido como construção de ideologia. Dentro deste contexto, podemos claramente

evocar a concepção de metáfora, segundo Lakoff e Johnson. As narrativas desenvolvidas

pelo Japão, se são narrativas oficiais de continuidade histórica, são também estratégias

oficiais de instauração e de manutenção de um direcionamento do imaginário nacional que

gera uma percepção favorável à ordem institucional do país, através da apresentação de um

cenário histórico fictício, que serve ao propósito de justificar as perdas da guerra e a

intervenção estadunidense.

Tal estratégia de mascaramento e ocultação da história real e da construção de uma

história oficial favorável é instrumento para a consolidação de uma nova identidade

japonesa, com a imposição de meios de superação para uma intolerável ruptura histórica.

Por meio das representações narrativas, as perdas da 2ª Guerra Mundial foram subvertidas

em um sacrifício indispensável em nome do progresso, legitimando-as como caminho para

a sociedade do pós-guerra.

A dinâmica entre esquecimento/ocultação e lembrança de um novo passado está

conectada a duas questões principais. A primeira diz respeito aos estadunidenses no

processo de reinvenção do Japão, e a segunda à construção discursiva do corpo.

Os EUA ocuparam o Japão de 1945 a 1952, implantando uma política específica

para tal situação. Em seguida, os dois países tornaram-se aliados, tendo em vista interesses

específicos dos Estados Unidos na Ásia, assim como acordos comerciais. Durante a Guerra

Fria, esta comunhão deu suporte aos EUA em suas investidas contra a Ásia comunista. Por

outro lado, o Japão foi capaz de alcançar seu milagre econômico através da abertura para o

mercado estadunidense e assistência material oferecida pelo ex-inimigo.

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45

Para Igarashi (2011) essa metamorfose obscura na relação entre Japão e EUA foi

responsável por uma crise na identidade nipônica. A aceitação da supremacia do ex-inimigo

era condição para a sobrevivência japonesa, mas, ao mesmo tempo, abalava o orgulho

nacional. É no contexto dessa incongruência que a necessidade de uma narrativa oficial,

que dê conta da mesma, surge e se instala.

A série de acontecimentos que culminaram na resolução do conflito entre EUA e

Japão, as investidas contra Hiroshima e Nagasaki e a “decisão divina” do imperador em

encerrar a guerra, proveram as bases sobre as quais a liderança japonesa do período da

guerra pôde instituir uma narrativa com potencial para dissolver a tensão resultante do

processo de admissão da derrota japonesa. Essa derrota seria fantasiada de necessidade

estratégica e apreço pelo bem de toda a humanidade através da narrativa construída,

corroborada pela liderança estadunidense por meio do suporte ao imperador. Igarashi

complementa apontando que:

No remapeamento ideológico do período imediato do pós-guerra, qualquer história entre Japão e EUA que fosse incongruente com a necessidade política da Guerra Fria, era logo reprimida tanto nos EUA quanto no Japão. Para ambos os países, o adversário de ontem virou o amigo de hoje. A demonstração de poder sem precedentes dos armamentos atômicos detonados em Hiroshima e Nagasaki forneceu o ímpeto para a reconfiguração das memórias coletivas dos EUA e do Japão. (IGARASHI, 2011, p. 59).

A segunda questão abordada no processo de esquecimento/ocultação da história e

lembrança/construção de um passado transformado/idealizado é ligado ao controle do

corpo. Antes de 1945, o corpo humano e sua construção já eram pontos centrais do discurso

nacionalista, uma vez que a proposta política Kokutai pensava o corpo de maneira

idealizada, tendo como paradigma o corpo do imperador.

Tal orientação remete diretamente a concepções divinatórias, ligadas à imitação da

imagem dos deuses na criação da humanidade, ponto nevrálgico de várias religiões,

expresso de maneira inequívoca na concepção cristã de que “Deus criou o homem à sua

imagem e semelhança”.

Igarashi esclarece que a configuração dos corpos é concomitante às

(re)configurações ideológicas do Japão, o que ressalta a construção do país como uma

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entidade/unidade orgânica. Tal conformação obedece a “representações metafóricas da

entidade política através das imagens corporais” (IGARASHI, 2011, p. 75). Dada essa

concepção, mais uma vez podemos evocar Lakoff e Johnson no que diz respeito à

percepção do papel das metáforas, uma vez que os efeitos da metaforização política,

quando estabelecidos e consumados, tornam-se padrões de pensamento e de ação no

modelo desenvolvido pelos autores.

A metamorfose na relação entre Japão e EUA, consequência do empenho de ambos

os países em criar uma atmosfera de conformismo relativo ao horror atômico, foi elemento

que conceberia a narrativa fundadora da cultura do pós-guerra. Se de um lado há uma ótica

antagônica entre as duas nações frente aos acontecimentos relativos ao fim da guerra,

devido à assimetria criada pelo ataque nuclear estadunidense, por outro lado, parte da

sociedade dos EUA e do Japão tomaria como verdade as representações populistas dos

acontecimentos históricos que seriam, em seguida, incorporadas pela narrativa cultivada

pelos dois países.

Para reforçar a empatia entre EUA e Japão, a solução metafórica encontrada foi a

sexualização. Uma vez que uma relação sexual pressupõe, em princípio, desejo e aceitação,

o insuflar desses pressupostos na relação diplomática e cotidiana entre os dois países fez

ecoar metaforicamente o desejo pela “parceria” e aceitação mútua, que se tornariam a base

dessa relação.

Para Igarashi (2011), após a falência do regime de sujeição pré-1945, os corpos que

permaneceram entre as ruínas das cidades foram celebrados como signo da nova vida no

Japão. Para muitos sobreviventes, nada mais restava de material em meio ao cenário de

devastação das cidades atacadas, além dos corpos das vítimas do bombardeio e de seus

próprios corpos.

O imperador Hirohito passa a cruzar o país visitando esses cenários de destruição.

Desse modo, conduz seu corpo até então inatingível e inalcançável para espaços públicos

ao alcance de seus súditos. Em meio aos destroços e à degradação das cidades, sua figura

divinizada configurava-se em signo paradigmático do que poderiam se tornar os corpos

japoneses no período contíguo ao pós-guerra. Igarashi segue complementando que:

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Aos olhos de muitos japoneses, a figura do imperador foi humanizada e liberada dos constrangimentos do regime pré-1945, assim como seus próprios corpos no período pós-guerra. (...) O regime de guerra os submeteu a regulamentos rígidos, em uma tentativa de criar corpos obedientes e patrióticos (...). (IGARASHI, 2011, p. 122-123).

Quando cessa a ocupação dos EUA no Japão, as memórias de guerra ganham

visibilidade na mídia japonesa, livres da censura imposta pelo país ocupante. Assim, pouco

a pouco, essas memórias vão assomando e se instalando, tornando-se cada vez mais

presentes no imaginário coletivo japonês.

Nesse contexto, os corpos que sofreram deformações por conta dos efeitos da

guerra, e em especial por causa da radiação, passam a ganhar cada vez mais destaque e a

serem, assim, percebidos como presentes. Um bombardeio atômico como o que ocorreu em

Hiroshima e Nagasaki causa uma devastação imediata brutal, mas seus efeitos a longo

prazo também devem ser considerados.

Deformidades, doenças, enfraquecimento, problemas genéticos e uma série de

outras adversidades são o legado de um bombardeio atômico, além de sua devastação

primária. Em uma espécie de ressonância invertida à exposição do corpo sagrado do

imperador, os corpos dos sobreviventes da guerra passam a ser vistos, servindo também

como suporte para o regresso do nacionalismo nipônico.

Os acontecimentos que se seguiram à guerra, a tensão entre Japão e EUA e o

desenvolvimento da narrativa fundadora, fundamentaram a concepção de inúmeras

produções culturais do pós-guerra. No cinema, uma obra torna-se responsável por marcar o

início de uma das vertentes mais emblemáticas e populares do cinema japonês em todo o

mundo, o Kaiju Eiga, filmes de monstros, e consequentemente do gênero tokusatsu – o

filme Godzilla (1954).

Em 1946, o diretor Ishiro Honda visita a cidade de Hiroshima. A visão da cidade

ainda devastada pela bomba atômica, lançada pelos EUA em 06 de agosto de 1945,

desperta no diretor o desejo de expressar a visão do horror atômico em uma produção

cinematográfica. Sua visão passaria a tomar formas monstruosas a partir do conceito do

produtor Tomoyouki Tanaka e do mestre dos efeitos especiais Eiji Tsuburaya, que

idealizam um protótipo de monstro com a ideia de usá-lo futuramente em um filme.

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Na década de 1950, falar sobre a destruição de Hiroshima e Nagasaki pelas bombas

atômicas ainda era tabu no Japão, resultado da censura em relação aos armamentos

atômicos e seus efeitos, imposta ao país pelos americanos (NOVIELLI, 2007). Segundo

Yoshikuni Igarashi (2011), nesse período as memórias da guerra distanciavam-se das

imagens de destruição e perdiam suas referências particulares. De acordo com o autor,

essas memórias “foram se transformando em forças destrutivas sem forma” (2011, p. 276).

Foi através da figura monstruosa de Gojira, conhecido internacionalmente como Godzilla,

que Ishiro Honda representou as “memórias das perdas da guerra” num período no qual as

marcas dessas perdas estavam desaparecendo.

O longa metragem lançado em 1954 é considerado uma importante manifestação

contra os testes nucleares e explosões atômicas estadunidenses (NOVIELLI, 2007). A

produção da Toho apresentava como resultado das experiências termonucleares, o primeiro

monstro gigante do cinema japonês, elemento que seria amplamente usado pelos filmes e

seriados do gênero, tornando-se um dos principais ícones do tokusatsu. A mistura de gorila

(gorira) e baleia (kujira) que dá nome à criatura, no original Gojira, é despertada pelos

testes nucleares americanos na Ilha de Bikini. O monstro chega ao Japão deixando um

rastro de destruição por onde passa, e é finalmente eliminado pela criação do Dr. Serizawa,

o Oxigênio Contratorpedeiro.

Figura 20. A fotografia soturna de Godzilla original de 1954.

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49

Igarashi (2011) propõe que a aparência monstruosa de Godzilla está marcada por

memórias de guerra. Algumas representações ficam evidentes, entretanto, outras são menos

perceptíveis ou até incompreensíveis para o público. Mesmo os EUA estando por trás da

destruição inicial, seu nome é dissolvido na narrativa do filme, assim como na narrativa

fundadora. Apesar de estarem presentes de maneira intensa na tela, as memórias da perda

continuam inomináveis. Godzilla representa de forma alusiva a participação dos EUA em

vários momentos do filme, porém não explicitamente.

Em 1954, despertado do sono eterno por testes nucleares americanos no Atol de Biquíni, Godzilla ataca Tóquio. Na vida real, tais testes nucleares e o incidente Lucky Dragon serviram de inspiração para o roteiro do filme. Em março de 1954, um navio pesqueiro de atum, o Daigo Fukuryumaru (Lucky Dragon V), foi apanhado pela chuva de partículas radioativas de um dos testes, e todos os 23 tripulantes foram expostos a radiação. Notícias sobre o Lucky Dragon romperam o longo silêncio sobre o estado de guerra nuclear no Japão, um silêncio que foi imposto ao Japão ocupado pelas restrições de censura americana. Godzilla alude, veladamente, ao envolvimento dos EUA fazendo menções sobre o Lucky Dragon em sua sequência de abertura. (IGARASHI, 2000, p. 278).

Igarashi destaca ainda que menções diretas aos EUA que deveriam ser explícitas

estão notavelmente ausentes. Não há nem mesmo uma insinuação da responsabilidade

estadunidense na subsequente destruição de Tóquio pelo monstro. O produtor do filme,

Tomoyuki Tanaka, via Godzilla como:

(...) uma alegoria para o novo poder de destruição que ameaçava a humanidade, afastando sua origem geopolítica específica. Frustrado pela omissão de responsabilidade americana no filme, um dos roteiristas insistiu depois que Godzilla deveria cruzar o oceano Pacífico e atacar as cidades americanas, já que os EUA eram responsáveis pelos testes nucleares, e, por conseguinte, pelo retorno do monstro. (IGARASHI, 2011, p. 279-280).

Prosseguindo em sua análise, Igarashi pontua que Godzilla devasta Tóquio e é

destruído na cidade pelos próprios japoneses sem qualquer envolvimento dos EUA ou outro

país. O crítico literário Tokayaki Kobayashi destaca a “exclusão das forças americanas do

filme nas cenas de batalha contra o monstro” (IGARASHI, 2011, P. 280). Mesmo com

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50

mais de 210 mil militares estadunidenses ainda instalados no Japão na época, mais do que o

contingente japonês possuía no filme, apenas as forças de defesa e as forças marítimas

especiais japonesas investem contra Godzilla. A sequência faz sentido se as ameaças

nucleares dos EUA estavam realmente representadas no corpo do monstro.

Logo após a devastação nuclear de Hiroshima e Nagasaki iniciou-se o processo de

redenção do Japão. Depois de todo o impasse sobre a decisão dos termos de rendição, o

Imperador Hirohito, até então monarca apolítico, apresenta suas condições. Ele aceitaria

imediatamente a proposta da Declaração de Potsdam desde que o poder imperial fosse

conservado.

A figura dos monstros gigantes passaria a povoar o universo das produções do

gênero tokusatsu, a partir de então. Muitas séries apresentavam novos monstros a cada

episódio, e em muitos casos eles tornavam-se tão populares quanto os próprios

protagonistas.

Em Ultraman, os monstros, presentes em toda a série, eram figuras centrais e mais

uma vez tinham a função de representar de forma metafórica questões políticas. Mesmo o

corpo gigantesco de Ultraman carrega uma ambivalência. Se por um lado o personagem

representa a salvação da Terra, o agente indispensável para a existência da humanidade, por

outro, é um dispositivo de coibição, encarregado de eliminar qualquer manifestação

resultante do progresso descontrolado e agressivo ao meio ambiente, materializado através

dos monstros.

De acordo com Cristiane Sato (2007) é importante evidenciar que, apesar das lutas

entre Ultraman e os monstros serem um dos principais atrativos da série – influenciadas

pela pururesu (luta livre), muito popular na TV japonesa da época – a série Ultraman foi

criada com uma “preocupação ecológica”.

Em 1950 inicia-se a Guerra da Coreia, conflito entre a Coreia do Sul e a Coreia do

Norte, que durou até 1953. Nesses anos, a intervenção militar dos EUA sobre o Japão

perdurava. As tropas estadunidenses, aproveitando a posição geográfica do Japão,

estratégica em relação a ambos os países, passaram também a intervir na Guerra da Coreia,

em favor da Coreia do Sul. Em razão disso, as necessidades de produção bélica

aumentaram consideravelmente a demanda por material de base. Oswaldo Peralva explica

como isso afetou o desenvolvimento industrial do Japão:

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51

Cada vez mais envolvidos nesse conflito, as tropas norte americanas precisavam de uma fonte de abastecimento de material – desde vestimentas até munições e outros objetos de natureza bélica, que encomendavam às fábricas japonesas. A fim de melhorar a qualidade dos produtos, os americanos fizeram vir dos EUA um especialista em controle de qualidade. E os japoneses procurando pôr em prática o ditado de que o bom aluno é aquele que supera o mestre, ampliaram essa técnica para o Controle Total de Qualidade (CTQ), que se fazia desde a matéria-prima até o produto final. O surto de prosperidade, nesse período, foi notável. (PERALVA, 1995, p. 63).

Peralva ressalta ainda que na metade da década de 1950, os cidadãos japoneses

ainda não haviam recuperado o nível de vida do pré-guerra, mas já havia indícios de uma

estabilização. Em 1951 o comércio exterior aumentou seu valor em 34%; a produção teve

um crescimento de 70% entre 1949 e 1951 e as exportações cresceram 2,7 vezes. Deste

modo, os lucros das empresas e o número de empregos teve um crescimento incrível.

Um dos fatores que alavancou a economia japonesa desse período foi a entrada de

divisas, proveniente das aquisições e gastos com as tropas dos EUA e suas encomendas.

Essas divisas atingiram 590 milhões de dólares em 1951, mais de 800 milhões em 1952 e a mesma soma em 1953. Assim, o Japão pôde gastar 2 bilhões de dólares por ano com importações de matérias-primas, o que duplicou a capacidade produtiva da indústria. O Gabinete de Shigueru Yoshida (1948-1954) foi responsável por esse desenvolvimento. Críticas apareceram ao mesmo tempo contra uma total dependência ante os EUA. (PERALVA, 1995, p. 63).

Em 1954 teve início um movimento nacional de protesto, devido ao incidente com o

tripulante de um barco de pesca que faleceu em consequência de uma leucemia contraída

devido aos efeitos de uma bomba de hidrogênio lançada em um teste no atol de Bikini. Os

japoneses passaram a exigir a proibição desses testes e a criticar a política militar do

governo japonês. Em 1955 foi declarado por Hotoyama, que sucedeu Yoshida como

primeiro ministro, o término do estado de guerra entre Japão e União Soviética. No ano

seguinte o Japão, que vinha participando do Fundo Monetário Internacional de 1952,

passou a integrar as Nações Unidas.

Segundo Peralva (1995), todos esses acontecimentos estavam intimamente ligados

com o novo direcionamento da política externa japonesa, voltada para a economia, que

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52

trabalhava com a exportação de produtos resultantes da transformação de matéria-prima

importada. O autor aponta que em torno de 1954 a economia nipônica sairia do período de

recuperação para entrar em sua fase de expansão. No que se seguiu, o orçamento total do

Japão ultrapassou os cinco trilhões de ienes. O crescimento da indústria de construção naval

alcançou o primeiro lugar no mundo.

Ainda em 1955 iniciou-se a chamada “prosperidade Jimmu”, uma referência ao

primeiro imperador japonês, considerada a fase inicial da prosperidade do pós-guerra. Em

1959 passou a se chamar Iwato, o que significava a maior prosperidade alcançada desde

tempos mitológicos. Já nas décadas de 1960 o consumo e o lazer continuaram avançando.

Em 1970 o Japão alcançou o segundo lugar no bloco não comunista, ao atingir a marca de

59,2 trilhões de ienes em seu Produto Nacional Bruto (PNB)

Enquanto as indústrias tradicionais, como as têxteis e de aço, alcançavam altos níveis de produção, havia crescimento ainda mais espetacular em novos campos industriais, como a construção naval, a eletrônica e os equipamentos fotográficos. Na década de 60 o Japão ultrapassou os suíços na produção de relógios, os alemães nos aparelhos fotográficos, os americanos e os europeus em outros produtos eletrônicos, com o trem bala (Shinkansen). (PERALVA, 1995, p. 64).

Segundo a ERCA (Environmental Restoration and Conservation Agency), as

políticas ambientais foram minimizadas pelas empresas do governo durante este período de

acelerado desenvolvimento industrial. Deste modo, uma considerável poluição ambiental

ocorreu nos anos 1950 e 1960 no Japão. Entretanto, medidas de proteção ambiental

passaram a ser tomadas apenas na década de 1970.

O Japão, a partir da década de 1960, infringiria ao seu meio ambiente graves danos

devido ao progresso e ao crescimento econômico nunca testemunhados no país com

tamanha intensidade e velocidade. Os recursos naturais eram consumidos de maneira

desenfreada e a indústria aumentava a emissão de resíduos no ambiente. Fábricas e

conjuntos residenciais tomavam o lugar das áreas verdes. A prioridade para a população e

para o governo era o rápido progresso econômico. Por essa razão, mesmo com todo o

processo de degradação ambiental ocorrendo em níveis alarmantes, o assunto tinha pouco

espaço na mídia, que não via as questões ecológicas com bons olhos, já que a palavra de

ordem era “progresso”.

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53

Mais uma vez, assim como em Godzilla, os monstros parecem cumprir a missão de

corporificar questões que de alguma maneira foram veladas, desmaterializadas e

ressignificadas. Discussões que transgrediam a ordem nacional encontravam seu caminho e

ganhavam espaço na mídia através da manifestação do grotesco e do nonsense.

O diretor de Ultraman, Akio Jisoji, falou à imprensa acerca de sua interpretação

sobre os monstros da série. Para ele, eram “símbolos da natureza”, vítimas da ganância

humana e passíveis de compaixão que muitas vezes apenas reagiam aos efeitos negativos

do progresso humano e tornavam-se tão destrutivos devido ao tamanho descomunal. Sato

(2007) aponta alguns episódios interessantes da série que ilustram bem essa ideia: a fúria do

monstro Jamila decorre de seu choque com um satélite terrestre; o monstro Pestar se

descontrola após engolir petróleo e a reação errática do monstro Jiras ocorre após a ingestão

de iscas de peixe suspeitas.

O episódio de Ultraman com o monstro Jamila chama-se “Terra natal”. Nele, aviões

e navios que transportavam representantes de diversos países para uma conferência de paz

no Japão são misteriosamente destruídos. Um enviado da França, que integra a Patrulha

Científica, revela que os aviões haviam sido destruídos como se sofressem um impacto

contra uma parede invisível. Mais tarde, a Patrulha consegue atingir uma nave hostil, e

quando é destruída releva o monstro Jamila, que foge.

Depois disso, o enviado da França revela que, na verdade, Jamila é um humano, um

astronauta dos tempos da corrida espacial deixado para trás, “sacrificado pelo bem da

ciência”, que acabou chegando a um planeta sem água e comida, onde sofreu uma

transformação. É dito que Jamila havia retornado à Terra em busca de vingança. O quartel

general de Paris ordena que a história de Jamila seja mantida em segredo e deveria ser dado

ao astronauta/monstro um enterro decente, o único modo de levar adiante a conferência de

paz. Esta sequência é soturna, a revelação é feita enquanto apenas suas silhuetas

apresentam-se na tela, escondendo as faces e suas expressões.

Quando o monstro é atacado com fogo, seus gritos não são de raiva, o que

normalmente se espera desse tipo de personagem, mas de sofrimento e

lamento. Jamila revida, atacando uma aldeia, usando fogo também. Ide, cientista da

Patrulha, clama para que Jamila cesse o ataque, pois os habitantes da aldeia não eram

culpados do que acontecera com ele. A sequência seguinte mostra, ao som de um tema

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musical melancólico, um close no rosto do monstro contemplando a destruição que causara

na aldeia.

O exército, após falhar no ataque com fogo, usa uma arma baseada em água, que

parece surtir efeito contra o monstro. Finalmente Ultraman entra em cena e inicia sua luta

contra Jamila, tendo como cenário o prédio da Conferência de Paz, com as bandeiras de

diversos países hasteadas em sua fachada. Em determinado momento, destaca-se o monstro

pisoteando as bandeiras.

Figura 21. Jamila – o ataque contra as bandeiras.

Ultraman continua usando o recurso da água para atacar Jamila, que agoniza com

gritos de sofrimento. O monstro debate-se no chão lamacento e arremessa barro que, aos

poucos, encobre as bandeiras do Japão e de outros países. Jamila morre enquanto tenta, sem

sucesso, alcançar uma bandeira estadunidense que aparece em detalhe com o mastro

quebrado, mas intacta.

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Figura 22. Jamila enterra as bandeiras sob a lama.

O monstro recebe um funeral cristão. Em sua lápide é impressa uma inscrição em

francês: “À Jamila - Ici dort ce guerrier qui s'est sacrifié en quete d'idéal pour l'humanité

ainsi que pour le progress scientifique”. Em português: “Para Jamila - Aqui dorme o

guerreiro que se sacrificou em busca do ideal para a humanidade e para o progresso

científico” (tradução nossa).

Todavia, mesmo com a presença e com os problemas trazidos pelas intervenções de

Jamila, é importante notar que o mal causado foi suficiente apenas para que a verdade

viesse à tona, mas não para que a história fosse revelada ao grande público. Nesse sentido,

é emblemático lembrar que as primeiras aparições do monstro não são realmente aparições,

uma vez que o monstro “aparece” como uma parede invisível contra a qual se chocam

aviões e navios.

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Ainda podemos pensar que Jamila, cujo nome em árabe significa “beleza plena”,

consegue essas parcas revelações apenas quando assume seu aspecto monstruoso mais

notável, mostrando-se fisicamente. O monstro apenas consegue revelar algo quando

abandona, em definitivo, a fisicalidade humana. O segredo do astronauta deixado para trás

vem à tona graças aos sintomas da monstruosidade e da aberração. Mas, por mais que a

figura do monstro apresente-se como sintoma de uma verdade encoberta, como sinal que

obriga os olhares a se voltarem para uma verdade antes invisível, essa verdade é apenas

revelada para um comitê selecionado que decide ocultá-la.

A homenagem feita ao astronauta/monstro pela inscrição em sua lápide figura muito

mais como um instrumento do encobrimento da verdade do que como uma real reparação.

A menção a um “dormir” (“Aqui dorme o guerreiro”) já representa uma suavização de sua

morte. A elevação do astronauta a “guerreiro” e a menção de sacrifício “em busca do ideal

para a humanidade e para o progresso científico” desvia a atenção do abandono e instaura

uma atmosfera enganosa de sacrifício heroico voluntário.

Outra metáfora presente no episódio encaixa-se na contestação da devastação

ecológica, contexto típico da série. Quando do ataque de Jamila à aldeia, enquanto os

aldeões fogem, um garotinho retorna para salvar algumas pombas presas em uma gaiola.

De cócoras, a criança segura uma das pombas com as duas mãos. A imagem é clara e não

deixa dúvidas: a frágil paz é protegida pelas mãos de uma criança.

O tabu das questões ecológicas na mídia do Japão seria rompido em 1968 pelo caso

conhecido mundialmente como Doença de Minamata. Uma das maiores indústrias do

Japão, a produtora de fertilizantes e compostos químicos Chisso Fertilizer Co. Ltd.

despejou durante mais de 30 anos nas águas da baía de Minamata cerca de 500 toneladas de

metilmercúrio, contaminando pessoas e animais da região, que se alimentavam dos peixes

também contaminados. As consequências foram desastrosas para a população: perda de

visão e audição, deformidades, espasmos e até morte. Ainda não se sabe o número de

mortos e contaminados pelo metilmercúrio no Japão. O assunto continua aparecendo na

imprensa devido a novos casos de pessoas na baía de Minamata e em outras regiões do

país.

O episódio descrito é carregado de metáforas poderosas. Assim como em Minamata,

em nome do progresso a verdade foi velada. Apenas quando os corpos foram

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transformados, somente quando o corpo do astronauta transformado em corpo de monstro

revela-se e se faz incontornavelmente presente, é que os sintomas não puderam mais ser

encobertos.

Figura 23. Corpos deformados das vítimas de Minamata.

Outras produtoras passaram a lançar suas próprias versões de heróis e monstros

gigantes, como Spectreman, da produtora japonesa P-Productions, responsável também por

produzir a série Lion Maru. O seriado idealizado por Tomio Sagisu, que usava o

pseudônimo de Souji Ushio, foi exibido entre 1971 e 1972 pela TV Asashi, contou com 63

episódios e narrava a luta do androide Spectreman contra os simioides Dr. Gori, e Karas,

seu ajudante. No Brasil foi exibido na década de 1970 pela TV Record e reprisado em 1980

pela TVS (atual SBT). Assim como Ultraman, o seriado apresentava também uma

mensagem de cunho ecológico, alertando sobre os danos causados pela poluição. Os

episódios sempre apresentavam em seu início a seguinte narração:

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Planeta: Terra. Cidade: Tóquio. Como em todas as metrópoles deste planeta, Tóquio se acha hoje em desvantagem em sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição. E apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar um dia em que a terra, o ar e as águas venham a se tornar letais para toda e qualquer forma de vida. Quem poderá intervir? Spectreman!

Spectreman enfrentava a cada episódio monstros criados por seu antagonista Dr.

Gori, o qual usava como matéria-prima para suas criações o lixo produzido pelo homem. O

seriado apresentava efeitos especiais com baixo nível de refinamento técnico, sendo,

inclusive, perceptível o uso do material utilizado para a produção das maquetes. Por

exemplo, durante as cenas de batalha, era possível notar as placas de isopor quando

quebradas. Mesmo assim, Spectreman foi sucesso entre o público, com grande audiência no

Japão, sendo responsável pela segunda kaijyu-boom – picos de popularidade dos seriados

de monstros e heróis gigantes.

É possível observar certa dualidade que permeia a trama, pois Dr. Gori defende o

seu objetivo de dizimar a raça humana, uma vez que ela está destruindo o planeta em nome

do progresso. Além disso, o vilão reaproveita a poluição produzida e o material despejado

pelos humanos na criação de seus monstros.

Os monstros sempre aparecem no tokusatsu e em especial nas séries analisadas

ligados à questão da metamorfose, tendo seus corpos modificados por agentes externos (em

geral, os antagonistas) para que os objetivos desses agentes sejam alcançados. Conceito

amplamente discutido pelo filósofo francês Michel Foucault, o poder disciplinar, a

manipulação dos corpos, atribuindo-lhes certa utilidade, “Uma técnica que é, pois,

disciplinar; é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como

foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 1999, p.

297).

No contexto japonês, podemos perceber de maneira clara o uso do poder disciplinar

no discurso nacionalista anterior a 1945:

Os corpos japoneses estavam no coração do discurso nacionalista anterior a 1945. O regime de guerra os submeteu a regulamentos rígidos, em uma tentativa de criar corpos obedientes e patrióticos forjando laços entre a ideologia nacionalista e as funções do corpo. Todas as funções dos corpos das pessoas deveriam se dedicar aos esforços da nação em

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guerra (fossem esforços de natureza ideológica, biológica ou econômica). (IGARASHI, 2011, p. 123).

Nas produções do gênero tokusatsu estas práticas discursivas são muito claras.

Assim como Godzilla, Spectreman invocaria as memórias da 2ª Guerra Mundial

materializadas não só na figura de monstros, mas também na dos super-heróis. Em suas

séries, as práticas discursivas de poder também são evidentes. No primeiro episódio,

Transformação, o herói que defende a Terra das investidas de Dr. Gori, na verdade, serve a

um grupo chamado Dominantes, responsável pela metamorfose do protagonista, que só

passa a adotar sua forma heroica sob as ordens de seus mestres. Já neste episódio,

Spectreman é alertado pelos Dominantes de que ninguém deve presenciar sua

transformação, pois assim se tornaria inútil aos propósitos de seus mestres e seria, então,

destruído.

No episódio Monstro bicéfalo uma família que vive em uma aldeia é amedrontada

por um monstro que não aparece. A Divisão de Pesquisa e Controle de Poluição dirige-se

para um reservatório, mas parte da equipe perde-se no caminho. O restante da equipe segue

com Kenji, mas o pneu do carro é furado em uma ponte por uma ponta de foice quebrada.

Eles chegam até a casa da família e percebem que não há ninguém na casa e as ferramentas

estão partidas. Eles ouvem um grito ao longe. Um cachorro se aproxima carregando um

braço humano na boca. Eles seguem o grito e chegam a uma casa, onde uma mulher

agoniza e morre na frente deles. Suas costas estão banhadas de sangue. O marido corre

gritando, disparando uma arma descontroladamente. O homem prossegue como se

procurasse algo. Kenji vê o monstro.

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Figura 24. O Monstro Bicéfalo – alerta e violência nos episódio de Ultraman.

Dr. Gori prepara seu plano de cobrir a aldeia com nuvens para produzir uma

tempestade elétrica e arrasar a região. Kenji tenta alertar o restante da equipe que havia se

perdido, mas o rádio perde o sinal. A chuva inicia, seguida da tempestade elétrica. A ponte

que dá acesso à aldeia é destruída. O homem armado aparece atirando novamente, sendo

seu alvo uma espécie de rato gigante alado com duas cabeças – o monstro. O monstro

apanha o homem e parte seu corpo em dois.

Kenji retorna com seus companheiros para a aldeia. Eles encontram um garoto, que

desmaia logo após o encontro. O monstro se aproxima e ataca a casa onde estão. Eles

fogem da casa e se escondem em uma vala no chão. Nesse momento, percebem que o

garoto arde em febre.

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Kenji precisa se afastar dos outros para poder contatar os Dominantes e se

transformar em Spectreman. Seu amigo diz que vai correr para que o monstro se distraia,

permitindo aos amigos que escapem. Kenji se oferece para ir em seu lugar, os dois

discutem e Kenji golpeia o rosto do amigo, que desmaia. Ele chega até o carro e procura

algum lugar onde haja uma brecha entre as nuvens para poder contatar os Dominantes, e

consegue. Os Dominantes ordenam a destruição do monstro, antes que ele dissemine

doenças.

Kenji se transforma e parte para a luta contra o monstro. Spectreman decapita o

monstro e vence a luta. Entretanto, depois da luta o herói desmaia. Ao acordar está em sua

forma humana e percebe que o monstro voltou à vida com duas novas cabeças, que

brotaram de seu corpo. O monstro lança um raio sobre uma árvore, que cai sobre Kenji.

Dr. Gori explica que os seres humanos dominam os animais inferiores, mas que os

ratos, sendo mais astutos, usam o lixo da civilização humana e por isso merecem respeito.

Este foi o princípio que Dr. Gori utilizou para criar o monstro: um rato de duas cabeças,

transmutado e tornado mais forte pela poluição. Dr. Gori percebe que o garoto está doente e

conclui que é devido ao contato com o monstro.

Kenji, soterrado, é resgatado pelos Dominantes. As duas equipes da Divisão de

Pesquisa e Controle de Poluição voltam a se encontrar e partem para casa. O garoto começa

a delirar. Os Dominantes contatam Spectreman e ordenam que se prepare para a

transformação, a fim de enfrentar o monstro que se aproxima. Seus amigos tentam impedir

que ele saia do carro. Kenji é alertado que seus outros amigos correm perigo.

Um policial ferido, resgatado pela equipe de Kenji, é atacado pelo monstro, que

apanha seu corpo em chamas. Karas, por ordem de Dr. Gori, invade um trem e mata o

maquinista. Karas, assumindo o controle do trem, segue para Tóquio, guiando o monstro

para um ataque à capital.

O garoto é hospitalizado e todos se preocupam com o choque que recebeu ao saber

que se tornou órfão. Kenji, também no hospital, é amarrado, pois desconfiam que está tendo

delírios. Os Dominantes convocam Kenji, mas como está preso não pode se transformar.

Então, ele pede que o garoto o desamarre. Mesmo fraco, Spectreman parte para mais uma

batalha contra o monstro.

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O herói é golpeado e cai nos trilhos. Fraco, tem seu tamanho reduzido. Karas

aproxima-se do trem. O herói não consegue se levantar, mas no último instante rola para

fora do caminho do trem. Caças aparecem e começam a bombardear o trem e o monstro,

que destrói todos os aviões. Spectreman, parcialmente recuperado, investe contra o

monstro. Falha novamente, cai, o monstro o ataca e Spectreman o decapita mais uma vez.

As cabeças desprendidas do corpo do monstro atacam o herói. O corpo sem cabeça

caminha em direção a Spectreman, que não consegue reagir. O herói reúne suas últimas

forças e destrói o monstro, atingindo-o com uma carreta de caminhão-tanque que transporta

gasolina.

Como se pode notar pelas descrições acima, a violência do episódio é grande e

marcante. Tal nível de violência, nos parece improvável estar presente em uma série de

tokusatsu hoje, devido à construção do gênero ao longo dos anos como produto de menor

ordem artística e maior infantilização.

A infestação de ratos pode ser pensada como uma metáfora do crescimento

desenfreado das cidades. Nesse sentido, o fato do monstro ser um grande rato com duas

cabeças é emblemático. Além de colocar a figura animal em cena, constrói-se essa figura

associada a uma deformidade que pode, inclusive, ser fruto de desordens ecológicas

causadas pela poluição, tema constante da série Spectreman.

Aliás, as duas cabeças do monstro podem ter alguma conexão com a própria

dualidade do Dr. Gori que declara, ao mesmo tempo, o desejo de salvar a Terra e o de

destruir os seres humanos. Concomitantemente, as ações de Spectreman, que impedem a

ação do Dr. Gori, impedem também que a degradação da Terra seja evitada. Assim,

Spectreman porta, por sua vez, uma dualidade em suas ações.

A presença do menino órfão que tem que superar sua situação para, de certa forma,

tornar-se herói ao desamarrar Spectreman, lembra a questão dos órfãos da 2ª Guerra

Mundial, questão cara para o gênero tokusatsu.

O fato das pessoas que tiveram contato com o monstro sejam por ele afetadas e

fiquem doentes, fracas, descontroladas e alucinadas também é emblemática no que se refere

ao problema causado pela poluição. As cabeças do monstro que voltam a crescer quando

cortadas é clara referência à Hidra de Lerna, ser mitológico de várias cabeças que, se

cortadas, regeneram em duas outras, representando os vícios humanos e a busca insaciável

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pelo prazer. Tal figura pode ser pensada, por associação, como uma metáfora da busca

desenfreada dos humanos pelo progresso e pelo conforto, mesmo que para tanto o preço

seja a destruição do planeta.

O episódio O exílio de Spectreman é dividido em duas partes. Na primeira, Dr. Gori

rapta um gorila de um zoológico e a partir dele desenvolve um novo soldado, K. Depois

disso, Dr. Gori envia Karas para a Terra para coletar substâncias poluentes. Este força um

policial a tomar um líquido, levando-o a uma morte angustiante. A notícia nos jornais

retrata uma morte por queimadura, causada por substâncias químicas e poluentes. Os

Dominantes aparecem para Spectreman para avisá-lo sobre uma base subterrânea que Dr.

Gori está instalando na Terra. Fazem a solicitação para que o herói verifique o solo do

local, a fim de constatar o nível de radioatividade, possibilitando a localização exata da

instalação.

Spectreman envia as amostras do solo para os Dominantes. Dr. Gori transforma

Karas em um gigante que passa a aterrorizar a cidade, em clara referência ao filme King

Kong. O monstro passa a enfrentar a polícia e a aeronáutica. A destruição chama a atenção

de Spectreman e uma luta entre os dois é travada. O herói leva desvantagem, mas é

auxiliado pelos caças japoneses, vencendo a luta.

Paralelamente a isso, K. sequestra uma família. Dr. Gori coloca a família em

câmaras, envenenando-a com poluentes criados pelos próprios homens. O vilão explica que

quando a família retornar à Terra vai parecer normal, mas o contato de outras pessoas com

membros da família poderá levar à morte instantânea. O contágio eliminaria todas os

habitantes da Terra e levaria Dr. Gori a alcançar seus objetivos. Kenji investiga e acaba

presenciando a morte de um entregador que entra em contato com a família. Os

Dominantes ordenam que Spectreman elimine as pessoas infectadas, apontando que esta é a

única maneira de evitar que a contaminação se espalhe, eliminando toda a humanidade.

Kenji questiona a missão, por se tratar de gente inocente. Os Dominantes afirmam

que ele está programado para obedecê-los, não pode contestá-los, ameaçam destruí-lo e

insistem para que ele cumpra a missão imediatamente. A primeira parte da aventura acaba

com a negativa de Kenji.

A segunda parte do episódio é iniciada com os Dominantes reforçando a

importância da ordem de sacrificar a família. Spectreman diz que cumprindo a ordem

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estaria agindo como Dr. Gori, afirmando que prefere morrer a ter que matar o filho do

casal. Kenji avisa a família e ordena que fiquem de quarentena.

Kenji adverte a Patrulha antipoluição sobre a situação. K. sequestra a companheira

de Kenji e a coloca na casa da família, fazendo com que seja infectada. Os Dominantes

reforçam a ordem de eliminação. Spectreman entra na casa com o intuito de cumprir a

missão, mas desiste. Os Dominantes anunciam que a arrogância do herói vai ser castigada,

e ele é forçado a permanecer em sua forma humana.

Os Dominantes então anunciam o castigo de Spectreman: o exílio em um planeta

distante. O herói é atingido por um raio e, inconsciente, é levado para o espaço, até um

planeta desconhecido. Dr. Gori envia Karas e K para perseguir o herói. Quando o

encontram, espancam-no, em uma longa sequência. Os Dominantes anunciam que não tem

a intenção de fazer Spectreman passar o exílio em companhia de outros, então propõem um

acordo – o herói terá seu poder restituído, mas terá que vencer simioides. Vencendo-os,

será transportado de volta à Terra. O herói vence e retorna. Spectreman parece ter a

intenção de matar a família, mas os Dominantes revelam ter descoberto uma possível cura.

A técnica de cura funciona, a família sobrevive e todos são salvos.

O episódio descrito acima remete, de certa forma, à outra prática do governo

japonês nos tempos de guerra, a chamada Lei do Vigor Físico e a Lei da Eugenia.

Durante os esforços dos tempos de guerra, a distância entre a mente e o corpo foi dissolvida para a criação de um corpo nacional. O que era considerado como ‘não saudável’ (improdutivo e não reprodutivo) foi catalogado como uma ameaça aos interesses nacionais. (...) o governo da década de 1940 submeteu os corpos a uma rede de vigilância. Primeiro identificados através de exames físicos, os elementos “não saudáveis” se tornaram alvos de repressão. Em 1940, o governo publicou dois programas de regulação, a Lei Nacional do Vigor Físico (Kokumin Tairyoku Hoo) e a Lei Nacional de Eugenia (Kokumin Yuusei Hoo), que tinham como intenção, monitorar o aprimoramento do corpo japonês. (IGARASHI, 2011, p. 126-127).

Através da Lei Nacional do Vigor Físico, jovens com menos de 20 anos eram

obrigados a se submeter a exames físicos e, em seguida, recebiam uma documentação com

os resultados. Havia controle de doenças pulmonares (tuberculose), doenças venéreas,

lepra, doenças mentais, tracoma, parasitas, beribéri, desnutrição e queda dos dentes. O

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programa foi revisto em 1942, incluindo um teste de capacidade motora, de extrema

importância para os objetivos militares.

Já a Lei Nacional da Eugenia possibilitou ao governo comandar operações sobre os

acometidos por doenças hereditárias.

A lei listava cinco subcategorias de doenças sob sua jurisdição: doença mental hereditária, retardo mental hereditário, casos extremos e malignos hereditários de caráter patológico, casos extremos e malignos hereditários de doença física, e casos extremos de deformidade hereditária. Embora o número real de operações eugênicas realizadas fosse relativamente pequeno, a estratégia de exclusão da lei incrementou o controle de corpos no pós-guerra. (...) Os corpos frágeis estavam sujeitos não apenas a uma possível intervenção eugênica do Estado, mas, igualmente, a outras práticas de exclusão da sociedade. Lepra e doença mental, por exemplo, recebiam um escrutínio oficial específico das leis nacionais do vigor e da eugenia. (IGARASHI, 2011, p. 127-128)

Já na década de 1930 os esforços para levar os portadores de hanseníase aos

leprosários nacionais foram intensificados pelo governo. Apoiado por organizações não

governamentais, o estado atingiu o objetivo de excluir da sociedade os portadores de

hanseníase.

Conforme pontua Oda (apud Ohsawa, 2011), em 1942 ocorreu a chamada Kindai no

Chokoku (Superação da Modernidade), conferência com renomados intelectuais japoneses,

críticos do que consideravam uma modernidade descontrolada e uma crise moral pela qual

o Japão vinha passando. A conferência era uma reação a um fenômeno que ocorria no país,

que passava por uma transformação em seu estilo de vida, fortemente influenciada por

costumes europeus e, mais fortemente ainda, estadunidenses.

Tal reação é oriunda do fato de que cidades como Tóquio e Osaka passaram a

abrigar um estilo de vida cada vez mais moderno, marcado por cinemas, cafés e salões de

beleza, onde a influência europeia e estadunidense se fazia sentir sem que houvesse a

mediação de instituições tradicionais japonesas. Nas cidades, os padrões ocidentais

impunham-se por conta própria, não sendo mais necessário invocar o imperador para

justificá-los. Ao mesmo tempo em que o imperador perdia sua função legitimadora, as

próprias noções de identidade e de cultura japonesa se enfraqueciam sensivelmente.

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A resolução proposta por esses intelectuais era a retomada da tradição. Oda aponta

que esta bandeira de refortalecimento da cultura japonesa nunca se desvinculava de uma

restauração da dedicação ao imperador e aversão à influência estrangeira.

Na série Jaspion é possível perceber ecos da dinâmica tradição versus modernidade

vivida no Japão. Em alguns episódios esta questão fica bem evidente. A tecnologia e os

sinais da modernidade são questionados, muitas vezes pelos próprios antagonistas, como

visto em Godzilla de 1954 e no Dr. Gori da série Spectreman.

A franquia Metal Hero teve início com a trilogia dos Uchū Keiji (Detetives

Espaciais), Gavan, Sharivan e Shaider. Mas foi na quarta produção da franquia no Japão

Kyojuu Tokusou Juspion (Investigador de Monstros Juspion) – adaptado no Brasil como O

Fantástico Jaspion – que as lutas contra monstros gigantes seriam destaque e apareceriam

com regularidade em seus episódios.

A série, estrelada pelo ator e dublê Hikaru Kurosaki no papel título, estreou no

Japão em 15 de março de 1985 e foi transmitida até 24 de março de 1986, contando com 46

episódios que foram ao ar pela TV Asahi. No Brasil, foi lançada inicialmente em VHS pela

Everest e em seguida foi exibida pela extinta Rede Manchete, como parte das atrações do

programa Clube da Criança, a partir de 1988, permanecendo na grade da emissora até 1994.

Na Rede Record foi transmitida entre 1994 e 1996. Em 1997 foi ao ar pela TV Gazeta e

atualmente faz parte da programação da Ulbra TV.

Na trama Jaspion único sobrevivente da queda de uma nave espacial no planeta

Edin é criado em meio a monstros pacíficos pelo profeta de mesmo nome. Edin acredita

que o órfão seja o predestinado a se tornar o guerreiro celestial profetizado na Bíblia

Galáctica, que salvaria o universo das forças do mal. O profeta, então, adota o menino e o

treina, na esperança de que um dia venha a derrotar Satan Goss, na sua tentativa de

estabelecer o Império dos Monstros. Já na adolescência Jaspion, ciente de seu destino,

recebe de seu mentor os equipamentos para auxiliá-lo no cumprimento de sua missão.

Dentre eles estão: a armadura Metaltex; a Androide Anri e a nave de combate/robô gigante,

chamada de Daileon. O objetivo do personagem é encontrar os pedaços da Bíblia Galáctica,

único meio de destruir Satan Goss, missão que acaba o levando à Terra, após aventuras em

outros planetas. Os principais personagens da série, além dos já citados, são: Macgaren, do

original Mad Galant, filho de Satan Goss e rival de Jaspion; Miya, personagem alienígena

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resgatada em outro planeta; Boomerman, do original Boomerang, aliado de Jaspion; além

do professor Nambara e seus filhos, Kanoko e Kenta, também aliados do protagonista.

Mais uma vez uma produção do gênero apresenta questões mais profundas e de

cunho político através de narrativas nonsense e inúmeras sequências de luta. Assuntos

como, críticas ao cristianismo, dispositivos de poder, ameaça do progresso desenfreado

aparecem, ora de maneira discreta, ora de forma mais explícita, nos episódios de O

Fantástico Jaspion.

Em quase todos os episódios, o antagonista Satan Goss usa seu poder para enfurecer

os monstros, que a princípio não são maus, com o intuito de conquistar a galáxia e instaurar

seu Império. Além dos monstros, Satan Goss também faz uso de seu poder para controlar

aliados de Jaspion e até mesmo objetos inanimados como o Satélite Sakura.

O episódio Trama Miraculosa é centrado na personagem Miki, uma garota que

apresenta o poder de cura. No início Miki cura uma pomba machucada apenas por segurá-la

em suas mãos. Jaspion, ao observar o ocorrido, aproxima-se da criança.

A menina diz que deseja mais poder, que deseja poder voar. Na sequência seguinte,

Miki, já em casa com sua família, após um tremor de terra acaba sendo soterrada nos

escombros de sua casa. A menina é resgatada por Mad Galant que, aproveitando-se da

vontade da garota de desenvolver suas habilidades, diz a ela que não fosse por ele, ela

estaria morta. Além disso, também lhe diz que Satan Goss iria lhe conceder o desejo de ser

ainda mais poderosa, amplificando seus poderes mentais, tornando-a capaz de curar até

mesmo doenças que a medicina atual não conseguia.

Ligada a uma máquina, Miki recebe os raios energéticos de Satan Goss, que amplia

seus poderes. Em seguida, Miki é encontrada sem nenhum arranhão e com a saúde perfeita,

mesmo tendo ficado sob os escombros por 13 dias. A mídia passa a divulgar o incidente

como um acontecimento milagroso. A televisão mostra a menina realizando milagres, como

a cura de um garoto com uma grave fratura, apenas com a imposição das mãos.

Satan Goss, então, amplia ainda mais os poderes da menina. A garota renasce em

uma forma iluminada e passa a ser adorada pela população como uma Deusa. Para efetuar

suas curas milagrosas, Miki aparece vestida com uma indumentária que remete à vestes

sagradas e passa a receber as pessoas em uma caverna. A “Deusa” cura as pessoas com um

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raio de energia emitido pelas mãos e ordena aos que são atendidos que usem um broche

com a sua imagem estampada.

Os broches tornam-se objetos do desejo da população. Na verdade, esses objetos

possuem dentro de si pequenas partes dos chifres de um monstro. Quem utiliza os broches

acaba infectado por essa essência, passando a agir violentamente com o objetivo de

destruírem uns aos outros. Portanto, as pessoas que usam os broches passam a atuar como

agentes de Satan Goss, como parte de um plano para invadir o Japão sem resistência.

Nambara, aliado de Jaspion, apresenta um dos broches ao herói.

Surpreendentemente, o artefato movimenta-se sozinho e “pica” o braço do herói, que passa

a se sentir mal e tem que ser medicado. Tempos depois, Jaspion entra disfarçado na

caverna de Miki e tenta alertá-la do plano, mas a menina não acredita nas palavras do

protagonista. O herói é atacado e espancado pela população. Usando sua pistola, Jaspion

livra as pessoas dos broches, livrando a todos, inclusive Miki, do encantamento.

Entretanto, o bando de Mad Galant consegue capturar a menina e a crucificam,

prendendo-a com correntes (Figura 25). Embaixo da cruz uma bomba relógio é instalada.

Incentivada por duas asseclas de Mad Galant, parte da população passa a atacar Jaspion,

porém Miki solicita que parem, pois Jaspion veio para salvá-la. Uma vez que já não é mais

possível encobrir a verdade por trás da trama, o monstro, cujos pedaços de chifres haviam

sido usados para infectar as pessoas através dos broches, surge e está então estabelecido o

duelo final do episódio, entre ele e Jaspion.

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Figura 25. Jaspion salva Miki da crucificação.

O episódio em questão é recheado de significações cuja análise pode e deve se

estender. Antes de empreendermos essas análises, contudo, convém esclarecer partes do

contexto social japonês que serviram de base para a narrativa. Tendo como referência as

colocações de Novielli (2007), pontuamos que no fim da 2ª Guerra Mundial vivia entre os

escombros do conflito uma micropopulação de órfãos, crianças abandonadas, obrigadas a

arranjar-se mendigando, fazendo pequenos trabalhos ou, simplesmente, roubando os

passantes.

Tal cenário, como se sabe, é tristemente universal quando se aponta e analisa as

inevitáveis consequências de conflitos bélicos. As condições de mal-estar social dos

“pequenos adultos” não interessavam a todos, pois era justamente a essa geração

desgarrada e perdida que caberia a gestão do futuro do país. No cenário do pós-guerra no

Japão o florescimento dessa grande preocupação desemboca em ampla produção de filmes

sobre jovens e crianças. Nesses filmes, a esses jovens e a essas crianças eram confiados os

ideais mais altos: o amor, a convicção de uma justiça humana possível e a aversão à guerra.

Uma vez que a presença de um grande número de órfãos era um problema social de

larga escala no país assolado pela guerra e marcado pelos traumas dos bombardeios

atômicos, e uma vez que as consequências de tais eventos perduram a longo prazo, esta

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temática encontra-se transfigurada e representada no tokusatsu. Tal transfiguração e

representação tornam-se evidentes no episódio acima descrito e agora analisado.

Há em Trama Miraculosa elementos ligados ao desejo de poder e ao consumo

desenfreado de mercadorias fetiche. O desejo de poder de Miki pode ser entendido como

uma forma de suprir suas carências afetivas, e a ânsia da população pelos broches pode ser

lida pelos paradigmas da indústria cultural. Há, ainda, a possibilidade de pensar os broches

como mecanismos de controle populacional, estando esses objetos inadvertidamente

ligados ao controle dos corpos, como acima evidenciado.

Em um trabalho que pretende apontar o empobrecimento das metáforas originais do

tokusatsu, é primordial perceber que o controle dos corpos, tema amplamente investigado e,

portanto, parte fundamental da história cultural do Japão, ainda que às vezes obscurecido, é

materializado no episódio através de um objeto de consumo imposto por uma estrutura

verticalizada de poder, através da espetacularização criada em torno da personagem Miki.

A santificação de Miki e a exploração e aumento de seu poder de encantamento e

comunicação pelos vilões é que cria condições perfeitas para a vasta comercialização dos

broches, destinados a tornar seus portadores violentos e, assim, sujeitos ao controle. É

importante notar que os broches contém a imagem da menina-curandeira, sendo, portanto,

ícones que remetem às hagiografias, escritos sobre a vida e obra dos santos, e às imagens

sacras. Na análise da narrativa é fácil identificar pontos de intersecção entre a simbologia

cristã e o desenvolvimento da trama.

No início de Trama Miraculosa, Miki cura uma pomba segurando-a nas mãos. A

pomba é o símbolo do Espírito Santo e também pássaro que em episódios bíblicos variados

adquire significações de beatitude, como quando uma pomba retorna a Noé com um ramo

de oliveira, significando que o terreno para uma nova existência estava preparado.

Além disso, na sequência Miki sofre o acidente do soterramento e sai dos

escombros glorificada. Tal construção remete diretamente à crucificação e posterior enterro

e ressurreição de Cristo. Cristo sai de sua tumba para empreender milagres e, da mesma

forma, Miki sai do soterramento – uma espécie de calvário de longa duração, de 13 dias –

para assumir o posto de criança miraculosa.

Após ser promovida à celebridade pela televisão, que constrói sua imagem

milagrosa, Miki instala-se em uma caverna e assume a posição de oráculo. Utilizando

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roupas que lembram indumentárias sacras, realiza curas e vai cada vez mais aumentando

seu prestígio e poder de encantamento. Justamente é este prestígio e poder de encantamento

que propiciam, através da imposição do uso dos broches com sua imagem, o controle das

pessoas pelos vilões.

Próximo ao final do episódio Miki é crucificada. A menina que já passara pelo

“calvário” do soterramento sofre, então, a mesma punição máxima sofrida por Cristo. Uma

vez que o episódio é destinado a um público, sobretudo, infantil e adolescente, a

crucificação não acontece com pregos ou cravos, mas com correntes. Todavia, essa

suavização do suplício não torna a significação menos forte ou evidente.

Portanto, um acontecimento metafórico ligado à mitologia cristã – o soterramento e

sobrevivência miraculosa a ele – cria condições para que a televisão explore

comercialmente o episódio. Essa exploração da imagem da menina gera uma procura

desenfreada pelas graças incomuns que culmina em uma nova comercialização, desta vez

de artefatos benéficos em princípio, mas que são causadores de malefícios variados, dentre

eles outro acionamento da mitologia cristã, como a crucificação.

Essa estrutura de significações é complexa e dispara composições transversais de

significado que permitem a percepção do episódio como dotado de múltiplas camadas. O

contexto cultural do pós-guerra no Japão, o problema dos órfãos, a mitologia cristã, o

calvário, a ressurreição, a crucificação, a exploração pela mídia e o controle das mentes e

dos corpos estão presentes e funcionando narrativamente em conjunto.

Tal estrutura de significações tem seu referendo na própria perspectiva de criação de

O Fantástico Jaspion, uma vez que já a apontamos como uma série síntese do gênero

tokusatsu. Se Jaspion reúne elementos narrativos presentes em outros títulos, Trama

Miraculosa aciona, cumulativamente a isso, alguns elementos culturais que constroem uma

rica rede de significados.

Em outro episódio, Metamorfose de Satan Goss, o antagonista máximo de Jaspion é

confrontado com o sofrimento causado pela angústia da necessidade de sua própria

transformação, que garantiria sua sobrevivência. O sofrimento do vilão é tão grande que,

mesmo como entidade dotada de grande poder, não pode mais controlar seus próprios

sentimentos. A linha geral do episódio é dada pelo vilão Mad Galant que, para resolver o

problema e aliviar o sofrimento do pai, diz que um ritual deve ser executado. Tal ritual

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necessita do sangue de uma menina nascida na lua cheia. Ainda, para que o ritual funcione

a menina deve ter o corpo preparado para realizar a dança do sacrifício, que diminuirá as

aflições do vilão.

No desenvolvimento da trama do episódio, devido à sua angústia e sofrimento,

Satan Goss ataca a cidade de Tóquio descontroladamente. Jaspion enfrenta o vilão em uma

atmosfera sombria, e Satan Goss foge. Ao encontrar seu filho, diz que deseja passar logo

pela metamorfose, antes que Jaspion reúna as crianças tocadas pela luz, caso contrário não

haveria mais tempo para alcançar seus objetivos. Para conseguir a garota necessária, Mad

Galant trama um engodo e cria uma suposta seleção para atuação em um musical, uma

adaptação do livro Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. A garota Yumiko

dirige-se para o teste. Aprovada, é supostamente levada pela equipe, mas na verdade trata-

se de um sequestro. Yumiko, então, é treinada para executar a dança ritual, sem saber dos

propósitos do vilão. Ao ser convocada, a menina diz não estar preparada, pois ainda não

sabia suas falas. Recebe como resposta que apenas a dança é suficiente.

O que parece estar implícito nesse fato é que, para executar a tarefa imposta pelo

império dos monstros, não é necessário dar voz àqueles que servirão de ferramenta para os

objetivos do império. Necessita-se apenas do sangue, é preciso apenas o corpo da menina,

devidamente programado e preparado para cumprir sua função. Mais uma vez, as práticas

de regulação do corpo que ocorriam no Japão desde antes da 2ª Guerra Mundial são

referendadas de maneira indireta, com o agravante de se debruçar sobre a figura de uma

criança.

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Figura 26. A doutrinação dos corpos japoneses.

O poder disciplinador aparece de maneira mais curiosa no episódio A investida dos

aliados espaciais. Jaspion tem como companheira e auxiliar de aventuras a androide Anri.

Os androides são, via de regra, mais sofisticados e semelhantes aos humanos do que os

robôs, realizando funções mais elaboradas. De qualquer maneira, mesmo os androides, por

conta de sua programação, realizam funções de maneira submissa aos humanos e, em

especial, a seus programadores.

Nesse sentido, vale lembrar as três leis da robótica, elaboradas por Isaac Asimov no

livro Eu, Robô, publicado pela primeira vez em 1950. Tais leis tem o objetivo de regular o

comportamento dos robôs, com ênfase em proteger os humanos de ações nocivas por parte

dos robôs e, também, de maneira a impedir suas eventuais insubmissões. Mesmo que se

trate de uma obra ficcional, os três preceitos de Asimov foram adotados como paradigmas

pela robótica e, dessa maneira, figuram como substrato dessa ciência e do episódio aqui

analisado.

Os três preceitos/leis da robótica são:

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• 1ª Lei: Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por omissão, permitir que o ser

humano sofra dano;

• 2ª Lei: Um robô tem de obedecer às ordens recebidas dos seres humanos, a menos que

contradigam a Primeira Lei.

• 3ª Lei: Um robô tem de proteger sua própria existência, desde que essa proteção não

entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis.

Para a análise do episódio A investida dos aliados espaciais, as duas primeiras leis

são as mais importantes. Em especial a segunda lei, que deixa claro o princípio da

necessidade incontornável da obediência. Uma vez que, teoricamente, estes preceitos estão

na programação básica de um robô/androide não podem ser desconsiderados. O

robô/androide só poderia desobedecer a ordem de um humano se esta ordem fosse a de ferir

outro ser humano, ou se essa obediência redundasse em omissão para impedir que um ser

humano fosse ferido.

Anri, a companheira de Jaspion, é uma androide atípica, apresentando

comportamento desobediente com relação às suas ordens. Anri constantemente desobedece

Jaspion, demonstrando um comportamento insubmisso que desagrada o herói. No episódio

analisado, Jaspion, cansado do comportamento da companheira androide e julgando-a

rebelde, imobiliza Anri de maneira violenta. Em seguida, expõe seus circuitos e instala um

microchip com o objetivo de alterar seu comportamento, tornando-a dócil e submissa.

Anri, em respeito à primeira lei da robótica, não se rebela e aceita a intervenção. O

que se pode analisar aqui é, justamente, a violência da intervenção e seu caráter invasivo.

Jaspion imobiliza Anri, exercendo sobre ela um domínio físico que faz sobressaltar seu

poder de chefia. Em seguida, rompe a “pele” da androide, expõe seus circuitos – suas

entranhas, seus “órgãos”, sua intimidade – e instala nela um microchip, ou seja, uma

prótese, instrumento de domínio com o objetivo único de “consertar a imperfeição da

desobediência”.

O caráter dominador da imposição da força física do herói, no ato de intervenção no

corpo e no comportamento da androide, por si só apresenta elementos de significação que

podem ser explorados em uma análise do episódio. Afinal de contas, é o masculino

dominando o feminino, e dominando um feminino que, desde sua concepção, é talhado para

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ser um “feminino perfeitamente submisso”, por não apresentar teoricamente a mínima

possibilidade de insurgência.

Mas, mais do que isso, a intervenção no corpo da androide, da maneira como é

realizada, representa também um estupro simbólico, pois o herói e protagonista intervém

direta e impositivamente no corpo da androide, apenas por sua própria vontade/necessidade

de ser obedecido. Talvez seja demasiado comparar as mãos e braços do herói ao falo e o

chip introduzido ao sêmen, mas na encenação do episódio essas significações comparecem

e não devem ser contornadas ou esquecidas.

No desenvolver da narrativa, na construção de uma ironia típica da série, após a

violenta intervenção sofrida, Anri se submete temporariamente ao domínio de Jaspion.

Porém, após um breve período de obediência, a androide se rebela e retorna à sua

programação/personalidade costumeira.

Tal fato coloca em cheque o poder do herói e sua prerrogativa de domínio,

apontando uma contestação da segunda lei da robótica por parte da androide, o que insere

um interessante questionamento acerca de uma suposta possibilidade de conquista de

independência de ação e de pensamento por parte dos robôs/androides. Esta possibilidade é

típica da ficção científica na literatura e no cinema, em obras como 2001, uma odisseia no

espaço – 2001, a space odissey, livro de Arthur C. Clarke de 1968, lançado logo após sua

adaptação para o cinema, por Stanley Kubrik – e Blade Runner – livro de Philip K. Dick,

intitulado Do androids dream of electric sheep? no original de 1968 e adaptado para o

cinema por Ridley Scott em 1982.

Jaspion resgata também os temas ecológicos, os alertas contra o progresso

desenfreado e o uso inconsequente da tecnologia. O segundo episódio da série, inspirado no

filme Jornada nas estrelas (1979), é intitulado O triste fim de Sakura. Na trama, Sakura é

um satélite construído no Japão e abandonado no espaço.

Na narrativa, Jaspion encontra uma nave espacial que parece estar à deriva. Ao

inspecioná-la, percebe que se trata de uma nave fantasma, sem tripulantes. Ao retornar para

sua própria espaçonave, Daileon, o herói escuta um som de motor e avista a nave fantasma

se movimentando. Ele resolve seguir a nave que, instantes depois, desaparece. Daileon

então passa a ser atraída por uma força gravitacional que os leva ao planeta gelado Peece.

Jaspion encontra, então, os destroços da nave fantasma que desaparecem de repente.

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Pouco depois, Jaspion é atacado por seres com aspecto robótico, que sequestram

Miya e a androide Anri. Em seguida, surge o monstro Tetsugo que investe contra o

protagonista. Herói e monstro se digladiam e Jaspion acaba soterrado na neve. Após

emergir da neve, Jaspion passa a procurar por Anri e Miya e acaba sendo puxado por um

túnel, para dentro de uma cidade subterrânea.

Nesta cidade Jaspion enfrenta novamente os seres robóticos. Durante a luta,

encontra um homem com cabelos brancos, de armadura. Este homem toca uma música em

um piano de cauda, fazendo com que os vilões parem o ataque e se dispersem. O velho diz

que ali havia uma aldeia onde se vivia em paz, mas quando “eles” apareceram,

transformaram tudo em agonia e morte, e que seus dias estavam contados.

“Eles” a quem o ancião se refere são Satan Goss e seus seguidores, que

ressuscitaram o monstro gigante Tetsugo e deram vida à nave fantasma – o satélite japonês.

Os vilões voltam a atacar quando o ancião tenta explicar sobre a nave, e o velho se sacrifica

para impedir que Jaspion seja atingido. Suas últimas palavras são: “uma estrela é imortal”.

O herói é, então, puxado por uma mão mecânica até o local onde um satélite solta uma

gargalhada ameaçadora.

O espírito da máquina se revela, apresentando-se como Sakura, construído pelos

seres humanos e enviado aos confins do universo. Sakura revela ainda que, quando chegou

ao planeta Peece, Satan Goss lhe concedeu vida e tornou-se seu Deus. O objetivo de Sakura

é instaurar o império das máquinas para se vingar da humanidade.

Jaspion enfrenta Sakura, que passa a controlar a androide Anri. Sakura diz que os

que se opuserem serão eliminados. Satan Goss enfurece o monstro Tetsugo, que absorve a

nave fantasma e o satélite Sakura. Então, o herói conclui que o monstro e o satélite são um

só. No fim do episódio, o satélite transmite repetidamente a mensagem, “Advertência para

humanidade!” e, então, explode, desintegrando todo o planeta.

A temática do uso inconsequente da tecnologia é trabalhada no episódio com foco

na rebelião do maquinário contra a humanidade. Tal recurso narrativo é frequente na ficção

científica. Se no episódio A investida dos aliados espaciais pudemos encontrar uma direta

relação entre os acontecimentos narrativos e a confrontação das leis da robótica, conforme

preconizadas por Isaac Asimov, em O triste fim de Sakura estes preceitos também servem

de base para a narrativa.

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A rebelião do maquinário contra a humanidade teve recente proeminência com a

trilogia Matrix – Matrix, 1999, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, 2003. No episódio

aqui analisado esta temática adquire tons pessoais. Sakura quer vingar-se da humanidade

que o criou, exilou e abandonou. Tal perspectiva aproxima claramente Sakura do monstro

de Frankenstein. No livro e no episódio há a rebelião contra o criador que dá a vida e

abandona.

Além disso, pode-se perceber que o nome do planeta, Peece, é uma transformação

da palavra “peace”, que em inglês significa “paz”. Portanto, no episódio o planeta “Paz”

tem, como relatado pelo ancião, seu cotidiano pacífico adulterado pela intervenção do

maquinário e de Satan Goss, que também intervém no maquinário. Dessa forma, direta e

metaforicamente, é o maquinário que elimina a paz, e a advertência final de Sakura não

deixa dúvidas quanto ao teor com que se aborda o progresso tecnológico desenfreado.

A temática de alerta contra uso inconsequente da tecnologia volta a aparecer no

episódio Perigo em Tsukuba, que aproveitou para a trama a realização da Expotsukuba 85 –

exposição internacional de ciência e tecnologia, realizada de março a agosto de 1985 na

cidade universitária de Tsukubana, com o tema “Homem, habitação, ambiente e

tecnologia”.

No episódio, um grupo de cientistas é exposto ao gás emitido pelo monstro

Gamadoras e, durante a exposição, começam a se comportar de maneira estranha. Um deles

destrói seus experimentos enquanto grita: “Deixe a natureza em paz, não temos o direito de

prolongar a vida com a ciência! Gamadoras!”. Outro cientista destrói um laboratório

exclamando: “Para que fibra-ótica? Para que computadores? Para o homem basta o sol, a

terra! Gamadoras!”. Após saber dos incidentes, Jaspion decide investigar o ocorrido, pois

pressente “uma sombra qualquer de Satan Goss na exposição”.

Ao encontrar a terceira pessoa afetada pelo monstro, o herói assiste a uma

transmissão de um homem que também apresenta os efeitos da exposição ao Monstro, com

a seguinte mensagem:

É pura ilusão que o século 21 será a era da ciência e da tecnologia. A ciência não será capaz de deter a perturbação climática nem impedir que a terra se torne um imenso deserto. O século 21 será o século das trevas. Até as almas dos seres humanos serão transformadas. É o Gamadoras!

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Jaspion descobre através de Edin que Gamadoras era um monstro pacífico que após

a realização de testes nucleares na ilha que habitava tornou-se um ser mutante, clara

referência a Godzilla. A lenda apregoava que quem tomasse seu óleo viveria mil anos,

porém, aqueles que tomaram seu óleo tornaram-se violentos e a guerra nuclear levou seu

planeta à extinção.

O enredo deste episódio deixa muito clara a temática subjacente do repúdio ao uso

indiscriminado da tecnologia. Este argumento torna-se evidente ao considerarmos o

aproveitamento de um evento real dedicado à discussão dos rumos do desenvolvimento

tecnológico como fundação da linha narrativa. Como agentes potencializadores da temática

temos também o fato do monstro afetar, justamente, cientistas vinculados à exposição,

provocando um comportamento violento e anormal nestes. Um dos cientistas dominado

pelo monstro destrói seus experimentos e clama contra o prolongamento da vida; outro

cientista destrói seu laboratório e prega contra a fibra ótica e contra os computadores,

valorizando elementos naturais, o sol e a terra; outro, ainda, aponta um cataclismo

tecnológico, fala em “trevas” e em transformação das almas humanas.

Nesse sentido, o episódio analisado assoma como um antecipador de discussões que

se tornariam bastante proeminentes, uma vez que hoje muito se discute sobre a intervenção

científica, via implantes e manipulação genética. A evocação de malefícios ligados à

utilização de fibra ótica e de computadores é notadamente direcionada ao próprio contexto

de industrialização japonês. Uma argumentação assim construída torna-se tão mais forte

quanto mais se lembra o quanto esse tipo de tecnologia era, e ainda é, vital como produto

de desenvolvimento e de comercialização no Japão.

No entanto, o que mais nos parece relevante é a exposição do terceiro cientista,

evocativa e premonitória, lembrando predições maledicentes que se tornaram frequentes no

fim do último milênio e continuam se apresentando até hoje. Através da referência à

perturbação climática levada a cabo pelo uso indiscriminado da tecnologia, o cientista

prevê que a Terra se transformaria em um “imenso deserto”, diz que o século XXI será um

século de “trevas” e aponta uma transformação das almas humanas.

A transformação das almas é mais subjetiva e generalista, mas a imagem de um

imenso deserto é forte, causando contraste com a imagem de profusão biológica presente

em diversos ecossistemas do planeta. Claramente, está apresentada aqui uma inclinação

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cataclísmica que se choca com as perspectivas otimistas de utilização da tecnologia como

fator de desenvolvimento humano e de preservação da vida no planeta, em todos os seus

âmbitos.

Ainda, o que mais chama atenção é o apontamento do século XXI como século de

trevas. É clara a relação desta nomenclatura com a Idade Média, também conhecida como

“Idade das Trevas”. O que está em cena quando se relaciona a Idade Média às trevas é uma

perspectiva de falta geral de conhecimento, uma vez que boa parte deste era acessível

apenas a um número muito pequeno de pessoas, socialmente privilegiadas ou ligadas à

Igreja. As trevas, no contexto medieval, também apontam o mundo “não iluminado por

Deus”, ou seja, um mundo associado a um demoníaco e fora do caminho traçado pela luz

do conhecimento, ministrado pela palavra dos sacerdotes, portadores da palavra divina.

Em Perigo em Tsukuba, o alerta antitecnologia encaminha o mundo para um futuro

anômalo em que a tecnologia promoverá deserto e trevas. Portanto, a tecnologia,

normalmente associada à iluminação e à promoção do conhecimento, sofre um revés de

significação e passa a ser portadora de signos detratores de si mesma. Tal inversão é

frequente na ficção científica, sendo possível afirmar que este episódio da série Jaspion

evoca elementos de distopia ou de contra utopia, uma vez que o que se constrói pela

tecnologia, ao menos na perspectiva cataclísmica proposta pelos cientistas afetados pelo

monstro, é a decadência do homem e da sociedade através de um desenvolvimento que se

promete, a princípio, iluminador.

2.3. Redes de Consumo e infantilização: a soberania do merchandising

Após analisar algumas das metáforas utilizadas nas primeiras versões de tokusatsu e

seus significados potentes, vinculados ao contexto histórico-social do Japão e às

transformações e rumos que o desenvolvimento global estava tomando, torna-se claro que o

papel das diretrizes comerciais passou a ser determinante em vários sentidos, sobretudo na

continuidade das séries no cinema e na televisão. Muitas séries foram vinculadas a estas

diretrizes impostas pelos estúdios e redes televisivas e passaram a explorar o universo das

obras para a construção de uma rede de merchandising, diluindo as metáforas originais e

neutralizando os seus significados latentes.

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Como vimos, as séries foram construídas tendo em vista discussões políticas, que

mesmo não assomando de maneira direta nas tramas, as influenciaram. As discussões de

ordem social e histórica que pululam sob a camada mais superficial do tokusatsu, e em

especial das séries aqui referidas, fazem com que tenham dupla qualidade: são bons objetos

artísticos de entretenimento, pois atraentes em termos estruturais, imagéticos e narrativos e

são agentes de conscientização eficientes, mesmo que essa conscientização não seja

imediatamente percebida, na medida em que discutem seus tópicos com qualidade.

Portanto, encontramos uma virtude do tokusatsu que se ancora nos melhores

desenvolvimentos artísticos unidos a uma discussão importante. A nosso ver, uma obra de

arte não tem necessariamente que ser submissa à sua função social. O próprio fato de ser

uma obra de arte já a torna uma entidade que presta um serviço ao social, o serviço de ser

ela mesma e de significar através de seus próprios parâmetros. A vinculação dessa obra de

arte a uma função social, portanto, figura como um “extra”, e se a obra cumpre esse extra

sem depreciar seu caráter artístico, tanto melhor.

O tokusatsu, portanto, é um tipo de produto midiático que realiza essa dupla função,

sem deixar que qualquer uma delas se perca. A nosso ver, o gênero realiza ambas as

funções de maneira plena e vinculada porque tem como parâmetro principal o

desenvolvimento artístico. As passagens em que se nota um ensinamento ou uma “lição de

moral” são integradas nas tramas.

O primeiro exemplo que gostaria de analisar é Godzilla. Cristiane Sato (2007)

comenta que, a princípio, o estúdio não tinha pretensão de produzir novos filmes com o

personagem. Em 1969 o diretor Ishiro Honda declarou em uma entrevista que não havia

planos para uma sequência e disse ainda, “ingenuamente esperávamos que o fim de

Godzilla coincidisse com o fim dos testes nucleares” (SATO, 2007, p. 180). Esta afirmação

traça a intenção social por trás da obra e evidencia sua metáfora, embora, como já

afirmamos, a intenção social e a metáfora não obliterem o desenvolvimento artístico do

filme.

Entretanto, devido ao sucesso da produção, mais de 30 longas metragens tendo

Godzilla como protagonista seriam produzidos nos anos seguintes. Sato ressalta que o

fascínio que a figura do monstro causou nas crianças incentivou a Toho a focar a narrativa

da franquia em temas que atraíssem ainda mais o público infantil. O estúdio passaria a

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81

aproveitar a popularidade da luta livre, usando os combates entre os personagens de forma

estratégica.

Tais direcionamentos são, explicitamente, vinculados a fins comerciais. Não se trata

de propor uma demonização da comercialização de produtos, mas, sim, de dar a ver o

quanto tal diretriz desvia-se das orientações das obras fundadoras. Transformar Godzilla ou

qualquer produto não criado para crianças, em um produto destinado ao público infantil

demanda naturalmente um processo de desconstrução deste, em termos de suavização.

Em suas frequentes adaptações de contos de fadas para o cinema, em animações, os

estúdios Disney, focados no público infantil, utilizam versões mais amenas dos contos.

Como se sabe, os contos de fada são frequentemente recheados de episódios narrativos e

“lições a aprender” construídas por meio de elementos áridos que, muitas vezes, suscitam o

grotesco, o bizarro, a dor e o sacrifício.

Ao longo dos anos, em parte por conta de sua transmissão oral, em parte por conta

de um arrefecimento da mensagem em prol de sua maior popularidade, esses contos de fada

foram sofrendo reelaborações, sendo suprimidos ou reescritos seus elementos narrativos

mais agressivos.

A subordinação das séries de tokusatsu aqui analisadas aos fins comerciais e, em

especial, sua adequação ao público infantil tem o mesmo caráter que a suavização dos

contos de fadas. Como se verá adiante, isso se reflete em uma série de aspectos, desde o

desenvolvimento das narrativas até a representação dos personagens. No caso de Godzilla,

uma desconstrução imagética da periculosidade do monstro é realizada, como

demonstraremos.

A inserção da performance típica da luta livre na coreografia dos filmes direciona

para a composição de espetáculo. Como se sabe, a composição e modus operandi da luta

livre ou wrestling é muito mais próxima do teatro do que do combate. Tanto em eventos ao

vivo (muito tradicionais na cultura mexicana) como em eventos transmitidos pela televisão

(também de grande repercussão no México), as lutas são mais encenadas do que

efetivamente realizadas. O que está em cena nos embates é muito mais a suspensão da

descrença do que a imposição da supremacia física. Em sua obra Mitologias, Roland

Barthes dedica um dos capítulos à luta livre, desenvolvendo argumentação no sentido

acima expresso.

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82

Assim, quando em 1955 estreia o segundo filme da franquia, Godzilla no Gyakushu,

que apresentava a luta do monstro Anjirasu contra Godzilla, as diretrizes de reorientação

para uma temática mais suave e a inscrição das sequências de luta no universo da luta livre

já estavam em voga. Para Yoshikuni Igarashi nas sequências as características do monstro

seriam drasticamente alteradas, e a perspectiva crítica original sobre a narrativa fundadora

se perderia.

A fúria destrutiva do personagem era acentuada por seus movimentos desajeitados

que em parte resultavam do enorme peso da roupa de borracha carregada com grande

dificuldade pelo ator e também reflexo do desconforto causado pela falta de adaptação

anatômica da fantasia. “Por isso, o senso de materialidade diáfana que o primeiro Godzilla

exibia em abundância era bastante fortuito” (IGARASHI, 2011, p. 287-288). O ator não

tinha liberdade de movimento e, diversas vezes, caía durante a filmagem, só conseguindo

levantar com a ajuda dos colegas. Com o passar dos anos, conforme a tecnologia na

construção de monstros no cinema se desenvolveu, as roupas ficaram mais leves e

confortáveis, permitindo mais controle de movimento e, no caso da caracterização de

Godzilla, deixando o monstro mais veloz e mais similar aos movimentos de um ser

humano.

Isso afetou negativamente os efeitos artísticos originais da obra. Apesar da

utilização de fantasia por um ator, em alguma medida, também poder ser considerada um

efeito especial e, por isso, estar em consonância com as características do gênero, isso

diferiu demasiadamente da linha estética inicial de Godzilla.

Portanto, em Godzilla no Gyakushu, a “humanização de Godzilla já estava em

progresso” (IGARASHI, 2011, p. 288). Nesse sentido, é emblemático e simbólico notar

que essa humanização, assim como a nova orientação artística, vem “de fora para dentro”

dos filmes. A utilização de atores vestidos de monstros, assim como a diretriz

mercadológica que motivou sua inserção, são elementos alheios aos filmes enquanto

unidade estética, ainda que façam parte de sua base.

Tal parâmetro lembra posicionamentos típicos da indústria cultural, uma vez que

esta promove a mercantilização de bens culturais sob a batuta de uma orientação

mercadológica vertical, que parte das cúpulas das corporações para atingir e orientar a

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própria concepção dos produtos de cultura e redundar em sua subordinação conceitual,

estrutural, temática, estética e simbólica.

Quando dizemos que a utilização de atores vestidos de monstros é um elemento

“alheio” aos filmes, queremos pontuar que é um elemento alheio à concepção primordial da

obra fundadora. Mais importante ainda, um elemento “alheio” fincado no novo paradigma

traçado por uma suavização do produto, ao modo da suavização sofrida pelos contos de

fada, que parte de uma orientação mais aberta e/ou subordinada a fins comerciais.

Desse modo, o embate entre Godzilla e Anjirasu sugere que a narrativa do filme não

consegue ser sustentada unicamente pela monstruosidade de Godzilla, ou, ainda, que a

monstruosidade de Godzilla pode ser prejudicial ou diminuidora de seu potencial de

popularização. Eis o dilema artístico apresentado. O embate entre a manutenção da

monstruosidade original e a construção de uma monstruosidade mais antropomórfica, algo

desajeitada e suave, foi vencido não pela diretriz artística mais congruente e ousada, mas

sim pela orientação comercial, menos relevante. O uso das coreografias típicas da luta livre

acentua o efeito de “domesticação da monstruosidade, através da produção de uma

narrativa que antropomorfiza Godzilla” (IGARASHI, 2011, p. 288-289).

Igarashi pondera que, mesmo com esse enfraquecimento da orientação artística

original e com todas as alterações na estratégia da narrativa da franquia, a sequência de

Godzilla mantém sua conexão com as marcas da guerra e à resistência ou resolução final

das tensões entre Japão e EUA fomentadas pela narrativa fundadora. No filme o monstro é,

assim como um inseto, atraído durante a noite pelas luzes da cidade de Osaka,

comportamento similar ao Godzilla do primeiro filme, atraído pelas luzes de Tóquio. Uma

limitação com relação à iluminação é estabelecida a fim de evitar a entrada de Godzilla na

cidade. De acordo com Igarashi, essa sequência faz alusão ao período da guerra em que

havia receio de que as luzes pudessem atrair os bombardeiros americanos B-29, criando

regulação vivida pelos japoneses neste período.

Em 1956, incentivada pelo sucesso comercial de Godzilla no Japão, a Columbia

Pictures adquire os direitos do filme e o lança nos EUA com o nome de Godzilla, Rei dos

Monstros. O filme foi retalhado e reconstruído, havendo mais de 20 minutos de corte no

material original. Além disso, foram inseridas novas cenas apresentando um personagem

estadunidense, interpretado por Raymond Burr.

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Tal reconstrução, por suas características, demonstra um profundo desrespeito com

o material fonte, uma vez que a inserção de um personagem nacional, a retirada de material

e a nova composição da edição fazem desvanecer a obra inicial em prol da constituição de

uma obra derivada que serve muito mais a propósitos comerciais do que a intuitos criativos

ou semióticos.

Assim, com o passar dos anos, as produções subsequentes protagonizadas pelo

monstro vão se distanciando das memórias de guerra e o poder crítico de Godzilla vai

definhando (Igarashi, 2011). Dentro desse contexto, trata-se do declínio do poder crítico,

muito ancorado na perda das metáforas originais, considerando que o distanciamento do

eixo narrativo tradicional faz perder a linha de argumentação típica da obra originária, que

tinha muito a representar em termos sociais e históricos.

Seguindo essa linha de raciocínio da indústria, em 1962 o personagem Godzilla

retorna ao cinema em um duelo contra um ícone do cinema dos EUA, King Kong. O filme

original do personagem símio provavelmente inspirou a própria criação de Godzilla. No

filme, intitulado King Kong contra Godzilla, os monstros se enfrentam em terras nipônicas.

Segundo Sato (2007), a produção de 1962, como visava atingir o público infantil, é rodado

em cores, apresentando uma versão heroica do monstro japonês. Igarashi (2011) realça que

o filme deixa de lado a atmosfera soturna enfatizada pelo preto e branco dos dois primeiros

filmes. Além disso, para o autor, o filme replica a narrativa fundadora do pós-guerra,

abrindo mão de qualquer noção crítica mais vinculada aos sentidos primordiais e

inaugurando uma linha metafórica diferente:

(...) os EUA salvam o Japão do monstro japonês. Além do que, é também uma mulher, nesse caso japonesa, que se torna objeto de desejo de King Kong. Há até uma cena em que King Kong fica em cima do Prédio da Assembleia Nacional com a mulher em sua mão, representando, destacadamente, o sentido de salvação: submissão sexual aos EUA. (IGARASHI, 2011, p. 291-292)

Embora menos atenta aos problemas suscitados nas primeiras produções, King Kong

contra Godzilla alcançou sucesso, com mais de 12 milhões de ingressos vendidos somente

no Japão. De qualquer forma, é importante apontar que nesse filme se as metáforas

originais foram perdidas, a narrativa de domínio não apenas da indústria cultural, mas

também do país interventor, fez-se presente. O fato dos EUA salvarem o Japão do monstro

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japonês, em larga medida é trazida da situação histórica de intervenção estadunidense sobre

o Japão após a 2ª Guerra Mundial. A presença de uma mulher japonesa nas mãos do

“salvador” oriundo dos EUA sobre o prédio da Assembléia Nacional não deixa dúvidas

quanto a isso.

A transformação da figura monstruosa de Godzilla é ainda reforçada nas

continuações da franquia. Em Sandai Kaiju Chikyu (Godzilla versus rei Ghridah) de 1964,

ano das olimpíadas em Tóquio, Godzilla completa sua metamorfose. Torna-se, afinal, um

herói ao estabelecer uma aliança com os monstros Mothra e Rodan, com o objetivo de

defender a humanidade contra o monstro vindo de outro planeta, Rei Ghridah.

O processo de transformação da figura monstruosa em uma figura heroica coroa a

depauperação da metáfora de monstruosidade original. Ainda que desde os primórdios a

figura monstruosa de Godzilla tenha também ares de um estandarte de aviso com relação a

problemas sócio-históricos, em especial com relação ao poder nuclear, o personagem

mantém sua característica monstruosa e atua através dela. A adição de um caráter

definitivamente heroico a Godzilla é contrária à sua delimitação inicial enquanto

personagem, reduzindo seu horizonte semiótico a uma esfera de maior obviedade e menor

polissemia.

O processo de antropomorfização e domesticação de Godzilla chega ao seu auge no

oitavo filme da série, Son of Godzilla, lançado em 1967, que concede a Godzilla a

paternidade. Segundo Igarashi, com a presença de Manilla, nome do filho do monstro, e,

em especial, sua capacidade de se comunicar em japonês instaura-se a “domesticação

derradeira da monstruosidade” (2011, p. 293).

Ainda de acordo com o Igarashi, o Japão da década de 1960 apresentava sinais de

otimismo exacerbado, inspirado pelo crescimento econômico, que não mais comportava as

trevas dos dois primeiros filmes e reservava para os monstros nada mais que o papel de

figura caricata. Este caráter caricato pode ser facilmente notado na figura 27, abaixo, na

qual se pode perceber o quanto o corpo de Manilla tem curvas suaves e arredondadas. O

“monstro” apresenta rosto amigável e expressão alegre, em completa quebra de vínculo

com a imagem de seu pai, cuja constituição corporal era marcada pela agudez e pela

dureza.

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Figura 27. O filho de Godzilla – antropormifização do monstro.

Ishiro Honda, responsável pela direção dos seis primeiros filmes da franquia,

afirmou que inicialmente as crianças não foram consideradas como público do Godzilla.

Entretanto, a imagem acima não deixa dúvidas quanto ao redirecionamento das produções

para o público infantil ocorrido a partir da década de 1960, corroborando a ideia de

transformação do monstro a cada nova produção da franquia. Este redirecionamento

afetaria negativamente e de forma notável a produção das obras.

Fazendo a contraposição entre a imagem do Godzilla e a imagem de seu filho

(figura 27, acima), podemos notar o quanto o empobrecimento das metáforas originais do

filme são proeminentes. Basta pensar no processo de suavização e de antropomorfização da

monstruosidade que pode ser visto, partindo de Godzilla e chegando a Manilla. A diferença

entre um monstro ameaçador e um “humano monstrificado”, com ares de Golem benéfico,

a ruptura que há entre um ser hediondo e seu filho de imagem domesticada, não deixam

dúvidas quanto à interferência dos fins comerciais no desenvolvimento da franquia,

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evidenciando o quanto essa interferência empobreceu as significações primeiras, mais

profundas.

Além das inúmeras sequências e adaptações, a figura do monstro migraria para

outros segmentos. Uma longa série de brinquedos e de outros artefatos com a marca

Godzilla foram produzidos, desde a estreia do filme em 1954. Empresas como Bullmark,

Marusan e Bapresto, colocaram no mercado uma variada gama de produtos. Os brinquedos,

pensados no contexto da atividade lúdica da brincadeira, podem ser considerados uma

forma de disponibilizar um processo de recriação da história do monstro. Neste momento,

porém, o que mais nos interessa é a exploração da figura monstruosa como instrumento

comercial. A imagem abaixo é emblemática dessa exploração, e nos dá a medida da

utilização de Godzilla pela indústria.

Figura 28. A desconstrução da imagem do monstro – porta papel higiênico.

Na figura acima, a transformação do monstro em item de comércio e o

enfraquecimento das metáforas originais atinge um grau quase máximo – de representante

da ameaça nuclear e repositório das memórias de guerra japonesas, Godzilla passa a suporte

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de papel higiênico. Ainda que na embalagem a figura do monstro guarde bons resquícios de

sua construção inicial, e ainda que seja adicionada de onomatopeias e olhos vermelhos

ameaçadores, a desconstrução das significações é tão grande que instaura uma atmosfera

cômica e risível sobre um objeto que primordialmente não continha esses direcionamentos

artísticos e semânticos.

Tal apropriação permite conexão com um caso ocorrido no Brasil: o chamado

“Incidente de Varginha”. O caso seria o de supostas aparições de objetos voadores não

identificados na cidade de Varginha, Sul de Minas Gerais, em 1996. O episódio foi

investigado e posteriormente esclarecido de maneira oficial como um mal-entendido. O

desenvolvimento investigativo do fato não nos interessa tanto, mas, sim, o desenvolvimento

comercial que o caso tomou, passando de “sério” a “pitoresco e humorístico”. A exploração

comercial do incidente deu-se em múltiplos níveis, foi adotada tanto pelas autoridades

locais quanto por empresas interessadas em explorar seus potenciais. As figuras 29, 30 e

31, abaixo, ilustram esse processo.

Figura 29. Estátua do ET de Varginha.

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Figura 30. Caixa d’água em formato de disco voador.

Guardadas as devidas proporções e

significações, o processo de exploração comercial

gerado sobre o incidente de Varginha é muito próximo

ao que ocorreu com a depauperação das metáforas em

Godzilla. Em ambos os casos, as perdas cognitivas são

ocasionadas pela apropriação para fins diversos dos

originais e reforçadas pela antropomorfização e pela

infantilização dos personagens.

A estátua do ET (figura 289, a caixa d’água

(figura 30) e a história em quadrinhos (figura 31) que

tem o ET como personagem são exemplos claros do

tipo de exploração comercial relacionada à que foi

instalada sobre a figura e sobre os significados

originários de Godzilla. No caso do ET, como no caso do monstro, uma criatura em

princípio ameaçadora é tornada familiar e humana. O ET alegremente pisca um olho e

segura um mapa do estado, sua “espaçonave” serve à população da cidade como depósito

de água e ele também pode ser um “novo amiguinho espacial” (figura 31). Tanto no caso da

Figura 31. História em quadrinhos que usa o ET como personagem.

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representação comercial do ET de Varginha como no caso da constituição física de Manilla,

a antropomorfização, a suavização da figura monstruosa e o empobrecimento das metáforas

originais estão fortemente presentes.

Em 1978, através da coprodução do estúdio Hanna Barbera e da TohoProduction,

foi produzida a série animada protagonizada por Godzilla. A história apresenta as aventuras

de uma equipe de cientistas a bordo do navio Calico, liderado pelo Capitão Carl Majors.

Durante a aventura é introduzido também o personagem Godzooky, o “primo covarde” de

Godzilla. Através de um comunicador, a equipe era capaz de chamar o monstro em

situações de perigo. Os episódios sempre apresentavam ao público algum aparato científico

com proposta educacional.

Figura 32. A versão animada de Godzilla.

Conforme se pode notar na figura acima, não há um processo de antropomorfização

do monstro, mas é mais uma vez evidente a suavização da figura. Muito diferentemente do

monstro de 1954, Godzooky tem curvas suaves e expressão amigável. Embora não seja

uma figura tão depreciativa quanto Manilla, Godzooky tem feições arredondadas, sua linha

de barbatanas nas costas é suave, muito diferente das pontiagudas e angulosas barbatanas

do Godzilla. Além disso, Godzooky é muito mais um mascote do grupo do que uma figura

monstruosa com qualquer significação mais aguda.

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Ademais, uma vez que há a utilização dos episódios para fins didáticos com o

ensinamento sobre aparatos científicos, as significações ficam muito subordinadas a esse

fim. Mais uma vez, muito distante da obra original, as metáforas, se existem e se é possível

chamá-las assim, são subordinadas a uma função, o que enfraquece o poder metafórico.

Assim como no caso de Godzilla, o sucesso de Ultraman levou à sua expansão para

outras linhas de produtos. Figuras de ação foram fabricadas por algumas empresas como

Marusan, Bullmark, Bandai e mais recentemente pela Medicom. Como na exploração

comercial de Godzilla, em muitos casos Ultraman e os monstros por ele combatidos são

representados com feições caricatas e infantis, como é o caso da linha SD (Super

Deformed), estilo de caricatura japonesa na qual os personagens são apresentados com o

tamanho da cabeça e dos olhos aumentados e corpo atarracado, tentando aproximar-se das

proporções de uma criança pequena, afastando-se de suas referências iniciais. A linha SD

de Ultraman ganhou também uma adaptação para os videogames reproduzindo o mesmo

estilo infantil (figura 33).

No caso ao lado, há uma

suavização e infantilização da figura do

herói, com claros fins comerciais. O

personagem é tornado caricato, e sua

seriedade é revestida de conteúdos infantis

e de um humor agregado. Mesmo os

monstros, que aparecem no fundo da

imagem acima são revestidos dessa

atmosfera de não seriedade e

caricaturização.

Essa depauperação imagética é

diversa de Godzilla, mas cumpre as

mesmas funções. Se Ultraman

originalmente é um humanoide, a

derivação acima perde o antropomorfismo

mais proporcional e decai para um

antropomorfismo mais fantasioso, inserindo-se numa ludicidade na qual a série não estava

Figura 33. Capa de game para o console Game Boy, da Nintendo.

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inscrita. No caso dos monstros, a infantilização das figuras não os faz destoar tanto das

figuras originais, que já são, em si, algo caricatas. Mas, de qualquer modo, a mera inscrição

dos monstros em um contexto mais infantilizado faz perder a semântica de base da série.

A popularidade da imagem de Ultraman passa a ser usada também como agente

agregador de valor para variadas marcas. Recentemente o personagem foi usado para

promover o lançamento de um novo produto da operadora japonesa de celular Softbank, o

roteador ultra wi-fi 4G.

Figura 34. Ultraman no lançamento do roteador ultra wi-fi da Softbank.

A simples utilização do personagem como garoto propaganda não deixa dúvidas

quanto à redução da significação do personagem. De entidade combativa de males que

afetam a sociedade japonesa e, de uma maneira mais geral, afetam também o ecossistema

mundial, Ultraman passa a vendedor de roteadores e a representante de uma corporação.

Portanto, o personagem sai de uma esfera de significação de herói para uma esfera mais

baixa, de instrumento de vendas.

A subordinação de figuras emblemáticas a fins comerciais não é novidade. Porém,

quando esta subordinação atinge um ícone cujo escopo suscita significações maiores,

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típicas da construção do caráter heroico, sujeitando a figura do herói à atuação como mero

coadjuvante de uma ação comercial, está sujeitando a direcionamentos corporativos não

apenas sua figura como também o que essa figura representou ao longo dos anos, o que

definitivamente comparece como demérito.

Como no caso da desconstrução acima apresentada, relativa ao personagem

Ultraman, os significados originais da série Spectremen e, em especial, sua figura heroica e

as figuras dos vilões são também atingidos pela estética SD, com sua característica

deformação caricatural de perspectiva, voltada para a representação das proporções

corporais de criança. Tal desconstrução afasta Spectremen de suas referências estéticas,

inserindo-o em um contexto infantil e infantilizante, muito diferente do contexto inicial da

série.

Figura 35. Personagens SD de Spectreman.

A produção dos personagens SD de Spectreman obedece também à lógica de

suavização e infantilização da figura do herói com fins comerciais. O que se abala com sua

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caricaturização é a seriedade do herói e de seus antagonistas, que se torna repleta de

conteúdos infantis e de um humor latente. A imposição de uma ludicidade de matriz infantil

em personagens que não a portavam e o consequente empobrecimento das metáforas

originais fica evidente se pensarmos que a infantilização das figuras torna, como se pode

notar na figura acima, herói e vilões em figuras desajeitadas.

A figura SD de Spectreman guarda em si uma postura corporal que remete à

dignidade e heroicidade. As figuras do Dr. Gori e seu ajudante guardam, respectivamente,

um sentido de autoridade4 e de combatividade. Todavia, a deformação oferecida pela

perspectiva SD entra em choque com essas posturas corporais, tornando-as inócuas ou, no

mínimo, tão suavizadas quanto possível, o que direciona as figuras para a infantilização que

faz empobrecer os significados primários da série.

Na mesma direção semântica que a desconstrução das figuras SD de Spectreman,

encontramos as representações do personagem transformado em brinquedo de banho e em

brinquedo de corda, que podem ser conferidas nas figuras 36 e 37.

Figura 36. Brinquedo de banho.

4 Vale reparar que a figura do Dr. Gori, com sua mão levantada, remete à saudação nazista para Hitler.

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Figura 37. Brinquedo de corda.

Ambas as representações acima são distorções bastante proeminentes dos sentidos

primordiais. O que imediatamente assoma é a evidente comercialização direcionada ao

público infantil, também em voga na representação SD, mas, o que nos parece mais

importante é o sentido específico dessas duas distorções. Tanto o brinquedo de banho

quanto o brinquedo de corda trabalham com o arredondamento das formas. A figura do

personagem Spectreman, inicialmente mais angulosa, é suavizada e arredondada para que

circule com maior familiaridade pelo universo lúdico das crianças. Com tal processo

agregado, ocorre a vulgarização da imagem do herói, que passa a ser inscrita em um

universo dúbio no qual sua seriedade heroica são atribuídas características de suavização,

deformando os sentidos originais.

Além disso, não se pode deixar de apontar a radical mudança de contexto. A

retirada do herói de seu eixo espaço-temporal de origem e sua inscrição no universo desses

dois tipos de brinquedo é bastante significativo.

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A representação de Spectreman como um brinquedo de banho transfere o

personagem do contexto da série para um espaço de significações em que este pode figurar

penas como acessório. Transfigurado em uma distração para que a criança se aquiete ou

fique mais tranquila e dócil durante o ritual de limpeza, Spectreman passa a ser percebido

também como um herói portador destas qualidades de distração, tranquilidade e docilidade.

Tal significação passa a ser paralela à significação originária do herói, criando um

movimento de contraposição que trabalha para a decomposição dos significados

primordiais da série.

O brinquedo de corda faz um movimento ainda mais desconstrutor da imagem

original do herói. Retirando Spectreman de seu contexto e representação heroicos, inscreve-

o no universo dos brinquedos e, ainda mais, no universo dos autômatos. Tradicionalmente,

nos aparelhos movidos a corda, como relógios, o ato de “dar corda” representa uma

instrução irrevogável para a realização de ações automáticas e incontestáveis. Como um

relógio de corda não tem opção de não começar ou continuar a trabalhar a partir do

momento em que é acionado, salvo se estiver danificado, também o herói, via sua

representação infantilizada, passa a ser um instrumento que recebe uma ordem e a executa,

invariável e repetidamente.

Essa nova esfera de significação é, a nosso ver, mais potente que a do brinquedo de

banho. Por isso, prejudica ainda mais os significados originais do que a outra. Em se

tratando de um herói, tradicionalmente dotado de destreza física e qualidades éticas

incorruptíveis, realizador de tarefas que o exigem em altos níveis, sua transformação em

um autômato de brinquedo, que após receber uma ordem ou carga de energia converte-se

em um instrumento repetidor de ações mecânicas previamente programadas, é algo que

pode ser considerado um desastre semântico.

Jaspion, assim como as produções anteriores do gênero, teve seu nome vinculado a

dezenas de subprodutos como uma linha de brinquedos, produzida pela Bandai, e revistas.

Uma vez que a popularidade da série O Fantástico Jaspion no Brasil foi bastante elevada,

contou com desenvolvimentos comercias de várias ordens, tanto de espectro mais comercial

quanto em termos de apropriações bastante típicas do contexto cultural brasileiro, como a

transformação do personagem em atração circense. Esses produtos e apropriações serão

tratados a seguir.

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A verve comercial ligada ao personagem Jaspion pode ser sentida na construção

industrial de sua representação como action figure, expressão que pode ser traduzida como

“figura de ação”, nome mais especializado para os populares “bonecos”. A fábrica de

brinquedos Glasslite usou como base para a produção da action figure do personagem

Jaspion o corpo já fabricado do personagem Robocop.

Tal decisão relativa ao processo de fabricação

da action figure, além de indicar algum insucesso do

personagem Robocop, indica também um descuido

com a peculiaridade estética do personagem Jaspion.

A utilização de uma matriz já pronta, relativa a um

personagem com a constituição física bem diferente,

é obviamente ancorada em uma diretriz de produção

comercial não vinculada à fidelidade aos significados

primordiais da série, ferindo significativamente sua

estética.

Assim

como nos

casos de

Ultraman e Spectreman, Jaspion também teve

representações que se encaixam na estética SD. O

caso de representação de Jaspion recolhido desse

contexto é, talvez, o que mais se distancie dos

sentidos iniciais da série, uma vez que apresenta

tanto a deformação da perspectiva original quanto a

transformação do personagem em um objeto de

utilidade imbuído de um senso de extravagância

pejorativa.

Como se pode conferir na figura 39, o personagem Jaspion foi transformado em um

chaveiro. A estética do personagem chaveiro é derivada das representações SD, embora não

seja uma representação SD tradicional. A cabeça do personagem é ligeiramente maior do

Figura 38. Boneco produzido pela Glaslite, aproveitando a matriz do corpo do boneco Robocop.

Figura 39. Chaveiro SD.

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98

que seria em uma proporção correta, mas o exagero não é tão grande a ponto de ser

classificado como uma representação SD “clássica”.

O corpo do personagem também é achatado e atarracado. Apesar da figura

apresentar uma postura combativa, a junção da cabeça e do corpo, esteticamente

distorcidos, cria uma impressão de ridículo facilmente perceptível. Este fator aliado à

função de chaveiro da figura, cria um objeto extravagante, podendo ser considerado “de

mau gosto”. Ainda que justamente por esse caráter “de mau gosto” o objeto possa tornar-se

interessante, se inscrito na esfera do inusitado, isso não anula seu sentido premente de

desconstrução dos sentidos primordiais da série, principalmente no que tange à

ridicularização de seu protagonista.

Na figura ao lado encontramos um caso

emblemático da dissociação dos sentidos originais da

série Jaspion, na forma de inserção do protagonista

no contexto de espetáculos circenses.

Não se trata de um apontamento crítico com

relação ao espetáculo circense de maneira geral, nem

a um espetáculo circense em particular. Obviamente,

sabemos que o circo é uma das esferas de

comunicação, arte e espetáculo das mais privilegiadas

do ponto de vista do desenvolvimento de uma

semântica peculiar, apresentando um elevado índice

de elaboração conceitual, estrutural e temático.

Todavia, para os fins deste trabalho, devemos apontar

o que a inserção de um personagem como Jaspion,

dentro de um contexto circense de espetáculo, traz para a série em si, no tocante ao

enfraquecimento e ao desvio dos significados inicialmente desenvolvidos.

Uma vez que o espetáculo circense é composto por um elenco bastante variado e

atrações apresentadas em sequência, é importante perceber que a inserção de uma

encenação realizada com um personagem de tokusatsu só pode estar inscrita neste âmbito.

Mesmo que a encenação com o personagem Jaspion possa ter destaque na programação do

circo, o simples fato de constar como figurante em uma lista de atrações variadas faz com

Figura 40. Apresentação circense com o personagem Jaspion.

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99

que a atração, de alguma forma, perca sua integridade significante se pensada como uma

unidade de significado.

Uma atração singular, portanto, é vista mais como parte de um espetáculo geral do

que como uma atração em si, com seus significados particulares plenamente expostos e por

isso perceptíveis como unidade semântica. Além disso, podemos pensar que para uma

atração importa muito as apresentações que lhe são imediatamente precedentes e as que lhe

seguem.

No contexto circense é muito diferente quando uma atração é precedida por um

show de palhaços ou por uma apresentação do Globo da Morte. Um show de palhaços

normalmente é carregado de ironia e apresenta o desenvolvimento de um sentido de

comédia burlesca, ao estilo pastelão. Uma apresentação do Globo da Morte é marcada por

uma atmosfera de tensão e perigo. Tais atmosferas semânticas impregnam a atração

seguinte com seus próprios significados. Uma representação relativa ao personagem

Jaspion estaria, então, imbuída de um certo tom inicial de pastiche, se precedida por um

show de palhaços, ou um certo tom de ameaça, se precedida por uma apresentação de

Globo da Morte. Ao mesmo tempo, a apresentação de Jaspion imprime sua própria nuance

à apresentação posterior.

Tal efeito é típico do circo e incontornável em qualquer espetáculo circense. Como

dissemos, não é nosso intuito depauperar esse efeito, mas apontá-lo como parte do processo

de desconstrução dos sentidos originais da apropriação do personagem Jaspion no universo

circense. A simples inserção de uma série de tokusatsu em um ambiente cultural que lhe é

alheio já seria suficiente para o empobrecimento ou, no mínimo, para o desvio de seus

significados. A inserção da representação relativa à Jaspion em uma série de atrações que

guarda significados individuais de ordem múltipla também promove essa dissociação.

Tanto o personagem Jaspion quanto alguns desenvolvimentos conceituais e

temáticos da série, bem como conceitos do próprio gênero tokusatsu, dissolvem-se. Assim,

ficam quase totalmente desvinculados e perdidos de seus significados primeiros, inseridos

em uma atmosfera de vaudeville que, como já apontamos, não é em si demeritória, mas que

desvirtua as significações originais.

Nas duas figuras abaixo encontramos a transformação da série Jaspion em dois

álbuns de figurinhas, ambos publicados no Brasil. O primeiro é dedicado exclusivamente ao

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100

personagem (figura 41), já o segundo é um álbum no qual o personagem Jaspion figura ao

lado dos heróis da série de Super Sentai Changeman (figura 42).

Figura 41. Álbum de figurinhas exclusivo do personagem Jaspion.

Figura 42. Álbum de figurinhas dos personagens Jaspion e Changeman.

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101

O álbum de figurinhas tem um processo de representação peculiar, representando

seus objetos por meio da reprodução de ilustrações e/ou de fotografias. Assim como no

caso do circo, não se trata de condenar essa estrutura, mas de pontuá-la para pensar suas

implicações no entendimento dos significados iniciais da série Jaspion.

Nos álbuns citados acima, os personagens e momentos marcantes dos episódios da

série são apresentados na forma de frames retirados dos episódios. As ilustrações seguintes

(figuras 43 e 44) demonstram essa dinâmica.

Figura 43. Interior do álbum de figurinhas Jaspion/Changeman.

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102

Figura 44. Interior do álbum de figurinhas Jaspion/Changeman.

Nas duas figuras acima, a estrutura típica do álbum de figurinhas dá-se a ver, sendo

possível perceber que o objetivo dos álbuns é a representação e a (re)apresentação do

protagonista, de outros personagens e de elementos da série, como os monstros. Para uma

série televisiva, um álbum de figurinhas “presta um serviço” interessante, uma vez que a

apresentação dos personagens e seus conflitos pode despertar o interesse por parte de novos

espectadores, como aprofundar o interesse de espectadores já iniciados ou de fãs

arraigados.

Desse modo, em especial para novos espectadores, os álbuns funcionam como

matriz do interesse pela série e como uma útil desconstrução da mesma, permitindo navegar

por seus elementos semânticos de maneira orientada, com vistas a uma possível imersão

posterior de natureza mais profunda. Mas, sob outra ótica, os álbuns, ao trabalhar com essa

estrutura que lhes é inerente, ao mesmo tempo em que promovem essa útil desconstrução,

também promovem incontornavelmente um processo de desvinculação dos significados das

imagens selecionadas com os episódios dos quais são retiradas.

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103

Torna-se evidente o caráter de interesse comercial do álbum. Ainda que trabalhar

em prol da divulgação da série não seja demérito para nenhum instrumento que opere nesse

sentido, a constante e obrigatória desvinculação das imagens de suas fontes é o fator que

pode criar um ambiente de percepção no qual as metáforas originais potentes sejam

dissolvidas em uma série de imagens dissociadas de seus contextos. Assim, podem

funcionar como construtoras de uma nova imagem da série, certamente mais pobre.

No caso da adaptação para as

histórias em quadrinhos (figuras 45 e 46),

o que está em cena é o processo de

empobrecimento dos significados

primordiais na forma da desvinculação

com suas metáforas de base e com o

contexto inicial da série.

Conforme se pode

perceber pelas ilustrações, as histórias em

quadrinhos de Jaspion não são atentas ao

contexto de significações da série, esquecendo

as demandas histórico-culturais e construindo a

imagem do herói em conformidade com um

modelo que privilegia a mera representação das lutas pela estética da luta em si, e não pela

via da crítica tecida originariamente pela obra.

Figura 45. Adaptação da série Jaspion para história em quadrinhos no Brasil.

Figura 46. Adaptação da série Jaspion para história em quadrinhos no Brasil.

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Outra forma de desconstrução dos significados da série Jaspion é a tradução e a

adaptação da trilha musical japonesa para o contexto brasileiro. Não só os arranjos musicais

como as letras das músicas originais foram alteradas, para as quais nos dedicaremos com

mais atenção. No entanto, é importante apontar que os primeiros arranjos das músicas da

série são, em geral, mais elaborados, enquanto que os arranjos das canções gravadas em

português costumam ser bastante próximos de registros típicos de música infantil.

Tal fato pode estar ancorado no grande número de programas infantis de sucesso no

Brasil, à época do lançamento e veiculação da série Jaspion no país. Esse processo, ainda,

coaduna-se com processos citados acima, como a transformação da estética tradicional do

personagem em uma estética SD, bem como à criação de álbuns de figurinhas e de histórias

em quadrinhos do personagem, ações que tinham como meta atingir o público infantil.

Para demonstrar como se dá o processo de empobrecimento dos significados

originais da série na tradução das letras, elegemos a música Ginga no taazan, que em

japonês significa Tarzan da Galáxia. A capa do álbum brasileiro no qual a canção está

inserida é apresentada abaixo.

Figura 47. Capa do álbum O fantástico Jaspion.

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A letra original é apresentada abaixo:

Ginga No Taazan Chichi wo Shiranai Haha wo Shiranai

Mukumori Saemo Oboe Teinai Dakedo Ore ni wa Nakama ga Iru sa Dare Yo Rimo Atsui Wakasa ga Aru

Ore wa Ginga no Taazan

Yoake wo Tsureta Taiyou ni Naru Yasei no Inochi Jiyuu na Yume wo

Omoikiri Moyashite

Iki ga Tsumaru ze Semari Kono Machi Imari Darake no Sewashii Kurashi

Sousa Ore ni wa Uchuu ga Ie sa Ano Hoshikuzu ga Furusato no Hi da

Ore wa Ginga no Taazan

Hikari wo Koete Mirai wo Tsukamu Hito ga Wasureta Seman wo Motome

Ikite Yuku Otoko sa

Ore wa Ginga no Taazan Hikari wo Koete Mirai wo Tsukamu

Hito ga Wasureta Seman wo Motome Ikite Yuku Otoko sa

Dada a escolha desta música, não podemos deixar de apontar a relação que se faz,

tanto no título quanto na letra, ao personagem Tarzan, de Edgar Rice Burroughs. O ponto

de intersecção dos personagens parece ser o fato de ambos serem órfãos. Tarzan é criado

por macacos na selva africana após um desastre de avião no qual morrem seus pais e

Jaspion um alienígena que não tem pai nem mãe.

Essa proximidade talvez seja a inspiradora da relação, mas há mais que isso. Uma

vez associado a Tarzan, como o “Tarzan da Galáxia”, todas as significações atribuídas ao

personagem Tarzan acabam por sobrepor-se ao personagem Jaspion. Nesse sentido, é

importante perceber que três das cinco estrofes da letra iniciam com o verso “Eu sou o

Tarzan da Galáxia”.

Tarzan é um sobrevivente, atlético, guerreiro e heroico. Perde-se na selva quando

criança, é criado por macacos e retorna à civilização. O percurso empreendido pelo

personagem é típico de uma jornada de herói nos moldes mais clássicos. É precisamente

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esta relação, além dos predicados de coragem e destreza física, que fica acentuada quando

se nomeia Jaspion como Tarzan.

Tal relação é importante para entender a composição da letra da música e também

para que se entenda o enfraquecimento dos significados originais na adaptação para o

português. Conforme se verá, a letra em português não é uma tradução da letra em japonês,

mas uma letra diversa, ao gosto dos parâmetros da indústria cultural no Brasil, tecida sob a

égide das orientações de mercado e para a veiculação da série no contexto brasileiro.

A seguir, reproduzimos a tradução direta do japonês e tecemos alguns comentários

acerca dos significados originais nela presentes:

Tarzan da Galáxia

Não conheço o meu pai, não conheço a minha mãe Nem me lembro do carinho deles

Mas eu tenho amigos Eu estou mais vivo do que um jovem

Eu sou o Tarzan da galáxia

Serei acompanhado pelo sol do amanhecer Vida selvagem e sonho com a liberdade

Vivendo ardentemente

Eu me afogo nesta pequena cidade Vivendo sob muitas regras

Sim, minha casa é o universo Essas estrelas são a luz da minha terra

Eu sou o Tarzan da galáxia

Ultrapassando a luz e me agarrando ao futuro Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram

Sou um homem que vive assim

Eu sou o Tarzan da galáxia Ultrapassando a luz e me agarrando ao futuro

Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram Sou um homem que vive assim5

(YAMAKAWA; WATANABE, 2004)

Os dois primeiros versos da letra, “Não conheço o meu pai, não conheço a minha

mãe/ Nem me lembro do carinho deles”, constroem a imagem de Jaspion como órfão. O

último verso da primeira estrofe, “Eu estou mais vivo do que um jovem” e os versos

5 Tradução nossa.

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seguintes da segunda estrofe, “Eu sou o Tarzan da galáxia/ Serei acompanhado pelo sol do

amanhecer/ Vida selvagem e sonho com a liberdade/ Vivendo ardentemente”, posicionam

Jaspion como herói ativo e como herdeiro dos predicados de coragem de Tarzan, inclusive

com menção ao contexto geográfico do personagem de Burroughs.

Podemos perceber que o índice de elaboração semântico da canção é elevado, não

apenas pela composição conjunta que se faz dos dois personagens, mas por detalhes como o

do segundo verso da segunda estrofe, “Serei acompanhado pelo sol do amanhecer”. A

figura do sol, evocada em uma letra que relaciona os personagens Tarzan e Jaspion, pode

ser pensada como símbolo tanto da geografia africana típica das histórias de Tarzan, quanto

como representação da bandeira japonesa, oficialmente nomeada “Bandeira do Sol”, na

qual um círculo vermelho figura sobre um fundo branco.

No terceiro verso da terceira estrofe, “Sim, minha casa é o universo”, o personagem

Jaspion é posicionado como um viajante. Portanto, Jaspion não tem uma casa definida ou

uma origem precisa, assim como Tarzan. Os terceiros versos da quarta e da quinta estrofes,

“Olhando para a aventura que as pessoas esqueceram”, reforçam a imagem de Jaspion

como viajante e, mais diretamente, o posicionam como consciente de um sentido de

aventura que escapa às pessoas, de maneira geral.

Como se pode notar, as construções semânticas da letra original são complexas.

Jaspion é relacionado a Tarzan para que possa ser carregado de suas características

intrínsecas; é constituído como órfão, sem origens, como viajante e aventureiro e, ainda,

faz-se uma relação entre figuras do contexto histórico cultural da África e do Japão (o sol

africano/a bandeira japonesa). Já na construção da letra em português, os significados

iniciais são esquecidos e confundidos. Este fato, somado ao arranjo infantilizado da música

gravada em português, constitui a canção Guerreiro vencedor como um dos símbolos

máximos do depauperamento dos sentidos primordiais da série. A seguir, reproduzimos a

letra:

Guerreiro vencedor A história se repete

E a lição não se esquece Novamente posso ter

Esperanças no amanhã

Vejo novos tempos em guerra

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E creio na justiça Toda luta que se faz pela paz

Vai valer

Guardo em mim A força do amor

Tenho sim Coragem pra continuar

O universo é o lar

Do Guerreiro Vencedor Juro, eu vou seguir

Até o fim (FERREIRA, 1989)

Em comparação à letra da canção original, a versão em português parece, no

mínimo, principiante. Fica excluída a comparação entre Jaspion e Tarzan, o caráter de

viajante, órfão ou “sem casa” do personagem e sequer há alusão ao sol, que evidencia tanto

os contextos nos quais estão inseridos o personagem de Burroughs quanto o personagem

japonês. Além disso, o universo resgatado pela letra em português é próximo a construções

ligadas a esforços motivacionais e a uma literatura de baixo escopo.

A construção semântica da letra em português não apresenta uma elaboração

profunda, mas, sim, uma orientação generalista que faz perder os significados trabalhados

inicialmente em Tarzan da Galáxia. O segundo e o terceiro versos da primeira estrofe da

canção em português são emblemáticos deste processo: “Novamente posso ter/ Esperanças

no amanhã”. Trata-se de uma construção retórica empobrecida, uma facilitação do

significado similar aos empregados em literatura de auto ajuda e uma generalização em prol

da popularização e infantilização dos significados que entra em total contraste com a

orientação da letra original.

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109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação foi concebida com o intuito de esmiuçar aspectos estruturais,

conceituais e temáticos do gênero tokusatsu, com base na análise de algumas de suas séries

e filmes. A perspectiva inicial desenvolvida que colocava o tokusatsu como uma síntese de

influências estadunidenses e europeias com folclore japonês foi abandonada, em prol do

desenvolvimento de um viés mais ligado à representação de metáforas políticas.

As produções do gênero, à medida que eram analisadas, revelaram-se bastante

marcadas por questões políticas. Mesmo que as análises tenham evidenciado a forte

presença de tais questões, na concepção e na construção narrativa das obras analisadas,

percebemos que elas normalmente passavam despercebidas por conta de uma pré-

concebida vinculação do gênero com o público infantil.

Portanto, a pesquisa aqui desenvolvida teve como um de seus principais eixos a

desmistificação de tal concepção. O tokusatsu foi admitido como um campo rico em

aspectos comunicacionais e semióticos. Estes aspectos, ao orientar as narrativas do gênero,

os tornam construtos culturais complexos que expõem questões de suma importância no

contexto sócio-histórico japonês, em especial aquelas ligadas às consequências da 2ª Guerra

Mundial.

No entanto, não se restringem a este período. Os filmes e séries estudados foram e

continuam sendo importantes, tanto como resultado de um contexto sócio-histórico

específico como enquanto marcos culturais capazes de deixar rastros identificáveis e

marcantes.

Após a fartura que marcou a passagem dos anos 1970 para os 1980, os anos 1990

foram marcados por muitas adversidades, o terremoto na região Kansai, os atentados

terroristas da seita de Asahara, além da crise financeira. O Japão adentrou o novo milênio

assombrado pelo mundo pós-Akira (Akira é o nome de uma história em quadrinhos ao

estilo mangá, publicada originalmente de 1981 a 1993. A obra é assinada por Katsuhiro

Otomo, que dirigiu e roteirizou sua adaptação cinematográfica ao estilo anime, em 1998),

proposto pela animação de mesmo nome, que constituiu um grande sucesso de bilheteria, e

pirataria, no mundo todo. Esse desencantamento parece ter sido traduzido de duas

maneiras: gerando obras radicais que representavam a perda ou infantilizando os produtos e

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110

transformando tudo em entretenimento e culto à juventude. Apesar da dificuldade em

identificar quando começou este processo, dois elementos estão sempre presentes, em certa

medida: o fenômeno otaku e a cultura pop.

O fenômeno otaku, que indiretamente constitui um certo contexto de várias questões

surgidas a partir das séries analisadas nesta dissertação, começou em 1983. O ensaísta Akio

Nakamori tinha 23 anos quando escreveu um artigo na revista em quadrinhos Buricco,

voltada ao público adulto, usando esta nomeação para falar do novo fenômeno que

começava a despontar entre os jovens. Porém, o termo ficou à sombra durante muitos anos,

aparecendo na mídia com mais força apenas em outubro de 1989 em uma situação bastante

trágica, que passaria a estigmatizar todos os envolvidos na nova cultura otaku. Um homem

jovem, de 27 anos, chamado Tsutomu Miyazaki matou quatro jovens meninas e passou a

ser considerado um típico otaku. A partir daí, todo teor romântico, que poderia ser sugerido

pela figura dos jovens tímidos preservados de qualquer acesso mais direto com a sociedade,

foi esquecido e o termo passou a designar o assassino perverso por natureza. Muitas

tentativas foram feitas para mudar a nomeação do fenômeno e tirar a marca do assassinato.

Surgiram, então, nomes como otakky e hobby-ist. No entanto, o melhor remédio foi mesmo

o tempo e as novas tecnologias que surgiram com a emergência de jogos como o futebol

otaku, o otaku de golfe, de asa delta, etc.

Um pouco como Peter Pan, não somente os otaku, mas boa parte dos japoneses

jovens passaram a evitar a passagem para a idade adulta. Assim, os computadores

tornaram-se máquinas de preservação da infância. Trata-se de uma mudança radical. Até a

2ª Guerra Mundial, o Japão era uma sociedade de ordem “confucionista”, na qual crianças

tinham grande importância para os adultos, os mais jovens respeitavam os mais velhos e

assim por diante. A ideologia militarista já não existia, no entanto, muitos de seus valores

continuavam sendo praticados. A geração logo após a guerra ainda se valia de alguns destes

princípios, mas a geração posterior, dos pais de quem nasceu nos anos 1960, assim como

todos os professores que ministraram aulas para essas pessoas, trataram de cultivar nas

crianças a ideia de que o passado estava enterrado e não havia como retomá-lo.

O lema tornou-se consumir e viver o momento. O que tem sido chamado de cultura

pop japonesa tem relação com este processo, uma vez que a referência mais importante

parece ser o imaginário desta juventude que não necessariamente gira em torno da

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111

adolescência, mas pode e tem de fato chegado cada vez mais tardiamente a um público de

trinta anos ou mais.

Tudo isso está ligado a um fluxo de geografias culturais que no caso japonês

movimenta-se também como uma espécie de resistência, ainda que não deliberadamente

política resistente àquilo que o governo e as instituições japonesas sempre consideraram a

cultura nipônica: as artes tradicionais, as flores de cerejeira, a arte dos quimonos e assim

por diante. É sobretudo após os anos 1990, em meio à crise, que a cultura nipônica se torna

uma “tendência”, atravessando as estéticas tradicionais e se afirmando como pós-zen,

kawaii, com iconografias de anime espalhadas por t-shirts, louças, outdoors, moda,

emissões tecno-nipônicas na MTV, sushi bares e assim por diante.

Mais do que a sociedade exótica de gueixas e samurais, o Japão tornou-se o

protótipo da sociedade de consumo pós-industrial, fundada no fluxo acelerado de

informação que se contrapõe ao antigo estereótipo do tempo lento e intervalar da cultura

tradicional, transformando-se em ícone da comunicação de massa. É como se deixasse de

se tratar de uma alteridade exótica para, finalmente, surgir o reverso da moeda. Ou seja, o

Japão transformado na ponte mais estreita entre o extremo oriente e o extremo ocidente.

Os filmes do gênero tokusatsu analisados nesta dissertação, passaram por

transformações alimentadas por esses contextos. Se, como sugeriram Lakoff e Johnson, as

metáforas refletem modos de pensar e agir, nada mais natural que testemunhar a

despolitização e as novas tendências dos grandes personagens e heróis.

Considerando o Japão na segunda década do novo milênio, não há conclusões

definitivas. Há apenas uma série de questões que, para serem aprofundadas, precisam ser

acompanhadas durante mais tempo, possibilitando distância e análise crítica destes

fenômenos, os quais implicam não apenas na história do cinema japonês, mas nos

processos educacionais, nos modos de vida e comprometimentos com a comunidade que,

algumas vezes, parecem estar diluídos em redes de consumo.

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112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Hirata, Takashi Shimura e outros. Roteiro: Ishirô Honda, Takeo Murata. Música: Akira

Ifukube. Tóquio: Toho, 1954. (96MIN).

Músicas

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YAMAKAWA, Keisuke e WATANABE, Michiaki. Ginga no Taazan. In: Super Hero

Chronicle. Tóquio: Columbia Music Entertainment, 2004. 1 CD. Faixa 7

Séries

ESQUADRÃO relâmpago Changeman. Direção: Takao Nagaishi e outros. Intérpretes:

Haruki Hamada, Hiroshi Kawai, Shiro Izumi, Hiroko Nishimoto, Mai Oshii e outros.

Roteiro: Kyoko Washiyama, Hirohisa Soda, Kunio Fujii e outros. Música: Tatsumi Yano e

Katsumi Ono. Tóquio: TV Asahi, Toei & Toei Agency. 1985/1986. (Episódio 55).

FANTÁSTICO Jaspion, o. Direção: Akihira Tojo, Takeshi Ogasawara. Yoshiaki

Kobayashi. Intérpretes: Hikaru Kurosaki, Kiyomi Tsukada, Junichi Haruta e outros.

Roteiro: Saburo Hatte. Música: Michiaki Watanabe. Tóquio: Toei Company. 1985/1986.

(46 episódios).

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JIRAIYA, incrível ninja, o. Direção: Akihisa Okamoto, Tetsuji Mitsumura e outros.

Intérpretes: Takumi Tsutsui, Masaki Hatsumi, Megumi Sekiguchi, Takumi Hashimoto,

Noriaki Kaneda e outros. Roteiro: Susumi Takaku, Kenji Terada e outros. Música: Kei

Wakakusa. Tóquio: Toei Company. 1988/1989. (50 episódios).

KAMEN Rider Black. Direção: Satoshi Tsuji, Masao Minowa, Yoshiaki Kobayashi e

outros. Intérpretes: Tetsuo Kurata, Akemi Inoue, Ayumi Taguti, Takahito Horiuchi, Taro

Yoshida e outros. Roteiro: Shozo Uehara, Junichi Miyashita, Sho Sugimura e outros.

Música: Eiji Kawamura. Tóquio: Toei Company, Mainichi Housou. 1987/1988. (51

episódios).

KAMEN Rider Black Rx. Direção: Yoshiaki Kobayashi, Masao Minosawa e outros.

Intérpretes: Tetsuo Kurata, Jun Takanomaki, Rikiya Koyama, Megumi Ueno, Mahito

Akatsuka e outros. Roteiro: Taku Ezure, Junichi Miyashita, Kyoko Washiyama e outros.

Música: Eiji Kawamura. Tóquio: Toei Company e Mainichi Housou. 1988/1989. (47

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NATIONAL Kid. Direção: Nagayoshi Akasaka e Jun Kaoike. Intérpretes: Ichiro Kojima,

Tatsume Shiutaro Taeko Shimura, Kazuo Hara e outros. Roteiro: Nagayoshi Akasaka e

Daiji Kazumine. Música: Fukazawa Yasuwo. Tóquio: Toei Company. 1960/1951. (39

episódios).

PODEROSO Lion Man, o. Direção: Koichi Ishiguro e outros. Intérpretes: Tetsuya Ushio,

Kazuo Kamoshida, Ryoko Miyano, Tsunehiro Arai, Masaki Hayasaki e outros. Roteiro:

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episódios).

REGRESSO de Ultraman, o. Direção: Inoshiro Honda e outros. Intérpretes: Jiro Dan, Rumi

Sakakibara, Mori Kishida, Hideki Kawagshi, Nobuo Tsukamoto e outros. Roteiro: Shozo

Uehara e outros. Música: Toru Fuyuki. Tóquio: Tsuburaya Productions. 1971/1972. (51

episódios).

SPACE Cop Gaban. Direção: Yoshiaki Kobayashi e outros. Intérpretes: Kenji Ohba,

Wakiko Kano, Kyoko Nashiro, Toshiaki Nishizawa e outros. Roteiro: Shozo Uehara e

outros. Música: Michiaki Watanabe. Tóquio: Toei Company. 1982/1983. (44 episódios).

SPRECTREMAN. Direção: Keinosuke Tsuchiya, Ishiguro Koichi e Hiromi Higuchi.

Intérpretes: Tetsuo Narikawa, Tohru Ohira, Kazuo Arai e outros. Roteiro: Susumu Taka-

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Ku, Haruya Yamazaki e Masaki Tsuji e outros. Música: Miyauchi Kunio e Naohiko

Terashima. Tóquio: P-Productions. 1971/1972. (63 episódios).

SPIELVAN. Direção: Takeshi Ogasawara, Akihira Tojo e outros. Intérpretes: Hiroshi

Watari, Jun Takanomaki, Naomi Morinaga, Machiko Soga, Ichirou Mizuki e outros.

Roteiro: Shozo Uehara e outros. Música: Chumei Watanabe. Tóquio: Toei Company e TV

Asahi. 1986/1987. (44 episódios).

ULTRAMAN. Direção: Eiji Tsuburaya e outros. Intérpretes: Susumu Kurobe, Akiji

Kobayashi, Sandayu Dokumamushi, Masanori Nihei, Hiroko Sakurai, Akihiko Hirata,

Koguehide Tsuzawa e outros. Roteiro: Tetsuo Kinjo. Música: Kunio Miyauti. Tóquio:

Tsuburaya Productions. 1966/1967. (39 episódios).

ULTRASEVEN. Direção: Hajime Tsuburaya, Sohei Tojo, Kazuho Mitsuta e outros.

Intérpretes: Koji Moritsugu, Yuriko Hishimi, Shoji Nakayama, Sandayu Dokumamushi e

outros. Roteiro: Tetsuo Kinjoh, Shozo Uehara e outros. Música: Tohru Fuyuki. Tóquio:

Tsuburaya Productions & TBS. 1967/1968. (Episódios 49).

VINGADORES do espaço. Direção: Satoshi Kad, Hiroyuki Tsuchiya, Nakao Mamoru,

Funadoko Sadao , Akira Kikuchi. Intérpretes: Tetsuya Uozumi, Shigeko Mise, Silvar,

Hideki Ninomiya, Toshio Egi, Masami Okada, Tom Mura, Tohru Ohira. Roteiro: Togo

Wakabayashi, Susumu Takaku, Hiroyasu Yamaura, Uchiyama Junichi, Ishido, Yoshi Akira

e outros. Música: Yamamoto Naozumi. Tóquio – P-Productions. 1965/1967. (51 episódios).